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O Theatro, 01/01/1900

É muito commum dizer-se que o theatro brazileiro está em decadencia, que é necessario reerguel-o, etc., mas a grande verdade é esta: o theatro brazileiro nunca existio. Ha um bom numero de peças theatraes escriptas por patricios nossos, e entre ellas algumas que figurariam dignamente na litteratura de qualquer paiz adiantado; tudo, entretanto, que se tem feito em prol do nosso theatro são tentativas sporadicas, a que faltou a indispensavel perseverança, e não mereceram, infelizmente, a attenção de nenhum governo.

Depois dos famosos mysterios do seculo XVI, escriptos pelo glorioso Anchieta, para entretenimento e catechese de bugres, passaram-se dous longos seculos sem que houvesse noticia de que no Rio de Janeiro a litteratura dramatica se manifestasse por qualquer fórma.

Em meados do seculo XVIII, a fama do popular theatro do Bairro – Alto, de Lisboa, repercutio no Rio de Janeiro, e padre Ventura, mulato intelligente, fundou a Casa da Opera,onde exhibio o repertorio de Antonio José, poeta que só pelo nascimento póde ser considerado brazileiro.

Esse theatro acabou por um incendio, e foi substituido pela Nova Casa de Opera, construida pelo musico e dansarino portuguez Manuel Luiz, muito protegido pelo vice-rei, conde de Avintes, segundo marquez do Lavradio.

Para a Nova Casa da Opera vieram os primeiros actores da metropole que pisaram terras de Santa-Cruz; o padre Ventura servia-se da prata de casa.

Com a retirada do marquez do Lavradio, em 1775, ao qual succedeu Luiz de Vasconcellos, pouco amante de espectaculos, e depois o conde de Rezende, que tinha particular ogeriza por tudo quanto cheirasse a arte, a Nova Cada da Opera desappareceu, e só depois da vinda de D. João VI, em 1808, o Rio de Janeiro teve um theatro.

Aquelle rei, a quem esta cidade tanta deve, fez construir por Fernando José de Almeida o Real Theatro de S. João, e mandou vir de Lisboa duas companhias, uma dramatica e outra lyrica.

Da primeira faziam parte os artistas mais applaudidos de Lisboa, entre os quaes o grande actor comico Victor Porfirio de Borja, cuja tradição ainda perdura; a segunda trazia como regente da orchestra Marcos Portugal, o primeiro musico portuguez daquella epoca.

O theatro foi inaugurado aos 12 de outubro de 1813, e durante dez annos deram-se alli muitos espectaculos lyricos e dramaticos.

A 25 de março de1824 incendiou-se pela primeira vez o S. João, que estava condemnado pelo destino a mais dous incendios.

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Entretanto, em menos de dous annos o theatro foi reconstruido, effectuando-se a reabertura em 22 de janeiro de 1826. Intitulou-se Imperial Theatro S. Pedro de Alcantara.

Fernando José de Almeida mandou vir de Lisboa outra companhia dramatica, na qual figuravam os famosos artistas Manuel e Ludovina Soares; mas o emprezario morreu justamente no dia em que ella aqui chegou. Dessa companhia tambem fazia parte o bailarino Luiz Montani, chefe de uma familia de artistas, pae de Jesuina e avô de Gabriella e Olympia Montani.

D. Pedro I tomou os comicos sob a sua imperial protecção, e elles durante dous annos deram espectaculos regulares, em que foram muito applaudidos; mas a companhia dispersou-se, pudéra! logo depois da revolução de 7 de abril de 1831, e o imperial theatro, que passou a chamar-se Constitucional Fluminense, ficou, por bem dizer, abandonado.

Um grupo de actores do S. Pedro alugou um theatro particular que havia na rua dos Arcos, outro foi dar espectaculos em Nictheroy, e outro ainda, entre os quaes se achavam Manuel Soares e Ludovina, construio o theatro da praia de D. Manuel, depois chamado de S. Januario, e inaugurou-o em 1831.

Um anno antes apparecêra João Caetano dos Santos, que mourejou aqui e alli no thetro de Nictheroy, no do Vallongo (construido expressamente para elle) e no de S. Januario, até que, aos 7 de setembro de 1839, á frente de uma companhia organisada por elle, da qual fazia parte Estella Sezefreda, de quem fez sua esposa, re-inaugurou o Constitucional, que já se intitulava de S. Pedro de Alcantara, titulo que ainda hoje conserva.

No elenco desta companhia figurava o actor José Luiz da Silveira, que ainda ahi esta sadio e bem disposto, carregando galhardamente o peso dos seus oitenta e não sei quantos annos. Ainda hontem o vi.

Naquella noite de 7 de setembro de 1839 foi representada a tragedia Olgiato, de Domingos José Gonçalves e Magalhães, depois visconde de Araguaya... Parecia, realmente, que o theatro brazileiro nascia nessa occasião, mas não nasceu. João Caetano era um grande artista, mas não comprehendeu que estava nas suas mãos a nacionalisação do nosso theatro, que até então vivera, como ainda hoje vive, da litteratura de importação. De Magalhães o que elle mais apreciava eram as traducções das traducções de Ducis, e quando appareceu Luiz Carlos Martins Penna, o creador da comedia nacional, o artista não comprehendeu tambem que esse moço era um predestinado, que João Caetano e Martins Penna haviam nascido para se completarem reciprocamente.

Qual foi o resultado disso? O auctor do Noviço não nos deixou senão farças, levando comsigo para a eternidade, aos 33 annos, todos os seus sonhos de

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arte, e ninguem aponta do genial João Caetano outra creação notavel, em peça brazileira, que não seja o papel de Antonio José na tragedia de Magalhães.

Como houvesse, desde o exodo produzido pela revolução de 89, uma importante colonia franceza n’esta cidade, colonia que mais importante se tornou depois que D. João VI trouxe comsigo alguns artistas notaveis d’aquella nacionalidade, o Rio de Janeiro era constantemente visitado por bons actores francezes, alguns dos quaes edificaram, em 1832, o theatro que se chamou de S. Francisco e se chamava Gymnasio quando ha alguns annos foi transformado em club carnavalesco.

O gosto pelo theatro francez implatou-se devéras na população, e João Caetano, tendo, aliás, musculos para reagir contra o estrangeirismo, deixou-se levar na corrente, e não foi outra cousa senão um Frederick Lemaitre adaptado á scena brazileira.

Pode-se mesmo dizer que elle antipathisava com as peças nacionaes. Por outra forma não se explica o negar-se a pôr em scena o Jesuita, de José de Alencar.

Não ha, até 1889, dramaturgo francez que não fosse traduzido e representado no Rio de Janeiro. O periodo mais notavel do nosso theatro dramatico foi de 1853 a 1860, n’aquelle mesmo Gymnasio sob a direcção de um emprezario brasileiro, o benemerito Joaquim Heleodoro dos Santos, que organisou uma companhia modesta, justamente com o pessoal dissidente da de João Caetano.

Parecia que, effectivamente, se bem que ainda sob a influencia immediata do theatro francez, ia nascer o theatro brasileiro...

Representaram-se no gymnasio peças de José de Alencar, Macedo, Pinheiro Guimarães, Quintino Bocayuva e outros, que deixaram nome; mas pouco durou esse fogo de palha, e quando, alguns annos mais tarde, com a abertura do Alcazar, o Rio de Janeiro foi invadido pela opereta e Offembach começou a reinar como despota em todos os espiritos, desvaneceram-se as ultimas esperanças.

Furtado Coelho, o incomparavel Furtado Coelho, prestou os mais relevantes serviços á arte dramatica no Brazil, e foi, mesmo depois da debâcle, o emprezario e actor que conseguio, com elementos encontrados no proprio paiz, dar-no o theatro litterario; mas não se póde dizer que fizesse o menor esforço para o advento do theatro brazileiro propriamente dito.

Não é que nos faltem aptidões: mesmo depois da invasão alcazarina appareceu França Junior, que foi um continuador de Martins Penna, e appareceram outros.

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Na provincia – e basta citar dous nomes, um do norte – Agrario de Menezes, e outro do sul – Arthur Rocha, na provincia não faltaram bons cultores da litteratura dramatica.

Actores tivemol-os sempre – e ainda alguns existem – ou vindos de Portugal e feitos aqui, como Arêas, Lisboa, Guilherme de Aguiar e tantos outros, ou nascidos no Brazil, como Vasques, Martinho, Galvão, Peregrino, Xisto Bahia, etc.

A vinda ao Brazil de algumas summidades da arte dramatica, universalmente conhecidas, longe de concorrer para que o theatro nacional desabrochasse, produzio um effeito diametralmente opposto. Parece que o publico fluminense não perdôa aos nossos artistas o não serem Rossis, Ristoris, Salvinis, Coquelins e Sarahs Bernhardt.

De um lado a indifferença dos governos e a falta de estimulo; do outro a maldita invenção dos theatros abertos, e o nenhum escrupulo de certos emprezarios, de certos auctores e de certos artistas, foram motivos que se combinaram para que o theatro no Rio de Janeiro chegasse a um estado sobre o qual não insisto para não repetir o que tantas vezes tenho escripto n’esta folha.

Espero, entretanto, que não termine o seculo que vai principiar de hoje a um anno, sem que as leis concernentes ao theatro municipal tenham um começo de execução.

***

O director d’A Noticia pedio-me algumas linhas sobre o movimento do theatro dramatico no Rio de Janeiro durante o seculo, e eu não tenho tempo nem espaço para outra cousa mais alem do que ahi fica.

A. A.

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O Theatro, 11/01/1900

Publicando a estatistica theatral do Rio de Janeiro em 1896, escrevi as seguintes linhas no meu folhetim publicado n’esta folha a 7 de janeiro de 1897: “O que se vai ler é o attestado mais eloquente do descalabro a que chegaram os nossos theatros, e o protesto mais vehemente contra a indifferença do publico e das auctoridades”. Hoje a estatistica é ainda mais dolorosa e pungente, como vão ver:

Durante o anno passado realisaram-se n’esta capital 1.127 espetaculos (menos 187 que em 1898, menos 109 que em 1897, menos 549 que em 1896 e menos 690 que em 1895), os qaues vão descriminados no seguinte quadro:

Teatros/ Mês

Apollo Recreio Sant’Anna Variedades S. Pedro Lucinda Lyrico Eden-Laveadio

noite/dia noite/dia noite/dia noite/dia noite/dia noite/dia noite/dia noite/dia

Janeiro 20 3 23 2 1 0 0 0 2 0 14 2 0 0 17 0

Fevereiro 14 3 15 2 1 0 0 0 0 0 18 1 0 0 0 0

Março 3 0 20 2 0 0 3 0 0 0 16 1 0 0 0 0

Abril 4 1 27 3 0 0 6 0 11 3 18 0 0 0 0 0

Maio 31 1 27 2 4 0 8 2 21 6 12 1 0 0 0 0

Junho 28 1 26 2 29 4 14 1 2 2 0 0 12 0 1 0

Julho 30 5 18 1 27 5 16 1 0 0 6 0 12 4 1 0

Agosto 31 4 22 3 29 4 10 0 23 1 1 0 10 1 0 0

Setembro 28 4 22 2 28 2 16 1 5 1 1 0 1 0 0 0

Outubro 30 4 16 2 8 2 8 1 1 1 1 0 0 0 0 0

Novembro 29 3 12 1 5 2 27 2 1 0 2 0 0 0 0 0

Dezembro 4 1 26 3 1 0 29 3 25 5 2 0 0 0 0 0

Total 282 274 154 148 109 93 48 19

1.427

Convém observar que n’esses 1.127 espetaculos estão comprehendidas algumas representações equestres e acrobaticas.

Segue-se a nomenclatura, por ordem alphabetica, das peças representadas durante o anno, com o numero de representações ao lado do titulo, que será impresso em italico todas as vezes que se tratar de peça exhibida pela primeira vez n’esta capital.

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Dividido convenientemente, comecemos pelas

Oper asAida, 3; Baile de mascaras, 1; Barbeiro de Sevilha, 1; Bohemia, 4;

Carmen,4; Cavalleria rusticana, 7; Fausto,1; Favorita, 1; Fedora, 3; Fra-Diavolo, 1; Gioconda, 3; Guarany (nac.), 5; Huguenotes, 4; Lucia, 1; Manon Lescaut, 5; Mephistofeles, 1; Othelo, 1; Palhaços, 6; Rigoletto, 4; Sansão e Dalila, 6; Sapho, 1; Traviata, 3; Trovador, 2.

Tr agedias, Dr amas e ComediasAnastacia & C., 2; Anjo da meia-noite, 2; Amantes, 9; Amores de Cleopatra,

5; Amor por annexins (nac.), 1; Uma aposta, 4; O badejo (nac.), 2; Um banho frio (ital), 1; A Bexigosa, 10; Borboletismo, 1; Cabana do pai Thomaz, 10; Casa de boneca, 26; Casa paterna (ital.), 1; Capricho feminino, 4; Causa celebre, 9; Cavalheiro particular, 3; Cavalleria rusticana, 2; Uma chavena de chá, 3; Ciumenta (ital), 2; Commissario de policia, 2; Conde de Monte Christo, 10; Crimes do Brandão, 1; Crime honroso, 1; Curas maravilhosas (nac.), 1; Dalila, 4; Dama das Camelias, 9 em port. e uma em ital.; Dar corda para se enforcar, 1; o Defunto (nac.), 1; Demi-monde, 6; De Petropolis a Paris (nac.), 3; Divorciemo-nos, 6; a Dolorosa (ital.), 1; Dom Sebastião, 3; Dona Ignez de Castro, 2; Dous Bebés, 2; Dous proscriptos, 1; Dous surdos, 1; Doutoras (nac.), 2; Em-baixo da escada (ital.), 1; Espada e Noiva, 1; Está cá o Augusto, 1; Estatua de carne, 1; Estranguladoros de Paris, 2; Estréa de uma actriz, 3; Fé, esperança e caridade, 1; Feras de Paris, 1; Fernanda (ital.), 2; Filha de Jephté (ital.), 1; Filha do mar, 8; Filho da noite, 7; Filho de Coralia, 2; Filhos do capitão Grant, 2; o Fiscal dos wagons-leitos, 12 em port. e 2 em ital.; Francillou, 2; Frou-frou (ital.), 1; Gioconda (ital.) 1; Gruta das gaivotas, 4; Guerra aos Nunes, 1; Hamlet (ital.), 2; Herança de odio, 1; Heróe de Chaimite, 2; Homem da mascara negra, 1; Um homem excepcional (ital.), 1; a Honra (ital.), 1; Hotel do Livre Cambio, 8 em port. e 1 em ital.; Independencia da America, 1; Jack, o estripador, 4; Jesuitas em Portugal, 3; João Darlot, 5; João José, 4; José do Telhado, 3; Kean, 3 em port. e 1 em ital.; Ladrões do mar, 2; a Lagartixa, 48; Lenço branco, 7; Os louros (nac.), 8; Maricota ou os effeitos da educação, 4; Maridos na corda bamba, 13; O marquez, 1; Marquez de Torres-Novas, 1; Martuccio e Frontino, (ital.), 1; Mestre de dansa, 1; Mestre de forjas (ital.), 1; Minha mulher não tem chic (ital.), 1; Morgadinha de Val-flôr, 6; Morte civil (ital.), 1; Mulher de Claudio, 4; Mulher, marido e sogra, 3; Mulher para dous, 9; Mulher que deita cartas, 4; Não tem titulo, 2 (presumo que é a mesma comedia representada com o titulo O marquez); Naufragio da fragata “Meduza”, 3; Noites da India, 8; Odette (ital.),

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1; Orphanzinha, 2; Othelo (ital.), 1; O outro (ital.), 1; O Paraiso, 5; A partilha, 3; Pedro, o pescador, 2; Pedro, 1; Pena de morte, 1; Phariseus do templo, 2; Piperlin, 1; P. L. M. ou o crime da estrada de ferro, 6; Poder do ouro, 1; Por força, 1; Pragas do capitão, 1; Que sogra!, 4; Um quiproquó (ital.); Reconciliação (a mesma comedia representada anteriormente com o titulo “O cabelo branco”), 5; O relicario (nac.), 3; Remorso vivo, 10; Revolta no mar, 2; Romance de um moço pobre, 11; Ruy Blas, 1; As sedas do Bon Marché (nac.), 2; Sempre chorando, 1; O senhor Affonso, 10; A sombra do diabo (nac.), 1; Sôra Francisca, 2; Sub-prefeito, 1; Supersticiosos, 1; Surcout, 4; Thereza Raquin, 8; A tia, 2; A Tosca, 15 em port. e 1 em ital.; Trabalho e honra, 1; Tragedias d’alma (ital.), 1; Os tres amores ou o governador de Braga, 2; Trocas e baldrocas (nac.), 3; 29, ou honra e gloria, 1; Voluntario de Cuba, 3; A voz do sangue, 2; Zazá (ital.), 3;? (nac.), 1.

Oper etas, Zar zuelas, Magicas, R ev istas e ParodiasAbacaxi (nac.), 7; Abel-Helena, 3; Adamastor (nac.), 2; Ali-Babá, 6; Amor

molhado, 4; Á procura da felicidade (ital.), 1; A banda de trombetas (hesp.), 2; O barão de Pituassú (nac.), 6; Barba-azul, 14; Los Baturros (hesp.), 1; Bico do papagaio, 7; O boato (nac.), 3; Boccacio, 12 em port., 3 em ital. e 1 em hesp.; A boneca, 24, O buraco (nac.), 36; El cabo primero (hesp.), 2; Campanone (hesp.), 1; A Capital Federal (nac.), 14; Certamen nacional (hesp.), 4; El chaleco blanco (hesp.), 5; A chave do inferno (nac.), 27; A czarina (hesp.), 2; D’Artagnan (ital.), 2; O dia e a noite, 7); Don Pedro de Medina (ital.), 3; Dona Juanita (ital.), 3; Donzela Theodora (nac.), 8; Duetto da “Africana”, 1; O Engrossa (nac.), 20; O Filhote, 8; Filha de Mme. Angot (ital.), 1; Filha de Maria Angú, 5; Os filhos do capitão-mor, 10; Furias de amor, 2; Garroche (nac.), 82; Granaderos (ital.), 7; Gran-duqueza de Gerolstein, 6; La gran-via (hesp.), 3; O Jagunço (nac.), 11; Jovem Telemaco, 2; Kikiriki (hesp.), 1; Lambe féras, 4; Lambiasi, menino de 1 anno (ital.), 1; Los de Cuba (hesp.), 2; Marcha de Cadiz (hesp.), 2; Mascotte (ital.), 1; Má troca (nac.), 1, Milagres de Santo Antonio, 2; Milagres de S. Benedicto, 3; Os Ministros do inferno, 17; Mosqueteiros no convento, 2 em hesp. e 2 em ital.; Nhô Quim (nac.), 1; Las Nina desenvueltas (hesp.), 2; Nos bastidores (hesp.), 1; a Perichole, 26; Raphael e a Fornarina (ital.), 1; Rei que damnou (ital.), 2; Rio Nú (nac.), 12; a Roda da fortuna (nac.), 5; a Sabina, 1; Sataniello (ital.), 1; Sino do eremiterio, 4; Sinos de Corneville, 18 em port. e 2 em hesp.; os “Sinos de Corneville” em casa, 2; Solar dos Barrigas, 10; Surcouf, 2; Tempestade (hesp.), 1; Testamento da velha, 14; Tim tim por tim tim, 35; Toros de punta (hesp.), 1; Trinta botões, 2; Trunfo ás avessas (nac.), 1;

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Vade retro, Satanaz!, 1; a Velhinha (ital.), 5; o Velho da montanha (ital.), 2; o Vendedor de passaros (ital.), 6; Los zangolotinos (hesp.), 2.

Faço votos para que o ultimo anno do seculo das luzes seja mais propicio á arte dramatica no Rio de Janeiro.

A. A.

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O Theatro, 19/01/1900

N’outra secção d’esta folha encontrarão os leitores uma carta que me dirige o meu amigo e collega Julio de Freitas Junior, digno secretario do Elite-Club. Não a publico dentro d’este folhetim, por saber que o director d’A Noticia (e faz elle muito bem) não gosta que no espaço reservado na sua folha á redacção e collaboração anonymos tenham resposta.

O secretario do Elite, a quem deve a distincta associação os mais desinteressados e relevantes serviços, não tinha absolutamente que se defender de accusações sem assignatura.

Ha muito tempo deixei de ler as secções ineditoriaes da nossa imprensa. É uma boa medida de hygiene moral, que recommendo a todos os meus amigos e conhecidos.

O anonymo, que me aggride a tanto por linha e sob a responsabilidade alheia, tem, para mim, a mesma imputabilidade do garoto que, de longe, fóra do alcance da minha bengala, me dirigisse uma chufa.

Responder a anonymos, sobre ser tempo perdido, é um máo serviço que se presta á sociedade, porque, se ainda ha “mofinas”, é justamente por se encontrarem ainda homens de bem que as tomam a serio, e se convencem de que ellas calam no espirito publico. A verdade é que um artigo insultuoso, mas anonymo, embora bem escripto, é o mesmo que uma arma de fogo carregada com polvora secca: faz barulho mas não mata. O mais que póde succeder ao individuo que recebe o tiro em cheio, é ficar um pouco tisnado pela bucha; mas é bastante um lenço molhado para fazer desapparecer o tisne.

Em toda essa questão do Elite, se houve um impertinente, fui eu. A directoria, os amadores e os socios d’esse club estariam no seu direito se me dissessem: – Que tem você com a nossa vida? Nós somos uma associação particular, não temos que dar conta dos nossos actos; representamos as peças que entendemos dever representar, e não temos outra preoccupação que não seja nos divertir. N’esta casa a critica perde os seus direitos. Se você anda empenhado n’essa penosa e ardua propaganda do theatro brasileiro, limite aos theatros publicos a sua esphera de acção, e deixe-nos em paz.

O Elite não me diz, isso porque é muito delicado; mas, se m’o dissesse, eu tudo ouviria caladinho e murcho.

***

A proposito de amadores, lembro-me que devo traçar n’estas columnas um saudoso adeus ao pobre Rodolpho Croner, um artista que o preconceito afastou

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do theatro, um actor e ensaiador que consagrou toda a sua actividade, toda a sua energia, todo o seu talento ao theatrinho da Gavêa.

O seu fallecimento, occorido no primeiro dia do anno, foi uma triste surpresa para grande numero dos seus amigos, que o não sabiam gravemente enfermo.

Já no Paiz me referi largamente a esse morto, que não é um morto vulgar; contei no meu artigo quanto lhe devia aquella brilhante e utilissima associação, a cujas récitas não assisto, como desejava, pela formidavel distancia que me separa da Gavêa.

Nas poucas vezes que lá fui, Rodolpho Croner acolheu-me com uma fidalguia que me captivou. Esse homem tinha delicadezas femininas; “era uma dama”, como se diz na linguagem familiar, mais expressiva que todas as outras. Conversar com elle cinco minutos era o bastante para estimal-o e guardar para sempre a lembrança das suas maneiras affectuosas e distinctas.

A despeito d’aquelle artigo, eu quiz deixar consignado n’este folhetim o nome de um artista que se apaixonou pelo theatro, e lhe fugio, como os rapazes de juizo fogem das mulheres perigosas que os seduzem.

***

Uma vez que tratei de um assumpto doloroso, não deixarei no tinteiro o caso de Charles Moulin.

Lembram-se d’esse nome? Talvez que não, porque no theatro os nomes desapparecem com muita facilidade. Falla-se ainda, vagamente, de um João Caetano, de um Guilherme de Aguiar, de um Vasques, e de ninguem mais... Auctores, actores, musicos, scenographos, etc. vão todos para a vala commum do esquecimento publico.

É verdade que Charles Moulin não era um actor notavel. Se não me falha a memoria, elle estreou-se na Phenix quando uma companhia de Irene Manzone representou alli, ha um bom par de annos, a Dona Juanita. Fazia o papel do capitão, o amoroso da peça, e era um tenorino agradavel. Julgo que tinha sido educado em França, porque, apezar de brasileiro, tinha um sotaque francez muito pronunciado.

Ao que parece, o theatro não lhe sorrio, porque algum tempo depois tive noticia de que elle havia recorrido a outro officio.

Perdi-o de vista durante alguns annos, e, afinal, uma noite, fui dar com elle, no mesmo theatro, a representar n’uma companhia organisada com artistas e amadores, mistura hybrida que nunca deu resultado satisfactorio.

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E nunca mais o vi. Hontem um ex-collega de imprensa, hoje funccionario da secretaria do senado, o Sr. Campos Porto, me communicou que Charles Moulin ensandeceu e foi recolhido, como indigente, no Hospicio de Alienados.

A triste noticia ahi fica para conhecimento dos amigos e collegas do infeliz tenorino.

***

A empreza Dias Braga deu-se tão bem com a Bexigosa, que se atirou a outro drama do mesmo genero, a Mendiga de S. Sulpicio, de Xavier de Montépin e Jules Dornay, muito bem traduzido por Eduardo Victorino, e menos mal representada pelos artistas do Variedades. Toda a companhia se apercebeu de boa vontade pra levar o drama a bom porto, e não faltam a estes nove quadros (não se assustem: o espectaculo termina a tempo e a horas!) todos os elementos indispensaveis ás platéas populares.

Uma actriz que se estreou, póde-se dizer, porque ninguem deu por ella, ha um anno, no Apollo, quando alli figurou nas seis representações do drama P. L. M. ou o crime da estrada de ferro (por onde andará a Ismenia?), uma actriz estreante, ia eu dizendo, Bemvinda Canedo, tem sido muito distinguida pela imprensa. Não hesito em fazer côro com os meus collegas, e dizer-lhe: – Bemvinda seja!, comtanto que ella não se convença de que não precisa aprender e aprender muito, afim de que tão lisonjeiros juizos sejam rectificados pelo publico.

Apezar da grève dos cocheiros, que rebentou na melhor occasião para dar cabo de uma peça nova, a empreza Dias Braga conta fazer com a Mendiga ainda mais do que fez com a Bexigosa.

Mendiga... Bexigosa...Vá por ahi o Variedades! Deixe-se de litteraturas! Nós não estamos em Paris...

– Nem mesmo em Bordeaux! accrescentava o saudoso Joaquim Serra, sempre que ouvia essa phrase.

A. A.

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O Theatro, 26/01/1900

A empreza Sampaio & Faria, que parece empenhada em fazer figurar no seu repertorio as obras completas de Georges Feydeau, acaba de pôr em scena um dos primeiros vaudevilles d’esse afortunado auctor, escripto aos 23 annos e no qual já se achavam bem indicadas as melhores qualidades do futuro auctor de Champingol á força.

São tres actos, um pouco atropelados talvez, em comparação com os ultimos trabalhos de Feydeau, mas turbulentos, engraçadissimos e endiabrados.

A peça, traduzida pelo saudoso Figueiredo Coimbra, e por Azeredo Coutinho, já tinha sido aqui representada, ha uma boa duzia de annos, no theatro Lucinda, por uma companhia dirigida pelo proprio Adolfo Faria, um dos actuaes emprezarios do Recreio, e da qual faziam parte alguns dos bons artistas que lá se foram para a ultima excursão, – Maia, Maggioli, Xisto Bahia, etc.

O pessoal do Recreio não é hoje tão brilhante como n’aquelle tempo era o do Lucinda; entretanto, o Alfaiate de senhoras (assim se intitula o vaudeville) parece ter agradado agora mais do que na primitiva, o que muito claramente quer dizer que a reputação dos actores influe sobre o destino das peças,e que o publico fluminense, como todos os publicos, faz questão de rotulo. Ha doze annos Feydeau era um desconhecido, não obstante ser filho do auctor da Fanny, um dos romances mais famosos do seculo; hoje é um escriptor celebre em toda a parte do mundo,inclusive no Rio de Janeiro,onde o recente successo da Lagartixa acabou de consagral-o definitivamente.

No desempenho dos papeis do Alfaiate de senhoras merece menção a actriz Olympia Montani, a quem mais de uma vez me tenho referido com sinceros encomios.

No papel de um criado insolente e taralhão, meio Frontin, meio Mascarille, personagem que exigia, talvez, um interprete mais leviano e mais vivo, reappareceu o actor Raposo, que ha muito tempo andava, como a maior parte dos nossos artistas, “mambembando” pela provincia. Raposo é intelligente, e foi dotado pela natureza com uma physionomia e um tom de voz que deveriam fatalmente arrastal-o para o theatro; nasceu actor. Foi ha tempos um morphimano terrivel, mas, ao que parece, corregio-se inteiramente d’esse vicio, e resuscitou – é o caso – para a sua arte. Deus o conserve longe dos “mambembes” e das seringas de Pravat. Depravadas, como dizia um personagem não sei de que peça de França Junior.

***

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O Recreio annuncia para breve a comedia em 3 actos Rua dos Arcos, n. 109, de Alexandre Bisson, adaptada á scena brazileira por Orlando Teixeira, e corre por ahi, em lettra redonda, que no Recreio vai ser representada uma traducção da mesma peça, cujo titulo original é 115, rue Pigalle.

Não sei se os leitores têm observado que isso de representar simultameamente a mesma peça em dous theatros dá sempre um resultado negativo, e das duas emprezas que se disputam a preferencia do publico nem uma nem outra leva a melhor.

O caso, que resulta naturalmente da ausencia completa de legislação em materia de industria theatral, não abona a sagacidade e muito menos o espirito de confraternisação dos nossos emprezarios.

No tocante á peça de que se trata, a razão está com o Recreio, que primeiro a annunciou, e de mais a mais nacionalisada por um escriptor de talento. Que diabo! o vaudeville de Bisson foi representado e está impresso ha dezoito anos, e para que A se lembrasse de traduzil-o, foi preciso que B o houvesse adaptado á scena brasileira! Ahi está um facto que não se daria, se nós tivessemos uma sociedade de auctores organisada como a franceza; mas infelizmente, hão de passar muitos annos antes que no Rio de Janeiro se organise qualquer cousa séria interessando o theatro.

É preciso notar que 1 15, rue Pigalle não é um d’esses vaudevilles excepcionaes a que um emprezario se atire como gato a bifes. É divertido, não ha duvida, como todos os trabalhos de Bisson, mas não é nenhuma cousa do outro mundo, como vulgarmente se diz.

Não estou fallando so a conhecimento de causa. Vi-o representado, em 1883, no theatro Gymnasio, de Lisboa, bem traduzido por Gervasio Lobato, com o titulo O crime da rua da Paz, e admiravelmente interpretado pelo incomparavel José Antonio do Valle, pelo excellente Montedonio, que veio morrer no Brasil, e por outros bons artistas, entre os quaes a Jesuina (essa nunca sahio de Portugal), que era extraordinaria n’um papel de porteira, muito bem tratado pelo auctor.

Magnifica peça no seu genero, mas isso não dá, isso não dá, para dous theatros ao mesmo tempo...

***

Estive ante-hontem pela primeira vez n’uma “casa de chopps”. Como vêem os leitores, não sou um fluminense completo.

Fiquei admirado por ver, no fundo da loja, um theatrinho, em cujo palco figuram artistas que cantam, dansam, representam scenas comicas, etc.

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Dizem-me que ha outras “casas de chopps” do mesmo genero, e que todas fazem muito negocio.

Agora pergunto eu:esses espectaculos, dados em verdadeiros theatros, com todos os deus pertences e accessorios, não estão sujeitos ao imposto lançado pela intendencia para essa enorme pilheria do Theatro municipal?O Variedades, onde ainda se cuida um pouco de arte, onde ainda se representa, onde ainda ha actores que sabem collocar as mãos e os ésses, o Variedades paga 30$000 todas as noites á intendecia, e a “casa de chopps”, onde se parodia e se insulta a arte, onde se desmoralisa o theatro, onde se attrae o publico arredio das boas plateas, a “casa de chopps” não paga nada. Porque?

***

Na estatistica theatral de 1899, publicada no meu penultimo folhetim, escaparam, não sei como, tres peças que devem ser incluidas na rubrica Operetas, zarzuelas, magicas, revistas e parodias. Foram ellas: O Caso do boneco, parodia, tres representações; a Falote, opereta, sete representações; o Principe Rubim, opereta, tres representações.

***

Á pessoa que me escreve, perguntando se na minha burleta a Viuva Clark, em ensaios no Apollo, é posto em scena, segundo lhe constou, um cavalheiro muito conhecido na sociedade fluminense, respondo que a Viuva Clark não é uma revista, mas uma comedia espectaculosa e com musica. O enredo, as scenas, os episodios são inventados e os personagens de pura fantasia. A minha heroina, a viuva Clark, nada tem de commum com o celebre sapateiro nem com o famoso fabricante de linhas de mesmo nome. Sahio inteirinha da minha cabeça, comquanto nem ella seja Minerva nem eu Jupiter.

A. A.

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O Theatro, 01/02/1900

Aos 17 de abril de 1882 representou-se, pela primeira vez, em Paris, no theatro Cluny, a comedia 115, rue Pigalle,de Alexandre Bisson, que n’aquelle tempo não era ainda o auctor popularissimo do Deputado de Bombignac, das Surprezas do divorcio, da Familia Pont-Biquel e de tantas outras comedias espirituosas e de real successo. Entretanto, elle tinha já no seu activo Un voyage d’agrèment, interessante comedia que foi aqui representada tanto em portuguez como no idioma original, e Un lycée de jeunes-filles, opereta exhibida no Sant’Anna com o titulo O lyceu Polycarpo, e muito bem representada,lembram-se? – pelo Vasques e pelo Guilherme de Aguiar.

O argumento de 115, rue Pigalle é, pouco mais ou menos,o seguinte, que vou traduzir litteralmente dos Annaes do theatro, de Noel e Stoullig (vol. VIII, pag. 476):

“Na rua Pigalle n. 115 mora uma sujeita tão interessante como interesseira, que se prevalece no idiotismo do Sr. Quiquemel, seu marido, e de uma separação que se tornou imperiosa, para continuar a fazer das suas, longe dos olhares ciumentos do seu Othelo dessecado. Ora, esse Sr. Quiquemel, é, ao mesmo tempo, marido in partibus, tio real e socio effectivo; marido da tal sujeita, tio de um mancebo libertino e socio do Sr. Loriot, pae de uma filha encantadora, que o Sr. Quiquemel sonhára para esposa da boa bisca do sobrinho.

O honrado e prudente Loriot soube resistir às suggestões do socio e evitar um genro tão perigoso. Acaba precisamente de dar a menina em casamento a um advogado talentoso e de futuro, o Sr. Anatolio Bernard, e isto a despeito de Quiquemel, que vem declarar á hora da cerimonia que o dito Anatolio é um assassino, e, o que mais é, assassino de sua primeira mulher! Elle, Quiquemel, tem provas disso, e sabe até qual foi o logar do crime: rua Pigalle n. 115.

Essa novidade não encontra o menor credito, mas não deixa de impressionar a familia; entretanto, o casamento effectua-se.

No 2º acto a terrivel noticia é confirmada.Facilmente imaginareis os transes, as apprehensões, as mil e uma precauções do pobre Loriot que não abandona um instante o genro,segue-o por toda a parte, espia-o, remove subrepticiamente da alcova nupcial todos os intrumentos capazes de servir a um malfeitor, taes como a pá do fogão, as pinças e até uma inoffensiva espatula de cortar papel. ‘Não nos esqueçamos do processo Clemenceau!’ exclama o pobre pae.

A noticia confirma-se e complica-se por um circumstancia naturalissima: Anatolio Bernard vem dizer ao publico que a sua reputação de advogado esta feita: encarregaram-n’o da defeza de um marido que matou a mulher, e eil-o

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que ensaia o seu discurso, ouvido pelo sogro e pela sogra,sempre embuscados por traz das portas: ‘Sim, elle matou-a porque a apanhou em flagrante delicto de adulterio; elle matou-a, e fez muito bem, e o mesmo fará quando algum dia se achar outra vez em situação identica! Horror!’

A porteira da rua Pigalle n. 115, que está ao corrente do crime, vem felizmente desfazer o quipro-quó: tratava-se, já todos o adivinharam, de outro Bernard.”

Releva dizer que esse compte-rendu não está bem feito:em alguns pontos é infiel, e não dá uma idéia completa da peça,que prima pelas situações engenhosas e pelo dialogo.

Orlando Teixeira não se limitou a traduzir a comedia de Bisson; adaptou-a á scena brasileira, e fel-o sem lhe tirar a graça, dando-lhe antes alguma da nossa, que, se não é tão boa como a parisiense, produz necessariamente mais effeito n’uma platéa fluminense. Mas, se as situações se prestavam a essa transplantação desde que della se encarregasse um escriptor habil como Orlando Teixeira, os personagens da comedia, por mais trabalho que tivesse o adaptador, jámais se nacionalisariam; toda aquella gente é exotica para nós; não tem o nosso temperamento, nem os nossos habitos, nem o nosso modo de sentir e de pensar.

Em Paris tudo é permittido, porque Paris...é Paris: tem uma Babylonia em cada quarteirão; mas nesta grande aldeia que se chama o Rio de Janeiro, era impossivel que um advogado inoffensivo passasse por assassino aos olhos dos paes de sua mulher, e nenhum brasileiro casaria a filha sem conhecer todos os antecedentes do noivo.

Aquelle marido, aquelle Quiquemel é crivel em Paris, principalmente no Paris dos vaudevilles, que não é o real, mas é inverossimel no Rio de Janeiro, e, por conseguinte, nada tem de caracteristico.

Orlando Teixeira melhor faria empregando na producção de uma comedia orignal o tempo que despendeu com essa adaptação incompleta, porque,adaptando as situações, não adaptou, nem podia adaptar, os personagens ao nosso meio.

Houve um erro grave na distribuição da peça: o papel de Dolores, dona da casa de pensão da rua dos Arcos, e que na comedia original é Mme. Taupin, a porteira da casa da rua Pigalle, é um papel caricato, e, como tal, devia ter sido confiado á actriz Elisa de Castro e não á actriz Candelaria, que nenhum relevo lhe deu. Em Paris o papel foi criado por Mme. Anbry, que era inimitavel no genero, e em Lisboa pela espirituosa Jesuina, como tive occasião de dizer no meu folhetim passado; era o personagem mais comico da peça, ainda mais comico que o do proprio Quiquemel – e para provar que Bisson o considerava

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tambem o mais saliente, ahi está o facto, relatado nos referidos Annaes, de ter querido intitular a sua comedia Mme. Taupin.

No papel do marido da senhora da rua dos Arcos, Raposo confirmou o juizo que a respeito da sua habilidade externei ha oito dias. Esse actor póde conquistar uma boa collocação no palco fluminense, mas é preciso cuidar seriamente da sua dicção, que está um pouco viciada.

Nazareth pareceu-me de uma exuberancia mais de drama que de vaudeville; a culpa, entretanto, não é do artista mas do proprio personagem, que joga com uma paixão muito dramatica, – – a paixão paterna.

Os demais interpretes deram boa conta dos seus papeis, inclusive um estreante, o Sr. Mario Brandão, que tem por emquanto o defeito de não saber o que fazer das mãos, mas me parece com boas disposições de aprender.

***

Para hoje está annunciada no Variedades a mesma comedia, Rua Pigalle n. 115, traduzida por Machado Corrêa, que, a proposito do meu ultimo folhetim, me escreveu, dizendo que essa traducção lhe foi encommendada pela empreza Dias Braga n’um dos ultimos dias do mez passado, quando nenhuma noticia havia de que a empreza do Recreio tencionasse pôr em scena a mesma peça.

Por seu lado esta ultima empreza assegura que, quando recebeu e ensaiou a arranjo de Orlando Teixeira, não lhe constava absolutamente que Dias Braga tivesse em vista exhibir a comedia de Bisson.

D’esta vez não houve,por conseguinte, espirito de hostilidade. Foi méra coincidencia que duas emprezas se lembraram ao mesmo tempo, na mesma cidade, quasi na mesma rua, de pôr em scena uma comedia estrangeira que corre na impressa ha 18 annos.

Pois bem, – – ha um meio muito simples de evitar essas coincidencias desagradaveis: é o perfeito accôrdo entre as emprezas, accôrdo que me parece de proveito para todas as partes. Porque o emprezario A não comunica ao emprezario B, e vice-versa, quaes as peças que tenciona representar? Desde que assim se fizesse, o emprezario B ficaria na contingencia moral de não lançar mão das mesmas peças com que contasse o emprezario A. Esse meio seria simplicissimo, e, o que é mais,necessario n’este paiz onde infelizmente não ha direito de propriedade litteraria para os auctores estrangeiros.

O que escrevi no meu ultimo folhetim não foi ditado senão pelo desejo de ver estabelecida a melhor harmonia entre quantos trabalham para o theatro, – – harmonia sem a qual difficilmente a arte dramatica sahirá do abatimento e da miseria em que estrebucha.

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Ha algum tempo tive occasião de fazer as melhores referencias a uma comedia em 1 acto, em verso, o Beijo, original de Filinto de Almeida, que a leu em sua casa a alguns amigos em cujo numero me achava.

Essa bonita comedia foi representada com extraordinario exito, a 5 do mez passado, em Lisboa, no theatro Dona Amelia.

Como é triste ter um poeta brasileiro que recorrer aos estranhos pra exhibir um trabalho litterario, escripto no Brasil!

Seja esse facto um pretexto para pedir ao novo prefeito, o illustre Dr. Coelho Rodrigues, a sua piedosa attenção para o Theatro Municipal. Trata-se simplesmente do cumprimento da lei, da applicação de recursos votados, arrecadados e escripturados.

Indague S. Ex. da historia do Theatro Municipal, e, se lhe disserem a verdade, diabos me levem se essa historia não impressionar a sua alma de homem de bem e o seu cerebro de jurisconsulto.

A. A.

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O Theatro, 08/02/1900

Os tempos andam tão climatericos para o theatro, que este folhetim, apparecendo, como apparece, de sete em sete dias, chega muitas vezes atrasado para tratar de peças novas, isto é, já não as apanha em scena.

A 1ª representação da comedia Rua Pigalle, 115, realisou-se quinta-feira passada, e já hoje a comedia de Bisson é substituida pelo drama O castello do Diabo, em que reapparecerá, depois de longa ausencia (não mettendo em linha de conta uma representação recente da Doida de Montmayour) a estimada actriz brasileira Apollonia Pinto, que a nossa platéa outr’ora applaudio tanto.

Dias Braga, que já está conformado com a ingratidão do publico, não contava absolutamente com uma grande serie de representações quando poz em scena Rua Pigalle, 115. O que elle deseja é organisar repertorio novo para a sua proxima excursão ao Norte, excursão que será sem duvida fructuosissima, por que a companhia, nas actuaes circumstancias, póde ser considerada de primeira ordem, pois ha muito tempo não se reunia pessoal tão harmonico.

Dito isso, creio estar dispensado de tratar longamente de Rua Pigalle, 115, cujo argumento publiquei, aliás, no meu ultimo folhetin. Direi apenas que é correcta a traducção de Machado Corrêa, e que o desempenho nos papeis, sem ser brilhante, foi muito regular.

***

No Recreio a Rua dos Arcos, 109, tambem foi substituida pela espirituosa comedia de Labiche Deve-se dizer? bem traduzida por Moreira Sampaio.

A peça é e não é nova para o nosso publico. Não é nova, porque aqui foi representada, ha um bom par de annos, com outro titulo, e é nova, porque n’aquelle tempo o defunto Conservatorio Dramatico Brasileiro (diabos o guardem!) tinha lhe tirado a graça sob o pretexto de lhe tirar a immoralidade, como se no theatro do honesto Labiche houvesse immoralidades.

O publico não foi ao Recreio. Pois não sabe o que perdeu! Não quero dizer que a interpretação dos papeis, estudados de afogadilho, estivesse acima de todo o elogio, oh! não; mas Labiche é sempre Labiche, ainda que mal interpretado. O dialogo, os conceitos e as situações resistem a tudo. Nas comedias do illustre academico francez ha sempre um fundo de philosophia que faz com que os espectadores fechem os olhos a quaesquer defeitos de exhibição theatral.

Emilie Augier escreveu o seguinte a respeito de Labiche: “Pour avoir une réputation de profondeur, il ne lui a manqué qu’un peu de pédantisme; et qu’un peu d’amertune pour être un moraliste de haute vollé.” E disse a verdade, porque

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entre a geração do auctor de Monsieur Perrichon não houve, talvez, no theatro, observador mais profundo.

Bem sei que hoje em Paris (e Paris comprehende o resto do mundo) é moda desdenhar de Labiche; ha dous annos, por occasião da reprise de uma das suas obras-primas, Celimare, le bien aimé, na Comédie-Française, fizeram-lhe muita carga por não se parecer com Ibsen, e o proprio Francisque Sarcay, que talvez tivesse morrido a tempo, me quiz então parecer que se ia deixando ganhar pelo snobismo universal.

Labiche, effectivamente, não póde ter cheiro de santidade para os modernistas, porque sabia architectar as peças, desenvolver os dialogos, interessar o publico, e alegral-o, o que é mais difficil que aborrecel-o. Pois essa gente, que morre ou finge morrer de amores pelas comedias mal feitas, póde lá perdoar a um auctor que sabe fazer com que os personagens entrem e saiam?

Depois de ler as noticias da reprise de Celimare,reli a comedia, que me pareceu ainda mais interessante e mais espirituosa do que me parecêra quando a li pela primeira vez.

