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3 anos Infância resgatada Agosto de 2008. Adriana Ferreira Dias tinha 27 anos, três filhos para criar e nenhuma perspectiva pela frente. Em sua casa – metade de alvenaria, metade de madeira – nos fundos do lote da mãe, na cidade- satélite de Samambaia, no Distrito Federal, a sujeira acumulava-se. Os meninos tinham a pele amarelada e os dentes comprometidos. O mais novo, Alexandre, então com 1 ano, ainda nem falava, mas já se mostrava uma criança indolente e agressiva. O marido, um pedreiro com quem viveu por 10 anos, tinha problema com drogas e havia acabado de largar a mulher e as crianças, e voltado para o Piauí. Desempregada, Adriana não sabia no almoço o que serviria para os filhos no jantar – na verdade, ela nem sabia se haveria jantar. Prostrada, anestesiada de aflição, passava dias inteiros na cama, em depressão. “Eu chorava muito, pelo fato de não poder dar boas condições para as crianças”, lembra. “Nem minha mãe podia ajudar, porque ela também estava sem trabalho”, conta a ex-empregada doméstica. Julho de 2010. Adriana conta ter tirado uma espécie de “bilhete premiado na vida”. Nos últimos dois anos, conseguiu proporcionar educação e saúde de qualidade aos filhos, no mesmo lugar em que trabalha e recebe salário. Alexandre, o caçula, que ela considerava seu maior problema, hoje tem 3 anos e começa a se tornar uma criança doce. “Ele batia nas outras crianças, queria ficar isolado, não aceitava ter contato com mais ninguém. Em casa, comigo, também deu para notar a diferença. Ele está mais carinhoso. A terapeuta ensinou a beijar, a abraçar e, agora, ele mesmo me procura e diz: Mãe, beijo!”, alegra-se ela. “Ele arranhava a gente, mordia. Agora aprendeu até a pedir desculpas”, confirma Adrielle, de 9 anos, a filha mais velha de Adriana, diante do olhar de aprovação do irmão do meio, Pedro Henrique, de 7 anos. A oportunidade que mudou a vida de Adriana e seus três filhos é uma instituição chamada Associação Social Comunitária, mais conhecida como AFMA, em Samambaia. A palavra afma, em libanês, significa “lugar de portas abertas, lugar de prosperidade, feito para abençoar”. Alexandre Ferreira Dias Associação Social Comunitária (AFMA) Brasília, Distrito Federal

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Page 1: 3.:Layout 1 10/4/10 7:09 PM Page 38criancaesperanca.globo.com/platb/files/2091/theme/03.cap3.pdf · minha mãe podia ajudar, porque ela também estava sem trabalho”, conta a ex-empregada

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Infância resgatada

Agosto de 2008. Adriana Ferreira Dias tinha 27 anos, três filhos paracriar e nenhuma perspectiva pela frente. Em sua casa – metade dealvenaria, metade de madeira – nos fundos do lote da mãe, na cidade-satélite de Samambaia, no Distrito Federal, a sujeira acumulava-se. Osmeninos tinham a pele amarelada e os dentes comprometidos. O maisnovo, Alexandre, então com 1 ano, ainda nem falava, mas já se mostravauma criança indolente e agressiva. O marido, um pedreiro com quemviveu por 10 anos, tinha problema com drogas e havia acabado de largara mulher e as crianças, e voltado para o Piauí. Desempregada, Adriananão sabia no almoço o que serviria para os filhos no jantar – na verdade,ela nem sabia se haveria jantar. Prostrada, anestesiada de aflição,passava dias inteiros na cama, em depressão. “Eu chorava muito, pelofato de não poder dar boas condições para as crianças”, lembra. “Nemminha mãe podia ajudar, porque ela também estava sem trabalho”,conta a ex-empregada doméstica.

Julho de 2010. Adriana conta ter tirado uma espécie de “bilhetepremiado na vida”. Nos últimos dois anos, conseguiu proporcionareducação e saúde de qualidade aos filhos, no mesmo lugar em quetrabalha e recebe salário. Alexandre, o caçula, que ela considerava seumaior problema, hoje tem 3 anos e começa a se tornar uma criançadoce. “Ele batia nas outras crianças, queria ficar isolado, não aceitavater contato com mais ninguém. Em casa, comigo, também deu paranotar a diferença. Ele está mais carinhoso. A terapeuta ensinou a beijar,a abraçar e, agora, ele mesmo me procura e diz: Mãe, beijo!”, alegra-seela. “Ele arranhava a gente, mordia. Agora aprendeu até a pedir desculpas”,confirma Adrielle, de 9 anos, a filha mais velha de Adriana, diante doolhar de aprovação do irmão do meio, Pedro Henrique, de 7 anos.

A oportunidade que mudou a vida de Adriana e seus três filhos éuma instituição chamada Associação Social Comunitária, mais conhecidacomo AFMA, em Samambaia. A palavra afma, em libanês, significa“lugar de portas abertas, lugar de prosperidade, feito para abençoar”.

