04 - cronicas de alem tumulo

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    CRNICAS

    DEALM-TMULO

    Pelo EspritoHumberto de Campos

    Caro Amigo

    Se voc gostou deste livro e tem oportunidade de adquiri-lo, faa-o, pois os direitos autoraisso doados a instituies de caridade.

    Muita Paz

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    AO LEITOR ............................................................................................................................3

    01 - DE UM CASARO DO OUTRO MUNDO.................................................................502 - CARTA AOS QUE FICARAM ......................................................................................803 - AOS MEUS FILHOS.....................................................................................................1104 - NA MANSO DOS MORTOS.....................................................................................1405 - JUDAS ESCARIOTES ...................................................................................................1806 - AOS QUE AINDA SE ACHAM NAS SOMBRAS DO MUNDO ..................................2107 - A SUAVE COMPENSAO........................................................................................2408 - DO ALM TMULO....................................................................................................2709 - OH! JERUSALM ... JERUSALM ... ..........................................................................2910 - FALANDO A PIRATININGA.......................................................................................3211 - CORAO DE ME ....................................................................................................3412 - O "TTE TTE" DAS SOMBRAS...........................................................................3613 - NO DIA DA PTRIA...................................................................................................4014 - UM CPTICO ................................................................................................................4215 - A ORDEM DO MESTRE .............................................................................................4516 - A PASSAGEM DE RICHET ........................................................................................4817 - HAUPTMANN................................................................................................................5118 - A CASA DE ISMAEL..................................................................................................5419- CARTA A MARIA LACERDA DE MOURA ............................................................5720 - PEDRO, O APSTOLO ................................................................................................6021 - O GRANDE MISSIONRIO ........................................................................................63

    22 - A LENDA DAS LGRIMAS.......................................................................................6623 - CARTA ABERTA AO SR. PREFEITO DO RIO DE JANEIRO..............................6924 - A PAZ E A VERDADE ...............................................................................................7225 - SCRATES.....................................................................................................................7626 - ESCREVENDO A JESUS .............................................................................................7927 - A MAIOR MENSAGEM...............................................................................................8128 - RESPONDENDO A UMA CARTA .............................................................................8429 - TIRADENTES.................................................................................................................8630 - O PROBLEMA DA LONGEVIDADE ..........................................................................8931 - O ELOGIO DO OPERRIO.........................................................................................91

    32 - ANIVERSRIO DO BRASIL .......................................................................................9333 - UMA VENERVEL INSTITUIO............................................................................9534 - CARTA A MINHA ME .............................................................................................9835 - TRAGO-LHE O MEU ADEUS SEM PROMETER VOLTAR BREVE ........................101EM FRATERNAL SAUDAO A HUMBERTO DE CAMPOS ........................................103

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    Por enquanto, poucos intelectuais, na Terra, so suscetveis de considerar a possibilidade

    de escreverem um livro, depois de mortos. Eu mesmo, em toda a bagagem de minhaproduo Literria no mundo, nunca deixei transparecer qualquer Laivo de crena nessesentido. Apegando-me ao resignado materialismo dos meus ltimos tempos, desalentado emface dos problemas transcendentes do Alm-Tmulo, no tive coragem de enfrent-los,como, um dia, fizeram Medeiros e Albuquerque e Coelho Neto, receoso do fracasso de quederam testemunho, como marinheiros inquietos e imprudentes, regressando ao porto ridodos preconceitos humanos, mal se haviam feito de vela ao grande oficia das expressesfenomnicas da doutrina, onde os espritas sinceros, desassombrados e incompreendidos,so aqueles arrojados e rudes navegadores da Escola de Sagres que, fora de sacrifcios eabnegaes, acabaram suas atividades descobrindo um novo continente para o mundo,dilatando as suas esperanas e santificando os seus trabalhos.

    Dentro da sinceridade que me caracterizava, no perdi ensejos para afirmar as minhasdvidas, expressando mesmo a minha descrena acerca da sobrevivncia espiritual,desacorooado de qualquer possibilidade de viver alm dos meus ossos e das minhasclulas doentes...

    verdade que os assuntos de Espiritismo seduziam a minha imaginao, com a perspectivade um mundo melhor do que esse, onde todos os sonhos das criaturas caminham para amorte; sua literatura fascinava o meu pensamento com o magnetismo suave da esperana,mas a f no conseguia florescer no meu corao de homem triste, sepultado nasexperincias difceis e dolorosas. Os livros da doutrina eram para o meu esprito como

    soberbos poemas de um idealismo superior do mundo subjetivo, sem qualquer feio derealidade prtica, onde eu afundava as minhas faculdades de anlise nas ficesencantadoras; suas promessas e sua mstica de consolos eram o brando anestsico queconseguira aliviar muitos coraes infortunados e doloridos, mas o meu era j inacessvel atuao do sedativo maravilhoso, e o pior enfermo sempre aquele que j experimentou aao de todos os especficos conhecidos.

    Em 1932, um dos meus companheiros da Academia de Letras solicitou minha ateno para otexto do Parnaso de Alm-Tmulo. As rimas do outro mundo enfileiravam-se com a suapureza originria nessa antologia dos mortos, atravs da mediunidade de Francisco Xavier, ocaixeiro humilde de Pedro Leopoldo, impressionando os conhece-dores das expresses

    estilsticas da lngua portuguesa. Por minha vez, procurei ouvir a palavra de Augusto deLima, a respeito do fato inslito, mas o grande amigo se esquivou ao assunto, afirmando: Certamente, entre as novidades da minha terra, Pedro Leopoldo concorre com um novoBaro de Munchhausen.

    A verdade, porm, que pude atravessar as guas pesadas e escuras do Aqueronte e voltardo mundo das sombras, testemunhando a grande e consoladora verdade. incontestvelque nem todos me puderam receber, segundo as realidades da sobrevivncia. A visita de um

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    morto, na maioria das hipteses, constitui sempre um fato importuno e desagradvel. Paraos vivos, que pautam a existncia pelo pentagrama das convenes sociais, o morto com assuas verdades ser invariavelmente um fantasma importuno, e temos de acomodar osimperativos da lgica s concepes do tempo em que se vive.

    Seitas essas consideraes, eis-me diante do Leitor, com um livro de crnicas de Alm-Tmulo.

    Desta vez, no tenho necessidade de mandar os originais de minha produo literria adeterminada casa editora, obedecendo a dispositivos contratuais, ressalvando-se a minhaestima sincera pelo meu grande amigo Jos Olmpio. A Lei j no cogita mais da minhaexistncia, pois, do contrario, as atividades e os possveis direitos dos mortos representariamsria ameaa tranquilidade dos vivos.

    Enquanto a consumia o fosfato do crebro para acudir aos imperativos do estmago, possoagora dar o volume sem retribuio monetria. O mdium est satisfeito com a sua velasingela, dentro da pauta evanglica do dai de graa o que de graa recebestes e aFederao Esprita Brasileira, instituio venervel que o Prefeito Pedro Ernesto reconheceude utilidade pblica, cuja Livraria vai imprimir o meu pensamento, sobejamente conhecidano Rio de Janeiro, pelas suas respeitveis finalidades sociais, pela sua assistncia aosNecessitados, pelo seu programa cristo, cheio de renncias e abnegaes santificadoras.

    A est o Livro com a minha Lembrana humilde. Que ele possa receber a bno de Deus,constituindo um conforto para os aflitos e para os tristes do microcosmo onde vivi.

    Que no se precipitem em suas apreciaes os que no me puderem compreender. A morteser a mesma para todos. A cada qual ser reservado um bangal subterrneo e a sentenaclara da justia celeste. Quanto aos espritos superiores da crtica contempornea,cristalizados nas concepes da poca, que esperem pacientemente pelo Juzo Final, comas suas milagrosas revelaes. No serei eu quem Lhes v esclarecer o entendimento,contando quantos pares de meias usou em toda a vida, ou descobrindo o nmero exato deseus anos, atravs de mesas festivas e alegres. Aguardem com calma o toque de reunir dastrombetas de Josaf.

    Humberto de Campos.

    Pedro Leopoldo, 25 de junho de 1937.

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    Muitas vezes pensei que outras fossem as surpresas que aguardassem um morto, depois deentregar terra os seus despojos.

    Como um menino que vai pela primeira vez a uma feira de amostras, imaginava o conhecidochaveiro dos grandes palcios celestiais. Via S. Pedro de mos enclavinhadas debaixo doqueixo. culos de tartaruga, como os de Nilo Peanha, assestados no nariz, percorrendocom as suas vistas sonolentas e cansadas os estudos tcnicos, os relatrios, os mapas elivros imensos, enunciadores do movimento das almas que regressavam da Terra, comodestacado amanuense de secretaria. Presumia-o um velhote bem conservado, igual aos

    senadores do tempo da monarquia no Brasil, cofiando os longos bigodes e os fios grisalhosda barba respeitvel. Talvez que o bom apstolo, desentulhando o ba de suas memrias,me contasse algo de novo: algumas anedotas a respeito de sua vida, segundo a versopopular; fatos do seu tempo de pescarias, certamente cheios das estroinices de rapazola. As

    jovens de Sforis e de Cafarnaum, na Galilia, eram criaturas tentadoras com os seus lbiosde rom amadurecida. S. Pedro por certo diria algo de suas aventuras, ocorridas, est claro,antes da sua converso doutrina do Nazareno.

    No encontrei, porm, o chaveiro do Cu. Nessa decepo, cheguei a supor que a regiodos bem-aventurados deveria ficar encravada em alguma cordilheira de nuvens inacessveis.Tratava-se, certamente, de um recanto de maravilhas, onde todos os lugares tomariam

    denominaes religiosas, na sua mais alta expresso simblica: Praa das Almas Benditas,Avenida das Potncias Anglicas. No corao da cidade prodigiosa, em paosresplandecentes, Santa Ceclia deveria tanger a sua harpa acompanhando o coro das onzemil virgens, cantando ao som de harmonias deliciosas para acalentar o sono das filhas de

    Aqueronte e da Noite, a fim de que no viessem, com as suas achas incandescentes evboras malditas, perturbar a paz dos que ali esqueciam os sofrimentos, em repousobeatfico. De vez em quando se organizaram, nessa regio maravilhosa, solenidades e festascomemorativas dos mais importantes acontecimentos da Igreja. Os papas desencarnadosseriam os oficiantes das missas e Te-Deuns de grande gala, a que compareceriam todos ossantos do calendrio; S. Francisco Xavier, com o mesmo hbito esfarrapado com que andoupregando nas ndias; S. Jos, na sua indumentria de carpinteiro; S. Sebastio na sua

    armadura de soldado romano; Santa Clara, com seu perfil lindo e severo de madona,sustentada pelas mos minsculas e inquietas dos arcanjos, como rosas de carne loura. Asalmas bem conceituadas representariam, nas galerias deslumbrantes, os santos que a Igrejainventou para o seu hagiolgio.

    Mas... no me foi possvel encontrar o Cu.

