09 cronicas 1902

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1902

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O Theatro, 02/01/1902

A morte de Frederico de Barros foi uma surpresa para todos os seus amigos. Em setembro elle despedira-se de mim, dizendo que voltava para o Amazonas, onde já estivera,e effectivamente partio. Suppunha-o pois em Manáos, quando li a noticia do seu fallecimento n’esta capital. Elle regressára ferido de morte pelo paludismo.

Era um scenographo superior á sua fama. Tinha talento, não tanto, é verdade, quanto deve ter quem pertence á raça negra, mas tinha-o. Filho da Academia de Bellas-Artes, desenhava com certa correcção e era feliz na paizagem brasileira, que via e sentia com olhos de artista.

Alguns scenarios não lhe sahiam bons, porque elle os pintava á ultima hora, apertado pelos emprezarios. A preguiça era o seu unico defeito. Raramente dava o trabalho prompto para o ensaio geral, e algumas vezes aconteceu faltar com elle na propria noite da primeira representação. Isto naturalmente indispunha contra elle os emprezarios, que so lhe encommendavam alguma cousa quando de todo não podiam recorrer a outro scenographo.

O pobre Frederico, valha a verdade, não se queixava, e era o primeiro a censurar a sua propria mandrice, – Que querem? dizia elle philosophicamente, – cada um tem o seu feitio; o meu feitio é este!

Trabalhava mais barato que os seus grandes collegas, quasi tão barato como o Camões, o Carrancini dos pobres; e, quando não lhe pagavão, não punha a bocca no mundo. Pobre Frederico.

Era um dos homens de theatro menos mal dizentes que tenho conhecido: nunca falhou com um adjectivo agradavel para o trabalho dos outros scenographos.

Foi sempre muito bom para a sua familia e nunca foi máo para ninguem. Agora, que morreu, hão de reconhecer que valia alguma cousa, porque depois da morte não ha negros nem brancos. Os esqueletos têm todos a mesma côr.

***

Na Cidade de Campinas, de 22 do mez passado, encontrei um artigo que me vai fornecer alguns dados biographicos do fallecido Elias Lobo, os quaes completarão a ligeira noticia contida no meu penultimo folhetim.

O mallogrado compositor nasceu em Itú, a 9 de Agosto de 1831; era filho de José Manuel Lobo e D. Thereza Xavier de Jesus. Ainda muito criança, perdeu o pae, e ficou sob a protecção do illustre Diogo Antonio Feijó, que lhe mandou ensinar musica.

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Apenas entrou na maioridade, casou-se com D. Elisa da Costa, de quem houve doze filhos, dos quaes são vivos seis.

Em 1860, veio para o Rio de Janeiro, trazendo comsigo a sua Noite de S. João, que n’esse mesmo anno foi cantada cinco vezes no Provisorio, pela companhia de opera nacional, da qual era emprezario D. José Amat.

No anno seguinte compoz outra opera, a Louca, libretto de Achilles Varejão, a qual deveria ser executada por occasião de se inaugurar a estatua de Pedro I, e o não foi por ignorados motivos. Elias Lobo contava com o producto da recita de auctor para ir á Europa aperfeiçoar os seus estudos; roubaram-lhe, porém, a partitura, e elle, deseperado, desistio de uma viagem que tanto influiria no seu futuro.

Entretanto, a peça foi depois encontrada; a prova d’isso é que se acha no Archivo Publico. A protophonia da Louca foi executada em 1893 pela orchestra da companhia Ferrari.

Desgostoso, voltou Elias Lobo para S. Paulo, onde se fez professor de piano e canto. Esteve algum tempo em Itú, estabeleceu-se em 1875 em Itatiba, em 1878 em Campinas, e em 1886 na capital onde falleceu.

Em 1875 publicou Methodo de musica e em 1896 uma Arte musical em dialogo, que figuraram no Congresso Universal de Musica reunido em Paris em 1900.

N’aquelle mesmo anno de 1875 começou terceira partitura de opera sobre um libretto de Carlos Ferreira, intitulado Sacrificio de amor, mas não concluio esse trabalho.

Em 1883, achando-se em Campinhas, enviuvou,contrahindo segundas nupcias, no anno seguinte, com D. Isabel de Arruda. D’esse matrimonio deixou seis filhos, o ultimo dos quaes conta apenas quatro annos.

Depois de proclamada a Republica, deram-lhe um emprego na Escola Modelo Maria José, de S. Paulo. Foi esse o unico beneficio que Elias Lobo recebeu dos poderes publicos.

Além d’aquellas duas operas, o maestro deixou duas grandes oratorias,a do Carmo, executada em Itú, em 1864, e a do Natal, executada em Campinas, em 1883, por occasião de se inaugurar a Matriz Nova. Deixou tambem outras composições sacras, entre as quaes 13 missas, sendo a mais popular a de São Pedro de Alcantara.

***

Outro morto que interessa a esta secção é Henry Fouquier, o eminente homem de lettras que a França acaba de perder, o fundador e professor da Escola dos Jornalistas, o illustre critico theatral que substituio Albert Wolff e

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Auguste Vitu no Figaro e Francisque Sarcey n’aquella curiosa e documentada revista Le théâtre, que nos regala duas vezes por mez; o pae de Mlle. Fouquier, a esperançosa ingenuasinha que passou como um meteoro pelo palco da Comédie Française.

Fouquier não era um dramaturgo, entretanto, extrahio, com Fabrice Carré, uma peça do Romance de uma conspiração, de Ranc, representada em 1895 no Ambigu, e escreveu um drama, O modelo, que no anno seguinte foi representado no Odéon. N’esse drama teve por collaborador Georges Albert, conhecido pelo anagramma Bertal, um dos auctores do Principe da Bulgaria, com que hontem inaugurou os seus trabalhos no Lucinda, a empreza de Cenira Polonio.

***

Que dizer d’esse Principe? Falle o meu collega dos Palcos e Salas. Como sou um dos traductores da peça, poderei parecer suspeito. Entretanto, seja-me licito dizer que á vista do cuidado com que a peça foi posta em scena e representada, parece ter havido por parte da nova empreza o desejo de se mostrar digna da protecção do publico.

***

Drama portuguez que mais vezes tem sido, talvez, representado no Rio de Janeiro, a Morgadinha do Valflor acaba de ter mais um reprise pela companhia Dias Braga.

No papel da protagonista confirmou Lucilia Perez o bom juizo que a seu respeito mais de uma vez tenho externado n’estas columnas. Ante-hontem o meu collega dos Palcos e Salas fez-lhe inteira justiça: Lucilia é, actualmente, a nossa primeira actriz dramatica.

No papel de Luiz Fernandes reappareceu Eugenio de Magalhães, que ha muito tempo não nos dava um ar de sua graça. É sempre o mesmo artista sympathico e vibrante.

Não assisti a nenhum dos espectaculos da despretenciosa companhia lyrica do Apollo, em cujo elenco figura o velho Athos, barytono que já teve n’esta capital o seu momento de celebridade.

A um amigo que lá esteve, e é muito entendido em musica, perguntei que impressão lhe causára a companhia, e elle me respondeu: – “É barato.” Não houve meio de lhe arrancar outra critica.

***

No proximo folhetim publicarei a estatistica dos espectaculos realisados nos theatros do Rio de Janeiro, durante o anno de 1901.

A. A.

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O Theatro, 09/01/1902

A nossa estatistica theatral de 1901 não póde ser mais desanimadora.Realisaram-se nos theatros d’esta capital apenas 865 espectaculos (menos

167 que em 1900, menos 262 que em 1899, menos 451 que em 1898, menos 371 que em 1897, menos 811 que em 1896, menos 952 que em 1895); os quaes vão discriminados no seguinte quadro:

Teatros/ Mês

Recreio Apollo Lucinda S. Pedro Sant’Anna Lyrico

noite/dia noite/dia noite/dia noite/dia noite/dia noite/dia

Janeiro 15 4 0 0 3 2 0 0 0 0 0 0

Fevereiro 17 3 0 0 7 2 0 0 0 0 0 0

Março 17 2 0 0 6 0 12 2 1 0 0 0

Abril 16 2 0 0 13 2 7 2 0 0 0 0

Maio 14 3 24 4 13 3 16 3 1 0 0 0

Junho 12 1 26 5 12 2 3 1 2 0 0 0

Julho 5 0 29 4 7 0 2 0 3 0 3 1

Agosto 23 3 28 3 3 0 23 3 3 0 14 1

Setembro 14 2 25 0 5 0 18 2 9 1 12 4

Outubro 14 3 31 4 (n.i.) 0 13 2 26 3 1 0

Novembro 23 4 21 4 1 0 7 1 11 3 0 0

Dezembro 25 6 13 3 2 0 1 1 1 0 0 0

Total 228 226 136 122 63 39

865

Convem observar que n’esses 865 espectaculos estão incluidos alguns que nada têm que ver com a arte dramatica.

O theatro foi, como se vê, absorvido pelo cafe-cantante, o que aliás não me desespera nem me desalenta, porque como ja tenho dito mais de uma vez, no Rio de Janeiro ha publico para tudo.

Segue-se a nomenclatura, por ordem alphabetica, das peças representadas durante o anno, com o numero das representações ao lado do titulo, que será impresso em italico todas as vezes que se tratar de producção nacional ou estrangeira, exhibida pela primeira vez n’esta capital.

Dividindo convenientemente os generos, comecemos pelas

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Oper asAfricana, 1; Aida, 2; Barbeiro de Sevilha, 1; Bohemia, 11; Carmen, 3;

Cavalleria rusticana, 10 sendo em italiano e 6 em hespanhol; Dr. gon[p. i.] de Villars, 1; Ernani, 3; Fausto, 2; Gioconda, 3; Guarany, 5; Hebréa, 1; Huguenontes, 3; Lucia, 2; Manon Lescaut, 3; Mephistofeles, 3; Mignon, 2; Palhaços, 3; Rigoletto, 1; Saldienes, 3; Schiavo, 2; Tosca, 1; Traviata, 2; Trovador, 5.