Alexandre Ferreira Dias

Associação Social Comunitária (AFMA)Brasília, Distrito Federal

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“Alexandre precisou de acompanhamento psicológico porquenão se adaptava à turma. Depois de mais ou menos um mês, elecomeçou a conviver pacificamente”, atesta a mãe. Se, para ele, amudança de comportamento foi o que mais chamou a atenção, emrelação às outras duas crianças, a diferença elas mesmas fazemquestão de mostrar, com sorrisos largos. Logo que chegaram àinstituição, tiveram tratados os dentes, que estavam comple-tamente tomados de cáries. Também apresentavam desnutriçãoe problemas de pele. “Quando eu chegava em casa, as criançasestavam com fome, sujas. Hoje estão limpinhas e comendo domelhor. É outra vida”, diz Adriana.

A mudança foi possível quando, naquele agosto de 2008, Adri-ana esforçou-se para levantar da cama. Uma conhecida indicou-apara um mês de trabalho numa entidade que fazia o que ela já nãoconseguia: cuidar de crianças. “Vim passar um mês, para substituiruma menina da lavanderia”, recorda. Assim que a dona da vagaretornou ao serviço, ela foi transferida para a turma da limpeza, enunca mais deixou a AFMA. Quando já havia recuperado aautoestima, e a possibilidade de oferecer o mínimo a seus filhos,conseguiu também matricular os três na instituição.

Abrindo portas

A associação existe há 25 anos, com atendimento em duasunidades. A primeira unidade funciona em Padre Bernardo, Goiás,beneficiando 150 crianças de 2 a 12 anos; em Samambaia, atuadesde 1995, já com 290 crianças, de 1 a 12 anos. Crianças de até 5anos são atendidas em período integral; as mais velhas, nocontraturno escolar. Todas têm atendimento médico, odontológico,psicológico, cursos de música e informática, além de cinco refeiçõespor dia. Há 900 crianças na lista de espera.

“O atendimento é direcionado para comunidades pobres, algumasenvolvidas com o tráfico de drogas. A maioria das famílias não temacesso aos serviços formais de saúde. Temos crianças com pai presono presídio da Papuda e mãe prostituta. Tem filho que viu o namoradoda mãe metralhado”, diz o presidente da entidade, Rodrigo dos SantosSimões. “A única contrapartida que pedimos é que a mãe participede reuniões de grupo de mães, uma vez por mês. Lá se fala de geraçãode renda para que elas saibam onde encontrar cursos de artesanatoe panificação, por exemplo, além de palestras sobre drogas,doenças sexualmente transmissíveis e saúde em geral”, explica.

Além dos 47 funcionários da AFMA em Samambaia, há volun-tários que trabalham nos ambulatórios pediátrico, oftalmológico,odontológico e psicológico. A nutricionista também atende gratuita-

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mente e estabelece a rotina saudável de alimentação. São servidas 1.500 refeições por dia na instituição. “Aqui asinstalações, os equipamentos e a alimentação são de primeira qualidade: fornecemos a melhor maçã e uva semcaroço”, diz Rodrigo. Na AFMA, há apenas duas crianças – ambas com 2 anos – com deficiência física, mas, paraatendê-las, foi instalada uma cadeira elevatória, para que elas possam subir ao segundo andar do prédio.

Primeira linha

Nas aulas de música, violões novos; na sala de informática, computadores de última geração. E em todas assalas de aula, TVs de LCD – equipamentos adquiridos com apoio do Criança Esperança, assim como o datashow,o freezer, a geladeira e a Kombi da AFMA. “O difícil”, afirmam os funcionários, “é mandar as crianças, mesmo asque estão sem atividade, para casa”. “Quando os mais velhos não têm aula, eles ficam contentes de passar o diainteiro aqui”, diz Adriana. É um pouco como se já imaginassem a falta que toda a instituição vai fazer quandocompletarem a idade de 12 anos. “Quando eles vão embora, já aprenderam valores, limites e já têm muito maisdiscernimento”, diz Rodrigo.

Alexandre ainda tem 9 anos de cuidados pela frente, com todas as possibilidades de um futuro saudável efeliz. “Posso garantir que serão bons cidadãos e suas vidas serão melhores do que hoje”, confirma Adriana, que serefere à AFMA como “bênção em minha vida”. Diante de tudo o que mudou em sua vida, também poderia chamá-la de “bilhete premiado”.

AFMA, como o projeto é conhecido, mudou a vida de Alexandre e seus irmãos. Há serviço médico, odontológico e as mãesparticipam de grupos de geração de renda.

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O ano de 1988 foi de vitória para os di-reitos civis: a nova Constituição Federal co-roou a redemocratização do país e fortaleceuo protagonismo do cidadão nas decisõescoletivas. O texto da Carta renovou a interpre-tação jurídica existente sobre os direitos dainfância e da adolescência. Além disso, abriucaminho para a consolidação de outros ins-trumentos de garantias sociais do cidadão,como o Estatuto da Criança e do Adolescente,a Lei Orgânica da Assistência Social, a LeiOrgânica da Saúde e a Lei de Diretrizes e Basesda Educação Nacional.

