04 saúde e corpo em movimento

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROCENTRO DE CINCIAS DA SADEINSTITUTO DE ESTUDOS EM SADE COLETIVAPS-GRADUAO EM SADE COLETIVA

    Sade e corpo em movimentoContribuies para uma formalizao terica e

    prtica do mtodo Angel Vianna deConscientizao do Movimento como um

    instrumento teraputico

    CATARINA MENDES RESENDE

    ORIENTADOR:PROF.DR.ANDR MARTINS

    Rio de Janeiro, maro de 2008

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    Catarina Mendes Resende

    SADE E CORPO EM MOVIMENTO:contribuies para uma formalizao terica eprtica do mtodo Angel Vianna deConscientizao do Movimento como uminstrumento teraputico

    Dissertao de Mestrado apresentada aoPrograma de Ps-Graduao em SadeColetiva, Instituto de Estudos em SadeColetiva, Universidade Federal do Rio deJaneiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em SadeColetiva.

    Orientador: Prof. Dr. Andr Martins

    Rio de Janeiro2008

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    Resende, Catarina Mendes

    Sade e corpo em movimento: contribuies para uma formalizaoterica e prtica do mtodo Angel Vianna de Conscientizao do Movimentocomo um instrumento teraputico / Catarina Mendes Resende Rio deJaneiro: UFRJ / Instituto de Estudos em Sade Coletiva, 2008.

    183 f. ; 31 cmOrientador: Andr Martins

    Dissertao (mestrado) -- UFRJ, Instituto de Estudos em SadeColetiva, Programa de Ps-graduao em Sade Coletiva, 2008.

    Referncias bibliogrficas: f. 176-183

    1. Terapia atravs da dana mtodos. 2. Sade. 3. Corpo humano.

    4. Movimento. 5. Conscientizao. 6. Tcnicas mente-corpo e derelaxamento - mtodos. 7. Processo sade-doena. 8. Sade coletiva - Tese.I. Martins, Andr. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto deEstudos em Sade Coletiva, Programa de Ps-graduao em SadeColetiva. I II. Ttulo.

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    Catarina Mendes Resende

    SADE E CORPO EM MOVIMENTO:contribuies para uma formalizao terica eprtica do mtodo Angel Vianna deConscientizao do Movimento como uminstrumento teraputico

    Dissertao de Mestrado apresentada aoPrograma de Ps-Graduao em SadeColetiva, Instituto de Estudos em SadeColetiva, Universidade Federal do Rio de

    Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em SadeColetiva.

    Aprovada em

    ______________________________________(Andr Martins Vilar de Carvalho, doutor, UFRJ)

    ______________________________________(Arthur Arruda Leal Ferreira, doutor, UFRJ)

    ______________________________________(Carlos Augusto Peixoto Junior, doutor, PUC-Rio)

    ______________________________________

    (Marta Simes Peres, doutora, UFRJ)

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    Angel Vianna,mestra do movimento,

    mestra de vida.

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    Ao Andr Martins, por trazer contorno ao meu percurso acadmico e me oferecer caminhos,sempre com muito respeito s minhas idias, e por me mostrar como essa relao pode serplena de afeto e alegria.

    Aos professores Arthur Arruda Leal Ferreira e Carlos Augusto Peixoto Jr., pelas discussesem aula e leitura atenciosa, contribuindo para o crescimento da dissertao desde aqualificao; e professora Marta Peres, por ter aceitado trazer o olhar da dana defesa.

    Angel Vianna, por todos os caminhos abertos; mas sobretudo por confiar no meu trabalho,pela acolhida generosa e pelas conversas inquietantes ao longo da pesquisa.

    Hlia Borges, mestra e amiga, por tantos bons encontros, sempre afetuosos, e por me

    fazer descobrir que o pensamento pode expandir o corpo.

    Aos professores e funcionrios da Escola Angel Vianna, pelo ambiente acolhedor e por todaa vitalidade que foram capazes de oferecer minha vivncia na escola ao longo daformao profissional.

    Ao Fabio, por todos os antigos e novos encontros, cada um deles no seu tempo e ao seumodo, e pela parceria e carinho ao longo desse projeto.

    Aos meus pais e meu irmo, por tudo; em especial minha me e minha tia Regina, pelastrocas, incentivo constante e interesse pelo meu trabalho, nas idias e na prtica.

    Aos amigos Andr Grabois e Pascale Girard, parceiros de criao na concepo emontagem do solo coreogrfico para a defesa dessa dissertao, com contribuiesfundamentais para dar corpo s minhas idias.

    Aos amigos que me acompanharam durante esse processo e seus percalos, em especial aBianca, Liz, Ju Moren, Luna, Fabiana, Ruth, Patrcia, Luiz Henrique, Thaaty, Ju Martins,Bia, Alyne e Ana.

    Aos meus alunos e pacientes, por me fazerem estar sempre em movimento, e por mepermitirem experimentar, descobrir e criar muito do que pude trazer para o campo dosconceitos.

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    A vida uma viagem experimental, feita involuntariamente. uma viagem doesprito atravs da matria, e como o esprito que viaja, nele que se vive. H, por

    isso, almas contemplativas que tm vivido mais intensa, mais extensa, maistumultuariamente do que outras que tm vivido externas. O resultado tudo. O que

    se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se to cansado de um sonho como de umtrabalho visvel. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.

    Quem est ao canto da sala dana com todos os danarinos. V tudo, e, porque vtudo, vive tudo. Como tudo, em smula e ultimidade, uma sensao nossa, tanto

    vale o contacto com um corpo como a viso dele, ou, at, a sua simples recordao.Dano, pois, quando vejo danar.

    Fernando Pessoa

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    RESUMO

    RESENDE, Catarina Mendes. Sade e corpo em movimento: contribuies para umaformalizao terica e prtica do mtodo Angel Vianna de Conscientizao do Movimentocomo um instrumento teraputico. Rio de Janeiro, 2008. Dissertao (Mestrado em SadeColetiva) - Instituto de Estudos em Sade Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro,Rio de Janeiro, 2008.

    Este estudo tem como objetivo formalizar terica e praticamente o mtodo AngelVianna de Conscientizao do Movimento como um instrumento teraputico, utilizando-seda experincia profissional da autora e do mtodo filosfico-conceitual, no intuito dedesnaturalizar os pares conceituais corpo-mente, sade-doena, propondo um novo uso aeles. Para tanto, foi preciso: contextualizar o mtodo Angel Vianna na sua dimenso artsticae pedaggica, no ponto em que ele se entrecruza com as artes, as tcnicas de educao

    somtica e terapias corporais; definir as noes de corpo e conscincia que sustentamfilosoficamente a prtica desse mtodo; identificar a concepo afirmativa e ampliada desade que orienta sua aplicao teraputica; e por fim, identificar e definir uma organizaometodolgica para a aplicao da Conscientizao do Movimento no processo sade-doena. O mtodo Angel Vianna de Conscientizao do Movimento foi reconhecido comouma prtica pedaggica-teraputica que atravs da vivncia corporal permite ao indivduoexperimentar um corpo paradoxal que se abre a uma conscincia-corpo. No campo daSade, essa propriedade do mtodo contribui para a organizao somatopsquica doindivduo na direo de uma concepo ampliada do processo sade-doena, onde a sadepode ser avaliada pela plasticidade normativa e a capacidade criativa do indivduo frente vida. Ao ser proposta uma organizao metodolgica para a aplicao teraputica daConscientizao do Movimento foram reconhecidos trs estgios que constituem o processo

    de recuperao da espontaneidade: Processo de Sensibilizao, Processo de Expresso eProcesso Pedaggico-Teraputico. Conclui-se, ao final da pesquisa, que o mtodo AngelVianna de Conscientizao do Movimento pode ser formalizado enquanto uma prticacomplementar de sade que atua na interface entre arte e clnica, alm de contribuir para ocampo da Sade Coletiva quando possibilita uma relao humanizada e acolhedora entre osdiversos atores envolvidos no processo sade-doena, preconizada pelo Ministrio daSade atravs da Poltica Nacional de Humanizao (PNH-HumanizaSUS) e da PolticaNacional de Medicina Natural e Prticas Complementares (PMNC).

    Palavras-chave:

    Corpo movimento sade arte e clnica dana Angel Vianna

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    ABSTRACT

    RESENDE, Catarina Mendes. Sade e corpo em movimento: contribuies para umaformalizao terica e prtica do mtodo Angel Vianna de Conscientizao do Movimentocomo um instrumento teraputico. Rio de Janeiro, 2008. Dissertao (Mestrado em SadeColetiva) - Instituto de Estudos em Sade Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro,Rio de Janeiro, 2008.

    This study aims to formalize theoretically and practically the Angel Vianna MovementAwareness method as a therapeutic instrument. It uses authors professional experience andthe philosophical-conceptual method in order to disnaturalize body-mind and healthness-illness conceptual pairs, proposing a new use for them. For this, it was necessary to:contextualize the Angel Vianna method in its artistic and pedagogical dimensions, at thepoint where it crosses arts, somatic education techniques and body therapies;define thephilosophical notions of body and consciousness that support its practice; identify theaffirmative and expanded healthness conception that directs its therapeutic application, andfinally, define a methodology for the implementation of Movement Awareness in thehealthness-illness process. The Angel Vianna Movement Awareness method wasrecognized as a pedagogical and therapeutic practice that, through the living body, allowsthe individual to experience a paradoxical body which leads to a body-consciousness. In theHealth field, the property of the method contributes to a somatic and psychic organization ofthe individual, toward a larger notion of the healthness-illness process, where health can bemeasured by a normative plasticity and a creative ability to face life. We propose amethodology for the therapeutic application of Movement Awareness that recognize threestages that cover the recovery of spontaneity: Awareness Process, Expression Process andPedagogical Therapeutic Process. We conclude that the Angel Vianna Movement

    Awareness method can be formalized as a complementary health practice that operatesbetween art and clinic.Besides, it contributes to the Public Health field when enables anhumanized and holding relationship between the actors involved in the healthness-illnessprocess, which is praised by the Health Ministry through the National Policy of Humanization(PNH-HumanizaSUS) and the National Policy for Natural Medicine and ComplementaryPractices (PMNC).