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    Julguei, ento, que os espritas estavam mais acertados em seus pareceres. Deveriareencontrar os que haviam abandonado as suas carcaas na Terra, continuando a mesmavida. Busquei relacionar-me com as falanges de brasileiros emigrados do outro mundo.Idealizei a sociedade antiga, os patrcios ilustres a refugiados, imaginando encontr-los emuma residncia principesca como a do Marqus de Abrantes, instalada na antiga chcara de

    Dona Carlota, em Botafogo, onde recebiam a mais fina flor da sociedade carioca das ltimasdcadas do segundo reinado, cujas reunies, compostas de fidalgos escravocratas dapoca, ofuscavam a simplicidade monacal dos Paos de S. Cristvo.

    E pensei de mim para comigo: Os rabinos do Sindrio, que exararam a sentenacondenatria de Jesus-Cristo, querero saber as novidades de Hitler, na sua fria contra os

    judeus. Os remanescentes do prncipe de Bismarck, que perderam a ltima guerra,desejariam saber qual a situao do negcios franco-alemes. Contaria aos israelitas ahistria da esterilizao, e aos seguidores do ilustre filho de schoenhausen as questes doplebiscito do Sarre. Cada bem-aventurado me viria fazer uma solicitao, s quais euatenderia com as habilidades de um porta-novas acostumado aos prazeres maliciosos doboato.

    Enganara-me, todavia. Ningum de preocupava com a Terra, ou com as coisas da suagente.

    Tranqilizem-se, contudo, os que ficaram, porque, se no encontrei o Padre Eterno com assuas longas barbas de neve, como se fossem feitas de paina alva e macia, segundo asgravuras catlicas, no vi tambm o Diabo.

    Logo que tomei conta de mim, conduziram-me a um solar confortvel, como a Casa dosBernardelli, na praia de Copacabana. Semelhante a uma abadia de frades na Estria,espanta-me o seu aspecto imponente e grandioso. Procurei saber nos anais desse casarodo outro mundo as notcias relativas ao planeta terreno. Examinei os seus inflios. Nenhumrelato havia a respeito dos santos da corte celestial, como eu os imaginava, nem aluses aMefistfeles e ao Amaldioado. Ignorava-se a histria do fruto proibido a condenao dosanjos rebelados, o decreto do dilvio, as espantosas vises do evangelista no Apocalipse. Asreligies esto na Terra muito prejudicadas pelo abuso dos smbolos. Poucos fatosrelacionados com elas estavam naqueles documentos.

    O nosso muno insignificante demais, pelo que pude observar na outra vida. Conforta-me,porm, haver descoberto alguns amigos velhos, entre muitas caras novas.

    Encontrei o Emlio radicalmente transformado. Contudo, s vezes, faz questo de aparecer-me de ventre rotundo e rosto bonacheiro, como recebia os amigos na Pascoal, para falar davida alheia.

    - Ah! Filho- exclama sempre -, h momentos nos quais eu desejaria descer ao Rio, como ohomem invisvel de Wells, e dar muita paulada nos bandidos de nossa terra.

    E, na graa de quem, esvaziando copos, andou enchendo o tonel das Danaides, desfolha ocaderno de suas anedotas mais recentes.

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    A vida, entretanto, no mais idntica da Terra. Novos hbitos. Novas preocupaes epanoramas novos. A minha situao a de um enfermo pobre que se visse de uma horapara outra em luxuosa estao de guas, com as despesas custeadas pelos amigos.Restabelecendo a sade, estudo e medito. E meu corao, ao descerrar as folhas diferentesdos compndios do infinito, pulsa como o do estudante novo.

    Sinto-me novamente na infncia. Calo os meus tamanquinhos, visto as minhas calascurtas, arranjo-m pressa, com a m vontade dos garotos incorrigveis, e vejo-me outra vezdiante da Mestra Sinh, que me olha com indulgncia, atravs de sua tristeza de virgemdesamada, e repito, apontando as letras na cartilha: _ A B C...A B C D E ...

    Ah!! Meu Deus, estou aprendendo agora os luminosos alfabetos que os teus imensosescreveram com giz de ouro resplandecente os livros da Natureza. Faze-me novamentemenino para compreender a lio que me ensina! Sei hoje, relendo os captulos da tua glria,por que vicejam na Terra os cardos e os jasmineiros, os cedros e as ervas, por que vivem osbons e os maus, recebendo, numa atividade promscua da tua casa.

    No trago do mundo, Senhor, nenhuma oferenda para a tua grandeza! No possuo seno ocorao, exausto de sentir e bater, como um vaso de iniqidades. Mas, no dia em que telembrares do msero pecador que te contempla no teu doce mistrio como lmpada de luzeterna, em torno da qual bailam os sis como pirilampos acesos dentro da noite, fecha os teusolhos misericordiosos para as minhas fraquezas e deixa cair nesse vaso imundo uma raiz deaucenas. Ento, Senhor, como j puseste lume nos meus olhos, que ainda choram,plantars o lrio da paz no meu corao que ainda sofre e ainda ama.

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    No antigo Pao da Boa vista, nas audincias dos sbados, quando recebia toda gente,atendeu D.Pedro II a um negro velho, de carapinha branca, e em cujo rosto, enrugado pelofrio de muitos invernos, se descobria o sinal de muita penas e muitos maus-tratos.

    -Ah! Meu Senhor grande exclamou o infeliz como duro ser escravo!...

    O magnnimo imperador encarou suas mos cansadas no leme da direo do povo e

    aquelas outras, engelhadas, na excrescncia dos calos adquiridos na rude tarefa dassenzalas, e tranqilizando-o comovido:

    - meu filho, tem pacincia! Tambm sou escravo dos meus deveres e eles so bempesados... Teus infortnios vo diminuir...

    E mandou libertar o preto.

    Mais tarde, nos primeiros tempos do seu desterro, o bondoso monarca, a bordo do Alagoas,recebeu a visita do seu ex-ministro; s primeiras interpelaes de Ouro Preto, respondeu-lheo grande exilado:

    -Em suma, estou satisfeito e tranqilo.

    E, aludindo sua expatriao:

    a minha carta de alforria... Agora posso ir onde quero.

    A coroa era pesada demais para a cabea do monarca republicano.

    Aos que perguntarem no mundo sobre a minha posio em face da morte, direi que ele tevepara mim a fulgurao de um Treze de Maio para os filhos de Angola.

    A morte no veio buscar a minha alma, quando esta se comprazia nas redes douradas dailuso. A sua tesoura no me cortou fios da mocidade e de sonho, porque eu no possuaseno neves brancas espera do sol para se desfazerem. O gelo dos meus desenganosnecessitava desse calor de realidade, que a morte espalha no caminho em que passa com asua foice derrubadora. Resisti, porm ao seu cerco como Aquiles no herosmo indomvel dequem v a destruio de suas muralhas e redutos. Na minha trincheira de sacos de guaquente, eu a vi chegar quase todos os dias... Mirava-me nas pupilas chamejantes dos seus

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    olhos, pedindo-lhe complacncia e ela me sorria consoladora nas suas promessas. Eu nopodia, porm adivinhar o seu fundo mistrio, porque a dvida obsidiava o meu esprito,enrodilhando-se no meu raciocnio como tentculos de um polvo.

    E, na alegria brbara, sentia-me encurralado no sofrimento, como um lutador romano

    aureolado de rosas.Triunfava da morte e como jax recolhi as ltimas esperanas no rochedo da minha dor,desafiando o tridente dos deuses.

    A minha excessiva vigilncia trouxe-me a insnia, que arruinou a tranqilidade dos meusltimos dias. Perseguido pela surdez, j os meus olhos se apagavam como as derradeirasluzes de um navio soobrando em mar encapelado no silncio da noite. Sombra, movendo-se dentro das sombras, no me acovardei diante do abismo. Sem esmorecimentos atirei-meao combate, no para repelir mouros na costa, mas para erguer muito alto o corao,retalhado nas pedras do caminho como um livro de experincias para os que vinham depoisdos meus passos, ou como a rstia luminosa que os faroleiros desabotoam na superfcie dasguas, prevenindo os incautos dos perigos das sirtes traioeiras do oceano.

    Muitos me supuseram corrodo da lepra e de vermina como se fosse Bento de Labre,raspando-me com a escudela de J. Eu, porm estava apenas refletindo a claridade dasestrelas do meu imenso crepsculo. Quando, me encontrava nessa faina de semear aresignao, a primeira e ltima flor dos que atravessam o deserto das incertezas da vida, amorte abeirou-se do meu leito; devagarinho, como algum que temesse acordar um meninodoente. Esperou que tapassem com anestesia todas as janelas e interstcios dos meussentimentos. E quando o caos mais absoluto no meu crebro, zz! Cortou as algemas a queme conservava retido por amor aos outros condenados, irmos meus, reclusos no calabouoda vida. Adormeci nos seus braos como um brio nas mos de uma deusa. Despertandodessa letargia momentnea, compreendi a realidade da vida, que eu negara, alm dos ossosque se enfeitam com os cravos rubros da carne.

    -Humberto!... Humberto... exclamou uma voz longnqua recebe os que te enviam da Terra!

    Arregalei os olhos com horror e com enfado:

    -No! No quero saber de panegricos e agora no me interessam as sees necrolgicasdos jornais.

    Enganas-te repetiu as homenagens da conveno no se equilibram at aqui. Ahipocrisia como certos micrbios de vida muito efmera. Toma as preces que se elevarampor ti a Deus, dos peitos sufocados, onde penetraste com as tuas exortaes e conselhos. Osofrimento retornou sobre o teu corao um cntaro de mel.

    Vi descer de um ponto indeterminado do espao, braadas de flores inebriantes como sefossem feitas de neblina resplandecente, e escutei, envolvendo o meu nome pobre, oraestecidas com suavidade e doura. Ah! Eu no vira o cu e a sua corte de bem-aventurados;mas Deus receberia aquelas deprecaes no seu slio de estrelas encantadas como a hstia

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    simblica do catolicismo se perfuma na onda envolvente dos aromas de um turbulo. NossaSenhora deveria ouvi-las no seu trono de jasmins bordados de ouro, contornado dos anjosque eternizam a sua glria.

    Aspirei com fora aqueles perfumes. Pude locomover-me para investigar o reino das sobras,

    onde penso sem miolos na cabea. Amava e ainda sofria, reconhecendo-me no prtico deuma nova luta.

    Encontrei alguns amigos a quem apertei fraternalmente as mos. E voltei c. Voltei para falarcom os humildes e infortunados, confundidos na poeira da estrada de suas existncias, comofrangalhos de papel, rodopiando ao vento. Voltei para dizer aos que no pude interpretar nomeu ceticismo de sofredor:

    -No sois os candidatos ao casaro da Praia Vermelha.[Hospcio Nacional]. Plantai pois nasalmas a palmeira da esperana. Mais tarde ela descobrir sobre as vossas cabeasencanecidas os seus leques enseivados e verdes...

    E posso acrescentar, como o neto de Marco Aurlio, no tocante morte que me arrebatou dapriso nevoenta da Terra:

    - a minha carta de alforria... Agora posso ir onde quero.

    Os amargores do mundo eram pesados demais para o meu corao.

