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Gente é pra brilhar Centro Projeto Axé de Defesa e Proteção à Criança e ao Adolescente Salvador, Bahia Alice Silva de Santana 13anos Nascida e criada no subúrbio de Itacaranha, em Salvador, Alice Silva de Santana, de 13 anos, ainda não teve muitas oportunidades de conhecer a música de Caetano Veloso, um de seus conterrâneos mais geniais. Ainda assim, vem seguindo à risca a trilha de um dos seus maiores sucessos, que diz “gente é pra brilhar”, da música Gente. Alice é filha de Carla, viciada em crack, que teve a menina aos 14 anos. Está presa pela segunda vez, cumprindo pena de quatro anos e sete meses por assalto à mão armada. Para sustentar o vício, além de roubar, a mãe de Alice também se prostituía. Por causa disso, Alice subiu e desceu muita ladeira da Cidade Baixa de Salvador à procura da mãe. “Já fui encontrar minha mãe em vários hotéis podres”. Alice já foi furtada pela mãe, que lhe levou playstation, sandália e teclado de computador. Também visitou Carla em delegacias e presídios superlotados, onde aprendeu regras básicas de convivência no cárcere. Seu sonho é ser artista plástica. “Quero ser dona de uma galeria de arte moderna, ser famosa e brilhar”. Esse é só o começo da história de Alice. Faz um ano ela frequenta o Projeto Axé, em Salvador, onde, há 20 anos, chegam meninos e meninas em situação de risco social extremo, como Alice, e de onde saem bailarinos, músicos, produtores, cantores, artistas. Casa da avó Com Carla vivendo nas ruas em busca da próxima pedra de crack, Alice sempre morou com a avó, uma assistente de enfermagem que cuida da neta e de um filho deficiente físico. A avó é a principal referência na vida da garota. “Ela gosta de mim, me cuida e nada me falta”, descreve Alice. Na casa há uma condição: “Minha mãe não pode entrar porque ela nos furta”. Da última vez, foram dois ventiladores. Antes de ser presa pela última vez, há cerca de sete meses, Carla passou três anos vivendo como viciada em crack pelas ruas de Salvador, fazendo ponto na Ladeira da Montanha, região do baixo meretrício, no centro, e roubando. A parte que coube a Alice nesse período, em que

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Gente é pra brilhar

Centro Projeto Axé de Defesa e Proteção à Criança e ao AdolescenteSalvador, Bahia

Alice Silva de Santana13anos

Nascida e criada no subúrbio de Itacaranha, em Salvador, Alice Silvade Santana, de 13 anos, ainda não teve muitas oportunidades deconhecer a música de Caetano Veloso, um de seus conterrâneos maisgeniais. Ainda assim, vem seguindo à risca a trilha de um dos seusmaiores sucessos, que diz “gente é pra brilhar”, da música Gente.

Alice é filha de Carla, viciada em crack, que teve a menina aos 14 anos.Está presa pela segunda vez, cumprindo pena de quatro anos e setemeses por assalto à mão armada. Para sustentar o vício, além de roubar,a mãe de Alice também se prostituía. Por causa disso, Alice subiu edesceu muita ladeira da Cidade Baixa de Salvador à procura da mãe. “Jáfui encontrar minha mãe em vários hotéis podres”. Alice já foi furtadapela mãe, que lhe levou playstation, sandália e teclado de computador.Também visitou Carla em delegacias e presídios superlotados, ondeaprendeu regras básicas de convivência no cárcere. Seu sonho é serartista plástica. “Quero ser dona de uma galeria de arte moderna, serfamosa e brilhar”. Esse é só o começo da história de Alice.

Faz um ano ela frequenta o Projeto Axé, em Salvador, onde, há 20anos, chegam meninos e meninas em situação de risco social extremo,como Alice, e de onde saem bailarinos, músicos, produtores, cantores,artistas.

Casa da avó

Com Carla vivendo nas ruas em busca da próxima pedra de crack,Alice sempre morou com a avó, uma assistente de enfermagem quecuida da neta e de um filho deficiente físico. A avó é a principalreferência na vida da garota. “Ela gosta de mim, me cuida e nada mefalta”, descreve Alice. Na casa há uma condição: “Minha mãe não podeentrar porque ela nos furta”. Da última vez, foram dois ventiladores.