    Key-words:

    Body movement health art and clinic dance Angel Vianna

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    SUMRIO

    I INTRODUO 10I.i O MTODO ANGEL VIANNA 14I.ii SOBRE O PROCEDIMENTO E O PERCURSO 17I.iii PEQUENA DIGRESSO COREOGRFICA 22

    PARTE I: PESQUISA COREOGRFICA

    CAPTULO 1IMAGENS DO CONTEMPORNEO, DA DANA E DO CORPO 26

    1.1 IMAGENS DO CONTEMPORNEO 271.2 IMAGENS DA DANA 321. 2.1. Do bal da representao para a dana da experincia 42

    1.3 IMAGENS DO CORPO 491.4 IMAGENS QUE FICAM 52

    CAPTULO 2DANA, TERAPIAS CORPORAIS E EDUCAO SOMTICA: O LUGAR DOMOVIMENTO 54

    2.1 COMO CONSTRUIR PARA SI O CORPO DA DANA CONTEMPORNEA 542.1.1 A metodologia Angel Vianna 57

    2.2 TCNICA DE ALEXANDER 61

    2.3 TCNICA DE FELDENKRAIS 672.4 EUTONIA 722.5 UMA DANA SOMTICA OU UMA PEDAGOGIA TERAPUTICA 82

    PARTE II: SEQNCIAS E FRASES DE MOVIMENTO

    CAPTULO 3O CORPO E A CONSCINCIA DOS MOVIMENTOS: MOVIMENTO DO CORPO,MOVIMENTO DE CONSCINCIA 89

    3.1 O CORPO DA EXPERINCIA 903.1.1 preciso prudncia! 92

    3.2 EM BUSCA DE UMA ESTTICA DA EXISTNCIA 983.2.1 A escrita do corpo sem rgos 100

    3.3 UM CORPO PARADOXAL 1073.4 A CONSCINCIA-CORPO 111

    CAPTULO 4CONTEXTUALIZAO DOS CONCEITOS DE SADE E DOENA: UMACONCEPO AFIRMATIVA DE SADE 120

    4.1 BREVE GENEALOGIA DA CINCIA MODERNA 1214.2 DA MEDICINA CIENTFICA A UMA CINCIA DA SADE 1244.3 A PLASTICIDADE NORMATIVA 1304.4 A CAPACIDADE CRIATIVA 1344.5 REDEFININDO A CONCEPO DE SADE 139

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    PARTE III: COMPOSIO E SOLO COREOGRFICO

    CAPTULO 5CONSCIENTIZAO DO MOVIMENTO: UMA ORGANIZAO METODOLGICA 143

    5.1 SOBRE A ORGANIZAO METODOLGICA 1445.2 PROCESSO DE SENSIBILIZAO 1485.3 PROCESSO DE EXPRESSO 1555.4 PROCESSO PEDAGGICO-TERAPUTICO 1625.5 UMA EXPERINCIA AUTOPOITICA 166

    ENSAIO FINAL E CONSIDERAES GERAIS 169

    BIBLIOGRAFIA 176

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    I INTRODUO

    O interesse pelo tema desta pesquisa surgiu a partir da minha experincia com a

    dana, quando pude perceber uma relao entre esta atividade e uma promoo da sade

    que estava para alm de um bom condicionamento fsico. Na inteno de investigar a dana

    como meio para a conquista de sade fsica e psquica cursei a formao profissionalizante

    em Recuperao Motora e Terapia atravs da Dana da Escola Angel Vianna. Meu objetivoera entrar em contato com tcnicas corporais que contribussem para a utilizao

    teraputica da dana. Porm, ao longo do meu trajeto conheci a Conscientizao do

    Movimento e me dei conta de que se tratava de algo muito mais amplo: eu estava em uma

    escola que traz no seu trabalho corporal uma filosofia do movimento (e no s da dana)

    como expresso da vida, e da vida como movimento.

    A Conscientizao do Movimento uma prtica corporal que comeou a ser

    desenvolvida pela bailarina e educadora Angel Vianna ao longo de uma extensa pesquisa

    iniciada em parceria com Klauss Vianna1 com fins de proporcionar a seus alunos um

    ensino da dana (e posteriormente da expresso corporal) que considerasse o corpo na sua

    singularidade, respeitando a complexidade anatmica e cintica de cada um. Esse

    diferencial pode parecer simples, mas na verdade, representou uma enorme revoluo

    (mais adiante entenderemos que se trata mais de uma reforma que propriamente uma

    revoluo) no ensino tradicional da dana no Brasil da dcada de 50, quando a

    predominncia de tcnicas clssicas trabalhava um corpo padronizado e virtuose atravs de

    1 Angel e Klauss Vianna comearam a desenvolver seus respectivos trabalhos a partir de umapesquisa em conjunto, numa parceria que se estendeu por algumas dcadas de casamento.Entretanto, h uma pequena distino que nos faz lanar mo do mtodo Angel Vianna emdetrimento do de Klauss quando estamos na rea da Sade. Os dois se debruaram sobre formas

    diferentes de aplicar esse trabalho: enquanto Klauss Vianna dedicou-se ao uso da conscincia eexpresso corporal na performance tcnica e artstica do ator e bailarino, Angel Vianna abre o campocom maior nfase no uso teraputico da mesma prtica.

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    posturas e movimentos aparentemente anti-anatmicos (KLAUSS, 2005; FREIRE, 2005;

    TEIXEIRA, 1998). A formulao de um modo original e autntico de lidar com o corpo

    acabou direcionando a Conscientizao do Movimento para uma utilidade no s

    pedaggica e artstica, mas tambm teraputica.

    Essa prtica prope um conhecimento fundamentalmente experiencial do corpo que

    deve ser conquistado atravs da escuta do corpo e da pesquisa do movimento. A riqueza e

    originalidade desse trabalho justamente a capacidade de conciliar num mesmo plano a

    conscincia corporal com tcnicas mais voltadas para o conhecimento e escuta do corpo

    como terapias corporais e educao somtica e a dana onde se trabalha o ldico, oexpansivo e a expresso pela pesquisa de movimento. A unio da conscientizao

    corporal com os jogos corporais produz uma infinidade de possibilidades de movimentos,

    permite que o corpo desfrute a sensao de estar livre, vivo, e dance espontaneamente,

    sem preocupaes estticas [...] provoca um clima descontrado, de brincadeiras que

    desatam os condicionamentos do dia-a-dia (TEIXEIRA, 1998:54-55).

    O alcance teraputico da Conscientizao do Movimento j vem sendo reconhecido

    na rea da Sade. A Escola Angel Vianna oferece a formao em Recuperao Motora e

    Terapia atravs da Dana e o recm criado curso de ps-graduao em Terapia atravs do

    Movimento Corpo e Subjetivao, e mais, esse trabalho tem sido aplicado nos campos da

    promoo da sade, da reeducao do movimento, da reabilitao (neuromotora, doenas

    crnicas como hipertenso e diabetes, sade mental, entre outros). Acreditamos que essa

    aplicao teraputica eficaz e consistente, porm de modo geral, ainda se d na primazia

    da experincia, carecendo de uma explicitao terico-conceitual que a sustente enquanto

    um mtodode trabalho.

    No entanto, ao longo de nossa pesquisa pudemos reconhecer um movimento mais

    contnuo na direo de uma reflexo crtica sobre o trabalho e o conhecimento de Angel,

    visando dar uma unidade e um contorno mais formal prtica corporal fundada por ela.

    Esse contorno mais formal que sempre foi evitado pela prpria Angel que o v, num certo

    sentido, como uma ameaa sua liberdade de criao e transformao infinita das

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    prticas e saberes agora comea a se revelar como uma tendncia no seu discurso e no

    de outros profissionais prximos a ela2. Um outro aspecto que pode ser tomado como um

    indcio desse movimento a crescente produo bibliogrfica sobre o trabalho dos Vianna

    nos ltimos anos. Aps o livro de Klauss Vianna, com primeira edio em 1990, houve um

    hiato que se encerrou isoladamente no livro de Letcia Teixeira em 1998. A formatura das

    primeiras turmas e a coletnea de artigos publicada por profissionais da Faculdade Angel

    Vianna (FAV) em 2003 parecem inaugurar, de fato, um interesse mais permanente em

    registrar essa prtica de modo acadmico. Alm das recentes produes internas da FAV,

    atravs das monografias de formandos, podemos contar quatro lanamentos de livros nosltimos trs anos, de Ana Vitria Freire em 2005, de Maria Helena Imbassa em 2006 e os

    de Enamar Ramos e Jussara Miller, ambos em 2007, sendo apenas esses dois ltimos

    representantes de uma reflexo e explorao mais consistente e extensamente cuidadosa

    acerca do procedimento ou do mtodo de Angel e Klauss. Dizemos isso no sentido que o

    livro de Freire se prope a fazer uma biografia da trajetria de vida (pessoal e profissional)

    de Angel Vianna no cenrio da dana contempornea brasileira. O de Imbassa, por sua

    vez, traz uma consistente reflexo sobre a conscientizao corporal, e quem conhece o

    trabalho proposto por Angel Vianna o reconhece nesta obra. Porm, a prpria autora no faz

    essa conexo de modo explcito, no intuito de contribuir para a formalizao da

    Conscientizao do Movimento enquanto mtodo Angel Vianna. Os livros de Ramos e

    Miller (ambos no domnio das artes), ao contrrio, propem como objetivo central uma

    organizao crtica sobre os procedimentos e princpios sobre a prtica corporal inaugurada

    por Angel e Klauss, respectivamente, na inteno de contribuir para uma maior unidade na

    compreenso e aplicao desses trabalhos (sendo apenas Miller quem ir de fato elaborar

    uma sistematizao da tcnica Klauss Vianna).

    Nosso objetivo neste trabalho, portanto, contribuir para uma formalizao prtico-

    terica do mtodo Angel Vianna de Conscientizao do Movimento na sua aplicao

    2 Entre outros, me refiro especialmente aos professores Hlia Borges, Alexandre Franco e NbiaBarbosa, com quem tive maior aproximao sobre o tema, com conversas que estimularam oquestionamento a respeito da formalizao do trabalho de Angel Vianna.

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    teraputica, identificando e definindo os princpios filosficos e prticos que o orientam no

    processo sade-doena. Ao propor contribuir para uma formalizao terica e prtica do

    mtodo Angel Vianna de Conscientizao do Movimento, no estamos propondo um

    enquadramento dele, nem tampouco uma cristalizao da sua prtica. A primazia continua

    sendo da experincia, mesmo porque sem passar por ela a compreenso deste trabalho

    corporal torna-se um pouco mais limitada, visto que seu entendimento passa tambm pela

    carne.

    Pude observar durante a minha formao na Escola Angel Vianna que uma questo

    se colocava para mim, mas tambm para um coletivo: como explicar o que estamosfazendo?Dessa forma, importante que se possa instrumentalizar o mtodo Angel Vianna

    a fim de que os prprios profissionais possam aprofundar o seu entendimento e ampliar o

    alcance de transmisso dessa prtica para alm dos ncleos de atuao direta da Escola,

    Faculdade e Instituto Angel Vianna. Buscar configurar o mtodo Angel Vianna enquanto um

    saber formal com contornos metodolgicos, de certo modo, contribuir para uma maior

    aceitao dessa prtica nos locais e servios de sade onde ser aplicado. Muitas vezes, o

    profissional-orientador de uma prtica corporal como a Conscientizao do Movimento

    desqualificado ou mal compreendido nos servios de sade devido a um senso comum

    de que a dana um mero instrumento de diverso, ou devido a uma falta de conhecimento

    sobre as possveis propriedades teraputicas dessa atividade.