Dr amas e ComediasAdriana Leouvreur (em ital.), 1; Agencia de casamentos, 1; Ah! era a

cosinheira! (ital.), 1; A alegria causa medo, 1; Ama secca, 6; O amor de um padre ou a inquisição de Roma, 1; Amor pela arte, 2; Amor por annexins, 2; Anjo da meia-noite, 19; Apostolos do mal, 1; Apuros de Lulu, 1; Armario e porta (ital), 1; Badejo, 1; Batalha do Bussaco, 2; Bella bexigosa, 4; Blanchette, 5; Bocca do inferno, 6; Cabana do pae Thomaz, 5; Casamento por amor, 1; Casamento singular, 1; Casa paterna (ital.), 1; Castello do Diabo, 2; Causas e effeitos (ital.), 1; Cautella com as mulheres, 1; Cavalheiro particular, 2; Cavallaria rusticana, 2; Chavena de chá, 1; Comboio n. 6, 6; Come le foglie, 2;Commissario de policia, 2; Conde de Monte-Christo, 11; Uma consulta, 2; Coraly & C., 16; Cozinheiro e secretario (ital.), 2;A culpa dos paes, 4; Cyrano de Bergerac (ital.), 3; Dama das Camelias (ital.), 2; De caixeiro a marquez, 1; Demi-monde (ital.), 1; O dente canino (idem), 1; De Petropolis a Paris, 5; Diana de Lys, 6; Diabo atraz da porta, 1; Dyonisio (ital.), 1; Doida de Montmayor, 2; Doidos com juiso, 9; Domador de feras, 2; Dom Sebastião, 2; Dom Pedro V, 1; Dona Ignez de Castro, 4; Dora, (ital.), 1. Dous bebes, 1; Dous proscriptos, 4; Drama do povo, 3; Duas orphans, 4; E durma-se com um barulho destes, 1; Electra, 31, sendo 29 em portuguez e 2 em hespanhol (18 no Lucinda, 8 no S. Pedro, 3 no Recreio e 2 no Sant’Anna); A emancipação das mulheres, 2; A espada do general, 1; O escondrijo (ital.), 1; Estranguladores de Paris, 2; Fedora (ital.), 1; Fé, esperança e caridade, 2; Felicidade no lar (idem), 1; Fernanda (idem), 1; Filha do mar, 6; Fiscal dos wagons-leitos, 3; Forca por forca, 9; Francezes em Portugal, 2; Fronteiro d’Africa, 1; Frou-frou (ital., 1; Gioconda (idem), 1; a Honra (idem), 1; Ir buscar lan..., 1; Irmãos das almas, 4; Jack, o estripador, 3; João José, 7; José do Telhado, 2; Juramento de Horacio (ital.), 1; Juramento do celibato (idem), 1; Judas em sabbado de aleluia, 1; Ladrões do mar, 7; Lagrimas de Maria, 1; La locandiera, 1; A loteria (ital.), 1; Lucas que chora e Lucas que ri, 1; Madame Sans-Gène (ital.), 3; Mãe dos escravos, 1; Maldita carteira! maldito capote! 1; Maria Antonieta (ital.), 2; Maria da Fonte, 2; Mestre de dansa, 1; Mestre de forjas (ital.), 1; Morgadinha de Valflor, 5; Morreu o Maciel, 1; Morreu

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o Oliveira, 1; Mosquitos por cordas, 1; Mulher de Claudio, 1; Musotte (ital.), 1; Não é elle, 2; Noite em claro, 1; Nono, não desejarás, 1; Occaso do sol (ital.), 1; Odette (id.), 1; Olho vivo, companhia de seguros contra ladrões (Robert Macaire), 2; Paralytico, 6; Paulo e Virginia, 1; Pedr’Alvares Cabral, 7; Pedro, 1; Pedro Sem, 1; Pena de morte, 1; A Perola, 3; Piperlin, 2; Pobre das ruinas, 2; Pobreza, Miseria & Companhia, 4; Poder do Ouro, 2; Uma prova de consideração, 1; Quem é o pae da criança?, 3; Remorso vivo, 3; Romeu e Julieta (ital.), 1; Rua do Nuncio, 28, 1; A segunda mulher (ital.), 1; Seis degráos do crime, 4; A senhora está deitada, 2; Um senhor excepcional (ital.), 1; Sinero de S. Paulo, 2; Sub-prefeito, 3; Supplicio de uma mulher, 1; La toga rossa, 1; Tomada da Bastilha, 2; Tosca (ital.), 2; Toupinel que chora e Toupinel que ri, 4; Tragedias d’alma (ital.), 1; Tres coiós, 7; Trinta botões, 1; Typo brasileiro, 1; Viagem á Turquia, 2; Vinte e nove, ou honra e gloria, 3, sendo 1 por amadores; Viuva das Camelias, 2; Zazá, 15, sendo 2 em ital.; Zé Palonço, 2.

Oper etas, Zar zuelas, Magicas e R ev istasAnnel de ferro (em hesp.), 3; Alto-mar (id.), 2; Barba-azul, 5; Bella Helena

(em fr.), 2; Boccaccio, 8, sendo 6 em port. e 2 em fr.; Boneca, 16, sendo 12 em port. e 4 em fr.; Cabo primeiro (hesp.) 3; Capitão Thereza, 7; Capital Federal, 8; Casamento de Nitouche, 1; Certamen nacional (hesp.), 1; Chateau Margaux, (id.) 6; Comici tronati (id.), 2; O coração e a mão (fr.), 1; o Diabo no Paraiso, 6; Dia e noite, 2, 1 em port. e 1 em fr.; Duetto da Africana (hesp.), 5; L’enélvement de la Toledad, 1; En los cuernos de la luna,2, Espadelada, 2; Filha de Mme. Angot (fr.), 1; Filha do tambor-mór (id.), 1; Giroflé-giroflá, 9; Le Grand Mongol (fr.), 1; Gran Duqueza de Gerolstein,5; Gran via (hesp.),6; Guerra Santa (id.),1; Inana, 34; José João, 3; Jugar com fuego, 2; Madgyares, (hesp.), 1; Mam’selle Nitouche (fr.), 1; Marcha de Cadiz (hesp.), 12; Marina (id.), 6; Marselhesa (id.), 3; Mascotte (fr.), 3; Milagres de Santo Antonio, 4; Milagres de S. Benedicto, 2; o Millionario, 1; Miss Helyett (fr.), 3; Mosqueteiros no convento (id.), 2; Uma noite em Veneza, 6; Noivado de Merluchet, 4; Orpheu (fr.), 2; Pera de Satanaz, 19; Perichole, 10, sendo 1 em fr.; Petit Duc (fr.), 2; Rei que damnou (hesp.), 3; Relogio de Lucerna (id.), 1; Rio-Nú, 8; Rip-Rip (fr.), 1; Sino do eremiterio, 11; Sinos de Corneville, 10, sendo 1 em fr.; Sobrinhos do capitão Grant (hesp.), 5; Solar dos Barrigas, 13; Surcouf, 10, sendo 2 em fr.; Talvez te escreva, 26; Tambor de granadeiros (hesp.), 2; Tempestade (id.), 4; Tentações de Santo Antonio (id.), 3; Testamento da Velha, 14; Vento em pôpa, 1; Verbena de la Paloma, 1; Viagem de Suzette, 17, sendo 5 em fr.; 28 dias de Clarinha (fr.); Volta do mundo em 80 dias, 11.

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Não tomei nota de algumas representações de comedias e operetas em 1 acto, realisadas no Alcazar-Parque e na Guarda-Velha: Mestre de dança, Cavalheiro particular, Coco Bel-oeil, Lichen et Fritzchen, le Violloneux, etc.

***

Nenhuma novidade nestes ultimos dias.A companhia lyrica do Apollo despedio se á franceza: no Recreio fez-

se uma interessante reprise do Filho de Coralia; e no Lucinda o Principe da Bulagaria tem-se mostrado bon prince.

A. A.

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O Theatro, 16/01/1902

Deveria ter sido inaugurado hontem, pela empresa Cenira Polonio, com uma representação do Principe da Bulgaria, o theatro do Parque Fluminense, construido pelo Sr. Paschoal Secreto.

Comquanto airoso e elegante, o novo edificio, cuja descripção appareceu já em todos os jornaes, não é mais nem menos theatro que o Apollo, o Recreio, o Lucinda, o Sant’Anna, o Eden-Lavradio e o Variedades, hoje convertido em café-cantante. O nosso unico theatro, verdadeiramente theatro, continúa a ser o S. Pedro. O proprio Lyrico, por mais que o atamanquem, não consegue disfarçar o seu aspecto de hippodromo.

Infelizmente, a chuva, que cahiu quasi á hora do espectaculo, acompanhada de fortes descargas electricas, não deixou realisar-se aquella representação, que ficou transferida para amanhã. Entretanto, como deixasse de chover, muitas pessoas foram ao Parque Fluminense: encontraram o portão fechado e o estabelecimento ás escuras. Fui eu um d’ellas.

***

Uma representação theatral no largo do Machado é uma tentativa de descentralisação que me sorri. Não se me dava de ver em cada arrabalde d’esta cidade um theatro onde de vez em quando houvesse espectaculos publicos. Ganhariam com isso tanto os moradores d’esses arrabaldes como os emprezarios theatraes.

O systema apresenta, bem sei, um grande incoveniente: a remoção dos scenarios, que não é barata nem convem á sua conservação; todavia, se fossem reaes as vantagens, valeria a pena haver scenarios de sobresalente, inamoviveis.

Isto mesmo disse eu quando ha alguns se construio um theatro no campo de S. Christovão, bairro populoso que poderia, se quizesse, manter uma companhia dramatica. Fez-se uma experiencia, mas em tão más condições, que não deu resultado ou o deu negativo, e foi quanto bastou para que nunca mais se renovasse. Creio até que o theatro foi demolido.

Uma das causas do afastamento do publico dos nossos theatros,são as massadas a que obrigam as difficuldades de conducção. D’antes, para evitar a demora do bond, as familias voltavam de carro, os cavalheiros de tilbury, e isso não lhes custava um grande sacrificio. Hoje, só as pessoas abastadas podem rouler voiture; os cocheiros de praça tornaram-se de uma exigencia feroz e sustentam que depois de certas horas da noite não ha tabella: o preço é o que eles quizerem – e não ha nada mais desagradavel que discutir com cocheiros.

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Não ha muito tempo, tendo eu perdido o ultimo bond de Santa Theresa, um d’elles teve o descoco de me pedir cincoenta mil réis para trazer-me á casa. Escusado é dizer que vim a pé.

Uma severa regulamentação do serviço nocturno das carruagens seria um bom serviço prestado aos theatros, e aos proprios cocheiros, que teriam mais trabalho e portanto maior lucro.

Demais, os arrabaldes do Rio de Janeiro já não são o que eram aqui ha dez ou quinze annos: todos elles têm hoje as suas diversões especiaes, e os respectivos moradores divertem-se mesmo sem ir á cidade.

Palpita-me, portanto, que os nossos artistas não perderiam nada,trabalhando uma vez por outra longe da praça Tiradentes, ora n’este, ora n’aquelle arrabalde, tal qual como fazem as companhias de circo.

***

O incansavel dramaturgo Fonseca Moreira, auctor de vinte dramas, comedias, magicas e peças-sacras, representadas umas e outras não, mas todas impressas e correndo mundo, acaba de publicar um drama fantástico em 1 prologo, 3 actos e 17 quadros, intitulado a Passagem do Mar Vermelho, tal qual o famoso quadro do bohemio de Murger.