Vá o leitor ao Recreio assistir a uma representação de Deve-se dizer? Affirmo-lhe que não perderá o tempo nem dará por mal empregado o preço do bilhete, – – e, demais, aprenderá com um philosopho amavel e risonho como deve proceder quando as suas relações de amisade o colocarem n’uma situação melindrosa.

Raposo (não citarei outro artista) contínúa a mostrar-se um actor muito apoveitavel, e continúa igualmente a fallar mal. Imaginem que ele diz abessurdo por absurdo! São defeitos faceis de corrigir, e que espero ver corrigidos.

***

No jardim da Guarda Velha foi inaugurado um café cantante. Ainda lá não fui, mas dizem-me que é divertido e tem apanhado “boas casas”.

É uma questão de novidade. O genero não péga no Rio de Janeiro, porque ha, infelizmente, muitos rapazes sem educação, que se encarregam de perturbar e desmoralisar taes espectaculos.

Lembram-se do Eldorado? Aquillo a principio não era máo: a gente divertia-se; mas não tardaram os “rolos”, que afugentaram as familias e por fim os artistas. E desde que um café cantante não disponha de artistas de certa ordem, perde toda a razão de ser.

É pena, porque eu quizera que n’esta capital houvesse espectaculos de todos os generos, pois para todos ha publico.

***

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Tenho que registrar o fallecimento de um dos nossos dramaturgos, – – Rangel de S. Paio, – – auctor de varios trabalhos, entre os quaes o conhecido drama sacro Milagres de S. Benedicto, que elle escreveu de collaboração com Souza Pinto, e tem sido innumeras vezes representado em todo o Brasil.

Ultimamente Rangel de S. Paio fundara o Gremio Dramatico Antonio José, e retomára a sua penna de auctor dramatico, de muito tempo esquecida. Creio que deixou peças ineditas.

***

Tambem falleceu Charles Moulin, que tinha sido ha tempos recolhido ao Hospicio de Alienados, conforme noticiei n’um dos meus ultimos folhetins.

***

Tratando-se de desgraça e morte, vem a proposito a Caixa Beneficente Theatral:

O secretario d’esta associação de caridade convocou domingo passado uma assembléa geral para apresentação do relatorio do presidente e eleição da comissão de contas. Comparaceu apenas meia duzia do socios.

Para hoje, ás 3 horas da tarde, está feita nova convocação. Se não houver numero, far-se-ha terceira, resolvendo-se então com os poucos ou muitos que comparecerem.

Ahi fica o aviso.A. A.

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O Theatro, 15/02/1900

A Viuva Clar kBurleta em 3 actos e 12 quadros, por Arthur Azevedo

Musica de Costa Junior

Acto i

quadro i i iN’uma casa de jogo. Sala mobiliada com certo luxo. Portas latteraes.

Scena i

Saraiva, 1º Jogador, 2º Jogador, Jogadores, depois Jojoca.(Á mutação, Saraiva, cercado de jogadores conta-lhes um caso.)

Saraiva: – Pois é verdade! Foi as mais agradavel das surpresas! Eu tinha jogado vinte fichas de dous mil réis no 27. Eram as ultimas que me restavam. Como não tinha a menor esperança, fiz a parada, levantei-me e fui tomar qualquer cousa. Cahio a bola e o Jojoca cantou: 24. – Bom, disse eu commigo; estou prompto. Mas logo em seguida o Jojoca accrescentou: “700 madreperolas”! As madreperolas eram minhas! Corri á banca... Ah, meus amigos, que supresa! – em vez de fazer a parada no 27, eu tinha-a feito no 24, que é pegado. (Risadas.)

1º Jogador: – Dos enganos comem os escrivães.2º Jogador: – Mas sesahisse o 27, que ferro!Saraiva: – Não falles! Seria caso para suicidio. – Por fallar em suicidio: que

fim levaria o Freitinhas? Não apareceu hontem nem hoje!1º Jogador: – É realmente extraordinario!2º Jogador: – Não creio que se suicidasse, mas com certeza esta doente.Saraiva: – Eu iria vel-o se soubesse onde mora... mas nem seu nem

ninguem o sabe!2º Jogador: – Onde está o Jojoca? Não se trabalha hoje n’esta casa?1º Jogador: – É verdade! São mais que horas!(Jojoca, entrando da esquerda.).Cá estou, meus amigos, cá estou!(Distribuie apertos de mão. Movimentos.).Todos: – Ora viva! Seja bem apparecido!

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Jojoca: – Demorei-me um pouco...Saraiva: – Já se sabe.... algum rabo de saia...Jojoca: – É verdade; mas que querem! é o meu fraco... Não posso ver na

rua uma mulher geitosa, que não a acompanhe ate a egrejinha de Copacabana, se for preciso... e, o que é mais original, desinteressadamente, sem outro fim que não satisfazer a minha curiosidade. – Que querem? – Cada um como Deus o fez.

CoplasISe uma senhoraPassar eu vejo,Onde é que moraSaber desejo:Se nas Paineiras,Se em Botafogo,Nas LaranjeirasOu em S. Diogo.Uma,em que viaModerna Circe,Commigo um diaQuiz divertir-se:Levou me ao BicoDo Papagaio!Quasi lá fico...N’outra não caio!Bem sei que isto provocaDe toda gente riso,Mas seu JojocaNão tem juizo

TodosBem sabe que provoca, etc.

JojocaIIBeldade austera,Facil beldadeSigo por méra

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Curiosidade,Não lhe dirijoSiquer a falla,Sómente exijo...Acompanhal-a.Se se equivoca,Se afrouxa o passo,Se me provoca,Sei o que faço:Muito escorreitoDobro uma esquina,Não tenho geitoPara bolina!Bem sei que isto provoca etc.

Saraiva: – Acabas de seguir alguma?Jojoca: – Segui. Um typo de franceza. Um pé assimsinho... Encontrei-a

no largo da Lapa.Tomou um bond de Botafogo que vinha para a cidade. Apeou-se na Carioca. Foi pela rua Gonçalves Dias. Demorou-se meia hora na Rennomée...

2º Jogador: – E tú esperando...Jojoca: – E eu esperando na esquina. – Sahio,dobrou a rua Sete,depois a

dos Ourives... comprou musica n’uma cada de pianos...1º Jogador: – E você esperando?Jojoca: – E eu esperando na porta da viuva Henry. – Sahio, desceu a rua

do Ouvidor, e, ao chegar a rua Primeiro de Março, enfiou o braço ao braço de um sujeito que estava parado no Carceller.

Saraiva: – D’esta vez não esperaste.Jojoca: – Não; desde que a mulher não esteja sósinha, perde para mim

todo o interesse; entretanto, ainda esperei ver o destino que tomavam.2º Jogador: – Sempre é uma consolação.Jojoca: – Entraram n’um bond do Sacco do Alferes.Saraiva: – Gabo-te a pachorra.Jojoca: – Que hei de fazer? É um vicio!(Ouve-se uma campainha electrica

soar de um modo especial.) Este toque...!1º Jogador (aterrorisado): – É a policia?Saraiva: – Não. O toque de policia é este. (Imita o toque de campainha

electrica tal qual soava no fim do quadro).

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Jojoca: – Aquelle toque significa que entraram mulheres. Mulheres aqui! Que virão fazer? Naturalmente vem á procura de algum ponto.

2º Jogador: – Logo se saberá! Vamos ao trabalhinho que são horas!Jojoca (consultando o relogio.): – Temos tempo de fazer uma banca de

meia hora. Acabará justamente á hora de jantar. Vamos!Todos: – Vamos!

Côro.Deixem lá fallar quem fallaBello vicio é o de jogar,Pois,se os nervos nos abala,Faz o espirito gozar.Sensação nos dá completaVer o numero que saeQuando a bola da roletaGyra, gyra, gyra e cae.(Sahem todos pela direita. D’ahi por diante e por diante ouve-se contar fixas,

fallar, dizer numeros, emfim todos os numeros proprios de uma casa de jogo; mas isso de um modo que não perturbe a representação.)

Scena i i

Tellles Freitinhas, a Viuva, a Baroneza.Freitinhas, entrando em primeiro logar.

Vão entrando.Telles, entrando e fallando para dentro.Minhas senhoras... (As senhoras entram, – a viuva desembaraçamente e a

Baroneza com ares receiosos.)A Viuva, entrando: – Pois é isto uma casa de jogo? Sempre suppuz que fosse

diversa das outras!A Baroneza: – Uma casa de jogo!... Maria Santissima! se o defunto barão

me visse!Freitinhas: – O jogo é alli dentro. Ouvem o barulho das fichas? Vai

começar a banca.Telles: – E o tal Saraiva? O porteiro disse-nos que elle estava cá.Freitinhas, olhando para a direita. – Lá está elle; mas é melhor esperar que

comece o jogo, para não dar na vista. (Aparte) Que intallação!...

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Telles, apontando para a direita. Dona Corina, Baroneza, apreciem aquelle movimento. Não veem o banqueiro?

A Viuva: – Qual é? Telles: – O barbado.Freitinhas: – O Jojoca.Telles: – Aquelle que distribui torres de fixas e recebe dinheiro. O felizardo

ganha pela certa!Freitinhas: – Não é tanto assimTelles: – Vejam... vejam como os parceiros enchem de fixas todos os

numeros... Lá vai rodar a bola! Como roda vertiginosamente! Cahio! quantas fixas leva o banqueiro no seu rateau!

Baroneza: – Aquella enxadinha de pão chama-se rateau?Telles: – Chama-se, sim, senhora. Aquella enxadinha de pão carrega para

o banqueiro a tranquillidade, o pão e a honra de todos aquelles desgraçados!Freitinhas: – Ora! perde-se hoje, ganha-se amanhã...A Viuva: – Ao jogo nunca se ganha... O menos que se perde é o tempo.Freitinhas: – Mas é tão bom! Não imaginam que sensação produz dentro

de mim a musica d’aquellas fixas!A Baroneza: – O senhor chama aquillo de musica?Freitinhas: – Não se tenta, Sr. Telles?Telles: – Eu?!...Freitinhas: – Se, emquanto espera, quizesse fazer uma vaquinha

commigo...A Viuva: – Uma vaquinha... Que expressão delicada!A Baroneza: – É verdade!... Cousa exquisita!... Fazer uma vaquinha com o

outro!...Telles: – Meu caro senhor, eu não vim cá para fazer vaquinhas, mas para

fallar ao tal Saraiva... O jogo já começou... Vá ter com esse homem e traga-o immediatamente á nossa presença!

Freitinhas: – Mas é que...Telles, (interrompendo-o): – Vá! vá!... Não me obrigue a entrar n’aquella

sala e gritar bem alto: – Quem é aqui o senhor Saraiva?Freitinhas: – Eu vou... eu vou... (Sáe pela direita)

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Scena i i i

Telles, A viuva, A Baroneza, depois 1º jogador, depois 2º jogador

A Baroneza: – Uma vaquinha! É preciso a gente vir a estas casas para saber certas cousas!...

Telles: – As senhoras querem saber o que é uma vaquinha?A Viuva: – Não se nos dava.Telles: – É uma sociedade entre dous ou mais individuos... Cada socio

entra com um tanto e um d’elles aponta... Se ha lucro, é repartido entre todos. Entretanto,quero crer que na vaquinha proposta pelo Sr. Freitinhas, teria eu que entrar com dinheiro por mim e por elle,e se a vaquinha desse algum leite, elle ficaria com a nata e me deixaria o soro.(Ao 1º jogador que entra da direita) Oh! doutor! tambem por cá?

1º Jogador: – É verdade. (Comprimenta as senhoras com um gesto de cabeça) Como vai?

Telles: – Tem também o vício?1º Jogador (muito espantado): – O vicio? Que vicio? Não senhor; venho

simplesmente fazer a minha féria, isto é, tirar algum proveito não do meu, mas do vicio alheio, e nada mais. Jogo por calculo... sem paixão nem desvario. A roleta é uma fonte de receita segura.

Telles: – É o primeiro a quem ouço dizer isso.1º Jogador: – Não duvido, porque não ha, talvez,no Rio de Janeiro outro

ponto como eu.Telles: – Mas qual é a sua particularidade?1º Jogador. – Não insistir. A fortuna do banqueiro é a insistencia do ponto.

Ora, não ha ponto que, n’um momento dado, não tenha o seu lucro... Eu contento-me com esse,seja qual fôr... Compro os meus vinte mil réis de fixas, e vou tenteando, piabando, e quando ganho dez ou doze mil réis, dou com o basta e levanto acampamento. (Batendo na algibeira.) Estou com a minha feria.

Telles: – Mas esse systema talvez não agrade ao dono da roleta. O senhor não é precisamente um ponto um ponto; é, quando muito, uma virgula.

1º Jogador: – Não me importa que o meu systema agrade ou deixe de agradar. Não quero outro. Olhe, quinze mil réis estão a ferros! Estes ninguem m’os tira. – Mas o senhor! estou admirado de o ver aqui... e acompanhado por senhoras...

Telles: – Circumstancias especiaes... estamos aqui por causa do Freitinhas, conhece-o?

1º Jogador: – Conheço-o. É um pharol.

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Telles: – Um pharol?As Duas Senhoras (uma á outra): – Um pharol?1º Jogador: – Não sabem o que é um pharol? É um individuo que, de combi-

nação com o banqueiro e naturalmente gratificado por este, finge que joga para animar a banca... Adeus, cá vou com minha feria. (Aperta-lhe a mão.)

Telles: – Adeus,doutor. (O 1º jogador sáe. E cumprimentando as senhoras.) É advogado... tem uma profissão... não precisa d’isto.

A Viuva: – E o bonito é que está convencido de que não tem o vicio.

Scena i v

Telles, a Viuva, a Baroneza, 2º Jogador.

2º Jogador, entrando e falando para dentro. Juro-lhe, seu Jojoca, juro-lhe que na sua casa nunca mais porei os pés... Nem na sua nem n’outra qualquer onde se jogue!... (Dando murros na cabeça.) Velho desmiolado!... sem juizo!... sem vergonha!... (Puxando as proprias orelhas.) Deixa puxar-te estas orelhas, miseravel!... Toma um pontapé; cousa ruim!... Outro!... Mais outro!... (Dá pontapés em si mesmo.) Bate com a cabeça n’aquella parede! Arrebenta, diabo!... (Quer bater com a cabeça na parede.)

Telles (impedindo-o): – Que é isso, senhor?2º Jogador: – Deixe-me, deixe-me castigar este patife, que não toma juizo

nem vergonha! (Batendo no rosto). Velho tonto! estupido! desmiolado!...Telles: – Olha que se faz mal!2º Jogador: – Isto é todos os dias!... Todos os dias me castigo com

pancadas e descomposturas, todos os dias juro não pôr mais os pés n’estas casas!... É o mesmo que nada!... (Gritando.) Tambem o que faz a policia que não acaba com estes antros de perdição?... Ora, veja o senhor!... em tres paradas perdi tudo quanto trazia... tudo!... não me ficou dinheiro nem para o bonde!... E em casa a mulher e os filhos que padeçam toda a sorte de privações!... (Dando-se murros.) Miseravel!... infame!... assassino! ladrão!...

Telles (querendo impedir): – Basta!A Baroneza: – Deixe, seu Telles... deixe elle dar pancada no outro, que

bem merece!A Viuva: – Mas que grande typo!...Telles: – O outro arranjou uma feria e este uma furia!...2º Jogador: – Faz obsequio, cavalheiro: aplica-me um pontapé? (Curva-se,

voltando as costas a Telles.)

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Telles: – Esta agora!...2º Jogador, curvado: – É uma obra de misericordia! Castigar os que erram!

Vamos!... Com toda a força!...A Viuva: – Eu applicava!A Baroneza: – Applique, seu Telles, applique, e bem em cheio!... Telles: – É tanta gente a pedir, que não me posso recusar... (Applica um

pontapé no 2º jogador.)2º Jogador: – Ah! muito obrigado! Isto allivia! Ah! já me sinto outro!... E

quem sabe?... Talvez este pontapé regulasse... Talvez eu encontrasse minha forra... O senhor quer fazer uma vacca?

A Viuva: – Bom: este agora não quer uma vaquinha...A Baroneza: – Quer uma vacca.Telles: – Não, senhor! Lá pontapés quanto queira... dinheiro, não!2º Jogador: – Faz muito bem, faz muito bem, não alimente o vicio d’este

sevandija (Á Baroneza) Ah, minha senhora, no dia que V. Ex. souber que seu filho joga...

A Baroneza: – Eu não tenho filhos, senhor!2º Jogador: – Pois se algum dia os tiver, afaste-os d’estas espeluncas!... (Á

Telles.) Obrigado pelo pontapé. (Sae)A. A.

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O Theatro, 23/02/1900

Em meio do anno passado, quando, ausente d’esta capital, eu soube que Furtado Coelho partira para Portugal, escrevi o seguinte: “Enfermo e carregado de annos como vai, é mais que possivel: é provavel que nunca mais o vejamos, e isto me penalisa bastante.” Realisaram-se minhas previsões: Furtado Coelho já não existe.

Não disponho de espaço neste folhetim para estudar essa grande figura do theatro portuguez, mas tantas e tantas vezes a ella me tenho referido nos meus escriptos,que a minha opinião é bem conhecida por todos meus leitores.

No dia em que aqui chegou a noticia do fallecimento do notavel artista, esta folha dignou-se transcrever um ligeiro artigo com que fiz acompanhar,em 1893, o retrado de Furtado Coelho; hoje eu não poderia dizer mais nem melhor do que naquella occasião.

Resumindo o meu juizo, direi apenas que nenhum outro artista representou mais dignamente o theatro portuguez. Á arte dramatica no Brasil prestou elle serviços inestimaveis. Pode-se dizer que foi n’este paiz o paladino mais esforçado e sincero que tem tido o theatro,e se a semente por elle plantada não brotou, o defeito era do terreno e não do plantador.

Doeu-me no fundo da alma vel-o partir ha um anno para essa viagem que se me afigurava um enterro, e partir despercebido e mesquinho, desacompanhado da sympathia publica, levando no bolso o producto de algumas esmolas.

Felizmente, Furtado Coelho,que trouxe do berço a sina de ser abandonado por quantos deveriam amal-o, e – para que escondel-o? – não primava pelas qualidades affectivas, encontrou em Lina Roy mais solicita, a mais carinhosa das companheiras.

Essa estrangeira appareceu no Rio de Janeiro ha dez annos. Era,no que se dizia,reporter de uma folha ingleza, e viajava por conta d’essa folha, mandando-lhe as suas impressões do mundo inteiro. Furtado, apezar de envelhecido e gasto, foi talvez a maior das impressões que ella recebeu. O destino approximou-os um do outro, e, como eram dous caracteres romanescos, que no fundo se assemelhavam muito, nunca mais se separaram.

D’ahi por diante, o velho actor só era visto ao lado d’aquella ingleza esguia, angulosa e nariguda, mas de uma physionomia original e sympathica.

Quiz fazer d’ella uma actriz; levou-a comsigo nas suas ultimas excursões, obrigando-a a representar por ahi os grandes papeis de Lucinda Simões.

Imaginem uma ingleza a fallar portuguez... Era simplesmente insupportavel!

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Mas Furtado Coelho via-a com outros olhos que não eram os do publico, e a mim me disse mais de uma vez que ella possuia um maravilhoso talento dramatico.

De volta das taes excursões, elle quiz impol-a ao publico fluminense, mas este não a acceitou. Isto magoou-o;e contribuiu, talvez, para anniquilal-o mais depressa. Pelo menos data d’ahi seu depauperamento definitivo.

Foi então que essa mulher se revelou. Não era uma actriz: era uma santa.Dir-se-ia que Deus a mandara ao Brasil expressamente com a missão

de suavisar os sofrimentos e a miseria de um grande artista, que ella não conhecêra na força da mocidade, no auge do talento e da gloria. Sem outra recompensa que não fosse a indefinivel satisfação de ser boa, ella fez-se o guarda fiel d’aquelles vestigios de um homem, a conservadora dos ultimos lampejos d’aquelle cerebro.

O egoismo humano adoptou esta sentença terrivel, posta em pratica pela humanidade inteira. “Quem comeu carne que rôa os ossos”. Lina Roy, moça ainda, livre, independente, senhora do seu nariz, do seu enorme nariz de Cleopatra, acceitou, de animo resignado e physionomia alegre, os sobejos de um banquete a que não assistira.

Que enorme sacrificio ter que aturar um velho enfermo, impertinente e pauperrimo, n’uma casa desapercebida de tudo, onde só se vive de expedientes e recordações! Sem essa mulher, Furtado teria morrido sabe Deus como... Ella dividia com ele parte do seu talento vital. Sem ella, não existiriam os dous romances – Lucia e Paixão de luxo, – pelos quaes se vê que elle teria sido um grande romancista se não houvesse abraçado a carreira theatral.

Se em melhores condições estivessem os nossos theatros, eu proporia que todos os artista se reunissem n’um grande espectaculo em beneficio de Lina Roy. Seria o melhor meio de agradecer (não de pagar) o muito que ella fez por Luiz Candido Furtado Coelho.

***

Quero deixar aqui a expressão do meu reconhecimento á Empreza Theatral Fluminense e aos excellentes artistas da companhia do Apollo pelo capricho e intelligencia com que puzeram em scena e representaram a burleta A viuva Clark, minha e de Costa Junior.

Agradeço tambem aos meus collegas de imprensa o favor com que acolheram o nosso trabalho

***

A Caixa Beneficente Theatral renovou a sua directoria, confiando-me de novo o cargo de presidente, distincção que muito me penhora.

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Aos socios atrazados no pagamento de suas mensalidades concedeu-se agora um longo prazo e um grande abatimento para a satisfação do seu debito. Se esses socios não tratarem de regularisar a sua situação, ficará evidentemente provado que a piedosa associação não é por elles amada nem comprehendida.

A. A.

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O Theatro, 01/03/1900

Dolorosos correm os tempos para o mesquinho theatro brasileiro. O meu ultimo artigo enchi-o com a lembrança de um grande morto, Furtado Coelho, a quem tantos serviços deve o nosso palco, e já hoje tenho que me ocupar de outra sombra illustre.

Nascido de paes humildes, que não lhe puderam proporcionar apurados estudos, Francisco Moreira de Vasconcellos sentio-se desde criança inclinado para as lettras. Versejava com facilidade, assignando muitos sonetos estimaveis, que publicava aqui e alli, na imprensa periodica. Depois escreveu livros que foram recebidos com applauso, como A vida e a natureza.

Por fim apaixonou-se pelo theatro e fez-se actor, auctor e emprezario.Como actor faltavam-lhe todas as condições. A voz, a figura, o gesto, a

physionomia não o ajudavam. Era frio, mesmo quando representava as scenas menos impetuosas das suas proprias peças.

Conseguio agradar-me n’um papel apenas, – o de um engraxate, personagem episodico da revista Itabaré, de Assis Pacheco.

É pouco, tratando-se de um artista que não hesitava em tomar sobre os hombros a responsabilidade esmagadora de grandes papeis daramaticos.

É muito curioso, e merecia estudado por um bom psychologo, esse caso, vulgarissimo,do homem de talento que se deixa fascinar e attrahir pelo palco, sem ter nenhuma das qualidades exigidas no actor.

Moreira de Vasconcelos tinha tanta confiança na sua habilidade, que se atirava a todos os generos e durante o mesmo espectaculo se exhibia tanto no drama como na farça, encarregando-se invariavelmente do principal interlocutor.

Não ha duvida que as velleidades do actor prejudicaram seriamente a fama do dramaturgo. É a eterna historia da rabeca de Ingres.

Essas velleidades obrigaram-no a viver constantemente afastado d’este centro onde o seu talento de escriptor dramatico encontraria fartas occasiões de brillhar. Para ser actor e emprezario, preferia vagabundear por todo o Brasil, com uma companhia ás costas, produzindo sobre o joelho, accommodado em pessimas estalagens, experimentado todos os climas.

Foi n’uma d’essas terras, em Palmares, a gloriosa Palmares, de que tanto se ufana Pernambuco, e com razão, que a morte o surprehendeu no theatro, ás 10 ½ horas da noite de 23 do passado, durante a representação de um dos seus ultimos dramas, o Calvario. Morreu como Moliére. Tinha apenas 40 annos.

Ainda n’esse destino de errar de terra em terra, trabalhando hoje aqui, amanhã acolá, e produzindo sempre, Moreira de Vasconcellos, guardadas

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as respectivas proporções, assemelhava-se ao immortal poeta, com esta differença, entretanto, que Moliére foi um dos actores mais notaveis do seu tempo, e as platéas confundiam n’uma só a reputação do artista e escriptor.

Não sei se foi tambem para se parecer com o poeta que elle adoptou para seu uso particular a celebre divisa: Je prends mon bien ou je le trouxe. Entretanto, Moliére só o achava em poder dos abastados como Plauto, Terencio, Moreto, Rabelais, etc., e o auctor brasileiro despojava os pobres, pois, entre outros escandalos, apresentou como obra sua o primeiro e unico ensaio theatral de duas pennas que antes d’isso só se tinham distinguido em trabalhos de outro genero.

Esses actos reprovaveis, e reprovados, devemos ainda attribuil-os á existencia nomade d’esse peregrino da arte.

Que diabo! talento não lhe faltava! Quem escreveu Joanna Ferraz, um drama forte, não precisava absolutamente pôr em pratica a maxima de Moliére, convindo notar que no seculo XVII o plagio era quasi uma prerrogativa, e hoje é uma vergonha.

Moreira de Vasconcellos quiz fazer uma actriz, e ainda n’este ponto não se afastou sensivelmente de Moliére. Infelizmente Luiza Leonardo não será, em arte, senão a eximia pianista que sempre foi. O proprio Furtado Coelho, que, segundo se dizia, era capaz de fazer representar um pedaço de pão, não obteve grande cousa das aptidões dramaticas dessa deliciosa artista do teclado.

Dizem-me, entretanto, que no papel de protagonista do referido drama Joanna Ferraz, Luiza Leonardo alcançou grandes effeitos e fez-se applaudir sinceramente. Nunca tive occasião de admiral-a n’esse papel.

Releva notar que a imprensa do norte e do sul não lhe regatêa os mais pomposos elogios, não publica o seu nome sem o cortejo de uma adjectivação excessiva; a minha opinião é, portanto, a da minoria, e sou eu o primeiro a pedir a Luiza Leonardo que não faça cabedal do que ahi dexei escripto.

Mas o melhor meio de me tapar a bocca é mostrar-se realmente uma grande actriz. Serei o primeiro a engrandecel-a no dia em que a vir representar um papel com o mesmo talento com que tocava a Marcha funebre, de Chopin.

Releva tambem notar que Luiza Leonardo contribuio, como estrella de primeira grandeza, para o exito excepcional da revista Amapá, que no norte fez a fortuna de Moreira de Vasconcellos como auctor e como emprezario, – fortuna que elle desbaratou, em parte, no Rio de Janeiro, exhibindo a mesma peça com grande luxo de enscenação.

Resumindo a minha opinão singela e franca sobre o operoso dramaturgo nacional cujo passatempo deploro, direi que elle conquistou um nome que será lembrado quando os posteros examinarem o nosso pequeno acervo litterario.

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O auctor de Joanna Ferraz seria, se Deus não o levasse tão cedo, um dos trabalhadores com quem mais poderia contar o futuro (não se riam!) o futuro Theatro Municipal.

***

Nada de novo: no Variedades prosseguem as representações da Amante do assassino e no Apollo as d’A viuva Clark.

Pede-me o auctor d’esta ultima peça para prevenir os meus amigos (e os d’elle) que a sua recita se effectuará segunda-feria proxima. Os bilhetes, diz elle, estão na bilheteria a disposição do publico. Não ha convites por cartas.

***

Chegou hontem do Sul a companhia Lucinda Simões, que depois de amanhã reapparecerá com a Casa de bonneca.

O espectaculo e cheio de attractivos: como se sabe, o festejado drama de Ibsen é muito bem representado pelos excellentes artistas capitaneados por Lucinda, e o theatrinho, que tem o nome da primorosa actriz, enfeitou-se todo para recebel-a, e receber Lucilia, ai-jesus da imprensa de Buenos Aires e de Rio Grande. Está o Lucinda que nem um brinco!

A. A.

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O Theatro, 09/03/1900

Hontem, ao meio dia, o edificio da Comédie-Française foi reduzido a cinzas. Tal é a dolorosa noticia que hontem mesmo nos trasmittio um telegramma de Paris, publicado por esta folha.

Já hoje, pelo Paiz, lastimei profundamente esse desastre, que priva Paris, a França, a Europa, o mundo inteiro, do templo augusto em que se sacrificava com mais veneração á arte dramatica, e onde se conservava, ha um seculo, a tradição de glorioso theatro francez.

No mesmo artigo lamentei que o fogo devorasse tantos thesouros iconographicos accumulados na casa de Moliére, que, além de ser o primeiro theatro do mundo, era um opulento museu de pintura e esculptura, visitado pelos estrangeiros com o mesmo interesse com que percorriam as preciosas collecções do Louvre, do Luxembourg, de Versailles, Cluny, Carnavalet, etc.

No momento de escrever estas linhas, não li ainda os jornais de hoje, ainda não conheço os pormenores do incendio, e faço votos para que tantas e tão insubstituiveis riquezas tenha escapado ás chammas. Toda a historia da Comédie – Française, desde Moliére, estava alli representada em quadros, bronzes, marmores, gravuras, desenhos, autographos, livros, documentos de toda a especie.

Aperta-se-me o coração ao lembrar-me que a estas horas a biblioteca do Theatro Francez não é – quem sabe? – mais do que um montão de cinzas, e que tenham sido queimados os unicos autographos, que existiam, de Moliére, e tambem o famoso registro de Lagrange, que tanto contribuio para elucidar a historia do troupe do immortal poeta.

Não é o desapparecimento do edifico que me inquieta, mas sim do que lá estava dentro; a Comédie-Française não acaba, mesmo porque não se comprehende Paris sem ella, mormente o Paris de 1900, recebendo a visita de todos os povos durante essa esplendida e sumptuosa festa do trabalho com que vai fechar o seculo. Os artistas irão para outro theatro, improvisado embora, e os espectaculos da casa de Moliére soffrerão apenas uma ligeria interrupção. O que me rala, o que me agonia é lembrar-me de que o incendio fosse tão rapido e tão violento que destruisse tudo.

***

Agora aqui vai um pequeno historico endereçado aos leitores, se os ha, que não conheçam, ao menos por tradição, a casa de Moliére.

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Depois da morte do poeta, em 1673, a companhia de que elle era actor e emprezario e que trabalhava n’uma dependencia do Palais-Royal, transferio-se para o theatro Guenergand, da rua Mazarine.

Em 1680, por ordem de Luiz XIV, a mesma companhia fez fusão com a famosa troupe de l’hôtel de Bourgogne, e foi então creada a Comédie-Française, nome official que até hoje conserva.

Em consequencia d’essa fusão e da supressão do theatro Marais, havia em Paris aquelle unico theatro, que recebia por anno uma pensão real de 12.000 libras.

Os artistas eram em numero de 27, entre os quais brilhavam a Champmeslé, Baron, Hauteroche, Poisson etc.

Em 1687 a Comédie-Française transportou-se do theatro Guenegand para um sala de jogo da pella, na rua des Fossés-Saint-Germain-des-Prés, que actualmente se intitula de l’Ancienne-Comédie, e ahi se conservou até 1770. Foi ahi, mesmo em frente do celebre Café Procope que foram representadas as tragedias de Voltaire; foi lá que brilharam Lekain, Clairon, Adrienne Lecouvreur, etc.

Em 1771, a Comédie-Française mudou-se para as Tulherias, onde occupou o theatro que mais tarde foi transformado para as tragicas sessões da Convenção.

Em 1782 ella construio um theatro seu, no local até então ocupado pelo palacio de Condé, e n’esse theatro, que ainda existe (é o Odéon), conservou-se durante toda a Revolução.

Ahi foi representado o Casamento de Figaro; ahi surgiram Talma, Dazincourt, Fleury, Saint-Phal, Molé, Mmes. Rancourt, Contat, Suin, Thenard, etc.

Em 1792 o pessoal da Comédie-Française se dispersou, e só se reconstituio em 1802, construindo então o theatro que hontem ardeu, e cujo palco foi honrado por Talma, Ligier, Provost, Beauvallet, Sanson, Regnier, Got, Brindeau, Bressant, Delaunay, Mounet-Sully, Coquelin, Mlles.Mars, Georges, Duchesnoy, Rachel, Agar, Augustine Brohan, Sarah Bernhardt, Reichemberg, Bartet, etc.

Depois da revolução, a Comédie-Française tem tido 13 administradores. O 1º foi Maherault; o decimo 13º é Jules Clarétie, que necessariamente hontem passou momentos bem amargos.

O Estado Francez subvenciona a Comédie com um milhão de francos annualmente.

***

Casa de boneca, Francillon e A Tosca são as peças representadas pela excelente companhia Lucinda Simões depois que voltou do Sul. Do bom

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desempenho de qualquer das tres peças já tratei nos meus folhetins; estou, portanto, dispensado de insistir.

A empreza, que acaba de fazer acquisição de mais um artista de merecimento, Eugenio de Magalhães, promette agradabilissimas noites no Lucinda, e tem uma porção de bons projectos, que a seu tempo serão assoalhados.

***

No Recreio inaugurou os seus trabalhos uma nova “empreza artistica theatral”, com a 1º representação de Nhã baroneza, vaudeville em 4 actos de Isaias de Assis, musica de Assis Pacheco.

A musica é muito graciosa, e a peça, não obstante as inverossimilhanças de que está cheia, aliás desculpaveis n’aquele genero, revela, a par de alguma inexperiencia, muita habilidade. Pelo menos faz rir, – e fazer rir é muito difficil.

Brandão tem um papel nas suas cordas, e Gabriella Montani, Elisa de Castro, Barbosa, Nazareth, Francisco de Mesquita e outros artistas dão muito boa conta do recado.

Raposo, actor que decididamente vai cahindo nas boas graças do publico, interpreta com vivacidade e leveza um moleque pernostico, uma especie de “demonio familiar”, um tanto carregado pelo auctor. É pena, porém, que o artista, fazendo um moleque do Rio de Janeiro, taralhão, insolente e capoeira, typo essencialmente carioca, falle como um preto de Angola. É um defeito de observação que eu jamais notaria se se não tratasse de um actor cujo tirocinio acompanho com interesse.

***

No Variedades, a companhia Dias Braga fez uma reprise do Vinte e nove, e no Apollo continuam as representações da Viuva Clark.

A. A.

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O Theatro, 16/03/1900

Impressionado pelo incendio do theatro da Comédie-Française, procurei uma leitura de circumstancia e encontrei-a no curiosissimo numero especial do Figaro ilustré, publicado em junho de 1897, e consagrado inteiramente á Casa de Moliére.

Recommendamos a leitura d’esse numero especial a quantos desejem conhecer de perto a historia,as tradições, os costumes e a economia d’aquelle theatro, o primeiro do mundo. É uma polyanthéa em que figuram Sarcey, Clarétie, Paul Perret, Got, Truffier e Emile Berr.

A parte artistica é também muito curiosa: além das reproduções do retracto de Moliére, por Mignard, do de Talma, por Picot, e do de Rachel, por Gêrome, alli se encontram illustrações photographicas instantaneas, coloridas, com os retratos de todos os artistas nas scenas principaes do repertorio antigo e moderno, além da reproducção dos dous famosos quadros de Geffroy, que foi actor, pintor e gravador, representando todo o pessoal da Comédie em 1840 e 1864, telas que se achavam no foyer des artistes e naturalmente desappareceram no incendio.

Do artigo de Sarcey, Le repertoire classique, traduzirei algumas linhas que nos podem servir de ensinamento. O grande critico dá-nos o segredo d’aquella encantadora homogeneidade que se nota na Casa de Moliére, onde os artistas parece completarem-se uns aos outros, e, assim harmonisados, dão, representando, uma idéa justa da vida real.,

“É porque, em regra geral, diz Sarcey, o societario inicia e termina a sua carreira na Comédie. O uso estabeleceu que mesmo os pensionistas sem bastante talento ou habilidade para forçar as portas do societariato, só deixam a Casa por sua boa vontade. A maioria d’elles prefere ficar, embora occupando uma situação inferior. Não é pequena honra para um actor poder mandar imprimir nos seus bilhetes de visita: de la Comédie Française.

Graças a esta organisação e a esta harmonia de costumes, houve sempre alli uma companhia de actores que, impregnando-se,quando jovens,da tradição, souberam guardal-a fielmente e transmitil-a sem interrupção aos seus successores.

Entre Féraudy e Moliére, a cadeia não conta mais que sete ou oito nomes, que são os seus anneis. Féraudy foi o discipullo predilecto de Got, Got trabalhou ao lado de Monrose, Monrose conheceu Dazincourt, Dazincourt aprendeu com Préville, e Préville com Poisson, e Poisson poderia apertar a mão de um contemporaneo de Moliére.

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Seria exaggerado dizer que todos os anneis da cadeia são formados por grandes nomes. Alguns ha que não reluzem tanto.

Lembra-me que na minha mocidade, escrevi contra Talbot, que no seu genero não era de primeira ordem,sendo,aliás, actor muito acceitavel. Um dos velhos frequentadores da comédie,encontrando-me depois da publicação de um dos meus folhetins, chamou-me de parte e disse-me: “O senhor faz mal; Talbot tem uma grande virtude: mantem a cadeia.” E como eu o interrogasse com o olhar: “Sim, respondeu elle; certos generos de papeis nem sempre encontram um artista superior a quem possam ser confiados; é forçoso então recorrer á mediocridade honesta, que serve de ponte entre o grande actor que desapareceu e o grande actor que ha de vir. Talbot é dos taes que asseguram a perpetuidade do repertorio.”

Reconheci depois quanto era justa essa opinião.Nós não temos, infelizmente, um repertorio que seja preciso conservar

como o fogo de Vesta; mas não ha duvida que uma das causas da nossa decadencia, em materia de theatro, é justamente a instabilidade do pessoal artistico. As nossas companhias dramaticas renovam-se de mez em mez, e isto necessariamente as desconcerta.

Para explicar os motivos do afastamento do publico, tenho ouvido muitas vezes dizer que elle se cansa de vêr sempre os mesmos artistas no mesmo theatro. Ora, é justamente o contraio que o aborrece. A primeira qualidade de uma companhia é ser “afinada”, para empregar aqui uma expressão de bastidores que exprime perfeitamente a minha idéa. Não é um paradoxo dizer que, n’uma companhia “afinada”, mesmo os artistas mediocres se tornam dignos de attenção e applauso. Um exemplo recente d’esta verdade tivemol-o no pessoal da companhia de André Maggi e Clara Della Guardia, na qual cada um dos artistas contribuia, evidentemente, para que os collegas fizessem a melhor figura.

Nos nossos theatros, salvo honrosas excepções, não ha mais artistas que se dêem ao trabalho penoso, reconheço, de decorar os seus papeis, e o leitor sabe,a menos que desconheça completamente a arte, que um artista, não tendo o seu papel na ponta da lingua, prejudica o seu trabalho, é certo, mas prejudica ainda mais o trabalho dos deus companheiros de scena. Não ha, não pode haver actor que trabalhe limpamente quando não lhe dão a deixa.

Ora, calculem o que será o dialogo, entre um artista experiente, consummado, que conheça todos os segredos do palco, mas não saiba patavina do seu papel, e um actor novel, principiante, bisonho, que esteja, coitado! á mercê do seu interlocutor, sem saber como ouvir, nem como gesticular, nem

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como responder, sem preparar os seus effeitos, quando todos sabem que no theatro não ha effeitos sem preparo!

Nós ainda temos, graças a Deus, aqui e alli, alguns artistas que, consagrados, animados do mesmo zelo, ajudando-se uns aos outros, podem formar uma companhia homogenea, harmonica, “afinada”, que vibre, attraia e enthusiasme o publico; mas para isso é imprescindivel uma estabilidade, uma perseverança que, infelizmente, não é a qualidade dominante entre os nossos artistas.

É verdade que muitas vezes os emprezarios são os primeiros culpados d’essa inconstancia, e outras vezes certas condições precarias contribuem para os resultados que deploro; mas, argumentando assim, não sahiremos de um circulo vicioso, e no theatro, como em tudo mais, é necessario combater nãos os effeitos, mas as causas.

Confesso: aborrece-me ver todos os dias esta noticia que apparece nos jornaes com uma lastimavel insistencia: “Desligou-se da companhia tal o actor Fulano”. Quer dizer que a respectiva empreza descalçou uma luva que se lhe ia afeiçoando á mão.

Sigamos o conselho que resulta do artigo de Sarcey: evitemos que se quebrem os elos das cadeias que mantem, não o repertorio, mas a famosa “afinação” sem a qual o publico decididamente não toma a serio nenhuma tentativa de arte dramatica. Decore o artista o seu papel, embora o diabo lhe sopre no ouvido a convicção de que o representará uma unica vez, para meia duzia de espectadores. É a isso que se chama consciencia.

***

Nada de novo nos nossos theatros.A excellente companhia de que são os emprezarios Lucinda Simões e

Christiano de Souza, depois de exhibir A Fosca, Monsieur Alphonse e o Lenço branco, annuncia para hoje A Lagartixa, grande successo do anno passado, successo que sem duvida será renovado agora. (*)

– Apollo annnuncia as ultimas representações da Viuva Clark, e annuncia para breve O Tragabalas, opereta arranjada por Accacio Antunes, musica de Costa Junior.

– Variedades promette-nos para amanhã mais um drama, o Domador de feras, de Dennery, traduzido por Moreira Sampaio e Azevedo Coutinho.

– O Recreio tem quasi prompta uma magica, o Besouro encantado, e está dando as ultimas representações de Nhã baroneza.

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Hoje é a recita do auctor. Desejo sinceramente ao meu prezado collega Isaias de Assis que seja mais feliz (não façam caso da rima) do que foi, na sua recita, o auctor da Viuva Clark.

Para isso, basta que todos os seus maigos resolvam ir ao Recreio.A. A.

(*) Este folhetim foi escripto e deveria ter sido publicado hontem. – No. da R.

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O Theatro, 22/03/1900

A companhia Dias Braga, que tem as malas promptas e vai partir, na proxima segunda-feira, para o Norte, acaba de fazer reprise do drama em 5 actos e 6 quadros, O domador de féras, de Dennery, bem traduzido por Moreira Sampaio e Azevedo Coutinho.

A peça tinha sido representada, ha um bom par de annos, no Recreio Dramatico, pela propria companhia Dias Braga, que depois d’isso passou por grandes transformações.

O Domador apenas me deixara uma impressão: a de uma queda d’agua a valer, que era, necessariamente, o clou do espectaculo. No Variedades a agua é fingida, mas a peça nada perde com isso, Nada perde nem ganha: o quadro aquatico pode ser supprimido sem que ninguem se queixe, e creio bem que n’essa viagem do Norte Dias Braga não levará comsigo aquella cascata. Será um trambolho de menos.

O drama (não fosse elle de Dennery!) dispõe de outros “matadores”; admira-me até que o deixassem durante tantos annos sepultado no archivo. É o que se chama de “peça para o povinho”, com todos aquelles extraordinarios effeitos que o celebre dramaturgo conseguia pondo de alguma forma em pratica a terrivel divisa dos jesuitas: conseguir os fins sem se importar com os meios. O bom senso, ou, se quizerem, a verossimilhança é muito sacrificada, mas o espectador que aprecia esse genero de peças não leva para o theatro nenhum espirito de critica, e chora, ou ri, conforme a vontade omnipotente do auctor.

Releva dizer, e o digo com satisfação, que a parte um ou outro defeito remediavel, o desempenho dos papeis do Domador de féras faz honra á companhia Dias Braga. O emprezario interpreta brilhantemente o grand premier role do protagonista, e ao seu lado fazem boa figura Apollonia Pinto, Aurelia Delorme, Marques, Eduardo Vieira, Grijó, Bragança e um estreante, o actor portuguez Santos Ferreira, que tem magnifico porte scenico e muito boa dicção, o que infelizmente é raro nos theatros brasileiros. Dizem-me ser esta a primeira vez que esse actor representa como profissional, pois até agora só o tem feito como amador. Ninguém o dirá.

Note-se que o papel do velho almirante, que lhe foi distribuido no Domador de féras, pouco se affeiçoa ao temperamento do artista, que de mais a mais parecia terrivelmente preocupado com a sua espada; mas sou capaz de apostar que o Santos Ferreira satisfará plenamente quando a empreza lhe confiar um papel “de dizer”... e sem espada.

A companhia Dias Braga tem todos os elementos para realisar uma excursão futurosa. O seu repertorio é vastissimo e variado, e o seu pessoal

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excellente. Se já não tem Eugenio de Magalhães e Adelaide Coutinho, duas perdas realmente sensiveis, adquirio, em compensação, Olympia Montani, Canario e esse Santos Ferreira, que ou eu me engano ou lhe vai prestar os mais relevantes serviços.

***

A companhia dramatica dirigida por Lucinda Simões e Christiano de Souza tem conseguido, graças á Lagartixa, attrair muita concurrencia, o que n’esta época de casas de chopps e cafés cantantes, ou berrantes, póde ser considerado um verdadeiro milagre.

Nada direi sobre o hilariante vaudeville de Georges Feydeau, que incomparavel traductor Eduardo Garrido (diga-se a verdade) tornou ainda mais hilariante: escusado é repetir o que escrevi quando a peça foi exhibida pela primeira vez.