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    08 de Abril de 1935

    Meus filhos venho falar a vocs como algum que abandonasse a noite de Tirsias, no carrofulgurante de Apolo, subindo aos cumes dourados e perfumados do Hlicon. Tudo harmonia e beleza na companhia dos numes e dos gnios, mas o pensamento de um cego,em reabrindo os olhos nas rutilncias da luz, para os que ficaram, l longe dentro da noiteonde apenas a esperana uma estrela de luz doce e triste.

    No venho da minha casa subterrnea de So Joo Batista [O esprito se refere ao cemitriode So Joo], como os mortos que os larpios, s vezes, fazem regressar aos tormentos daTerra, por mal dos seus pecados. Na derradeira morada do meu corpo ficaram os meusolhos enfermos e as minhas disposies orgnicas.

    C estou como se houvesse sorvido um nctar de juventude no banquete dos deuses.

    Entretanto, meus filhos, levanta-se entre ns um rochedo de mistrio e de silncio.

    Eu sou eu. Fui o pai de vocs e vocs foram meus filhos. Agora somos irmos. Nada h demais belo do que a lei de solidariedade fraterna, delineada pelo Criador na sua glriainacessvel. A morte no suprimiu a minha afetividade e a ainda possuo o meu corao dehomem para o qual vocs so as melhores criaturas desse mundo.

    Dizem que Orfeu, quando tangia as cordas de sua lira, sensibilizava as feras que agrupavam

    enternecidas para escut-lo. As rvores vinham de longe, transportadas na sua harmonia. Osrios sustavam o curso nas suas correntes impetuosas, quedando-se para ouvi-lo. Haviadeslumbramento na paisagem musicalizada. A morte, meus filhos, cantou para mim, tocandoo seu alade. Todas as minhas convices deixaram os seus lugares primitivos para sentir agrandeza do seu canto.

    No posso transmitir esse mistrio maravilhoso atravs dos mtodos imperfeitos de quedisponho. E, se pudesse, existe agora entre ns o fantasma da dvida.

    Convidado pelo Senhor, eu tambm estive no banquete da vida. No nos palcios dapopularidade ou da juventude efmera, mas no trio pobre e triste do sofrimento onde se

    conservam temporariamente os mendigos da sua casa. Minha primeira dor foi a minhaprimeira luz. E quando os infortnios formaram uma teia imensa de amarguras para o meudestino, senti-me na posse do celeiro de claridades da sabedoria. Minhas dores eram minhaprosperidade. Porm qual o corteso de Dionsio, vi a dvida como a espada afiadssimabalouando-se sobre a minha cabea. A na Terra, entre a crena e a descrena, estsempre ela, a espada de Dmocles. Isso uma fatalidade.

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    Venho at vocs cheio de amorosa ternura e se no posso me individualizar, apresentando-me como o pai carinhoso, no podem vocs garantir a impossibilidade da minhasobrevivncia. A dvida entre ns como a noite. O amor, entretanto, luariza estas sombras.Um morto, como eu, no pode esperar a certeza ou a negao dos vivos que receberem asua mensagem para a qual h de prevalecer o argumento dubitativo. E nem pode exigir outra

    coisa quem no mundo no procederia de outra forma.Sinto hoje, mais que nunca, a necessidade de me impessoalizar, de ser novamente o filhoignorado de dona Anica, a boa e santa velhinha, que continua sendo para mim a mais santadas mes. Tenho necessidade de me esquecer de mim mesmo. Todavia, antes que secumpra este meu desejo, volto para falar a vocs paternalmente como no tempo em quedestrua o fosfato do crebro a fim de adquirir combustvel para o combustvel para oestmago.

    -Meus filhos!... Meus filhos!... Estou vivendo... No me vem?... Mas olhem, olhem o meucorao como ainda est batendo por vocs!...

    Aqui, meus filhos, no me perguntaram se eu havia descido gloriosamente as escadas doPetit Trianon; no fui inquirido a respeito dos meus triunfos literrios e no me solicitaraminformes sobre o meu fardo acadmico. Em compensao, fui argido acerca das causasdos humildes e dos infortunados pelos quais me bati.

    Vivam pois com prudncia na superfcie desse mundo de futilidades e de glrias vs.

    Num dos mais delicados poemas de Wilde, as rcades lamentara a morte de Narciso juntode sua fonte predileta, transformada numa taa de lgrimas.

    -No nos admira suspiram elas que tanto tenhas chorado!... Era to lindo!...

    -Era belo Narciso? perguntou o lago.

    -Quem melhor do que tu poders sab-lo, se nos desprezavas a todas para estender-se nasrelvas da tua margem, baixando os olhos para contemplar, no diamante da tua onda, a suaformosura?...

    A fonte respondeu:

    -Eu adorava Narciso porque, quando me procurava com os olhos, eu via, no espelho dassuas pupilas, o reflexo da minha prpria beleza.

    Em sua generalidade, meus filhos, os homens, quando no so Narciso, enamorados de suaprpria formosura, so as fontes de Narciso.

    No venho exortar a vocs como sacerdote; conheo de sobra s fraquezas humanas.Vivam, porm a vida do trabalho e da sade, longe da vaidade corruptora. E, na religio daconscincia retilnea, no se esqueam de rezar.

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    Eu, que era um homem to perverso e to triste, estou aprendendo de novo a minha prece,como fazia na infncia, ao p de minha me, na Parnaba.

    -Venham, meus filhos!... Ajoelhemos de mos postas... No vem que cheguei de tolonge?! Fui mais feliz que o Rico e o Lzaro da parbola, que no puderam voltar...

    Ajoelhemos no templo do Esprito; inclinem vocs a fronte sobre o meu corao. Cabemtodos nos meus braos? Cabem, sim...

    Vamos rezar com o pensamento em Deus, com a alma no infinito. Pai nosso... que estais nocu... santificado seja o vosso nome...

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    -Pois bem, o Antonico, nome pelo qual respondia na intimidade, era um dos meus amigos dopeito. Advogado de renome na minha terra, j o conheci na elevada posio que usufrua noseio da sociedade que lhe acatava todas as aes e pareceres.

    Pardavasco, insinuante, era o tipo do mulato brasileiro. Simptico, inteligente, captava a

    confiana de quantos se lhe aproximavam. Era de uma felicidade nica. Ganhava todas ascausas que lhe eram entregues. O crime mais negro apresentava para a sua palavrapercuciente uma argumentao infalvel na defesa. Os rus, absolvidos com a suacolaborao, retiravam-se da sala de sesses da justia quase canonizados. O Antonico semetera em alguma pendncia? O triunfo era dele. Gozava de toda a nossa considerao eestima. Criara a sua famlia com irrepreensvel moralidade. Em algumas cerimniasreligiosas a que compareci, recordo-me de l o haver encontrado, como bom catlico, emcuja personalidade o nosso vigrio via um dos mais prestigiosos dos seus paroquianos.

    Chefiava iniciativas de caridade, presidia a associao religiosa e primava pela austeridadeintransigente dos seus costumes.

    Quando voltei desse mundo, que hoje representa para ns uma penitenciaria, trouxe delesaudosas recordaes.

    Imagine, pois o meu desejo de reencontr-lo, quando vim a saber, nestas paragens, que elese achava s portas da morte. Obtive permisso para excursionar Terra e fui rev-lo na suacama de luxo, rodeado de zelos extremos, numa alcova ensombrada de sua confortvelresidncia. As poes eram ingeridas. Injees eram aplicadas. Os mdicos eramatenciosamente ouvidos. Contudo, a morte rondava o leito de rendas, com o seu passosilencioso. Depois de ter o abdmen rasgado por um bisturi, uma infeco sobrevierainesperadamente.

    Apareceu uma pleurisia e todas as punes foram inteis. Antonico agonizava. Vi-o nos seusderradeiros momentos, sem que ele me visse na sua semi-inconscincia. Os mdicos suacabeceira, deploravam o desaparecimento do homem probo. O padre, que sustinha naquelasmos de cera u delicado crucifixo, recitando a orao dos moribundos, fazia ao cu piedosasrecomendaes. A esposa chorava o esposo, os filhos o pai! Aos meus olhos, aquele quadroera o da morte do justo. Transcorridas algumas horas, acompanhei o fnebre cortejo que iaentregar terra aqueles despojos frios.

    Desnecessrio que lhe diga das pomposas exquias que a igreja dispensou ao morto, emvirtude da sua posio eminente. Preces. Asperses com hissopes ensopados ngua bentae latim agradvel.

    Mas, como nem todos os que morrem desapegam imediatamente dos humores e dasvsceras, esperei que o meu amigo acordasse para ser o primeiro a abra-lo.

    Era crepsculo. E, naquela tarde de agosto, as nuvens estavam enrubescidas, em meio dofumo das queimaduras, parecendo uma espumarada de sangue. Havia um cheiro de terrabrava, entre as lousas silenciosas, ao p dos salgueiros e dos ciprestes. Eu esperava. Devez em quando, o vento agitava a ramaria dos chores, que pareciam soluar, numa toada

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    esquisita. Os coveiros abandonaram a sua tarefa sinistra e eu vi um vulto de mulher,esgueirando-se entre as lpides enegrecidas. Parou junto daquela cova fresca. No setratava de nenhuma alma encarnada. Aquela mulher pertencia tambm aos reinos dassombras. Observei-a de longe. Todavia, gritos estentricos ecoaram aos meus ouvidos.

    -A. F. exclamou o espectro chegou o momento da minha vingana! Ningum poderadvogar a tua causa. Nem Deus, nem o Demnio podero interceder pela tua sorte, comono puderam cicatrizar no mundo as feridas que abriste em meu corao. Todas as nossastestemunhas agora so mudas. Os anjos aqui so de pedra e as capelas de mrmore, cheiasde cruzes caladas, so estojos de carne apodrecida. Lembras-te de mim? Sou a R. S., queinfelicitaste com a tua infmia!

    J no s aquele moreno insinuante que surrupiou a fortuna de meus pais, destruindo-lhes avida e atirando-me no meretrcio abominvel. A fortuna que te deu um nome foi edificada nopedestal do crime.

    Recordas-te das promessas mentirosas que me fizeste? Envergonhada, abandonei a terraque me vira nascer para ganhar o po no mais horrendo comrcio. Corri mundo, semesquecer a tua perversidade e sem conseguir afogar o meu infortnio na taa dos prazeres.

    Entretanto, o mundo foi teu. Ru de um crime nefando, foste sacerdote da justia; eu, avtima desconhecida, fui obrigada a sufocar a minha fraqueza nas sentinas sociais, onde oshomens pagam o tributo das suas misrias. Tiveste a sociedade, eu os bordis. O triunfo e aconsiderao te pertenceram; a mim coube o desprezo e a condenao. Meu lar foi ohospital, donde se escapou o ltimo gemido do meu peito.