    Reconhecer e formalizar a existncia do mtodo como instrumento teraputico passa

    tambm por uma questo tica e poltica, se configurando como uma importante

    contribuio para o campo da Sade Coletiva. Por se tratar de uma teraputica com eficcia

    reconhecida por sua prpria prxis (e de muito baixo custo na sua aplicao), a dimenso

    tica se d no fato de ampliar a rea de atuao e transmisso desse saber, dizendo como

    funciona e como pode ser replicada para um maior nmero de pessoas. A contribuio

    poltica se faz quando essa teraputica prope a humanizao do processo sade-doena,

    assim como as relaes dos diversos atores includos nele (gestores, profissionais e

    usurios) tal como prope o HumanizaSUS, uma poltica (e no um programa) nacional

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    que preconiza que todos os mbitos da Sade no Brasil sejam atravessados pela

    humanizao dos servios. Alm disso, o mtodo Angel Vianna se constitui como mais uma

    prtica alternativa e/ou complementar de sade, prticas implementadas e apoiadas cada

    vez mais pela rede pblica. Ainda, o mtodo Angel Vianna pode se configurar como uma

    posio poltica em si, visto que essa teraputica implica uma contraposio ao modelo

    biomdico vigente.

    I.i O MTODO ANGEL VIANNA

    Por que usar o conceito de mtodo? Se por um lado, parece ser um dos maiores

    desafios que tomamos nesta pesquisa, por outro, o que far com que ela se sustente.

    Desafio porque, a ver outros escritos que falam da prtica corporal criada por Angel Vianna,

    mesmo quando a definem como um mtodo, dificilmente conseguem desvincul-la da

    atuao profissional da autora, de sua trajetria pessoal, ou histria de vida3. Em parte,

    acreditamos que isso se deva fora vital que Angel Vianna irradia a todos quando fala do

    seu prprio trabalho como uma obra aberta em constante construo, sempre o associando

    ao seu percurso afetivo, familiar, profissional. Seu trabalho um organismo vivo em

    constante transformao, e justamente por essa abertura ao devir que suas idias

    permanecem to potentes. Quem conhece Angel sabe a figura extraordinria que ela , e

    como se faz realmente um desafio falar do trabalho corporal que ela funda sem vincul-lo a

    uma certa pessoalidade.

    Entretanto, reproduzir aqui mais uma vez esse discurso, em parte negligenciar as

    conquistas do trabalho fundado por Angel Vianna e reduzi-lo a uma pessoalidade que limita

    sua prtica atuao da prpria Angel Vianna, ao que ela fez ou deixou de fazer, ou ainda,

    prtica dos que tiveram contato direto com ela para sua formao. A nosso ver, o seu

    trabalho j ganhou mundoe no se trata mais do mtodo deAngel, mas do mtodo Angel

    Vianna. Pensar no trabalho criado por Angel Vianna no que diz respeito ao corpo como meio

    3 Ver: RAMOS (2007), FREIRE (2005), TEIXEIRA (1998, 2000, 2003), IMBASSA (2003).

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    de expresso nos diversos campos em que vem atuando como constituinte de um

    mtodo de trabalho corporal especfico, permite que suas contribuies nesse campo

    tomem vida prpria, se expandam para alm da atuao pessoal de Angel Vianna, ou

    mesmo das suas instituies de ensino (Escola, Faculdade e Instituto).

    Parece ser difcil falar de ummtodo Angel Vianna quando temos profissionais to

    heterogneos formados pela Escola e Faculdade Angel Vianna quanto as possibilidades de

    aplicao dessa prtica corporal. No entanto, insistimos em falar de um mtodo e no de

    tcnica porque reconhecemos que h um fio condutor que forma uma unidade tanto nas

    bases filosficas, quanto na aplicao prtica desse trabalho quando utilizado por umprofissional formado pela Escola e Faculdade Angel Vianna, esteja ele nas reas da dana,

    teatro, msica, artes plsticas, terapia, ou em que outra articulao possa ser feita.

    Acreditamos que esse fio que os une na diferena o que se chamou de Conscientizao

    do Movimento; assim como pela incluso da diferena que so criados os alicerces da

    Conscientizao do Movimento enquanto mtodo singular. Entendemos a Conscientizao

    do Movimento portanto, como algo que atravessa qualquer trabalho desenvolvido por Angel,

    no sentido em que ela constitui um modo de se trabalhar o corpo, mas tambm como um

    modo de se pensar o corpo, engendrados pelo mtodo Angel Vianna.

    Diferentes profissionais se formam nessa prtica e diferentes saberes formam essa

    abordagem. O que se mantm a possibilidade de expresso das singularidades a partir de

    vivncias que privilegiam o processo em detrimento de um projeto final homogeneizador.

    Com isso, cada profissional que aplicar o mtodo Angel Vianna ir sempre faz-lo a partir de

    um solo comum, mas sempre na expresso da sua singularidade e criatividade. Talvez o

    fato de durante a formao no se falar formalmente sobre o prprio mtodo de modo

    codificado permita que a aprendizagem se d da mesma forma que ele promove o

    conhecimento do corpo: pela via sensorial e motora. um conhecimento que se constri a

    partir da percepo de cada um acerca desse processo, que ser sempre singular.

    Como Angel costuma dizer nas suas aulas, importante conhecer/saber e

    importante sentir; entretanto, h o momento certo para um e para outro: devemos comear

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    sentindopara depois saber (Angel Vianna, comunicao oral)4. Contudo, quando estamos

    formando profissionais/professores, importante que o conhecimento intuitivo acerca do

    processo possa ser elaborado por outro mais reflexivo e crtico. H uma diferena entre um

    aluno que se transforma em professor e outro que estuda para ser professor (Rainer

    Vianna, apud MILLER, 2005). Da a importncia dos estudos didticos e do saber formal:

    eles distinguem a formao de um profissional que se capacitou para transmitir e aplicar

    esse conhecimento como um educador ou um terapeuta de outro que se capacitou para

    fazer um uso pessoal do saber em questo um coregrafo ou um musicista, por exemplo.

    E mais, concordamos com a afirmao de Teixeira (2003) sobre a importncia datransmisso desse conhecimento no s para a formao do profissional. Segundo ela, a

    idia de transmisso deve ser valorizada para a atualizao da prpria prtica e da vivncia.

    O mtodo est mais prximo da noo de processo que de tcnica5, portanto em constante

    transformao, e requer prtica, estmulos contnuos, pausas, conexes, trocas e tudo o

    mais necessrio para o aprimoramento desse aprendizado. O mtodo Angel Vianna no

    um fim em si mesmo, e a transmisso tem a funo de enfocar o processo que nos permite

    aumentar nossa potncia de agir.

    A leitura que ser apresentada sobre a Conscientizao do Movimento ao mesmo

    tempo em que poder fazer sentido a muitos que a praticam, antes de tudo, aquela que

    privilegio a partir da minha experincia. Apesar do mtodo Angel Vianna de Conscientizao

    do Movimento carecer at o momento de uma formalizao conceitual e prtica na sua

    aplicao teraputica, reconhecemos tambm que sua construo ao longo desses anos se

    deu a partir de conhecimentos e saberes formais sobre o corpo e a dana. Portanto,

    abordaremos aqueles que mais marcam nossa experincia com o mtodo6, na inteno de

    4 o que Spinoza quer dizer quando afirma que o conhecimento sempre um conhecimento docorpo, a menos quando cai na armadilha da abstrao (tica, Parte II).5 Podemos considerar que o mtodoAngel Vianna o fio condutor que une os diversos profissionais

    que aplicaro a Conscientizao do Movimento por diferentes tcnicas, cada um a seu modo no seucampo de atuao.6 Sem uma preocupao em investigar aqueles que marcaram pessoalmente Angel Vianna em suatrajetria profissional.

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    propor uma organizao metodolgica na rea da Sade que possa trazer ainda mais

    vitalidade sua aplicao.

    Nossa proposta neste primeiro momento fazer uma leitura dessa prtica que nos

    traga clareza em relao a esse fio condutor que nos permite reconhecer como a

    Conscientizao do Movimento se configura enquanto um mtodo prprio de trabalho

    corporal. No iremos nos deter a uma ordem cronolgica da sua origem, ou um histrico

    dessa prtica, nem tampouco compartiment-la num sistema hermtico. Nos apropriamos

    aqui do que Neves (2003) diz em relao tcnica Klauss Vianna, sobre o fato de se

    construir um pensamento formal sobre uma prtica como essas: mais do que criar umsistema fechado em si mesmo, formalizar o mtodo Angel Vianna poder reconhecer que

    h corpos pensantes que trabalham dentro de princpios comuns, e criando a partir deles,

    mas sempre preservando a sua individualidade.

    I.ii SOBRE O PROCEDIMENTO E O PERCURSO

    Para que nosso objetivo seja alcanado, consideramos necessrio: contextualizar o

    mtodo Angel Vianna na sua dimenso artstica e pedaggica, no ponto em que ele se

    entrecruza com as artes, as tcnicas de educao somtica e terapias corporais; definir que

    noes de corpo e conscincia sustentam filosoficamente a prtica desse mtodo; identificar

    a concepo afirmativa e ampliada de sade que orienta sua aplicao teraputica; e por

    fim, identificar e definir uma organizao metodolgica para a aplicao da Conscientizao

    do Movimento no processo sade-doena.

    Dessa forma, partindo da nossa experincia com o mtodo Angel Vianna

    pretendemos construir essa reflexo terica lanando mo do mtodo filosfico-conceitual

    proposto por Andr Martins (2003). Neste procedimento a Filosofia nos ajuda a atualizar e

    construir conceitos, num movimento de desnaturalizar as coisas, propor uma nova

    compreenso e, por conseguinte, um novo uso a elas. Ou seja, a Filosofia passa a ser

    operacionalizada enquanto instrumento de questionamento e investigao constantes. Este

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    uso da Filosofia resgata na prpria Histria da filosofia a sua relao com a sade, quando

    era concebida numa dimenso teraputica como medicina da alma. Se recorrermos s

    filosofias que no dissociam corpoe alma, essa concepo ganha ainda mais fora, pois

    favoreceriam um conhecimento intuitivo, ou uma abertura para nossos afetos, muitas vezes

    inconscientes, e poderamos assim nos aproximar da nossa singularidade, do que aumenta

    nossa potncia de viver, pensar e agir (MARTINS, 2003: 951).

    Acreditamos, tal como sugere Martins, que a Filosofia enquanto prtica reflexiva

    pode contribuir para a rea da sade de forma diferenciada em relao aos outros saberes

    das cincias humanas j utilizados e consolidados nesse campo de atuao como asCincias Sociais, a Cincia Poltica, a Psicologia. Ao inserir a Filosofia como um instrumento

    prtico (e por que no de interveno teraputica?) na Sade Coletiva, portanto,

    devolveremos a ela sua caracterstica primordial de explorar aquilo que passvel de

    transformao. Alm disso, a proposta desconstruir, criar e/ou atualizar os conceitos

    filosficos, utilizando-se deles de forma singular e atual para pensar questes do nosso

    tempo (MARTINS, 2003). O uso da Filosofia na nossa pesquisa abre um campo para

    criarmos ferramentas para pensarmos o que h de fundamental no mtodo Angel Vianna ao

    pens-lo na imanncia da vida, na interface entre arte e clnica, vitalizando-o.