Direi apenas que a representação está agora mais viva e mais harmonica; os artistas, desde o primeiro até o ultimo absolutamente senhores dos seus papeis, movem-se com um entrain que o publico já está deshabituado de ver nos nossos palcos.

Deshabituado, diga-se, pela obvia razão de que as peças actualmente não se sustentam em scena, como outrora, o tempo indispensavel para estabelecer uma harmonia difficil de obter no decurso dos ensaios, na maior parte dos casos insufficientes e rapidos. Os pobres astistas não têm tempo de ensaiar as peças antes da representação, nem de as representar depois dos ensaios. O caso é esse.

A Lagartixa é n’este momento exhibida no Rio de Janeiro como deveria sel-o toda e qualquer peça no espectaculo de estréa. Durante a representação o ponto póde ir jogar xadrez com o contra-regra. Nem um nem outro são necessarios alli. Que idéal...

***

A Viuva Clark recolheu-se envergonhada aos bastidores do Apollo, depois de duas duzias de representações inglorias e com o prejuizo de alguns contos de réis para a sympathica Associação Theatral Fluminense, digna de melhor sorte.

Eu, auctor da peça, não tenho que me queixar senão de mim; nem mesmo exerço o classico direito, que se concede a todo o condemnado, de maldizer os seus juizes. Quando tinha menos idade, revoltava-me contra o que me parecia – e não era – uma injustiça do publico; hoje, que lá vou para o mezzo del camin, curvo aos seus arestos e cabeça meio encanecida. Embora muitas vezes não peça, elle tem sempre razão.

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Só de mim me devo queixar, repito. A representação, sem ser brilhante, não era má. Clelia foi prodigiosa no papel da baroneza, escripto expressamente para ella; Peixoto e Herminia, meus velhos companheiros de lides theatraes, fizeram o mais que podiam fazer para salvar a peça; Galvão, um dos nossos primeiros actores, foi o Saraiva com quem sonhei; Adelaide Lacerda fez um creação – porque não direi notavel? – interpretando o papel de Eulalia, e os outros, uns mais outros menos como sempre succede, deram a melhor conta do recado. De um d’elles me occuparei mais abaixo.

A peça estava bem marcada e ensaiada pelos meus distinctos collegas Acacio Antunes e Machado Corrêa. A musica de Costa Junior é saltitante e bem feita. A empreza não olhou a despezas de enscenação: Carrancini contribuio com toda o seu talento de scenographo e Augusto Coutinho com toda a sua habilidade de machinista. Capitani caprichou para que a sua magnifica oschestra brilhasse, como brilhou, e os côros cantaram irreprehensivelmente. Não me posso queixar senão de mim.

Mas agora que a minha infeliz Viuva desappareceu no tenebroso porão do Apollo, agora, que não posso ser accusado e vir fazer reclame a um trabalho meu, pois que esse trabalho já não existe, deixem-me agradecer á Associação Theatral Fluminense a delicadeza de, infelizmente para ella, se haver lembrado de mim para fornecer-lhe a peça de estréa,e o asseio, o cuidado, a consciencia com que a pôz em scena; deixem-me agradecer aos artistas a boa vontade com que interpretaram; deixem-me agradecer a todo o pessoal do Apollo o muito que fizeram pelo meu trabalho.

Todo meu desejo é que Tragabalas, a opereta de Acacio Antunes e Costa Junior, cuja 1º representação está annunciada para amanhã, possa reparar os prejuizos causados pela Viuva Clark. Faço votos para que a fortuna da nova peça não se limite aos louvores aliás honrosissimos da imprensa, como aconteceu á outra; mas que o publico fluminense concorde com esses louvores e applauda durante cem representações.

Entretanto, estou satisfeito de ter escripto a Viuva Clark, porque ha uma circumstancia que me consola: a minha burleta (já houve quem dissesse que foi essa classificação de burleta que me enguiçou a peça) a minha burleta foi a revelação de um artista, que vivia ignorado, e de quem hoje, apezar do trambolhão da Viuva, toda a gente falla. Refiro-me ao actor Antonio Serra, que tão bem comprehendeu e reproduzio, physica e moralmente, o papel de Freitinhas, e inventou aquella bonita e pittoresca silhouette do preto velho, servente de secretaria, trabalho delicioso de observação intelligente.

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Antonio Serra tem (lá vai a chapa) um bello futuro diante de si; é, pois, caminhar para a frente, ouvindo os conselhos de Peixoto, o mais leal dos collegas, e de Acacio Antunes, o mais carinhoso dos amigos.

***

Os ultimos correios da Europa trouxeram a noticia do fallecimento de dous artistas parisienses muito conhecidos: Léonce e Magdaleine Brohan.

Ambos estavam já retirados de scena. Elle morreu octagenario; ella quasi setuagenaria.

Tive ocasião de apreciar Léonce no papel de Loriot, de Mam’selle Nitouche, em que representava primorosamente uma scena de embriaguez, e Magdeleine Brohan em diversos papeis na Comédie Française, mas em nenhum como na velha viscondessa de Le monde ou l’on s’ennuye, em que era incomparavel.

Bom tempo!...Desculpem-me os leitores a mania das recordações. Não lhes disse mais

acima que vou para o mezzo del camin?

***

O espectaculo que amanhã se realisa no Variedades é dado em homenagem á memoria do nosso illustre companheiro Figueiredo Coimbra, fallecido a 23 de março de 1899.

D’essa delicada e piedosa lembrança é digno o saudosissimo auctor de Carta anonyma.

A. A.

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O Theatro, 06/04/1900

Acabrunhado pela dolorosa e inesperada noticia do fallecimento de meu querido irmão Americo Azevedo, de quem ha longos annos me achava separado, não pude escrever o folhetim de quinta-feira; ficaram, portanto, no tinteiro algumas linhas que desejava consagrar á opereta Tragabalas, extrahida por Acacio Antunes da famosa comedia Auguste Vacquerie que tem quasi o mesmo titulo, e posta em musica pelo nosso talentoso compositor Costa Junior.

Agora é tarde para fallar da peça, que teve pouco mais ou menos a mesma sorte da minha pobre Viuva Clark. Que importariam ao publico ou aos artistas os meu louvores ou os meus reparos?

Tragabalas cahio? Não, não cahio, porque para isto seria indispensavel que primeiramente o julgassem; sem julgamento não ha condemnação razoavel.

N’outra quadra menos calamitosa para o theatro, Tragabalas teria feito a sua obrigação, como se diz em gyria de bastidores, isto é, teria dado trinta a cincoenta “boas casas”. Quero mesmo crer que a minha Viuva, em que pese a todos os seus defeitos, não se limitaria a duas duzias de representações desanimadoras.

O publico fluminense tem caprichos inexplicaveis, e, por isso mesmo que são inexlicaveis, toda a gente quer explical-os a seu modo. Elle voltará theatros, como das outras vezes tem voltado. Tranquillisem-se que muito breve os cafés cantantes, os parques, as casas de chopes, etc., o enfararão até a repugnancia. O fluminense foi sempre theatreiro; não ha razão para que perdesse tão bruscamente essa qualidade.

Infelizmente os nossos actores – e quem negará que tenham razão? – deixam-se vencer pela injustiça do publico, não se esforçam para conjurar a crise. Parece-me que, na actual emergencia, deveriam todos, pelo contrario, multiplicar esforços e sacrificios.

As primeiras representações de certas peças resentem-se visivelmente da quasi certeza do insucsesso. O espectador não ouve mas lê esta phrase na physionomia dos interlocutores: – Ora, não vale a pena esforçar-me!

Pois vale. É tomando a sério o trabalho que os artistas poderão fazer com que o publico meça toda a extensão da sua injustiça, e volte a applaudil-os com a mesma generosidade, com o mesmo enthusiasmo de outrora.

***

O meu luto não me deixou assistir, no Lucinda, á representação da Cigarra. Bem sei que o dever profissional exige que o chronista mesmo enojado, pela morte de um irmão, assista a qualquer espectaculo; mas que querem? – ir ao

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theatro na situação moral em que me acho é um heroismo superior ás minhas forças.

A julgar pela distribuição dos papeis, a interpretação da Cigarra deve ser irreprehensivel. O personagem principal, a protagonista molda-se perfeitamente ao feitio artistico de Lucilia Simões, proporcionando-lhe ensejo para patentear todo seu talento de actriz generica. Os demais personagens estão bem definidos, inclusive o de um hercules de feira, que aproveita maravilhosamente a figura athletica do sympathico e volumoso Chaby.

Esse hercules. Bibi, é um personagem episodico, fugitivo, que apparece e desapparece; mas eu vi-o interpretado em Paris pelo defunto Milher, actor de talento, creador famoso do papel do tio Gaspar nos Sinos de Corneville. Isso prova que em Paris os artistas estão convencidos de que não ha grandes nem pequenos papeis. Oxalá que o mesmo succedesse no Rio de Janeiro, onde qualquer asneirão se julga no direito de recusar este ou aquelle papel, por ter pouco que dizer, e, por conseguinte, que estragar.

***

Americo de Azevedo tem o direito a uma referencia n’este folhetim: era um comediografo, tinha o tic de famille de que falla Piron na sua Metromania.

Pudera! os tres irmãos – elle, Aluizio e eu – não tivemos na infancia outra brincadeira que não fosse o theatrinho!

Eu fiz minha estréia de auctor dramatico aos 9 annos de idade com um drama(?) intitulado Uma quantia, Aluizio só escreveu para o theatro depois de haver triumphado no romance, e Americo guardou para depois dos 30 annos os seus ensaios dramaticos.

É preciso notar que elle se considerava simples dilettante, incommodando-se muito todas as vezes que o alvoravam em profissional. O caso é que só escreveu comedias em 1 acto e para amadores.

Uma d’essas comedias, Trocas e baldrocas, elle a espichou em 3 actos, e foi representada pela companhia Ferreira de Souza. Não me consta que nenhuma outra fosse interpretada por artistas de profissão.

O publico fluminense não se deixou tentar pelo annuncio das Trocas e baldrocas e deixou o theatro ás moscas. Alguns dos meus leitores talvez estejam lembrados de que por essa occasião enchi de queixas um dos meus folhetins.

Americo pouco se importou com isso. Não tinha veleidades de comediographo. A gloria para elle cifrava-se em ver algumas das suas comedias impressas nas folhinhas Laemmert.

Entretanto, eu acompanhava com interesse os progressos da sua habilidade desde uma farça engraçadissima, Por causa de um chapéo,até os Viuvos,comedia

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em versos,que espero ver representada e applaudida na cidade natal de Martins Penna.

Ahi vão mais alguns titulos de peças que elle deixou: O Malaquias, Um par de commendadores, Um marido modelo, o Fim do mundo e os Milagres de São José de Ribamar, a ultima, que não conheço.

Escaparam-me alguns titulos, e creio que elle deixou trabalhos ineditos. Tenciono reunir e publicar os seus escriptos n’um volume; é esse livro um preito da minha saudade e do meu amor fraternal.

***

Já agora, seja este o folhetim dos mortos...Morreu Crisatuli, auctor parisiense nascido em Napoles. Era septuagenario.

Escreveu muitas peças, algumas das quaes foram traduzidas e representadas no Rio de Janeiro.

Le demon du jeu, comedia que elle escreveu de collaboração com Theodore Barriére, foi imitada por Joaquim Serra com o titulo o Jogo de libras, e eu traduzi Le petit Ludovic, a pedido de Furtado Coelho, que o fez representar no Lucinda com o titulo o Pimpolho. A peça nada tinha de immoral, mas produzio escandalo, porque naquelle tempo o publico estava em maré de pudicicia. Mezes antes, e mezes depois, regalavam-se com verdadeiras pornographias theatraes.

– Morreu Victorio Bersezio, um dos mais estimados dramaturgos italianos. Nasceu em Peveragno, no Piemonte, em 1830. A sua melhor peça é os Infortunios do Sr. Travete, magnifico estudo psychologico do empregado publico subalterno. Essa comedia foi aqui representada, uma unica vez, por Cesare Rossi, em 1885.

Bersezio traduzio para o italiano quasi todas as peças de Sardou. Dirigio jornaes, fez-se eleger deputado, publicou muitos romances, novellas, etc., e historiou o reinado de Victor Emmanuel. Foi um trabalhador infatigavel.

A. A.

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O Theatro, 12/04/1900

É o Lucinda o unico dos nossos theatros a que o publico tem ido ultimamente; a Cigarra vai dando algumas casas e os artistas, animados e com razão, trabalham com certo enthusiasmo.

Está alli agora em ensaios o Amigo das Mulheres, de Dumas Filho. Se a peça conseguir chamar a attenção, e der vinte ou mesmo quinze boas representações consecutivas, será uma prova evidente de que, apezar do chopp, ainda temos publico.

Em todo o caso, lançando mão de uma comedia tão finamente litteraria como o Amigo das mulheres, Lucinda Simões e Christiano de Souza, directores da empreza do Lucinda, revelam as mais louvaveis intenções e essa grande virtude, a maior, talvez, que possam ter emprezarios de theatro: confiança no publico.

***

A companhia Dias Braga, que lá esta na Bahia realisando optimas receitas e apalpando a verdade do proverbio biblico “Ninguem é propheta na sua terra”, foi substituida no Variedades pela companhia D. Braga – um D que tanto pode ser Dias como Domingos, e é ambas as cousas.

Não sei se se trata de uma verdadeira empreza, seriamente organizada, ou de um d’esses grupos destinados aos famosos tiros, genero de espectaculos a que se deve, em parte, a desmoralisação e a ruina da nossa industria theatral.

Mettido em casa ha muitos dias e noites, subjugado pela influenza, não pude apreciar in anina vile os espectaculos do Variedades, e o unico écho, que recebi, da representação dos Seis degráos do crime, consta de uma carta que me dirigio, um velho amador, que vio, pelos modos, o papel de Julio Domaly interpretado por João Caetano dos Santos.

Não sei como no theatro ainda se não convenceram, de uma vez por todas, que lançar mão d’esses melodramas sexagenarios é um recurso negativo. A exhumação de semelhantes peças póde interessar apenas aos fluminenses de oitenta annos, que já não vão ao theatro, – e o facto de terem sido ellas bem representadas outr’ora, como o não podem ser nos nossos dias, afasta necessariamente um ou outro velhote que porventura resolvesse deixar os seus commodos.

Que diabo! pois não ha ahi tantas peças novas, que o Rio de Janeiro não conhece?... A grande fornalha de sahiram aquelles famosos Seis degráos não trabalha ainda, noite e dia, espalhando pelo mundo inteiro a sua producção incessante?... Para que perturbar o somno eterno d’esses melodramas?... para que procurar n’essas exhumações extravagantes outra cousa que não

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sejam ossadas carcomidas?... para que disputar aos vermes esses cadaveres esquecidos?.. Na litteratura do theatro, como em todas as litteraturas, só não desapparecem as obras-primas. Durmam em paz os velhos melodramas. Parce sepultis.

***

Surprehendeu-me a notica de que a nossa boa Clelia havia sido desligada da companhia do Apollo. Que motivos a teriam levado, perguntava eu a mim mesmo, a despedir-se de um theatro onde estava tão satisfeita e era tão estimada? Dar-se-ha caso que a Clelia, de ordinario tão razoavel, tão discreta, tão mettida comsigo e com o seu trabalho, tão alheia ás intrigas dos bastidores, se desaviasse com uma empreza dirigida, no palco e fora do palco, por dous cavalheiros de uma delicadeza inexcedivel?

Perdia-me n’um dedalo de conjecturas, quando recebi a visita da Clelia, que me trouxe todas as explicações desejaveis. Ella não se despedio: despediram-na.

– O que me aborrece, disse-me a veneranda actriz, é que quantos me encontram me perguntam por que sahi do Apollo. Venho pedir-te que digas ao publico o motivo que levou a empreza a dispensar os meus serviços, motivo que consta d’esta carta e, como verás, nada tem de desairoso para tua velha amiga.

Dizendo isto, a Clelia mostrou-me a carta que vou transcrever, porque a isenta de qualquer commentario maligno e, longe de ser um documento que a deslustre, é um attestado dos seus merecimentos. Não vai n’isto, escusado é dizer, o menor desejo de ser desagradavel a uma empreza a que devo muita estima e reconhecimento; o meu fito é pôr uma artista que admiro e prezo a coberto de qualquer supposição desairosa.

Eis a carta:“Exma. Sra. D. Clelia do Araujo. – Obedecendo ao programma traçado ao

iniciarmos a empreza que dirigimos, temos que ter em vista, principalmente, a economia.

Não desconhece, por certo, V. Ex. os prejuizos que a referia empreza tem soffrido com as peças que tem montado, não só pela indifferença que o publico vota ao theatro, como ainda pela crise geral que atravessa o paiz.

Não extranhará, portanto, a deliberação que vamos tomar com referencia a V. Ex., porquanto a causa é unicamente, procedendo a economias, podemos cumprir á risca, como até aqui, os compromissos da dita empreza.

Nas peças que para a futuro vamos montar, não tem V. Ex. papeis em harmonia com o seu valioso merecimento artistico, e lamentamos que assim

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succeda, pois que o seu concurso no desempenho de qualquer peça seria, por assim dizer, uma garantia para a empreza.

Dispensando, pois, os seus serviços (e creia que é com magoa que o fazemos), apellamos para o seu bom criterio, afim de julgar de semelhante resolução, unicamente o dever que nos impõe a administração do capital que nos foi confiado.

Aproveitamos o ensejo para lhe agradecer o quanto concorreu para que, com o excellente desempenho que deu ao papel que lhe foi confiado na Viuva Clark, a mesma alcançasse, não só os elogios da imprensa, mas ainda os applausos d’aquelles, ainda que poucos, que assistiram ás representações da referida peça.

O nosso fraco prestimo fica sempre ao dispor de V. Ex., e, subscrevendo-nos com o maximo respeito e subida consideração, somos, de V. Ex. etc. – Acacio Antunes, José Joaquim de Freitas. – 5-4-1900.”

Como se vê, essa carta, delicadamente escripta, é um diploma dos bons serviços de Clelia, – e, se alguma cousa houvesse que extranhar na resolução da sympathica empreza, seria que, tratando-se de medidas economicas, aliás muito louvaveis, a primeira figura sacrificada fosse precisamente a mais illustre.

Mas isso é um facto de ordem intima em que não me devo metter. Cada um governa a sua casa como entende.

***

Outra visita que tive foi a do Sr. Miguel Fortes, o emprezario a quem devemos o grande obsequio de nos ter feito admirar e applaudir a deliciosa Clara Della Guardia.

Esse cavalheiro é representante e socio da empreza Luiz Pereira, que acaba de organizar em Lisboa uma grande companhia dramatica destinada ao Rio de Janeiro, composta de artistas dos theatros D. Amelia e Gymnasio, e dirigida pelos actores João Gil e Alfredo Santos.

No elenco da companhia, que sahirá d’aquella cidade a 5 de maio próximo, figuram muitos artistas vantajosamente conhecidos no Brasil, como sejam Barbara Volchart, Maria Falcão, Carolina Falco, Amelia Pereira, Josepha de Oliveira, Telmo, Augusto Antunes, Antonio Pinheiro, Setta da Silva e outros.

O primeiro nome da lista é o da jovem actriz Georgina Pinto, de quem o Sr. Fortes me disse maravilhas.

No repertorio figuram algumas peças ainda não representadas n’esta capital: entre ellas um drama inedito de Julio Dantas, Terra de Vera-Cruz,

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escripto expressamente para o Brasil e commemorativo das festas do centenario.

A companhia irá trabalhar no Lucinda, transferindo-se para o Sant’Anna ou para o Variedades os excellentes artistas que n’este momento dão representações n’aquelle theatro.

***

Ainda outra visita: a de Orestes Coliva, que voltou victorioso do Norte, deixando os maranhenses encatadissimos pelo seu talento de scenographo e pelas suas maneiras distinctas de fidalgo antigo.

Já nas columnas d’O Paiz saudei o insigne artista italiano, em cujo peito pulsa um coração brasileiro.

A. A.

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O Theatro, 19/04/1900

Ha, não sei em que opereta franceza, um official de marinha que chega até almirante sem ter nunca posto os pés a bordo de um navio. Se um chronista theatral que não vai aos theatros póde fornecer um personagem do mesmo genero, aqui estou eu á disposição dos auctores.

O caso não é precisamente o mesmo, porque durante muito tempo fui a theatro todas as noites, e é por isso mesmo, talvez, que o meu illustre amigo Fajardo julga prudente prender-me em casa até segunda ordem, e fazer-me ver, não por um binoculo, mas por um oculo, as novidades theatraes.

O meu bom camarada Rochinha, director d’A Noticia, melhor faria se me désse outro genero de occupação, porque, nas actuaes circumstancias, só sirvo para algum trabalho cujo titulo faça lembrar o do famoso livro Voyage autor de ma chambre. Já me lembrei de substituir estes folhetins por outra serie que se intitulasse Mettido em casa ou Entre quatro paredes.

***

Mesmo sem sahir á noite, tenho entretanto, a minha reportagem: folguei de saber que o Espantalho, a nova peça do Apollo, sem ter musica nem vestimentas e scenarios espaventosos, promette compensar os prejuizos causados pela Viuva Clark e pelo Tragabalas.

Os annuncios de theatro são, e geral, mentirosos, mas os do Apollo não mentem, quando dizem que a commedia original obteve em Paris 326 representações consecutivas. Praza aos céos que a traducçãos de Acacio Antunes obtenha a quarta parte d’esse numero de récitas: será o sufficiente para uma brilhante desforra.

A imprensa, que foi unanime nos elogios ao desempenho dos papeis, collocou em primeira plana Peixoto, Serra e Barros, mostrando-se um tanto reservada com Galvão, o que me admirou, porque o personagem distribuido a esse distincto actor está muito nas suas cordas. um dos meus collegas escreveu que Galvão não dá para typos militares, e a mim me parece que é para o que elle mais dá,quando põe um par de bigodes. Não me lembra agora o titulo de uma peça portugueza em que lhe ficava a matar um papel de sargento.

Parabens á Empreza Dramatica Fluminense pelo magnifico exito do Espantalho.

***

Dispensada, por medida economica, do Apollo, a nossa velha Clelia vio, com prazer, abrirem-se-lhe as portas do Lucinda, e já alli se estreou, desmpenhando um pequeno papel na comedia Zaragueta.

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Lucinda Simões lembrou-se dos bons tempos em que a Clelia, ao seu lado, tantos serviços prestou á companhia Furtado Coelho; mas o favor, que lhe fez, maior seria se a estréa não fosse tão precipitada. A velha actriz, que é muito caprichosa no seu trabalho, teve apenas um dia, ou dous, para estudar um papel que, embora pequeno, exigia certo cuidado, – de sorte que a sua estréa no Lucinda poderia para quem não a conhecesse, justificar a medida economica da empreza do Apollo.

Comquanto Clelia, como Xisto Bahia, seja principalmente notavel nos papeis caracteristicos das peças nacionaes, poderá prestar bons serviços á companhia do Lucinda, seja qual fôr o repertorio, e serviços excepcionaes se essa companhia está, como parece, disposta a ficar no Rio de Janeiro, para fazer alguma cousa em prol do nosso theatro.

Lucinda Simões, com a sua alta competencia artistica e litteraria, com o seu nome, representa uma tradição gloriosa, com sua filha, que é a mais bella esperança do nosso palco, e rodeada, como está, por escolhidos artistas, tem hombros para carregar valentemente a cruz da regeneração da arte dramatica n’este grande paiz, e continuar a obra interrompida de Furtado Coelho, seu illustre marido.

Se os poderes municipaes cogitam em dispor honestamente, em favor do theatro, das sommas arrecadadas no theatro e para o theatro, a que outros espirito mais orientado, a que outras mãos mais habeis poderão confiar o trabalho heroico d’aquella regeneração?

É aproveitar a generosa disposição de animo em que se acha a eminente artista, e fazer com que a aurora do novo seculo marque uma era de renascimento para o theatro brasileiro.

Para isso é preciso, antes de mais nada, um edificio, um templo, que não seja nenhuma d’essas barracas, monstruosa origem da decadencia da arte e das pneumonias do publico. Não será difficil transformar o S. Pedro, o nosso querido theatro historico, onde tudo nos falla da infancia da nossa nacionalidade,n’um theatro moderno, com todos os melhoramentos de commodidade, ventilação, acustica, etc.

Se isto é um sonho, por amor de Deus não me despertem!...

***

Recebi de S. Paulo uma carta que me confrangeu bastante, assignada pela actriz Marietta Aliverti, e escripta no Hospital Samarintano, d’aquella cidade:

“Ha dous mezes, diz-me ella, que só me posso mover na cama no meio dos gritos mais horrorosos, produzidos pelas dores mais crueis. Estou condemnada pelos medicos mais notaveis de S. Paulo a morrer da morte mais dolorosa, se

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não fizer uma viagem de mar que reconstitua um pouco as minhas forças, afim de que eu possa soffrer uma operação imprescindivel.”

A pobresinha descreve-me o seu mal, – um tumor de caracter canceroso, cuja minuciosa pintura não reproduzo para não horrorisar o leitor.

E seguem-se quatro paginas de queixas e de lagrimas, muito justas por parte de uma infeliz que, emquanto servio para alguma cousa, não fez senão “salvar a situação”. “Á excepção do Acacio Antunes, diz ella, não ha no Brasil emprezario que não me deva serviços d’esses que não se pagam com dinheiro, sendo que mesmo com dinheiro alguns não me pagaram.”

Marietta Aluverti pede-me que implore para ella a compaixão dos seus collegas, e eu, accedendo á sua supplica, faço por este meio um appello que, espero, será correspondido.

A. A.

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O Theatro, 26/04/1900

Fui sempre contrario ás matinées nos theatros do Rio de Janeiro, que são theatros abertos, ou por outra, não são precisamente theatros; sem todos os effeitos da luz artificial os espectaculos afiguram-se-me simples ensaios, de uma insipidez insupportavel; entretanto, estou n’este momento quasi a fazer as pazes com as matinées: já lhes achei uma vantagem, e uma vantagem basta para justificar a existencia de qualquer cousa.

As matinées servem, realmente, para as pessoas que se acham prohibidas de sahir á noite. Se o Amigo das mulheres não tivesse sido representado domingo á tarde, ainda a estas horas eu estaria privado de tão delicioso espectaculo, notando-se que no Lucinda encontrei outras pessoas que, como eu, não podiam, por doentes, sahir de casa á noite.

É, pois, de bom aviso annunciar matinées n’esta época em que a terça parte, pelo menos, da população fluminense tem os narizes transformados em alambiques. O que não comprehendo é haver espectadores – e os ha que podendo aproveitar estas bellas noites, e tendo as vias respiratorias tão desembaraçadas como um cachimbo novo, preferem os espectaculos de dia. As matinées são frequentadas por muitos individuos sadios que á noite não apparecem aos theatros.

Mas é tempo de fallar do Amigo das mulheres, e agradecer a Lucinda Simões a coragem, a intelligencia, e a generosidade, digamos, com que nos servio manjar tão saboroso.

A acceitação que tem tido esta comedia, finamente litteraria, vale um protesto contra a afirmação inconsciente de que é impossivel o advento do theatro dramatico no Rio de Janeiro. Theatro, tel-o-hemos desde que se reunam uns tantos elementos materiaes, e principalmente moraes, que deve ser a base fundamental de qualquer tentativa seria.

A discussão d’este ponto exigiria um espaço de que não disponho no rodapé d’A Noticia, e offenderia, talvez, algumas susceptibilidades que não desejo nem de leve ferir; mas a representação do Amigo das mulheres, sem ser ideal, tendo, pelo contrario, falhas e falhas muito sensiveis, subjuga o publico. Porque que? A resposta poderia eu dal-a em meia duzia de palavras, mas seriam necessarias longas considerações para instruil-a e documental-a.

Conhecem a peça? Mette-se em cabeça a um homem distincto e muito espirituoso, mais espirituoso que Olivier de Jalin, tão espirituoso como Dumas Filho, tornar-se o protector da virtude das mulheres, que só são verdadeiramente felizes, diz elle, quando são honestas.

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De Ryons (é este o seu nome) expõe as suas theorias as Mme. Leverdet, mulher de um philosopho e amante de um solteirão, Des Targettes, – amante, digo eu, embora o auctor não deite os pontos nos is, e deixe á malicia do espectador o cuidado de advinhar aquelles amores.

Apparece Mme. de Simerose, mulher ainda moça e bonita, que está separada do marido porque este, tendo ella se recusado á consumação do casamento, foi pedir a outra o que ella lhe negou, causando com isso uma explosão de ciumes absurdos, mas violentos.

Este problema feminino interessa De Ryons, que observa, espia a não perder de vista Mme. de Simerose por amor da psychologia. Elle descobre que ella corre perigo imminente; não quer ver o marido nem pintado, mas dá ouvidos ao Sr. De Montégre todas as vezes que este só lhe falla de amor ideal.

De Ryons, para evitar que a sua protegida se perca, põe todo o cuidado em De Montégre, e estorva uma entrevista nocturna e decisiva.

Depois d’isso, Mme. de Simerose recebe o namorado... de dia, e lhe propõe uma affecção platonica. Elle acceita, (sabe Deus com que intenções!) mas n’isto apparece o Sr. de Simerose, que Dumas deixou nos bastidores, e muito a proposito, durante os tres primeiros actos.

O Sr. de Simerose, um perfeito gentleman, vem participar á sua mulher que parte para longe, para muito longe, para um paiz d’onde é provavel que não volte (felizmente Dumas Filho fez-nos o favor de não dizer que esse paiz era o Brasil), e pede-lhe que tome conta de um orphãosinho, pelo qual elle já se interessava antes de a conhecer. Ella promette proteger a criança, e não deixa de se impressionar pelo marido, mas continua a pensar em De Montégre.

Mas De Ryons lá está para mostrar-lhe esse homem tal qual é: leviano, estabanado, furioso, ciumento, injusto e até brutal.

Convencida dos defeitos de Montégre, ella offerece-se a De Ryons n’uma scena para a qual se poderia exigir melhor preparo da mão amostrada do grande dramaturgo; mas o amigo das mulheres recebe friamente essa declaração de amor, e tantas faz, e tão bem as faz, que o Sr. e Sra. de Simerose se reconciliam, – e elle esposará sem duvida a filha de um banqueiro allemão, archi-millionario, que um acto antes o pedio em casamento n’um dialogo maravilhoso de graça e originalidade.

Essa descripção, que fiz ajudado por um diccionario que pouco me ajudou, não dá idéia do que seja a comedia, cujo grande merito consiste principalmente no dialogo, de uma acuidade e de um espirito notaveis. Esse dialogo e uma habilidade incomparavel na successão das scenas e dos episodios, no preparo logico das situações e na apresentação dos personagens, fazem-me fechar os olhos sobre o que a comedia possa ter de falso e extravagante, a começar pelo

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protagonista, um typo que na vida real não poderia de certo observar com tanta facilidade a vida intima de uma senhora honesta.

Mas os proprios absurdos são tratados com tanta naturalidade e com tanta sciencia do theatro, os ditos de espirito e os paradoxos se cruzam n’um tirocinio tal que o espectador acceita e applaude aquillo tudo como a expressão exacta da vida. Dumas Filho sabia dourar as suas pilulas.

Foi por saber com que distincção, com que nobreza, com que finura e correcção Christiano de Souza desempenha os papeis do genero d’este do amigo das mulheres, que lamentei um dia vel-o ás voltas com o Kean, e protestarei todas as vezes que elle se atirar aos melodramas de capa e espada. O seu elemento é aquelle, e basta para collocal-o n’uma soberba situação artistica.

Lucilia comprehendeu e representou primorosamente o difficil papel de Mme. de Simerose, ao mesmo tempo ingenua e apaixonada, e Lucinda foi admiravel na interpretação da delicada hypocrisia de Mme. Leverdet, merecendo especial menção o pequeno dialogo com Des Targettes, no final do 1º acto, em que foi estupenda de naturalidade.

Eugenio de Magalhães metteu-se muito bem na pelle do Sr.de Simerose; o papel só tem um scena e elle representou-a com toda a correcção.

O papel de Montégre é, talvez, o mais difficil da peça; Campos não adquirio ainda musculos para lutar com o trabalho de tanta responsabilidade, – entretanto, é um actor que tem feito progressos dia a dia, desde que se estreou, e não desespero de o ver dar boa conta de papeis ainda mais difficeis,

Chaby, que ainda espera o papel a que têm direito suas aptidões, Mattos, Be[p. i.], Adelaide Coutinho e Laura Corina concorreram para a harmonia, que é um dos encantos da representação do Amigo das mulheres.

Entretanto, sei que de dia, n’um theatro aberto, sem nenhum effeito de caracterisação, de nada valem muitas vezes os melhores esforços scenicos; espero que a minha influenza dure menos que as representações da bella comedia de Dumas Filho, afim de que eu possa rectificar e ampliar minha apreciação.

O theatro e a sociedade fluminense estão como o Sr. e a Sra. de Simerose; seja a empreza do Lucinda o De Ryons que os reconcilie um com o outro, e eu serei a trombeta mais estridula de tanta benemerencia.

Para isso, é preciso impor – impor é o termo – um repertorio digno. O Amigo das mulheres está na conta. Na conta e na ponta.

A. A.

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O Theatro, 03/05/1900

Sempre ha sonhos muito exquisitos! Esta noite sonhei que estavamos em 4 de maio de 2000, e que eu lia um dos 500.000 exemplares d’A Noticia publicados n’aquelle dia!

Tão profunda impressão me deixou a leitura de um artigo da secção destinada aos theatros, que poderei talvez, com algum esforço, reproduzi-lo n’este folhetim.

Vou tentar realisar o trabalho, mesmo porque privado ainda de sahir ás noites, não sei o que se passa nos theatros.

Diz, pois, A Noticia de 4 de maio de 2000.“Ora louvado seja Deus! Já agora não duvidamos que algum dia acabem as

obras da enseada de Botafogo: não termina o seculo XX sem que a população fluminense veja inaugurado o famoso Theatro Municipal, creado por uma lei votada ha cento e tantos annos, quando a nossa formosa Guanabara tinha ainda o nome estapafurdio de Rio de Janeiro e era a capital d’esia grande Republica.

Não repetiremos aqui a descripção do theatro, que se acha, como os leitores sabem, edificado na praça Machado de Assis, fazendo fundo á estatua do illustre escriptor fluminense.

N’um dos nossos ultimos numeros demos a descripção completa d’esse edificio construido debaixo de todas as regras da arte e com todos os aperfeiçoamentos modernos.

A inauguração do theatro entrava no programma das festas organisadas pela Associação do 5º centenario e pode-se dizer que foi uma solemnidade digna de tão importante commemoração.

Como se sabe, a Associação poz em concurso um drama historico, que de preferencia tratasse do descobrimento do Brasil, afim de ser exhibido pela primeira vez neste espectaculo. Concorreram vinte autores, mas entre os vinte dramas apresentados nenhum explorava aquelle assumpto, que, theatralmente fallando, não tem, na realidade, por onde um dramaturgo lhe pegue.

Depois de longo exame, a commissão julgadora escolheu o magnifico drama O marechal de ferro, original do jovem poeta Ladislau Moscoso. Foi esta a peça hontem exhibida.

Escusado é lembrar aos leitores que “marechal de ferro”é a alcunha historica de Floriano Peixoto, esse grande soldado e estadista do seculo XIX, cuja interessante figura já mais de uma vez tem sido estudada pelos nossos dramaturgos. Foi por já existir um drama intitulado Floriano Peixoto,

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representado ha uns trinta annos no theatro Martins Penna, que Ladislau Moscoso deu á sua peça o titulo de Marechal de Ferro.

Como o nosso collega A. A. tratará minuciosamente da representação no seu folhetim O theatro, de quinta-feira proxima (I), não daremos aqui o compte-rendu exacto da peça. Diremos apenas que esta produzio optimo effeito e foi enthusiasticamente applaudida. Os versos são muito bem feitos, as scenas bem divididas, e as situações bem imaginadas; a verdade historica é que nem sempre nos pareceu muito respeitada. N’uma das scenas, por exemplo, o auctor fala da avenida do Carmo, quando essa avenida só foi aberta ha cincoenta annos, depois do arrasamento do morro do Castello.

A scena do 2º acto, entre Floriano e o ministro inglez, foi muito bem tratada pelo poeta; a celebre resposta – A bala! –, que tem dado assumpto a tantos escriptores e pintores, foi recebida com uma explosão de palmas. Na realidade foi uma bella reposta, attendendo a que em 1894 a Inglaterra era a mais poderosa nação do mundo e o Brasil uma das mais fracas. Basta dizer que tinhamos a vigesima parte, ou menos da população que hoje temos, e deviamos rios de dinheiro á propria Inglaterra, e estavamos a braços com uma guerra civil.

Ladislao Moscoso aproveitou, aliás com muita habilidade todos os ditos celebres de Floriano, ou a elle attribuidos. Outra scena de muito effeito é aquella em que o marechal de ferro, depois de aprendido a telegraphar por suas proprias mãos, fecha-se no gabinete, recusando-se a abrir a porta aos seus amigos mais intimos, porque de todos desconfia e com razão. O provecto actor Mascarenhas interpretou magistralmente essa bonita scena, e foi sublime na morte, no quadro final. De resto, a representação foi muito boa por parte de todos os artistas. O theatro Municipal tem uma companhia de primeira ordem, e será sem duvida o theatro preferido de agora em diante pelo publico intelligente.

O presidente da Republica assistio ao espectaculo, tendo ao seu lado o Sr. general João Seixas de Miranda, enviado especialmente pelo Sr. presidente da Republica de Portugal para represental-o nas festas do Centenario. No fim do espectaculo tanto o nosso presidente como o ministro portuguez foram acclamados; foi no meio da voseria enthusiastica de uma estrondosa ovação de SS. EExs. subiram no aerostato de gala que os conduzio ao velho palacio do Cattete. Este se achava em festa.

O poeta, que teve uma verdadeira noite de triumpho, não foi tambem esquecido pela multidão, que o esperou á sahida do theatro para saudal-o freneticamente.

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O autor do Marechal de ferro foi acompanhado por uma onda de admiradores até a sua bella vivenda da rua Olavo Bilac.

Quando voltavamos dessa festa que marcará uma data nos annaes do theatro fluminense, ainda nos parecia um sonho a inauguração do Theatro Municipal.

Hoje pela manhã tivemos a curiosidade de verificar quaes tinham sido os espectaculos dados nos theatros desta cidade ha um seculo, no dia do 4º centenario do descobrimento do Brasil.

Fomos á bibliotheca nacional e consultamos um jornal da época.Admirou-nos ver que no theatro S.Pedro de Alcantara, o theatro historico

que foi quatro vezes reduzido a cinzas, sendo a ultima em 1935, trabalhava uma d’essas companhias chamadas de cavallinhos, tão apreciadas no seculo XIX.

No theatro Lucinda, de que hoje não existe mais vestigios, representava-se o Amigo das mulheres, uma das mais apreciadas comedias de Alexandre Dumas Filho, um dos bons escriptores classicos de França.

No theatro Apollo, que era na rua do Lavradio, quando essa rua tinha apenas metade da extensão que hoje tem, annunciava-se a representação imminente de uma peça de occasião, intitulada o Centenario, e no Recreio Dramatico theatro que desapareceu com o arrasamento do morro de Santo Antonio, representava-se uma magica (ainda as havia!) arranjada por Bruno Nunes. Quem seria esse Bruno Nunes?”

A. A.

(I)Creio que este A. A. será algum dos meus netos ou bisnetos. – A. A.

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O Theatro, 10/05/1900

É para lastimar que entre as festas commemorativas do 4º centenario do descobrimento do Brasil não figurasse um espectaculo brasileiro; em todo caso, a empreza do Apollo alguma cousa fez, pondo em scena uma interessante allegoria de Eugenio Silveira e Manuel de Figueiredo e a velha farça Quem casa quer casa, do nosso incomparavel Martins Penna.

Estou no Rio de Janeiro vai para vinte e sete annos, e foi esta a primeira vez que o annuncio de uma peça do grande comediographo fluminense não me levou ao theatro. Quer isto dizer que ainda estou prohibido de sahir á noite, e esta declaração devo eu fazel-a em todos os meus folhetins, embora correndo o risco de me acharem ridiculo.

Raras vezes tenho sentido tanto não assistir a um espectaculo, não só pelo Quem casa quer casa, como porque não se me dava de ver transformado em Camões o meu velho amigo Peixoto, que, aliás, daria um excellente Bocage.

Sendo uma das clausulas do programma d’estes folhetins corrigir os nossos costumes theatraes, consintam que me eu insurja brandamente contra o habito, adquirido pelos nossos emprezarios, de fazerem dos estrangeiros illustres objecto de chamariz da curiosidade publica.

Estou a ver o momento em que se lê n’algum annuncio de espectaculo: “Definitivamente ultima exhibição do Sr. Fulano”, ou então: “A pedido de varias familias, o Sr. Beltrano se apresentará mais uma vez em publico”!...

Ora, sabendo-se, como se sabe, que em taes espectaculos no que em menos se cogita é em render homenagens ao Sr. Fulano ou ao Sr. Beltrano, os annuncios d’essas festas não podem ser agradaveis aos nossos hospedes.

É verdade que elles já vêm para cá dispostos a todas as semsaborias como essa de serem mostrados a tanto por cabeça como os phenomenos de feira, mas não ha duvida que os homens distinctos, quanto mais distinctos são, mais se contrariam com essas exhibições publicas, e nós deveriamos poupar todas as contrariedades ás nossas visitas.

Longe de mim o pensamento de censurar que os convidem para assistir aos espectaculos; quizera, porém, que os convidassem sem fazer da presença d’elles motivo de espaventoso reclame.

É tambem verdade que os nossos emprezarios têm uma desculpa: o afastamento do publico leva-os naturalmente a procurar attrahil-o á força de zabumbas e de pregões. O amigo das mulheres tem dado, não ha duvida, boas casas ao Lucinda; mas, francamente, desgosta-me que fosse necessaria a presença do illustre embaixador portuguez para que a fina comedia de Dumas

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attrahisse a enchente descommunal a que tinha direito desde a primeira até a vigesima representação, pelo menos.

Um facto que me entristece, porque é caracteristico do abatimento do nosso theatro, é que o Dr. Campos Salles, como aliás todos os outros chefes de Estado que temos tido depois da proclamação da Republica, não vá aos espectaculos. A presença da primeira auctoridade do paiz n’um camarote contribue, não ha duvida, para conter não só os artistas como o publico dentro dos limites traçados pelo decoro da arte, – accrescendo que não se me dava que o presidente da Republica verificasse de vez em quando, in anima vili, que é urgente fazer alguma cousa em favor de uma diversão que entende tão directamente com a civilisação intellectual da patria.

O defunto imperador peccava, talvez, por fazer justamente o contrario: comparecia por demais aos espectaculos, acceitava todos os convites que lhe faziam actores e emprezarios, não se poupava; mas é incontestavel que a sua presença infundia certo respeito, dava certa solemnidade á sala do espectaculo, e influia para a animação geral tanto na platéa como no palco.

Entretanto, eu não quizéra que os emprezarios annunciassem a presença do chefe do Estado como se annunciam os scenarios de A., os vestuarios de B., e o calçado ou a luz elétrica de C.; quizéra que elle apparecesse inesperadamente no seu camarote, quando lhe désse na vontade ir ao theatro, como qualquer particular, e, sem parecer fazel-o, inspeccionasse, policiasse, é o termo, um ajuntamento que interessa muito de perto ao progresso artistico do paiz.

***

Envio parabens ao Elite-Club pelo seu espectaculo commemorativo da data do nascimento de José de Alencar, honrado com a presença da familia do grande romancista e dramaturgo.

Constou esse espectaculo da representação da comedia Senhora, extrahida do famoso romance do illustre escriptor pelos meus conterraneos Oscar d’Alva e Marinho Aranha, e da recitação de uns bonitos alexandrinos de Julio de Freitas Junior, intitulados Ave, Alencar!

Escusado é dizer (É impossivel que d’esta vez O Engrossa não me tome á sua conta), escusado é dizer que lá não fui; entretanto, Reis Carvalho obsequiosamente me confiou o manuscripto da peça, já representada no theatro S. Luiz, do Maranhão, a 26 de março de 1896, pela companhia Moreira de Vasconcellos.

Comquanto Senhora seja um romance muito dialogado, a comedia tem os defeitos inherentes ás peças extrahidas de romances; a acção, que nas paginas

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do livro se desenvolve lentamente, com todas as precauções da analyse, no palco precipita-se com muita rapidez, tornando-se um tanto tumultuaria, e deixando o espectador sentir, entre as situações, uns vacuos que só se poderiam prehencher dando-se á peça a extensão de um drama japonez.

Entretanto, apezar de alguns pequenos defeitos da inexperiencia de dous rapazes – dous meninos, póde-se dizer – que pela primeira vez se aventuravam a trabalho de um genero em que velhos auctores têm naufragado, a comedia conserva todo o interesse do romance e aproveita os seus episodios capitaes, articulando-os com muita habilidade.

Alencar, que era dramaturgo, teria, se elle proprio escrevesse a comedia, modificado em certos pontos o estylo um tanto declamatorio do romance; os auctores da peça não se julgaram, talvez, auctorisados a fazel-o, e ninguem lhes poderá levar isso a mal.

Quando mesmo Senhora não fosse a peça viavel que é, merecedora, sem duvida, das honras de um theatro publico, a resolução, tomada pelo Elite-Club, de a pôr em scena, seria digna de apllausos e de estimulo.