“Muito se tem escripto com referencia á passagem do Mar Vermelho, diz Fonseca Moreira n’um erudito prefacio; a ultima palavra ainda depende de quem, compulsando com mais attenção os archivos, investigando a historia, dê melhor côr ao quadro,que é um dos maiores acontecimentos que se têm operado nos destinos da humanidade.”

E o prefacio termina assim:“Escrevendo a Passagem do Mar Vermelho, o nosso intuito foi trazer para o

theatro os episodios mais salientes do grande propheta (Moysés) e desenrolar á luz do proscenio as peripecias que se operaram n’essa terra legendaria do Egypto, que foi, por assim dizer, o berço da civilisação, do progresso e da sciencia.”

Esses dous trechos do prefacio bastarão, creio, para fazer com que o leitor se muna quanto antes de um exemplar da Passagem do Mar Vermelho, que lhe offerecerá sem duvida leitura muito interessante.

Fonseca Moreira, que gosta muito de metter diabos em scena, como fez nos Filhos do céo, nos Filhos do purgatorio e nos Filhos do inferno, mette uns poucos n’esta nova producção, e põe de sucia Plutão com Satanaz, para o que lá tem as suas razões, que eu respeito.

Não haverá ahi um emprezario arrojado que se atreva a enscenar a Passagem do Mar Vermelho? Estou certo de que o dramaturgo, dispondo,

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como dispõe, de recursos pecuniarios (e é essa uma das originalidades do seu talento), concorrerá, segundo o seu costume, para a enscenação da peça.

Terminando, chamo a attenção dos leitores para a singularidade d’esse negociante que se fez dramaturgo, n’uma quadra em que os dramaturgos lamentam não serem negociantes.

***

O ultimo correio da Europa trouxe a noticia do fallecimento do comediographo parisiense Albert de Saint-Albin, que teve a honra de collaborar com Meilhac nas peças Monsieur l’Abbé (1891) e Leurs gigolettes (1893), representadas ambas no Palais-Royal.

Saint-Albin não foi precisamente um homem de theatro, mas um jornalista sportivo (era elle o Robert Milton do Figaro); por isso, nunca escreveu sem o auxilio de outro dramaturgo mais experimentado.

A sua primeira peça, Le manoir du Pic Tordu, opereta posta em musica por Serpette e representada em 1875, foi escripta em collaboração com dous mestres do genero, Crémieux e Nuitter, e com um jornalista de muito espirito, Arnold Mortier, o famoso Monsieur de l’orchestre do Figaro. Em outras peças collaborou com Prével, Hannequim, Gondinet, Blum e Raymond. A ultima foi a opereta Panungé, escripta com Meilhac, posta em musica por Planquette e representada com exito em 1895.

Ha muito tempo Saint-Albin estava calado: os seus companheiros habituaes haviam todos morrido, á excepção de Blum, que era, talvez, o menos prestimoso...

De Saint-Albin representaram-se no Rio de Janeiro duas peças, ambas traduzidas por Figueiredo Coimbra e Azeredo Coutinho: a primeira foi a comedia em 4 actos, o Trem de recreio, escripta com Hannequin e Mortier, e exhibida no Principe Imperial, depois Variedades, e hoje Moulin-Rouge, em 1888, pela companhia Guilherme da Silveira, e a segunda o Grande Casemiro, vaudeville em 3 actos, escripto com Prével, musica de Lecocq, foi exhibida, em 1898, no Rereio Dramatico, pela companhia de que era emprezario o actor Brandão.

***

Dizem telegramas de Italia que se acha gravemente enfermo, em perigo de vida, o grande tragico Giovanni Emmanuel, tão applaudido e festejado nesta capital. Ahi está uma noticia que não póde deixar de contristar o publico fluminense.

A. A.

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O Theatro, 23/01/1902

A Companhia Dias Braga fez uma interessante reprise do Naufragio da fragata Medusa, de Dennery e Desnoyers, dramalhão maior de sessenta annos.

Se me não engano, foi esta a mais fructuosa das ultimas reprises do Recreio, pois que deu sete boa representações seguidas. Isto prova que o publico fluminense não antipathisa de todo com as velharias, e que o defunto Dennery não perdeu ainda a sua antiga preponderancia.

A dar credito aos chronistas do tempo, o grande exito que a peça obteve em 1839, quando representada pela primeira vez no Ambigu, de Paris, foi devido, principalmente, á reproducção de dous quadros,A passagem do Tropico, de Biard, e A jangada da Medusa, de Gericaul. Do primeiro, exposto no Salon de 1834, já ninguém fala; não se sabe que fim levou; o segundo está no museu do Louvre, e é uma das telas mais gloriosas da escola franceza.

O nosso publico é menos exigente que o de Paris; a peça agrada-lhe, comquanto aquelles dous quadros não sejam, no Recreio, a reproducção exacta de duas pinturas celebres.

Lembra-me de ter visto a peça representada no Maranhão, quando eu era criança, e lembra-me tambem que o maior successo da representação consistia, não na reproducção, mais ou menos artistica, de qualquer quadro, mas n’uma famosa “dansa do coco”, introduzida no acto da passagem da linha, com o concurso de vinte ou trinta garotos apanhados na rua, e musica de Francisco Libanio Colás.

Agradou tanto essa dansa, que, depois de se ter ido embora a companhia, de que era empresario o saudoso Vicente Pontes de Oliveira, armaram um tablado no largo dos Remedios, afim de que os mesmos garotos do theatro a executassem todas as noites, durante as novenas da grande festa de arraial que alli se realisava todos os annos. E posso afiançar-lhes que a “dansa do coco” foi o clou da festa.

***

No mesmo theatro (refiro-me ao Recreio) ensaia-se activamente a peça de grande espectaculo que Eduardo Victorino extrahio de Quo vadis, – um desses livros que de vez em quando apparecem, como a Corina de Mme. de Stael, o Ultimo dia de Pompeia, de lord Lytton, e as Memorias de Judas, de Petrucci de la Gatina, os quaes se recommendam a todos os leitores do Occidente mais pelo seu exotismo que por outra cousa.

Isto não quer dizer que Sienkiewicz não seja um grande romancista e o seu Quo vadis uma obra admiravel, que realmente merece o estrondoso successo

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que alcançou, – tão estrondoso e tão universal que necessariamente prejudica todas as outras obras do mesmo escriptor, nenhuma das quaes obteve a vigesima parte da repercussão daquella.

O caso é muito commum, tanto em litteratura como em arte. Flaubert queixava-se de que só o apontavam como auctor de Madame Bovary, esquecendo-se de que elle escrevêra Salammbô, um livro unico na litteratura franceza, e Gounod teve o desgosto de ver toda a sua obra sacrificada ao successo do Fausto.

Se eu quizesse apontar outros exemplos, diria que o Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, atirou para o limbo as producções mais interessantes do grande poeta, que, antes daquella peça e do Aiglon, já era o auctor victorioso da Samaritaine e da Princesse lointaine.

Nós temos em casa o exemplo do nosso Carlos Gomes, que pagou bem caro a fortuna de haver começado por um successo colossal a sua carreira de compositor.

***

Entre os livros de Sienkiewicz, que appareceram depois do Quo vadis, figura o romance Siggamol-o ou Acompanhemol-o, titulo que talvez tenha certa euphonia em polaco, mas que em portuguez não a conserva. A idéa é a mesma do Quo vadis: ainda a lucta entre o paganismo e o christianismo.

O Sr. Samuel Martins, de Pernambuco, acaba de publicar, n’um elegante folheto de setenta paginas, um drama em 3 actos e 2 quadros que, sob o titulo de Anthéa, extrahio d’esse romance.

“O auctor, diz elle n’uma nota, permitte a representação d’esta peça a qualquer companhia ou associação dramatica, comtanto que seja ella executada sem alteração no seu texto.

Ociosa advertencia: não creio que nenhuma empreza lance mão da peça. É trabalho mais para ser lido que representado; falta-lhe acção, movimento, interesse dramatico,e a enscenação custaria muito dinheiro. Demais, o auctor não soube ou não quiz evitar longos monologos, e só permitte a representação se lhe não bulirem no texto.

Se o Sr. Samuel Martins se sente com disposições para a litteratura dramatica, porque, em vez de transformar em peça de theatro um romance estrangeiro que a isso não se presta absolutamente, não escreve alguma cousa original, drama ou comedia, de assumpto brasileiro? Que serviço se póde prestar ás nossas lettras, e que proveito, moral ou material, se póde auferir, dando a um livro polaco um fórma não cogitada por quem o pensou e escreveu?

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Com o Quo vadis? o caso é outro. O famoso romance de Sienkiewicz impõe-se ao theatro pela sua propria estructura, pelos seus personagens, episodios e situações, e, mais do que tudo isso, pela celebridade que alcançou em todo o mundo. Se eu fosse emprezario de uma companhia dramatica, faria o que vai fazer Dias Braga: pol-o-hia em scena.

***

O máo tempo, inimigo feroz das nossas emprezas theatraes, prejudicou implacavelmente as quatro primeiras representações do Deputado das saias, realisadas debaixo de chuva.

Espero que, logo que o tempo melhorar, o publico tome o caminho do Lucinda, porque a peça é muito espirituosa, muito mais espirituosa que o Principe da Bulgaria, e está bem desempenhada.

França Junior intitulou uma das suas comedias – Como se fazia um deputado; esta poderia intitular-se Como se faz um deputado. Moreira Sampaio, que gostava muito das saias (o que naturalmente Deus lhe perdoou), preferio dar-lhe aquelle titulo, como já tinha dado o de Rapaz de saias aos Vingt et huil jours de Clairette.

Entretanto, L’élu des femmes não exprime precisamente a mesma idéa que o Deputado das saias; pelo menos não é tão rebarbativo.

O titulo diz tudo: basta escrevel-o, não é preciso contar o argumento da peça, que usa e abusa de todos os direitos do vaudeville.

Bem sei que a litteratura do Palais-Royal não dá nem póde dar uma idéia exacta da sociedade franceza; mas, pondo de parte o que possa alli haver de charge, parece-me que, assistindo á representação da peça do Lucinda, devemos até certo ponto nos contentar dos nossos costumes eleitoraes, em que pese a todos os escandalos e vergonhas.

Repito: a comedia é espirituosa, é bem feita, está bem traduzida, bem representada, bem posta: vale a pena vel-a e ouvil-a.

***

Ha trina annos, ou pouco menos, havia no Rio de Janeiro um nome popular, quasi tão popular como o de Verdi: era o de Marchetti, compositor musical italiano.