    Neste sentido, consideramos que para compreender melhor como se d a

    constituio do mtodo Angel Vianna de Conscientizao do Movimento enquanto uma

    prtica corporal de alcances teraputicos precisaremos inicialmente, no Captulo 1,

    contextualiz-lo na sua dimenso artstica, que est na sua origem e se mantm presente

    mesmo na clnica. Assim, faremos uma breve anlise sobre os caminhos e descaminhos da

    modernidade e da contemporaneidade e visitaremos algumas imagens que se produzem na

    arte, na dana e no corpo contemporneos, a fim de marcar aquelas que nos chamam mais

    ateno quando seus desdobramentos compem um panorama que ir incidir sobre a

    produo do mtodo Angel Vianna. Ou seja, buscaremos reconhecer o que leva Angel

    Vianna a repensar e renovar a prtica e o ensino da dana, a ponto de propor uma nova

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    dana fora da representao de uma narrativa mimtica ou de um expressionismo dos

    sentimentos, e capaz de se abrir para as sensaes do corpo.

    Em seguida, no Captulo 2, iremos problematizar o lugar do movimento no mtodo

    Angel Vianna de Conscientizao do Movimento, j que o movimento pode ser considerado

    como uma de suas engrenagens fundamentais para captar as sensaes do corpo.

    Acreditamos que essa capacidade que o mtodo adquiriu de transformar o corpo em

    movimento se deveu, como veremos, ao entrecruzamento entre a tcnica da dana e a

    educao somtica e terapias corporais. Inicialmente essa mistura de linguagens visava

    uma melhor expresso corporal e uma prtica de dana mais confortvel e prazerosa a seuspraticantes, mas acabou sendo o gatilho que potencializou o mtodo Angel Vianna para

    seu alcance teraputico. Dito isso, faremos uma anlise mais cuidadosa de algumas

    terapias corporais do campo da educao somtica que atuam pelo movimento (tcnicas de

    Alexander, Feldenkrais e Eutonia) e nos permitiro j delinear um maior entendimento sobre

    a Conscientizao do Movimento enquanto instrumento teraputico nos campos da

    promoo da sade, reeducao do movimento e reabilitao motora.

    Avanando para o Captulo 3, nosso intuito ser compreender e definir como se d a

    relao entre movimento, corpo e conscincia num trabalho de conscientizao corporal.

    Para tanto, iremos recorrer particularmente ao pensamento da filosofia de Deleuze, Gil,

    Foucault, no ponto em que esses autores (e outros a eles associados) nos oferecem uma

    inteligibilidade sobre as noes de corpo e conscincia que compem filosofico-

    conceitualmente o pano de fundo do trabalho prtico da Conscientizao do Movimento.

    Acreditamos que com os conceitos de corpo sem rgos (Deleuze e Guattari), corpo

    paradoxal e conscincia-corpo (Gil) poderemos potencializar a compreenso sobre os

    mecanismos de atuao dessa prtica na imanncia da experincia. Consideramos,

    balizados pelas noes de prudncia(Deleuze) e cuidado de si(Foucault), que pela prtica

    da Conscientizao do Movimento podemos recriar a ns mesmos a partir da relao que

    estabelecemos, via corpo, conosco e com o mundo, numa dimenso tica e esttica da vida.

    Ou seja, ao situar o lugar do corpo nas experimentaes de si, quando visamos ganhos

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    teraputicos, devemos recorrer a certas doses de prudncia que possam potencializar ainda

    mais o corpo na recriao de si mesmo. Dessa forma iremos conceber a Conscientizao do

    Movimento como uma prtica de si capaz de trazer uma maior liberdade nas possibilidades

    de fazer da prpria vida uma obra de arte.

    Dando continuidade a essas consideraes, no Captulo 4 traremos a discusso para

    campo da Sade, propriamente dito. Retomaremos, num certo sentido, as questes sobre a

    modernidade e a contemporaneidade iniciadas no Captulo1, mas com o enfoque sobre

    seus desdobramentos nas reas da cincia e da sade, no ponto em que iro interferir no

    modo de se pensar e fazer sade. Recorreremos aos pensamentos de Canguilhem,Winnicott e Martins, como um fio condutor para problematizarmos as noes de mente-

    corpo, sade-doena, vida-morte a fim de propormos um pensar e fazer sade a partir de

    uma viso mais ampliada e positiva do que definir o que ser saudvel na relao entre o

    normal e o patolgico, numa dimenso scio-somato-psquica. Consideramos que o

    pensamento desses autores nos oferecer ferramentas para questionarmos no apenas as

    crenas cristalizadas e dicotmicas do processo sade-doena na cultura patologizanteem

    que vivemos, mas tambm para questionarmos as prprias prticas teraputicas que

    correspondem ao modelo da medicina cientificista e acabam por construir uma relao

    mdico-paciente que desprov o doente de sua autonomia. Alm disso, entendemos que

    uma concepo afirmativa de sade apoiada, como sugere Martins, sobre as noes de

    normatividade (Canguilhem) e criatividade (Winnicott) pode nos fazer compreender

    filosfico-conceitualmente porque o mtodo Angel Vianna de Conscientizao do Movimento

    pode se legitimar durante todo esse tempo como um potente instrumento teraputico capaz

    de vitalizar a experincia de viver.

    Finalizando o nosso percurso no Captulo 5 direcionaremos nossas exploraes

    acerca do mtodo Angel Vianna de Conscientizao do Movimento no sentido de identificar

    e delimitar contornos para uma organizao metodolgica dessa prtica na sua utilizao

    teraputica. Para cumprir esta tarefa partiremos de nossa prpria experincia com o mtodo

    Angel Vianna e lanaremos mo da escassa produo bibliogrfica sobre o tema nas reas

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    da arte e educao para compor um plano de atuao no campo da sade. Dessa forma

    apresentaremos uma proposta de organizao e entendimento sobre o desenvolvimento

    dessa prtica no processo teraputico, balizados particularmente pelos trabalhos de Miller e

    Almeida. Definiremos a Conscientizao do Movimento como uma dana somticaou uma

    pedagogia-teraputica, no sentido em que atua na imanncia entre arte, dana, educao e

    terapia, abrangendo todas essas dimenses num mesmo plano quando se prope

    teraputica. Identificaremos e proporemos, por fim, trs estgios evolutivos e

    complementares entre si que se desenvolvem no processo teraputico, mas diferenciados

    por motivos didticos: Processo de Sensibilizao, Processo de Expresso e ProcessoPedaggico-Teraputico. Consideramos que essa organizao nos permitir localizar

    didaticamente o momento de abrir o corpo para uma maior escuta de si, o momento de

    conquistar uma maior variedade e preciso na expresso do corpo e o momento teraputico

    propriamente dito, onde essas conquistas (maior sensibilidade e expressividade) e as

    descobertas sobre as possibilidades (limitaes e potencialidades) do corpo nos conectam

    com nossas sensaes e nos permitem estabelecer uma postura mais normativa e criativa

    diante da vida.

    Finalmente, acreditamos que o mtodo Angel Vianna de Conscientizao do

    Movimento constitui novas formas de estar no mundo, que vo para alm das variadas

    possibilidades de utilizao do corpo e seus movimentos. A Conscientizao do Movimento

    permite que a transformao do corpo se d no tempo e nas condies que cada um se

    proporciona. Trata-se de uma linha que enfoca uma pesquisa corporal dinmica com o

    objetivo de ampliar as possibilidades do corpo de forma no cristalizada ou sistematizada,

    atuando por um processo contnuo, profundo e evolutivo que vincula a conscincia corporal

    pesquisa do movimento livre e criativo levando a um bem-estar do corpo na sua totalidade.

    A partir dessa discusso terico-conceitual procuramos contribuir para a

    fundamentao da Conscientizao do Movimento como mtodo teraputico para a rea da

    sade dentro de uma viso ampliada do processo sade-doena que considere o indivduo

    na sua complexidade. Acreditamos que a sua interveno teraputica inaugura um modo de

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    cuidado de si capaz de produzir indivduos mais normativos e criativos na relao consigo

    mesmo e na interao com o meio. Concebemos o mtodo Angel Vianna de

    Conscientizao do Movimento como uma prtica da imanncia que lida com os corpos na

    sua intensidade sem enquadr-los em um padro pr-estabelecido e sistematizado. Trata-se

    enfim, de uma prtica corporal que lida com a dinmica prpria da vida e que formalizada

    em um mtodo teraputico fundamentado teoricamente pode contribuir para ampliar seu

    campo de atuao e de interveno na rea da Sade.

    I.iii PEQUENA DIGRESSO COREOGRFICA

    Cabe aqui ainda uma pequena nota sobre nosso procedimento no que diz respeito

    organizao dos pensamentos e da escrita da dissertao. Falaremos de uma prtica

    corporal que entende o indivduo na sua integrao somatopsquica sem uma dicotomia

    entre mente-corpo, pensamento-movimento; ao contrrio disso, as possveis conexes entre

    movimento e pensamento esto sempre em jogo quando buscamos uma escuta mais

    apurada das sensaes do corpo. E quando escrevermos esse trabalho no poderia ser

    diferente. Estaremos sempre transformando os pensamentos sobre o movimento em

    movimentos de pensamento, estes por sua vez, passveis de serem encarnados em, ou

    concebidos como, movimentos do corpo. Da, dois desdobramentos se seguem, na

    composio de nosso trabalho, quais sejam: danar os pensamentos da dissertao, e

    imprimir qualidades de movimento ao texto.

    Quando dizemos danar os pensamentos da dissertao podemos entender duas

    coisas com isso: uma que, literalmente, fui tomada por uma inevitvel necessidade de

    produzir um solo coreogrfico para o dia da defesa do mestrado a fim de expressar no

    movimento e no corpo tudo o que traremos aqui em pensamento; a outra, vem a partir desta

    e pode ser entendida, e vivenciada, como uma analogia potica entre os processos criativos

    da escrita e da composio coreogrfica. Explicando melhor, consideramos livremente que

    na introduo trazemos a motivao e a idia inicial sobre o tema da coreografia, ou seja,

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    analogamente a um momento seminal de uma pesquisa coreogrfica apresentamos a

    motivao e a justificativa, definimos o tema, os objetivos, o percurso metodolgico da

    dissertao. Nos dois primeiros captulos, daremos incio pesquisa coreogrfica,

    explorando idias, movimentos, imagens e possveis conexes entre eles, o momento da

    dissertao em que destacaremos e exploraremos o contexto, as premissas, as prticas que

    entrelaados iro compor o que hoje entendemos por mtodo Angel Vianna de

    Conscientizao do Movimento. Avanando para os terceiro e quarto captulos j

    comearemos a trabalhar com a criao propriamente dita, criando e experimentando

    algumas seqncias e frases de movimento que iro compor nossa coreografia, pormainda sem uma unidade final, o que significa dizer, em outros termos que ser onde

    entraremos em maior contato com os conceitos, arriscando jogar e estabelecer relaes

    entre eles a fim de criar uma inteligibilidade filosfico-conceitual para o mtodo Angel Vianna

    na rea da sade. O quinto captulo ser o momento de criar de fato a composio, onde

    as frases de movimento mais interessantes produzidas ao longo da pesquisa de

    movimentos sero interligadas e organizadas entre si e o novo solo coreogrfico toma

    forma, ou o espao mais autoral da dissertao, aquele em que revisitaremos o que j foi

    dito para apresentarmos a nossa proposta de organizao metodolgica para o mtodo

    Angel Vianna no processo teraputico. A concluso poderia ser entendida como o ensaio

    geral, onde se d a primeira apresentao do solo coreogrfico, porm ainda sem o pblico,

    este presente somente no dia da estria, ou da defesa da dissertao, onde os crticos e os

    espectadores podero avaliar o trabalho; no entanto na concluso tambm onde teremos

    espao para as consideraes finais e uma anlise sumria mais livre sobre o mtodo Angel

    Vianna de Conscientizao do Movimento no campo da Sade Coletiva; da a definio de

    ensaio final e consideraes gerais para este momento.