    Meus braos, que haviam nascidos para acariciar os anjos de Deus, como dois galhos dervores cheios de passarinhos, foram por ti transformados em tentculos de perdio. Eupoderia ter possudo um lar, onde as crianas abenoassem os meus carinhos e onde umcompanheiro laborioso se reconfortasse com o beijo da minha afeio. Venho te condenar, desalmado assassino, em nome da justia eterna que nos rege, acima dos homens. H maisde um lustro, espero-te nesta solido indevassvel, onde no poders comprar a conscinciados juizes... Viveste com o teu conforto, enquanto eu penava com a minha misria; mas, oinferno agora ser de ns dois!...

    O coronel fez uma pausa, enquanto eu meditava naquela histria.

    -A mulher chorava continuou ele de meter d. Aproximei-me dela, no sendo notada,porm, minha presena. Olhei a cruz modesta e carcomida que havia que havia sidoarrancada poucas horas antes, daqueles sete palmos de terra, para que ali fosse aberto umnovo sepulcro, e, no sei se por artes do acaso, nela estava escrito um nome com pregosamarelos, j desfigurados pela ferrugem: R. S. Orai por ela.

    Por uma coincidncia sinistra, reencontravam-se os dois corpos e as duas almas. Procureifazer tudo pelo Antonico, mas quando atravessei com o olhar a terra que lhe cobria osdespojos, afigurou-se-me ver um monte de ossos que se moviam. Crnio, tbias, mero,

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    clavculas, se reuniam sob uma ao misteriosa e vi uma caveira chocalhando os dentes defria, ao mesmo tempo em que umas falangetas de ao pareciam apertar o pescoo docadver do meu amigo.

    -E ele, coronel, isto , o Esprito, estava presente?

    -Estava, sim. Presente e desperto. L o deixei, sentindo os horrores daquela sufocao.

    -Mas, e Deus, coronel? Onde estava Deus que no se compadeceu do pecadorarrependido?

    O coronel me olhou, como se estivesse interrogando a si mesmo, e declarou por fim:

    -Homem, sei l!... Acredito que Deus tenha criado o mundo; porm, acho que a Terra ficoumesmo sob administrao do Diabo.

    ------------------

    (1) No original da mensagem foram dados por extenso os nomes das pessoas nelamencionados. Como, porm, essas pessoas deixaram descendentes, que poderiammolestar-se com as referncias que lhes fez Humberto de Campos, resolvemos indic-lasapenas pelas suas iniciais.

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    19 de Abril de 1935

    Silncio augusto cai sobre a Cidade Santa. A antiga capital da Judia parece dormir o seusono de muitos sculos. Alm descansa Getsmani, onde o Divino Mestre chorou numalonga noite de agonia, acol est o Glgota sagrado e em cada coisa silenciosa h um traoda Paixo que as pocas guardaro para sempre. E, em meio de todo o cenrio, como umveio cristalino de lgrimas, passa o Jordo silencioso, como se as suas guas mudas,buscando o Mar Morto, quisessem esconder das coisas tumultuosas dos homens ossegredos insondveis do Nazareno.

    Foi assim, numa destas noites que vi Jerusalm, vivendo a sua eternidade de maldies.

    Os espritos podem vibrar em contacto direto com a histria. Buscando uma relao ntimacom a cidade dos profetas, procurava observar o passado vivo dos Lugares Santos. Pareceque as mos iconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de um decretoirrevogvel. Por toda a parte ainda persiste um sopro de destruio e desgraa. Legies deduendes, embuados nas suas vestimentas antigas, percorrem as runas sagradas e no meiodas fatalidades que pesam sobre o emprio morto dos judeus, no ouvem os homens osgemidos da humanidade invisvel.

    Nas margens caladas do Jordo, no longe talvez do lugar sagrado, onde Precursor batizouJesus Cristo, divisei um homem sentado sobre uma pedra. De sua expresso fisionmicairradiava-se uma simpatia cativante.

    - Sabe quem este? murmurou algum aos meus ouvidos. Este Judas.

    - Judas?!...

    - Sim. Os espritos apreciam, s vezes, no obstante o progresso que j alcanaram, volveratrs, visitando os stios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-semomentaneamente transportados aos tempos idos. Ento mergulham o pensamento nopassado, regressando ao presente, dispostos ao herosmo necessrio do futuro. Judascostuma vir Terra, nos dias em que se comemora a Paixo de Nosso Senhor, meditandonos seus atos de antanho...

    Aquela figura de homem magnetizava-me. Eu no estou ainda livre da curiosidade doreprter, mas entre as minhas maldades de pecador e a perfeio de Judas existia umabismo. O meu atrevimento, porm, e a santa humildade de seu corao, ligaram-se paraque eu o atravessasse, procurando ouvi-lo.

    -O senhor , de fato, o ex-filho de Iscariot? Sim, sou Judas respondeu aquele homemtriste, enxugando uma lgrima nas dobras de sua longa tnica. Como o Jeremias, das

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    Lamentaes, contemplo s vezes esta Jerusalm arruinada, meditando no juzo doshomens transitrios...

    - uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito sua personalidade natragdia da condenao de Jesus?

    - Em parte... Os escribas que redigiram os evangelhos no atenderam s circunstncias e stricas polticas que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificao. PncioPilatos e o tetrarca da Galilia, alm dos seus interesses individuais na questo, tinhamainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazeras aspiraes religiosas dos ancios judeus. Sempre a mesma histria. O Sanedrimdesejava o reino do cu pelejando por Jeov, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra.Jesus estava entre essas foras antagnicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era umdos apaixonados pelas idias socialistas do Mestre, porm o meu excessivo zelo peladoutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos coraes, eu via a poltica, nica armacom a qual poderia triunfar e Jesus no obteria nenhuma vitria. Com as suas teorias nuncapoderia conquistar as rdeas do poder j que, no seu manto de pobre, se sentia possudo deum santo horror propriedade. Planejei ento uma revolta surda como se projeta hoje em diana Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a um plano secundrio e euarranjaria colaboradores para uma obra vasta e enrgica como a que fez mais tardeConstantino Primeiro, o Grande, depois de vencer Maxncio s portas de Roma, o que alisapenas serviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifs, no

    julguei que as coisas atingissem um fim to lamentvel e, ralado de remorsos, presumi que osuicdio era a nica maneira de me redimir aos seus olhos.

    - E chegou a salvar-se pelo arrependimento?

    - No. No consegui. O remorso uma fora preliminar para os trabalhos reparadores.Depois da minha morte trgica submergi-me em sculos de sofrimento expiatrio da minhafalta. Sofri horrores nas perseguies infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus eas minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde imitando o Mestre, fuitrado, vendido e usurpado. Vtima da felonia e da traio deixei na Terra os derradeirosresqucios do meu crime, na Europa do sculo XV. Desde esse dia, em que me entreguei poramor do Cristo a todos os tormentos e infmias que me aviltavam, com resignao e piedadepelos meus verdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnaes na Terra, sentidona fronte o sculo de perdo da minha prpria conscincia...

    - E est hoje meditando nos dias que se foram... - pensei com tristeza.

    - Sim... Estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que seacha no seu luminoso Reino das Alturas que ainda no deste mundo, sinto nestas estradaso sinal de seus divinos passos. Vejo-O ainda na Cruz entregando a Deus o seu destino...Sinto a clamorosa injustia dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vemuma recordao carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso transe... Emtodas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor... Olhocomplacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra... Sobreo meu nome pesa a maldio milenria, como sobre estes stios cheios de misria e de

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    infortnio. Pessoalmente, porm, estou saciado de justia, porque j fui absolvido pela minhaconscincia no tribunal dos suplcios redentores.

    Quanto ao Divino Mestre continuou Judas com os seus prantos infinita a suamisericrdia e no s para comigo, porque se recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus

    algozes, h muitos sculos Ele est sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e aretalho, por todos os preos em todos os padres do ouro amoedado...- verdade conclu e os novos negociadores do Cristo no se enforcam depois devend-lo.

    Judas afastou-se tomando a direo do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombrasinvisveis para o mundo, vi que no cu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvenspardacentas e tristes, enquanto o Jordo rolava na sua quietude como um lenol de guasmortas, procurando um mar morto.

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    23 de Abril de 1935

    Antigamente eu escrevia nas sombras para os que se conservavam nas claridades da Vida.Hoje, escrevo na luz branca da espiritualidade para quantos ainda se acham mergulhadosnas sombras do mundo. Quero crer, porm que to dura tarefa me foi imposta nas mansesda Morte, como esquisita penitncia ao meu bom gosto de homem que colheu quando pdedos frutos saborosos na rvore paradisaca dos nossos primeiros pais, segundo asEscrituras.

    Contudo no desejo imitar aquele velho Tirsias que fora de proferir alvitres e sentenasconquistou dos deuses o dom divinatrio em troca dos preciosos dons da vista.

    Por esta razo o meu pensamento no se manifesta entre vocs que aqui acorreram paraouvi-lo como o daquelas entidades batedoras, que em Hydesville, na Amrica do Norte, porintermdio das irms Fox, viviam nos primrdios do Espiritismo, contando histrias e dandorespostas surpreendentes com as suas pancadas ruidosas e alegres.

    Devo tambm esclarecer ao sentimento de curiosidade que os tangeu at aqui, que noestou exercendo ilegalmente a medicina como a grande parte dos defuntos, os quais, hojeem dia, vivem diagnosticando e receitando mezinhas e guas milagrosas para os enfermos.

    Tampouco, na minha qualidade de reprter falecido sou portador de alguma mensagemsensacional dos paredros comunistas que j se foram dessa vida para a melhor, mulos dos

    Lenine, dos Kropotkine, cujos crebros, a esta hora, devem estar transbordando teoriasmomentosas para o instante amargo que o mundo est vivendo.

    O objetivo das minhas palavras pstumas somente demonstrar o homem... desencarnadoe a imortalidade dos seus atributos. O fato que vocs no me viram.

    Mas contem l fora eu enxergaram o mdium. No afirmam que ele se parece com oMahatma Gandhi em virtude de lhe faltar uma tanga, uma cabra e a experincia anosa dolder nacionalista da ndia. Mas historiem, com sinceridade, o caso das suas roupasremendadas e tristes de proletrio e da sua pobreza limpa e honesta que anda por essemundo arrastando tamancos para a remisso de suas faltas nas anteriores encarnaes.

    Quanto a mim, digam que eu estava por detrs do vu de sis.

    Mesmo assim, na minha condio de intangibilidade, no me furto ao desejo de lhes contaralgo a respeito desta outra vida para onde todos tm de regressar. Se no estou nosinfernos de que fala a teologia dos cristos, no me acho no stimo paraso de Maom. Nosei contar as minhas aperturas na amarga perspectiva de completo abandono em que meencontrei, logo aps abrir os meus olhos no reino extravagante da Morte. Afigurou-se-me queeu ia, diretamente consignado ao Aqueronte, cujas guas amargosas deveria transpor como

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    as sombras para nunca mais voltar, porque no cheguei a presenciar nenhuma luta entreSo Gabriel e os Demnios, com as suas balanas trgicas, pela posse de minha alma.Passados, porm, os primeiros instantes de inusitado receio, divisei a figura mida esimples do meu Tio Antoninho, que me recebeu nos seus braos carinhosos de santo.