Vá por esse caminho a briosa associação: escolha de preferencia producções nacionaes, de auctores conhecidos ou não, boas ou más, e prestará ao theatro brasileiro o apoio que deve constituir a condição fundamental do programma do Elite-Club.

***

O espectaculo de hoje no Recreio é em beneficio de Olympia Amoedo. Por meu gosto haveria uma enchente á cunha, sem (calembour).

A. A.

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O Theatro, 17/05/1900

Os annuncios dos espectaculos offereceram-nos domingo e ante-hontem duas singularidades que não posso deixar sem reparo, mormente hoje que me falta materia com que encher o folhetim.

Começarei pela singularidade de ante-hontem: a estréa de uma actriz cantora, a senhorita Claudina Montenegro, com tres zarzuelas “chicas”: El duo de la Africana, Chateau Margaux, La chiclanera e I comicci tronatti. Não entravam no programa Los zangoletinos nem Quien fuera libre!

O espectaculo, honrado, segundo o programma do cartaz, com a presença dos representantes de Hespanha, a dedicado ao Cassino Hespanhol, ao Centro Gallego e á Sociedade de Beneficencia Hespanhola, realisou-se no Recreio, theatro onde não funciona actualmente nenhuma companhia de zarzuela.

Mas não está nisso a singularidade; está em que esse espectaculo era ao mesmo tempo a estréa e a festa artistica, isto é, o beneficio da senhorita Claudina Montenegro.

Em materia de beneficios temos visto nos theatros do Rio de Janeiro as cousas mais extraordinarias, e o assumpto me dará, não ha duvida, panno para mangas no dia em que me dispuzer a exploral-o, mas isto de uma artista estrangeira, completamente ignorada do nosso publico, fazer beneficio na mesma noite em que se estréa, excede em exquisitice (para não dizer outra cousa) a tudo quanto me tem surprehendido até hoje. A senhorita Montenegro começou por onde os outros acabam.

Não tive o prazer de assistir á festa; não conheço o merecimento da beneficiada; mas, seja elle qual fôr, repito: é uma singularidade esse espectaculo de estréa e ao mesmo tempo de consagração.

Sim, porque o beneficio, comquanto seja um uso que se transformou em abuso, representa ainda a consagração do artista, e tanto assim é que em Paris só fazem beneficio actores ou actrizes de certa nomeada, e quando se retiram definitivamente do palco.

Objectarão que não estamos em Paris, nem mesmo em Bordeaux, como dizia o saudoso Joaquim Serra; convenho, mas se trago Paris á collecção, é porque de lá tem sahido, por bem dizer, toda a legislação dos nossos costumes theatraes.

O artista, quando se estréa, submette-se ao juizo da platéa, e quando faz beneficio rectifica esse juizo; é, pois, uma anomalia (para não dizer outra cousa) sujeitar-se o artista simultaneamente á prova e á contra prova.

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Mas, como o nosso regimen theatral está, infelizmente, cheio de anomalias, ninguem se deve admirar d’essas e de outras muitas irregularidades... para não dizer outra cousa.

– A outra singularidade, mas essa de um genero diverso, foram as seguintes linhas que me deparou o annuncio de domingo do theatro Apollo:

“Para que os artistas d’esta empreza possam gosar as festas populares que esta noite se realisam, ha hoje descanso.”

– Sim senhor! esta cá me fica! disse eu commigo, depois de ler esta estupefaciente declaração. Empreza que escolhe domingo para dar descanso aos artistas, afim de que elles apreciem as luminarias, deve figurar na exposição artistico industrial do Lyceu de Artes e Officios.

Reflectindo logo depois d’essa impressão de espanto, lembrei-me de que alli devia andar o dedo do fino humorista que é o bom Accacio Antunes, homem de tanto espirito, que o não perdeu todo durante os quatros mezes que durou a sympathica e infeliz tentativa do Apollo.

O emprego do verbo durar no preterito mais que perfeito quer dizer que a companhia Apollo se dissolveu. Dissolveu-se decentemente, honradamente, porque todos os artistas estão pagos, embora não estejam satisfeitos, e a empreza não deve um real a ninguem. Reste-lhe ao menos a consolação de ter acabado como raramente acabam as nossas emprezas theatraes.

Ha casos que não se explicam por mais que se matute: o desastre da empreza do Apollo é um d’esses casos. Não houve motivo plausível para o abandono implacavel a que o publico fluminense condemnou um grupo de artistas habituados aos seus applausos, e uma empreza que se esforçou por attrahil-o, quer pela escolha das peças, quer pelo capricho com que as poz em scena.

Vejo com pezar que tendem a desaparecer as companhias organisadas no paiz, com os nossos recursos e os nossos elementos, perigo este que ha muito tempo assignalo em pura perda.

O Rio de Janeiro está em vesperas de ser, em materia de theatro, um simples entreposto de companhias estrangeiras, como Buenos-Aires, Montevideo e as outras capitaes da America do Sul.

Toda a esperança de um theatro nacional deve ser por emquanto banida dos espiritos mais optimistas, a menos que a municipalidade... Mas qual!... quem póde contar com ella?... quem póde esperar um bom movimento da prefeitura em favor das lettras e das artes?... quem póde convencer aos nossos dirigentes de que ha mais alguma cousa em que cuidar além da maldita politicagem?... quem pode fazer vêr ao Dr. Coelho Rodrigues que, independentemente de qualquer idéa de litteratura e de arte, seria um

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dever humanitario matar a fome aos artistas com o dinheiro que lá está na intendencia, reunido á custa do trabalho d’elles?...

A empreza do Apollo deu, pelo meus calculos, setenta espectaculos pouco mais ou menos, e perdeu, também pelos meus calculos, 50 contos de réis, salvo erro. Pois bem, essa empreza, que luctou debalde, que se sacrificou em vão, que cahio vencida n’um duello de morte com a ingratidão do publico, entrou para os cofres da intendencia com uma quantia superior a dous contos de réis!

Haveria certo equilibrio de sentimentos, se a empreza sacrificada soubesse que tão penosa contribuição era, como devia ser, como é por lei, destinada ao Theatro Municipal; mas imaginem com que indignação vê um homem honesto que esse imposto, lançado, não sobre a fortuna, mas sobre a miseria, tem uma applicação diversa, e, o que é mais duro, uma applicação mysteriosa!

A lei que creou o Theatro Municipal só aproveita aos cobradores, largamente remunerados, que todas as noites são vistos farejando as pobres bilheterias como os urubús farejam a carniça dos matadouros. Muitas vezes o bilheteiro não tem ainda a quantia necessaria para pagar-lhes, e elles esperam que o dinheiro pingue das mãos dos espectadores nota por nota até perfazer o quantum da extorsão.

Outras vezes são elles os unicos espectadores, e os emprezarios fecham o theatro, porque a municipalidade não se lembrou, felizmente, de os obrigar a dar espectaculos para o entretenimento exclusivo d’esses zelosos funcionarios.

***

Que ha de novo? A companhia Lucinda-Christiano, desalojada pela companhia Luiz Pereira, que está a chegar de Lisboa, passa do Lucinda para o Sant’Anna, onde representará pela primeira vez a comedia Os Pimentas, de Eduardo Schwalback.

O Variedades e o Recreio vão fazendo o preciso para pagar o imposto á municipalidade, e no S. Pedro continua a trabalhar uma companhia equestre que, diga-se a verdade, tem tres artistas inexcediveis nos chamados jogos malabares, que têm a particularidade de não ser nem malabares nem jogos.

***

A actriz Marietta Aliverti partio, gravemente enferma, para a Italia, sua patria, onde vai sofrer uma operação a que talvez não resista.

Faço esta declaração porque houve quem andasse por ahi a dizer que a pobresinha estava de perfeita saude.

Ella pedio-me que em seu nome agradecesse não só aos collegas das companhias Lucinda e Medeiros, que por meu intermedio a socorreram,

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aquelles com 140$ e estes com 50$, como tambem ao publico e á imprensa de S. Paulo, que tão generosos foram por occasião da récita que alli se realisou afim de lhe proporcionar os meios para aquella viagem, que não é precisamente, podem crer, uma viagem de recreio.

A. A.

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O Theatro, 24/05/1900

Eduardo Schwalback é um dos melhores comediographos que Portugal tem produzido nestes ultimos tempos. Quem conhecer a sua Santa Umbelina e o seu Intimo, para não fallar do Filho de Carolina, concordará commigo.

Ora, sendo Lisboa uma capital onde funccionam durante o inverno, invariavelmente, duas companhias dramaticas de primeira ordem, – duas pelo menos, pois algumas vezes funccionam tres e mesmo quatro; havendo alli conscienciosos artistas, que decoram os seus papeis, que se esforçam para que os espectaculos seja concorridos, e um publico fiel aos seus habitos, que não troca os theatros pelas casas de chopps nem pelos cafés-cantantes, – não posso atinar com os motivos que levaram Scwalback a abandonar o theatro litterario para entregar-se de corpo e alma á revista e ao vaudeville.

Nada teria eu que dizer se lá uma vez ou outra, por simples desafio, elle sahisse da sua carreira de dramaturgo, enveredando por um atalho para surgir mais adiante, quando menos se esperasse; mas infelizmente Scwalback perdeu, ao que parece, o ideal primitivo, que o guiava no bom caminho.

Para prova ahi estão esses Pimentas, com que os artistas da companhia Lucinda Simões inauguraram os seus espectaculos no Sant’Anna, – uma comedia de quiproquós e, o que é peor, de quiproquós com muito uso, vistos e revistos em dezenas de vaudevilles parisienses.

Não ha duvida que a peça está feita com talento, porque a um Schwalback é difficil deixar de o ter, mesmo quando faz o possível para mostrar que o não tem; não ha duvida que o publico ri a bom rir e dá por bem empregado o dinheiro que deixou na bilheteria; mas – que querem? – para que eu acceitasse de cara alegre esta comedia, seria preciso que ella não estivesse assignada pelo auctor do Intimo. É o mesmo que se Paul Hervieu ou François de Curel escrevessem alguma cousa no genero da Lagartixa.

Nos Pimentas ha um filho que, abusando da estupidez do seu proprio pae, e, o que é mais repugnante, de sua própria mãi, consente que sejam ambos ludibriados e sirvam de chacota a estranhos. Bem sei que Moliére fez cousa peor nas Fourberies de Scapin, mas nesse ponto nunca o applaudi nem jamais o applaudirei.

Todavia, tirante essa falta de respeito aos pais, que poderiam ser tios, ou padrinhos, como na Familia phantastica e n’outras peças francezas que são a genero dos Pimentas, os tres actos de Schwalback me divertiram tanto como aos demais espectadores.

Se o entrecho nenhuma novidade apresenta, os personagens são engenhosamente inventados e o dialogo tem graça.

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As honras do desempenho dos papeis couberam aos actores Mattos e Chaby. Campos fez o que poude, o que não quer dizer que fizesse pouco. Lucinda e Eugenio de Magalhães, esses nada tinham que fazer relativamente ao merito de cada um, e Laura Corina foi agradavel e discreta.

A minha querida Clelia, n’um papel de provinciana d’além mar, estava, coitadinha, como peixe fora d’agua. Se aquella matrona fosse mineira, paulista ou bahiana, outro gallo lhe cantára.

Não desespéro de ver e ouvir, interpretada pelos excellentes artistas do Sant’Anna, uma comedia, não do Schwalback de Anastacia & C., mas do Schwalback da Santa Umbelina.

***

O estimavel cavalheiro Sr. Luiz Pereira tem o seu rabicho (Deus lh’o conserve!) pelo theatro. Muitos dos meus leitores devem estar lembrados de que foi á sua custa que uma famosa companhia de zarzuela veio de Buenos Aires ao Rio de Janeiro e voltou pelo mesmo caminho sem dar aqui um unico espectaculo.

Essa aventura, que custou ao Sr. Luiz Pereira alguns desgostos e muitos contos de réis, e da qual foi elle a unica victima innocente, não o indispoz contra o theatro. A prova está em que contractou em Lisboa e trouxe para o Brasil a companhia do drama e comedia que segunda-feira se estreou no Lucinda com a peça ingleza O Bibliothecario, de Arthur Pinello, traduzida pelo escriptor brasileiro José Antonio de Freitas, o Raul do Jornal do Commercio.

A peça tem umas scenas de verdadeira comedia e outras de farça e até de pantomima. Eu preferia que ella fosse uma cousa ou outra, ou bem uma comedia, ou bem uma farça, que as farças tambem são admiraveis quando bem feitas; entretanto, tratando-se do theatro inglez, é preciso acceital-o como elle é, e não como eu quizera que elle fosse.

Para isso tenho que fazer o que fazem os espectadores inglezes: conformar-me com essa confusão de generos, – rir quando as scenas são de farça e sorrir quando são de comedia.

Os espectadores do Lucinda, conquanto não estejam, como eu não estou, habituados ao comico britannico, fizeram isso mesmo: riram e sorriram. Accrescentarei que me pareciam mais satisfeitos quando riam que quando sorriam, e isto se explica pelo facto de que o nosso publico não admitte meios termos, e o sorriso é um meio termo. Quando elle vai ao theatro, é para rir ou chorar; exige que os artistas lhe arranquem lagrimas ou gargalhadas, e não se diverte quando sorri.

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Mal representado, o Bibliothecario faria dormir uma platéa que não se comprouvesse apenas com as subtilezas de um dialogo discreto; mas felizmente o Sr. Luiz Pereira trouxe-nos uma companhia como poucas aqui têm vindo, uma companhia como poucas aqui têm vindo, uma companhia que compensará, espero, os desgostos que elle amargou e os contos de réis que perdeu com a zarzuela de Buenos Aires.

Dos artistas que tomaram parte na representação do Bibliothecario apenas um não era conhecido do nosso publico: o actor Luiz Pinto que, embora interpretando um papel quasi insignificante, mostrou quanto vale, e vale muito.

Carolina Falco, Maria Falcão, Amelia Pereira, Telmo Larcher, Augusto Antunes, Antonio Pinheiro, Henrique Alves e Alfredo Santos são os nossos velhos amigos.

Antonio Pinheiro fez visiveis progressos: a interpretação do papel do bibliothecario é perfeita, comquanto esse trabalho, segundo me informam, seja copiado de um modelo illustre; mas – e aqui repito o que já disse no Paiz – copiar bem é muito difficil.

Para todos os artistas só tenho palavras de animação e louvor.A companhia é muito “afinada”, como se diz em linguagem theatral. O

pessoal, pelo que affirmaram as noticias, foi recrutado em dous theatros diversos e isso não deixou de me inquietar; mas a impressão que elle nos dá é a de haver trabalhado sempre no mesmo palco, e sob a mesma direcção.

***

O Peixoto voltou para o Recreio e, segundo me consta, a companhia que trabalha n’esse theatro pretende dar um gyro até o Norte.

Ismenia dos Santos e Eugenio Oyanguren, que hurlent de se trouver ensenble, organisaram uma companhia dramatica para dar espectaculos na cidade de Minas, ex-Bello Horizonte, e a companhia Soares de Medeiros, actualmente em Ouro Preto, mandou contrectar mais alguns artistas, que hontem subiram a serra. levados pelo actor Cezar de Lima.

O velho S. Pedro fechou de novo as portas e vae defumar-se por causa da fedentina que lhe deixaram os cavalos e cachorros dos irmãos Carlos, e tanto o café cantante da Guarda Velha como o da Lapa estão vendo extinguir-se o fogo de palha do enthusiasmo do publico.

A. A.

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O Theatro, 31/05/1900

A noite de 12 de setembro de 1888 ficou indelevelmente gravada na minha memoria. Uma companhia dramatica franceza representou essa noite, no theatro S. Pedro de Alcantara, L’Étrangère, de Dumas Filho, e Coquelin desempenhou o papel do duque de Septmonts.

Diziam-se maravilhas do grande artista n’esse papel. Não mentia a fama: o trabalho de Coquelin foi estupendo; o duque de Septmonts, interpretado por elle, é (e isto mesmo já disse eu ha dias n’O Paiz) uma das creações mais completas e originaes que conheço no theatro moderno. A frivolidade, a vilania, o cynismo, a toleima, e ao mesmo tempo a elegancia, a correcção de maneiras, a linha d’aquele fidalgo libertino que se despenha de infamia, não poderiam achar melhor interprete, nem mais consciencioso.

Na grande e originalissima scena do 4º acto, em que a duqueza declara ao marido que ama outro homem, Coquelin, frio, impassivel diante de um Niagara de injurias, foi admiravel, porque no meio d’aquella mesquinhez, d’aquella abjecção, d’aquelle anniquilamento moral, nem um momento deixou de ter as exterioridades de um fidalgo de raça, nem um instante alterou o caracter intensamente comico do typo que representava.

Antes d’aquella noite de 12 de setembro de 1888 muitas vezes perguntei aos meus botões porque na Comédie Française distribuiram o papel do duque de Septmonts áquelle artista arrematador eterno de todos os Mascarilles, Scapins e Frontins do velho repertorio, e de todos os notorios, medicos e bonhommes do repertorio moderno.

Foi um capricho (um capricho intelligente) do auctor da peça. Coquelin contou-me essa historia no seu camarim, durante um intervallo da representação. Ainda me parece vel-o com o petulante monoculo,que não tirava mesmo durante o intervalo porque era pregado a verniz e não tinha vidro.

Ahi vai a historia:L’Etrangère produzio pessimo effeito ao comité de lecture da Comédie

Française; mas uma peça de Dumas, velho amigo da casa, medalhão, academico, etc., não podia ser recusada...

– Detestavel! diziam em côro o Got, o Febvre, o Mounet-Sully, a Sarah-Bernhardt, a Croisette et reliquia; Coquelin é o único a lamber-se com um bom papel: o do americano Clarkson!

Mas qual não foi a surpreza de todo o pessoal da Comédie ao saber que Dumas distribuira a Scapin o papel de duque de Septmonts!

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O defunto Emile Perrin, que n’aquelle tempo administrava o theatro, foi ter immediatemente com o dramaturgo:

– Que quer dizer aquella distribuição, meu amigo? Diz o Coquelin, com toda a razão, que o duque não está nas suas cordas, e protesta!

– Pois se o Coquelin não fizer esse papel, a minha peça não será representada! Preciso para o duque de Septmonts de um actor de prestigio, que tenha costas largas para sustentar tudo quanto o publico possa levar á conta de extravagancia. Tenho toda a confiança no Coquelin.

– Bom. Se é assim...Mascarille carregou com a peça para casa e leu-a cuidadosamente. Essa

leitura causou-lhe impressão muito diversa da primeira: a comedia agradou-lhe; quanto, porém, ao duque de Septmonts, o artista continuava a pensar do mesmo modo: não era o seu papel.

Então foi ter com Dumas, e disse-lhe com toda a solemnidade:– Tenho em grande estima o seu talento e a sua pessoa para recusar o papel

que o senhor me destinou: acceito-o; mas se no fim de alguns ensaios não me sentir na pelle do duque de Septmonts, não haverá forças humanas que me obriguem a um sacrificio!

– Está dito, respondeu Dumas, sorrindo.Houve então a formalidade que nos nossos theatros se chama “prova de

papeis”: cada artista lê o seu.Coquelin, que já tinha estudado em todos os sentidos, por dentro e por

fóra, o seu duque de Septmonts, foi prodigioso nas inflexões e mostrou haver comprehendido a intenção do dramaturgo. Um verdadeiro successo.

Finda a leitura, os collegas comprimentaram-no, e Dumas deu-lhe um abraço, dizendo: – Allons! ma pièce est sauvée!

Coquelin sahio do theatro em companhia do auctor do Demimonde, e na rua pedio-lhe que, para caracterisar ainda mais a intenção comica do papel, accrescentasse no 3º acto, em casa de mistress Clarkson, uma scena entre o Dr. Reimouin e o duque, scena que deixasse bem patente a imbecilidade do personagem. Dumas acquiesceu de boa vontade: a scena lá está. (1)

Ainda assim, o eminente artista não se submetteu á prova publica sem uma clausula suprema:

– Se no ensaio geral ficar reconhecido que vou mal no papel, o Sr. Dumas escreverá uma carta ao Figaro, declarando que só o acceitei vencido pelas suas instancias e pela consideração e amisade que lhe tributo.

– Pois sim, respondeu Dumas, confiado na sua poderosa sciencia do theatro; pois sim...

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Representada pela fina flor da Comédie Française, a peça agradou extraordinariamente, e o duque de Septmonts valeu ao violentado Coquelin um triumpho enorme, confirmado em toda a linha critica parisiense.

***

Impressionado, como ainda estou, pelo trabalho de Coquelin, sinto-me pessimo juiz do duque de Septmonts do Lucinda; entretanto... quem sabe?... se eu não visse o papel representado pelo artista parisiense, talvez batesse palmas a Telmo Larcher, cujo merecimento aprecio.

Demais,no caso concorrente,não ha nada mais injusto que um confronto. O papel não é do repertorio do Telmo, e, se este o representa, é por uma d’essas complascencias tão communs nas excursões das companhias dramaticas, organisadas com artistas d’este e d’aquelle theatro; ao passo que Coquelin foi o creador do papel, escripto expressamente para elle; ensaiou-o cincoenta vezes pelo menos, pois todos sabem que os ensaios na Comédie Française são muito demorados, e representou-o no idioma original, ajudado pelos conselhos do auctor, e pelo perfeito conhecimento do meio em que se desenvolve a acção da peça.

A grande novidade da representação da Estrangeira era a estréa da actriz Georgina Pinto, a quem já dirigi, pelo Paiz, todos os salamalecs a que tem direito o seu incontestavel talento. É uma artista que, se tem os defeitos, tem tambem as qualidades da escola em que se formaram todas as boas actrizes portuguezas, á excepção de Lucinda Simões, individualidade á parte, que não se parece com nenhuma outra, e com quem nenhuma outra se parece.

Georgina Pinto, sem ser uma menina, está ainda em tempo de se perder vicios e ganhar virtudes. Quaes sejam aquelles e quaes sejam estas, só lhe poderei dizer com segurança depois que a vir e ouvir n’outros papeis.

Barbara Wolckart, a insigne actriz caracteristica, por bem dizer não se estreou ainda, pois não metto em linha de conta aquella marqueza de Rumiéres, tão pouco feita para ella, e Maria Falcão não tem absolutamente “caixa” para o papel de mistress Clarkson, personagem absurdo, extravagante, incoherente, e por isso mesmo esmagador.

Luiz Pinto foi um magnifico Gerard, e os demais artistas, uns mais, outros menos, deram todos boa conta do recado.

Continuo a dizer que a companhia trazida pelo Sr. Luiz Pereira é, no seu genero, uma das melhores que cá têm vindo.

***

A companhia Lucinda Simões, que está variando os espectaculos, dando cada noite uma peça do seu escolhido repertorio, promette-nos para breve A

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sociedade onde a gente se aborrece, a obra-prima de Pailleron, uma das poucas producçõs do theatro francez do seculo XIX que, na opinião do velho Sarcey, hão de passar á posteridade.

A. A.

(1) – Não sei porque, a scena entre o duque de Septmonts e o Dr. Remouin foi supprimida na representação do Lucinda.

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O Theatro, 07/06/1900

Quando no anno passado, em cada de Felinto de Almeida, ouvi a leitura da sua comedia em 1 acto, em verso, O beijo disse n’um dos meus folhetins o bem que pensava d’aquelle trabalho de dramaturgo e poeta, e lastimei que não tivessemos um palco onde essa e outras producções theatraes dos nossos escriptores fossem representadas.

Felinto appellou paras o D. Amelia, de Portugal e O beijo foi recebido aos beijos pela empreza d’esse theatro. Creio mesmo que foi contando com isso que o poeta escreveum uma comedia cuja acção e cujos personagens tanto podem ser brasileiros como portugueze. Aquella casa, aquelle casal de septuagenarios irritados um com o outro, aquella sobrinha que não quer namorar o primo por imaginar que não póde ser a mulher d’elle, e o proprio primo que volta do campo para reconciliar os avós com um beijo e desfazer o engano da prima, tanto podem ser do Rio de Janeiro como de Lisboa.

O publico lisonense, que já conhecia Filinto de Almeida por outra comediasinha em verso, o deporto, representada no theatro D. Maria, applaudio calorosamente o novo trabalho do nosso poeta.

O beijo foi exhibido no Lucinda pelos mesmos artistas que o interpretaram no D. Amelia: Carolina Falco, Maria Falco, Luiz pinto e Antonio Pinheiro, para os quaes só tenho elogios.

Felinto foi chamado á scena e acclamado, como de justiça.

***

O Primeiro marido de França, que completou o espectaculo, não era um vaudeville novo para o nosso publico: representado pela 1ª vez em Paris, no theatro Varietés, a 2 de fevereiro de 1893, foi pouco depois traduzido (se me não engano, por Figueiredo Coimbra) e exhibido n’aquelle mesmo theatro Lucinda por uma companhia da qual era emprezario o actor Peixoto.

(A proposito: abro um parenthesis para dizer que o Peixoto faz beneficio segunda-feira proxima,no Recreio,e espera que os seus amigos e admiradores encham o theatro).

A peça de Valabrègue é engraçadissima, tanto pelas situações como pelo dialogo, de mais a mais adubado pela verve abundante do traductor portuguez, que foi Gervasio Lobato. Em que pese a um final de pantomima de circo, o 2º acto é primoroso de graça e de observação, pois que tem algumas scenas de verdadeira comedia.

No Primeiro marido de França estreou-se a actriz Josepha de Oliveira, que já aqui esteve ha alguns annos, trazida por Souza Bastos. É uma boa artista, não

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ha duvida, e deve ser de grande utilidade á empreza; mas já não está para certos papeis que se tornam absurdos e insupportaveis sem estes dous elementos inalienaveis – mocidade e beleza. Josepha de Oliveira (não é para consolal-a que o dígo) é ainda uma mulher apresentavel, mas já não tem nem póde fingir que tem os encantos de uma cocotte que se faz pagar tão caro como a do vaudeville de Valabrègue. O papel foi, aliás, bem representado, principalmente na scena em que Aurora (assim se chama a tal cocotte) se recosta voluptuosamente no shophá, para seduzir um dos seus amantes, disposto a abandonal-a.

Barbara, essa encheu-me as medidas, palavra de honra! no seu interessante papel de esposa e sogra tola, ciumenta e sentimental. É a mesma actriz que ha doze annos applaudi n’aquelle mesmo theatro, quando representou, ao lado do incomparavel Valle, uma comedia hespanhola de que nunca mais me esqueci: o Chapéo alto. Barbara é, em lingua portugueza, uma das poucas atrizes que não se convencem de que o talento comico não consiste em arranjar uma cara muito feia e ter gestos desordenados e ridiculos. Ella não procura esses recursos faceis para fazer rir, e, o que é mais, encontra effeitos onde os proprios auctores não contam absolutamente com elles.

Telmo Larcher tem na peça um papel do seu genero, e isto é dizer que o representa irreprehensivelmente; Pinheiro é impagavel no protagonista, velho gaiteiro e marido hypocrita, e Luiz Pinto, á parte a caracterisação, deu bem conta do seu personagem solteirão egoista.

Maria Falcão e Amelia Pereira tiveram dous papelinhos inferiores ás suas forças, mas contribuiram, e assim os demais artistas que tomaram parte na representação, para que o Primeiro marido de França agradasse muito e fosse calorosamente applaudido.

***

Por uma coincidencia que não classificarei de notavel, reapparecia na mesma noite o Paraizo no palco do Recreio. Comparando as duas peças, o publico terá occasião de verificar como os vaudevilles parisienses se copiam uns aos outros. E o bonito é que nenhum protesta, porque n’esse particular nenhum ha que não tenha telhados de vidro.

Preso, como estava, no Lucinda, não pude apreciar, no Recreio, a novissima distribuição de alguns papeis no Paraiso.

***

Estão annunciados: para hoje, no Lucinda, os Velhos, comedia de D.João da Camara, e para amanhã, no Sant’Anna, a Sociedade onde a gente se aborrece, obra-prima de Pailleron.

***

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Falleceu em Norgent-sur-Marne (França) o celebre actor José Dupuis, cujo nome ficará eternamente ligado ao repertorio alegre de Meilhac, Halévy e Offenbach: foi elle o primeiro Barba-Azul, o primeiro Fritz da Gran-Duqueza, o primero Paris da Bella Helena, o primeiro Pequillo da Perichole, etc.

Belga de nascimento, pois era filho de Liège, onde nasceu em 1833, foi o mais pariziense dos artistas dramaticos. Tinha talento, muito talento, mas abusava um pouco da propria fama, entregando-se ás inspirações da sua fantazia com uma audacia que o publico só permitte ao seus favoritos.

Quando aos 50 annos perdeu a sua bella voz de tenor, e já não podia ser o Falsa cappa dos Brigands, nem mesmoo Grogorio da Niniche, fez o mesmo que Jeanne Grénier: atirou-se á comedia, e representou com extraordinario successo a Cigarra, e outras peças entre as quaes Monsieur Betsy, que foi, talvez, a sua creação mais notavel.

Ha muito tempo que o nome de José Dupuis não figurava nos programmas dos theatros parizienses.

– Falleceu tambem, na Italia, a talentosa actriz Pia Magggi, que esteve ha alguns annos n’esta capital, trabalhando com seu esposo, o brilhante artista que tão agradaveis noites nos proporcionou ha um anno, em companhia de Clara della Guardia.

***

Rectificação:N’um dos meus ultimos folhetins eu disse que a comedia o Bibliothecario,

representada no Lucinda, era escripta pelo dramaturgo inglez Arthur Pinello. Enganei-me: a peça não é ingleza, mas alleman, embora se passe na Inglaterra. Foi escripta por Moser e Schontan, os auctores de Guerra em tempos de paz, tantas vezes representada no Sant’Anna pela companhia Heller, e daquella hilariante comedia o Rapto das Sabinas, em que Novelli era extraordinario.

O seu ao seu dono.

***

Na proxima segunda-feira o actor Peixoto...Ah!... esquecia-me de que já o disse lá mais acima.

A. A.

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O Theatro, 14/06/1900

Foi uma noite de verdadeira festa para o theatro a da primeira representação, no Lucinda, da primorosa comedia em 3 actos Os velhos, de D.João da Camara, o illustre dramaturgo portuguez, auctor de Affonso VI, Alcacerquibir, A triste viuvinha, O pantano, etc.

No dia seguinte a essa primeira representação, escrevi que, á parte as producções do incoparavel Garret, não conhecia nada no theatro portuguez d’este seculo que me agradasse tanto como Os velhos, e durante alguns dias fiquei receioso de haver, sob uma impressão do momento, avançado uma proposição por demais absoltua. Hoje, depois de tantos dias de reflexão, o meu juizo não se alterou.

Na sua Historia do theatro portuguez, verdadeiro thesouro de erudição e de critica, Theophilo Braga considera inteiramente perdida a obra emprehendida e realisada pelo auctor de Um auto de Gil Vicente, glorioso reformador do theatro em Portugal. Não concordo.

A renovação que actualmente se observa nos palcos de Lisboa, esse desabrochamento que tem dado Henrique Lopes de Mendonça, D.João da Camara, Eduardo Schwalback, Marcellino de Mesquita, Julio Dantas e outros, é ainda o resultado da grande obra de Garret.

Bem sei que o grande estadista, dramaturgo e poeta morreu ha quarenta e seis annos, mas os fructos das grandes arvores vêm com lentidão, – e demais, quem sabe o que era o theatro portuguez antes de Garrett, não póde negar que neste meio seculo não se tenha feito muito. Foi do elenco que elle formou com o pessoal dos theatros do Salitre e da Rua dos Condes, foi dos Theodoricos e dos Espiphanios, das Florindas e das Talassi, que sahiram os Tassos e as Emilias das Neves, os Rosas e os Santos, os Tabordas e os Isodoros.

Vá o leitor ao Lucinda: não ha alli nenhum prodigio, nenhum genio, nenhuma summidade da arte; entretanto, nota-se em todos os artistas um respeito inquebrantavel pelo publico e um desejo visivel de acertar; todos elles obedecem a uma disciplina que dura desde Garrett, todos elles nasceram e cresceram á sombra d’esse grande nome.

Não venho repetir aqui o que já externei a proposito dos Velhos, de D.João da Camara. Demais, não teria sufficiente espaço n’estas columnas para dizer todo o bem que penso d’ esse formoso idyllio dramatico.

Alguns dos papeis foram muito bem representados pelos artistas da empreza Luiz Pereira; mas é de justiça destacar Maria Falcão e João Gil, que deram a Emilinha e Bento uma interpretação de primeira ordem.

***

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Lucinda Simões e Christiano de Souza tiveram a boa lembrança de acrescentar ao repertorio da sua companhia A sociedade onde a gente se aborrece, e vi, com muito prazer, que a 1ª representação da comedia de Pailleron levou ao Sant’Anna uma sociedade escolhidissima... e que se não aborreceu; a sala primava tanto pela quantidade como pela qualidade. Lucinda e Lucilia podem gabar-se de que actualmente, no Rio de Janeiro, só elles têm o condão de attrahir certa roda ao theatro.

Esta reprise tinha muitos attractivos, como, por exemplo, Lucinda no papel da duqueza de Réville; mas o principal d’esses attractivos era a estréa do actor Carlos de Oliveira, chegado de Lisboa, ha dias, especialmente contractado para o Sant’Anna.

É um rapaz ainda muito novo, sympathico, bem apessoado, com boa dicção, gesticulando com certa propriedade; mas eu aguardo-o n’outro papel que não seja o de Belac, para o qual não lhe vi, francamente, a menos disposição.

Algumas actrizes têm se zangado comigo por eu as achar velhas de mais para certos papeis; é provavel que a menina Carmen Roldan tambem me queira mal... justamente pelo contrario. Realmente, se algum papel póde ser por emquanto confiado a essa actrizinha, deve ser o papel de criança, como o da menina do Amigo das mulheres.

O de Suzanna, que na minha opinião é o mais importante da Sociedade onde a gente se aborrece, foi interpretado em Paris pela Reichemberg e em Lisboa pela Rosa Damasceno, cujas idades, reunidas, representavam pelo menos um seculo. No rio de Janeiro desempenhou-o ha quinze annos uma actriz que tinha exactamente a idade do personagem, a encantadora Sara de Vasconcellos, que passou pelo theatro como um meteoro, e que hoje é morta. A interpretação que ella deu ao papel foi um verdadeiro milagre; mas lá estavam Furtado Coelho e a vara de Moyzés com que elle bateu em tantos Horebs.

Entretanto, esta nova edição da Sociedade onde a gente se aborrece não deixa de ser muito interessante, e deve attrahir grande concurrencia ao Sant’Anna.

A peça está posta em scena com muito cuidado. O salão da condessa de Ceran é um verdadeiro salão aristocrata.

***

Estreou-se hontem, no Apollo, com uma enchente descommunal, a companhia Taveira.

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A peça escolhida foi A ave do paraizo (L’oisean bleu), opereta em 3 actos, que o nosso publico já ouvio, ha um bom par de annos, pela companhia Heller, e da qual provavelmente já se não lembrava.

Nem a partitura é das melhores de Lecocq, nem o libreto é dos mais felizes de Chivot e Duru, mas como algumas scenas são muito engraçadas e alguns numeros de musica muito bonitos, a platéa deu-se por satisfeita.

No papel de um gracioso travesti, um Sforza, naturalmente avô do famoso duque de Milão, pintado por Ticiano, appareceu-nos a saudosa Lopiccolo, mais gentil, mais mimosa e mais artista que nunca.

Santinhos, um actor comico de muito merecimento, o nosso velho amigo Corrêa (cada vez mais moço), o discreto Gomes, com seus bonitos dentes, a sympathica Theresa Mattos e a esperançosa Libania, a quem rasguei tantas sedas quando aqui esteve o anno passado com o Souza Bastos, representaram e cantaram com talento a Ave do paraiso.

Os córos não fizeram a minha felicidade, mas a orchestra, regida pelo maestro Luiz Filgueiras, tratou como devia tratar a partitura do mestre.

Encenação muito decente.O publico recebeu a companhia Taveira como costuma receber os artistas

que lhe deixam saudades quando se vão embora. O emprezario foi chamado varias vezes á scena e applaudido.

***

No Recreio voltou ao palco A filha do inferno, com uma nova Uriela, a actriz-cantora Claudina Montenegro, que é uma bonita mulher, tem voz, sabe cantar e não falla o portuguez, quatro virtudes para conquistar o publico fluminense.

E já agora não saio do Recreio sem dirigir um ligeiro comprimento á actriz Natalina Serra, que n’um papelinho de soubrette, da comedia Mulher para dous, revelou muita habilidade.

***

No meu ultimo folhetim, tratando da representação da comedia O primeiro marido de França, escrevi as seguintes palavras: “Barbara é, em lingua portugueza, umas das poucas actrizes que não se convencem de que o talento comico não consiste em arranjar uma cara muito feia e ter gestos desordenados e ridiculos.”

Essa phrase irritou por tal fórma a provecta actriz Elisa de Castro, que esta senhora, segundo publicaram os meus collegas d’O Paiz, declarou formalmente á empreza do Recreio que nunca mais figuraria em peça de repertorio da companhia, que fosse escripta ou traduzida por mim.

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A empreza curvou a cabeça á imposição da estrella, e immediatamente substituio por outra a comedia O paraiso, traducção minha, que deiva ser representada na mantinèe de domingo.

Os artistas habituados a representar papeis de um genero determinado, estão sujeitos a certas allucinações. Um caso que se aponta, entre muitos, é o do actor Marais que, depois de representar cem vezes o papel de Miguel Strogoff, um bello dia se apresentou na egreja vestido de correio do czar, para assistir ás exequias de Alexandre I.

Como não creio absolutamente que a Sra. Elisa de Castro presuma na minha pessoa a ingenuidade de suppor que ella possa, mesmo pretendendo fazer-se bonita, arranjar uma cara que não seja muito feia, tenho que essa actriz, a quem sempre fiz toda a justiça, tanto se apossou dos papeis em que mais sobresae, que está tambem allucinada e se suppõe minha sogra.

Não lhe quero mal por isso; lastimo-a e nada mais.Com a empreza o caso é outro. Não me parece que o auctor ou

traductor a quem ella encommenda uma peça, e que de boa fé se desobriga dessa incumbencia o melhor que póde, deva estar sujeito aos caprichos desarrasoados deste ou d’aquelle artista, e seja prejudicado nos seus interesses.

O precedente aberto é terrivel; porisso – e o mesmo faria outro qualquer – usarei do meu direito de retaliação. Aqui fica o aviso.

A. A.

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O Theatro, 21/06/1900

O Sr. Luiz Pereira, emprezario da companhia dramatica portugueza dirigida pelos actores João Gil e Alfredo Santos, achando-se em Lisboa, de viagem para o Rio de Janeiro, teve a gentilissima idéa de pedir a Julio Dantas, um dos mais applaudidos dramaturgos de Portugal, uma peça historica baseada no descobrimento do Brasil.

O pedido foi immediatamente satisfeito, e o Sr. Luiz Pereira, para que o drama de lá viesse prompto para ser posto em scena, mandou lá mesmo pintar os scenarios pelos primeiros scenographos portuguezes, e encommnedou o guarda roupa ao famoso costumier Carlos Cohen.

Infelizmente, porém todos esses trabalhos e despezas foram em pura perda, porque o nosso publico – e eu não lhe quero mal por isso – não tomou a sério A Terra de Vera Cruz.

A peça foi retirada da scena logo depois da 3ª representação; estou, portanto, dispensado de analysal-a, mesmo porque seria de mao gosto insistir sobre o mao effeito que causou; todavia, sempre direi que das duas uma: ou Julio Dantas não é zeloso da fama litteraria que adquirio, ou faz uma idéa pouco lisonjeira do publico fluminense.

Lastimo profundamente o prejuizo da empreza. Encommendando a peça, o Sr. Luiz Pereira, que ha muitos annos reside no Brasil, quiz ser amavel, concordo, com um drama que devia ser muito bem feito, para o brilhantismo da festa do 4º centenario da sua patria adoptiva; mas infelizmente não havia meio de salvar a Terra de Vera Cruz, a pobresinha estava irremissivelmente condemnada. Parce sepultis.

Releva notar que contribuio para o desastre o muito que tinham agradado Os velhos. Andaria mais avisada a empreza, se entre o idyllio dramatico de D.João da Camara e o melodrama fantasioso de Julio Dantas houvesse exhibido alguma comedia desprentenciosa. Esse espectaculo intermediario obstaria a que o publico passasse de sopetão da poesia ingenua d’Os velhos para os assassinatos mais horrorosos de Terra de Vera Cruz.

Faço votos para que Julio Dantas, auctor d’esse famoso drama – O que morreu de amor –, do qual todos a uma tantas maravilhas dizem, mais tarde ou mais cedo se desforre d’este monumental estederete, para o qual não contribuiram – cumpre dizel-o – nem a empreza que não se furtou aos gastos de uma enscenação luxuosa, nem aos artitas, que interpretaram perfeitamente seus papeis, convindo mencionar Carolina Falco, Maria Falcão, Barbosa, Setta da Silva, Antunes, Luiz Pinto, João Gil, Pinheiro, Alfredo Santos e Alves.

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Os velhos voltarão de novo á scena segunda-feira proxima, esse espectaculo, promovido por um grupo de jornalistas e homens de lettras, será dado em homenagem a D. João da Camara.

No intervalo do 2º para o 3º acto, o illustre dramaturgo, que estará presente em effigie, será saudado em prosa e verso por Olavo Bilac, Coelho Netto, Colatino Barroso, Orlando Teixeira e o auctor d’estas linhas.

Conto que todos os nossos litteratos se associem á festa, e que os novos compareçam e acclamem o autor d’ Os velhos, herdeiro da musa illustre de Garrett,tão respeitada pela moderna geração.

Passado o espectaculo, será enviada a D. João da Camara uma mensagem, artisticamente calligraphada e desenhada, que ficará, em logar conveniente, á disposição de todos os jornalistas e litteratos que desejarem assignal-a.

O retrato do auctor d’Os velhos será desenhado pelo meu collega Renato de Castro, que, tendo cursado a escola nacional de bellas-artes, revela tanta habilidade no manejo do lapis como no manejo da penna, e a mensagem, trabalho do reputado calligrapho Filgueiras, será illustrada por Julião Machado, Calixto Cordeiro, Arthur Lucas e Renato de Castro.

Peço aos meus leitores que compareçam tambem, e creiam todos que nunca lhes fiz outro pedido em que puzesse tanto empenho. Se alguma significação, algum valor, alguma força tiver esta manifestação de apreço, nenhuma outra causa senão o apoio e a approvação do publico lhe poderão emprestar virtudes taes.

***

Lucinda Simões e Christiano de Souza inauguraram hontem, n o theatro Sant’Anna, uma serie de espectaculos, que serão dados todas as quartas-feiras, e que se intitularão “récitas da moda”.

Esses espectaculos podem ser frequentados, necessariamente, por todo aquelle e toda aquella que comprar o seu bilhete e esteja trajado, ou trajada, com certa decencia; mas a empreza destina-os especialmente “ás mais distinctas familias da elite da nossa sociedade”, e conta que o seu theatro seja, ás quartas-feiras, um ponto de reunião para as damas e os cavalheiros do monde, como dizem os francezes, ou do high-life, como dizem os inglezes.

A tentativa é intelligente e sympathica, mesmo porque talvez consiga fazer as pazes entre a boa sociedade e o theatro, que ha muito se desavieram.

A experiencia deu hontem o melhor resultado: a Casa de boneca foi representada diante de uma sala excepcionalmente guarnecida; resta saber se os espectadores de hontem sustentarão a nota.

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Parece-me que a empreza deveria, como providencia complementar, abrir uma assignatura para as suas quartas-ferias, de modo que os camarotes e parte da platéa fossem occupados sempre pelas mesmas pessoas. Só assim se evitaria certa mistura. É como se pratica na Comédie Française, notando-se, aliás, que em Paris a divisão das categorias se faz naturalmente.

O exito d’essas quartas-feiras seria menos duvidoso, se o Sant’Anna fosse um theatro a valer, isto é, se tivesse todas as condições, ou por outra, todas as dependencias de um verdadeiro theatro. Sem o indispensavel foyer do publico, onde se converse durante os intervallos, é difficil fazer de qualquer theatro um ponto de reunião, pois que a reunião n’este caso só se pode dar nos corredores, onde se encontram mais correntes de ar que correntes de opinião.

Outra questão apparentemente frivola, mas de grande importancia, é a da toilette. Jamais desprezei o meu paletó sacco nem o meu chapéo desabado para ir a theatros abertos, onde se fuma, onde se ouve o estalar das rolhas e a vozeria dos intitulados jardins; ao proprio Lyrico só fui de casaca emquanto alli não se vaiavam senhoras...

Resta saber se os emprezarios do Sant’Anna conseguirão crear no seu theatro um ambiente que se compadeça com o rigor da toilette dos espectadores, e se o meu smoking ou a casaca do meu visinho não estarão sujeitas a uma chalaça das galerias, ou se qualquer senhora não estará exposta ás baforadas de um cigarro impertinente.

Já pelas columnas d’O Paiz applaudi a idéa d’estas quartas-ferias, pois que applaudo todas as idéas tendentes a sanear e moralisar o theatro na minha terra; mas peço encarecidamente a Lucinda Simões e Christiano de Souza que completem e segurem a sua obra, isto é, reflictam nas providencias complementares.