    Ao dizer imprimir qualidades de movimento ao texto nos referimos a algumas

    pausas que teremos necessidade de fazer no fluxo do pensamento ao longo da dissertao,

    como se estivssemos abrindo janelas para criar um intervalo no encadeamento da

    escrita. Usaremos esse recurso toda vez que sentirmos necessidade fazer alguma alterao

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    no fator de movimento-fluncia do pensamento, isto : quando uma considerao merecer

    mais destaque que uma nota de fim de pgina ao mesmo tempo em que formaria certo

    entrave (um pouco fora de contexto) se estiver no texto corrido; ou por motivos remissivos,

    quando se tratar de uma explicao de conceito necessria para a compreenso de certa

    passagem, mas no entanto, no gostaramos de nos ater a ela porque far parte de uma

    discusso posterior. A essas janelas chamaremos pausa para pensamento staccato,

    marcando o incio da pausa, e retorno ao fluxo contnuo de pensamento, para retornarmos

    ao texto em movimento. Sobre as noes de movimento-fluncia, pausa e fluxo nos

    referimos ao sentido que Laban d aos termos quando aborda os esforos ou fatores domovimento, que combinados entre si imprimem qualidades diferentes ao mover-se7. Ele

    fala da qualidade da sensao de fluir do movimento que traremos para uma sensao do

    fluir do pensamento:

    esta sensao se relaciona facilidade de mudana, tal como a que ocorre no movimentode uma substncia fluida. Quando vai sendo atenuada a sensao da continuidade do fluir,

    pode-se falar talvez de uma pausa, na qual percebemos ainda a continuidade, embora jmais controlada. O elemento de esforo de fluncia controlada ou obstruda, consiste naprontido para se interromper o fluxo normal e na sensao de movimento de pausa(LABAN, 1978: 124-5).

    Significa dizer com isso que abriremos essas janelas no texto toda vez que sentirmos

    uma descontinuidade na fluncia do pensamento, uma necessidade de fazer uma pausa,

    mesmo sabendo que numa qualidade mais controlada ou com um pensamento mais

    staccato, h ainda fluxo, movimento. No se trata, portanto, de propor uma ruptura ou umaquebra na fluncia do pensamento, mas uma pausa, abrir um intervalo para um novo

    pensamento de menor movimento, porm que renovar a fluncia necessria

    continuidade do texto, retomado do ponto onde estvamos antes da pausa assim as

    janelas podem ser abertas ou permanecerem fechadas!

    7 Este tema ser explorado especialmente no Captulo 5.

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    PARTE I: PESQUISA COREOGRFICA

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    CAPTULO 1

    IMAGENS DO CONTEMPORNEO, DA DANA E DO CORPO

    Para que possamos alcanar a dimenso teraputica do mtodo Angel Vianna,

    precisamos antes compreend-lo na sua dimenso artstica. Consideramos que a partir

    desta que a Conscientizao do Movimento constri sua propriedade autopoitica, na qual o

    corpo torna-se, ele mesmo, matria para criao e criador de si8. Trata-se de uma

    teraputica facilitadora de reinveno tica e esttica dos corpos, medida que o indivduoestabelece em funo da relao consigo mesmo um modo de fazer da prpria vida uma

    obra arte, tema de nossa discusso nos captulos seguintes (em especial no Captulo 3). Foi

    na articulao da dana com a msica e as artes plsticas que Angel Vianna deu incio

    sua investigao sobre as possibilidades do corpo humano (RAMOS, 2007; FERIRE, 2005).

    Portanto, para que possamos engendrar nossas exploraes sobre o mtodo Angel Vianna

    na interface entre movimento, corpo e sade, devemos antes situ-lo no contexto da arte

    que se produz em nossos dias. Em particular, no domnio da dana enquanto dispositivo

    capaz de nos afetar pelas transformaes subjetivas de nosso tempo, rompendo com os

    limites bem definidos entre as esferas da artee da vida(GIL, 2004b).

    Assim, traaremos aqui a relao do mtodo Angel Vianna com o panorama que se

    produz na dana contempornea, buscando compreender de que forma esta produo

    artstica se entrelaa com os princpios que constituem o mtodo. Mas, o que uma dana

    contempornea? Ou ainda, o que a dana contempornea faz do movimento e do corpo?

    Acreditamos que ao tentar alinhavar questes to amplas, estaremos j

    apresentando de que lugar parte o mtodo Angel Vianna, delineando um solo que o

    sustenta enquanto uma prtica corporal que se alimenta da multiplicidade de outras prticas

    e saberes do seu tempo para se produzir como um mtodo singular.

    8 Sobre o conceito de autopoiese ver Maturana e Varela (1995).

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    1.1IMAGENS DO CONTEMPORNEO

    Consideramos que a arte moderna inaugura, no incio do sculo XX, uma busca por

    novas fronteiras para a expresso do artista e sua obra, questionando contextos artsticos,

    scio-culturais e polticos na inteno de fundir a arte com a vida, isto , a arte comea a

    sair da lgica da representao de recriar o mundo para criar no mundo (GIL, 2007b,

    2004b). Arriscamos dizer que consequentemente so criadas tantas possibilidades estticas

    que desde ento no podemos mais falar em uma nica esttica na definio do objeto

    artstico9

    . E quando comea a arte contempornea? Haveria nela um marco inaugural, algocomo uma espcie de manifesto modernista? Digamos que ela comea a tomar forma em

    meados dos anos 1960-70, sem uma fronteira bem definida, e chega a uma certa

    maturidade (se que podemos usar esse termo) nos anos 90, aprofundando ainda mais a

    proposta da arte moderna de (re)ligar arte e vida, levando a extremos os questionamentos

    sobre o papel e o lugar da obra, das instituies, do artista e do espectador. Mas

    acreditamos que o viver do contemporneo hoje quase nos impede de defini-lo. Por

    exemplo, o fato de haver artistas do modernismo ainda vivos, no faz necessariamente com

    que eles produzam arte contempornea, o que eles produzem pode ser esteticamente

    prprio de um determinado perodo da arte. Doravante, no se trata de um contemporneo

    cronolgico, mas de uma presena virtualmente contempornea.

    Significa dizer que o objeto de arte datado se situa no plano da cronologia, j uma

    obra de arte atual ultrapassa o seu tempo histrico. Tal como apresentam Deleuze e

    Guattari (1991), a arte pode ser entendida como um bloco de sensaes que se sustenta a

    si prprio. Nesta perspectiva, uma obra atual ultrapassa o datado, no sentido em que resiste

    morte, tem uma fora transhistrica (GIL, 2004b, 2007b) ou extempornea. Uma arte

    atual eterna porque singular. Podemos compar-la com o que se costuma chamar de

    uma obra-prima, no sentido em que nos afeta e contribui para nossa viso de mundo

    9 Sobre arte moderna ver: GIL, 2004b, 2007b; OSTROWER, 1983, 1987; ROLNIK, 2001, 2002, 2004;STRICKLAND e BOSWELL, 1992; JANSON e JANSON, 1987.

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    (JANSON e JANSON, 1987) ou para nosso ser-no-mundo. Para produzir uma obra de arte

    atual que tenha a funo de compartilhar crenas comuns, o artista deve estar aberto para

    receber novos signos e movimentos imperceptveis ainda no codificados do seu tempo e

    construir com eles o presente atual. Nos termos de Gil (2007b), se deixar penetrar em

    zonas de turbulncia, trata-se de se deixar afetar por pequenas percepes (DELEUZE,

    2005), entrar em devir, criar.

    Pausa para pensamento staccato

    Apesar de no ser o nosso foco neste captulo, precisamos esclarecer desde j, que

    as pequenas percepes (termo retirado por Deleuze, 2005, de Leibniz, em Novos ensaios

    sobre o entendimento humano) no campo da experincia esttica da percepo artstica

    fazem parte do processo de criao da obra de arte. Mas nos levam tambm a uma abertura

    s pequenas impresses, sensaes nfimas, imperceptveis que tambm se situam em

    outros domnios como o da experincia comum e at mesmo o das cincias humanas mais

    sofisticadas. Da nosso particular interesse por esse conceito.

    De acordo com Gil (2005), as pequenas percepes tm a capacidade de ampliar os

    acontecimentos, inverter as escalas das micro e macropercepes a ponto de criar uma

    nova percepo do mundo, numa dimenso afetiva intensiva. Trata-se de uma experincia

    paradoxal que se abre s zonas de turbulncia, ou, aos fenmenos de limiar: fenmenos

    que esto na fronteira que separa e sobrepe conscincia e inconsciente.

    No entanto, Gil no fala aqui de uma percepo fenomenolgica (mesmo a de

    Merleau-Ponty) restrita intencionalidade da conscincia, nem tampouco de uma noo de

    experincia perceptiva, associada a uma conscincia e a um sujeito uno, operador de

    snteses cognitivas fundamentais (GIL, 2005: 11). Elas esto fora dos espartilhos da

    racionalidade cientfica cartesiana. Tentando nos limitar ao plano esttico, a fim de preservar

    a discusso sobre consciente e inconsciente para o Captulo 3, a comunicao artstica,

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    nesta perspectiva, situada como um fenmeno no-consciente, prprio do fenmeno de

    limiar. E no fenmeno de limiar que se apreende o movimento das pequenas percepes.

    Trata-se de reconhecer que estamos imersos num mundo de imagens-nuas:

    qualquer imagem capaz de preencher nossa percepo de toda a sua carga de foras

    (influncias) e de contedos no-verbais. Os contedos no-verbais esto expressos nas

    artes visuais e na dana, por exemplo. So detentores de sentido irredutveis a signos

    verbais. As pequenas percepes esto associadas s foras e contedos no-verbais, e

    so provocadas pelas imagens-nuas (GIL, 2005). Em outras palavras, as pequenas

    percepes surgem num intervalo entre signos que nos reenvia para algo mais forte que noest l da ordem de uma impresena, um no sei qu que nos afeta mas que nos d

    a capacidade de captar o todo, o invisvel e o movimento (GIL, 2007b).