Uma companhia lyrica, em que o Lelmi figurava como tenor, havia cantado no Provisorio a opera Ruy-Blas, d’aquelle maestro, e o successo fôra excepcional. O nome de Marchetti andava de bocca em bocca, e em toda a cidade se ouviam trechos d’aquella partitura. As bandas de musica, os pianos, os realejos, as harpas e violinos dos restaurantes e cafés não tocavam nem os

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garotos assobiavam outra cousa. Ouvia-se o Ruy-Blas de dia e de noite, a todas as horas, a todos os momentos.

Se Marchetti tivesse morrido n’aquella occasião, a noticia do seu fallecimento abalaria todo o dilletantismo fluminense; mas a voga do Ruy-Blas passou; a peça nunca mais foi cantada no Rio de Janeiro, pelo justo motivo de que, não sendo opera d’obligo, não figurava no repertorio de nenhuma companhia das que vieram depois de demolido o Provisorio; de sorte que, quando ha dias o telegrapho nos transmittio a noticia da morte do auctor do Ruy-Blas, só encontrou indifferença e frieza.

***

Chamo a attenção dos leitores para o espectaculo que amanhã se realisará no Recreio Dramatico, em beneficio de Dona Laura Bueno,moça honesta, intelligente e pauperrima, que recorre a esse meio afim de continuar os seus estudos na Escola Normal.

O espectaculo, generosamente cedido por Dias Braga, que não perde occasião de praticar o bem, constará da engraçadissima comedia Toupinel que chora e Toupinel que ri e do entreacto Amor por anexins, em que tomará parte o Peixoto, que foi um dos promotores deste beneficio.

A. A.

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O Theatro, 30/01/1902

A Italia festejou ante-hontem o 80º anniversario de Adelaide Ristori, a grande tragica universalmente applaudida, e não se me dá de lembrar aos leitores a grande figura d’essa mulher verdadeiramente excepcional, que tanto honrou a scena italiana.

Ella nasceu a 28 de janeiro de 1822, em Civita del-Friuli, logarejo veneziano, que nem sequer figura nos diccionarios geographicos.

Não sei como, sendo filha de gente nobre, e tendo até parentes cardeaes, a Ristori se fez actriz, mas o caso é que entrou muito nova para o theatro, estreando-se aos quinze annos, em 1837.

Ella revelou desde logo o que havia de ser para o futuro, mas os seus compatriotas, se a animavam, não lhe faziam inteira justiça. Niuguem é propheta na sua terra.

A celebridade da Ristori começou desde a consagração de Paris, em 1855; póde-se mesmo dizer que da consagração do mundo inteiro, porque o mundo inteiro estava alli representado na exposição universal.

A sua estréa em Paris, a 22 de maio d’aquelle anno, com a Francesca de Rimini, foi um triumpho estrondoso. Quereis saber quem era o Paolo d’aquella Francesca? Ernesto Rossi, que tinha entre vinte e seis annos de idade.

Depois d’essa representação de estréa, a imprensa parisiense collocou a grande tragica n’uma eminencia que a própria Rachel jámais attingira. Jules Janin, o principe da critica theatral, escreveu um artigo enthusiastico, do qual extraio as seguintes linhas:

“Cette admirable Ristori est donc une vraie et sincère comedienne. Elle est grande, belle, élancée; elle a toutes les apparences d’une Romaine; sa tête est intelligente, hardie el calme; le feu même son regard est contenu dans les justes bornes; sa voix est la voix la plus brillante et du plus beau timbre, un timbre plein, sonore, éclatant et velouté tout onsemble; il n’y a pas au théàtre en ce moment une voix plus belle et qui convienne devantage a exprimer les tendres passions, les doleurs tranquilles, les trépas resignés. La Ristori! on ne la compare ici á personne. A quoi bon, en effet, une comparaison impossible? Nous possedions naguére une tragedienne incomparable, l’Italie en possède une, et c’est pourquoi il ne faut pas comparer celle ci a celle-lá.”

Mais tarde, depois que a grande artista se exhibio n’outras peças do seu eclectico repertorio, Jules Janin escreveu:

“La Ristori! la Ristori! C’était une fievre hier, c’est une rage aujourd’hui! Elle est toute la tragédie, elle est tout le drame, elle est toute la comédie; elle régne, elle gouverne, elle commande, et la foule obért.”

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Legouve escrevêra para Rachel a sua tragedia Medéa, e Rachel recusara-se a represental-a; Adelaide Ristori, entretanto, acolheu-a com muito prazer, mandou traduzil-a por um bom poeta, Giuseppe Montanelli, e representou-a em Paris a 8 de abril d’aquelle anno de 1855. O successo foi indescriptivel.

Vi-a desempenhar esse terrivel papel de Medéa, dezenove annos depois, em 1874, no theatro Provisorio, d’esta capital, e tive uma impressão de assombro. A Ristori contava então cincoenta e dous annos, mas conservava ainda a fronte bella, intelligente e altiva, a voz sonora, vibrante e ao mesmo tempo avelludada, e o olhar de fogo de que fallara Janin.

Cem annos que viva, não esquecerei aquelle grito Non li avrete! que ella soltava antes de assassinar os filhos, e, depois de os assassinar, a sua figura palida, tremula, desesperada, apertando nervosamente na mão um ferro ensanguentado.

Na scena final, quando Jason, vendo os cadaveres das duas crianças, dizia horrorisado: – Miei figli! Uccisi! Chi li uccise! –, Medéa completava o verso com este monosylabo: – Tu!...

Como a Ristori declamava esse Tu, que era o dito final da peça! Na sua voz, no seu olhar, no seu gesto havia um mundo de sentimento e paixão. Aquelle Tu penetrava até o recesso da alma do espectador; aquella inflexão ainda a tenho no ouvido, e já se passaram vinte e oito annos! Tu!...

Depois do seu memoravel triumpho parisiense, a Ristori passeou a sua gloria por todo o mundo civilisado. Ao Rio de Janeiro veio duas vezes, dispertando em ambas o enthusiasmo da população fluminense, que não se fartou de admiral-a e de applaudil-a delirantemente na Maria Stuart, na Francesca de Rimini, na Pia de Tolomey, na Medéa, na Myrra, no Soror Thereza, na Maria Antonietta, na Adriana Lecouvreur, e em tantas outras peças em que o seu trabalho, sempre variado, era surprehendente e colossal.

O imperador offereceu-lhe um baile no paço de S. Christovão, mas ainda hoje não sei se a festa foi dada á artista ou á marqueza Capranica del Grillo.

Os auctores do Rio de Janeiro teriam feito um bonito, cotisando-se todos para enviar á illustre octogenaria um simples telegramma de felicitações.

***

O sympathico Sansone acaba de alugar o theatro Lyrico, e prepara-se para ir á Italia contractar uma boa companhia de opera para a temporada de 1902.

O teimoso e arrojado emprezario promette trazer tres ou quatro peças novas, mas, para poder fazel-o, espera que os Srs. assignates não se satisfaçam com uma unica exhibição das novidades que elle trouxer.

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Realmente, os nosso dilettantes, com essa absurda e desarrazoada exigencia de uma unica representação de cada opera, collocam os emprezarios lyricos em serias difficuldades.

O caso da Tosca, de Pucinni, é caracteristico: a peça é magnifica, foi muito bem cantada, agradou extraordinariamente, e, todavia, na noite da segunda representação a empreza apanhou apenas meia casa. Muitos assignantes mandaram vender os camarotes á porta do theatro, pela terça parte do que haviam custado! O bilheteiro – pudera! – não vendeu nenhum!

A continuar tão máo costume, não ha empreza lyrica possivel.D’antes,o dilettantismo carioca não se contentava com uma nem mesmo

com duas representações das operas que agradavam. No tempo da Candiani houve um anno em que a Norma foi cantada cincoenta vezes!

Na impossibilidade de declarar intransferiveis os bilhetes de assignatura, condição a que naturalmente ninguem se sujeitaria, o amavel Sansone recorreu ao alvitre de pedir, com muito bons modos, aos Srs. assignantes que se resignem a ouvir pelo menos duas vezes as operas novas; receio, entretanto, que esse pedido não seja satisfeito.

Não quero dizer mal dos frequentadores do Lyrico, mas elles fazem-me lembrar um caso que me contou Xisto Bahia.

Figurando este saudoso artista no elenco de uma companhia que dava espectaculos n’uma cidadesinha do interior de certo Estado do Norte, procurou um dos figurões da terra para passar-lhe um bilhete de beneficio.

– Que peça leva? perguntou o homem.– O medico das crianças.– É repetição?– Sim, senhor.– Então não quero!– Por que?– Por ser repetição.– Mas vossa senhoria não foi ao theatro quando representámos a peça pela

primeira vez...– Não fui, mas não vou, porque não gosto de repetições.E não foi!

***

Os nossos theatros, que tambem se queixam de que o publico foge das repetições, nenhuma novidade deram nos ultimos sete dias. Entretanto, mencionarei uma reprise do celebre Rocambole, no Recreio Dramatico.

A. A.

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O Theatro, 06/02/1902

No extraordinario successo alcançado pela representação do vaudeville Quasi! no theatro Lucinda, encontro a justificação do que por ahi chamam o meu optimismo ou as minhas utopias theatraes. Ainda ha muita gente convencida de que sou um visionario, mais allucinado do que Dom Quixote quando entrou na cova de Montesinos; descubro elementos de prosperidade onde não ha senão ruinas e tradições.

Os nossos bons artistas morreram ou envelheceram, e ninguem os substituio! exclamam os pessimistas. Pois bem! assistam a uma representáção da peça do Lucinda, e digam-me se está ou não está bem representada.

A peça é engenhosa e tem muita graça, mas quantas peças bem feitas e espirituosas têm sido representadas no Rio de Janeiro sem chamar a attenção do publico? Ainda ultimamente passou despercebido um vaudeville celebre, verdadeira obra prima do genero.

Não aconteceu o mesmo ao Moins cinq, porque os artistas do Lucinda se interessaram devéras pelo bom resultado da representação. Comquanto os ensaios durassem apenas quinze dias, tratou cada qual de estudar convenientemente o seu papel, e a interpretação geral foi acertada e brilhante.

Sempre que os nossos artistas, dispondo de uma peça que tenha todas as probabilidades de agradar á platéa, se esforçarem para o bom exito, poderão contar com o publico pela certa. Infelizmente não é isso o que se vê por via de regra em os nossos theatros. O Quasi! é uma excepção, – e queira Deus sirva de exemplo.

Deve tambem servir de exemplo o successo obtido pelo actor Castro no papel do cicioso,um dos melhores da peça.

Um velho defeito das nossas emprezas theatraes é deixarem no terceiro plano os artistas novos, motivo pelo qual não se opéra no pessoal dos theatros o renovamento de cuja ausencia o publico tanto se queixa.