Antes de ser presa pela última vez, há cerca de sete meses, Carlapassou três anos vivendo como viciada em crack pelas ruas de Salvador,fazendo ponto na Ladeira da Montanha, região do baixo meretrício, nocentro, e roubando. A parte que coube a Alice nesse período, em que

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com esse negócio de moda, mas, quando entrei no ateliêde artes visuais e vi aqueles quadros, aqueles desenhos,pensei: meu lugar é aqui”. A menina diz-se tão “atare-fada” que não tem mais tempo de lavar a louça ouencher de água as jarras da geladeira, as duas únicastarefas domésticas que lhe são designadas pela avó.“Minha agenda é cheia – escola, Axé e ainda volteipara a Igreja”, tenta justificar-se marotamente. O quemais anima Alice é a perspectiva de viajar para asturnês que o Axé faz para a Itália. “Vejo os meninos queestão aqui há mais tempo. Era todo mundo como eu eagora estão aí, indo pra Europa, todos cheios de planos.Quero a mesma coisa”.

Projeto Axé

Ao longo desses 20 anos, o trabalho do Axé con-solidou-se tanto entre a população de Salvador queAna Paula, moradora do subúrbio, usuária de cocaína eex-presidiária, tem no projeto uma referência deoportunidade para as crianças e os adolescentes do seubairro. “Nosso foco é muito claro: atendemos criançase adolescentes em situação de risco social”, explicaMarly de Oliveira Macedo, coordenadora de arte-educação do Axé.

O Axé foi criado em 1990, em Salvador, pelo educadoritaliano Cesare de Florio La Rocca, que trocou a funçãode representante adjunto do Fundo das Nações Unidas

tinha de 9 a 12 anos, foi tentar cuidar da mãe. “Queromuito que minha mãe saia da cadeia e mude de vida,mas, para ser sincera, hoje prefiro que ela fique ondeestá. Sei que está bem e segura. Vou lá visitar de vez emquando. Assim dá tempo de ela criar mais um pouco dejuízo até a hora de sair”, diz a menina.

Esperança

Antes de chegar ao Axé, Alice dividia seu tempo entrea escola e a rua – passava longas horas dando voltas ouassistindo a filmes na casa de um tio, até que umaamiga bem próxima de Carla, por quem Alice revela termuito carinho, resolveu dar um rumo diferente à vidada menina.

Ana Paula é vizinha de Alice e já foi companheira decela de Carla da primeira vez que cumpriu pena porroubo. “Ana Paula está limpa de crack. Hoje só usacocaína e cachaça”, relata Alice, com naturalidade. Foiessa “tia de consideração” que, literalmente, pegouAlice pelas mãos, subiu com ela no ônibus e cruzou acidade – saindo do subúrbio de Itacaranha, desem-barcou no bairro histórico do Pelourinho, quarentaminutos depois. Levou a menina até a porta da unidadedo Projeto Axé, olhou para Alice nos olhos e disse: “Éesse o lugar que vai mudar a sua vida”.

Alice entrou no casarão histórico e, depois de ummês, pediu para mudar de curso. “Não simpatizei muito

Ao longo de quase duas décadas, o Projeto Axé trabalha com meninos e meninas que vivem ou trabalham nas ruas. Formoubailarinos, músicos e produtores culturais.

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para a Infância no Brasil (UNICEF) pela tarefa de criar um projeto social na capital baiana. Ao longo dessas duasdécadas, o projeto contribuiu para a formação de educadores de ONGs de todo o país e desenvolve um trabalhopioneiro com crianças e adolescentes que vivem ou trabalham nas ruas.

Arte-educação

O Axé usa arte-educação como ferramenta de transformação social de forma consistente – o tempo médiode permanência nas unidades é de seis a dez anos – e obtém resultados expressivos: 85% dos cerca de vinte miljovens que passaram pelas suas unidades completaram o ensino médio e estão inseridos no mercado de trabalho.Hoje, o Axé atende 1.198 adolescentes e jovens de 12 a 25 anos. O casarão histórico onde eram atendidas 180crianças dos 6 aos 11 foi interditado pela prefeitura e fechou. Os pequenos estão sem atendimento por falta deespaço no centro da cidade, o lugar tradicional de atuação do Axé.

Ao longo desses anos, o Criança Esperança apoiou várias ações do Axé, como o centro de profissionalização –onde se formam os jovens das artes visuais, da dança, da capoeira e da música. Mais recentemente, o programadá suporte com a bolsa-transporte, fundamental para assegurar o deslocamento dos garotos de casa até asunidades.

Refinamento

No Axé, as linguagens encontram-se. A Banda Axé toca percussão, batuque, som afro; o Grupo Experimentalde Câmara faz música clássica, mas quando há espetáculo, as expressões misturam-se: capoeira, dança, artesvisuais, batuque. Os shows do Axé, especialmente os que acontecem na Itália, são a energia que move o moinhoque desde cedo gira na cabeça de meninos e meninas: a busca da beleza.