    Com estas noes, Gil abre campo para o sensvel da experincia do ponto de vista

    de uma metafenomenologia: o estudo do vastssimo campo de fenmenos de fronteira e de

    um invisvel radical, no-inscrito, no-manifesto, mas que tem efeitos (por isso mesmo) no

    visvel (GIL, 2005: 18-9). Os metafenmenosso como feixes de foras, esto no campo

    de um experimentar que engloba um experienciar e uma experimentao que est

    para alm da conscincia. As pequenas percepes nos permitem experimentar de maneira

    inconsciente. Nestes termos, a percepo artstica consiste em um tipo de experincia que

    se caracteriza pela dissoluo da percepo, a ponto de criar uma conexo de foras que

    leva o espectador a participar da obra de algum modo (GIL, 2005).

    Retorno ao fluxo contnuo de pensamento

    Dito isso, no processo de produo de uma arte atual, o corpo a caixa de

    ressonncia mais sensvel das tendncias mais obscuras de uma poca (GIL, 2004b: 169).

    Neste sentido, o corpo seria o principal instrumento de captao das pequenas percepes

    vindas do mundo. E o que podemos escutar de nossa prpria poca? Alguns autores nos

    levam a observar que, atualmente, h uma maior oferta e acesso a informaes e

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    tecnologias que a princpio seria diretamente proporcional ao aumento da nossa liberdade

    de escolha. H uma variedade to ampla e incessante de estmulos criao que

    poderamos deduzir haveria uma gerao mais enriquecida e desenvolvida sensvel e

    intelectualmente. Entretanto, sem querer generalizar, h uma tendncia da

    contemporaneidade que nos leva pela contra mo disso. Somado ao sentimento comum de

    insegurana que acompanha nossos dias, engendra-se a certo processo de

    dessensibilizao das pessoas que leva a uma incapacidade de sentir dos corpos e incide

    sobre os modos de subjetivao (ROLNIK, 2001, 2002, 2004; OSTROWER, 1983; GIL,

    2007b; IMBASSA, 2006; COSTA, 2005).Inevitavelmente, somos seres inseridos no mundo, e como com os artistas no

    haveria de ser diferente, h um vis da arte contempornea que parece refletir esse aspecto

    da contemporaneidade. Podemos dizer de modo abrangente, que os dias atuais so

    marcados por uma lgica do consumo em propores to amplas, que a prpria existncia

    se torna um bem a ser consumido. Tudo deve ser consumido com um prazo de validade to

    acelerado que logo os tornam obsoletos, incluindo-se a as sensaes, os modos de vida e

    as subjetividades. Num certo sentido, h um sentimento comum de que estamos sempre

    atrasados, em dvida com a ordem social vigente, os produtos da moda, as informaes

    sobre o mundo globalizado, os avanos tecnolgicos etc. E mais uma vez precisaremos

    reformatar nossa existncia sem que nossas sensaes possam acompanhar, criando uma

    dissociao entre o tempo imposto pela sociedade e o da nossa subjetividade, entendida

    aqui como processo singular. (OSTROWER, 1983; ROLNIK, 2001, 2002; COSTA, 2005).

    Na mesma direo, Fayga Ostrower (1983) acredita que a arte contempornea

    parece emergir em um cenrio de possibilidades to amplo, que esse excesso de liberdade,

    agora em termos estticos, fragmenta e desconecta a capacidade expressiva do artista.

    Assim como Gil, Ostrower (1983, 1987) nos chama ateno para o fato de que na

    contemporaneidade vivenciamos um imperativo de criao to catico que justamente o

    que nos impede de criar; o caos desagrega num tal despedaamento do processo de

    criao artstico que quebraa possibilidade de construo.

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    Nos termos de Ostrower sobre esse aspecto da arte contempornea, h um contexto

    em que sobressai a viso do fragmentrio, do incompleto, do virtual ao contrrio de

    configuraes concludas. E mais, sobressai uma atitude agressiva, destruidora diante da

    matria artstica, de aniquilamento at, seja na busca de um processo de decomposio

    fsica, seja na negao da matria. Ainda segundo a autora, vemos a arte contempornea

    comunicar, de modo geral, um profundo desprazer no prprio ser e sentir, prprio da

    contemporaneidade (OSTROWER, 1983: 342). Como dissemos, por estarmos inseridos

    nessa atualidade, ainda no podemos dizer de forma clara e definitiva para onde vai a arte

    contempornea, mas h uma tenso que marca um limite: a paralisao dos corpos.Contudo, ao trazermos cena esses aspectos da contemporaneidade na vida

    comum e na arte, no queremos com isso, criar uma viso hermtica e pessimista do

    mundo. Pois o fim de um mundo no o fim do mundo. Nos termos de Martins, ao invs de

    pessimismo ou otimismo que expressam o medo e a dificuldade em afirmar o presente

    atual e seus descaminhos podemos encontrar outros meios de afirmar o presente, por

    mais catico e fragmentado que seja, mesmo porque essa a condio inevitvel para

    darmos incio a qualquer forma de transmutao. Haver sempre alternativas s vicissitudes

    do presente atual. E na arte, como todos os outros setores da vida, h suas excees.

    Podemos observar artistas que conseguem mobilizar sua potncia criadora para afirmar a

    vida diante das vicissitudes do presente, produzindo uma arte transmutadora de nossos

    afetos e, portanto, recriadora intensiva da vida10.

    Tomamos a prtica corporal criada por Angel Vianna como uma possibilidade de

    resposta a esse esvaziamento dos processos criativos artsticos, uma alternativa para o

    resgate da espontaneidade dos corpos e da dana. No campo das artes plsticas, mesmo

    situados cronologicamente nos primrdios do que se convencionou chamar arte

    contempornea (dcadas de 60 e 70), ainda hoje, as obras de Lygia Clark e Hlio Oiticica

    tm o mrito de expressar essa capacidade da arte em afirmar a existncia. Acreditamos

    10 Reflexes inspiradas pelo tema da programao do Caf Filosficode agosto de 2007 do EspaoCultural CPFL, em Campinas, So Paulo, intitulada Como sobreviveremos no sculo XXI? O fim deum mundo no o fim do mundo, com curadoria de Andr Martins.

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    que esses artistas levam ao pice os questionamentos da arte contempornea quando

    conseguem, em meio a uma perturbadora e fragmentada liberdade esttica, criar uma outra

    relao com os signos que rompe de vez com a fronteira obra-espectador, notadamente nas

    instalaese parangols de Hlio Oiticica, e nas proposiesde Lygia Clark. Nas obras

    desses artistas, passamos a receber a experincia artstica com todos os sentidos e

    sensaes, de forma ampliada. O espectador interfere na obra, assim como a obra interfere

    no espectador (COSTA, 1996a). Lygia Clark, inclusive, potencializa isso ao mximo quando

    prope seus objetos relacionais que passam a ser descritos mais pelas sensaes que

    provocam do que por suas qualidades visuais para o trabalho teraputico com psicticos.Esse aspecto teraputico do ltimo perodo da obra de Lygia Clark decorre naturalmente da

    sua capacidade intrnseca de afirmar a existncia em outros modos de subjetivao que no

    os da ordem social vigente, sendo bastante explorado por certas vertentes clnicas11 no que

    Costa (1996a) apelidou de lygiaclarkterapia: ela cria o lugar do artista-terapeuta. na

    relao com as sensaes corpreas que o objeto se define, se constitui como

    intermediador de afetos. A participao do espectador deixa de ser imaginria para ser ttil-

    ativa, transformada pela plurissensorialidadedo objeto relacional (WANDERLEY, 2002: 41).

    1.2 IMAGENS DA DANA

    A dana, como campo da arte que tem por criadore criaturao corpo, estaria apta a

    se afetar pelas pequenas percepes e libertar o corpo dos modelos de movimentos

    habituais para apreender novas formas de subjetivao. A dana, que a arte do

    movimento por excelncia, tem o poder de criar outro tipo de movimento. Mas como a dana

    se encontra neste panorama? Alguns autores consideram que os trabalhos de Loie Fuller,

    Isadora Duncan no incio do sc. XX e de Marta Graham algumas dcadas depois, j

    inauguravam de alguma forma a dana moderna. Essas bailarinas e coregrafas propunham

    movimentos fora da rigidez da dana clssica, dando espao para a expresso dos

    11 Ver: ROLNIK (2001, 2002, 2004); WANDERLEY (2002).

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    sentimentos do corpo que dana. Entretanto, algo faz com que esses trabalhos representem

    pontos isolados na histria da dana. Elas mantm ainda certa lgica da representao

    mimtica do corpo, seja a servio de uma narrativa, seja de um contedo expressionista dos

    sentimentos (GIL, 2004b, 2007b; LEONETTA, 1987; FEBVRE, 1995).

    Gil (2004b) nos leva a crer que com Cunningham um expoente bailarino e

    coregrafo alemo, discpulo de Graham, que desenvolve carreira nos Estados Unidos

    desde a dcada de 195012 que o abstrato, to presente nas outras formas de arte

    moderna, entra na dana. Propor o movimento abstrato no recusar toda e qualquer forma

    de movimento, mas a recusa das formas expressionistas de uma representao excessivados sentimentos, do contedo narrativo de representao mimtica e, sobretudo, permitir a

    introduo do acaso na coreografia. Alm disso, tambm nos chama ateno o fato de que

    enquanto a arte moderna perde flego e a contempornea vai surgindo timidamente nas

    artes visuais, o campo da dana nunca foi to frtil quanto nas ltimas dcadas.

    Na dana, Cunningham prope uma outra relao com o corpo quando traz o

    imprevisto e o abstrato para a sua arte: joga com o acaso a ponto de transform-lo em

    mtodo coreogrfico, numa tentativa de abdicar das referncias exteriores ao movimento. O

    movimento no parte mais de um centro intencional submetido representao da

    expresso dos sentimentos, por exemplo, mas do prprio movimento, sendo governado pelo

    acaso, pelos encontros e pelos acontecimentosem cena. Para Gil (2004b), a introduo do

    acaso na dana produz novas relaes ou no-relaes como entre coreografia e

    msica, e at mesmo no que diz respeito noo de sujeito (corpo-sujeito), que tende a

    desaparecer.