    Em companhia, pois, de afeies ternas, no reconto fabuloso, que a minha temporriamorada, ainda estou como aparvalhado entre todos os fenmenos da sobrevivncia. Aindano cheguei a encontrar os sis maravilhosos, as esferas, os mundos comentrios, portentoscelestes, que descreve Flammarion na sua Pluralidade dos Mundos. Para o meu esprito, aLua ainda prossegue na sua carreira como esfinge eterna do espao, embuada no seu burelde freira morta.

    Uma saudade doida e uma nsia sem termo fazem um turbilho no meu crebro: a vontadede rever, no reino das sombras, o meu pai e a minha irm. Ainda no pude faz-lo. Mas emum movimento de maravilhosa retrospeco pude volver minha infncia, na Miritibalongnqua. Revi as suas velhas ruas, semi-arruinadas pelas guas do Piri e pelas areiasimplacveis... Revi os dias que se foram e senti novamente a alma expansiva de meu paicomo um galho forte e alegre do tronco robusto dos Veras minha frente, nos quadros vivosda memria, abracei a minha irmzinha inesquecida, que era em nossa casa modesta comoum anjo pequenino da Assuno de Murilo, que se tivesse corporificado de uma hora paraoutra sobre as lamas da terra...

    Descansei sombra das rvores largas e fartas, escutando ainda as violas caboclas,repinicando os sambas da gente das praias nortistas e que to bem ficaram arquivadas napoesia encantadora e simples de Juvenal Galeno.

    Da Miritiba distante transportei-me Parnaba, onde vibrei com o meu grande mundoliliputiano... Em esprito, contemplei com a minha me as folhas enseivadas do meu cajueiroderramando-se na Terra entre as harmonias do canto choroso das rolas morenas dosrecantos distantes de minha terra.

    De almas entrelaadas contemplei o vulto de marfim antigo daquela santa que, como umanjo, espalmou muitas vezes sobre o meu esprito cansado as suas asas brancas. Beijei-lheas mos encarquilhadas genuflexo e segurei as contas do seu rosrio e as contas midas eclaras que corriam furtivamente dos seus olhos, acompanhando a sua orao...

    Ave Maria... Cheia de graa... Santa Maria... Me de Deus...

    Ah! de cada vez que o meu olhar se espraia tristemente sobre a superfcie do mundo, volvo aminha alma aos firmamentos, tomada de espanto e de assombro... Ainda h pouco, nasminhas surpresas de recm-desencarnado, encontrei na existncia dos espaos, onde nose contam as horas, uma figura de velho, um esprito ancio, em cujo corao milenriopresumo refugiadas todas as experincias. Longas barbas de neve, olhos transudandopiedade infinita doura, da sua fisionomia de Doutor da Lei, nos tempos apostlicos,irradiava-se uma corrente de profunda simpatia.

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    - Mestre! disse-lhe eu na falta de outro nome que podemos fazer para melhorar asituao do orbe terreno? O espetculo do mundo me desola e espanta... A famlia parece sedissolve... o lar est balanando como os frutos podres, na iminncia de cair... a Civilizao,com os seus numerosos sculos de leis e instituies afigura-se haver tocado os seusapogeus... De um lado existem os que se submergem num gozo aparente e fictcio, e do

    outro esto as multides famintas, aos milhares, que no tm seno rasgado no peito o sinalda cruz, desenhado por Deus com a suas mos prestigiosas como os smbolos queConstantino gravara nos seus estandartes... E, sobretudo Mestre, a perspectiva horrorosada guerra...

    No h tranqilidade e a Terra parece mais um fogareiro imenso, cheio de matrias emcombusto...

    Mas o bondoso esprito-ancio me respondeu com humildade e brandura:

    - Meu filho... Esquece o mundo e deixa o homem guerrear em paz!...

    Achei graa no seu paradoxo, porm s me resta acrescentar:

    - Deixem o mundo em paz com a sua guerra e a sua indiferena!

    No ser minha boca quem v soprar na trombeta de Josaf. Cada um guarde a a suacrena ou o seu preconceito.

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    Y]

    31 de julho de 1935

    - Foi Wells que, em uma das suas audaciosas fantasias, descreveu o vale escuro e tristeonde um punhado de homens havia' perdido as faculdades visuais. Tudo para eles era amesma noite uniforme, onde se arrastavam como sombras da vida.

    As geraes se haviam sucedido incessantemente, os sculos passaram e aqueles seresapagaram da lembrana as tradies dos antepassados que lhes falavam do estranho poderdos olhos, os quais, em seus organismos, nada mais eram que duas conchas de treva.

    O mundo para eles estava circunscrito quela priso escura. Os troves e o vozerio

    lamentoso dos ventos da tarde significavam, para a sua acuidade auditiva, as advertnciasdas bruxas que povoavam o seu deserto, e o chilrear dos passarinhos o suave consolo quelhes prodigalizavam os gnios carinhosos e alegres.

    Eis, porm, que, um dia, desce ao vale misterioso um homem que v. Fala aos filhos datreva das grandes maravilhas do mundo, dos tesouros amontoados nos seus imprios, dasfaiscantes grinaldas de luz dos plenilnios, do entusiasmo colorido das auroras de primavera,de tudo o que as mos dadivosas do Senhor puseram nas pginas imensas do livro daNatureza, para o encanto fugitivo dos homens.

    Em resposta, porm, ouve-se no calabouo um clamor de gargalhadas e de apreenses.

    O homem da noite examina com as suas mos o homem do dia e supe descobrir a origemdos seus disparates, descrevendo coisas inverossmeis para ele, atribuindo aos seus olhos acausa da sua loucura, concluindo pela necessidade de se lhe arrancarem esses rgosincmodos, como excrescncias daninhas.

    Essa fantasia aplicvel ao mundo terreno, em se tratando das verdades novas. Eu seidisso porque tambm perambulei entre as furnas sombrias desse vale de treva misteriosa,onde se renem os que tiveram a infelicidade de perder os olhos da1ma, desviando-se doprogresso moral.

    Envergando a minha camisa pobre na penitenciria do mundo, ri-me dos que me vinhamcontar as maravilhas deslumbrantes da ptria das almas. E, readquirindo os meus olhos nospases da Morte, aonde no cheguei a encontrar as guas tenebrosas do Trtaro e doEstige, venho hoje, como o viajante incompreendido, falar aos que so objeto da aoinibitria de uma cegueira cruel.

    No acredito na compreenso dos outros, com respeito aos meus argumentos de agora. Ummorto nada tem que fazer no mundo daqueles que se presumem os nicos sobreviventes do

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    Universo e preferi, por isso, o retraimento, quando os jornais abriram as suas colunas aosdebates em torno das minhas palavras pstumas, recompensa justa ao meu pssimo gostode voltar a essa priso nevoenta da Vida.

    Cheguei mesmo a ponderar que, na passagem evanglica em que o Senhor no permitiu a

    caridosa ateno de Lzaro para com a splica do Rico, no foi com o objetivo de justi-losna balana do mrito e do demrito. Ainda a, nessa hora de surpresas da lei dascompensaes, no poderia o Senhor fazer a apologia da indelicadeza. Nem o Rico voltoudas labaredas fumegantes da sua conscincia culpada e nem o Pobre do seu banquete dedelcias, porque no valeria a pena transpor-se imensurveis distncias para dizer aosencarnados apenas aquilo que constitui para o seu entendimento uma verdade inacessvel.

    Muito antes de Hermes Tot, os homens j se curvavam ante os mistrios indevassados daMorte. Todos conhecem as suas realidades terrveis. Alexandre tinha conhecimento de que,sob o seu ltego impiedoso, teria de apodrecer, apesar da opulncia da sua glria, da pompade suas conquistas, tendo as suas cinzas nobres confundidas, talvez, com a poeira do ltimodos miserveis.

    Mas, se h essa vida onde predominam a Justia e o Amor, com o divino caracterstico daeternidade esplendorosa, os homens esto absortos no Letes, afogados na carne parachorar e esquecer.

    Os vivos so os vivos. Os mortos so os mortos. Toda a lgica da cincia humana estnessas frases curtas. Quando, porm, me entregava aos solilquios do meu esprito, quenunca se considerou um vencido, ouvi a voz solene dos gnios que velam por ns dasregies azuladas para onde se elevam todas as nossas aspiraes como fios de rosa e deouro:

    - "No desanimes, tu que vieste da luta insana na amargurada existncia das provas! Levaaos teus irmos que sofrem o lenitivo da tua mensagem!... Dize-lhes da Misericrdia de Deuse da Suprema Justia que rege os destinos! Se, na Terra, inmeros Espritos se perdem nosdesfiladeiros do orgulho e da impiedade, lembra o microcosmo em que viveste, onde os maispesados tributos so pagos ao Cu, em splicas e esperanas..."

    Energias novas infiltraram-se no meu ser.

    Uma atrao incoercvel conduziu-me a Sebastianpolis, que faiscava. As luzes do diaarrancavam das suas praias uma paisagem fulgurante.

    E gritei a todos, do alto do meu deslumbramento:

    - "No me vem?.. Eu estou vivendo sem a tutela de espritos malignos. Quase j no soumais o homem carrancudo e triste, fechado na sua amargura de sofredor. verdade que nopoderei comparecer s reunies de Espiritismo, como s sesses das quintas-feiras na

    Academia; mas, a morte no aniquilou a minha vida. Penso, luto e sofro como dantes,crendo, porm, na eternidade luminosa!. . ."

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    Ningum, no entanto, me ouvia. No pude fazer-me sentir nas avenidas ruidosas,regurgitando de transeuntes, parecendo-me, sob a influncia das impresses fsicas, queestava prestes a ser esmagado pelos automveis de luxo.

    Na minha desiluso, porm, ouo uma voz humilde e saltitante: .

    - Olhem as Mensagens de Alm Tmulo!...

    Mensagens de Humberto de Campos!...

    Era a figura mida do Vendedor de jornais.

    Mos generosas entendiam,-lhe os seus nqueis em troca da minha lembrana.

    O seu mercado, nesse dia, foi certamente farto de compensaes, porque um sorrisotriunfante lhe aflorava nos lbios, enfeitando-lhe o corpo magrinho.

    Bastou a tua alegria, oh! Menino amargurado dos morros que s triste ornamento da CidadeMaravilhosa, para que eu me sentisse compensado de muitas labutas, porque, se os meuscompanheiros no me compreenderam no patrimnio rico da sua intelectualidade, tu tivestenesse dia, em memria do meu humilde nome, um pouco de alegria, de conforto e de po.

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    W F

    5 de agosto de 1935

    Dizem que os fantasmas dos mortos tm preferncia pelas sombras da noite, para trazeremaos vos um reflexo esbatido do mistrio em que se lhes fecharam os olhos. Em todos oslugares, conhece-se a histria das almas aflitas, que, agrilhoadas ao mundo pelopensamento obsedante acerca dos que ficaram para trs, regressam dos orbesindevassados, onde quase todas as religies colocaram o seu inferno e o seu cu.