Todo o actor principiante precisa de um auctor e de um emprezario que o “empurrem para a frente”, que lhe deparem ensejo de apparecer; mas em geral o pobre diabo torna-se victima do receio e da hesitação d’aquelles que deveriam “lançal-o”, e só poderiam lucrar com o seu triumpho.

Gabo-me de haver na distribuição dos papeis de umas tantas peças escriptas ou traduzidas por mim, concorrido para que certos artistas sahissem da penumbra. É verdade que algumas vezes me enganei, pagando bem caro o desejo de actores artistas; mas na maior parte dos casos acertei. Isso consola-me.

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Outro prejuiso muito commum nos theatros do Rio de Janeiro é a repugnancia que os artistas consagrados pelos applausos do publico mostram em acceitar papeis pequenos. Rosa Villiot acaba de dar uma boa lição, desempenhando o papelinho da costureira, que apenas figura no 1º acto.

É um papel insignificante, um bout de róle, como dizem os francezes, uma rabula, como dizem os portuguezes; – confiem-no, porém, a uma artista sem habilidade, e tanto bastaria para que o publico se desgoste da peça inteira. Rosa Villiot – e a quantas succederá o mesmo? – encontrou n’aquelle papelinho motivo para ser elogiada por toda a imprensa.

Um cavalheiro distinctissimo, lente da Escola de Medicina, grande apreciador de litteratura e arte, tendo assistido á primeira do Quasi! Declarou,enthusiasmado, que viu a peça em Paris, e não achava a representação do Lucinda inferior á do Palais-Royal.

Opinião exagerada, porque uma peça pariziense em parte alguma póde ser representada como em Paris; entretanto, exagerada embora, mostra essa opinião o alto conceito em que podem ser tidos os nossos artistas, desde que se esforcem por merecel-o.

***

Não fallarei da peça nem do desempenho: mencionei o actor Castro como um argumento a favor da idéa da renovação do nosso pessoal artistico, e mencionei Rosa Villiot como um exemplo de abnegação que deveser aproveitado e seguido. Já todos sabem que o Quasi! merece a attenção do publico fluminense, e que Cenira Polonio, Elisa de Castro, Isabel Marques, Mattos, Peixoto, Alberto Silva, Mesquita, Leite e todos os demais interpretes, do primeiro ao ultimo, se apostaram para a conquista de uma verdadeiro triumpho.

Fallarei dos auctores, Paul Gavault e Georges Berr,dous rapazes de grande talento.

O primeiro estreou-se no jornalismo, e atirou-se depois ao theatro, fazendo representar varios trabalhos, entre os quaes uma boa adaptação do Plutus, de Aristophanes; o segundoè um excellente actor, societario da Comédie Française, e dizer isto é dizer tudo.

Depois do Moins cinq, fizeram ambos representar no Palais Royal outro vaudeville, L’inconnue, que agradou extraordinariamente, e no Athenée uma comedia em 4 actos, Madame Flirt, obra litteraria e artistica, em que se affirmaram, diz Larroumet, verdadeiros auctores comicos, “avec la sûreté de coup d’œil et la fermeté de main qu’exige la peinture des caractères et des mœurs.”

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E mais adiante informa o illustre critico do Temps:“Ecoutée toujours avec intérêt, souvent avec un vif plaisir, deux ou trois fois

avec enthousiasme, la pièce a fini en renouvelant les longs applaudissements que avaient salué les scènes capitales. C’est un franc succés.”

Creio que não poderia fazer aos meus leitores melhor apresentação de Paul Gavault e Georges Berr.

Conto que o Quasi!, prejudicado pela chuva massante que o perseguio desde a primeira até á sexta representação, attraia toda a população fluminense ao Lucinda.

Cenira Polonio que não durma sobre os louros; ouça os bons conselhos de Adolpho Faria, que em boa hora convidou para director de scena, e corresponda á sympathia do publico, dando-lhe peças bem escolhidas e bem representadas.

***

Approximando-se o carnaval, a empreza do Recreio poz em scena uma peça carnavalesca,a velha revista Cobras e Lagartos, que, declamada e cantada à la diable, faz rir devéras e é freneticamente applaudida.

Como a revista, que passou por varias modificações, só tem dous actos, completa o espectaculo uma das melhores comedias de Martins Penna, Quem casa quer casa, com o papel de Jorge muito bem representado, como sempre, pelo actor Ferreira de Souza, insigne em todos os generos.

Os papeis do Quo vadis? estão sabidos; entretanto, Dias Braga resolveu, com muito acerto, adiar para depois do Carnaval a primeira representação do drama que Eduardo Victorino extrahio do famoso romance.

***

Entre as promessas dos annuncios figuram duas peças brasileiras, ambas no Lucinda: Uma questão de divorcio, comedia em 3 actos,do Dr. Silva Nunes, e o Calcanhar de Achilles, de João Luso, o primoroso escriptor a quem não digo aqui muito bonitas cousas para não julgarem que pago, por esse modo, as que elle disse do traductor do Moins cinq.

A. A.

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O Theatro, 13/02/1902

O nome de Urbano Duarte, cujo fallecimento surprehendeu dolorosamente a todos os seus amigos, tem todo o direito de figurar n’esta chronica do theatro, quando mais não fosse senão para reparar a injustiça que lhe fizeram, quando subio á scena, no Recreio Dramatico, a sua comedia Os gatunos.

A peça não era nenhuma obra-prima, nem o auctor pretendêra, escrevendo-a, regenerar o theatro e salvar a arte. Era uma farça, uma simples farça, escripta sem outra intenção que não fosse fazer rir, e, effectivamente, engraçada, cheia de observação e de movimento scenico.

Mas os actores não sabiam os papeis, e a representação, devendo ser viva, foi arrastada e monotona. N’aquelle tempo, como ainda hoje, os nossos artistas não ligavam grande importancia ás comedias em 1 acto; representavam-nas por amor de Deus.

O resultado foi o publico impacientar-se. Do principal papel se encarregara o fallecido Joaquim Maia que, não obstante ser um dos nossos artistas mais conscienciosos, respeitador do esforço alheio, poz-se do lado do publico, e achincalhou as scenas finaes, ao ponto de fazer com que o panno descesse antes do tempo. Entretanto, Joaquim Maia tinha lido a peça, e esta agradou tanto, que elle mesmo a poz immediatamente em ensaios.

A lembrança d’esse desastre deveria perseguir o pobre Urbano Duarte até o fim da vida; se a comedia tivesse agradado, se o publico a houvesse recebido com gargalhadas e applausos, ninguem mais se lembraria dos Gatunos; o successo duraria dous mezes, quando muito. Como foi um fiasco, ninguem se esqueceu. Isto é humano.

Todas as vezes que, na imprensa, algum collega, retaliando, ou provocando, pretendia magoar o auctor dos Humorismos, vinham á baila os malditos Gatunos. Nunca ninguem pagou tão caro um insuccesso.

Entretanto, n’essa occasião, Urbano Duarte conservava na pasta outros trabalhos destinados ao theatro. Escusado é dizer que os deixou lá ficar.

Um dia – não ha muito tempo – perguntei-lhe que fim levaram elles. – Nunca mais me lembrei d’isso, respondeu-me elle. Uma das minhas peças, justamente aquella em que eu fazia mais fé, confiei-a ao Augusto de Castro, que m’a pediu para ler, e morreu antes de m’a restituir. Não sei onde pára.

Dando-me essa resposta, não se mostrou pezaroso, nem mesmo contrariado por haver perdido a peça.

– Quem sabe? ponderei, – talvez a tua comedia esteja com a familia do Augusto de Castro, entre os papeis que elle deixou. Porque não empregas alguma diligencia para rehavel-a?

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– Para que? Não vale a pena...Todavia, antes dos Gatunos, Urbano Duarte figurára como co auctor de

uma peça applaudida.Quando aqui esteve, trabalhando no Gymnasio, em 1882, uma companhia

dramatica italiana, da qual fazia parte aquella phenomenal criança, Gemma Cuniberti, a quem chamavam “a pequena Ristori”, o respectivo emprezario encommendou-me um drama cuja acção se passasse no Brasil e no qual houvesse um bom papel para aquella actrizinha.

Graças a amisade que sempre nos ligou, consegui associar Urbano Duarte a esse trabalho.

Foi elle quem propoz o plano da peça. Havia lido nos jornaes a noticia de um menino de onze annos, que, cheio de ciumes e de indignação, assassinára o amante de sua mãe. Pareceu-lhe que a figurinha d’esse assassino precoce daria um personagem nas cordas da “pequena Ristori”.

Acceitei o assumpto e mettemos mãos á obra. Em poucos dias o drama estava concluido e era mais d’elle que meu. Intitulámol-o O anjo da vingança.

Traduzido immediatamente para o italiano pelo pai de Cuniberti, que era um sujeito intelligente e um actor rasoavel, a peça foi representada e applaudida.

Uns tantos criticos acharam inverossimil o assumpto de L’angelo della vendetta: uma criança d’aquella idade, diziam elles;não podia ter tão desenvolvido o sentimento da honra da familia; entretanto, como já disse, a peça não era mais que a dramatisação de um facto da vida real, e a catastrophe tinha sido cuidadosamente preparada.

Depois disso, o drama foi representado em portuguez, não no Rio de Janeiro, mas em quasi todas as provincias do Brasil, por uma companhia dramatica dirigida pelo fallecido actor-auctor Moreira de Vasconcellos. Desta vez o anjo da vingança era uma menina brasileira, de muita habilidade, que se chamava Julieta dos Santos.

Algum tempo depois, Urbano Duarte e eu escrevemos outro drrma, O escravocrata, que não foi licenciado pelo Conservatorio Dramatico, mas corre mundo impresso em volume.

A douta instituição, que felizmente desappareceu, negou-nos o seu visto, porque, disse ella, a heroina do nosso drama “deprimia o caracter da mulher brasileira.”

O motivo não era esse, mas sim a audacia com que atacavamos a escravidão e os escravocratas; tanto asssim, que propuzemos mudar a nacionalidade da nossa heroina, fazel-a ingleza, franceza, allemã, hespanhola, o que quizessem, – e o Conservatorio não nos attendeu.

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Pois ainda hoje lastimo profundamente que o nosso Escravocrata não visse a luz da ribalta; o effeito seria seguro, e assim o digo porque a peça, como o Anjo da Vingança, era mais de Urbano Duarte que minha. Não duvido que, se tivesse sido representada, figurasse hoje em dia na historia da propaganda abolicionista. Lembra-me que Xisto Bahia, a quem distribuiramos o papel de um velho escravo,pae do seu”senhor moço”; ficou desesperado quando soube que o drama empacára no Conservatorio.