    Essa nova gerao queria corpos reais, abdicando de todo artifcio que os tornava

    idealizados, como um de seus desdobramentos a imagem do bailarino vai se distanciando

    progressivamente da imagem das slfides quase etreas do bal clssico ou dos corpos

    virtuoses de uma dana menos formal, porm ainda institucionalizada nos limites das artes

    12 Ver: FEBVRE (1995); LEONETTA (1987); GIL (2004b).

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    cnicas. O que estava em jogo eram os prprios movimentos, e a forma como a energia13

    seria investida nos corpos. Essa nova maneira de se explorar o corpo pela dana chega ao

    limite com Yvonne Rainer no seu manifesto de 1965:

    NO ao espetculo, no ao virtuosismo, no s transformaes e magia e ao uso detruques, no ao glamour e transcendncia da imagem de star, no ao herosmo, no aoanti-herosmo, no s imaginrias de pechisbeque, no ao comprometimento do bailarinoou do espectador, no ao estilo, no s maneiras afetadas, no seduo do espectadorgraas aos estratagemas do bailarino, no excentricidade, no ao fato de algum semover ou se fazer mover(RAINER apudGIL, 2004b: 151, grifo nosso).

    Yvonne Rainer, bailarina e coregrafa, discpula de Cunningham, considerada por

    Sally Banes (1977) como cone do que esta autora define como uma esttica da recusa(the

    aesthetics of denial). Este manifesto de 1965 traz consigo uma crtica revoluo

    cunninghamiana que se limitava esfera estrita da dana e da arte. Sem irromper para um

    exterior, as coreografias de Cunningham no encontraram uma ressonncia transartstica,

    mantendo corpos e espao ainda, de certa forma, fechados e institucionalizados.

    Observamos ainda, nesse manifesto, um questionamento do prprio sentido de ter que

    mover-separa danar. Dito de outra forma h um questionamento sobre o que faz de um

    movimento um movimento danado, medida que o prprio movimento parece ter se

    tornado mais um artifcio da dana. Tal como sugere Gil, podemos perceber em Yvonne

    Rainer um desejo de alcanar o movimento verdadeiro, capaz de expressar toda a

    essncia do objeto real (GIL, 2004b, 2007b).

    Mas como transpor essa lgica da negao para o objeto da dana, para um

    movimento puro? o que acontece com Yvonne Rainer, e ainda hoje, com muitos

    coregrafos da dana contempornea: ao recusar tudo o que exterior dana, h o

    confronto com o movimento no estado nu assim como o corpo em estado nu, literalmente,

    comea a entrar em cena na dana contempornea, numa negao aos artifcios tambm

    13 Energia um termo de difcil definio conceitual nesse campo, mas recorrentemente usado pelosbailarinos para descrever suas experincias com a dana. Os prprios bailarinos no conseguem

    defini-la com clareza, mas tm a experincia da energia de forma clara em seus corpos. Laban (1978)associa energia fora muscular investida no movimento e na pausa; porm acreditamos que h algomais, como veremos no Captulo 2, algo relacionado capacidade de se deixar contagiar por umestado que atravessa, simultaneamente, os corpos e o ambiente que os cerca.

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    do corpo, a msica tambm comea a estar ausente, pela mesma negao. Entretanto, se

    h sempre uma motivao que faz mover o corpo, h sempre um exterior ao movimento no

    seu incio; paradoxalmente, retirar esse resduo ltimo estranho ao movimento alcanar

    enfim a pureza essencial do movimento e tambm anul-lo totalmente (GIL, 2004b: 152).

    Este paradoxo parece gerar muitas discusses entre os espectadores e crticos da dana

    contempornea, ocasionalmente o que se v uma certa dificuldade de definir a dana

    atual. Em outras palavras, assim como ocorreu com diversos movimentos estticos da arte

    moderna, a dana contempornea apresenta tantas as possibilidades estticas de explorar

    essa nudez do movimento que torna-se um desafio colocar paradoxalmente numa mesmacategoria de dana espetculos to dspares quanto os de Dbora Colker, famosos pelo

    vigor fsico dos bailarinos e o entretenimento que provocam no pblico, e os da Dupla de

    Dana Ikswalsinats (de Gustavo Ciraco e Frederico Paredes), onde, na edio de 2003 do

    festival Dana em Trnsito, trs bailarinos dormiam, acordavam, caminhavam e

    voltavam a dormir pela praa da Cinelndia na cidade do Rio de Janeiro. Por outro lado,

    este paradoxo o que permite um mesmo espetculo poder experimentar essa nudez do

    movimento de ambas as formas, como ocorre em Onqot do Grupo Corpo (de Rodrigo

    Pederneiras, 2005) que tradicionalmente explora livremente as possveis relaes entre

    corpo, msica e movimento, sem uma narrativa ou um contedo expressivo das emoes a

    serem decifrados pelo pblico. Neste espetculo arrisca-se trazer, em meio a coreografias

    vigorosas de um corpo de baile numeroso, um solo de um bailarino nu em cena danando

    micromovimentos que suscitam todo tipo de imagem no espectador, mas sem no entanto,

    faz-lo duvidar de que aquilo que ele assiste ainda dana14.

    Essa nudez do movimento traz em si uma explosividade da criao que apresenta o

    realdos corpos, do tempo, do espao, da poca. O real que rompe com os limites entre arte

    e vida. Gil (2004b) distingue o real de realidade: o real irrompe na realidade fazendo emergir

    um outro corpo. O real desestabiliza os hbitos, faz surgir novos movimentos, liberta a

    palavra, alarga os espaos, pe o corpo em expanso; transforma o pensamento e a

    14 Referimo-nos ao solo To pequeno, interpretado pelo bailarino Helbert Pimenta.

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    existncia15. O espao do corpo dilatado e suas capacidades receptivas das vibraes do

    mundo so intensificadas. O real do tempo o atual, nele o presente toma forma e opera

    uma reapropriao subjetiva num acontecimento brusco que dissolve os estratos do

    passado e futuro. H um desmoronamento da barreira interior-exterior que dissolve os

    modelos sensrio-motores, hbitos cinestsicos, pensamentos e comportamentos rgidos

    interiorizados pelos corpos, e seus correspondentes modelos emocionais. De sbito, eu

    existo, agora (GIL, 2004b: 154). O real incide na relao arte-vida e rasga toda a realidade

    dos corpos e da dana construda pela tradio. O real coloca a dana em devir. A dana

    atual cria o presente, esfacelando a realidade instituda, porque deseja o real. Se libertarmoso corpo da sua realidade estabelecida pelos sistemas dominantes de subjetivao, criamos

    a possibilidade de apreender o atual. Precisamos encontrar o real nos movimentos nfimos

    que escapam pelas rachaduras da realidade. Para acolh-los, nada melhor que abrir o

    corpo, pois tal como sugere Gil, pelos movimentos do corpo poderemos criar uma outra

    relao com o tempo e o espao que contribuam para nosso ser-no-mundo (GIL, 2004b).

    Nessa busca inquieta pelo real do movimento em estado nu, a dana atual vai se

    desdobrando num trabalho de anlise de movimentos cada vez mais finos. Para isso lana

    mo de uma multiplicidade de linguagens que vo compondo o panorama da dana

    contempornea. A dana, tal como a tradio clssica a concebia, isto , aprisionada em

    movimentos padronizados e pr-concebidos para um corpo idealizado, j no se basta a si

    mesma. preciso esgarar as fronteiras da dana para alcanar o que est no interior do

    movimento.

    Rudolf Laban leva essa investigao de movimentos do corpo ao extremo, a ponto

    de criar um sistema de notao do movimento (coreologia), amplamente difundido nos dias

    de hoje. Laban ultrapassa os domnios da dana para potencializar a dana. Alm de estar

    inserido no contexto das Grandes Guerras Mundiais, Laban cria seu trabalho no calor da

    revoluo industrial alem, que produz corpos adoecidos e esvaziados pelos movimentos

    15 Gil compara este processo com o que acontece no decorrer das terapias psquicas, nos trazendo jpistas para explorar a capacidade teraputica do corpo em movimento.

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    repetitivos das mquinas. Ento ele vai aos campos observar sistematicamente as danas

    rituais e os movimentos corporais dos trabalhadores rurais e artesos para captar o qu

    naqueles corpos faz com que o movimento seja mais fluido e no prejudicial ao

    funcionamento do corpo. Laban se interessa pela influncia do movimento e sua

    complexidade sobre a qualidade da vida cotidiana, a partir dessa pesquisa ele desenvolve

    um sistema que vai entender o movimento como fora de vida, capaz de operar uma

    reapropriao do tempo e espao16 (LABAN, 1978; ALMEIDA, 2004; FERNANDES, 2006;

    LAUNAY,1999; RENGEL, 2003).

    Acreditamos, assim como sugere Launay, que mais do que negar a dana clssica,

    Laban leva o bailarino a pluralizar a tradio, a captar em cada esttica de dana a sua

    potencialidade de oferecer matria para a experincia (LAUNAY, 1999). A fim de alcanar o

    que est no interior do movimento e desnud-lo, Laban afirma que qualquer ao corporal

    pode ser determinada e descrita respondendo a quatro questes essenciais: qual a parte

    do corpo que se move; em que direo ou direes do espao o movimento se realiza; qual

    a velocidade em que se processa o movimento; que grau de energia muscular gasto no

    movimento (LABAN, 1978). Podemos dizer que ao trazer o movimento em estado nu,

    apreendido na sua complexidade, Laban potencializa a capacidade expressiva do gesto e

    resgata a fluncia entre corpo e movimento, desgastados pela vida moderna industrial.

    Neste sentido, podemos observar uma aproximao entre o sistema Laban e o mtodo

    Angel Vianna, pois assim como o fez Angel Vianna, Laban expandiu seu sistema para alm

    do treinamento tcnico de dana, e mesmo das artes em geral; numa busca por resgatar e

    ampliar a capacidade expressiva do corpo comum, defendendo a dana como uma

    habilidade espontnea de todos os indivduos. Ao buscar o real do movimento, Laban

    esgara as fronteiras da dana e produz vida.

    16 Dizemos isso no sentido que Laban ir trabalhar o tempo e o espao como dois fatores intrnsecos

    ao movimento, juntamente aos fatores peso e fluncia. O trabalho corporal proposto por Laban seexpande para a esfera teraputica medida que visa produzir novas relaes e variaes entreesses fatores (esforos) para uma maior preciso e espontaneidade da expresso dos movimentos,como veremos no Captulo 5.

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    O que vemos ser produzido de mais atual na dana especialmente a partir da dcada

    de 195017, vai ao encontro do que Angel Vianna (em parceria com Klauss Vianna)

    desenvolvia aqui no Brasil, nessa mesma poca: uma busca pela libertao dos corpos que

    vai de encontro a todas as normas que governavam a dana; irrompendo para o exterior dos

    limites cnicos (e mesmo da arte). Consideramos desse modo que, se nutrindo dessas

    mesmas inquietaes que fazem surgir a dana contempornea, vemos nascer a

    Conscientizao do Movimento. Ao explodir com os espartilhos que aprisionavam a dana e

    o corpo e ao abolir com os movimentos padronizados na lgica da representao, o mtodo

    Angel Vianna abre a dana para o plano de imanncia.