O meu sonho era vel-os n’um theatrinho muito bonito, muito confortavel, todo fechado, bem ventilado, illuminado á luz electrica e construido com o dinheiro que lá está (?) na municipalidade.

***

A companhia Taveira deu ante-hontem a Mascotte, representação a que não pude assistir, e a companhia Luiz Pereira deu hontem o Fiscal dos wagons-leitos, mais bem representado do que foi ha um anno pela companhia Souza Bastos.

***

Para concluir o folhetim com uma nota alegre, traduzo o seguinte da Independecia Belga de 1º do corrente (edição de ultramar):

“A camara italiana foi dissolvida e as novas eleições estão imminentes. Um grupo de admiradores do artista dramatico Ermete Novelli offereceu-lhe

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uma candidatura no districto de Fermo. A esse respeito escreve a Tribuna: “Ignoramos se Novelli acceitará, mas esperamos que sim. um bom actor deve ser bem recebido por todos os grupos eleitoraes; tem no seu repertorio com que satisfazer a todos os matizes de quaesquer partidos.”

A. A.

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O Theatro, 28/06/1900

Nenhuma novidade houve nos theatros durante as ultimas noites; tivemos, todavia, alguns espectaculos bem interessantes: as reprises dos Amantes legitimos, do João José e do Hotel do Livre Cambio, e a récita promovida pelos homens de letras do Rio de Janeiro em homenagem a D. João da Camara.

A comedia os Amantes legitimos é uma d’aquellas em que mais sobresaem Lucinda, Lucilia e Christiano, muito á vontade todos os tres nos seus respectivos papeis de mãe, filha e genro. Accrescente-se que Mattos encontrou na peça um dos seus melhores papeis, e o mesmo se póde dizer de Campos. Accrescente-se ainda que o actor Carlos de Oliveira, não tendo sido muito feliz com a sua estréa na Sociedade onde a gente se aborrece, achou uma desforra nos Amantes legitimos e tambem na Francillon, que constituio hontem o espectaculo da segunda “récita de moda.”

Digamos, entre-parenthesis, que essa récita foi muito mais concorrida que a primeira. A pouco e pouco toda a gente do bom tom se convencerá de que é justo corresponder aos intelligentes esforços da empreza do Sant’Anna.

***

Para hoje está annunciada a 1ª representação da comedia em 4 actos, de Gaston Devore, a COnsciencia dos filhos, um dos successos recentes da Comédie-Française.

Gaston Devore, que se estreou nesta peça como dramaturgo, é, necessariamente, um nome desconhecido para a grande maioria dos meus leitores; pois saibam que a Consciencia dos filhos o colocou, da noite para o dia, na primeira fila dos escriptores dramaticos de França.

Como Lucinda Simões e Christiano de Souza me confiaram a traducção da peça, e, portanto, vivi com ella, durante alguns dias, na maior intimidade, posso dizer-lhes, sem receio de ser amanhã contenstado, que a Consciencia dos filhos é um trabalho digno, a todos os respeitos, da attenção e dos applausos do publico fluminense.

É um drama familiar, um drama intimo, apaixonado e vibrante, em que se estuda o amor paterno e o amor filial com o criterio de um moralista e a habilidade de um dramaturgo. O 3º acto, sobretudo, é de uma intensidade de effeitos, que impressionarão profundamente a platéa se forem, como espero, bem aproveitados pelos excellentes artistas do Sant’Anna.

Sobre este pontou estou tranquillo, porque os papeis estão bem distribuidos e ensaiados. O espectaculo ha de ter um ponto fraco, um só: a traducção.

***

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João José, o drama socialista de Joaquim Dicenta, foi um triumpho para o actor Luiz Pinto que, no papel do protagonista, mereceu quatro ovações do publico, uma no final de cada acto. Confirmaram-se, felizmente, as minhas previsões: Luiz Pinto é um artista de valor, que um dia hombreará com o seu mestre, que é também o seu modelo, – Eduardo Brasão. Phisicamente, bem sei, não lhe será dado nunca esse prazer, e elle é, aposto, o primeiro a lamentar que lhe faltem algumas polegadas de altura; mas o talento suppre, no theatro, todas as ingratidões da natureza. O grande Lekain era um botoque.

Maria Falcão fez boa companhia ao seu collega. Não exageremos, como fez alguem, dizendo que o sobrepujasse; mas façamos-lhe a devida justiça, enviando-lhe sinceros cumprimentos. É incontestavel que ella tem talento, muito talento (e não é de hoje que o digo), mas a sua indole é comica e não dramatica. Comparada com a Emilinha, dos Velhos, que vale, nas suas mãos, a Rosa, de João José? Quem conhece um pouco o theatro, applaudil-a-ha com mais franqueza na scena que ella amassa o trigo, na comedia portugueza, do que na scena em que ella morre, no drama espanhol.

***

Um aperto de mão a Telmo Larcher pelo seu trabalho no Fiscal dos wagons-leitos – trabalho que me desforrou da má impressão que me deixaram n’esse papel dous bons actores, um portuguez e outro italiano. Telmo n’esse genero de papeis não tem competidor em Portugal e muito menos aqui. É admiravel de bom humor e naturalidade, embora algumas vezes me pareça pretender refinar tanto esta ultima qualidade, que descamba um poucochinho para a frieza. Sarcey, se o conhecesse, estimal-o-hia, e, estimando-o, dar-lhe-hia este conselho que muitas vezes lhe cahio do bico da penna – Surveillez votre jeu.

***

Ainda a proposito de Telmo Larcher: Eu teria muita curiosidade em contratal-o com o experimentado Taveira no papel de Pinglet do Hotel do Livre Cambio. Infelizmente não pude assistir a nenhuma das tres representações do vaudeville de Feydeau, dadas no Apollo. Aquelle papel é um dos melhores de Telmo; entretanto, dizem-me que Taveira o desempenhou brilhantemente. um dos meus prazeres é ver o mesmo personagem intepretado por dous bons artistas de naturezas diversas.

***

O espectaculo dado em homenagem ao auctor dos Velhos me satisfaria completamente, se não fosse a brutalidade com que alguns espectadores interromperam o discurso de Collatino Barroso, – peça litteraria cujo unico

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defeito era ser um tanto extensa para a circumstancia. Publicando-a, o meu illustre collega provará que aquella interrupção foi a mais revoltante das injustiças, e não póde, por forma alguma, deslustrar, nem de leve, um nome adquirido á força de talento e de estudo.

Á parte esse lamentavel incidente que desgostou e ferio um moço digno entre os mais dignos, e á parte um máo soneto, que recitei muito mal, a manifestação foi brilhante. A prosa de Coelho Netto e os versos de João Luzo e Orlando Teixeira despertaram enthusiasmo no publico, e este encheu completamente o theatro.

A noticia d’essa festa deve ser muito grata a D. João da Camara.

***

O emprezario Sanzone, que as estas horas pula de contente com a noticia da alta do cambio, faz embarcar a sua companhia lyrica em Genova, a 7 de julho proximo.

Até lá o dilettantismo fluminense que se contente com as operas que lhe servem a varejo ou em pilulas n’um theatriculo improvisado na rua do Lavradio, e que ainda não visitei.

Pobre Gounod! quando te passou pela cabeça que a tua musica figuraria n’um café cantante da “primeira capital da America do Sul”?

***

Para amanhã está annunciada, no Lucinda, a récita de despedida do intelligente e prestimoso actor Bellard, que se desligou do Sant’Anna por uma questão de lana caprina, como todas as questões de bastidores.

Faço votos para que o beneficiado apanhe uma enchente real.A. A.

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O Theatro, 05/07/1900

Poucas vezes uma peça de theatro tem provocado, n’esta capital, opiniões tão desencontradas como a Consciencia dos filhos comedia em 4 actos, de Gaston Devore, exhibida, pela primeira vez, quinta-feira passada, no theatro Santa Anna.

Acharam uns que a peça era uma obra-prima, e outros, em maior numero talvez, lhe negaram todas as qualidades. Na minha humilde opinião ella não merece.

Nicel excès d’honneur ni cette indignité; nem é uma obra excepcional, que revolucione a litteratura dramatica, nem um trabalho fugitivo que deva passar despercebido e desdenhado.

A prova de que a peça tem valor está n’essa mesma discussão que provocou. discussão que sem duvida contribuiria para que ella desse um bom numero de representações, se o desligamento inesperado e subito de duas actrizes da companhia Lucinda Simões lhe não puzesse um páo nas rodas. É sempre desastrosa a interrupção da carreira de uma peça ao cabo de seis representações.

A Consciencia dos filhos foi accusada de immoral pelo illustre critico do Jornal do Commercio, accusação com que não concordo, visto não se tratar de um melodrama á Dennery, como opinou o meu amavel collega Renato de Castro na Gazeta de Noticias.

A peça é, talvez, um tanto declamatoria, não nego, mas o auctor não cogitou absolutamente em premiar a virtude e castigar o vicio, e, se basta a violencia das paixões para considerarmos qualquer peça filiada á escola de Dennery, dramaturgo que pecca, não pelas situações propriamente ditas, mas pelo modo porque as prepara, e pela ausencia absoluta de litteratura, seremos obrigados a enxergar Dennery em todos os grandes poetas tragicos desde os gregos até hoje.

O meu collega fallou das ficelles da Consciencia dos filhos, e eu não quero repetir aqui o que, a proposito da Casa de boneca, já escrevi,n’este mesmo logar, sobre o que se chama ficelle e nada mais é do que um dos attributos essenciaes da arte de escrever para o theatro, arte inferior, se quizerem, mas que para vibrar, para impressionar a platéa, não se liberta das velhas convenções. Conheço uma peça de theatro celebre, apenas uma, sem ficelles: é o incomparavel Mysantropo, que por isso mesmo não produz no palco o formidavel effeito que produz no livro. Quaes são as ficelles da Consciencia dos filhos? Apontem-m’as, e eu lhes indicarei outras que taes no theatro, não do

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transitorio Dennery, mas dos grandes auctores cujos nomes têm sido e serão transmittidos á posteridade.

Com o meu confrade do Jornal do Commercio conversarei amistosamente, não aqui, onde tenho um espaço limitado, mas n’outra folha, e sob o transparente pseudonymo que lhe mereceu um delicado reparo. Espero que acabemos por afinar as nossas opiniões uma pela outra.

O papel de Couvelin, o magistrado instransgisente e austero, a virtude não premiada, forneceu ao auctor Chaby occasião de patentear grandes qualidades de artista, um pouco sacrificadas até hoje pelas exigencias do repertorio. A representação de peça de Gaston Devore indicou muito claramente o emplot que compete a este excellente actor de comedia, inegavelmente um dos melhores declamadores do theatro portuguez.

O papel de Montret, um Mercadet elegante e libertino, o vicio não castigado, valeu um triumpho a Christiano de Souza, que teve talento bastante para tornar bem visivel a dualidade do personagem, traficante sem escrupulos nem dignindade, e pae carinhoso e apaixonado, cheio de um amor sublime. Nas scenas patheticas o artista alliviou-se facilmente de toda a esmagadora carga do seu papel e chorou como choram os homens fortes, o que é muito facil na vida real e muito diffcil em theatro.

Que dizer de Lucinda, e da intelligencia, da sobriedade, da naturalidade com que representou o papel de esposa, que n’outras mãos tomaria talvez proporções excessivas, monstruosas, e nas suas não perdeu, apezar da simplicidade com que foi interpretado, a commoção intensa e penetrante que o dramaturgo lhe deu?

Lucilia estudou e comprehendeu perfeitamente o papel da protagonista, que fica sendo um dos seus trabalhos mais completos, principalmente nas scenas em que a neta do magistrado se mostra suggestionada pelo avô, como o dialogo do 2º acto em que ella recusa o dote que o pae lhe oferece.

Eugenio de Magalhães, Mattos, Carlos de Oliveira, que eu quizera um pouco mais frivolo no primeiro e no ultimo acto, estiveram na altura dos seus collegas.

O papel de Eva foi o unico sacrificado, pois que de Isabel Berardi não ha que dizer no de Mme. Cauvelin. A actriz Carlota Soares, além de não ter (a culpa não é sua) o physico d’aquella desmiolada, que deve ser excepcionalmente fascinadora, não vin que a nora de Cauvelin é uma insconsciente, sem o menor vislumbre de senso moral. No 3º acto mostrou-se subjugada pelo arrependimento ou pelo remorso, com os olhos presos no chão, e isso descaracterisou – foi pena! – o personagem.

Espero que a Consciencia dos filhos volte quanto antes á scena.

***

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A companhia Luiz Pereira deu-nos o drama Martyr! de Dennery, novidade que bem podia ter ficado nas margens do Tejo.

O desempenho foi razoavel por parte de todos os artistas, e Maria Falcão, substituindo á ultima hora Georgina Vieira, que devia fazer o papel da protagonista e se desligou da companhia, contractando-se no Sant’Anna, onde brevemente se estreará na Frou-frou, sahio-se perfeitamente, sendo muito applaudida.

***

A companhia Taveira apanhou um grande successo com o Relogio magico, opereta fantastica de Eduardo Garrido. Nem o libretto nem a paritura são completamente originaes; mas a graça inimitavel do comediographo e a grande habilidade do compositor juntaram-se e fizeram uma peça alegre, muito alegre, e leve, saltitante, encantadora de verve desprenteciosa e turbulenta.

Os scenarios, vestuarios, machinismos, tramoias, etc., são magnificos. A magica tem todos os requisitos indispensaveis n’este genero de peças: muita gente, marchas, evoluções, bailados e luz electrica “em penca”.

Toda a companhia Taveira toma parte no desempenho do Relogio magico, e é Lopiccolo, sempre graciosa, quem figura á frente da distribuição. Estrearam-se na peça dous artistas: o applaudido actor Gaspar, que já cá esteve ha quatro annos, e Thereza Martins, muito razoavel no seu papel de caricata.

A musica não é sacrificada pelos artistas nem pelos córos, e muito menos pela orchestra, e o Apollo enche-se todas a noites, o que tambem concorre para animar a representação.

***

Chegou a Peps. Vem organisar uma companhia de operetas, provavelmente no Recreio. Traz comsigo uma peça de grande espectaculo, a Viagem de Susette, grande successo de Paris, grande successo de Lisboa.

Desejo todas as venturas á festejada actriz, de quem sou amigo e a quem sou grato.

***

Para hoje e amanhã estão annunciadas: no Sant’Anna a reprise do Perdão, de Jules Lamaitre, e no Lucinda Triste viuvinha, comedia de D. João da Camara, o primoroso poeta dos Velhos.

Não falte publico; espectaculos não faltam.

***

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O meu velho amigo Salvador Santos, digno gerente d’esta folha, embarcou hontem para a Europa: foi metter o feliz bedelho na exposição de Paris.

O folhetim não ficaria completo, se eu não lhe desejasse boa viagem, fazendo votos para que se divirta, e pedindo-lhe que veja tudo duas vezes, uma por elle e outra por mim.

A. A.

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O Theatro, 19/07/1900

Ha muito tempo não me queixo das minhas indefectiveis macacoas, e o leitor, ao tomar conhecimento das primeiras linhas d’este folhetim, dira comsigo: – Já cá tardava...

O caso é que por doente fiz sinalepha quinta-feira passada, e por doente não tenho assistido aos ultimos espectaculos.

Com o Ao bem, do meu illustre collega Coelho Netto, fui de um caiporismo terrivel. Na noite da 1ª representação, como o drama tem apenas 1 acto, suppuz que fechasse o espectaculo, como é de praxe sempre que no cartaz figura peça nova, acompanhando peça velha. Quando cheguei ao Sant’Anna, encontrei apenas o echo de uma ovação feita ao auctor, e a noticia do chilique de uma espectadora impressionada pela violencia das situações. Na noite seguinte eu estava doente: não pude assistir á segunda representação.

Não me foi dado igualmente o prazer de comprimentar Maria Falcão e João Gil, quando fizeram beneficio, nem o de verificar de visu se realmente a Marechala, de Lemmonier e Pericaud, é, sem tirar nem pôr, a Madame Sans-qéne, de Sardou e Moreau.

Não me lastimei lá essas cousas por ter perdido a reprise da Perichole, embora a musica de Offenbach me divirta enormemente... quando tenho saude, mas dei um solemne cavaco por não poder estar no Sant’Anna quando voltou á scena a Mancha que limpa, de Echegaray.

Os dramas hespanhoes mediocres me enthusiasmam, porque raro é aquelle que não acaba com sangue, e, para conseguir esses effeitos de tragedia, muitas vezes os dramaturgos desnaturam o seu trabalho. Dir-se-hia que o publico dos theatros dramaticos de Hespanha é o mesmo que vai ás praças de touros e não póde, mesmo n’uma platéa, passar sem o seu toro de muerte.

Entretanto, Mancha que limpa, uma das peças hespanholas. digamos, em que o lance final é preparado com mais logica, tinha para mim dous grandes attractivos: rever Lucilia Simões no seu papel mais completo, na sua creação mais notavel, e apreciar Georgina Pinto n’um papel brilhante, estudado aqui.

Pelo que tenho lido e ouvido, foi incontestavel o seu triumpho, e isso não me admira, porque na Estrangeira ella mostrára qualidades de primeira ordem, se bem que no papel da duqueza de Septmonts não me parecesse bastante emancipada do professor que a disciplinou, e eu lhe achasse menos... como direi?... menos espontanea do que fôra para desejar; o seu trabalho era medido, regulamentado, – calculado, é o termo. Na Mancha que limpa o publico vio-a provavelmente, com todas as suas qualidades e os seus defeitos, e pelos modos estes desappareceram diante d’aquellas. Tenho pena realmente

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de não a ter visto, porque é uma actriz muito interessante, uma actriz que me dará um alegrão no dia em que, como Pedro I, se declarar disposta a ficar definitivamente n’esta capital.

Hontem desempenhou ella o segundo papel que lhe foi distribuido na companhia Lucinda Simões e Christiano de Souza: o papel de Mlle. Hackendorf no Amigo das mulheres.

Por coincidencia, hontem mesmo li, n’um jornal parisiense, a noticia de se haver estreado ultimamente na Comédie Française, representando esse mesmo papel, Mlle. Heriette Fouquier, filha de Henry Fouquier, o grande jornalista, o critico dramatico do Figaro, emulo e continuador de Francisque Sarcey, que o tinha em grande estima.

Ora ahi têm, meus senhores! Em Paris a filha solteira de um escriptor celebre, considerado, provavelmente rico, não hesita em abraçar a carreira theatral, entre nós o que se vê? O preconceito, sempre o preconceito, que é o maior inimigo da arte.

As pessoas que ha dias assistiram, no S. Pedro, a um espectaculo de amadores, e viram tão bem interpretadas a opera Philemon et Baucis e a comedia o Badejo, mais uma vez reconheceram que não nos faltam verdadeiras vocações para o theatro. Assim não nos faltasse theatro para as vocações...

E dizer que a realização d’esse ideal, que vai envelhecendo commigo, está nas mãos de um homem, de um homem só, que se chama Coelho Rodrigues, que se chamou Furquim Werneck e Cesario Alvim, mas que é uma entidade unica, – o prefeito, o mesmo prefeito que já teve tres nomes e ha de ter sabe Deus quantos sem se preoccupar com o theatro municipal!

Todavia, se o meu estado de saude não me tivesse hontem retido entre quatro paredes, eu teria ido ao Lucinda e não ao Sant’Anna, pois que ao Lucinda era a primeira representação de Secias e peraltas, comedia em 3 actos, de Marcellino Mesquita, a qual – dizem – é um dos maiores successos de peça portugueza que se têm visto nos theatros de Lisboa.

Como um dos directores da companhia do Lucinda, o sympathico actor Alfredo Santos, me deu a ler o manuscrito, poderei conversar com meus leitores a respeito de Secias e peraltas.

A comedia é escripta com talento, mas não é precisamente uma comedia: é antes uma successão muito interessante de quadros de costumes portuguezes do tempo nefasto de D. Maria I. Nefasto, mas pittoresco, – e o ser pittoresco é justamente a qualidade essencial da peça.

Diz o Aulete que peralta, ou antes, paralta é “pessoa ridiculamente apurada na maneira de trajar e de andar”, e secia “mulher casquilha, tafula”.

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Naquele tempo, e creio que ainda hoje, nem secias nem peraltas eram isso, mas raparigas ou rapazes frivolos, desoccupados, namoradores e elegantes.

Theophilo Braga na sua monumental Historia do theatro portuguez observa que “o fidalgo pobre dos seculos XVI e XVII tornou-se o peralta, o casquilho, o franscinote do seculo XVIII”, mas a julgar pelos Maridos peraltas, de Nicolao Luiz, o famoso auctor de Dom João, criado de si mesmo¸a observação não é exacta, porque àquelles peraltas o que mais faltava era justamente a fidalguia, a velha fidalguia portugueza.

Em muitos casos peralta era synonimo do nosso bilontra, e com todos os caracteristicos do legitimo bilontra figura em innumeros entremezes de cordel. O mesmo Theophilo Braga cita vinte e tantos, em cujos titulos figurava a palavra peralta. Um d’elles tinha a pachorra de se intitular A grande bulha e desordem que teve uma saloia com uma secia de Lisboa, por amor do peralta seu filho.

Em todo o caso, as secias e os peraltas da peça de Marcellino Mesquita, que aliás não são os seus principaes personagens, são pessoas de muito boa sociedade.

Os principaes personagens são: um rapaz que vem de Paris, onde assistio á tomada da Bastilha e á prisão da familia real; um casal de marquezes devotos perfeitamente photograpados, e a filha d’esses marquezes, prima e namorada do rapaz que vem de Paris, e que todos, inclusive o publico, tomam por um republicano, enthusiasmado pela revolução, e é, afinal, um realista. E n’isto de ser o rapaz realista e parecer republicano está toda a intriga da peça.

Ha scenas e typos muito engraçados; o auctor não se esqueceu do padre capellão, que se parece muito com o de Tolentino, nem do poeta, que tambem se parece com o da Morgadinha, o tal que recita o famoso soneto:

Flor na beldade, arroyo bem fallante, etc,

que é obra-prima de Pinheiro Chagas.A proposito de versos, notei, lendo a peça, que a marqueza, dando aos

peraltas, para ser glosado, este motte:

Saudade, doce martyrio,

teve um bello pensamento, que muitos annos depois fez a fortuna de dous endecassylabos de Almeida Garrett.

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A peça está muito bem distribuida e, a julgar por uma photographia que ahi andou exposta, os vestuarios são ricos e apropriados; espero, por conseguinte, que o successo correspondesse hontem aos desejos da empreza e dos artistas do Lucinda, que não têm poupado esforços para attrahir o publico.

A. A.

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O Theatro, 26/07/1900

Nenhuma novidade houve depois de Peraltas e secias, a bonita comedia de Marcellino Mesquita, que agradou muito mas não tem attrahido a concurrencia que fôra para desejar, porque decididamente o nosso publico é incontentavel.

***

No Apollo reappareceu a opereta de Raymond e Mars, musica de Roger, Os 28 dias de Clarinha, que já tem tido no Rio de Janeiro não sei quantas edições, apezar de não ser, no seu genero, uma das peças predilectas do fluminense. Entretanto, a sua inclusão no repertorio da companhia Taveira está perfeitamente justificada pelo facto de terem sido os papeis de Michonnet e Gibart creados em Portugal, com extraordinario successo, pelos actores Santinhos e Taveira. Em toda e qualquer companhia em cujo elenco figurem esses dous artistas, Os 28 dias de Clarinha serão sempre peça de obbligo, como dizem os italianos.

Ha uns tantos papeis felizes: o de Michonnet é um d’elles, ainda não o vi representado por nenhum actor que me não agradasse: todavia, sem desfazer em Santinhos, artista consciencsioso, nem n’aquelle extraordinario Alfredo de Carvalho, um dos comicos mais engraçados que conheço, nenhum dos interpretes que tenho visto leva as lampas ao nosso Mattos. Não sei se me deixo enganar pela magia das primeiras impressões, que no theatro sempre deram origem a clamorosas injustiças, mas a verdade é que Mattos me deixou n’aquelle papel, como em tantos outros, uma recordação indelevel.

***

No Sant’Anna tivemos outra réprise do Amigo das mulheres, com o actor Carlos de Oliveira no papel de Des Fargettes, e a actriz Georgina Pinton no de Mlle. Hackendorf; sahiram-se ambos perfeitamente... ao que me informaram, porque continuo, infelizmente, privado de sahir á noite, e não sei que manhas empregue afim de convencer o meu medico de que me deve dar licença para assistir á 1ª representação de Frou-frou, em que espero um grande successo para Lucilia e Georgina.

***

Tratando do Sant’Anna, não posso deixar no tinteiro o que de mais interessante rezam actualmente os annuncios da empreza Lucinda e Christiano: o proximo reapparecimento do ex-actor... perdão: do actor Matins n’aquelle velhote dos Dominós cor de rosa, que dizia (lembram-se?) com tanta graça: Francamente, seu Felippe, eu espera outra cousa!

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Não é criança o Martins. Basta dizer que, não fallando do Heller, ha muito tempo afastado do palco, é elle o ultimo vestigio da famosa companhia que a Joaquim Heleodoro manteve no Gymnasio, e fez a idade do outro da nossa litteratura dramatica, representando peças de Macedo, Alencar, Quintino Bocayuva, Machado de Assis, Pinheiro Guimarães, Achilles Varejão, Sizenando Nabuco e outros, – companhia que, com mais algum esforço, teria levantado sobre solidas bases o edificio do theatro nacional.

N’aquelle tempo teve Martins um singular triumpho com a inolvidavel creação do protagonista do Demonio familiar, e d’ahi por diante nunca mais perdeu os fóros de artista, quer figurando em pachouchadas como Nhô Quim, quer interpretando papeis illustres como o do Monsieur Poirier.

Quem lhe negaria talento n’aquella deliciosa pochade das Scenas do Rio de Janeiro, producção em que entrou alguma cousa de um grande espirito litterario, que não se póde esconder?... quem não se confessaria rendido aos seus dotes de observação, vendo-o interpretar o patrão da Criada grave?

A ultima companhia a que Martins pertenceu era dirigida pelo Braga Junior, hoje visconde de S. Luiz; andava o artista a mourejar com ella por S. Paulo, quando alli travou conhecimento com o fallecido Dr. Rodrigo Silva, então ministro da agricultura.

Foi ha uma boa duzia de annos. A repartição dos correios passára por uma reforma, e tinha sido creado o logar de almoxarife. Desgostoso de operetas e revistas, Martins pedio para si esse logar ao ministro, e o ministro deu-l’ho.

Ultimamente o demittiram, e elle sonhou com o Theatro Municipal, que foi um pouco obra sua... Desilludido, porém, das intenções da prefeitura no tocante á arte dramatica, aceitou o contracto que Lucinda e Christiano lhe offereceram.

E ahi tem o publico de novo no palco um dos seus artistas mais queridos. É não deixal-o ás moscas!

O Martins está e não está velho. Está porque tem idade sufficiente para justificar o uso desse adjectivo terrivel; não está, porque não se deixou abater pelos annos nem pelas contrariedades; é activo de corpo e de espirito, goza saude, não perdeu a voz, não perdeu a memoria, e póde prestar ainda bem bons serviços ao theatro.

O que não fez no Gymnasio a empreza de Joaquim Heleodoro, poderá, talvez, fazer no Sant’Anna a empreza de Lucinda Simões. O caso é não disanimar diante das pequenas receitas, o caso pe impor-se! Que diabo! se é tão poderosa a força do habito, que até os passarinhos se habituam aos espantalhos, porque não ha de o nosso publico habituar-se á comedia?

***

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Chega hoje a companhia lyrica, trazida pelo intrepido Sansone, que vai ficar desagradavelmente soprehendido quando vir que o cambio, depois de ter subido a 14, se arrependeu e baixou de novo.

Se eu dispuzesse de mais espaço n’este rodapé, faria algumas observações sobre o luxo a que se julgam obrigados os espectadores do Lyrico; mas os leitores não as perdem por esperar. É um assumpto que ha muito tempo está pendurado no bico da minha penna, e bom serviço me parece combater um prejuiso que priva de parte da população de ouvir boa musica. Por hoje cederei logar á seguinte carta, contendo uma reclamação que por parecer justa vai com vistas aos Srs. Bartholomeu e Sansone:

“Sr. A. A. – É tão proverbial o decidido apoio da sua penna contra todos os vexames de que é victima o publico frequentador dos nossos theatros, que ousamos apellar para a sua bondade, afim de que interceda para que cesse, no ultimo anno d’este seculo assombroso, a injustiça monstruosa que afflige os humildes frequentadores da 2ª classe de cadeiras do theatro Lyrico.

Como V. sabe, não são cadeiras os moveis que se acham alinhados ao fundo da sala d’aquelle casarão!

São bancos e só por escarneo figura no annuncio como valendo 12$ o bilhete que permitte a uma creatura humana gosar no acanhado espaço limitado por ferros ultra enferrujados, as bellezas de uma opera!

O theatro acha-se hoje illuminado á luz electrica, novamente pintado, forrado e decorado. Bem!

O arrojado emprezario Sansone vai fazer desapparecer o chronico panno de bocca, inaugurando um bellissimo panno de sua propriedade. Muito bem!

A companhia espera dizem ser de 1ª ordem. Muitissimo bem!Mas... os bancos sinistros, espectros de cadeiras, lá ficarão no seu posto!Reclamaram urgentes despezas do proprietario do theatro, que podiam em

parte ser adiadas, mas em relação ás necessidades do publico nada foi pedido. Bellissimo!

Assim, sem sabermos a quem recorrer, pois que em assumpto de theatro não sabemos quem delibera n’esta terra, entregamos a nossa causa nas suas generosas mãos, certos de que reclamará contra a existencia das pseudo-cadeiras de 2ª classe, fazendo com que no dia da inauguração da ultima temporada lyrica do seculo XIX a presença de cerca de 300 cadeiras Thonet no recinto do theatro Lyrico, substitua os celebres bancos.

Será mais uma victoria conquistada pelo nosso presado Sr. A. A., a quem saúdam respeitosamente os – Frequentadores do Lyrico.”

Não me parece que haja tempo de substituir as cadeiras para a ultima tempora do lyrica do seculo XIX, mas ahi fica a reclamação para a primeira

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do seculo XX. Naturalmente o senhorio e o locatario do theatro allegarão presentemente a baixa do cambio... Quizessem os bancos da rua Alfandega, e os do Lyrico desappareceriam.

***

A ultima representação da Triste viuvinha, dada hoje em beneficio do estimavel artista Alfredo Santos, é um espectaculo que não posso deixar de recommendar aos meus leitores.

E já agora, recommendar-lhes-hei igualmente o de amanhã, no Recreio, em beneficio do sympathico e popular José Luiz, que faz questão de sua qualidade de “decano dos gazistas dos theatros do Rio de Janeiro”.

Além de Balbina Maia e Machado, tomarão parte n’esse espectaculo os distinctos amadores do Club Riachuelense.

A. A.

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O Theatro, 02/08/1900

Depois de afastado durante 14 annos do palco, reapparece hontem no theatro Lucinda o talentoso actor Martins, de cuja individualidade me occupei largamente no folhetim passado.

O theatro estava cheio; a assembléa não podia ser mais escolhida. Aqui e alli, na platéa e nos camarotes, notavam-se algumas pessoas que já ninguém vê aos theatros, e tinham sido naturalmente levadas pela saudade. Alguma cousa parecida com o que se vê nos theatros de opera quando cantam Norma ou o Trovador.

Principiarei por dizer que Martins é o mesmissimo actor dos bons tempos. Eu tinha confesso, os meus receios de que, depois de tão longo descanço, depois de haver exercido durante tantos annos um cargo official que o deslocara completamente do meio artistico, elle houvesse perdido algumas das qualidades que outr’ora o distinguiam. Pois não perdeu absolutamete nenhuma. Dir-se-hia que não representava apenas ha tres ou quatro dias: o seu trabalho no papel de Beaubaisson dos Dominós cor de rosa, nada ficou a dever ao da “primitiva”.

O publico mostrou-se d’essa opinião applaudindo-o calorosamente, enthusiasticamente. Applausos muito significativos, que ao mesmo tempo exprimiam o pezar de o ter visto durante tento tempo recolhido a bastidores e o prazer d’esta restituição feita ao theatro.

Mas se o Martins não envelheceu, o mesmo não se pode dizer da peça. Decididamente, Hennequin, o reformardor da comedia de quiproquós (Dizem até que foram elles que o puzeram doido!), foi inteiramente anniquilado pelos Bissons, Feydeaus, Gandillots, etc. Depois do Hotel do Livre Cambio, do Champignol, do Fiscal dos wagons-leito etc., os Dominós cor de rosa fazem o effeito de um grog em que se esquecessem o cognac.

O proprio papel de Beaubuisson, que outr’ora me pareceu um “papelão”, achei-o hontem desguarnecido, quasi incolor. Martins encontrará sem duvida no repertorio moderno, personagens do mesmo genero em que possa com mais proveito servir-se dos seus recursos.

Lucinda representou como sempre representa: irreprehensivelmente, e Lucilia, que não pude applaudir na Frou-frou, encarregou-se de um papel infeiror ás suas forças, e do qual não vale a pena fallar.

Mattos foi um Damenil muito elefante; Chaby contornou com graça uma figura de maître-d’hôtel que outro actor menos habil deixaria passar despercebida; Campos seria um magnifico Herique se exaggerasse menos, ou por outra, se não exaggerasse.

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Eugenio de Magalhães, um dos nossos raros actores dramaticos, nunca está á vontade no vaudeville, e não lhe quero mal por isso; Lucilia Peres não nasceu para fazer lacaias, e Carmen não tem idade para fazer cocottes.

Clelia, a minha querida Clelia (com que magoa o digo!), não sabia de cor o seu papel, um papellinho á tôa.

Cem annos que viva, o nosso Martins não se esquecerá d’esta noite de consolação e triumpho.

***

Deu-nos a companhia do Lucinda mais uma comedia original portugueza: Sra. ministra, tres actos de Eduardo Schwalbach.

A peça tem o grande defeito de participar de tres generos distinctos: drama, comedia e farça, e isso faz com que ella se torne uma producção hybrida, não obstante estar bem architectada e ser obra de um comediographo que conhece o officio e sabe muito bem dialogar.

As inverossimilhanças, de que a peça está cheia, seriam muito acceitaveis e passariam sem protesto, se todos os personagens fossem vaudevillescos; mas o diabo é que Schwalbach reunio no mesmo quadro caricaturas e retratos, e essa mistura não dá bom resultado.

O critico theatral d’A Noticia já fez ver o argumento da peça aos leitores. O auctor satyrisa a vaidade das senhoras que desejam ver os respectivos maridos no galarim da politica, porque esse é o meio mais seguro de causarem inveja a amigas e conhecidas. Schwalbach é bom observador: não creio que errasse; mas confesso que não conhecia esse traço dos costumes portuguezes; ignorava mesmo que em Portugal a esposa do ministro se chamasse ministra, vocabulo que nunca vi nem ouvi empregado no genero femino.

As senhoras brasileiras são, em geral, menos sensiveis a quantas honrarias possam conquistar seus maridos; nenhuma conheço casada com ministro, que pretendesse invadir as attribuições de sua excellencia, como a Magdalena e a Conceição da comedia potugueza.

E não é porque estejamos n’um paiz republicano: já no tempo do imperio era a mesma cousa; só por excepção poderia apparecer alguma intromettida, que aliás ninguém tomava a sério. É verdade que a imperatriz dava o bom exemplo: era uma senhora tão simples, tão modesta, que por seu gosto todos a tratariam por “Sra. D. Thereza”, e não lhe dariam magestade.

Seja, entretanto, o que fôr, A Sra. Ministra faz rir a valer, e proporciona aos artistas da companhia portugueza occasião de brilhar mais uma vez.

Agradaram-me todos, pouco mais ou menos, excepção feita de Maria Falcão, que accentuou demasiado a feição dramatica do seu papel.

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Prefiro essa intelligente artista nos papeis francamente comicos, e que tenha alguma poesia como o de Emilinha nos Velhos, – papel que Rosa Damasceno, que o creou, não poderia interpretar melhor.

Em todo o caso, sendo, como é, obrigada a desempenhar papes dramaticos, bom será que Maria Falcão se corrija de um defeito que, por uma inexplicavel singularidade, não lhe noto nos papeis comicos: apertar os labios de modo que as palavras lhe saiam entre os dentes. Ella poderá responder que a grande Sarah Bernhardt tem o mesmissimo defeito; deixál-a ter: não é por isso que ella é grande.

E a graciosa actriz que não se agaste com minhas [p. i.: “palavras”?], eu não lhas faria se não a considerasse muito.

***

Nada mais de novo. A companhia Taveira fez ha dias uma interessante reprise do Testamento da velha e dá hoje o Hotel do Livre Cambio.

***

Encontrando-se commigo ante-hontem o actor Nazareth, disse-me que elle e os seus collegas da companhia Moreira Sampaio tinham resolvido organisar entre si uma associação para dar espectaculos de drama e comedia n’um dos nossos theatros, aproveitando quanto possivel o material d’aquella companhia, porém representando peças novas sempre que o possam.

A estréa, entretanto, será com peça velha, mas peça que agradou muito no Apollo e nunca mais voltou á scena: o Comboio n. 6.

Faço votos para que essa tentativa tenha bom resultado, e espero que o tenha, porque a associação está formada sob as melhores bases, e só conta com o publico em certa proporção. O principal vicio de origem das nossas emprezas theatraes é contar absolutamente com elle.

A. A.

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O Theatro, 09/08/1900

É incrivel, mas é verdade: apezar de todos os pezares, o emprezario Sansone trouxe ao Rio de Janeiro uma companhia de primeira ordem. A nossa ultima temporada lyrica do seculo ficará para sempre assignalada nos annaes do theatro fluminense.

Occupado n’outra parte, não assisti a nenhuma das duas representações do Tannhauser; hotem, porém, fui ouvir a Manon, de Puccini, e posso dizer que raras vezes tenho trazido do theatro lyrico tão profunda impressão.

Sabe-se que essa opera é um mimo, e tem, sobretudo, um 2º acto prodigioso de inspiração e de frescura. Pois bem: saiba-se agora que a prima-dona Elisa Petri é uma Lescaut ideal, principalente para os espectadores myopes, como eu, que acham todas as cantoras bonitas, e que o tenor Rambaldi, sem me fazer esquecer Cremonini, o primeiro que ouvi no papel do cavalheiro Des Grieux, me satisfez plenamente.

O barytono Baldassari não cantou mal, mas exagerou tanto o seu personagem, fel-o tão estouvado, que no 2º acto ia levando um trambolhão ao sentar-se n’uma cadeira de braços, pertencente á celebre mobilia estofada que servio durante cem representações do Surcouf.

Jacare, que estava n’um camarote, logo que vio essa mobilia, escandalosamente vermelha, propriedade do aderecista Domingos Costa, piscou os olhos a Surcouf, que assistia a espectaculo de uma varanda.

Mas para que estou eu a fallar dos artistas e da mobilia, quando hontem, por bem dizer, não tive ouvidos, nem mesmo olhos, senão para a orchestra, incontestavelmente a primeira que têm vindo ao Rio de Janeiro?

Que grande artista é Mascheroni, e que supresa me causou a mim, que estava tão convencido de que, depois do infeliz Mancinelli, tão cedo não teriamos um regente d’aquella ordem.

Tive hontem, na minha terra, a inesperada ventura de ouvir uma grande orchestra, recebendo a extraordinaria impressão de ouvir um instrumento só, um instrumento enorme, phenomenal, maravilhoso, que tivesse todas as vozes, todas as modulações, que fosse ao mesmo tempo de corda e de sopro, de madeira e de metal.

Que enfeitiçada aquella batuta! Aquella batuta? Que digo eu! Mascheroni é todo batuta: as notas saem-lhe dos dedos, dos olhos, dos cotovelos, das pontas dos bigodes! Elle faz calar os violinos apanhando-lhes as notas no ar, fechando-as nas mãos, – e quando as abre, elles, os violinos, soluçam de novo.

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Quando o maestro ergue verticalmente o braço esquerdo e aponta para o ar, a nota aguda do tenor parece que lhe sae da ponta do indicador expressivo, e a mão espalmada desenha no ar a nota grave.

O seu corpo tem ondulações de serpente, e essas ondulações traduzem, nota por nota, o que se vae ouvir. Acompanhando-lhe os gestos e os movimentos, parece que se sente, que se adivinha a phrase musical que elle pede á orchestra.

O artista ergue-se de vez em quando n’um movimento rapido, quasi imperceptivel, e puxa uma das abas da casaca; mas essa preocupação não o despreocupa do seu assombroso trabalho: nada lhe esquece, dá todas as entradas com uma precisão chronometrica, dirige, uma por uma, todas as partes dos coros, communica-se com todos os musicos, olha para ambos os lados quasi ao mesmo tempo, com movimentos de cabeça tão contrarios e tão simultaneos, que o espectador lhe vê dous perfis.

Ás vezes abaixa-se: parece que vae apanhar com a batuta alguma cousa que lhe cahio no chão. Não ha tal: vae buscar uma expressão energica, profunda; está dizendo que aquelle accorde deve ser arrancado do fundo d’alma dos instrumentos.

O espectador sente-se fascinado por esse homem: naõ tira os olhos de cima d’elle; elle é o tenor, o barytono, o baixo, a prima-dona, a orchestra, a companhia inteira; os coros, a figuração, os scenarios, os accessorios são elle, que tudo abrange, tudo absorve, tudo offusca!

Quando Sansone não nos tivesse trazido senão Mascheroni e a sua orchestra, já nos teria prestado inestimavel serviço.

***

A Companhia Dramtica Porugueza dirigida pelos actores João Gil e Alfredo Santos, da qual é emprezario o Sr. Luiz Pereira, deu hontem o seu ultimo espectaculo no Lucinda, com a comedia Peraltas e secias, de Marcellino Mesquita, e partio hoje para S. Paulo, onde amanhã se estreará.

A companhia fechou com chave de outo a serie das peças que exhibio, pondo em scena o Marquez de Villemer, comedia em 4 actos, de Georges Sand.

Representado pela primeira vez no Odéon, de Paris, a 29 de fevereiro de 1864, o Marquez de Villemer tinha apparecido pouco antes sob a fórma de um romance, e este, diga-se a verdade, é muito mais interessante que a comedia.

A fórma theatral tirou ao livro os seus desenvolvimentos analyticos e a magnifica pintura do meio aristocratico em que os personagens se movem; diminuio consideravelmente a figura de Mlle. de Saint-Geneix, de tão intensa paixão no romance e quasi insulsa na comedia, e o mesmo póde-se dizer do

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proprio protagonista, o marquez de Villemer, que no theatro é offuscado por seu irmão, o duque de Aleria.

Entretanto, a peça é muito bem feita, tão bem feita, que mereceu as seguintes palavras de Emile Montegut: “Georges Sand a batu les dramaturges les plus expers e les plus rompus à toutes les ruses du nétier, rien que par le seul sujet et le seminstinct de son génie.”

Quer me parecer, todavia, que um dramaturgo experimentado daria mais um acto á comedia, para aproveitar toda a belleza do desenlace do romance, e a scena commovedora em que Carolina de Saint-Geneix salva o marquez de Villemer que, sahindo de casa, desesperado, á procura d’ella, se perde no caminho e fica enterrado na neve. Um dramaturgo experimentado facilmente conduziria todos os personagens da peça junto dos dous amantes.

A comedia, que o nosso publico já conhecia, pois que a viu representada no desapparecido S. Luiz pela companhia de Emilia Adelaide e mais recentemente no S. Pedro pela companhia do theatro D. Maria II, foi menos mal interpretada pelos artistas do Lucinda, merecendo especial menção o actor Henrique Alvez, a quem couberam, no papel do duque de Aleria, as honras do desempenho. É um artista de muito futuro, com quem póde contar a scena portugueza.

Carolina Falco representou sem distincção o papel da marqueza de Villemer, que outr’ora lhe mereceo mais cuidado, e Luiz Pinto, impetuoso e brilhante, n’outros papeis de mais responsabilidade, pareceu um pouco frio no do marquez ciumento e apaixonado.

Comquanto fora do seu genero, Amelia Pereira satisfez no papel de Mlle. de Xantrailles. O mesmo não se pode dizer, no de baroneza d’Arglades, de Sophia de Oliveira, que sae do Rio de Janeiro sem me haver fornecido ensejo de lhe endereçar meia duzia de amabilidades sinceras.

Não ha que dizer de Maria Falcão, nem de Alfredo Santos, nem dos demais artitas que tomaram parte na representação do Marquez de Villemer.

Desejando boa viagem á companhia Luiz Pereira, uma das mais completas que têm vindo de Lisboa ao Rio de Janeiro, faço votos para que S. Paulo lhe depare á merecida fortuna que não encontrou na Capital Federal.

A companhia deixa ficar aqui Georgina Pinto, actriz de merecimento, que promette abrasileirar-se, felizmente para o nosso palco; mas leva comsigo Barbara, Carolina Falco; Maria Falcão, Amelia Pereira, Sophia de Oliveira, e outras.

O pessoal masculino é completo: Telmo, Luiz Pinto, Antonio Pinheiro, Augusto Antunes, Setta da Silva, Henrique Alves, João Gil. Alfredo Santos e outros formam um excellente conjuncto, que póde ser apreciado, en bloc, nas Secias de peraltas e nos Velhos, o primoroso idylio dramatico de D. João da

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Camara, que por si só justificaria a resolução, que tomaram esses artistas de atravessar o oceano.