A mudança respondeu aos anseios da so-ciedade – mais de um milhão de assinaturasforam colhidas para que a Carta incorpo-rasse, em seu artigo 227, o conteúdo daConvenção sobre os Direitos da Criança, queseria aprovada no ano seguinte pela ONU. AAssembleia Constituinte acatou, então, aEmenda Popular. Estava aberto o caminhopara consolidar uma expectativa que seriaconcretizada dois anos depois, com a pro-mulgação do Estatuto da Criança e do Ado-lescente: a revogação do Código de Menores,que fazia clara associação entre pobreza edelinquência.

Direitos

A campanha Criança Esperança engajou-sena mobilização dos constituintes, para queincluíssem artigos relativos aos direitos da in-fância na Carta. A fusão dos textos das emendas“Criança Constituinte” e “Criança PrioridadeNacional” foi resultado dessa mobilização.

O artigo 227 incorporou, em sua redação, osconceitos que norteariam o tratamento jurídico

1988

Brasil tem nova Constituição;

é aberto caminho para abolir

o Código de Menores

Campanha Criança Esperança mobiliza parlamentares pelos direitos da infância e faz

show no Teatro Fênix com o tema da Declaração Universal dos Direitos Humanos

dispensado à infância brasileira: quem atéentão era classificado como “menor” recebe-ria respeito, dignidade e atenção, sendoagora considerado “sujeito de direitos”. Dizo artigo 227:

É dever da família, da sociedade e do

Estado assegurar à criança e ao adoles-

cente, com absoluta prioridade, o direito à

vida, à saúde, à alimentação, à educação,

ao lazer, à profissionalização, à cultura,

à dignidade, ao respeito, à liberdade e à

convivência familiar e comunitária, além

de colocá-los a salvo de toda forma de

negligência, discriminação, exploração,

violência, crueldade e opressão.

Estavam lançadas as bases do Estatuto daCriança e do Adolescente.

Em março, foi criado o Fórum Nacional Per-manente de Entidades Não Governamentaisde Defesa dos Direitos da Criança e do Ado-lescente (Fórum DCA), encontro de váriasorganizações da sociedade civil, que, nosmeses seguintes, se tornou um dos principaisarticuladores da ampla mobilização social emtorno da causa da infância.

Um dos maiores avanços da Carta pelaótica dos direitos humanos foi a equiparaçãoda infância e da adolescência: se antes os bra-sileiros menores de 18 anos eram divididosentre os “bem-nascidos” e os “menores aban-donados”, a partir de então todos eram criançase adolescentes, titulares dos mesmos direitosestabelecidos na Constituição, independente-mente da condição social.

Todos, sem exceção, passaram a ser objetoda Política de Atenção Integral. Era a vitóriada sociedade civil. Ao longo do texto consti-tucional, foram também garantidas outras

formas de atenção relacionadas à infância,como a licença-maternidade de quatro meses.

Conquistas

No ano em que se comemorou o 40o aniver-sário da Declaração Universal dos DireitosHumanos, proclamada pela Assembleia Geraldas Nações Unidas em 1948 como respostaàs violações cometidas durante a SegundaGuerra Mundial, o Brasil participou da sériede shows promovidos pela Anistia Interna-cional. No estádio do Palmeiras, em São Paulo,astros como Sting, Tina Turner, Lobão e Cazuzarenderam-se à causa e fizeram uma grandefesta para a plateia de cinquenta mil pessoas.

Em 1988, o show do Criança Esperança, reali-zado no Teatro Fênix, no Rio, alinhado com asNações Unidas, levou ao ar o tema da DeclaraçãoUniversal dos Direitos das Crianças. A cam-panha Criança Esperança foi premiada pelaOrganização Mundial da Saúde e pelo UNICEFpor sua ação de mobilização em favor dosdireitos da infância na Constituinte.

Para os que se envolveram de forma diretana luta pelas conquistas sociais, 1988 tevegosto de vitória. Para milhões de cidadãos quese beneficiam diariamente destas conquistaspor meio dos programas de transferênciade renda, hoje institucionalizados graças àimplantação da Lei Orgânica da AssistênciaSocial, o ano abriu horizontes. Para as criançase os adolescentes pobres, representou a opor-tunidade concreta de mudar o paradigma dainfância, com o fim do Código de Menores.Para milhares de outros brasileiros, foi apossibilidade de se verem representados poruma Constituição cidadã.

CO

NTEXTO

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“Quando começamos a fazer as campanhas do Criança Esperança, o Brasil vivia uma realidadecompletamente diferente em termos de telefonia. Era outro mundo. Na noite em que leiloamos ao vivoo capacete do Ayrton Senna, caiu o sistema de telefonia de todo o país por alguns minutos... E estamosfalando de 1991! O Criança Esperança ajudou a Anatel a criar padrões de tecnologia que, ao longo dessesanos, permitiram que a população brasileira pudesse fazer doações de forma cada vez mais simples esegura pelo telefone. As empresas sempre foram muito receptivas em aprimorar suas tecnologias edisponibilizá-las para que a sociedade pudesse fazer suas doações e contribuir com a causa da infânciae da juventude.”

Foto

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alRoberto HenriquesDiretor de Tecnologia de Informação da TV Globode 1984 a 2008

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