    Pausa para pensamento staccato

    Cabe aqui uma breve pausa na seqncia de nosso fluxo de pensamento para

    explicar melhor o conceito de plano de imanncia ou de consistncia. Deleuze e Guattari

    vo trabalhar esse conceito a partir do pensamento de Spinoza. Para Spinoza, os encontros,

    sensaes, a que estamos expostos na vida, abrem uma oportunidade para o novo, para a

    vida como experimentao, sem hbitos e sem crenas. De acordo com Hardt (1996), na

    teoria de Spinoza, o corpo e a mente participam do ser de maneira autnoma e igual,

    abrindo a filosofia para o princpio da univocidade, plano que prescinde da ideologia

    representacional e faz da potncia a essncia do ser. O ser no precisa estar vinculado a

    modelos tericos representacionais, ele singular e diferenciado, isto , o ser singular

    diferente em si mesmo e no se enquadra em teorias e categorias dadas a priori. Deleuze e

    Guattari consideram que Spinoza recusa qualquer transcendncia, recusa os universais e

    toda instncia que ultrapasse a terra e os homens, e por isso seria um filsofo da imanncia:

    ele mostrou, erigiu, pensou o melhor plano de imanncia, isto o mais puro, aquele que

    no se d ao transcendente, nem propicia o transcendente, aquele que inspira menos

    iluses, maus sentimentos e percepes errneas... (DELEUZE e GUATTARI, 1992: 79).

    17 Particularmente na Europa e Estados Unidos. Ver: Gil (2004b) e Leonetta (1987).

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    Para os autores o plano de imanncia apresenta apenas acontecimentos, mundos

    possveis, o que talvez faa dele um modo de empirismo mais radical. O plano de imanncia

    o mais ntimo no pensamento, e ao mesmo tempo, o fora absoluto; ida-e-volta

    incessante, movimento infinito. Spinoza concebe a imanncia como um plano percorrido

    pelos movimentos do infinito, preenchido por coordenadas intensivas, sem nenhum

    compromisso com a transcendncia (DELEUZE e GUATTARI, 1992).

    Deleuze e Guattari consideram que apesar do plano de imanncia ser sempre nico

    a imanncia nunca ser imanente aalgo h uma curvatura varivel de movimentos do

    infinito misturados que forma uma sucesso de planos de imanncia distintos na histria. Oplano no , certamente, o mesmo nos gregos, no sculo XVII, hoje (e ainda esses termos

    so vagos e gerais): no nem a mesma imagem do pensamento, nem a mesma matria

    do ser (DELEUZE e GUATTARI, 1992: 55). Isso possvel devido ao fato do plano de

    imanncia no comportar nenhum conceito de verdade absoluto, ele diz respeito

    experimentao (DELEUZE e GUATTARI, 1992: 52).

    Tal como prope Deleuze (1995, 2002), o plano de imanncia comporta todos os

    corpos, todas as almas, todos os indivduos, na continuidade dos seres descontnuos. A

    imanncia o plano da existncia, dos afetos, onde nos abrimos s intensidades e s

    pequenas percepes do mundo. Na imanncia no somos sujeitos, mas sim seres

    singulares. A imanncia pr-individual, pode ser entendida como um modo de existir: leva

    consigo singularidades ou acontecimentos constitutivos de uma vida que pura potncia.

    Na viso de Gil (2007b), o desenvolvimento do conceito de plano de imanncia provoca um

    deslocamento importante na obra de Deleuze; o excesso que tinha inicialmente lugar de

    destaque, agora deixa ter, pois tudo excessivo no plano de imanncia.

    Ao plano de imanncia Deleuze distingue o plano de transcendncia, eles implicam

    modos de vida de diferentes: no vivemos, no pensamos, no escrevemos da mesma

    maneira num e noutro plano (DELEUZE, 2002: 133). No entanto, segundo Deleuze (1995),

    no se trata de uma oposio dicotmica de um plano ao outro, a transcendncia sempre

    produto da imanncia. Enquanto o plano de imanncia plano das foras, o plano de

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    transcendncia diz respeito s formas. A imanncia no se relaciona com qualquer coisa

    capaz de cont-la:

    Diremos da pura imanncia que ela UMA VIDA, e nada mais. Ela no imanente vida,mas a imanncia que no est em nada mais ela mesma uma vida. Uma vida aimanncia da imanncia, a imanncia absoluta: ela completo poder, completa beatitude(Deleuze, 1995: 385-6).

    Deleuze se refere a uma vida de pura potncia, para alm do bem e do mal,

    impessoal, porm singular. No se trata mais de individuao, mas singularizao. A vida

    imanente de um homem que j no tem nome, mas que no se confunde com qualquer

    outro.

    Por isso, quando dizemos que no h arte sem a constituio do plano de imanncia

    no sentido que quando conhecemos o mundo pelas foras estamos conectados com

    nossas sensaes geradas pelo encontro do corpo com as pequenas percepes do mundo

    que nos afetam. Ao passo que, conhecer o mundo pelas formas convoca os rgos do

    sentido pela percepo, lanando mo de codificaes e das representaes auditivas,

    visuais etc. (ROLNIK, 2004). Assim, a transcendncia o plano de formao de sujeitos, se

    caracteriza por ser um plano essencialmente de organizao e desenvolvimento. O plano de

    transcendncia se dirige, por exemplo, organizao de poder de uma sociedade. J o

    processo de composio do plano de imanncia, pode ser captado por si mesmo. No um

    plano de formas ou de sujeitos, mas de constituio; de uma matria no formada, ou

    estados afetivos. No plano de imanncia s h reteno de movimentos, intensidades e

    afetos. (DELEUZE, 2002: 133). Somente quando constitumos um plano de imanncia

    podemos nos abrir aos fluxos e nos deixamos ser afetados pelas pequenas percepes,

    necessrios criao artstica.

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    Retorno ao fluxo contnuo de pensamento

    Angel considera que corpo movimento, movimento vida, e vida , num certo

    sentido, dana. H um desejo de se descolar a dana das formas frias, estticas e

    repetitivas, que a aproxima do movimento singular e no padronizado que cada corpo pode

    produzir, onde o movimento do corpo traz em si o prprio movimento de viver. Ou, nos

    termos de Klauss Vianna, danar muito mais aventurar-se na grande viagem que a vida.

    Nesse sentido, a forma pode comparar-se morte e o movimento, vida (VIANNA, 2005:

    112).Na busca por uma dana atual, Angel Vianna ultrapassa a prpria dana e cria uma

    metodologia que prope um modo de existir: a conscincia do movimento e da dana

    fazem parte de um processo educacional que desenvolve a criatividade, a comunicao e a

    alegria num processo dinmico, ao longo de toda a vida (VIANNA, 2003: 9). Assim temos

    uma dana para todos os corpos, na qual cada um expressar a sua dana e o seu

    movimento, singular e diferenciado. Mas antes de preparar o corpo para a dana, a

    Conscientizao do Movimento busca uma disponibilidade corporal para o corpo que vive:

    No posso esquecer que estou trabalhando com seres humanos, no com bailarinos, ouesportistas, ou professores, ou donas de casa. [...] O que busco, ento, dar um corpo aessas pessoas, porque elas tm coisas a dizer com seu corpo. Por isso no fao qualquerproposta de movimentos que no tenham aplicao na vida diria. Quero que o trabalhoseja simples e natural. [...] O que importa lanar as sementes no corpo de cada um, abrirespao na mente e nos msculos. E esperar que as respostas surjam. Ou no. Todo essetrabalho tem qualquer coisa de paradoxal: falo sobre coisas que devem ser sentidas e no

    pensadas (VIANNA, 2005: 146-7).

    Isto quer dizer que a dana s acontecer quando o corpo estiver disponvel ao

    movimento para manifestar a dana de cada um. A dana se coloca como um instrumento

    para organizar e ampliar um conhecimento a respeito do corpo e suas possibilidades de

    movimento. Como diz Angel, no se trata mais de decorar passos, mas abrir caminhos. Para

    tanto, preciso sensibilizar e despertar um corpo livre de seus automatismos. Esses

    caminhos de que falam Angel, so abertos a partir dos prprios gestos cotidianos, a dana

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    contempornea traz cena os movimentos triviais do dia-a-dia: caminhar, correr, agachar,

    levantar, deitar agora fazem parte do aprendizado em dana.

    Angel Vianna prope uma dana atual que se abre para o acaso e faz corpo e

    movimento se reapropriarem do tempo e do espao, a partir dos movimentos do corpo que

    poderemos experimentar uma maior integrao entre o tempo imposto pela sociedade de

    consumo e o tempo dos nossos processos subjetivos, como veremos melhor nos captulos

    seguintes. Angel coloca a dana em devir, porque expande o corpo para captar as vibraes

    mais nfimas do mundo; porque coloca o corpo em devir. De acordo com Deleuze e Guattari

    (1997), devir um verbo com toda sua consistncia, que est (e nos leva) para alm deparecer, ser, equivaler ou produzir. O movimento, o devir, so multiplicidade e

    singularidade, so por natureza imperceptveis, por serem puras relaes de velocidade e

    lentido, puros afetos que esto abaixo ou acima do limiar de percepo, percebidos apenas

    no plano de imanncia. No devir, a dana se abre aos acontecimentos, s pequenas

    percepes, e j no se produz mais na relao entre um sujeito e um objeto, mas no

    movimento que est associado a essa relao. A percepo est num intervalo, entre as

    coisas, onde s os movimentos so percebidos. Ao contrrio das vertentes da arte

    contempornea que paralisam os corpos, quando a dana entra em devir cria-se um jogo

    entre interior e exterior do corpo que potencializa ainda mais os movimentos do corpo. Essa

    busca pela essncia do movimento torna possvel uma relao de maior liberdade com as

    imagens do contemporneo que visitamos anteriormente, no sentido em que podemos

    vislumbrar outras possibilidades de existncia no submetidas ordem vigente.

    1.2.1 Do bal da representao para a dana da experincia

    Comeamos a falar de dana contempornea, mas inegvel que o bal clssico se

    constitui, ainda hoje, como uma das tcnicas de dana mais praticadas em todo o mundo.

    Alm disso, consideramos que ele tem uma importante relao com a constituio da

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    Conscientizao do Movimento, pois a partir dele que Angel Vianna transforma a dana

    para propor uma nova metodologia.

    A sistematizao complexa de passos e posies do bal clssico vem sendo

    difundida por todo o mundo ao longo desses quatro sculos de existncia, preservando seus

    principais fundamentos (MARINHO, 2007). Entretanto, vemos tambm que apesar de ter

    sido criado e codificado a partir dos movimentos naturais do corpo humano para os bailes da

    corte, ele parece se relacionar mais com um corpo etreo, inalcanvel. Apesar de haverem

    metodologias variadas18 para ensino-aprendizagem de bal, sua codificao rigorosa

    acabou criando passos e posturas pr-moldados para corpos padronizados num virtuosismodistante dos movimentos naturais do corpo que estavam na sua origem.

    Independentemente se elas viro a ser profissionais ou no, o fato que o bal

    ainda representa uma escolha muito freqente de pais que querem matricular suas filhas

    pequenas em alguma atividade fsica. Isso se expressa como um interesse salutar de pais

    que buscam no bal uma l