Tempos depois, li o 1º acto do Escravocrata n’uma festa abolicionista que se realisou no Lyceu de Artes e Officios: o effeito foi estrondoso. Que seria então no palco?

Tive um alegrão quando,muitos annos depois, assistindo á representação do Pão alheio, de Tourgueneff, em que era eximio Ermete Novelli, vi que nos tinhamos encontrado com o celebre escriptor russo.

Releva dizer que, quando escrevemos o Escravocrata, ainda o Pão alheio não existia, ou, pelo menos, não fôra vertido para o francez. Nós não sabiamos russo.

– Já vêem, pois, os leitores que tinha eu razão de dizer que o nome de Urbano Duarte devia figurar n’estes folhetins, onde mais tarde – quem sabe? – os curiosos encontrarão a historia do theatro no Rio de Janeiro, pelo menos durante certo periodo.

Elle tinha “le sens du théâtre”, para empregar aqui uma phrase predilecta do velho Sarcey; mas foi infeliz... Das tres peças que mencionei, uma foi desfigurada pela representação, outra representada n’um idioma estrangeiro, outra prohibida pelo Conservatorio, e essa, repito, telo-hia, talvez, consagrado como dramaturgo.

O mais que tenho a dizer sobre o grande espirito de Urbano Duarte, dil-o-hei n’outra parte. Aqui só me cabe aprecial-o sob o ponto de vista do theatro.

***

Reapparecem hoje os espectaculos, interrompidos pelo Carnaval.No Recreio teremos os Seis degráos do crime e no Lucinda o Quasi! peça

de grande successo, elogiada por toda a imprensa, e que agrada a todos os paladares.

A. A.

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O Theatro, 20/02/1902

Não obstante haver agradado excepcionalmente, o vaudeville Quasi! foi substituido ante-hontem no theatro Lucinda antes da vigesima representação.

É verdade que a substituição foi um pouco precipitada: a empreza deveria insistir com a peça por mais algumas noites, visto que as primeiras recitas luctaram com dous terriveis inimigos do theatro, – a chuva e o carnaval. Ha no Rio de Janeiro muita gente que não vio e deseja ver o Quasi!

O vaudeville de Gavault e Berr foi substituido por uma peça do mesmo genero, a Mulher do commissario, escripta pelo filho d’aquelle famoso Hennequin, o inventor, póde-se dizer, do quiproquó theatral levado até a extravagancia, desenrolado e subdividido em tres longos actos.

Do velho Hennequin sahiram Valabrégue, Gandillot, Bisson, etc. O ultimo dos seus continuadores é esse extraordinario emaranhador de situções, que se chama Georges Feydeau.

Hennequin pae deu tanto que fazer ao miolo, ideou tantas complicações, urdio e destricçou tantos enredos, que morreu doido.

Não creio que ao filho succeda o mesmo infortunio. As suas peças – pelo menos as que conheço – não lhe devem ter custado grandes esforços cerebraes; elle tem muita habilidade em preparar para os seus almaços o resto dos jantares alheios...

Na Mulher do Commissario não ha,por bem dizer, uma scena inedita; tudo aquillo já nos passou pelos olhos,ou pelos ouvidos, n’outros vaudevilles, de outros auctores; mas a articulação é tão engenhosa, as situações vêm tão á propósito e com tanta certeza do effeito scenico, que o compilador torna-se digno de applausos.

Demais, o dialogo, cuja graça Adolpho Faria soube conservar na sua traducção, mantem nos labios do espectador o classico sorriso, que, mais do que a gargalhada, contribue para o successo das peças comicas. Formigam os bons ditos e e as observações espirituosas.

Não me peçam que lhes conte o enredo da Mulher do comissario. Trata-se, mais uma vez, do adulterio, fonte inexgotavel de assumpto para todos os generos theatraes, desde a tragedia até a farça.

Ha alli dous maridos enganados. Um d’elles, o commissário, que toma posse do commissariado antes mesmo de receber o decreto de nomeação, é muito divertido, e foi magnificamente interpretado pelo Peixoto, que melhor figura teria feito se estivesse mais senhor do papel; o outro é de um comico penoso, um tanto rosse, como dizem os parisienses, e foi confiado ao Mattos,

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que fez louvaveis diligencias para suavisar a repugnancia causada pelo personagem.

Alberto Silva fez um advogado mulherengo, como no Quasi!... mas d’esta vez estava mais á vontade, principalmente no 2º acto, e Jorge Alberto deu boa conta do recado no papel do amante da mulher do commissario.

Leite fez rir devéras no papelinho de um velho; mas o maior successo alcançou-o elle não com o talento, mas com os musculos, representando uma scena, aliás muito agitada, com a Rosa Villiot desmaiada nos braços, e tão tranquillo como se não estivessem alli quatro arrobas.

Merecem boas referencias Castro e Pedro Augusto.Do lado do bello sexo,a peça foi igualmente bem defendida. Cinira

representou com talento o papel da mulher do commissario, e ao publico, vendo a Villiot no papel do marido rosse, succedeu o mesmo que ao Leite: achou-a leve.

É de justiça mencionar a actriz Cecilia Neves, que foi uma interessante soubrelle.

A peça está bem posta em scena e foi perfeitamente ensaiada pelo traductor, que é um provecto melleur en scène, ou miseur en scène, como lhe chamou um collega.

O publico applaudio.

***

O espectaculo de amanhã, no Lucinda, é em beneficio do Mattos, que organisou um excellente programma: será representado o Quasi! e haverá um intermedio cheio de attracções e novidades.

Pareceu-me inutil recommendar o espectaculo aos meus leitores: o Mattos é um d’esses artistas que se impõe á sympathia publica, sem precisar de reclamos nem de elogios.

Acompanho de perto, ha mais de vinte annos, a sua vida de actor, e nunca o vi arredar-se, nem uma polegada, da linha récta que o conduzio, senão á gloria, senão á fortuna, pelo menos á consideração geral.

Attencioso ao trabalho, respeitoso do publico, estuda conscienciosamente os seus papeis, procurando e muitas vezes conseguindo approximar-se da perfeição. Em nenhuma peça figurou até hoje na qual desagradasse completamente. Muitas vezes tem acontecido cahir a peça e o seu trabalho salvar-se.

Como particular, sabem-no todos, é o Mattos um modelo de correcção. Pelo seu caracter e cavalheirismo tem conquistado as melhores relações na frol da sociedade fluminense.

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Devia-lhe estas palavras. Escrevo-as, fazendo votos para que amanhã o Lucinda apanhe uma enchente á cunha.

***

A Caixa Beneficente Theatral acaba de eleger a sua directoria de 1902. O novo presidente da piedosa associação é o actor Dias Braga. Deve-se dizer que a escolha não podia ser mais justa nem mais acertada.

Ainda uma vez appello para as classes a quem o theatro possa, de longe ou de perto, interessar, afim de que concorram todas para a prosperidade d’aquella Caixa, que será um colosso no dia em que ellas comprehenderem claramente o espirito de associação.

Durante quatro annos tive a honra de presidir a Caixa Beneficente, e folgo de que o meu substituto seja um digno artista que fará muito mais do que fiz, usando,em favor d’ella,do seu alto valimento de emprezario dramatico.

Protesto que, não obstante haver deixado a minha cadeira de presidente,continuarei a ser um devotado amigo da Caixa Beneficente Theatral, defendendo-a com a minha penna sempre que se offerecer occasião.

***

No obituario dos ultimos dias figurou o nome do major Geraldo Caetano dos Santos, ultimo irmão sobrevivente do nosso grande João Caetano.

A. A.

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O Theatro, 27/02/1902

Orlando Teixeira ha muito tempo se achava no ultimo periodo da tuberculose, e todos os seus amigos esperavamos a cada instante a noticia do seu fallecimento. Apezar d’isso, impressionou-me profundamente essa notica, quando a li ante-hontem n’um boletim do Jornal do Commercio.

É que o pobre rapaz era, com effeito, uma excellente creatura, um bello caracter que as mesmas impertinencias da molestia não conseguiam alterar.

Morreu com elle um verdadeiro amigo do theatro. Orlando principiára como actor, figurando no elenco de uma companhia nomade, que percorria as cidades e villas de S. Paulo e Minas. Não me consta que algum dia se exhibisse n’esta capital, a não ser em theatrinhos particulares.

Dizem-me que possuia algum talento e muita vocação para o genero comico. Não sei. – porque, quando o vi representar o Badejo, nas récitas do Centro Artistico, e outras peças – duas ou tres – no Elite-Club, já elle estava minado pela terrivel enfermidade, e em condições, coitado! de não poder aproveitar os recursos de que porventura dispuzesse. Portanto, não posso aprecial-o como actor.

Espirito [p. i.], de menos preparo que intuição, é certo, mas original e brilhante, Orlando, que amava e comprehendia o theatro, deixaria sem duvida algumas boas comedias, se o palco fluminense offerecesse estimulo e recompensa aos auctores dramaticos.

É leve a sua bagagem de comediographo; – consta, quasi exclusivamente, de traducções. Uma revista escreveu elle, Pão-pão, queijo-queijo, representada muitas vezes, no Lucinda, por uma companhia de que era emprezario o actor Leonardo, – e mais uma comediasinha, cujo titulo era indicado apenas por um ponto de interrogação, e que eu vi submettida a uma execução summaria no palco do Sant’Anna.

Deixou tambem uma peça allusiva ao descobrimento do Brasil, peça que lhe foi pedida por Lucinda Simões e pelo Dr. Christiano de Souza, e estes emprezarios nunca fizeram nem farão representar, segundo o seu louvavel costume de não aproveitar os trabalhos que encommendaram.

A ultima vez que o nome de Orlando Teixeira figurou n’um programma do theatro foi assignando a traducção de Uma noite em Veneza, operetta barbaramente trucidada, não ha muito tempo no theatro Apollo. Este insuccesso, para o qual se juntaram mil inconvenientes, affligio-o bastante.

Elle se occupava muito de assumptos theatraes em todas as folhas a que prestava o concurso do seu talento. N’algumas, como na Gazeta da Tarde, na Imprensa e ultimamente na Gazeta do Commercio, publicou folhetins

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em dias certos, exclusivamente consagrados ao theatro, nos quaes revelou conhecimentos especiaes da materia.

Era optimista, ou antes, condescendente, isto é, sacrificava um pouco a sua opinião á boa camaradagem; mas qual de nós, na imprensa, lhe póde atirar a primeira pedra?... qual de nós não confia á sagacidade do leitor o ler nas entrelinhas o que por fraqueza deixamos no tinteiro?...

Vivendo a maior parte do tempo entre os bastidores,que tanto concorreram para que elle se finasse aos trinta annos, quando, por bem dizer, penetrava definitivamente no mundo, Orlando não podia deixar de ser um critico tolerante. Todavia, desforrava-se, com a lingua, das complascencias da penna...