***

Nada mais de novo.A companhia Lucinda-Christiano varia seus espectaculos, concorridos

sempre pela melhor sociedade, e a companhia Taveira, a que não tem faltado muito publico e muitos +++++applausos, e é realmente digna d’isso, annuncia para sabbado uma opereta de Lecocq inteiramente nova para o Rio de Janeiro: a Mocidade de Ali-Babá.

A. A.

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O Theatro, 16/08/1900

A cantora encarregada do papel de Aida fez com que a 1ª representação da opera de Verdi fosse tumultuosa e ridicula: perderam todos a tramontana; felizmente a 2ª representação, na opinião geral, salvou os creditos da companhia Sanzone, abalados durante quarenta e oito horas.

Se eu pretendesse defender o empresario, que aliás considero digno da sympathia do publico, diria que absolutamente não creio que Sanzone quizesse enganar o publico, impingindo-lhe uma Aida tão fóra de vida e termo. Elle não enganou o publico: enganou-se a si mesmo, pois só enganado poderia contratar semelhante artista.

Quem conhece as grandes difficuldades e os pequenos dissabores com que lucta um emprezario lyrico para organisar na Italia um elenco destinado á America do Sul, deixando-se muitas vezes levar por informações de intermediarios de má fé, crê piamente que Sanzone errasse mau grado seu.

Elle conhece bem a nossa platéa de opera e é bastate esperto para não trazer, de caso pensado, uma artista com quem não pudesse contar. Longe de accusal-o, o facto de haver confiado àquella cantora a parte da protagonista de uma opera que o publico sabe de cor, falla em favor de sua boa fé.

Não conversei com Sansone, que ainda não vi depois que chegou; mas, conhecendo-o como o conheço, faço-lhe a justiça de suppor que não tinha ainda ouvido cantar a infeliz interprete de Aida, oum se a ouviu, foi em condições especiaes, que o illudiram.

Em todo caso, houve certa exaggeração por parte dos espectadores que tentaram desfeiteal-o pelo simples facto de não haver agradado aquella prima-dona; a essa fatalidade estão sujeitas as melhores companhias lyricas do mundo, e a prova de que o incidente não teve a importancia que se lhe quiz dar, foi a 2ª representação da opera.

Na primeira noite Sansone foi intantemente chamado á scena, para ser vaiado, não pateado, porque a verdadeira pateada não está nos habitos do nosso publico. Elle não appareceu no palco, e fez bem, porque nenhum homem honrado acode quando o chamam para insultal-o.

Se não houvesse tantos meios de manifestar desagrado a um emprezario sem recorrer á assuada, esta não me repugnaria, talvez. Mas – que querem? – acho cobardia reunirem-se muitos homens para apurar um homem só, quando este não seja precisamente um miseravel cujo procedimento justifique taes medidas de excepção.

Já todos sabem que os artistas da companhia não são, felizmente, da força da Aida de sabbado. Hontem chegaram o De Marchi e a Carelli; hoje estrear-

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se-hão, na Mignon, mais duas cantoras – Livia Berlandi e Adelina Tromben. O elenco é numeroso e está recommendado pela critica dos melhores centros musicaes.

E, com franqueza, o publico tem o direito de apupar o empresario que trouxe ao Rio de Janeiro Mascheroni e a sua orchestra?

Ahi está um titulo de benemerencia, que deveria preserval-o de quaesquer manifestações de desagrado.

***

Tivemos uma opereta, quasi uma opera-comica, no Apollo, – a Mocidade de Ali-Babá, ou melhor, Ali-Babá, que é como se intitula, com mais propriedade, a peça orginal.

O libretto de Busnach e Vanloo, que teve a honra de ser traduzido por D. João da Camara, aproveitou, com muito engenho,a velha peça dos irmãos Cogniard, extrahida dos Contos das mil e uma noites e representada centenas de vezes n’esta cidade, com musica do velho Mesquita.

A partitura do Ali-Babá do Apollo é de Lecocq, e, se não vale a Madame Angot, essa obra-prima, nem o Petit-Duc, esse mimo, nem por isso deixa de ser muito interessante.

Por uma coincidencia notavel, ha no Ali-Babá de Lecocq uma bonita marcha que se parece extraordinariamente com a famosa marcha do elephante, do Ali-Babá de Mesquita.

O papel de Cassim, que na peça dos irmãos Cogniard foi primorosamente representado – lembram-se? – pelo defunto Lisboa, e está muito modificado no libretto de Busnach e Vanloo, deu ensejo ao actor Santinhos para mostrar o seu talento comico, – e os demais papeis tiveram boa interpretação, embora no canto a partitura fosse um tanto sacrificada pelos artistas. Já eu disse que o Ali-Babá é quasi uma opera-comica.

Libania, que aliás não póde com o papel que lhe foi distribuido, visivelmente escripto para uma cantora, revelou disposições que um emprezario intelligente e avisado como Taveira não deixará que se percam. Para isso, é preciso não exigir da sympathia e futurosa actriz trabalhos superiores á sua força.

A peça está bem posta em scena e foi muito applaudida.

***

Reapparição do Tim-tim por tim-tim, reapparição da Pepa, reapparição do Brandão, reapparição do Machado... Estas quatro reapparições levaram ao Recreio, sabbado passado, uma enchente descommunal, que se renovou

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domingo, e se renovará depois d’amanhã, graças a outra reapparição, a do Rio Nú.

E com o repertorio do Silva Pinto, o emprezario cuja reapparição deixaram não sei por que, de annunciar, irão esses festejados artistas entretendo o publico, até que cheguem de Lisboa os scenarios da Viagem de Susette, peça de grande espectaculo.

Espero que até lá o Recreio se encha muitas e muitas vezes.

***

A companhia de Lucinda Simões e Christiano de Souza voltou para o Lucinda, onde amanhã dará o seu primeiro espectaculo com o Arara, titulo que foi traduzido pelo illustrado Dr. Cunha e Costa, Le dindon, comedia de Georges Feydeau, grande successo do Palais-Royal, de Paris.

Para o Sant’Anna irão, associados, os artistas da extincta companhia Moreira Sampaio,que contam encetar os seus trabalhos durante a próxima semana com os Provincianos em Paris, comedia em 4 actos, de Emile de Najac e Pol Moreau, – outro grande successo do Palais-Royal, de Paris.

***

Surprehendeu-me a noticia do fallecimento de Mme. Doche, a notavel actriz franceza, creadora do papel de Margarida Gautier quando La dame aux camélias foi pela 1ª vez representada ha quarenta e oito annos.

Surprehendeu-me, note-se, porque eu suppunha que Mme. Doche ha muito tempo mão pertencesse ao numero dos vivos.

Na Europa, em geral, quandos os artistas celebres se retiram do palco, figuram de vez em quando n’uma ou n’outra noticia dos jornaes; entretanto, Mme. Doche desapparecêra definitivamente: pode-se dizer que morreu duas vezes.

A. A.

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O Theatro, 23/08/1900

Com a Mignon e a Carmen desfizeram-se as nuvens que por um instante obscureceram os horizontes do Lyrico. Livia Berlendi, na opera de Ambroise Thomas, e De Marchi,na de Bizet, reanimaram o enthusiasmo do publico e as esperanças da empreza. Se esta, no fim da temporada, não houver lucrado mundos e fundos, tambem não terá perdido.

A exposição de Paris roubou ao Sr. Sansone quatro contos approximadamente por espectaculo, e esse accrescimo da receita seria, talvez, o seu lucro.

Á representação da Carmen faltariam justamente esses quatro contos para que a enchente fosse completa; entretanto (e isso mostra como o theatro illude) havia apparentemente poucos logares vasios. A receita, digamol-o, passou de 22 contos, o que é bonito,mesmo com um tenor caro como De Marchi, mas é absolutamente preciso que se mantenha essa media (e se manterá, espero) para que a empreza não se arrependa de nos haver proporcionado tão bons espectaculos.

A Berlendi conquistou o publico,e para isso lhe bastou, por bem dizer, apresentar-se em scena: De Marchi é um tenor que sob todos os pontos de vista satisfaz aos dilettantes mais exigentes.

Com taes artistas, e os demais, todos muito aceitaveis, e aquelle estupendo Mascheroni com a sua orchestra, a companhia Sansone poderia apresentar-se desassombradamente á platéa mais rigorosa.

E já que fallei na orchestra, não perderei o ensejo e a satisfação de dizer que figuram n’ella nada menos de 29 professores contractados n’esta cidade, e entre elles muitos nacionaes.

***

Ha no 3º acto do Arara uma situação realmente intoleravel, e não creio que no Rio de Janeiro tenha sido representada,em tempo algum, scena mais livre; entretanto, a empresa do Lucinda não póde ser accusada de má fé; annunciou com todas as letras o nome de Georges Feydeau, e o publico está farto de saber que o theatro d’esse auctor não se recomenda como ensinamento de moral.

Feydeau adoptou no vaudeville o mesmo systema adoptado por Dennery no melodrama: procura os effeitos sem se preoccupar demasiado com o modo de os obter. O que deseja é fazer rir, como Dennery fazia chorar. A pornographia, nas suas peças, serve de condimento a situações tão extravagantes, tão inverossimeis, que o espectador se sente desarmado, a menos que, illudido, tenha levado comsigo meninas ao theatro.

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Cunha e Costa, o traductor do Arara, é um escriptor de talento, que, se conhecesse bem a nossa platéa, teria discretamente evitado certos ditos e mesmo certas scenas.

A intervenção policial foi arbitraria e violenta, porque as emprezas dramaticas, desde que a auctoridade tenha assistido ao ensaio geral da peça nova e esta não altere a traquillidade publica, estão amparadas pelo regulamento dos theatros.

Entretanto, a empreza do Lucinda perdeu apenas uma matinée, que vale bem o réclame feito pela policia.

O publico tem ido ao theatro, e tem rido bastante. Um pouco de bom humor e de alegria é um beneficio tão consideravel, que se deve perdoar a Feydeau as suas demasias, tanto mais que elle as escreveu para os theatros parisienses aonde uma senhora só vai depois de casada e mãe de filhos.

Eu poderia censurar o electismo da empreza do Lucinda,e pedir-lhe que não se arredasse do bom proposito com que poz em scena a Casa de boneca, o Amigo das mulheres e outras peças; mas não está ahi o successo da Lagartixa para justificar a escolha do Arara? E o publico, acceitando a torto e a direito, applaudindo sem discernemento, fazendo boa cara ao bom e ao máo, confundindo nas mesmas acclamações Cezar e João Fernandes, não é o primeiro culpado dessa versatilidade?

Ha no Arara quatro papeis muito bem desempenhados por Lucilia Simões,Georgina Pinto, Chaby e Mattos. Os demais artistas represetam bem, mas nada fazem de extraordinario. Lucinda, que não me farto de proclamar a primeira actriz portugueza, nasei para imterpretar as heronias do bom theatro, do theatro litterario, conteituoso, psychologico, e não para puxar os cordeis aos titeres de Georges Feydeau.

***

Os demais theatros nenhuma novidade nos deram. No Recreio continuam as representações do eterno Tim tim por tim tim, emquanto não volta á scena o Rio Nú, e amanhã, no Apollo, a revista portugueza Ali... á preta substituirá a opereta Ali...Babá.

***

Ferreira de Araujo, o grande morto de hontem, merecia as honras de todo o folhetim, por ter sido um dos paladinos que com mais denodo de bateram pela causa do theatro nacional. Apaixonou-o por este assumpto até o dia em que a molestia o prostou.

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O seu ultimo esforço em prol do nosso theatro foi quando ha cinco annos Novelli se offereceu para fundar n’esta capital uma escola de arte dramatica, – idea que foi recebida com glacial indifferença e até combatida...

Ultima vez que o vi foi assistindo a um espectaculo da Della Guardia. Não tinha podido resistir áquella sereia que o attrahira ao S. Pedro, e, abatido, desfigurado pelo soffrimento, levou ainda assim para o camarote uns restos do seu turbulento enthusiasmo de outr’ora.

Ferreira de Araujo traduzio a primor algumas peças, que foram representadas nos nossos theatros, e escreveu uma espirituosa comediasinha, O primo Bazilio, para aproveitar a voga do romance de Eça de Queiroz e obsequiar o actor Silva Pereira, seu particular amigo, que fez beneficio com ella.

Escreveu tambem os Fagundes, comedia em 3 actos, que esteve em ensaios no Phenix, ha muitos annos. Na vespera da representação, por motivos que aida hoje ignoro, o auctor retirou a peça, e não consentiu que a exhibissem. É possivel que esse manuscripto seja encontrado entre os seus papeis.

Parece-me que os nossos artistas dramaticos deveriam manifestar, por qualquer forma, a sua gratidão a Ferreira de Araujo.

***

Eça de Queiroz tem tambem direito a uma referencia nestes folhetins,onde mais tarde encontrará, embora fragmentada, a historia de certo periodo de nosso theatro.

O nome do glorioso escriptor portuguez figurou por duas vezes nos annuncios dos nossos theatros, a primeira com o Primo Basilio, a segunda com o Crime do padre Amaro. Daquelle romance extrahiu Cardoso de Menezes uma peça que não fez carreira, e deste Augusto Fabregas um drama que foi reprezentado muitas vezes, e forneceu a Furtado Coelho a sua ultima creação, – o papel do padre Amaro.

***

Amanhã, anniversario da morte do nosso João Caetano, a Caixa Beneficente Theatral fará celebrar um officio funebre em S. Francisco de Paula, e serão, em seu nome, depozitadas duas corôas, uma sobre o tumulo e outra aos pés da estatua do grande actor fluminense.

A. A.

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O Theatro, 30/08/1900

Com o Mephistofeles, de Arrigo Boito, continuou a serie dos successos da companhia Sansone, que tem dado muitas em cheio e só uma em vão.

De Marchi, se bem que não esteja em pleno dominio da sua bella voz, é um Fausto ideal e a prima-dona Carelli é um soprano dramatico de primeira ordem e póde ser considerada uma excellente actriz desde que se acceite o genero de gesticulação dos artistas italianos. O papel de Margarida, principalmente na scena da prisão, foi primorosamente representado.

Cabe tambem ao baixo Rossi uma boa referencia pela distincção com que desempenhou a parte do protagonista da opera.

Mas a grande figura, o primus inter pares da companhia, continúa a ser o magnifico Mascheroni, cuja batuta arrancou á partitura de Boito bellezas que eu ignorava que lá estivessem, comquanto ouvisse a opera um rór de vezes. Imagino que surpresas me reservará para hoje a partitura de Sansão e Dalila, interpretada por aquella orchestra!

A representação do Mephistofeles agradou sob todos os pontos de vista, menos o da enscenação, que devia ter sido sumptuosa, para estar na altura do resto. Quizera saber quem foi o scenographo que se lembrou de pendurar na parede do gabinete do Dr. Fausto um mappa geographico moderno... É verdade que a peça é fantastica.

***

A companhia Taveira deu-nos uma revista portugueza, em 3 actos e 17 quadros, intitulada Ali...à preta, original do escriptor portuense Guedes do Oliveira,com muitos numerosos numeros de musica, uns compostos por Cyriaco de Cardoso e outros aproveitados por elle, aqui e alli, principalmente nas zarzuelas “chicas”.

A peça é bem feita, é leve, não aborrece, e,se não tem o espirito gaulez, não lhe falta a velha chalaça portugueza,que o nosso publico tanto aprecia. Ha um quadro escripto em quintilhas bem rimadas, embora não valham as de Nicoláo Tolentino, e uma variedade de typos engraçados, que se succedem com a rapidez caracteristica das revistas de anno.

Comquanto a peça trate exclusivamente de homnes e de factos sobre Lisboa e do Porto, só uma ou outra allusão escapou ao publico da estréa, pois a revista é mais de costumes que dos acontecimentos de uma época determinada.

Quem quizer julgar dos homnes politicos de Portugal pelas revistas theatraes bem triste idéa fará de suas excellencias. Esta observação já eu a fiz quando aqui foi representado o Sal e pimenta, de Souza Bastos. No Ali...à preta

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se diz (e essa é a melhor piada da peça) que d’antes em Portugal havia quem empenhasse as barbas para salvar a patria, e hoje ha quem empenhe a patria para salvar as barbas.

N’outra situação da peça o ministro da fazenda entra em casa de um homem rico, e este manda immediatamente fechar os armarios á chave.

Para cumulo de perversidade, o compadre da revista, que atravessa os tres actos á procura de um ministro, não encontra outra creatura que o satisfaça senão um burro, que tem as hornas da apotheose final.

Esses epigrammas fazem rir, é verdade, mas – deixem lá! – embora saiba toda a gente o que elles têm de exagerados e de injustos, não é bonito dizer cousas tão feias do seu paiz... no estrangeiro.

Esse reparo aqui fica para desencargo da consciencia; nada tem que ver com o exito da peça, que tem todos os elementos para uma longa carreira, e começou attrahindo, em 2ª representação a maior enchente que ainda houve em matinée nos theatros do Rio de Janeiro.

A receita subio ao maximo.O melhor d’esses elementos é a musica. Não andasse alli o dedo de Cyriaco!

Alguns numeros são irresistiveis, principalmente os que têm caracter popular. O do principio do 3º acto, em que uma desgarrada qualquer se casa com um motivo de ladainha, é de um effeito muito comico.

Ali...à preta logrou a boa fortuna de encontrar no actor Santinhos um excellente compadre, que todos os effeitos consegue sem se desviar da linha traçada pela verdadeira arte, mostrando assim que se póde representar a revista com o mesmo comedimento e a mesma compostura com que se representa a comedia. O caso é que Santinhos nunca me agradou tanto como n’este papel de revista.

Entretanto, o successo não é só delle: Thereza Mattos, Lopiccolo, Gaspar, Gomes, Libania, todos, emfim, disputaram brilhantemente o seu quinhão de applausos. Conde, um artista que recebia palmas todas as vezes que entrava em scena, transformou-se não sei quantas vezes com um “fregolismo” admiravel.

Comquanto os scenographos que trabalharam para a revista do Apollo não valham o Coliva nem o Carrancini (já um collega disse isto mesmo), as enscenação é decente. Os vestuarios são vistosoa e bem imaginados.

A orchestra portou-se bem, e os córos muito afinados, mostraram que tinh havido todo o cuidado nos ensaios.

A companhia Taveira deu no vinte.

***

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O Rio Nú, de Moreira Sampaio, o maior successo theatral do Rio de Janeiro, voltou ao palco do Recreio, onde foi representado um sem numero de vezes.

A peça necessariamente já não attrae, como outr’ora, toda a população do Rio de Janeiro á rua do Espirito-Santo; em todo o caso, como quem foi rei sempre tem magestade, não tem faltado magnificas receitas.

Lá estão os tres principaes interpretes “da primitiva”: a sempre graciosa Pepa, o turbulento Brandão e o discreto Pinto, insubstituivel n’um papelinho de caixeiro de frege-moscas.

Herminia Adelaide reappareceu,por favor á empreza, no papel de Immigração, insignificante para ella, e entre outras modificações havidas na distribuição dos papeis, convém notar o criado portuguez do 3º acto, confiado agora a Antonio Sena, e o Satanaz, desempenhado pelo actor Irineu, artista brasileiro que merece ser “empurrado para a frente”, como se diz entre bastidores.

Na noite em que estive no Recreio, assistindo, não a todo o espectaculo, mas a algumas scenas do Rio Nú, o publico era numeroso e estava alegre: ria-se a fartar. O intè aminhão do popularissimo faz o mesmo estrondoso effeito de outr’ora.

Nos outros theatros, nada de novo. No Lucinda continuam as representações do Arara, e para o Sant’Anna está annunciada uma companhia de zarzuela.

Sempre a zarzuela! Ha quanto tempo não temos a opereta franceza representada e cantada por francezes! O emprezario que nos trouxesse uma boa troupe como as do defunto Arnaud, que explorasse o velho repertorio de Offenbach, ganharia dinheiro. As saudades são tantas...

***

O meu ultimo folhetim terminava com a seguinte noticia:“Amanhã, anniversario da morte de João Caetano, a Caixa Beneficente

Theatral fará celebrar um officio funebre em S. Francisco de Paula, e serão, em seu nome, depositadas duas corôas, uma sobre o tumulo e outra aos pés da estatua do grande actor fluminense.”

A essas manifestações compareceram apenas oito artistas dramaticos: as actrizes Felicidade e Jacintha de Freitas, e os actores Flavio, Mattos, Eugenio de Magalhães, Eugenio Oyanguren e Campos.

Emfim... peior seria se não comparecesse nenhum.A. A.

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O Theatro, 06/09/1900

A novidade theatral d’estes ultimos dias não foi uma opera, nem um drama, nem uma opereta, nem uma revista: foi o Sr. Banobelab. O cavalheiro hespanhol que responde a esse nome arabe, provavelmente um nome de guerra, é um artista no genero de Onofroff, o celebre adivinho faz umas cousas extraordinarias, que elle classifica de trabalhos de telepathia e suggestão, ou de experiencias de catalepsia, anesthesia, hyperesthesia, e não sei quantas cousas mais acabadas em ia.

As sortes apresentadas pelo Sr. Banobelab são todas muito divertidas e algumas causam assombro; se ha trucs e compadres, o espectador não dá por isso.

Quando digo “o espectador”, por mim fallo; note-se, porém,que sou o individuo mais facil de se deixar illudir pelos prestidigitadores. Apenas um não conseguio engazupar-me: foi o Dr. Roberto Senior,que, aliás,não engazupou ninguem, – o que muito me aborreceu, porque, n’esse genero de espectaculos, o prazer consiste precisamente em ficar de bocca aberta.

O unico prestidigitador de profissão que conheci pessoalmente foi o conde Patrizio de Castiglione. Um dia em que este excellente artista se propoz revelar-me o segredo da conhecida sorte das argolas, que achava e acho admiravel, pedi-lhe que o não fizesse, porque, satisfeita a minha curiosidade, aquella sorte perderia para mim todo o encanto, e nunca mais me diverteria.

Se me quizessem dizer os meios mysteriosos que o Sr. Banobelab emprega para conseguir tão surprehendentes effeitos, eu agradeceria o obsequio. É tão bom ter illusões mesmo n’um espectaculo de peloticas!...

Mas agora reparo que estou fóra do programma d’estes folhetins. Nem tudo quanto se vê no theatro é theatro, e n’esse caso estão os trabalhos de suggestão e telepathia do Sr. Banobelab, que deu apenas tres espectaculos no Santa Anna.

***

A Bohemia, de Puccini, é o maior successo que a companhia Sansone tem tido até hoje. Ha muito tempo não se via tanto enthusiasmo no Lyrico. No fim do 3º acto sahi do theatro e fui ao largo da Carioca comprar cigarros. Demorei-me na charutaria a conversar com um amigo. Voltei a passos lentos, e, ao chegar ao theatro, vi que durava ainda a ovação feita aos artistas e ao emprezario. Entrei na sala dos espectaculo justamente na occasião em que o Sansone apparecia em scena, trazido á força por um grupo de moços que tinham invadido o palco, depois de atirarem n’elle os chapéos.

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A interpretação dada pela prima-dona Carelli á parte da protagonista é de primeira ordem. A artista merecia logo depois do 1º acto a ovação que lhe fizeram depois do 3º; mais um accidente sem importancia, uma nota que falhou no fim do acto, esfriou completamente o publico...

O publico não teve razão, porque já no 1º acto a Carelli foi ideal, quer como cantora, quer como actriz. O trecho em que Mimi conta a sua vida a Rodolpho, foi primorosamente representado.

Dos dous ulimos actos não fallemos. Poucas vezes uma artista lyrica tem me agradado tão completamente.

E como phraseia! Comquanto não esteja familiarisado com a lingua italiana, não lhe perdi uma palavra.

A Berlendi que, desde a noite da sua estréa, com a Mignon, cahio nas boas graças do publico, tambem apanhou um grande sucesso no sympathico papel de Musette, e foi, digamol-o, applaudida com mais enthusiasmo que a sua illustre collega. Tratava-se, entretanto, de uma victoria facil, facillima, para qualquer cantora que tenha uma bonita cara e uma bonita voz. A prova ahi está em terem agradado todas as Musettes até hoje exhibidas no Rio de Janeiro, desde a Campagnole até a infeliz Cavallini, que ultimamente morreu no Pará.

O barytono Archangeli fez um bonito. O seu collega Carruson, que desempenhava o papel de Marcello, adoeceu durante o 1º acto e ficou impossibilitado de cantar o resto. Archangeli, que estava em casa muito a seu gosto e até dormindo, foi a toda pressa chamado para substituil-o. Saltou da cama, vestio-se, correu ao theatro, e desempenhou-se com uma felicidade inaudita.

Comquanto não esteja bem senhor do papel de Rodolpho, que – pelos modos – desempenhava pela primeira vez, e comquanto a sua voz se resinta de qualquer pertubação physica, De Marchi representou e cantou por tal fórma, que mereceu o quinhão alentado que lhe coube na turbulenta ovação.

A noite foi boa para todos, inclusive para o baixo Dado,que cantou com muito sentimento a melodia em que Colina se despede do seu Mathusalem antes de o levar ao prego, e é uma das situações mais felizes do libretto que Henri Murger forneceu a Illica e Giacosa.

Não sei mais que dizer de Mascheroni e da sua prodigiosa orchestra. Quando no palco não houvesse tantos e tão reaes attractivos, quando mesmo Mimi desafinasse e Rodolpho cantasse pelo nariz, bastava aquella maravilhosa batuta para fazer da esplendida comedia lyrica de Giacomo Puccini um espectaculo digno do publico mais exigente.

Parece-me que o emprezario Sansone tem a partida ganha.

***

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A revista Ali...á preta, que continúa a fazer as delicias dos espectadores do Apollo e a fortuna da companhia Taveira, tem agora algumas scenas novas e duas novas apotheoses, uma das quaes representa o Palacio da Electricidade na exposição de Paris.

A peça não precisava ainda d’esse supprimento de novidades, porque em 15 representações tem dado 15 enchentes, e o publico não parece disposto a abandonal-a tão cedo.

Tanto assim é, que a Lopiccolo não sabe ainda em que noite fará beneficio com a 1ª representação de Madame Boniface, ou antes, da Mulher do confeiteiro, pois é esse o titulo dado pelo traductor portuguez á interessante opereta de Lacome. Entretanto, já os bilhetes andam por empenhos, o que não admira, porque a Lopiccolo é uma das actrizes que mais gosa das sympathias dos fluminenses.

***

No Lucinda continuam as representações do Arara, que serão interrompidas depois de amanhã, mas só por essa noite (dizem os annuncios), para a reprise de Dalila, o velho drama de Feuillet, que sóbe á scena em beneficio de Lucinda Simões.

O publico terá com certeza, muita satisfação em applaudir a eminente actriz n’um dos seus papeis mais notaveis; melhor seria, entretanto, que Lucinda tivesse escolhido para a noite de sua festa uma peça nova, escolhida entre tantas que nos ultimos annos têm revolucionado o theatro europeu.

Não desejava – oh, não! – que ella recorresse aos auctores exoticos; mas na propria França não lhe faltaria em que lançar as suas vistas. Tanto assim é que lhe indicarei duas peças modernas, dignas ambas da sua attenção, e que com certeza conhece: L’invetée, de François de Curel, e Amoureuse, de Georges de Porto Riche, dous auctores com quem o nosso publico ainda não travou conhecimento.

Amoureuse é uma das obras-primas do theatro do seculo XIX,e L’invitée dir-se-ia uma comedia escripta expressamente para Lucinda Simões.

Emfim... antes a princeza Falconiére que qualquer velha caricata, indigna de uma artista tão bem dotada pela natureza, e que debalde pretenderá ser caricata ou velha.

***

No Recreio voltou á scena o Tim tim por tim tim,para fazer descançar o Rio Nú. Emquanto não chegam os scenarios da Virgem de Suzette, far-se-ha reprise, amanhã, da Capital Federal, com Pepa e Brandão nos papeis de Lola

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e Eusebio, que crearam com tanto applauso do publico e tanta satisfação do auctor da peça.

Segundo me informaram, a Capital Federal é posta em scena com todo o cuidado.

***

Parece que temos prefeito novo. Teremos... o theatro municipal? Veremos...A. A.

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O Theatro, 13/09/1900

O Dr. Coelho Rodrigues foi substituido pelo Dr. João Felippe no alto cargo de prefeito do Districto Federal, e esta substituição – para que negal-o? – me anima a esperar alguma cousa em favor do projectado Theatro Municipal.

Sei que o novo prefeito, com quem tive algumas vezes a honra de tratar, não é um d’esses homens tacanhos para os quaes a arte é um objecto de que só se deve cuidar quando não se tenha nenhuma outra preocupação no espirito.

O Dr. João Felippe não está, felizmente, escravisado a esse preconceito que tanto tem retardado a nossa civilisação intellectual, e, quando o estivesse, seria bastante justo para lembrar-se de que, n’esta questão do Theatro Municipal, que tanto papel me tem feito rabiscar em pura perda, já não se trata de proteger a arte, mas de cumprir a lei.

Com o dinheiro que tem sido arrecadado pela municipalidade para o fim exclusivo de crear e manter o theatro que tanta falta nos faz e cuja ausencia tanto nos envergonha, já se póde tentar alguma cousa, senão definitivamente, ao menos a titulo de experiencia. O que não é justo, o que brada aos céos é continuarmos, nós, auctores, artistas e publico, privados de um beneficio que nos foi concedido por lei, mediante a percepção de pesados impostos que foram pagos, e o são todas as noites.

O Dr. João Felippe, que é moço e tem o direito de ser ambicioso, não perca o ensejo que se lhe offerece, de ligar o seu nome a um facto que será inscripto em caracteres indeleveis nos annaes da nossa historia litteraria e artistica. A realisação da idéa do Theatro Municipal, que no presentel lhe valerá, talvez, a censura inconsciente dos rabugentos e retrogrados, transmittirá o seu nome ao futuro com mais facilidade que todos os triumphos alcançados na administração ou na politica, – porque, uma vez creado, o Theatro Municipal será eterno, – eterno porque é logico, porque é necessario, porque é benefico, porque responde a uma necessidade reclamada pelo nosso adiantamento e pela nossa educação.

Se alguma cousa me tem alentado n’esta horrivel delonga, n’esta espectativa sem fim, é lembrar-me que nunca houve no mundo instituição duradoura que nascesse de um momento para outro. As arvores que levam mais tempo a crescer são justamente as que dão melhores fructos e melhor sombra.

O Dr. João Felippe ha de ter muitas vezes occasião de ouvir este argumento sexquipedal: – “Para que um Theatro Municipal, se não temos auctores nem artistas?” – É o mesmo que se dissessem que não se deve fazer uma chapellaria onde não ha chapéos, ou uma sapataria onde não ha sapatos.

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Trata-se, estou farto de o repetir, não de approveitar o que temos, não de readquirir o que já tivemos, mas de estabelecer e crear o que nunca houve e deve haver no Brasil, – o theatro litterario, genuinamente brasileiro.

As tentativas mais ou menos sporadicas havidas em diversas épocas, as 30 ou 40 peças theatraes, dignas d’essa classificação, que consitituem toda a nossa litteratura dramatica, não fundaram o theatro brasileiro, que ainda não existe; serviram apenas – e não foi pouco – para mostrar que não serão improficuos os esforços de quem tomar nos hombros essa empreza collossal e patriotica de civilisação e de arte.

Que não nos faltam aptidões, ahi estão para proval-o, jovens prosadores e poetas, que escrevem hoje a lingua portugueza com um esmero e uma elegancia que raramente se encontram nos nossos escriptores das gerações passadas.

Ide aos teatrinhos particulares, ao Club da Gavea, ao Elite-Club, ao do Riachuelo, e outros: em cada um d’elles encontrareis um viveiro de artistas.

E em que paiz, onde não houvesse theatro, appareceram artistas como o Brasil tem produzido alguns? Onde houve o phenomeno da brotação espontanea de um João Caetano, que só foi apreciado retrospectivamente, isto é, quando aqui vieram ter os grandes luminares das scenas européas? Que terra se honrou de artistas caracteristicamente nacionaes como Peregrino, Xisto Bahia, Vasques, Colás e tantos outros cuja ennumeração me tomaria grande espaço? Indaguem se nos outros paizes americanos, que são, esses sim, refractarios ao theatro nacional, houve Ismenias e Manuelas, ou um Joaquim Augusto, um Guilherme de Aguiar, um Pimentel!

Acreditaes que se tivesse perdido a semente que deu tão bellos fructos? Acreditaes que o Theatro Municipal seja obrigado a fechar as portas, por não haver quem escreva nem quem represente? É uma injustiça que fazeis ao nosso temperamento artistico. Nós merecemos um pouco mais de confiança.

***

E aqui fica o meu folhetim de hojem, porque, doente, na forma do louvavel costume, não assisti á representação da Dalila. Tinha assistido, é verdade, á reprise da Capital Federal, mas não me compete, como auctor da peça, dizer nada, embora tenha uma vontade douda de agradecer ainda uma vez á Pepa e ao Brandão o brilhantismo com que representaram os dous principaes papeis, e de dar os parabéns á actriz Maria Lina pelo seu travesti do 3º acto.

De resto, a peça está convenientemente representada por todos os artistas, e isto digo para que não fique algum descontente com aquellas tres excepções.

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Amanhã, no Apollo, 1ª representação da Mulher do Confeteiro (Madame Boniface), opereta em 3 actos, de E. Depré e C. Clairville, musica de Lacome, em beneficio da Lopiccolo.

Enchente real.A. A.

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O Theatro, 20/09/1900

É possivel que um ou outro leitor dos meus folhetins procure no de hoje algumas linhas a proposito da Tosca. Tratando-se de uma opera nova, e de Puccini, compositor muito considerado, e com justiça, pelo publico fluminense, seria natural que eu, tendo me occupado de outros espectaculos da companhia Sansone, transmittisse aos leitores as impressões recebidas nessa representação por tantos titulos interessante.

Entranto, guardarei sobre a Tosca o mais discreto silencio, e fal-o-hei pelo motivo mais plausivel: não a ouvi.

Logo que foi annunciada a estréa da companhia lyrica, recebi do Sr. Sansone uma amavel cartinha, dizendo que se achavam á minha disposição os bilhetes de que eu me quizesse utilisar para assistir a qualquer dos seus espectaculos; podendo reclamal-os, mediante a simples apresentação do meu cartão de visita, ao Sr. Castellões, na casa Arthur Napoleão.

Quando recebi essa carta, se bem que tivesse o Sr. Sansone em conta de generoso, pensei commigo que não devia aos meus bonitos olhos o delicado offerecimento, e attribui tão boa fortuna á minha condição de jornalista, e de jornalista que se preocupa com o movimento theatral.

– O que o emprezario deseja, disse aos meus botões, é que eu falle das suas operas e dos seus artistas nos folhetins da Noticia.

E, comquanto não estivesse nos meus habitos metter-me em funduras de critica musical, julguei-me obrigado, por um dever de delicadeza,a acceitar o convite, comparecendo aos espectaculos, e transmittindo aos meus leitores as impressões que elles me produzissem.

Fui, pois, cinco vezes á casa Arthur Napoleão munir-me de bilhetes para assistir á apresentação das seguintes operas: Manon Lescaut, Mignon, Carmen, Mephistofeles e Bohemia. Devo dizer que o Sr. Castellões sempre me servio, propmto e risonho.

As minhas impressões, que não poderiam ser melhores, não só as escrevi n’este rodapé hospitaleiro, como na primeira página d’O Paiz. De Mascheroni fallei com tanto e tão sincero enthusiasmo, que o grande artista me dirigio uma gentilissima carta de agradecimento, que cá está guardada entre meus autographos mais preciosos. Talvez os leitores se lembrem de que o Sr. Sansone foi defendido por mim – só por mim – contra as vaias das galerias, incorrendo eu no risco digamol-o, de voltal-as contra a minha pessoa.

Pois bem: no dia da 1ª representação da Tosca, lá fui, pela sexta vez, ao Sr. Castellões e passei pelo vexame de ouvir esta phrase terrivel: – “Estão suspensas as entradas de favor”.

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Ora, ahi têm os leitores por que não lhes digo nada, absolutamente nada da Tosca, nem cousa alguma lhes direi dos espectaculos que de ora em diante realisar a companhia Sansone.

O facto nenhuma importancia tem; nem eu nem o emprezario perdemos nada com isso; se o ponho aqui tão miudamente narrado é por dous motivos: 1º, para explicar o meu silencio aos leitores; 2º, para que o Sr. Sansone saiba que eu estava illudido ácerca das intenções que o levaram a offerecer-me bilhetes gratuitos para os seus espectaculos. Se eu soubesse que a minha entrada no theatro Lyrico era uma entrada de favor, não me teria utilisado dos bilhetes, e creia o Sr. Sansone que, apezar de me achar tão baldo ao naipe como qualquer accionista do Banco da Republica, teria muito prazer em ser cobrado da importancia dos bilhetes com que fui favorecido sem os haver solicitado. Estou ás suas ordens.

***

Quantos annos lá vão que ouvimos a Madame Boniface no velho S. Pedro! Ainda ha quem se lembre da Zelo-Duran e do Mezieres, e da graça com que cantavam e dansavam a bourrée do 3º acto?

Ha dias, a companhia Taveira me recordou esse bom tempo, representando a Mulher do confeiteiro, nome com que a opereta parisiense de Depré e Clairville foi chrismada em Lisboa por Gervasio Lobato e Acacio Antunos, que, traduzindo-a, não lhe tiraram a graça.

Os artistas do Apollo nada fizeram de extraordinario; mas nem elles, nem a orchestra, nem os córos trataram mal a partitura de Lacome d’Estaleux, um compositor que é sério sem ser enfadonho, o que pe difficil encontrar no genero opereta.

Farei um pequeno reparo ao prestimoso actor Gomes pela sua caracterização. Porque arranjou uma cara tão feia? Bonifacio é um simplório, mas é um bonito rapaz, – sem o que, não seria amado por Friquette.

***

Ante-hontem fez beneficio, no Lucinda, o estimado actor Chaby, que se exhibio pela ultima vez, com muitos applausos, no papel de Cauvelin, da Consciencia dos filhos, que é, talvez o seu melhor papel, – e para hoje está annunciado o beneficio de Georgina Pinto com a reprise do drama Os dous garotos, que deve agradar mais que ha dous annos, por ser a traducção outra, e necessariamente superior á primeira.

Faço votos para que a distincta actriz portuguesa apanhe uma enchente monumental.

***

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Cessaram de novo as espectaculos do Recreio, onde não me parece que haja uma direcção ideal.

As representações da Capital Federal foram suspensas porque seu Eusebio brigou com Lola, e sahio pela rua do Espirito Santo abaixo, vendendo azeite ás canadas.

Está de novo annunciada a proxima vinda dos scenarios da Viagem de Susette, que já parece a viagem eterna.

***

Para a companhia de zarzuela, que está no Sant’Anna, não me mandaram as entradas de favor. Antes assim.

***

Já nas columnas d’O Paiz saudei, como devia, A Noticia, por ter completado seu 6º anniversario. Renovo com muito prazer os meus comprimentos que, por serem os mais desataviados, não são os menos sinceros.

A. A.

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O Theatro, 27/09/1900

A empreza Sansone, a quem a sociedade fluminense deve o ter uma boa companhia de opera, passou por uma contrariedade que naturalmente lhe servirá de lição: esteve a ponto de interromper os seus espectaculos, e assim teria acontecido sem a intervenção e os bons officios de alguns amigos.

Attribuio-se o facto, um pouco á ligeira, á crise dos bancos; eu tenho para mim que foi elle devido unicamente á inobservancia do velho rifão: Quem não póde com o tempo não inventa modas.

Está provado e mais que provado que o Rio de Janeiro não se deve metter em funduras de companhias lyricas de primeira ordem: ha muito tempo que o digo e não me fartarei de o repetir. A unica classe que poderia, ainda assim com algum sacrificio, aguentar o repuxo, – o commercio –, é justamente a que não vai ao Lyrico.

Convençamo-nos de que somos pobres, e quem é pobre não tem luxo, como disse o gatuno que substituio por um chapéo velho o resplandor de prata de Santo Antonio dos Pobres.

Já tivemos luxo, é verdade, mas no tempo em que havia o escravo para pagal-o; emquanto não restabelecermos a nossa vida economica, contentemo-nos de uma companhia que se possa ouvir, mas não nos custe os olhos da cara, – a nós e ao emprezario.

Já está mathematicamente demonstrado que o publico do Lyrico não quer mais que uma representação de cada opera... quando a opera é cara; n’estas circumstancias é loucura insistir.

O Sr. Sansone, que já deve conhecer perfeitamente o terreno em que pisa, e que dispõe de muitas relações e sympathias, contracte para o anno uma companhia que lhe saia por dous terços menos que esta, venda os bilhetes por preços ao alcance de todas as bolsas, e desde já lhe afianço que me agradecerá o conselho.

A divisa dos fluminenses, no tocante a theatro lyrico, deve ser esta: Quand on a pas ce que l’on aime, no aime ce que l’on a, ou, como dizemos nós, mais prosaicamente: Quem não tem cão, caça com gato.

Ha muito tempo que estamos no mato sem cachorro.

***

A companhia de zarzuela suspendeu as suas representações justamente no dia em que a empreza me obsequiou com um convite para assistir á do Rei que rabio.

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Quem rabeou não foi o rei, mas a empreza, pois, segundo me informaram, o incidente proveio, também lá, de exigencias por parte de alguns artistas.

Desta vez não se invocou a crise dos bancos, nem houve intervenção de amigos; a empreza declarou que dentro em poucos dias recomeçarão os seus trabalhos, não no Sant’Anna, mas no Lucinda.

Queira Deus que assim aconteça, pois pelo que li e ouvi, é a companhia uma das mais regulares que no seu genero aqui têm vindo.

***

O exemplo dado simultaneamente pelos artistas das companhias Sansone e Aranaz, prova, mais uma vez, que não ha gente de theatro mais resignada que a nossa. Os actores do Rio de Janeiro gritam, esbravejam, deitam abaixo este mundo e o outro, mas deixam-se levar por meia duzia de labias de qualquer emprezario que puxe pelo registro do tremoto no orgão da sensibilidade.

E é assim que empresas insolvaveis se sustentam mezes e annos. As quinzenas succedem-se, os pagamentos só se fazem por pequeninas parcellas que, reunidas, representam quando muito a metade do salario integral, e os artistas vivem da esperança de uma peça, que será o deus ex machina da situação.

Se por accaso o dinheiro apparece, a empreza trata, em primeiro logar, de satisfazer os credores de fóra, que são os mais exigentes; os de casa ficam a chuchar no dedo, e a situação raramente se modifica.

Como seria mal visto o actor do Rio de Janeiro que dissesse ao seu emprezario, como disseram ao Sr. Sansone: – Se não me paga adiantadamente, não represento!

***

A revista Ali...á preta faz-me lembrar o meu pince-nez, que foi muitas vezes completamente transformado, ficando sempre o mesmo. Quebrou-se primeiramente um vidro, depois um aro, depois o outro vidro, depois o outro aro, e finalmente o eixo, e cada uma das peças ia sendo substituida logo que se initulisava. E tantas vezes se deu isto, que o meu pince-nez representa uma duzia d’elles pelo menos.

Metade da revista do Apollo já desappareceu e foi substituida; com mais alguns quadros novo, ficará outra peça, e não deixará de ser o Ali...á preta. Tal qual o meu pince-nez.

Felizmente ao publico têm agradado taes substituições. Pelo menos o theatro enche-se todas as noites, e não faltam applausos á revista.

***

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Tambem suspendeu os espectaculos a companhia Lucinda Simões e Christiano de Souza; mas suspendeu-os para continual-os em S. Paulo, onde a estas horas já se acha.

A companhia fechou com os Dous garotos a série das suas representações no Rio de Janeiro. A peça, traduzida ha tempos por mim, para a mesma companhia, appareceu traduzida agora pelo meu collega Orlando Teixeira, e este facto, que nenhuma importancia tem, deu logar a que eu recebesse tantas cartas e foi tão commentado no mundo theatral, que não me eximiria de o explicar, se não se tratasse de um incidente intimo, com que o publico nada tem que ver.

Não me doendo á consciencia haver feito uma ruim traducção, e tendo sido o meu trabalho bem aceito pelo publico e pela imprensa, confesso que estranhei o anuncio. Estranhei-o apenas; se não fosse brasileiro, e vivesse nesta capital, offender-me-ia, porque esse facto, n’outra qualquer parte que não fosse o Rio de Janeiro, representaria uma desconsideração, um attentado contra a reputação litteraria de um escritor que vive honestamente do seu trabalho, aqui não reprezenta coisa nenhuma, porque aqui nada vale o nome que nas lettras se adquire á custa dos maiores esforços e sacrificios.

O annuncio, portanto, produziu em mim o mesmo effeito que produziria o safanão involuntario de um desse carregadores abrutalhados, que seguem, nas ruas, impertubavelmente, o seu caminho, sem attentar nos demais transeuntes.

***

No proximo domingo faz beneficio com a comedia de Camillo Castelo Branco, o Assassino de Macario, o actor Cezar de Lima, que é digno da protecção do publico.

A. A.

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O Theatro, 04/10/1900

O theatro chegou no Rio de Janeiro á miséria extrema, e foi definitivamente substituido pelo café cantante. Já não póde haver illusões a esse respeito.