    Eu no venho, nessa "hora que apavora", copiando as deliberaes das "damas brancas",que surgem nas casas solarengas como abantesmas de luar e de neblina, contrastando coma pesada escurido da meia-noite.

    at muito cedo para que um "morto" aparea, contrariando as opinies gerais. Ainda hrstias de sol evadindo-se entre os arvoredos, como as rolas morenas e ariscas fugindo noite cheia de sombras. H uma grandiosa placidez na paisagem que se aquieta comoovelha mansa para ouvir a voz carinhosa do pastor. Vem aos olhos do meu pensamentoaquele quadro de h dois mil anos. Quando o Cristo pregou o Sermo da Montanha,especificando as bem-aventuranas celestes, devia ser assim o crepsculo. A mesma pazevanglica, os mesmos perfumes entornando-se da taa imensa do cu, a mesmaesperana florindo no corao atormentado dos homens, bedunos extenuados dessesdesertos. Um alvoroo suave de recordaes me conduz ao passado. . .

    debalde, porm, essa tentativa de confinarmos a Palestina nas montanhas do serto

    brasileiro. Se verdade que os Espritos sempre falaram sobre os pontos alcantilados daTerra, como no Sinai e no Tabor, ns no somos o. Divino Mestre. H quem afirme que ns,os desencarnados, somos precursores, como Joo Batista. Mas, ainda no encontrei aquiviva alma nessa situao especialssima. Coro os que hoje andam a atribulados com oprogresso, estamos longe da poca messinica, em que os homens puros, para viverem soba guarda de Deus, nada mais precisavam que um cntaro de mel.

    Mas, no venho hoje para tecer consideraes dentro da mstica religiosa.

    Venho para falar a quantos estranham as minhas palavras depois da morte, admirando-se,

    de que eu no aparea clamando perdo e misericrdia, penitenciando-me dos maisnefandos pecados.

    Desejariam que o Senhor derramasse sobre mim todas as suas cleras sagradas; todas astorturas do Averno seriam poucas para me consumir a alma. Os vermes que corroeram ocorpo leproso do patriarca da Bblia seriam, para as minhas culpas, como leves carcias.Meus tormentos de Alm-Tmulo deveriam exceder os de Tntalo. E tudo porque andei

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    espalhando umas anedotas lidas pelas conscincias que, condenando-me hoje l das suassacristias, vivem pensando no Cu, sentindo na boca um gosto rubro de pecado.

    So as almas imaculadas que se esqueceram das minhas feies humanas, olvidando queos palhaos tambm divertem o pblico para conquistar os vintns negros da vida. Se

    existem a os que se confortam no luxo dos seus automveis, deslizando no asfalto dasavenidas, outros, para baterem porta de uma padaria, preciso que hajam passadoatravs de um picadeiro.

    J tive ocasio de afirmar que no encontrei o paraso muulmano.

    Encontrei, nesse "outro mundo", a minha prpria bagagem. Meus pensamentos, minhasobras, frutos dos meus labores, da minha regenerao no sofrimento. Sem estar na beatitudedo Cu, no conheo igualmente a topografia do inferno. Os uivos de Crbero ainda noecoaram aos meus ouvidos. O "nessun maggior dolore", que Dante escutou dos lbios deFrancesca da Rimini, em sua peregrinao pelas masmorras do tormento, constituiuprovavelmente um resultado da perturbao dos seus nervos auditivos, porque eu afirmo ocontrrio. No h maior prazer que recordar, na paz daqui, as nossas dores na Terra.

    E todos aqueles que vm ribalta, lamentando o meu relativo sossego, cuidem de conservara sua pureza. A Terra to inada de abismos que, s vezes, procurando olhar em excessopelos que nos acompanham, costumamos cair neles.

    Eu sou, de fato, grande culpado, no pelos meus esgares de caveira para arrancar o riso dosoutros, mas diante da minha conscincia, pela minha teimosia e incompreenso referentesaos problemas da Verdade. Todavia, Deus a misericrdia suprema e, sem me acorrentaras colunas incandescentes, j prendeu meu corao de filho prdigo nas algemas suaves doseu amor.

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    W W

    11 de agosto de 1935

    possvel a estranheza dos que vivem na Terra, com respeito atitude dos desencarnados,esmiuando-lhes as questes e opinando sobre os problemas que os inquietam.

    lgico, porm, que os recm-libertos do mundo falem mais com o seu cabedal deexperincias de passado, do que com a sua cincia do presente adquirida custa defaculdades novas, que o homem no est ainda altura de compreender.

    Podem imaginar-se, na Terra, determinadas condies da vida sobre a superfcie de Marte;mas que interessam, por enquanto, ao mundo semelhantes descobertas, se os enigmas que

    o assoberbam ainda no foram decifrados? Para o exilado da Terra no vale a psicologia dohomem desencarnado. Tateando na priso escura da sua vida, seria quase um crimeaumentar-lhe as preocupaes e ansiedades. Eu teria muitas coisas novas a dizer; todavia,apraz-me, com o objeto de me fazer compreendido, debruar nas bordas do abismo em queandei vacilando, subjugado nos tormentos, perquirindo os seus logogrifos inextricveis, paraarrancar as lies da sua inutilidade.

    Tambm o homem nada tolera que venha infringir o metro da sua rotina.

    Presumindo-se rei da Criao, no admite as verdades novas que esfacelam a sua coroa deargila.

    Os mortos, para serem reconhecidos, devero tanger a tecla da mesma vida queabandonaram. Isso intuitivo.

    O jornalista, para alinhavar os argumentos da sua crnica, busca os noticirios, aproveita-sedos acontecimentos do dia, tirando a sua ilao das ocorrncias do momento.

    E meu esprito volve a contemplar o espetculo angustioso dessa Abissnia abandonada noseio dos povos, como o derradeiro reduto da liberdade de uma raa infeliz, cobiada peloimperialismo do sculo, lembrando-me de Castro Alves nas suas amarguradas Vozes da

    frica":

    Deus, Deus, onde ests que no respondes?

    Em que mundo, em que estrela tu te escondes,

    Embuado nos cus?

    H dois mil anos te mandei meu grito,

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    Que embalde, desde ento, corre o infinito.

    Onde ests, Senhor Deus?

    Da Roma poderosa partem as caravanas de guerreiros.Cartago agoniza no seu desgraado

    herosmo. Pblio Cornlio consegue a mais estrondosa das vitrias. Os crebros dospatrcios ilustres embriagam-se no vinho do triunfo; e nas galeras suntuosas, onde as guiassimbolizam ,o orgulhoso poder da Roma eterna, lamentam-se os escravos nos seusnefandos martrios.

    Os Csares enchem a cidade das sabinas de trofus e glrias. Todos os deuses sovenerados. Os pases so submetidos e os povos entoam o hino da obedincia senhora domundo.

    J no se ouve a melodiosa flauta de Pan nos bosques da Tesslia, e nas margens do Niloapagam-se as luzes dos mais suaves mistrios.

    Vtima, porm, dos seus prprios excessos, o

    grande imprio v apressar-se a sua decadncia. No esboroamento dos sculos, ainvencvel potncia dos Csares um monto de runas. Sobre os seus mrmores suntuososcrescem as destruies.

    Roma dormiu o seu grande sono.

    Ei-la, contudo, que desperta.

    Mussolini deixa escapar um grito do seu peito de ferro e a Roma antiga acorda do letargo,reconhecendo a perda dos seus imensos domnios.

    Urge, porm, recuperar o poderio, empenhando-se em alargar o seu imprio colonial.

    Onde e como?

    O mundo est cheio de leis, de tratados de amparo recproco entre as naes.

    A Frana j ocupou todos os territrios ao alcance das suas possibilidades, a Alemanha estfortificada para as suas aventuras, o Japo tem as suas vistas sobre a China e a Inglaterra,calculista e poderosa, no pode ceder um milmetro no terreno das suas conquistas.

    Mas, Roma quer a expanso d sua fora econmica e prepara-se para roubar a derradeirailuso de um povo desgraado, ao qual no basta a lembrana amarga dos cativeirosmultisseculares, julgando-se livre na obscura faixa de terra para onde recuou, batido pelacrueldade das potncias imperialistas.

    Que mal fizeste civilizao corrompida dos brancos, pequena Abissnia, grande pelaexpresso resignada do teu ardente herosmo?!

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    Como pudeste, das areias calcinantes do deserto, onde apuras o teu esprito de sacrifcio,penetrar nas instituies europias, provocando a fria das suas armas?

    Deixa que passem sob o teu sol de fogo as hordas de vndalos, sedentas de chacina e desangue.

    Sobre as tuas esperanas malbaratadas derramar o Senhor o perfume da sua misericrdia.Os humildes tm o seu dia de bem-aventurana e de glria.

    No importa sejas o joguete dos caprichos condenveis dos teus verdugos, porque, sobre omundo, todas as frontes orgulhosas desceram do pinculo da sua grandeza para oesterquilnio e para o p.

    Se tanto for preciso, recebe sobre os teus ombros a mortalha de sangue, porque, junto domaravilhoso imprio da Civilizao apodrecida dos brancos, ouve-se a voz lamentosa de umnovo Jeremias: - Oh! Jerusalm!... Jerusalm!...

    .

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    18 de agosto de 1935

    Tive ensejo de afirmar a no mundo que, se algum dia conseguisse liquidar todo o meu dbitopara com a terra maranhense e o Senhor decidisse mergulhar meu esprito no Letes da carne, eudesejaria ser paulista ou baiano.

    So Paulo e Bahia foram os dois braos fortes que me ampararam na provao. Minha dvidapara com ambos sagrada e irresgatvel. Era do seio afetuoso da Bahia, terra me do Brasil,que me chegavam os brados de incitamento para a luta; e dos celeiros fartos e generosos deSo Paulo vinha a maior parte do meu po.

    Em seu territrio vivem os meus melhores amigos e do santurio do seu afeto subiram paraDeus, em favor do escritor humilde e enfermo, as preces mais comovedoras e mais sinceras, as

    quais no lhe iluminaram apenas as estradas pedregosas da Vida, mas constituram igualmenteuma lmpada suave no seu caminho da Morte.

    Ignoro quando o Senhor resolver o retorno do meu esprito aos tormentos da Terra, mas quero,antes de meditar nos calabouos da carne, falar do reconhecimento do meu corao.

    Todas as coisas do Brasil falam particularmente nossa alma: Piratininga , porm, o poema deouro e de ao das energias do seu povo. Sua histria, dentro da histria da Ptria, umaafirmao gloriosa de herosmo sagrado. O mesmo esprito de liberdade e de autonomia, quenos primrdios de sua organizao lhe motivou o desejo de aureolar a fronte de Amador Buenocom uma coroa de rei, emancipando-se da sua condio subalterna, trabalha hoje, como

    trabalhou no passado, para eternizar com o brao realizador a epopia da sua grandeza.Entre as energias moas da terra h um delrio contagioso de ao e de trabalho. O esforocarinhoso do homem une-se exuberncia da seiva e So Paulo - desfralda, nas linhasvanguardeiras, o lbaro do seu progresso e das suas conquistas. Do conforto de suas cidadesmodernas eleva-se para o cu a orao do labor que Deus escuta, premiando-lhe a operosidadecom as alegrias da fartura.