A feição mais accentuada do seu talento era a poesia. Elle versejava com extrema facilidade, e era imaginoso e pittoresco, embora não gastasse tempo em limar e polir os seus versos. Ultimamente publicara-os n’um volume sob este titulo – Magnificat –, e o seu livro foi muito bem acolhido.

Orpoão, solteiro, sósinho no mundo, enfermo, impossibilitado de ganhar a vida, Orlando encontrou na familia do Dr. Teixeira Junior, seu amigo e companheiro do Elite-Club, o amparo, o carinho, a solicitude que só poderia achar em casa de seus proprios paes, se ainda os tivesse. Receba aquelle distincto cavalheiro os agradecimentos que lhe dirijo em nome da classe dos jornalistas e litteratos, classe imprevidente, que até hoje não conseguio fundar uma associação de socorros mutuos.

***

A proposito:A Caixa Beneficente Theatral empossou hontem os dignos funccionarios

que deverão administral-a durante o corrente anno, sob a presidencia do popular artista e emprezario Dias Braga.

O meu collega Cruz Gomes, eleito 1º secretario da nova directoria, pronunciou um pequeno discurso, appellando para todos que directa ou indirectamente se interessem pelo bem estar da classe theatral, afim de que se matriculem na piedosa associação, certos de que, assim procedendo, cuidam de si, cuidando tambem dos outros.

O mesmo appello tenho eu dirigido muitas vezes d’estas columnas. A prosperidade da Caixa depende do alargamento do se quadro social. Ella, e só ella, poderá congraçar a classe, tornado-a mais forte e mais considerada.

A assembléa de hontem distinguio-me com o titulo de presidente honorario, immerecido galardão que me desvanece e ao mesmo tempo alenta ainda mais o proposito, em que sempre me achei, de servir devotadamente á nossa aggremiação.

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Renovo meus agradecimentos á generosa assembléa.

***

Do Sr. Francisco Serra, distincto escriptor portuguez, muito dado ao estudo da litteratura hespanhola, acabo de receber um precioso volume, contendo a traducção, em verso, da famosa comedia de Calderon Casa com duas portas é má de guardar, e a sua peça original em 3 actos, A mocidade de Nun’Alvares.

Esta é uma interessante comedia, com um trabalho de reconstituição historica muito para louvar; entretanto, não me pareceu que o dramaturgo fosse feliz, dando-lhe, como lhe deu, um feitio de opera-comica, ou operetta, isto é, pondo-lhe coplas, córos, duettos, quartettos, etc. A figura de Nun’Alves deve ficar attonita no meio de todo esse trololó.

Quanto á traducção, louvo-me nas seguintes palavras de uma apreciação escripta por Pinheiro Chagas e annexada ao volume:

“Os primores de estylo do grande poeta castelhano nada perderam em ser trasladados para os melodiosos versos portuguezes do Sr. Francisco Serra. A sua traducção é extremamente fiel, quando o desejo de adaptar a comedia de Calderon ao theatro moderno o não força a modificar n’um ou n’outro ponto o original. Ainda assim o Sr. Francisco Serra prefere que o dialogo tenha um certo archaismo a mutilar as preciosas paginas do escriptor do seculo XVII. O seu trabalho é verdadeiramente notavel.”

***

Pelos nosso theatros nada de novo...A companhia do Lucinda foi dar tres representações em Petropolis com o

Principe da Bulgaria, a Mulher do commissario e o Quasi!, e a do Recreio fez reprise do velho drama Aimée, ou o assassino por amor.

Parece que amanhã teremos, impreterivelmente, o desejado Quo Vadis?, cuja demora tem sido causada por varios motivos, o ultimo dos quaes foi uma ligeira indisposição da applaudida actriz Lucilia Peres, que tem a seu cargo o papel de Lygia.

O Recreio provavelmente apanhará uma “casa” que nem a do centenario do Rio Nú.

A. A.

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O Theatro, 06/03/1902

Eduardo Victorino, que não perde ensejo de pôr o seu talento de dramaturgo ao serviço da Companhia Dias Braga, não podia deixar de aproveitar o successo universal de Quo Vadis? extrahindo do romance de Sienkiewicz uma peça espectaculosa e attrahente.

Tomando essa resolução, não fez elle mais do que seguir o exemplo de alguns collegas seus de outros paizes, que se deixaram tentar pela theatralidade da obra.

Effectivamente, Sienkiewicz, ao escrevel-a, pareceu preoccupadissimo com o effeito scenico de certos quadros, e não menos preoccupado com fornecer excellentes vinhetas ao desenhador que lhe illustrasse o livro. Essa dupla preocupação, que aliás talvez não existisse, foi o unico defeito que encontrei no Quo Vadis?, porque tenho que o processo de escrever romances é muito diverso do de escrever peças de theatro.

O caso é que várias peças tiradas do celebre romance polaco, têm agrado immenso em todas as capitaes européas, á excepção de Lisboa, onde, pelo modos, nem o dramaturgo nem os actores foram felizes. Brazão, dizem, deu um magnifico Petronio, mas uma andorinha só não faz verão. Eduardo Victorino,que tem na sua bagagem litteraria algumas peças originaes, muito applaudidas, não espera, por certo, que eu venha entoar lôas ao seu novo trabalho. Elle não fez mais nem menos do que faria outro qualquer que tivesse as suas aptidões theatraes, nem creio que mesmo o Quo vadis? de Paris, se avantage ao do Rio de Janeiro a não ser na interpretação de certos papeis e na pompa da enscenação.

Extrahir uma peça de um romance não é trabalho de imaginação, mas de paciencia; o auctor não inventa: conta o que os outros inventaram;não crêa: restringe; não dá: tira; não produz: reduz. O seu unico talento é de metter quinhentas ou seiscentas paginas n’uma peça, cuja representação não dure mais de tres horas.

Ha, não no publico, mas entre os criticos, tal ou qual prevenção contra as peças extrahidas de romances; entretanto, muitas vezes o romancista, principalmente em França, onde o theatro enriquece, prepara o terreno para o dramaturgo. Tarbé, por exemplo, não suou o topete para extrahir um drama do romance as Duas orphãs, do velho Dennery, e casos ha em que o romance é extrahido da peça, e não a peça do romance, embora seja este publicado antes de ser aquella representada; foi o que se deu com o Mestre das forjas, e tem-se dado com muitos outros dramas e comedias.

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Todavia, alguns romances escriptos sem nenhuma preoccupação da scena, tem dado optimas peças. Para citar um só exemplo, e em lingua portugueza, lembrarei a bella comedia que Ernesto Brister extrahio do bellissimo romance As pupillas do Sr. reitor, de Julio Diniz, – comedia em que não transparece absolutamente a fórma primitiva da obra.

O que no Quo vadis? seduz o auctor dramatico e o emprezario, não são, de certo, as situações nem o dialogo, mas a enscenação, – a orgia de Nero, o incendio de Roma, o circo das feras, etc.; por isso é justo que se comece cumprimentando o scenographo Eduardo Reis, que pintou, em Lisboa, os scenarios da peça.

Esse cumprimento não quer dizer que não tenhamos no Rio de Janeiro quem os pintasse tão bons e até melhores, pois a empreza Dias Braga, mandando pintal-os no estrangeiro, não fez mais do que usar de uma medida de louvavel e prudente economia; mas o artista portuguez merece, realmente, elogios pela propriedade das suas pinturas, exclusão feita do busto de Petronio. Que miseravel trainel?

Na enscenação geral algumas impropriedades se notam, como um bailado moderno, dansado no Palatino, e outras com que o publico pouco se importa e faz muito bem; mas o espectaculo diverte de principio afim, fallando aos olhos e ao espirito.

Satisfaz o desempenho dos principaes, cabendo as honras da representação a Ferreira de Souza, aliás contemplado com o melhor d’elles, o do interessante Chilon Chilonidas, philosopho de todas as escolas, vaso ruim de todos os vicios, que é finalmente illuminado por um raio da religião de Christo, e acaba – elle que fedia tanto! – com cheiro de santidade.

Ferreira de Souza estudou com todo o cuidado esse personagem complexo, e deu mais uma prova (não ha de ser a ultima) do seu talento robusto.

Dias Braga interpreta com toda a auctoridade da sua arte o Nero de Sienkiewicz, que é o mesmo, mutatis mutandis, de Pietro Cossa, e não sei se será o verdadeiro, o authentico, porque, em se tratando da Roma antiga, não sabe uma pessoa onde acaba a historia e começa a lenda.

O provecto actor emprezario recita muito bem a bonita Ode a Venus, do pobre Orlando Teixeira, versos bons de mais para serem attribuidos ao Nero que, no dizer de Petronio (ambos de Sienkiewicz), não passava de um pedaço d’asno. De mais, um poeta que se considerava superior a Homero, e se tinha na conta de um deus, não qualificaria jamais de pallida a sua propria musa. Esse rasgo de modestia não se compadece com a vaidade de Nero.

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Eugenio de Magalhães diz o verboso papel de Petronio como sabe dizer todos os seus papeis, mas o espectador sente que elle não está habituado, a andar vestido a romana.

Eugenio é como Furtado Coelho, um grande artista que só se achava bem a vontade vestido a moda de hoje. De casaca, Eugenio seria o ideal dos Petronios.

Censuraram-lhe a barba, que elle põe, seguindo o exemplo do Petronio de Paris; mas quem nos diz a nós que o verdadeiro Petronio usasse ou não usasse barba? Em Roma havia tanta gente barbada! Na duvida, e tendo o precedente de Paris, onde os actores estudam cuidadosamente a caracterização dos personagens que interpretam, o nosso Eugenio escolheu a cara que melhor se compadecia, com o seu modo de ver e de sentir o typo de cuja reproducção o encarregaram.

Mesmo quando Petronio tivesse a cara raspada, circumstancia difficil de elucidar, não vejo nenhum mal em represental-o com barbas.

Lucilia Peres, apezar de convalescente, desempenha com brilhantismo o papel de Lygia; Aurelia Delorme dá, talvez, no de Actéa, descabida solemnidade; Maria da Piedade é uma linda Eunice, que fala pouco e assaz se exhibe.

Merecem boas referencias Eduardo Vieria, apezar de exgagerado no quadro do festim, – Marques Olympio Nogueira, (S. Pedro e S. Paulo), Bragança (Tigelino), Alfredo Silva (Vitelio), Marzulo, Santos Ferreira, que á ultima hora substituio no papel de Ursos o Rangel, que está enfermo, etc. Grijó não me dá nenhuma idéa do poeta Lucano.