O Alcazar-Parque e o Guarda-Velha enchem-se todas as noites, e não haveria espectaculo dramatico, se o tivessemos, que desviasse o publico d’aquelle genero de divertimento.

Realisou-se o que tantas vezes previ: acabou o theatro na primeira capital da América do Sul. Os artistas que se resignem a tratar de outra cousa para não morrerem á fome. O theatro deixou de ser um profissão.

É pena que deixassem chegar as cousas a esse estado, quando tão facil fôra remedial-as. Agora todo o meu desejo é que desappareça dos nossos theatros o ultimo vestigio de arte: só assim talvez se faça a reacção.

Depois que partio para S. Paulo a companhia Lucinda Simões e Christiano de Souza, não tivemos ainda um espectaculo de comedia, não tivemos ainda uma peça em que a litteratura entrasse mesmo como Pilatos no Credo.

A companhia Taveira, á vista do successo do Ali...á preta, vai pôr em scena outra revista portugueza: o Ramerrão, e a companhia Pepa Ruiz tem em ultimos ensaios, no Recreio, a Viagem de Suzette, peça de grande espectaculo, que se recommenda principalmente pelo apparato.

E disse: tão cedo não teremos outro espectaculo em lingua portugueza.O que me dóe, porque representa a mais clamorosa das injustiças, é ver o

publico trocar os nossos artistas por outros que são, quando muito, da mesma força que elles. Se houvesse igualdade de condições, eu nada teria que dizer.

Uma noite d’estas entrei no Sant’Anna e assisti algumas scnea não sei de que zarzuela chic. Um horror! D’aquillo tambem nós temos, e até melhor!

***

O proprietario do Hotel Nacional, á rua do Lavradio, construio ao lado do seu estabelecimento um theatrinho que denominou High-Life, embora sem grandes esperanças de que algum dia o high-life lá ponnha os pés.

O theatro é muito pequenino, mas bem arranjado: quando lá fui, tive a impressão de estar n’uma cidadesinha do interior.

Que fui lá fazer? Ouvir um novo imitador do Fregoli, o jovem Raphael Arcos Filho, que ha seis ou sete annos era um petit prodige, lembram-se?

Devo repetir o que muitas vezes disse: abomino o Fregoli, – e o facto de elle haver ganhado duzentos contos de réis no Rio de Janeiro e um milhão de francos em Paris, segundo é voz corrente, não modifica absolutamente o meu

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juizo ácerca do seu merecimento artistico. Quem preze devéras o theatro, não póde aturar aquillo.

E se abomino o Fregoli, que direi dos seus imitadores?...Portanto, fui ao High-Life prevenidissimo, e, talvez por isso mesmo,

me diverti. Na minha opinião Arcos Filho leva as lampas ao Fregoli; é mais sympathico, mais expedito e mais actor, isto é, representa, cousa que o outro não fazia.

Lembram-se do insupportavel falsete de Fregoli, quando se vestia de mulher? Ainda não ouvi nada que mais me irritasse os nervos. Arcos Filho, quando muda de sexo, não recorre ao falsete: modula a voz com muita habilidade.

O publico fez-lhe uma ovação estrondosa.Sinto que um moço tão bem dotado para o palco, não abrace a verdadeira

arte dramatica, e esteja a estragar-se como transformista.Do mais que vi no High-Life, devo citar o barytono Raphael Arcos, pae, que

se parece physicamente com Coquelin, mas grita que é um Deus nos acuda, e a cantora Claudina Montenegro, que me pareceu uma boa actriz, mas muito grande, em tamanho, para um palco de tão acanhadas dimensões.

Como no High-Life se representam zarzuelas como La nina Pancha, El hombre es debil, Los zangotinos, etc., incluirei essa casa de divertimentos entre os nosso theatros, quando no meu primeiro folhetim de janeiro proximo publicar a estatistica dos espectaculos realisados durante o corrente anno.

***

É para lamentar que circumstancias imprevistas obstruam a companhia Sansone de executar o drama lyrico Saldunes, libretto de Coelho Netto, musica de Leopoldo Miguez – privando-nos, assim, de uma bella noite, que ficaria assignalada nos annaes da arte brasileira.

Parece que a fatalidade nos persegue em tudo quanto diz respeito á nossa civilisação intellectual. Seja em desconto de nossos peccados.

Em compensação vamos ouvir Jupyra a opera que Francisco Braga trouxe comsigo quando ultimamente voltou da Europa, onde estudou musica a valer. Todos sabem que tanto em França como na Allemanha esse nosso patricio deu sempre a melhor conta de si, adquirindo o que lhe faltava para tornar-se, como se tornou, um compositor de primeira ordem.

Estou certo de que a audição da sua Jupyra vai ser um triumpho incontestavel e brilhante.

A. A.

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O Theatro, 11/10/1900

Acabou a temporada lyrica de 1900 e, segundo um balanço de receita e despeza publicado hontem pelo Sr. Sansone, o deficit da empreza eleva-se a quantia superior a 80 contos de réis.

Se bem que não me pareça desarrasoado attribuir em grande parte esse prejuizo a circumstancias fortuitas, como sejam a exposição de Paris, que privou o Lyrico de muitos dos seus frequentadores habituaes, e a crise bancaria, sobrevinda no peior momento para os interesses da empreza, tenho que aquellas contas confirmam eloquentemente o que avancei n’um dos meus ultimos folhetins, applicando ao nosso theatro lyrico o famoso proverbio: quem não póde com o tempo não inventa modas, e aconselhando o Sr. Sansone, que para o futuro, nos traga as companhias modestas, que mais se compadeçam com os recursos pecuniários do nosso dilettantismo. Este é tão pobre que deve renunciar ao desejo de ouvir cantores que custam os olhos da cara e contentar-se de outros, que ainda não sejam celebridades ou já deixaram de o ser.

O tenor De Marchi e a primadona Carelli receberam 72 contos pelos espectaculos em que tomaram parte, e esses espectaculos renderam 87 contos, descontada a diaria, ficando, por conseguinte, apenas 15 contos para pagar o resto do pessoal. Mais convincente do que estas cifras só o revólver do pobre Mancinelli!

Como é triste ver que a 3ª representação da Tosca deu de lucro liquido 2$! Parece que se trata do Vinte e nove, representado no Eden Lavradio em quarta-feira de trevas e com chuva!

Se o Sr. Sansone continuar a satisfazer veleidades de emprezario de companhias lyricas de primeira ordem, se não se deixar tentar por alguma cousa no gosto de Alcazar Parque ou co café-concerto da Guaeda-Velha, – vá com o que lhe digo: reflicta na sabedoria d’aquelle dictado, e d’este outro, não menos verdadeiro: quanto maior é a nao, maior é a tormenta.

***

Entretanto, a temporada lytica fechou com chave de outro, – duas representações de Jupyra, opera em dous actos, libretto do meu distincto collega Escragnolle Doria, musica de Francisco Braga.

Não assisti a nenhuma das duas representaçõs, em primeiro logar porque não fui convidado e ha mais de um quarto de seculo perdi o costume de comprar bilhetes de theatro, e em segundo logar, porque o máo tempo não me deixaria sahir de casa mesmo quando eu quizesse puxae os cordeis á bolsa,

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o que confesso, seria muito difficil, mesmo quando se tratasse de ouvir uma opera escripta por Jesus Christo.

Entretanto, não estou inhibido de felicitar o compositor, cujo triumpho é incontestavel, a julgar pelo que tenho lido e ouvido, e em que peze a certos desencontros de opiniões.

Isso mesmo já eu esperava; sempre tive muita fe no auctor de Jupyra, cujo talento fui um dos primeiros a applaudir e animar.

Todavia, quantos dissabores valeram a Francisco Braga essas duas representações do seu trabalho! Arrastaram-no pela rua da amargura, puzeram á prova a sua coragem e a sua resignação; quero crer que haja espinhos dissimulados entre as folhas de louro da sua corôa de gloria...

Aquella scena de ensaio geral, tão bem contada n’esta mesma folha – o publico á espera do maestro para começar o ensaio, e o maestro em conferencia com o emprezario, que lhe dizia: – Meu amigo, se quer que a sua opera seja representada, vá buscar 4 contos de réis, e já! – oh! aquella scena me revoltou até o desespero! É admiravel que um artista conserve ainda alguma cousa do seu talento e do seu enthusiasmo, quando consegue sahir de um atoleiro d’esses!

– Tu és um grande artista, educado n’um asylo pela piedade official: és um filho de ti mesmo e das tuas obras; um dia, sobresaltados pelo teu talento, mandaram-te estudar musica na Europa, e emquanto lá estiveste não fizeste outra cousa senão estudar musica: de vez em quando nos mandavas uma amostra dos teus progressos, e o teu nome era repetido de bocca em bocca, sempre com louvor; durante algum tempo te suspenderam a mesada, e tu continuaste a estudar musica, vivendo, graças ao teu illustre mestre e amigo Massenet, de instrumentar dobrados para as bandas marciaes: ao cabo de dez annos voltas á tua terra trazendo na mala uma opera, o fructo amadurecido do teu estudo, o resultado glorioso das tuas vigilias, a satisfação dada á tua patria, a prova real de que o teu talento correspondeu a confiança dos teus compatriotas, – mas, se queres que a tua opera seja representada, se fazes empenho em que te ouçam e te julguem, vai buscar quatro contos de réis! Bem sei que não tens quatro tostões, mas vai de porta em porta, humilha-te, mendinga, chora – e, como nasceste nesta boa terra, não faltará um pouco de sentimentalismo e um pouco de patriotismo que ponham ás tuas ordens aquella quantia! Póde ser até que te dêem mais alguma cousa; póde ser que arranjes quatro contos e quinhentos! Vai!...

Vai, digo eu tambem, meu caro Francisco Braga, mas vai para a Allemanha, para a França, para a Italia, para qualquer terra que não seja a tua! Não fiques aqui! Hoje pedem-te 4 contos de réis para terem a honra de apresentar ao

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publico a tua primeira opera; amanhã, quando escrevas outra, pedir-te-hão a tua dignidade de artista, a tua inspiração, o teu saber, os teus sonhos, o teu sangue, a tua vida, a propria essencia da tua calma!

Vai! expatria-te, como Carlos Gomes, mas não faças o que elle fez, não confies demasiado no teu genio, – estuda, estuda mais, estuda sempre, e, quando voltares com o teu Guarany consagrado pelos applausos do velho mundo, recommendado pela glória, não te exigirão, certamente, 4 contos de réis para cantar a tua opera, nem terás que lutar contra a má vontade de ninguem!

Mira-te no exemplo de Leopoldo Miguez, e lembra-te que o maior compositor brasileiro, sacrificado n’um cargo que entende menos com a arte que com a burocracia, não conseguio fazer executar seu bello Saldunes, e ninguem, absolutamente ninguem cogita em saber porque isso foi. N’outra qualquer parte do mundo, o publico, necessariamente interessado pelo facto, indagaria o motivo porque o privaram de ouvir a obra do seu artista: no Rio de Janeiro Saldunes foi annunciado e desannunciado como o seria qualquer opereta ou revista.

Vai!...

***

O Apollo e o Recreio tem cada qual o seu successo, aquelle com o Ramerrão, revista portugueza, e este com a Viagem de Suzette. Não assisti a nenhuma das duas representações, mas a uma e outra tenho ouvido as melhores referencias, – principalmente á Viagem.

Ao que parece, o publico não perdeu por esperar: a Pepa, que foi sempre mãos-rotas, fez verdadeiras loucuras na montagem da peça; entendeu que a enscenação do Rio de Janeiro não devia ser inferior á de Paris, e não é. Louvo-lhe a coragem.

Conheço de leitura a Viagem de Suzette: é uma peça com todos os matadores e participa de varios generos predilectos das nossas platéas: é comedia, opereta, revista de costumes, magica e panorama.

É voz geral que está muito bem representada, e que todos os artistas sabem, os papeis na ponta da lingia, o que é extraordinario.

Isso contribue muito para o grande successo da Viagem de Suzette; fosse máu o desempenho dos papeis, e nada lhe valeriam os scenarios, os vestuarios, os bailados, as marchas, a musica, a famosa pantomima do 3º acto e até o camello – sim, porque ha um camello entre os figurantes. Creio mesmo ser esta a primeira vez que pisa no palco fluminense o illustre figurante.

***

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A proposito da scenographia da Viagem de Suzette, o meu collega da Gazeta de Noticias teve uma phrase que não foi feliz. “Os scenarios vieram da Europa, disse elle, e para vergonha nossa é preciso confessar que não se comparam aos melhores dos nossos mais afamados scenographos.” Acredito que essas palavras, escriptas, creio, sem intenção de offender, tenham magoado profundamente o nosso Coliva e o nosso Carrancini. Esses dous artistas não só não nos envergonham, como não envergonhariam a propria Italia, onde nasceram.

Carrancini é a fantasia que se faz scenographo, e esta é a opinião de muita gente boa. Desde o Genio do fogo até a Viuva Clark, o seu talento se ha manifestado tanto e tantas vezes, e de tão varias formas, e tão brilhantemente, que o tenho, com toda a sinceridade, na conta de um dos artistas mais completos no seu genero.

Coliva é um scenographo cujo nome é conhecido na Italia, e nesta capital tem dado sobejas provas da sua alta capacidade artistica. No desenho, na perspectiva, na côr, é de uma correcção insigne, na pintura architectonica é um mestre, e nos pannejamentos das grandes cortinas de seda é simplesmente inexcedivel.

Direi mais: o scenographo fluminense Frederico de Barros, que tem contra si ser brasileiro, e preto demais a mais, tambem não nos envergonha; não ha outro como elle, quando quer, para reproduzir, no theatro, as nossas paisagens.

Não assisti ainda á representação da Viagem de Suzette, mas quando estive na Europa fartei-me de ver scenarios, – e tenho certeza de que o collega não hesitaria em attenuar a sua phrase, se reflectir na injustiça que praticou. A nossa prata de casa não é assim tão má.

A. A.

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O Theatro, 18/10/1900

Aos auctores e traductores brasileiros, que se queixam das desconsiderações e maldades de que são victimas por parte de certos emprezarios, recommendo o artigo La vie à Paris, publicado por Jean-Bernard na Independencia Belga (edição do ultramar) de 16 do mez passado.

Não resisto ao desejo de traduzir e transcrever n’estas columnas o trecho principal d’esse artigo, que é realmente consolador, e ao mesmo tempo nos faz ver a industria theatral parisiense por um prisma inteiramente novo.

Não conheço Jean-Bernard, não sei qual seja a sua auctoridade na materia sobre a qual escreve cousas tão espantosas, mas o facto de ser collaborador effectivo d’aquella folha, um das mais conceituadas na Europa, falla bem alto em favor da sua respeitabilidade

Leiamol-o atravez da minha pallida versão:“Tornou-se o theatro, hoje, uma questão de mero acaso, quando não é uma

simples especulação commercial.Supponhamos que tenhaes escripto uma peça; naturalmente o vosso desejo

é vel-a representada, e para isso fareis todas as diligencias para mostral-a a um emprezario. Pois bem: não espereis que algum d’elles vos abra a sua porta; só sereis recebido se tiverdes o cuidado de fazer com que vos preceda a reputação de um homem que póde gastar 50 ou 60 mil francos para pôr em scena o seu trabalho.

Com raras excepções é assim que se procede,tanto nos maiores theatros como nos mais modestos.

Ha dous annos divulguei pela imprensa o seguinte facto e ninguem me desmentio: para conseguir que Cyrano de Begerac fosse recebido, ensaiado e representado, o Sr. Rostand tomou a si todas as despezas da scenographia e do guarda-roupa, as quaes importaram em 60.000 francos, approximadamente. Cyrano é um dos grandes successos do theatro contemporaneo, mas não fosse rico o auctor, e este perderia a paciencia tal qual os outros.”

Interrompo a transcripção para observar que Edmond Rostand era um auctor conhecido mesmo antes da representação de Cyrano. O seu nome estava consagrado pelos Romanescos, um grande successo da Comédie Française, e pela Samaritana, que muita gente colloca acima de Cyrano e de L’aiglon.Não se tratava, pois, de nenhum desconhecido.

Continuemos:“Trago à bulha o Sr. Rostand porque, em summa,o exito extraordinario

da sua peça compensa todas as contrariedades que elle soffreu para vel-a em scena. Eu poderia citar, se quisesse,dez casos identicos!

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Além do auctor que paga, temos o auctor principal accionista do theatro onde as suas peças são representadas, e onde não mettem nem mesmo a ponta do nariz os seus proprios amigos.

Não ha hoje emprezarios que recebam os auctores, e muito menos que os leiam. Quem duvidar que o experimente. É facil.

Em Paris só ha dous theatros onde um dramaturgo tem certa probabilidade de ser lido, discutido e representado: o Theatro Francez e o Odéon. Nos demais, c’est la camaraderie, la banque ou le banquistes qui gouvernent. (*)

Os actores não são recebidos quando se apresentam, os manuscriptos não são lidos quando elles os deixam ficar; só se acceitam as peças quando recommendadas por nomes celebres, pelas relações pessoaes ou pelas garantias ficanceiras.

Ultimamente os Srs. emprezarios formaram um syndicato. Elles que nos desmintam, se são capazes:com facillidade apontaremos, não dez, mas cem exemplos e vereis ahi um dos flagelos que assolam o theatro contemporaneo e o aniquilam.”

Consolemo-nos, porque não consta que no Rio de Janeiro emprezario algum pedisse ao auctor da peça que “se explicasse” com scenarios e vestimentas.

Em Paris a cousa, pelos modos, vem de trás; historia do dramaturgo abonado, que paga para ver o seu trabalho em scena, me faz lembrar um bom dito de Frederick Lemaître.

***

Um dia estava o grande actor a sós com o seu emprezario, no escriptorio do theatro, quando vio entrar um mancebo de physionomia intelligente, muito bem trajado e com todas as apparencias de pessoa bem educada e distincta.

– Teve a bondade de ler a minha peça? perguntou timidamente o recemchegado.

– Li, respondeu o emprezario – li e gostei, gostei muito, muitissimo! Quero pol-a immediatamente em ensaios...

– Ah! exclamou o dramaturgo radiante de alegria e encostando-se a um movel para não cahir.

– Mas... sob uma pequena clausula, continuou o emprezario; a peça vai obrigar-me a grandes gastos de enscenação...

– Adivinho. Não lhe dê isso cuidado. Tenho recursos. Pago os scenarios.Quem diz enscenação, diz tambem vertuarios e accessorios...– Não seja essa a duvida: pago tudo!

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– Muito bem. Mas saiba, meu caro auctor, que não tenho na companhia uma dama para o papel principal. Tenho apenas Fulana e Beltrana, que não servem.

– Isso é o diabo!– É o diabo, é; mas Sicrana é uma bella actriz, – conhece?– Conheço.– Sicrana está actualmente sem theatro, e o papel parece ter sido escripto

para ella...– Pois contracte-a!– Isso é bom de dizer! Posso là augmentar a minha folha de pessoal!– N’esse caso,contractal-a-hei por minha conta.– É o que lhe queria propor. Ainda bem! Gosto de conversar com que me

entenda!– E mais nada?– Ainda outra pequena clausula. O senhor é rico... não escreve para ganhar

a vida... mas por amor á arte; portanto, dispensará, espero, quaesquer direitos de auctor...

– Farei todas as concessões que o senhor exigir, comtanto que veja a minha peça representada o mais breve possivel.

– Bom; uma vez que o meu amigo paga os scenarios, os vestuarios e os accessorios; uma vez que contracta á sua custa a actriz Sicrana; uma vez que abre mão dos seus direitos de auctor, póde vir amanhã ler a peça e fazer a distribuição dos papeis.

O pobre moço apertou a mão ao emprezario, agradeceu-lhe com effusão, e sahio contentissimo, dizendo:

– Vou ter com Sicrana!Frederick Lemaître que, de parte, sentado n’um canapé, ouvia calado e

boquiaberto o interessante dialogo, mal o dramaturgo sahiu, voltou-se para o emprezario e disse-le:

– O senhor sempre é muito destrahido!– Porque?– Deixou-lhe ficar o relogio...

***

Os nossos theatros, isto é, o Apollo e o Recreio, unicos que se conservam abertos, não nos deram nenhuma novidade depois do meu ultimo folhetim; n’aquelle continuam as representações do applaudido Ramerrão e n’este as da Viagem de Suzette, uma peça feliz, muito feliz, como têm sido n’esta capital

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muitas outras peças do Chivot e Duru, a Mascotte, Filha do tambor-mor, Surcouff, etc.

Está annunciada para amanhã a festa da Pepa, com a 13ª representação da maravilhosa Viagem, e eu faço votos para que a enchente seja tal, que ninguem se possa mexer.

A. A.

(*) Deixo essas linhas em francez para lhes não tirar a expressão nem o sabor e malicia.

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O Theatro, 25/10/1900

Está publicado, no Jornal do Commercio de 21 do corrente, o balancete da despeza e receita da prefeitura do Districto Federal durante o mez passado.

Esta rubrica ironica, Theatro Municipal, figura na receita com 14:148$500 e na despeza com 1:400$000. Sim, porque, por mais extraordinario que isto pareça, a municipalidade despende mensalmente 1:400$ com o encantado, o hypothetico, o impalpavel, o fantasmagorico Theatro Municipal!

De modo que todos os esforços de Julio do Carmo, de Leite Borges e outros que sonharam a satisfação e a gloria de dotar a capital dos Estados Unidos do Brasil com um theatro onde se trabalhasse em prol da litteratura e da arte, redundam simplesmente em beneficio dos cavalheiros (boas pessoas que não têm absolutamente culpa do que se passa) incumbidos de cobrar todas as noites, á bocca do cofre, a importancia de pesados impostos que só seriam justificados se tivessem a applicação indicada pelas disposições que os crearam.

Uma vez que nem se faz o Theatro Municipal, nem se subvenciona uma empreza que se proponha a exhibir decentemente certo numero de peças brasileiras, é tempo de desaggravar os emprezarios d’aquellas contribuições absurdas, ou declarar, de uma vez por todas, que ellas não serão applicadas á creação do Theatro Municipal, mas a outros serviços.

***

Bem sei que estou a malhar em ferro frio; bem sei que posso repetir a celebre quadrinha popular:

N’este campo sollitario

Onde a desgraça me tem,

Chamo: ninguem me responde

Olho: não vejo ninguem;

bem sei que uma andorinha só não faz verão; mas, já agora, hei de levar a cruz ao calvario, – e quando me crucificarem, talvez encontre um bom ladrão que me console.

Não julgue o leitor que pretendo ser comparado a Christo, como o Sr. Andrade Figueira; mas creia que esta campanha em favor de uma idéa com que muitos sympathisam e que ninguem defende, é um verdadeiro martyrologio.

Individuos ha que não me tomam a serio, ou pelo menos me têm na conta de um visionario, porque estão convencidos de que a actividade humana só se deve mover por essas duas forças – o commercio e a politica.

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Não sei se me engano, mas cuido que um medalhão, que me tratava por tu quando ainda o não era, evita o meu comprimento, receioso, talvez, de que o suppunham commungar nas minhas idéas do levantamento do theatro nacional.

N’esta boa terra, onde milhares de palurdios e pacovios são todos os dias escandalosamente roubados no jogo dos bichos e não caém no ridiculo, correr atraz de um ideal de arte produz o mesmo effeito que correr a apanhar a canna de um foguete!

Nem o menos fazem justiça ao fervor e á sinceridade com que procuro e consigo supprir a falta de talento e de illustração!

***

Entretanto, nnca ninguem se empenhou n’uma campanha mais justa. Á primeira vista parece, realmente, um contrasenso que eu esteja todos os dias a pedir um theatro quando nos faltam outras cousas mais necessarias, segundo a opinião geral, não a minha, porque não considero nada, absolutamente nada mais urgente que um bom theatro.

Mas reparem por amor de deus que não é um theatro que peço, porque o theatro já nos foi dado por lei: o que peço pura e simplesmente é que essa lei seja cumprida e respeitada.

As finanças municipaes estão no bello estado que todos nós sabemos e lastimamos; porém, o projectado theatro nada tem que ver com as finanças municipaes: possue o seu patrimonio, seu, muito seu, só seu, exclusivamente seu, e póde nascer e viver independentemente de qualquer favor dos cofres publicos.

Que diabo! não se gasta 1:400$ todos os mezes com a cobrança dos impostos? – pois gastem-se mais dez contos,e faça-se alguma cousa em favor da mais desprezada das artes!

***

O meu desejo era que a municipalidade adquirisse o theatro S. Pedro de Alcantara, o nosso unico theatro, e, emquanto durasse o trabalho das modificações de que elle caresse para ser um magnifico theatro de comedia, incumbisse agentes desinteressados e criteriosos de organisar uma companhia, contractando, ou antes, inventando os artistas.

Ao mesmo tempo abrir-se-hiam concursos para a apresentação das peças que tivessem de ser representadas, e rever-se-hia pacientemente o acervo theatral da nossa litteratura, para escolher os dramas e comedias de um repertorio que se poderia chamar de classico.

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O theatro S. Pedro de Alcantara, glorioso pelas suas tradições, pelo seu passado historico, deve pertencer á municipalidade do Rio de Janeiro, deve ser o nosso Theatro Municipal.

Puxem o palco mais para a platéa, estreitem a bocca de scena, substituam aquellas cadeiras onde os espectadores ficam escondidos, de sorte que mesmo em noites de grande enchente a sala parece estar vasia, façam desapparecer a pintura sombria e melancolica das paredes dos camarotes, illuminem a sala á luz electrica, ventilem-na, arranjem convenientemente o salão, e o theatro S. Pedro de Alcantara, o velhor Constitucional Fluminense, será o idéal.

A principio pugnei pela construcção de um theatro; mas depois que o S. Pedro, na noite da 1ª representação da Fada das bonecas, me appareceu, graças aos simples bicos Auer, com um aspecto risonho e encantador que até então lhe não conhecia, mudei de idéa, e julgo hoje que seria um erro e uma ingratidão pensar n’outro edificio para o Theatro Municipal.

Vou mais longe: a nossa edilidade não tem o direito de deixar que o S. Pedro desappareça ou que se transforme. Aquella illustre reliquia de pedra e cal deve pertencer á cidade do Rio de Janeiro.

***

Não leve o leitor á conta de utopia dizer-lhe que, desde que o Theatro Municipal, pela boa disposição da casa, pela acertada escolha dos espectaculos, pela boa vontade dos artistas, pela combinação intelligente de todos os esforços, de todas as dedicações, se imponha ao publico e á sociedade, duas entidades que, no tocante aos espectaculos publicos, ha muito tempo se divorciaram, o Theatro Municipal poderá viver folgadamente dos seus proprios recursos, com fundo de reserva para escola de declamação, monte-pio, etc.

Os primeiros tempos serão penosos. Se sou um visionario, se me illudo, não me illudo a ponto de contar desde logo com a realisação completa do meu sonho. Mas Roma não se fez n’um dia, nem a casa de Molière chegou ao que hoje é emquanto o diabo esfregou um olho...

Mas não será pequena a gloria da nossa geração, preparando o terreno para a colheita do futuro.

A. A.

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O Theatro, 01/11/1900

Ha dias tive a satisfação de me encontrar na rua com o honrado prefeito do Districto Ferderal, e S. Ex. comversou commigo a respeito do projectado theatro, que constituiu todo o assumpto do meu ultimo folhetim.

Não posso nem devo repetir o que ouvi; entretanto, não hesito em declarar aos meus leitores que, pelo menos,o Dr. João Felippe não nega ao theatro a sympathia de que infelizmente não deram prova os seus antecessores.

Elle concorda commigo – e quem não concordará? – em que a acquisição do S. Pedro de Alcantara, verdadeiro monumento nacional, é uma obrigação que está moralmente imposta á Municipalidade, – e deseja que essa compra se faça durante a sua administração.

Apezar de ir já passando da edade em que tudo se espera com alguma resignação, não sou impaciente, e,por emquanto, uma vez que não ha paiz como o nosso onde os factos estejam tão sujeitos á lei da oportunidade, me contentaria de boa vontade com ver o S. Pedro entregue á municipalidade. Desde que ella fosse dona do theatro, teria que fazer delle alguma coisa, e certamente não o alugria para os tiros do actor Victorino Vellosa, nem lá consenteria circos de cavalinhos; portanto, a organisação de uma companhia dramatica se tornaria urgente, e o Theatro Municipal surgiria para nunca mais desapparecer.

Por conseguinte, todos nós (quantos somos?), que nos interessamos devéras pela arte brasileira, façamos ardentes votos para que o theatro S. Pedro de Alcantara fique sendo quanto antes um proprio muncipal.

***

A noticia telegraphica do fallecimento de Guilherme da Silveira só chegou ao meu conhecimento depois de quinta-feira passada, motivo pelo qual nada escrevi a esse respeito.

Traçarei o esboço biographico do morto tão completamente quanto me permittam os elementos de que disponho entre as quatro paredes do meu gabinete, pois não ha duvida que o nome de Guilherme da Silveira é um dos que se acham mais intimamente vinculados á nossa chronica theatral.

Guilherme nasceu em Lisboa a 11 de fevereiro de 1846, e não recebeu a menor educação litteraria. O pai quiz fazer d’elle um musico, e teve que desistir d’essa idéa; mandou, depois, ensinar-lhe o officio de chapeleiro, mas o rapaz fugia da officina, para metter-se entre os bastidores dos theatros.

Principiou Guilherme, como tantos outros, representando em espectaculos de curiosos, e conseguio figurar gratuitamente, em 1863, no elenco do theatro

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D. Maria, desempenhando um papel insignificante no drama Penitencia, de Camillo Castello Branco e Ernesto Biester. Apesar de lhe não pagarem ordenado, não o quizeram: mandaram-no embora.

Entrou, pelo mesmo preço, para as Variedades, onde figurou no drama Carlos III ou a inquisição de Hespanha, e ahi começou a ganhar 300 réis por espectaculo, salario que foi augmentado em tres vintens quando elle interpretou, com certo exito, um personagem da Degolação dos innocentes, o ultimo drama, digamol-o de passagem, que poz em scena como emprezario no Rio de Janeiro.

Das Variedades passou para o Gymnazio em 1864, onde se distinguio na comedia de Galdoni – O importuno –, tanto que o seu ordenado mensal de 7$200 passou a ser de 24$000.

D’ahi por diante não lhe faltaram bons papeis, nem bons ordenados, e em 1870 o chamaram de novo para o theatro D. Maria, e lhe confiaram o papel de Didier na Marion Délorme, de Victor Hugo, papel que o grande Tasso estava estudando quando falleceu.

Dessa vez falhou o audentes fortuna juvat: o personagem deveria ter sido interpretado por Tasso, – o publico difficilmente aceitaria outro qualquer artista.

Entretanto, não lhe faltaram successos no D. Maria; brilhou em diversos papeis, e principalmente no do Schannard, da Vida de Bohemia, citado como uma verdadeira creação artistica.

Em 1872 veio para esta capital, fazendo parte da companhia de que era emprezario o incomparavel actor comico José Antonio do Valle, e aqui se estreou no S. Pedro, representando, com Silva Pereira e Anna Cardoso, a comedia As nossas alliadas. Durante dous annos trabalhou sem cessar n’aquelle theatro, alcançando o seu maior triumpho com o drama O filho da noite.

Em 1874 regressou a Portugal e foi Paris, onde aperfeiçoou o seu engenho, voltando ao Rio de Janeiro para se fazer emprezario n’aquelle mesmo theatro de São Pedro.

N’essa occasião organisou a companhia dramatica mais “afinada” e mais completa que ainda se vio nos theatros d’esta capital. Estreou-a com As noites da India, de Lucotte,o auctor da Filha do mar. A peça era ruim, mas foi tão bem posta em scena e tão bem representada,que fez um estrondoso successo, a que se seguiram outros, entre os quaes citarei o do Judeu errante, em que Guilherme de Aguiar tão admirado foi no papel de Rodin.

Por esse tempo Silveira creou, na Cabana do pae Thomaz, o papel do senador Bird, o mais brilhante de toda a sua carreira artistica.

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Mas a fortuna, que a principio o não abandonára, desamparou-o afinal, e durante nove annos o incançavel artista, primeiramente no S. Pedro, e depois no Brasilian Garden, que transformou em Recreio Dramatico, denominação que ainda hoje conserva esse theatro, viveu a mais accidentada vida de actor-emprezario que é possivel imaginar, experimentando todos os artistas, todos os genenros, e creando esse ecclectismo que ficou sendo o caracteristico dominante e deprimente de nossas emprezas dramaticas.

De vez em quando viajava; o sul e o norte conhecem-n’o. Voltava d’essas excursões alentado ou desalentado, conforme lhe sorrira ou não lhe sorrira a deusa cega, mas, fosse qual fosse o estado em que trazia o espirito e as algibeiras, mettia mãos á obra e convocava o publico.

Dando um balanço mental a esses nove annos de emprezario, lembro-me de muitos successos de estima, o de dous successos reaes, em generos diversos – O Espelho de Coralia e Piperlin.

Endividado, desilludido, avelhentado, com menos de quarenta annos de idade, voltou Guilherme da Silveira á patria em 1884, e alli reapparecceu no Gymnasio, representando pela primeira vez, com geral agrado, um papel de velha na comedia Cerco ao tio.

Demorou-se tres annos em Lisboa, e teve – quem o diria? – saudades do Rio de Janeiro... Voltou em 1887, reapparecendo no Recreio, de que já era então emprezario Dias Braga, no papel de protagonista do drama O prestidigitador.

Applausos não lhe faltaram, mas nem aquella, nem outras peças que se lhe seguiram a curtos intervallos, tiveram o poder de atrahir o publico.

Foi então que se lembrou de pôr em scena, de socideade com Dias Braga, a Grande avenida, – e a Grande avenida lhe deu tanto dinheiro a ganhar, que elle arrendou o theatro Principe Imperial,reformou-o, mudou-lhe o titulo para Variedades, titulo que ainda hoje conserva, e enriqueceu pondo em scena tres peças: o vaudeville As andorinhas, a revista Frotzmael e a magica O gato preto. Esta ultima e algumas transacções da Bolsa, extraordinariamente felizes, fizeram delle um capitalista.

Depois de inaugurar o theatro Apollo com Mam’selle Nitouche, e pôr em scena mais duas ou tres peças, Guilherme da Silveira vendeu todo o material da sua empreza, e regressou a Lisboa, onde construio um magnifico predio para sua residencia particular, e, associado a outros capitalistas, levantou, em 1894, o theatro D. Amelia, um dos melhores da capital portugueza.

Durante os ultimos seis annos fez parte activa da associação exploradora d’esse theatro, e achava-se em Madrid, preparando o terreno para uma serie de representações da Duse e da Rejane,quando sucumbio inesperadamente a uma affeção cardiaca de que era ha annos ameaçado.

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Guilherme da Silveira não foi um grande actor, mas teve tres ou quatro papeis brilhantes, o que já é alguma cousa na carreira de um artista dramatico.

Como emprezario, era de uma actividade exemplar, e, como ensaiador, ennum conheci mais paciente nem mais insinuante.

De um natural alegre e folgazão, supprindo pela boa convivencia a educação que lhe faltava, intelligente e loquaz a ponto de ter espirito ás vezes, Guilherme da Silveira foi o que se chama um companheirão.

É verdade que era um homem quando tinha em scena uma peça de successo e outro quando a peça não agradava; é verdade que para elle o auctor era uma aguia quando a peça dava dinheiro e uma besta quando não dava; mas quem conhece as agruras da vida do emprezario theatral, deve perdoar essaS versatilidades de caracter.

***

Venho trazer sinceras condolencias ao nosso bom director pelo fallecimente de seu honrado pae.

E nada mais accrescenTo: já passei por transe igual, e sei o que valem palavras convencionaes de pretensa consolação.

A. A.

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O Theatro, 08/11/1900

Dos espectaculos muito pouco tenho que dizer: no Apollo voltou á scena a revista portugueza O ramerrão, e annuncia-se para hoje O burro do Sr. alcaide, a interessante charge de Gervasio Lobato e João da Camara, para a qual compoz Cyriaco de Cardoso um das suas partituras mais inspiradas; e no Recreio continua tem-te não caias a Viagem de Suzette, que a principio se pronunciou como um estrondoso successo, e declinou da vigesima apresentação em diante.

Esta é a prova mais evidente de que a nossa industria theatral atravessa n’este momento um periodo climaterico muito difficil de melhorar, pois não ha duvida que poucas peças têm agradado como a Viagem de Suzette, não só pela comedia, como pela musica, pela representação e pela riqueza da mise-en-scène.

Essa riqueza – digamol-o sem rebuço – tocou a meta da extravagancia: basta dizer que alguns artistas appareceram enroupados com fazendas de 40$000 o metro! N’essas condições, quando mesmo a peça, tendo, como tinha, uma diaria elevadissima, chegasse ao centenario, haveria fatalmente prejuizo. É uma conta que qualquer criança poderá fazer a bico de pena.

Á vista do afastamento do publico, é loucura arriscar tanto dinheiro com a montagem de qualquer peça; mas, ainda mesmo no tempo das vaccaas gordas, essa prodigalidade seria, pelo menos, uma imprudencia.

Mesmo porque está provado que no Rio de Janeiro não é absolutamente o luxo da enscenação que determina o successo das peças. Tenho-as visto cahir depois de custarem os cabellos da cabeça aos emprezarios para pol-as em scena, e tenho-as visto triumphar com pataca e meia de scenarios e vestimentas.

Se a empreza do Recreio gastasse a quarta parte do que despendeu para enscenar a Viagem de Suzette, a peça teria a mesma fortuna que logrou com tanto desperdicio de dinheiro.

Note-se que eu faço questão da mise-en-scène, divergindo, n’este ponto, só n’este, do venerado mestre Sarcey; entretanto, dispenso o superfluo e me contento do necessario. Exijo que os scenarios, o guarda-roupa e os accessorios sejam decentes e appropriados; nada mais.

A miseria e a impropriedade da mise-en-scène revelam absoluta falta de respeito pelo publico, offendem a intelligencia da platéa; mas entre a decencia e a propriedade de um lado, e o luxo exaggerado de outro, ha um abysmo.

As nossas emprezas dramaticas são muito prejudicadas peloa máos costumes que se arraigaram no theatro. Em toda a parte do mundo civilisado, logo que o emprezario resolve pôr em scena uma peça de espectaculo, convoca

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immediatamente o scenographo, o desenhador dos vestuarios, o alfaiate que os executa, o machinista, etc., e cada um d’esses auxiliares, depois de ler ou ouvir ler o manuscripto, apresenta o seu orçamento. Munido d’esses dados indispensaveis para o bom andamento dos seus negocios, o emprezario calcula a receita provavel dos espectaculos, estuda os computos de despeza, e, se reconhece que esta é excessiva e póde sacrifical-o, chama de novo seus auxiliares, discute com elles os respectivos projectos, impõe-lhes certas modificações, e, cortando aqui, encurtando acolá, consegue equilibrar o dinheiro que sae com o que calcula entrar.

O calculo muitas vezes falha, necessariamente, quanto á receita, mas quanto á despeza não póde falhar, porque todos os serviços da mise-en-scène são pagos por empreitada, – de modo que se o emprezario não adivinha quanto uma peça lhe renderá, tem, pelo menos, a grande, a enorme vantagem de saber quanto lhe custa, sem discrepancia de um real.

No Rio de Janeiros as cousas fazem-se de modo muito diverso. Os emprezarios (falo com conhecimento de causa e por experiencia propria) acceitam muitas vezes e fazem ensaiar uma peça cujo 1º acto está escripto e cujo final ainda se acha nos intermundios mysteriosos da imaginação do auctor.

As despezas começam immediatamente e prosseguem dia a dia até a primeira representação. A todo o momento surge um gasto imprevisto, e ai do emprezario que não tiver a bolsa guarnecida sempre e sempre escancarada! Ora são mais tantas peças de panno para os scenarios, ora mais uma porção de madeira para os traineis, ou a fazenda tal que não chegou para vestir o corpo de córos, etc. E nunca vai acabar.

Todos os dias, a todo momento o emprezario não vê diante de si senão mãos abertas, e vai dando, vai dando, sem conta nem medida, sem saber a quantas anda, e esmagado pela pedra de Sisypho. Quando passada a primeira representação, ainda com o juizo a arder, reune as suas notas e somma o que gastou deita as mãos á cabeça e reconhece que só um milagre, como o do Rio nú,poderá salval-o da ruina.

Quando o emprezario dispõe de capital sufficiente para pôr em pratica tão desarrasoado systema, as cousas caminham com certa facilidade relativa, mas quando em meio da viagem se lhe acaba o dinheiro e elle precisa recorrer ao credito, começa para o pobre diabo uma existencia impossivel, porque nada mais póde comprar senão pelo triplo do que lhe custaria se estivesse abonado.

Muitas vezes parte da receita das primeiras representações, quasi absorvidas já por uma diaria excessiva, é destinada á satisfação d’esses

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compromissos inadiaveis, e o que fica raramente chega para pagar, no fim da quinzena, a folha da companhia.

Nada d’isto aconteceria se houvesse o methodo imprescindivel. Se as nações não podem viver sem orçamentos, como ha de viver sem elles uma empreza de theatro cuja receita é incerta?

Desde que montem as peças com a certeza do que vão gastar, e contem com as cousas pelo peior, pois n’esta época, principalmente, não é licito esperar mundos e fundos, as nossas emprezas theatraes viverão pelo menos mais desafogadas. O actual regimen é insustentavel, ruinoso, absurdo, e, para prova, ahi temos a Viagem de Suzette.

Queira Deus aproveite a lição, que foi cara. A empreza do Recreio vai pôr em scena uma revista de Moreira Sampaio, Inana, que é, segundo me consta, um prolongameto do venturoso Rio Nú.

A peça está inteiramente escripta: não ha, pois, razão para que não se faça um orçamento exacto de todas as despezas, nem se calcule a média da receita pelo menos durante certo numero de representações. Experimente a empreza o systema, e ha de ver que não se dará mal.

Já o leitor percebeu que por falta de melhor assumpto é que metto o bedelho nos negocios particulares de um estabelecimento commercial, pois que outra cousa não é um theatro; supponho, entretanto, que as observações que ahi ficam são topicas e salutares, e que nunca é demais, neste folhetim, procurar corrigir os erros das nossas emprezas dramaticas.

Ah! quizesse eu ter sempre a ferula erguida contra ellas, e não me faltaria com que encher muitos folhetins!

Por exemplo: A viagem de Suzette está com vinte e cinco representações que poderiam ser cincoenta, e a companhia do Recreio só agora tem peça nova em ensaios, se é que já começaram os ensaios da Inana, os quaes durarão pelo menos um mez...

Devia ter sido emprezario de theatro o inglez que inventou o celebre proverbio Times is money.

A. A.

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O Theatro, 15/11/1900

Continuamos na mesma: nenhuma novidade tivemos nos ultimos sete dias, ou antes, nas ultimas sete noites. No Recreio, privado agora, segundo me consta, do precioso concurso do actor Machado,ainda se exhibe A viagem de Suzette, e no Apollo, onde O burro do Sr. alcaide não fez, como outr’ora, as delicias do publico, reappareceu hontem O relogio magico, um dos successos da companhia Taveira.

Esta a 26 do corrente partirá para Lisboa, deixando o theatro a Lucinda Simões, que ahi volta de S. Paulo com os seus artistas. Preparem-se, pois, para matar saudades d’A lagartixa.

***

Annunciou-se ante-hontem, no Lucinda, o reapparecimento da celebre Companhia Infantil, que, por precaução, d’esta feita se intitulou juvenil. Precaução inutil, porque a policia, bem avisada, prohibio o espectaculo, pelo que merece os meus applausos. Sempre me repugnou e sempre combati a exploração de crianças no theatro,aonde ellas não devem ir nem como simples espectadoras. O theatro fez-se para gente adulta.

Faço votos para que a auctoridade não ceda a empenhos, isto é, não revogue a prohibição. Esses espectaculos infantis ou juvenis, só servem para desmoralisar ainda mais o theatro fluminense. O emprezario que faça as malas e leve a companhia para certos Estados onde infelizmente se tolera esse genero de exploração.

***

Vem a pello fallar de uns pygmeus, que ha dias figuraram n’um espectaculo em beneficio do velho Jacinto Heller, a quem nosso publico tanto deve e de quem talvez ja não se lembre...

Não vi os taes pygmeus, comquanto não fosse esta a primeira vez que se exhibiram no palco, representando pequenas comedias: sei, porém, que se trata de uma pobre familia do norte, cujos paes são bem conformados e cujos filhos nasceram todos anões.

Concorrendo a esses espectaculos, o publico não é, naturalmente, attrahido pela arte dramatica, mas pelo desejo de examinar um phenomeno physiologico, e de se divertir à custa de um defeito digno de piedade.

Tambem não foi para pygmeus que se fez o theatro, e, francamente, não sei de outros que me divirtam a não ser os das Viagens de Gulliver.

É triste que os nossos palcos sejam ameaçados por companhias de crianças e de pygmeus, ao passo que muitos dos nossos artistas andam a trocar pernas

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sem officio nem beneficio, ou a organisar mambembes que forneceriam novos capitulos ao romance de Scarron.

***

Felizmente está annunciada para o proximo domingo, no S. Pedro de Alcantara, uma nova companhia dramatica de que são emprezarios os Srs. I. de Castro & C.Presumo que esse I. de Castro seja o actor brasileiro Isidoro de Castro, que nunca vi trabalhar, pois só se tem exhibido na provincia, onde, aliás, é muito apreciado.