    E dizem que Anchieta, ainda hoje, em companhia daqueles que lanaram a primeira pedra nabase do glorioso edifcio piratiningano, passeia, entre as bnos dos seus cafezais e das suasestradas, enviando sagrada exortao aos que pelejam. Ele, que soube aliar, no mundo, aenergia do homem s virtudes do apstolo v do espao infinito, a sublimidade da sua obra, e

    quando se aproxima das praias antigamente desertas e dos lugares onde as florestasdesapareceram, sob os milagres do progresso, as juritis morenas da terra fremem as asas dearminho, tecendo um plio inesperado para cobrir a fronte do homem prodigioso que lhes levou apalavra do Evangelho.

    Abenoam-no das alturas os indgenas redimidos pela sua fraterna solicitude, e, sob a proteoafetuosa das aves, Anchieta sorri, contemplando a sua Piratininga que trabalha e floresce.

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    Y] ]

    23 de agosto de 1935

    Dolorosa e comovedora a carta dessa mulher maranhense que te chegou s mos, trazidanas asas de um avio trepidante e ruidoso.

    Me desesperada, apela para os sentimentos de paternidade que no me abandonaram notmulo, e grita aflitivamente corno se as suas letras tremidas fossem vestgios arroxeados dosangue do seu corao:

    Eu peo a Humberto de Campos que, mesmo do Alm, salve o meu filho! Ele, que no seesqueceu dos que deixou na Terra, no pode negar urna esmola minha alma de meextremosa!

    E eu me lembro, comovido, dos apelos que me eram dirigidos pelos sofredores, nosderradeiros tempos da minha vida, enquanto eu naufragava devagarzinho no veleiro da Dor,entre as guas pesadas do oceano da Morte.

    Eu daria tudo para enviar, a essa mulher sofredora da terra que foi minha, a certeza de que oseu filho uma criatura predileta dos deuses. Tudo faria para imitar aquelas mos ternas emisericordiosas que descansaram sobre a fronte abatida do rfo da viva de Naim,ressuscitando para um corao maravilhoso de Me as energias do filho que padece sob asprovaes mais penosas.

    A Morte, porm, no afasta do nosso caminho a viso estranha da fatalidade e do destino.H um determinismo no cenrio das nossas existncias, criado por ns mesmos. O mal, como seu cortejo de horrores, no est dentro dessa corrente impetuosa e irrefrevel, mas todosos seus elos so formados pelos sofrimentos.

    Os homens de barro tm de batalhar a vida inteira, repelindo o Crime e o Pecado, masinevitavelmente andaro atolados no pantanal da Dor e da Morte.

    O que mais me pungia, depois de haver perquirido as lies dos sbios da, era a inutilidadedos seus argumentos ante as determinaes irrevogveis do destino. Aps haveratravessado as estradas da ignorncia despretensiosa, no limiar do imenso palcio das

    experincias alheias, presumia encontrar a soluo dos enigmas que confundem o crebrohumano. Mas, em todas achei o mesmo tormento, as mesmas ansiedades angustiosas.

    Frente a frente ao pulso inflexvel da Morte, toda a cincia do mundo de uma insignificnciairremedivel. Nesse particular, todo o portentoso edifcio da filosofia de Pitgoras no valiamais que as extravagantes teorias doutrinrias propaladas no mundo.

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    Todos quantos laboram em favor do homem da Terra esbarram nos muros indevassveis daSombra. O Cristo foi o nico que espalhou, na masmorra da carne, uma claridade suave,porque no se dirigiu criatura terrena, mas criatura espiritual.

    Assombrava-me o espetculo pavoroso do mundo, onde as leis, liberalssimas para a

    aristocracia do ouro e severas em face dos infortunados que palmilham o caminho espinhosocom os ps descalos e feridos, refletem o carter humano com os seus incorrigveisdefeitos.

    E, despertando de longos pesadelos na porta de claridade da sepultura, a minha primeirainquirio, com respeito aos problemas que me atormentavam, foi uma pergunta dolorosaacerca dos contrastes amargos do mundo. Ainda aqui, porm, os gnios carinhosos daSabedoria abenoam, a sorrir, os que os interpelam, porque a decifrao dos enigmas dasnossas existncias est em ns mesmos. Apesar do destino inflexvel, h uma fora em nsque dele independe, como origem de todas as nossas aes e pensamentos. Somosobreiros da trama caprichosa das nossas prprias vidas. As mos, que hoje cortam asfelicidades alheias, amanh se recolhero como galhos - ressequidos nas frondes verdes daVida. As iniqidades de um Herodes podem desaparecer sob o manto de renncias de umVicente de Paulo. O sensualismo de Madalena foi expurgado nos prantos amargosos daexpiao e do arrependimento. Quando pudermos ver o passado em todo o seudesdobramento, depois de contemplarmos a Messalina em sua noite de regalados prazeres,v-la-emos de novo, arrastando-se nas margens do Tibre, enfiada num vestido horripilantede negras monstruosidades.

    Faltou-me na vida terrena semelhante compreenso, para entender a Verdade.

    Que essa pobre me maranhense considere esses realismos que nos edificam e nos salvam.

    E, como um anjo de Dor cabeceira do seu filho, eleve o seu apelo ao corao augustodAquele que remove as montanhas com o sopro suave do seu amor. Sua orao subir aoInfinito como um clice de perfume derramado ao claro das estrelas que enfeitam o tronoinvisvel do Altssimo, e, certamente, os anjos da Piedade e da Doura levaro a sua prece,como cndida oferta da sua alma sofredora, magnanimidade daquela que foi a RosaMstica de Nazar. Ento, nesse momento, talvez que o corao angustiado da me quechora, na Terra, se ilumine de uma claridade estranha e misericordiosa. Seu lar desditoso ehumilde ser, por instantes, um altar dessa luz invisvel para os olhos mortais. Duas mos denvoa translcida pousaro como aucenas sobre a sua alma oprimida e uma voz carinhosa,embaladora, murmurar aos seus ouvidos:

    "Sim, minha filha!... ouvi a tua prece e vim suavizar o teu martrio, porque tambm tive umfilho que morreu ignominiosamente na cruz."

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    V ` V

    28 de agosto de 1935

    Quando ainda no mundo, no me era dado avaliar o "tte--tte" amigvel dos Espritos, maneira dos homens, apenas com a diferena de que as suas palestras no se desdobram porta dos cafs ou das livrarias.

    E com surpresa que me reno queles que estimo, quando se me apresentamoportunidade: para uns dedos de prosa.

    Estvamos ns, quatro almas desencarnadas como se fssemos no mundo quatro figurasapocalpticas, discutindo ainda as coisas mesquinhas da Terra, e a palestra versava

    justamente sobre a evoluo das idias espritas no Brasil.

    - "Infelizmente - exclama um do grupo, provecta figura dessas doutrinas, desencarnado h

    bons anos no Rio de Janeiro - o que infesta o Espiritismo em nossa terra o mau gostopelas discusses estreis. O nosso trabalho contnuo para que muitos confrades no seengalfinhem pela imprensa, demonstrando-lhes, com lies indiretas, a inutilidade das suaspolmicas. Mesmo assim, a doutrina tem realizado muito. Suas obras de caridade cristesto multiplicadas por toda parte, atestando o labor do Evangelho."

    Foi lembrada, ento, a figura respeitvel de Bittencourt Sampaio, no princpio da organizaoesprita no pas, recordando-se igualmente a covardia de alguns companheiros que,

    guindados a prestigiosas posies na sociedade e na poltica, depressa esqueceram o seuentusiasmo de crentes, bandeando-se para o oportunismo das ideologias novas

    Ia a conversao nessa altura, quando o Doutor... C..., um dos mais caridosos facultativos doRio, recentemente desencarnado e cujo nome no deve mencionar, respeitando ospreconceitos que se estendem s vezes at aqui, explicou:

    - pena que venhamos a compreender to tarde o Espiritismo, reconhecendo a sua lgica egrandeza moral s depois do nosso regresso de mundo.

    "Ns, os mdicos, temos sempre o crebro trabalhado de canseiras, na impossibilidade de

    resolver o problema da sobrevivncia.. certo que nunca se encontrar o ser na autpsia deum cadver mas, tudo na vida uma vibrao profunda de espiritualidade. Como, porm, aCincia vigia as sua: conquistas do Passado, ciosa dos seus domnios ainda que sejamosinclinados s verdades novas, somos obrigados, muitas vezes, a nos retrair, temendo osZaratustras da sua infalibilidade.

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    "Eu mesmo, nos meus tempos de clnica no Rio de Janeiro, fui testemunha de casosextraordinrios, desenrolados sob as minhas vistas. Todavia, fui tambm presa docomodismo e do preconceito."

    E o Dr. C. . ., como se mergulhasse os olhos no abismo das coisas que passaram, continuou

    pausadamente:- "Eu j me encontrava com residncia na praia de Botafogo, quando lavrou na cidade umsurto epidmico de gripe, alis com mnima repercusso, comparado epidemia de aps aguerra. E como sempre contava, entre aqueles que recorriam minha atividade profissional,diversos amigos pobres dos morros e particularmente da Prainha, foi sem surpresa que,numa noite-fria e. nevoenta, abri a porta para receber a visita de uma garota de seus dezanos, humilde e descala, que vinha, trmula e' acanhada, solicitar os meus servios.

    - "Doutor - dizia ela -, a mame est muito mal e s o senhor pode salv-la. . . Quer fazer acaridade de vir comigo?"

    "Impressionaram-me a sua graa infantil e o estranho fulgor dos olhos, bem como o sorrisomelanclico que lhe brincava na boca mida.

    "Considerei tudo quanto esperava a minha ateno urgente e procurei convenc-la daimpossibilidade de a seguir, prometendo atend-la no dia imediato. Todavia, a minhapequena interlocutora exclamou com os olhos rasos dgua:

    - "Oh! doutor, no nos abandone. Ningum, a no ser a proteo de Deus, vela por ns nestemundo. Se o senhor no nos quiser auxiliar, a mame estar perdida e ela no pode morreragora. Venha!... o senhor no teve tambm uma me que foi o anjo de sua vida?"

    A ltima frase dessa menina tocou fundo o meu corao e lembrei-me dos temposlongnquos, em que minha me embalava os sonhos da minha existncia, comprando-mecom o suor da sua pobreza honesta os alfarrbios e o po.

    Eu devia auxiliar aquela pequena, fosse onde fosse. A Medicina era o meu sacerdcio edentro da noite chuvosa que amortalhava todas as coisas, como se o Cu invisvel chorassesobre as trevas do mundo, o txi rolava conosco, como fantasma barulhento, atravessandoas ruas alagadas e desertas. Aquela menina, triste e silenciosa, tinha os olhos brilhantes,perdidos no vcuo. Seu corpo magrinho recostava-se inteiramente nas almofadas, enquantoos ps minsculos se escondiam nas franjas do tapete. Lembrando as suas frasessignificativas, quis reatar Q fio do nosso dilogo: "H muito tempo que sua me se achadoente?"

    - "No, senhor. Primeiro, fui eu; enquanto estive mal, tanto a mame cuidou de mim que atcaiu cansada e enferma, tambm."