Para La Rocca, o fundador, o que faz que essa garotada saia das ruas, estude, mude de vida é a beleza. É omesmo encantamento que fez Alice, a personagem deste capítulo, entrar em um ateliê cheio de desenhos epinturas e dizer: “Quero fazer parte desse universo”. É essa filosofia que permeia o cotidiano do Axé.

Itália

Em 2010, de 9 a 18 de julho, o Axé participou do Festival de Jazz de Úmbria, na Itália, um dos mais tradicionaisdo mundo, com o espetáculo Sons e Passos do Desejo, Brasis de Darcy Ribeiro. Apresentou-se para um público demilhares de pessoas em um teatro imponente. Os músicos tocaram com Fiorella Mannoia, uma das cantoras maispopulares da Itália, e com dois dos maiores percussionistas da atualidade: Giovanni Hidalgo, de Porto Rico, e ocubano Horacio Hernandez. Com Mannoia, ensaiaram apenas uma vez. “Essas experiências aceleram o processode aprendizagem ao máximo porque exigem dos meninos autocontrole para enfrentar público, dar entrevistas,além, é claro, do conhecimento técnico de saber tocar e dançar”, diz Marly.

Melhor

Cristian Silva, de 21 anos, chegou ao Axé quando tinha 10 anos de idade. Foi abordado por um educador derua quando corria atrás de uma “arraia” (pipa) na rua região central de Salvador, onde seu pai tinha uma barracade lanche, negócio com o qual sustentou seus nove filhos. Quando não estava na escola, o menino brincava narua. “Escapei de morrer atropelado”, diz.

O rapaz é um dos muitos exemplos de transformação do Axé – era um menino que tinha como horizonte apróxima pipa a ser derrubada. Hoje, é bailarino profissional. Instrutor da Companhia Jovem de Dança Gicá, atuana trupe da cantora Ivete Sangalo. Viajou o Brasil todo dançando pelo projeto Axé e apresentou-se na Europa.

Fala Cristian: “O Axé quer sempre dar o melhor para os meninos. Mesmo que sejam todos meninos de rua quenem sabem o que é o melhor. Mas um dia esse melhor faz a toda a diferença”.

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Dez anos após a promulgação da novaConstituição Federal, a Emenda Constitucio-nal nº 20 passou a proibir não só o trabalhonoturno, perigoso ou insalubre a menoresde 18 anos de idade, mas também qualquertipo de trabalho a menores de 16 anos, salvona condição de aprendiz, a partir de 14 anos.O Brasil precisava agir para combater uma dassuas maiores chagas: o trabalho infantil.

Foi criado pelo governo federal o pro-grama Bolsa Cidadã, que viria a ser chamadoposteriormente de Programa de Erradicaçãodo Trabalho Infantil (Peti). As famílias rece-biam um benefício financeiro, devendo, emcontrapartida, manter seus filhos na escola.A educação começava a ser vista como ferra-menta de desenvolvimento, capaz de quebrarciclos de pobreza. O programa foi posto emprática prioritariamente nos estados do MatoGrosso do Sul, Pernambuco e Bahia, ondehavia tradição de empregar crianças e adoles-centes, em carvoarias, canaviais, pedreiras ena produção do sisal.

Em todo o mundo, cresceu o debate sobrecrianças e adolescentes que abriam mão departe dos estudos e das brincadeiras parafazer serviços considerados penosos. Em1988, foi realizada a Marcha Global pela Erra-dicação do Trabalho Infantil no Mundo, quesaiu de vários países rumo a Genebra, naSuíça, onde aconteceu a Conferência da Orga-nização Internacional do Trabalho (OIT).

Realidade brasileira

No Brasil, mais de sete milhões de criançase adolescentes trabalhavam. A maioria (32,8%)na agricultura – em Mato Grosso do Sul, Pa-raíba e Rio Grande do Sul, quase metade dascrianças estava empregada neste setor. Com-

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Sete milhões de crianças e adolescentes

trabalham no Brasil; 69,8% dos adolescentes

têm baixa escolaridade

No especial Criança Esperança, artistas focalizam o tema da educação, incentivando

maior participação dos pais no processo de aprendizagem de seus filhos e

clamando pela melhoria no ensino fundamental

provando que o trabalho atrapalhava o rendi-mento escolar, 69,8% dos adolescentes tinhambaixo nível de escolaridade. Em vários estadosdo Nordeste, mais de 90% dos adolescentestrabalhadores tinham menos de oito anos deestudo. O trabalho precoce era a causa daausência de pelo menos um terço dos alunosda escola pública em todo o país. Além disso,95% dos adolescentes estavam empregadosno setor informal da economia. Os dadossão da pesquisa denominada “Dez anos deEstatuto da Criança e do Adolescente: ava-liando resultados e projetando o futuro”, umaparceria entre Cecria, UNICEF, UNESCO eAmencar.