A estréa – valha-nos isto! – se fará com um drama novo, que a empreza annuncia como “emocionante”, e é escripto pelo Sr. José de Cupertino Delpino, dramaturgo que não tenho a honra de conhecer.

Esse drama intitula-se Humberto I, rei da Italia. É, como se vê, uma peça de toda a actualidade.

Se não se trata de um tiro, acompanharei os espectaculos da nova empreza com a maior sympathia.

***

Acaba de ser publicado e acha-se á venda na livraria Briguiet,o annunciado livro El Brasil intelectual, escripto pelo illustrado Sr. Martin Garcia Merou,que ha tempos exerceu o cargo de ministro plenipotenciario da Republica Argentina junto ao nosso governo.

Li de uma assentada essa obra, e, ao memso tempo que me satifez o espirito de justiça com que são tratados alguns prosadores e poetas brasileiros, entristeceu-me-me ver que o illustre escriptor platense não teve uma pagina, um periodo, uma linha, uma palavra sequer para o nosso theatro.

A critica, o romance e a poesia monopolisaram toda a attenção do Sr. Merou. Martins Penna, Joaquim Manuel de Macedo, Agrario de Menezes, Pinheiro Guimarães, França Junior etc. não figuram na sympathica monographia. Do proprio Jose de Alencar nem incidentemente se diz que foi dramaturgo.

Sei o que isso foi: necessariamente o Sr. Merou se soccorreu de algumas informações verbaes, e os seus informadores não se lembraram absolutamente do theatro... O pobresinho é sempre esquecido n’essas occasiões.

Sou capaz de apostar que o jovem diplomata está persuadido de que no Brasil ninguem jamais cogitou em escrever para o theatro, e nos julga, n’esse ponto, a par dos demais paizes americanos, onde absolutamente não ha litteratura dramatica

Paciencia.

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Outro escriptor estrangeiro, o Sr. Joaquim Leitão, publicou tambem um livro sobre a nossa terra, e intitulou-o Do civisto e da arte no Brasil.

A obra, muito bem escripta, muito artistica, talvez peque por um exaggerado optimismo; antes de se sentar á mesa para escrevel-a, Joaquim Leitão poz uns oculos de vidros côr de rosa, e vio-nos como desejára e nós desejaramos que fossemos; entretanto, não se esqueceu do theatro: fallou dos nossos esforços, das nossas tentativas,das nossas luctas.

“Bastava saber-se, diz elle, que o theatro é, de todas as artes, a de mais lenta civilisação, para não se deseperar de a ver ainda attingir a culminancia que no Brasil alcançaram já as outras artes. Arthur Azevedo fez d’isso uma questão sua; não perde um ensejo: a morte de um actor, a visita de um artista celebre ao Rio, o centenario do descobrimento, tudo aproveita para recomeçar o combate, para volver á cruzada. E, ou elle ha de morrer muito cedo, ou o theatro Municipal se fundará, devendo já agora mais a Arthur Azevedo do que ao conselho municipal.”

Não usurparei jámais alheias lgorias; emquanto escrever sobre este assumpto, proclamarei bem alto os nomes de Julio do Carmo e outros que crearam o theatro Municipal, – sim, porque elle está creado. O meu papel é todo secundario: é completar a obra que elles fizeram; é pedir que se cumpra a lei que elles votaram.

Felizmente (já eu o disse e repito) o actual prefeito, o talentoso Dr. João Felippe Pereira, não é avesso á realisação do meu sonho, e tenho razões para acreditar que durante a sua administração alguma cousa se fará em prol do esquecido theatro Municipal.

A. A.

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O Theatro, 22/11/1900

Não tenho hoje que tratar senão de mortos, e hão de convir os leitores que outro assumpto não ha mais apropriado para um folhetim que se intitula O theatro e é escripto no Rio de Janeiro...

***

Em primeiro logar fallemos de Achilles Varejão, que domingo baixou á sepultura, levado pelos quatro amigos que ainda lhe restavam do tempo em que elle tinha saude e era “o doutor Varejão”.

Esse jornalista e poeta escreveu e traduziu comedias e dramas, que foram representados quando nesta capital havia alguma cousa que era mais que um simulacro de theatro. Pertenceu á pleiade illustre de Quintino Bocayuva, Pinheiro Guimarães, Sizenando Nabuco e outros que abandonaram as lettras dramaticas, porque viram que infelizmente malhavam em ferro frio.

Desde que resido no Rio de Janeiro, isto é, ha 27 annos, não se representou aqui nenhum drama de Achilles Varejão, e como as suas peças não tiveram as honras do prelo, ou, se as tiveram, os respectivos exemplares se tornaram rarissimos, succede que absolutamente não as conheço.

Algumas d’ellas agradaram e tiveram muitas representações; mas nem mesmo encontrei o derradeiro echo dos applausos. Os actores, a quem me dirigi pedindo informações, deram-me noticias tão imcompletas, tão vagas, que fiquei na mesma. Perdera-se completamente a tradição – o que prova, mais uma vez, que no Brasil as glorias do theatro são as mais ephemeras, e que mais depressa se volatilisam com o andar dos annos.

Pelo que tenho observado, a peça brasileira d’aquelle tempo que deixou mais funda impressão no espirito popular não foi nenhuma das de Alencar e Macedo, os nossos dous dramaturgos menos esquecidos: foi a Historia de uma moça rica, de Pinheiro Guimarães.

Achilles Varejão, com quem só ultimamente estretei relações, porque moravamos no mesmo bairro e muitas vezes eramos passageiros do mesmo bond, não gostava – visivelmente não gostava – que lhe fallasssem das suas peças de theatro. Não sei que especie de sentimento o agitava interiormente,mas todas as vezes que lhe tocavam no assumpto, elle, que era um habil palestrador, desviava a conversa para outro ponto.

Um dia, ha poucos mezes, pedi-lhe que me desse a lista completa de seus trabalhos theatraes.

– Para que? perguntou elle. V. já está preparando o meu necrologio?

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Embaraçado por essa pergunta de moribundo, recorri a uma innocente mentira, e respondi que tencionava publicar em janeiro um artigo, trazendo a relação completa dos dramaturgos brasileiros do seculo, com a indicação de todas as suas peças.

– Não sei, já me não lembra... foi ha tanto tempo...– Mas não me diz, ao menos, onde posso encontrar algum escripto que me

elucide a esse respeito?– Pois não! – procure o livro de Wolf sobre a litteratura brasileira, e n’elle

encontrará menção de todos ou quasi todos os meus trabalhos theatraes.Não tenho esse livro á mão, e faltou-me, nos ultimos dias, tempo para

consultal-o na Bibliotheca Nacional; entretanto, ahi fica a indicação para os leitores interessados no caso.

O 1º volume do Dicionario bibliographico brasileiro,do Dr. Sacramento Blake, publicado em 1883, isto é, 19 annos depois da obra de Wolf,attribue a Varejão as seguintes peças: A época, comedia em 5 actos, representada em 1861; o Captiveiro moral, drama em 5 actos, representado em 1862; Trevas e luz, drama em 4 actos, representado em 1867; os Excentricos, comedia em 4 actos, representada não diz quando; An’ath e a Vida intima, dramas em 3 actos cada um, que não sabe se foram representadas, e a Louca, opera em 4 actos, escripta em verso portuguez e posta em musica por Elias Alvares Lobo.

Da Epoca diz o bibliographo o seguinte: “Creio que foi impressa”, e declara positivamente que os Excentricos, An’ath e a Vida intima se conservam ineditos, rematando o artigo dizendo constar-lhe que Varejão “tem ainda outras comedias e dramas, originaes e traduzidos, sendo alguns já representados n’esta côrte.”

Essa pobreza de informações,por parte de um biographo que provavelmente consultou o biographado, confirma o que ficou dito sobre a reserva que o dramaturgo guardava acerca dos seus trabalhos, reserva, aliás, inexplicavel, porque Varejão era muito expansivo, e tinha prazer em recitar aos amigos seus magnificos sonetos.

Se algum dos meus leitores puder e quizer esclarecer os pontos obscuros da biographia do dramaturgo, só do dramaturgo, porque nada tenho que ver, aqui, com o burocrata, nem com o advogado, nem com o jornalista, nem com o poeta, far-me-ha um grande obsequio dizendo-me o que sabe, embora saiba pouco.

N’estes folhetins talvez um dia se procure – quem sabe? – a triste historia do nosso theatro no fim do seculo das luzes; é justo que o talentoso e sympathico Varejão figure n’estes pedaços de prosa com a noticia exacta dos seus esforços em prol da litteratura dramatica do seu paiz.

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Um telegrama do Porto deu-nos a dolorosa noticia de haver fallecido alli o famoso regente de orchestra, ensaiador e compositor Cyriaco de Cardoso, tão conhecido do publico fluminense.

Filho d’aquella cidade, onde nasceu a 8 de agosto de 1846, Cyriaco revelou desde criança notavel talento musical, e encetou muito novo a sua carreira artistica, dando concertos de violino e compondo bellissimas valsas, uma das quaes, intitulada Ella, alcançou, póde-se dizer, um successo quasi universal.

Aos vinte e tantos de idade veio para o Brasil, onde se distinguio bastante, quer como artista, quer como cavalhiro de fina educação.

Contractado pelo emprezario Guilherme da Silveira, seu amigo inseparavel, tendo nascido no mesmo anno que elle, o precedeu no tumulo apens alguns dias, Cyriaco de Cardoso escreveu musica para muitas peças, como A cabana do pai Thomaz, Jerusalém libertada, A filha do mar, A filha do fogo e outras cuja enumeração seria longa.

Trabalhava com uma rapidez incrivel, e tinha uma habilidade maravilhosa em aproveitar um numero de musica escrito para outra peça, por outro auctor, transformando-o, adaptando-o com uma precisão inacreditavel. Fui seu companheiro de trabalho, e tive muitas vezes occasião de admirar tão notaveis aptidões.

Voltando á patria, Cyriaco metteu-se a emprezario de opera-comica, e conseguio fazer cantar em portuguez a Carmen e o Freystutz; mas a sua empreza só lhe causou dissabores e prejuizos. Basta dizer que elle era o emprezario do Baquet, do Porto, quando este theatro se incendiou em 1888.

Passando-se para Lisboa, Cyriaco triumphou escrevendo a musica do Burro do Sr. alcaide e em seguida a do Solar dos barrigas e a do Testamento da velha.

Voltou ao Brasil em 1896 com a companhia Taveira; mas este anno não pôde vir com ella, como desejava, porque já ia adiantada a terrivel molestia do coração, que o matou.

Era um bello artista e um bellissimo camarada.

***

Naõ estive hontem no Eden-Theatro; mas um amigo, que lá foi, me assegurou que a companhia estreiante não é infantil, nem juvenil: é simplesmente senil.

A. A.

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O Theatro, 29/11/1900

Nada, absolutamente nada de novo.A companhia Taveira deu ante-hontem o ultimo espectaculo, e é de justiça

dizer que fechou dignamente a serie das suas representações, fazendo reverter a récita em beneficio dos filhos de Cyriaco de Cardoso, e representando parte das duas operetas mais applaudidas do illustre compositor, – o Solar dos Barrigas e o Burro do Sr. alcaide.

– No Recreio continuam a exhibir a espectaculosa Viagem de Suzette, emquanto ensaiam, para ser proximamente representado, um vaudeville de Feydeau, traduzido por Moreira Sampaio com o titulo Agencia de casamentos, – o que não quer dizer que não apromptem, com toda a actividade, os scenarios e o guarda-roupa de Inana, a nova revista a que fiz ligeira referencia no folhetim passado.

– No Lucinda, uma pequena companhia tenta attrahir o publico pondo em scena as Andorinhas, sob direcção do popular actor Machado, que n’esse espirituoso vaudeville tem um dos seus melhores papeis.

– No Apollo, que só uma noite ficou com a porta fechada, reapparecerá hoje, com a Lagartixa, a companhia dirigida por Lucinda Simões e Christiano de Souza.

***

– Já vêem, pois, que não ha nada, absolutamente nada novo.

***

Entretanto, escapamos de ter uma grande novidade: o drama Humberto I, rei da Italia, cuja primeira representação fôra annunciada para sabbado, no S. Pedro de Alcantara.

Apezar de uma noite chuvosa, que não convidava a sahir de casa, lá fui; encontrei o theatro fechado e de luzes apagadas. A representação tinha sido prohibida pela policia, á vista de uma nota da legação italiana. Bem ou mal, o Sr. conde Antonelli entendeu que não convinha deixar expôr no palco a figura de Humberto, embora com intenções panegyricas. Mas, ou eu me engano, ou a intervenção diplomatica foi motivada menos pela peça que pelo hediondo painel que penduraram no terrraço do theatro, representando o infeliz monarcha na occasião de ser assassinado.

Foi esta, creio, a primeira vez que se prohibio a representação de uma peça theatral no Rio de Janeiro, para attender a um protesto d’aquella natureza. Na Europa o facto é commum e não ha muito tempo, em Paris, o representante da Turquia fez com que o governo interdissesse a representação de Mahomet,

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drama de Henri Bornier, o qual se achava em ultimos ensaios na Comédie Française. Releva, entretanto, notar que esse drama nada tinha de laudatorio; o fundador do islamnismo não era tratado com o devido catamento; Mahomet apparecia sob um aspecto desagradavel que certamente sorprehenderia os espectadores menos versados em historia, e foi isto o que pretendeu evitar o governo ottomano.

Confesso que fiquei pasmado diante da facilidade com que a Replubica Franceza attendeu á reclamação dos turcos. Comprehendo que se prohiba a representação de peças em que se exhibam pessoas vivas ou factos recentes, que não pertençam ainda ao dominio absoluto da historia; prohibir, porém, que se ponha em scena um philosopho e guerreiro que morreu ha uma boa duzia de seculos, e fazel-o tão somente para ser agradavel ao sultão da Turquia, é attentar contra o direito do dramaturgo.

A rigor, não admitto, em boa logica, que não se consinta no theatro o que se tolera e permitte no livro, no jornal e na tribuna, embora o theatro actue mais directamente sobre o espirito do publico; não me parece justo negar á penna do dramaturgo a mesma liberdade de pensamento que se concede ao lapis do desenhista ou á lingua do orador, pois que o theatro póde ser tambem considerado um simples orgão de publicidade.

Todavia, o caso de que se trata é um d’aquelles em que a opinião transige facilmente. Sou o primeiro a reconhecer que, dadas certas circumstancias, é indispensavel guardar certas conveniencias, e não vale a pena desgostar uma nação amiga por causa de uma peça de theatro.

Mal avisado andou o emprezario do S. Pedro, quando, vendo o drama ameaçado de interdicção, não foi ter immediatamente como o auctor para mudar o titulo de Humberto para Roberto, dar outros nomes aos outros personagens, e fazer passar a acção do drama n’um paiz de fantasia, como os Les rois de Jules Lamaitre.

D’esse modo, a legação italiana nada teria que dizer, e o emprezario não perderia tempo nem dinheiro.

Sinto sinceramente esse prejuizo, mas não creio que o publico perdesse grande cousa, porque, com franqueza, por isso mesmo que tenho estudado um pouco a arte de escrever peças de theatro (o que não quer dizer que as escreva), não sei que partido pudesse o dramaturgo tirar da vida de um rei contemporaneo, que não teve na sua passagem pelo mundo outra situação dramatica senão a de ter sido covardemente assassinado.

***

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Um telegramma trouxe-nos a noticia do fallecimento de Arthur Sullivan, o compositor mais popular da Inglaterra, o auctor do Mikado, a famosa opera-comica em 2 actos, representada em Londres duas mil vezes consecutivas.

Tivemos occasião de ouvil-a n’esta capital, ha alguns annos, em duas épocas, a primeira no theatro Lyrico e a segunda no S. Pedro, antada por uma companhia ingleza, em cujo elenco figurava a actriz que creára em Londres o principal papel, e realmente era notavel. Chamava-se... Já me não lembro;para nomes inglezes sou uma lastima.

A musica do Mikado me pareceu lindissima,embora não me parecesse muito original: havia principalmente um numero que lembrava outro, da Gran-Duqueza, de Offenbach; ouvindo-a, não percebi, todavia,o motivo de tão prolongado e retumbante processo.

Athur Sullivan, agraciado pela rainha Victoria com o titulo de baronete, era tão estimado que, diz o telegrapho, tanto ella como o principe de Galles se fizeram representar no enterramento.

***

N’esta capital falleceu a actriz Isaura Brandão, esposa do festejado actor comico.

Era paulista. Acompanhou o marido, trabalhando a seu lado, emquanto elle carregou ás costas uma companhia nomade, mourejando aqui e alli, ora em S. Paulo, ora em Minas, ora no Rio de Janeiro.

Aqui, nunca esteve contractada em nenhum theatro; apparecia de vez em quando, n’algum beneficio, representando pequenas comedias, em que dava a deixa ao Brandão, como no Marido nas palminhas.

Era intelligente e habil, mas o publico, por bem dizer, não a conhecia, tão poucas vezes teve occasião de vel-a.

O pobre Brandão, a quem a morta deixou dous filhos ainda por educar, está inconsolavel, e não serei eu quem pretenda consolal-o.

Imaginem com que vontade de chorar elle tem feito rir, n’estas ultimas noites, representando o seu papel na Viagem de Suzette... Mas o theatro é isso mesmo: as lagrimas do artista são encobertas pela mascara que elle afivella ao rosto.

A. A.

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O Theatro, 06/12/1900

Esta fôlha noticiou hontem que Ermete Novelli acaba de fundar na Italia um theatro no genero da Comédie Française, fazendo assim com que haja em Roma a casa de Goldoni, como ha em Paris a Casa de Moliére.

Lendo essa noticia, lembrei-me de que o grande artista italiano, quando aqui esteve pela segunda vez, propoz fundar o Theatro Brasileiro, compromettendo-se a vir todos os annos a esta capital ensinar arte dramatica ás moças e aos rapazes que desejassem abraçar a carreira theatral.

A idea, que Novelli communicou em primeiro logar a Ferreira de Araujo, foi recebida com enthusiasmo por esse illustre jornalista e tambem por mim, que n’esta mesma folha fiz o possivel para que ella se convertesse em realidade. Entretanto, foi pregar no deserto; não encontramos sequer outros collegas que auxiliassem a nossa campanha, e uma andorinha... quero dizer – duas andorinhas só não fazem verão.

Novelli, não obstante ser discreto e bem educado, não disfarçou o natural resentimento que lhe causou o não ter sido tomada em consideração a sua proposta, e nós, Ferreira de Araujo e eu, vendo a indifferença mortal com que foi recebido tão generoso offerecimento, evitamos fallar-lhe n’esse assumpto.

Se tivessemos dado ouvidos ao insigne artista, se não deixassemos escapar aquella boa occasião de fazer alguma cousa em prol do theatro nacional, se lhe pegassemos na palavra, como vulgarmente se diz, a estas horas teriamos – quem sabe? – a Casa de Martins Penna, como Roma tem a de Goldoni, Paris a de Molière, Londres a de Shakespeare, Madrid a de Calderón, Lisboa a de Garret.

Hoje toda a esperança por esse lado está desvanecida: Ferreira de Araujo morreu, e Novelli, depois que recebeu a brilhante consagração de Paris, provavelmente se esqueceu da proposta feita n’um impeto, irreflectido, talvez, de enthusiasmo.

Sim, porque elle tinha pela nossa terra um enthusiasmo ardente e sincero; doia-lhe ver que n’uma capital como a nossa, intelligente, bella, populosa, o theatro fosse o que é... o que era, porque de quatro annos a esta parte o misero desceu ate onde podia descer.

Não sei se Novelli voltará ao Rio de Janeiro; mas, se voltar, não será certamente, com idéas de pôr o seu maravilhoso talento a serviço da nossa civilisação intellectual.

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Quem não voltará ao Rio de Janeiro é a divina Sarah Bernhardt; pelo menos assim faz crer uma carta de Rose Méryss, que me foi obsequiosamene communicada pelo meu distincto collega de imprensa Dr. Cunha e Costa, e da qual vou traduzir, á falta de nmelhor assumpto, um trecho que julgo interessante e como tal será, talvez, julgado pelos leitores.

Eil-o:“Já estão de malas feitas. No fim d’este mez (novembro) elle (Coquelin)

e Sarah – Cyrano offerecendo o braço ao Aiglon – irão ambos passear através da America do Norte, cujos dollars soam mais alegremente ao ouvido que o amarrotar dos lindos papeis – refiro-me aos novos – que representam os réis brasileiros.

Pedi a Sarah que fosse ao Brasil; pedi-lho em nome de todos os admiradores que deixou no Rio, os quaes de bom grado desejariam applaudil-a n’esse Hamlet que provocou tantas polemicas e fez cruzar o ferro homicida que ferio seriamente o seu grande amigo Catulle Mendes, o adoravel poeta, o contista delicioso da Jo, Zo, Lo; ouvil-a n’esse imperial Aiglon, que encontrou nella uma interprete verdadeiramente imperial; Sarah, porém, recusou, allegando recear que lhe succedessem aventuras mais graves que as de que foi victima quando ahi esteve, – o roubo que soffreu na sua viagem de 1893, e, ao que diz ella, um attetado, na de 1884, contra a vida de seu filho Mauricio, attentado a que o moço escapou por milagre.

– Não! não! exclamou supersticiosamente a ideal Gismonda – não affrontemos o destino! Quem sabe o que me poderá succeder a terceira vez? Tres é má conta!

E como eu insistisse discreta mas calorosamente, advogando a minha,isto é, a causa do publico fluminense, que não veio vel-a aqui nas suas magnificas encarnações, o Sr. Mauricio Bernhard, que estava presente, interveio dizendo:

– Minha mãe tem razão: não se deve tentar a adversidade, que é vingativa...

Declarei-me vencida, e abaixei os olhos para o meu prato – porque (ainda o não disse) eu estava á mesa da grande Phedra, que gentilmente me convidára para almoçar em sua casa.

– Em familia, minha cara, me previnia Sarah... e eramos dezesete!...Foi lá que tive a honra de ser apresentada á princeza Estrerka, sua nora,

– de beijar as suas mimosas netinhas, – e de apertar a mão ao filho que ella adora.

Entretanto, não perderei de todo a esperança, se conseguir pôr do meu lado o caprichoso e cavalheiresco Cyrano de Berjerac, que n’este momento figura no calendario do santos que invoco em favor dos “intellectuaes”

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fluminenses, que nem sempre apanharão um regalo d’estes – Coquelin e Sarah, Sarah e Coquelin.

Os proprios parisienses ha muitos annos – muitos! – não têm o prazer que esses igratos vão dar ao Novo Mundo, – e Paris foi o berço da sua arte, a embaladora do seu talento, o fóco do deu genio!

Emfim, se toda a America do Sul pudesse aproveitar esse passeio artistico, pois elles voltarão, disse-me Theodora, por Buenos-Aires, seria para desejar que parassem tambem no Rio de Janeiro, afim de que o Brazil tomasse parte na recompensa honorifica, que ella solicitou, de fazer ouvir em quasi todas as nações do mundo este claro e harmonioso idioma, que Corneille tornou tão heroico e Moliére espirituoso.”

Assisti (de parte) ao horrivel attentado de que foi victima o filho da gloriosa artista, que tem tanto de genial como de cabotine. Foi, á 1 hora da noite, depois de um espectaculo, no hotel do Louvre, onde hoje é o Derby-Club, á praça Tiradentes. Mauricio apanhou um simples cachação com que lhe corrigio certas demasias de linguagem um companheiro que estava á mesma mesa em que elle se achava entre rapazes e mulheres allegres. Tudo se remediou com alguns paninhos de agua e sal.

Não comprehendo as prevençõs que o espirito supersticioso da divina Sarah manifesta contra uma viagem ao Brasil, porque as aventuras que lhe succederam aqui são mutatis mutandis as mesmas que lhe têm succedido em toda a parte. Fóra do palco, o seu reperto é de uma pobreza franciscana.

*

Á falta de Sarah Bernhardt, contentemo-nos com Lucinda e Lucilia Simões, que alli estão, infelizmente por poucos dias, no Apollo, e, menos supersticiosas que a outra, promettem voltar ao Rio no seculo XX.

*

Está annunciada para hoje, no Recreio, a 1ª representação do vaudeville de Feydeau – Agencia de casamentos –, traduzido por Moreira Sampaio.

Ha quanto tempo não tinhamos uma primeira representação!A. A.

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O Theatro, 13/12/1900

Quando quinta-feira passada, das 8 1/2 horas da noite, entrei no Recreio Dramatico para assistir á primeira representação do vaudeville em 3 actos Agencia de casamentos,o actor Cesar de Lima, secretario da empreza, veio ao meu encontro e me perguntou amavelmente:

– Quer ir para um camarote?Esse offerecimento era mao signal: queria dizer que infelizmente o publico

tinha deixado ficar os camarotes na bilheteria.Acceitei, agradeci, e fui sentar-me contrariadissimo no meu logar, – sim,

porque não sei de cousa que mais me contrarie do que ver um theatro vasio, mormente em noite de primeira representação, – Pobre folhetinista! dirão os leitores aos seus botões, deve andar sempre contrariado!

E assim é. Quando se exhibe pela primeira vez, como n’aquella noite, uma peça de auctor universalmente applaudido, como Georges Feydeau, traduzida por um comediographo popular, como Moreira Sampaio, que tem, nos theatros do Rio de Janeiro, o record do successo, e representada por artistas que o publico habituou aos seus applausos, – quando se dão todas essas circumstancias, e não existe absolutamente motivo para suppor que se vá passar tres horas aborrecidas, revolta (é o termo), revolta ver o theatro vasio, porque a vasante é uma sentença sem appellação nem aggravo,e é absurdo, principalmente no theatro, condemnar sem ver nem ouvir.

Estava, pois, o theatro penosamente desguarnecido, e a maioria das espectadores compunha-se de pessoas que, como eu, não tinham pago a entrada: jornalistas, actores de outros theatros, amigos da empreza, credores, o cobrador do imposto do theatro Municipal, a policia, etc.

Sentada n’uma cadeira da primeira fila das varandas, com uma expressão de profunda melancolia no rosto ainda sympathico e outr’ora bello, como que a olhar para dentro si mesma e a rever-se no seu passado venturoso, estava a actriz Jesuina Montani, a viuva de De Giovani e de Peregrino,espectadora obrigada de todas as primeiras representações do Recreio.

Que mundo de recordações passava diante d’aquelles olhos que viam tanto?... que sensações agitariam aquella alma que já vibrou ao som de tantos applausos?...

A velha actriz lebrava-se, talvez, dos bons tempos em que os rapazes se dividiam em dous partidos, um que a applaudia e outro que applaudia a Orsal; lembrava-se, talvez, de João Caetano, que foi seu mestre; lembrava-se, talvez, de Peregrino, que a amou tanto,no palco e fóra do palco, e morreu nos seus braços de esposa, levado em pleno vigor do talento...

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Talvez não se lembrasse de nada d’isso; talvez pensasse mais no presente que no passado, pois é o presente que hoje mais inquieta os velhos artistas; entretanto, eu, contemplando-a aquella noite, pensava em tudo aquillo e dizia commigo, que a arte dramatica brasileira estava perfeitamente symbolisada n’aquella artista de outr’ora, melancolicamente sentada n’uma cadeira da primeira fila das varandas.

***

A peça de Feydeau é uma farça, uma farça engraçadissima, como elle as sabe fazer, e a traducção de Moreira Sampaio não lhe tirou um ceitil da sua graça; mas os artistas, que naturalmente já contavam com a falta de concurrencia, não se tinham dado ao trabalho de decorar os papeis, de modo que a representação, devendo ser muito viva e endiabrada, se resentio do desanimo que pesa no pessoal dos nossos theatros.

Quando o publico voltar – porque espero que volte – a Agencia de casamentos voltará tambem, representada como deve ser, isto é, com todo o entrain indispensavel aos vaudevilles do Palais-Royal.

***

Vale a pena dizer o que é a peça? Trata-se de tres parludios da mesma familia, tres irmãos – dous rapazes e uma rapariga – que, resolvendo mudar de estado, deixam a provincia, onde moram, e vão a Paris attrahidos pelo annuncio de uma agencia de casamentos.

Entretanto, por circumstancias as mais vaudevillescas, os pobres diabos, em vez da agencia que procuram, vão ter a outra, de alugar criados.

Esse é o ponto de partida de uma serie interminavel de situações que seriam inverosimeis se a peça não pertencesse ao genero a que pertence. Todos esses quiproquos fazem rir, rir deveras, e outra não foi a pretensão do auctor.

Basta dizer que os tres noivos passam, afinal, por doidos e como taes são mettidos n’uma casa de saude e submettidos ao regimen hydroterapico.

A rigor todos os personagens da peça poderiam igualmente passar por malucos, pois outra cousa não parecem; mas o publico (o publico! onde andará elle?) o publico, desarmado pelo riso,é de opinião que o engenho e a graça do auctor devem fazer com que sejam perdoadas todas as suas eatravagancias, e applaude.

***

Está a deixar-nos a companhia dirigida por Lucinda Simões e Christiano de Souza, a qual, não obstante a excellencia do repertorio, o louvavel cuidado

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com que os artistas o não desfiguram, e a variedade dos espectaculos, cujo programma é diariamente renovado, ainda não conseguio encher o Apollo.

Isto prova claramente que erra quem diz que o publico está farto das nossas companhias permanentes. A verdade é que actualmente o theatro é para o carioca um prazer dispendioso, “acima das suas posses”, como vulgarmente se diz.

Pois o publico póde lá fartar-se de uma actriz como Lucinda, unica em Portugal e no Brasil? Não creio, nem ninguem crê.

***

Entretanto, espero que amanhã o Apollo apanhe uma enchente: é o beneficio do Mattos, que se exhibirá na sua brilhante creação dos Amantes legitimos, em que interpreta, com admiravel intuição, um papel do jeux-beau parisiense, aristocrata e estróina. Num dos intervallos Chaby recitará alguns dos seus deliciosos monologos.

***

Por fallar em monologos:Não vem fóra de proposito notificar o apparecimento de uma curiosa

publicação theatral: Cançonetas e monologos, de Julio de Freitas Junior, o activo presidente e distincto amador do Elite-Club.

O auctor, que já fez as suas provas como poeta, não teve, ao produzir estas ligeiras e espirituosas composições, outra idéa que não fosse a de fornecer a alguns dos seus distinctos collegas de ambos os sexos, amadores do elegante theatrinho da rua Mariz e Barros, ensejo de revelar o talento comico de que são dotados.

Como nada se faz n’esta vida sem estudo, ainda mesmo as cousas mais insignificantes, Julio de Freitas Junior estudou a poetica do genero, e acertou. Se fosse parisiense, ganharia uma fortuna com esses trabalhos, que ferem justamente a nota popular.

E muito obrigado pela amavel e immerecida dedicatoria.A. A.

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O Theatro, 20/12/1900

Se algum dia, leitor, quizeres ter idéa exacta de um folhetinista embaraçado, imagina um pobre diabo, no Rio de Janeiro, na manhã de 20 de dezembro de 1900, transpirando por todos os póros, sentado diante de doze tiras de papel e obrigado a escrever um artigo intitulado O Theatro.

A semana foi eloquente. Parece que d’esta vez quebraram-se de todo as rodas do nosso carro de Thespis, e será muito difficil concertal-as. Ante-hontem e hontem não houve, hoje não ha um unico espectaculo theatral! Todos os theatros estão fechados, á excepção do S. Pedro, outra vez occupado por uma companhia equestre e acrobatica, vulgo de cavalinhos.

Quando, Senhor Deus de Misericordia, esse velho theatro historico, em cujo recinto ainda vibra o echo de tantas glorias passadas, deixará de ser ignobilmente vilipendiado pelos cavallos e outros animaes de circo?

Não esmoreça o digno prefeito do Distrito Federal no louvavel empenho, que já me revelou, de adquirir o S. Pedro para a municipalidade, libertando-o, de uma vez por todas, d’essas palhaçadas que o aviltam, que o desmoralisam, que o despem de todas a nobreza e de toda a dignidade das duas tradições.

Que jubilo será o meu na venturosa noite em que o S. Pedro, transformado em theatro Municipal, ostentando o seu novo titulo em dezesseis caracteres de fogo, abrir as portas ao publico fluminense, ávido de um espectaculo regenerador, em que se exhiba uma peça brasileira!

O proprio estado de definhamento a que chegou entre nós a arte dramática, longe de me descoroçoar, alenta as minhas esperanças. Essa clamorosa penuria não póde deixar de ser o prenuncio de uma reacção benefica. A phenix renascerá das proprias cinzas.

Defronte do velho theatro ergue-se agora, como um espantalho, o Moulin-Rouge, protestando contra qualquer velleidade de resurgimento artistico; mas que importa?... o resurgimento se fará, haverá um theatro dramatico no Rio de Janeiro!

D’esse Moulin Rouge é proprietario o Sr. Gaetano Segreto, cavalheiro que ha 20 annos conheço, e a quem estimo porque sempre o conheci activo, laborioso e honesto. Não o censuro pelo desejo, que tem, de levar agua ao seu moinho... vermelho, mas – com franqueza: em vez de transformar o Variedades num café cantante, não seria mais honroso fazer d’elle um verdadeiro theatro?... em vez de contractar cantores, dansarinas e pelotiqueiros de arribação, não seria melhor reunir os poucos artistas que ainda nos restam, e tentar um generoso esforço em favor do theatro?...

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O Sr. Segreto, dir-me-ão, é um negociante, um industrial, nada tem que ver com a litteratura nem com a arte. Responderei que não é tanto assim: a riqueza por elle accumulada teve origem na imprensa, e portanto, o Sr. Segreto deve ser um amigo, ou, pelo menos, um camarada de todos os intelectuais.

Todavia, quando mesmo o consideremos exclusivamente como homem de negocio, quem nos diz a nós que um theatro não lhe daria mais resultado que um café-cantante?

Entre nós, a industria theatral carece, justamente, de capitalistas que tenham elementos bastantes para impôr os espectaculos á confiança do publico. Este, desde que uma empresa parece luctar com difficuldades, immediatamente a desampara. Só prosperam as companhias cujos artistas estejam pagos em dia, as emprezas que não vivam de expedientes. Esta é uma verdade que não me tenho fartado de observar.

Estou, portanto, convencido de que se o Sr. Segreto, em vez de se fazer emprezario de um café-cantante, se fizesse um emprezario de um theatro onde em lingua portugueza se representassem peças bem escolhidas e bem postas em scena não teria que se arrepender d’esse acto, que, assim como assim [ps. is.] em protecção aos nosso artistas – ao passo que tornando-se emprezario do Moulin-Rouge, o Sr. Segreto, que aliás é tão boa pessoa, será por elles considerado inimigo, isto é, um industrial que lhes faz guerra, que lhe tira os meios de viver, que os esmaga, que os aniquilla.

Mas como o Sr. Segreto é um bom rapaz, ainda espero vel-o algum dia empenhado n’uma tentativa de theatro nacional.

Deixemos, porém, divagações a que a penna é naturalmente arrastada pela escassez dos assumptos, e lamentemos que a empreza do Recreio, não obstante a reducção do preço dos bihetes, não consiga das espectaculos todas as noites, como foi sempre costume no mais popular dos nossos theatros.

Pondo de parte todos os pretextos commumente invocados para justificação da crise theatral, o Recreio póde queixar-se um pouco de si mesmo. O caso é que, por motivos que ignoro e com os quaes nem o publico nem eu nada temos que ver, a companhia que alli trabalha não é precisamente um modelo de actividade.

Se o publico se mostra esquivo ás peças novas, é insensatez pretender attrahi-lo com um repertorio esfalfado. O victorioso Rio Nú já fez mais que a sua obrigação: de bom aviso é deixal-o descansar para uma reprise futura, em tempos mais felizes e opportunos.

A falta de concurrencia aos espectaculos da excellente companhia do Apollo póde ser também attribuida, em parte, á fadiga do repertorio.

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Felizmente está annunciada para sabbado uma peça nova de Coelho Netto. Intitula-se Fim de raça, tem apenas um acto, e provavelmente accrescentará mais um florão á corôa litteraria do primoroso estylista.

O espectaculo é em beneficio da grande actriz Lucinda Simões, que teve a delicada lembrança de offerecer a sua festa aos homens de lettras do Brasil. Dizem-me que n’um dos intervallos alguns artistas recitarão pequenos trechos, em que prosa e verso, dos referidos homens de lettras. Ahi está uma novidade que não deixa de ser graciosa e original.

Ignoro qual seja o complemento do espectaculo; a mim não se me dava de ver incluido n’elle o 2º acto dos Amantes, de Maurice Donnay, em que Lucinda tem um dos seus trabalhos capitaes, que tanta impressão me causou.

Mas, seja o programma qual fôr, o Apollo depois d’amanhã será pequeno para conter todos os admiradores da primeira actriz da lingua portugueza.

***

O nosso compatriota Sr. J. M. Cardoso de Oliveira, que há muitos annos reside na Europa, enviou-me de Paris um exemplar do seu drama em 5 actos Le Gouffre.

A peça nunca foi representada e o auctor declara, n’uma nota, que a publica por motivos particulares.

Pois é pena que não tivesse affrontado as luzes da ribalta: produziria, estou certo, muito effeito, porque incontestavelmente o auctor possue a virtude que Sarcey chamava le sens du théâtre.

O drama, sem ser socialista (antes pelo contrario) passa-se entre operarios, e poderia intitular-se As más companhias. Trata-se, effectivamente, de um rapaz, Marcel Lorgeau, que é desencaminhado, por suggestões de ruins camaradas, a ponto de esquecer o trabalho e a familia; mas volta, no fim da peça, regenerado e feliz ao lar domestico. Todo o drama é escripto com grande elevação moral.

N’aquelle terreno exploradissimo, a peça não poderia ser completamente original, mesmo quando fosse escripta por um genio: faz lembrar vagamente Maria Joanna, ou a mulher do povo, de Dennery, e o incomparavel Assommoir, de Zola; entretanto, e sem fazer cabedal da linguagem um pouco rhetorica e affectada com que o dramaturgo faz fallar os seus personagens, o Sr. Cardoso de Oliveira revela talento pessoal no amanho dos effeitos e das situações, algumas das quaes tem grande intensidade dramatica, e os caracteres são bem desenhados e bem sustentados.

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O engenhoso auctor publica a opinião que sobre o seu drama externaram, epistolarmente, tres actrizes famosas, uma das quaes, a Jane Hading, promette dar-lhe conselhos. Ora, não me dirão que fará o Sr. Cardoso de Oliveira dos conselhos da Jane Hading?

A. A

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O Theatro, 27/12/1900

A companhia dramatica dirigida por Lucinda Simões e Christiano de Souza deu o seu ultimo espectaculo domingo, e esse espectaculo foi o mesmo da vespera, realizado em beneficio da illustre actriz empresaria.

Quem sabbado fosse ao Apollo, ficaria muito admirado de o encontrar vasio: o espectaculo era offerecido aos homens de lettras do Brasil, e, não havendo terra como a nossa que tenha tantos homens de lettras, eram estes suficientes para encher o theatro, se lá fossem. Mas não foram, ou por outra, fizeram-se representar por tão reduzido numero de poetas e prosadores, que a beneficiada necessariamente se susceptibilisou, por ver tão mal correspondida a sua amabilidade.

Havia outro motivo, e quiçá (ha quanto tempo eu não empregava este adverbio!) e quiçá mais poderoso para que os homens de letras estivessem todos a postos: representava-se uma comedia original de Coelho Netto, – uma comedia em 1 acto, Fim de raça, em que o insigne escriptor nos fez sorrir á custa de uma baroneza que, para assegurar a perpetuidade do sangue depauperado da sua familia, quer unir uma sobrinnha, derradeira vergonha da sua arvore genealogica, a um brutamontes,inventado para aproveitar o physico abundante do estimado Chaby.

Escusado é dizer que a sobrinha gosta de outro homem; gosta do Dr. Maldonado, que consegue desmoralisar aos olhos da baroneza o desejado genro, e inculcar-se como o salvador da raça ameaçada.

A baroneza deixa-se convencer, apezar das saliencias osteologicas e da calvice precoce do medico enfezado, e a comedia acaba em casamento, como todas as comedias que se prezam.

Chaby agadou muito no papel do hercules, que se chama Talgaldabás, como o heróe de Vacquerie, mas é conhecido por Tragaldabus, para se não confundir com um irmão, que é tambem Tragaldabás. Lucinda (a baroneza), Lucilia (a sobrinha) e Christiano (o medico) não sabiam os seus papeis; os maos exemplos pegam.

A comedia fez rir, mas o publico decidamente não estava em maré de applausos. Todo o espectaculo correu frio; os espectadores só se animaram um poucochinho para applaudir uns bellos versos de Olavo Bilac, muito bem recitados por Lucilia Simões,que eu desejara ouvir n’uma comedia em verso.

As demais composições que figuraram n’um intermedio litterario – interessante novidade que não levou ninguem ao theatro – foram applaudidas como que por condescendencia.

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Entre esse intermedio e a peça nova de Coelho Netto foram representados o 3º acto de Demi-monde, de Dumas Filho, e o 2º acto dos Amantes, de Maurice Donnay.

Não admira que esse fragmento do Demi-monde não acquecesse a platéa, com o Mattos, o nosso pobre Mattos mettido a martelo no papel de Raymond de Najac (e foi nesse personagem que o eximio comico se estreou em Buenos-Aires!) e o discreto Christiano a lutar com a sombra formidavel de Furtado Coelho,que levou comsigo para o tumulo o unico interprete do papel de Olivier de Jalin em lingua portugueza.

Mas o que não me soffre a paciencia, é que o 2º acto dos Amantes, tão primorosamente representado, fosse recebido com a mesma frieza que o 3º acto do Demi-monde. N’esse acto, escripto com uma intensa observação da vida humana, com uma philosophia digna de Molière. Lucinda, muito bem acompanhada por Christiano (ahi, sim, senhor!) e Chaby, eleva-se a uma altura onde só pairam os privilegiados da arte.

Não sei se foi devido a uma pequena insinuação do meu ultimo folhetim que ella incluio esse acto no programma da sua festa, em todo o caso, agradeço-lhe o prazer que o seu talento mais uma vez me proporcinou, e folgo de que ella nos dissesse adeus (talvez para sempre), deixando-nos uma impressão definitiva e clara da sua arte.

Na scena da reconciliação, quando, arrufada, com a cabeça escondida no enconsto do divan, ella offerece, sem offerecer, a mão ao amante, para que elle a aperte ou a cubra de beijos, tive impetos de levantar-me da cadeira em que estava sentado, e applaudil-a por mim e por toda a população fluminense.

Ninguem á applaudio, e o acto acabou timidamente saudado por umas palmas discretas, n’aquelle mesmo theatro em que, não ha muito tempo, se faziam estrondosas ovações á actriz Libania.

***

As livrarias do Rio de Janeiro receberam, afinal, L’aiglon, de Edmond Rostand. O exemplar que me coube traz na capa: Cinquantième mille. Foi um successo de theatro: é um successo de livraria.

Confesso que estava previnidissimo contra a obra, não obstante as 200 representações consecutivas que obteve num enorme theatro. A critica parisiense não se mostrou enthusiasmada pelo Aiglon, e poz-me a pedra no sapato.

Pois, senhores, a leitura da peça, que tem 6 actos, arrebatou-me pelo menos até o 4º, o 5º e o 6º pertencem mais ao scenographo e ao enscenador que ao poeta. O sonho do duque de Reischstadt no campo de Wagram pertence

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mais ao dominio da magica do que ao do drama, e faz lembrar – não sei porque – as sombrinhas napoleonicas de Caran d’Ache, no Chat-Noir.

Mas desde o principio da peça até o meio do 5º acto o leitor vai tropeçando de belleza em belleza, e estou quasi a dizer que com mais frequencia que em Cyriano de Bergerac. As bellas imagens, os bellos versos, as bellas rimas succedem-se tumultuariamente, enchendo os ouvidos de uma harmonia deliciosa.

É pena que o poeta abuse, mais do que nas suas outras peças, das cisuras revolucionarias, desfigurando muitos d’aquelles magnificos alexandrinos, mas é moda, e contra o despotismo da moda não valem protestos. Quando elle tiver mais 10 annos, talvez se resolve a articular os seus hemistichios à moda antiga, que é a melhor.

Releva notar que, como peça historica, L’aiglon difficilmente resistirá a uma analyse, e o mesmo já se podia dizer de Cyrano, que era – começa por ahi – parisiense e pão gascão. O rei de Roma, de Rostand, é um personagem de pura fantasia, que não se approxima, nem de longe, da reles e pouco interessante realidade.

Mas que me importam anachronismos, que me importa a Historia diante de tantos arroubos, de tanta verve, de tanta espontaneidade e de tanta intuição do theatro? Esse admiravel jongleur de rimas me diverte e me extasia tanto, que lhe perdôo o seu Metternich e o seu Francisco II.

Rostand é uma maravilhosa mistura de Scarron, Regnard, Marivaux, Beau-marchais, Victor Hugo, Dumas Pae e Theodore de Banville: foi fadado no berço por todos esses grandes espiritos da poesia e do theatro; é um predestinado.

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Este é o meu ultimo folhetim do anno... e do seculo; quinta-feira proxima publicarei, como nos annos transactos, a estatistica dos nossos theatros durante os 365 calamitosos dias de 1900.

Desejo aos meus leitores muito boas festas.A. A.