    - "Que sente a sua me?"

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    - "Muita febre. As noites so passadas sem dormir. s vezes, grito para os vizinhos, masparece que no me ouvem, pois estamos sempre as duas isoladas... Costumamos chorarmuito com esse abandono; mas, diz mame que a gente precisa sofrer, entregando a Deuso corao."

    - "E como soube voc onde moro?"- "Foi a visita de um homem que eu no conhecia. Chegou devagarzinho nossa porta,chamando-me rua, dizendo-se amigo que o senhor muito estima; e, ensinando-me a suacasa. Prometeu que o senhor me atenderia, porque tambm havia tido uma me boa ecarinhosa."

    "Nosso dilogo foi interrompido. A pequena enigmtica mandou parar o carro. Apontou olocal de sua residncia, estendendo a mo descarnada e mida e, com poucos passos,batamos porta modesta de uma choupana miservel.

    - "Espere, doutor - disse ela -, eu lhe abrirei a porta passando pelos fundos."

    "E, j inquieta, desembaraada, desapareceu das minhas vistas. Uma taramela deslizou comcuidado, no meio da noite, e entrei no casebre. Uma lamparina bruxuleante e humilde, queiluminava a saleta com o seu claro plido, deixava ver, no catre limpo, um corpo de mulher,desfigurado e disforme. Seu rosto, sulcado de lgrimas, era o atestado vivo das mais cruisprivaes e dificuldades. Nobe estava ali petrificada na sua dor. Todos os martrios seconcentravam naquele pardieiro abandonado. S minhas primeiras perguntas, respondeunuma voz suave e dbil:

    - "No, doutor, no tente arrancar minha alma desesperada das garras da Morte! Nuncaprecisei tanto, como agora, deixar para sempre o calabouo da Vida."

    "E prosseguia, delirando: - "Nada me resta. . .Deixem-me morrer!. . ."

    "Sobrepus, porm, minha voz s suas lamentaes e exclamei com energia:

    - "Minha senhora, vou tomar todas as providncias que o seu caso est exigindo. Hojemesmo cessar esse desamparo. Urge reanimar-se! Resta-lhe muita coisa no mundo, resta-lhe essa filha afetuosa, que espera o seu carinho de me extremosa!. . ."

    - "Minha filha? :- retrucou aquela criatura, meio-mulher e meio-cadver, enquanto duas

    grossas-lgrimas feriram fundo as suas faces empalidecidas - minha filha est morta desdeanteontem!. . . Olhe, doutor, a no quarto e no procure devolver a sade a quem tantonecessita morrer!. . .

    "Ento, espantado, passei ao apartamento contguo. O corpo de cera daquela crianamisteriosa, que me chamara nas sombras da noite, ali estava envolvido em panos pobres eclaros. Seu rosto imvel, de boneca magrinha, era um retrato da privao e da fome. Os

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    grandes olhos fulgurantes estavam agora fechados, e na boca mida pairava o mesmosorriso suave das almas resignadas e tristes.

    "Eu deslizara nas avenidas com uma sombra dos mortos."

    E, cobrindo melancolicamente o painel das suas lembranas, o nosso amigo terminou:- "Decorridos tantos anos, ainda ouo a voz do fantasma pequenino e gracioso; e, na luta da

    Vida, muita vez me ocorreu o seu conselho suave, que me ensinou a sofrer, entregando aDeus o corao. "

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    7 de setembro de 1935

    O Brasil celebra hoje o seu "Dia da Ptria". As bandeiras ouro e verde sero desfraldadasaos quatro ventos. Nas grandes cidades sero ouvidos os ecos dos clarins, nas paradasmilitares, e uma vibrao de entusiasmo percorrer o corao dos patriotas.

    Sei tambm que muitas personalidades desencarnadas, que antigamente lutaram pelaorganizao da nacionalidade, hoje se voltam para So Sebastio do Rio de Janeiro, ondepretendem participar das cerimnias comemorativas; muitos dos chefes tapuias e tupis,legtimos donos da terra conquistada pelos portugueses, ainda no espao no desdenharoigualmente de passear os olhos pelo cenrio das suas passadas existncias, recordando

    hoje as suas tabas solitrias, os seus costumes, que os brancos perverteram, a imensidade

    das selvas e as belezas melanclicas das suas praias desertas.

    Todavia, lembrando Paicols, reconhecero alguns benefcios de sua influncia, ao lado deseus inumerveis defeitos. Ho de contemplar, enlevados, a Avenida Central, a Avenida

    Atlntica, a praia de Copacabana, o Rssel, o Leblon, as obras de saneamento e o casarioimenso da cidade maravilhosa, derramando-se pelos vales, pelas serras e plancies, numaalucinao de progresso vertiginoso. Os homens e os Espritos desencarnados se reuniro,celebrando a data festiva.

    Essas solenidades so sempre lindas e alegres, quando encaradas dentro da sua formosasignificao.

    As ptrias devem ser as casas imensas das famlias enormes. Unidas fraternalmente,realizariam o sonho da Cana das Escrituras, na face da Terra. Contudo, quanto maisavanou a civilizao nas suas estradas, mais o conceito de ptria foi viciado . na essnciada sua legtima expresso.

    O progresso cientfico eliminou quase todos os problemas da incomunicabilidade. Aradiotelefonia fez do Planeta uma sala minscula, onde os pases conversam, como aspessoas. Os paquetes para as. viagens transocenicas so cidades flutuantes, como hfensgigantescos, unindo os povos. As mquinas areas, aperfeioadas e admiravelmentedispostas, sulcam os ares devorando as distncias. Por toda parte rasgam-se estradas. H

    uma nsia de comunho em todas as coisas. Tudo tende a unir-se, aproximando-se.

    Entretanto, nunca as ptrias estiveram to afastadas umas das outras, como agora. Jamaisse fez uma apologia to grande da poltica de isolamento. As ptrias andam esquecidas deque a existncia depende de trocas incessantes. Os maiores. desequilbrios financeiros eeconmicos so infligidos s naes, no seu egosmo coletivo.

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    Deslumbrada, num perodo esplendoroso de sua evoluo, e sentindo-se no limiar detransformaes radicais em todos os setores de sua atividade, a sociedade humana escuta avoz dos seus gnios e dos seus apstolos, desejando eliminar as fronteiras de todos osmatizes que separam os seus membros, fundindo-se nesse abrao de Unidade que elacomea a compreender. Mas, a poltica representa o passado multimilenrio. Os governos se

    concentram base da fora e o antagonismo que impera entre todos os elementos daatualidade apresenta um espetculo interessantssimo. Todos os pactos de paz somentirosos. Haver maior contradio que a de um instituto de paz, que deve ser pura eespontnea, guardado por exrcitos armados at os dentes?

    Em todos os sistemas polticos dos tempos modernos predominam, apenas, os pruridos dahegemonia internacional. Em virtude de semelhantes disparates, a guerra inevitvel. Nohaver confabulaes diplomticas que a eliminem, por enquanto, d caminho dos homens.E a guerra de agora ser mais dolorosa e terrvel. Todas as conquistas da cincia seromobilizadas a seu servio. A bacteriologia, a eletricidade, a mecnica, a qumica, todos oselementos sero requeridos pelo polvo insacivel.

    Deus criou a Paz, o Amor, a Fraternidade,mas os homens criaram os seus prprios destinos.Confundidos no labirinto de suas maldades, s tm podido iluminar os caminhos da Vidacom os fachos incendiados da Morte.

    Na atualidade, a guerra das ptrias representa a guerra dos sentimentos; porque uma eranova, de fraternidade crist, desabrochar nos horizontes do mundo. Todos os Espritosfalam nessa renovao e ela aparecer, clareando o dia novo da Humanidade. .

    Nessa poca de ouro espiritual, que talvez no venha longe, o mundo entender amensagem de paz do Divino Cordeiro. Uma brisa suave de conforto e de alvio descer doCu sobre as 'frontes atormentadas das criaturas. Terminar o dilvio de expiaes em que ohomem h sculos est envolvido, e um pssaro simblico trar novamente a oliva daesperana.

    E o Brasil que, embora com sacrifcios ingentes, vem colaborando na disseminao damensagem da imortalidade e da esperana, nessa era nova entoar, com as naesirmanadas, o hino da Paz, compreendendo, pela evoluo moral dos seus filhos, a belezamaravilhosa da Ptria Universal.

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    W

    13 de Dezembro de 1935

    Ainda no me encontro bastante desapegado desse mundo para que no me sentissetentado a voltar a ele, no dia que assinalou o meu desprendimento da carcaa de ossos.

    Se o vinte e sete de outubro marcou o meu ingresso no reino das sombras, que a vida da,o cinco de dezembro representou a. minha volta ao pas de claridades benditas, cujas portasde ouro so escancaradas pelas mos poderosas da morte.

    Nessa noite, o ambiente do cemitrio de So Joo Batista parecia sufocante. Havia um "qu"de mistrios, entre catacumbas silenciosas, que me enervava, apesar da ausncia dosnervos tangveis no meu corpo estranho de esprito. Todavia, toquei as flores cariciosas quea Saudade me levara, piedosa e compungidamente. O seu aroma penetrava o meu corao

    como um consolo brando, conduzindo-me, num retrospecto maravilhoso, s minhas afeiescomovidas, que haviam ficado a distncia.

    E foi entregue a essas cogitaes, a que so levados os mortos quando penetram o mundodos vivos, que vi, acocorado sobre a terra, um dos companheiros que me ficavam prximosao bangal subterrneo com que fui mimoseado na terra carioca. .

    - O senhor o dono desses ossos que esto por a apodrecendo? - interpelou-me.

    - Sim, e a que vem a sua pergunta?

    - Ora, que me lembro do dia de sua chegada ao seu palacete subterrneo. Recordo-mebem, apesar de sair pouco dessa toca para onde fui relegado h mais de trinta anos... - Osenhor se lembra? A urna funerria, portadora dos seus despojos, saiu solenemente da

    Academia de Letras, altas personalidades da poltica dominante se fizeram representar nassuas exquias e ouvi sentidos panegricos pronunciados em sua homenagem. Muito trabalhotiveram as mquinas fotogrficas na camaradagem dos homens da imprensa e tudo faziasobressair importncia do seu nome ilustre. Procurei aproximar-me de si e notei que assuas mos, que tanto haviam acariciado o espadim acadmico, estavam inermes e que osseus miolos, que tanto haviam vibrado, tentando aprofundar os problemas humanos,estavam reduzidos a um punhado de massa informe, onde apenas os vermes encontrariamalgo de til. Entretanto, embora as homenagens, as honrarias, a celebridade, o senhor veio

    humildemente repousar entre as tbias e os meros daqueles que o antecederam na jornadada Morte. Lembra-se o senhor de tudo isso?

    - No me lembro bem... Tinha o meu esprito perturbado pelas dores e emoes sucessivas.

    - Pois eu me lembro de tudo. Daqui, quase nunca me afasto, como um olho de Argos,avivando a memria dos meus vizinhos. O senhor conhece as criptas de Palermo?

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