No especial Criança Esperança de 1998,artistas chamaram a atenção para a educação,incentivando a maior participação dos pais noprocesso de aprendizagem de seus filhos e cla-mando pela melhoria no ensino fundamental.Em comemoração à primeira década da CartaMagna e aos 50 anos da Declaração Universaldos Direitos Humanos, uma ampla discussãosobre os direitos e deveres das crianças e dosadolescentes foi promovida no Brasil, no dia13 de outubro. Milhares de estudantes da redepública interagiram com jornalistas, escrito-res, artistas, políticos, empresários, atletas,dirigentes de ONGs e formadores de opiniãoem geral.

Previsto na Lei Orgânica de AssistênciaSocial, o Benefício de Prestação Continuadafoi regulamentado em 1998. A partir de então,idosos e portadores de deficiências, incluindoadolescentes, sem condições de prover aprópria manutenção ou tê-la provida pelaprópria família passaram a ter direito dereceber da Previdência Social o valor de umsalário mínimo por mês.

Mapa da Violência

Nesse ano, segundo o IBGE, houve no país36 óbitos por arma de fogo para cada cem miljovens. A taxa de óbitos por armas de fogoentre jovens nas capitais foi de 60,8% em1998, com grandes diferenças regionais, sendode 42,3% no Norte, de 46% no Sul, de 60% noCentro-Oeste e de aproximadamente 70% noSudeste e no Nordeste. Contribuindo para oconhecimento da causa das mortes de jovensnas grandes capitais e em conglomerados ur-banos do país, a UNESCO começou a publicaro que viria a ser sua mais longa série no Brasil:o “Mapa da Violência”, que revela a dimensãoda violência letal envolvendo jovens. O traba-lho foi feito em parceria com o Instituto Ayr-ton Senna. Na apresentação, Viviane Senna, doInstituto, e Jorge Werthein, ex-representanteda UNESCO no Brasil, alertaram sobre a con-sequência da omissão da sociedade diante doproblema: “Os jovens só aparecem em nossaconsciência e na vida pública quando a crô-nica jornalística os tira do esquecimento paramostrar-nos um jovem delinquente, ou infra-tor, ou criminoso; seu envolvimento com otráfico de drogas e de armas; as brigas das tor-cidas organizadas ou nos bailes da periferia.Do esquecimento e da omissão passa-se, deforma fácil, à condenação, e daí resta apenas umpequeno passo para a repressão e a punição”.

Mortalidade infantil

A boa notícia do ano foi que o IBGE cons-tatou, em 1998, a redução da mortalidade in-fantil em 30,9% em relação a 1989. O instituto,mesmo assim, alertou para a continuidadede grandes diferenças regionais e de renda,salientando a grave situação do Norte e doNordeste do país.

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“Cheguei à UNESCO pouco antes de a parceria ser firmada com o Criança Esperança. Ao longo dessesanos, pude dar minha contribuição para que milhares de brasileiros tivessem a oportunidade de sedesenvolver e encontrar um caminho de felicidade. Por meio do apoio concedido às ONGs, vi também oPrograma se interiorizar no mapa de um Brasil de potencialidades e mazelas, confirmando em definitivoa importância do Criança Esperança – esse movimento contagiante e único de mobilização social. Nãohá recompensa profissional melhor do que a de ler aqui as histórias de vidas transformadas – graças àforça, à coragem e ao esforço de tantas pessoas e profissionais envolvidos nas diferentes etapas daoperação do Programa. Profissionais das ONGs, da TV Globo e de colegas da UNESCO, em especial, daequipe de coordenação do Criança Esperança e outros do Setor de Ciências Humanas e Sociais, cujocompromisso com o Programa pode ser medido por meio de seus resultados. Tenho orgulho de fazerparte do Criança Esperança e de ajudar a escrever o dia a dia de uma história que pode ser contada nãoapenas com papel e caneta, mas com sorrisos e vitórias.”

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Rosana Sperandio PereiraOficial de Programa do Setor de Ciências Humanas e Sociaisda UNESCO no Brasil

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