O publico applaudio com enthusiasmo e, a julgar pelas primeiras recitas, que têm sido cheias, o Recreio, apezar da crise dos theatros, apanhou um successo como o dos bons tempos.

Pois que já não é licito pensar em “centenarios”, desde já me convido para a festa da quinquagesima representação do Quo Vadis?

***

A companhia Cinira Polonio tem se dado tão bem com os ares de Petropolis, que se deixou ficar lá por cima, sem se lembrar que os amigos vão achando por demais prolongada tal villegiatura.

Começam os cariocas a ter ciumes dos fluminenses.A companhia já representou alli os quatro vaudevilles com que iniciou

os seus trabalhos no Lucinda, e prepara para domingo uma reprise da mais interessante das peças de Feydeau, – Ha caça e caça.

A. A.

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O Theatro, 13/03/1902

Desde que o Quo vadis? subio á scena, o Recreio tem estado sosinho em campo. Apenas houve, no Sant’Anna, a primeira e creio que unica representação de uma peça do Dr. Cunha Salles, intitulada a Estatua de Otero, que, pelos modos, não é precisamente uma obra-prima.

Assim me exprimo, levado pela opinião de alguns collegas da imprensa, e não pelas minhas proprias impressões: não fui convidado para assistir ao espectaculo, o que até certo ponto me contrariou, por se tratar de peça de auctor brasileiro. No estado de miseria a que chegou nosso theatro, é natural que nos interessem todas as producções nacionaes, venham de onde vierem e qualquer que seja o seu merito.

É incrivel que no Rio de Janeiro, justamente na época em que os emprezarios não luctam com a concurrencia estrangeira, haja um unico theatro aberto! É verdade que a companhia Cinira Polonio abandonou o Lucinda sem que para isso houvesse grandes motivos: não creio que em Petropolis, feitas as contas, tenha ella mais interesses que na rua do Espirito-Santo.

Bom tempo aquelle em que n’esta capital havia quatro, cinco e seis theatros funccionando todas as noites, e cheios a deitar fóra! As bilheterias fechavam-se, e as familias, que não se tinham acautelado mandando comprar bilhetes durante o dia, andavam de theatro em theatro, sem poder entrar em nenhum.

Raramente havia peças de grande successo em todos os theatros ao mesmo tempo; entretanto, bastava que um d’elles apanhasse esta fortuna, para que todos os outros lucrassem. O theatro A e o theatro B enchiam-se com as sobras do theatro C.

O publico regeitado todas as noites pela bilheteria da Phenix quando estavam em scena os Sinos de Corneville, a Mascotte e outras peças, dava para encher tres ou quatro salas de espectaculo.

N’aquelle tempo, quando uma peça dava apenas trinta ou quarenta representações, era um fiasco; hoje, vinte representações constituem um successo.

N’aquelle tempo uma primeira representação era sempre um acontecimento, fosse qual fosse a peça. Disputavam-se os bilhetes, – os camarotes,principalmente, andavam por empenhos –, o publico mostrava certa anciedade.

Havia figuras obrigadas n’essas primeiras representações, espectadores infalliveis, pessoas que tinham a certeza de encontrar alli outras pessoas certas e determinadas. Nos intervallos dos actos conversava-se, discutia-se a peça,

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fazia-se a critica da interpretação, lançava-se prognosticos e vaticinios. Era o movimento, o enthusiasmo, a vida!

Tudo isso desappareceu. Hoje as primeiras representações não têm o encanto nem dos ensaios geraes de outr’ora. Perderam a solemnidade e o publico especial d’aquelle tempo. E o theatro só se enche por excepção, como na “primeira” do Quo vadis?

Já os bilhetes não são disputados, nem ha mais encommendas feitas com antecedencia, embora em todos os programmas se diga ainda, pela força do habito, que ellas só serão respeitadas até ao meio-dia. As familias têm certeza de que, chegando ás nove horas, encontrarão logar.

O Rio de Janeiro, em materia de theatro, retrogradou, como tem retrogradado em tantas outras cousas.

Mas eu, que nasci optimista e optimista hei de morrer, não perco a esperança de que voltem aquelles bons tempos. Não ha razão para desesperar. Maiores milagres tenho eu visto.

***

Cabe n’este folhetim a noticia do apparecimento do primeiro numero da Cançoneta, publicação quinzenal de que é redactor-proprietario Ernesto de Souza e redactor-secretario Julio de Freitas Junior.

Esses nomes representam justamente os dous escriptores que no Rio de Janeiro com mais felicidada têm cultivado a cançoneta, que é preciso não confundir com a modinha: esta é indigena, aquella é naturalisada.

O novo periodico, destinando-se, embora o não diga, a introduzir nos nossos costumes a cançoneta, desperta sobre o assumpto algumas considerações que me parecem topicas.

Se, realmente, o genero agrada aos brasileiros, convem quanto antes adaptal-o á nossa lingua. Se o publico deve ouvir, no Cassino Brasileiro e n’outros estabelecimentos mais ou menos cantantes, versos francezes que não entende mesmo quando os percebe, ou não percebe mesmo quando os entende, como quizerem, ouça versos brasileiros, sobre assumptos brasileiros, com musica brasileira.

Oh! assumptos não nos faltam; assim tenhamos espirito, pois n’este particular é perigoso luctar com a concurrencia parisiense...

Dir-me-hão, talvez, que não temos pessoal artistico habilitado para explorar o genero,e isso é verdade: causam lastima os cantores e cantoras nacionaes que por acaso tenho ouvido n’um ou n’outro café cantante ou berrante; mas os interpretes appareceriam desde que a cançoneta se tornasse um meio de vida rendoso.

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Não aconselharei a nenhum emprezario que a imponha de sopetão, mas aos poucos. Entre duas ou quatros cançonetas francezas, faça cantar uma das nossas, comtanto que o artista saiba o que está fazendo, e não seja inferior aos estrangeiros.

Eu, francamente, não morro de amores pelo genero; mas, uma vez que o publico não póde passar sem elle, nacionalisemol-o.

***

Se bem que, a rigor, não se trate do theatro, recommendo ao leitor o concerto que está organizando o maestro Cavalier, o qual será realisado no Conservatorio Livre de Musica, e cujo producto se destina a auxiliar as experiencias aerostaticas de Santos Dumont.

Cavalier, que deve inspirar ao publico toda a confiança quando se trata de musica, está organisando um programma de primeira ordem, digno do illustre compatriota a quem é offerecida a festa.

Conto que esta consiga despertar o enthusiasmo adormecido dos fluminenses, que têm sido, confessemol-o, de uma indiferença atroz para com Santos Dumont, que, mesmo quando não fosse brasileiro, deveriamos acclamar.

Razão tinha eu de dizer que temos retrogradado, não só no tocante ao theatro, como n’outras muitas coisas. Tornámo-nos uma população apathica, fria, sceptica, inerte, abrutalhada, incapaz de vibrar, de commover-se, de agir... A eleição presidencial que o diga.

Parece que se um bello dia Santos Dumont vier da Europa na sua aeronave, descendo, muito senhor de si, na praça Quinze de Novembro ou na praça Tiradentes, será recebido por um grupo de moleques e cafagestes, e não terá manifestação alguma que o leve a agradecer a Deus tel-o feito nascer n’este paiz.

Trata-se, com o festival Cavalier, e outros espectaculos, de proporcionar ao eminente brazileiro os meios de mandar construir outra aeronave, e,como para o mesmo fim foi aberta uma subscripção em Pariz, é absolutamente preciso que os brazileiros não nos deixemos ficar na rectaguarda.

***

Não costumo fazer erratas a estes folhetins, mas não resisto ao desejo, ou antes, á necessidade de corrigir uma falta de revisão que escapou no ultimo:

A proposito do Quo vadis? tinha eu escripto que o dramaturgo, quando extrahe uma peça de theatro de qualquer romance, corta o que os outros inventam. Em vez de corta, sahio conta, que desnatura completamente o sentido da minha phrase.

A. A.

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O Theatro, 20/03/1902

Nenhuma novidade tenho que registrar.A companhia do Lucinda voltou, finalmente, de Petropolis, onde a fortuna

lhe sorriu fagueira (não é verso), e reappareceu ante-hontem, na rua do Espirito Santo, com o applaudido Quasi!

Foi substituida na risonha capital fluminense, que pelos modos se tornou theatreira, cousa que nunca foi, por outra companhia, organisada pelo provecto actor Soares de Medeiros, a qual se estreará, se já se não estreou, com a Filha unica.

A proposito, observarei ao espirituoso collega, que n’esta folha escreve a secção Petropolis, que a Filha unica, longe de ser um dramalhão de capa e espada, é uma deliciosa comedia intima, escripta por Theobaldo Cicone, o auctor da Estatua de carne.

Traduzida por Visconti Coaracy, a peça foi representada n’esta capital, com extraordinario sucesso, ha trinta annos, pouco mais ou menos, interpretando o papel da protagonista Apollonia Pinto, que n’aquelle tempo era, pelo physico e pelo talento, o ideal das ingenuas dramaticas.

Mas... voltemos á companhia Cinira Polonio:Hontem deu ella o Principe da Bulgaria, em beneficio não sei de que

irmandade, e hoje faz voltar á scena o Quasi!, em beneficio de Rosa Villiot. Isto é que se chama enrodilhar o sagrado com o profano, como dizia o Zé do Capote.

Portanto, hoje a noite é de festa no Lucinda, e o publico não se fará rogado para comparecer ao espectaculo de uma artista que elle applaude desde os tempos, precisamente, da Filha unica.

– Foi tambem de festa a noite de hontem no Recreio, cuja empreza teve a lembrança feliz de consagrar ao publico a vigesima representação do Quo vadis?

O theatro estava enfeitado por dentro e por fóra, – havia musica de pancadaria no jardim, – a enchente era real –, e a representação foi applaudida de principio a fim.

Para corresponder á delicadeza do emprezario, o publico resolveu não consentir que o Quo vadis? seja retirado de scena antes da quinquagesima representação.

***

A victoriosa carreira do bello drama christão será interrompida amanhã – só amanhã – por um espectaculo em beneficio de Eugenio Magalhães.

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Este é um dos nossos poucos artistas dramaticos realmente dignos d’essa classificação. Não digo que elle tenha o fogo sagrado de que resa á chapa... E quem poderá tel-o n’este paiz onde o theatro é tão iniquamente desdenhado pelos poderes publicos e pela sociedade?... Não, não tem o fogo sagrado que teve, talvez, no inicio da sua carreira; é um esmorecido, um desalentado, que ha bem poucos dias, em conversa commigo, lamentava não encontrar um emprego que o afastasse da arte.

– Com toda a sinceridade te digo, blasphemava elle, que se eu tivesse com que, abriria uma venda, e me entregaria de corpo e alma ao balcão, compromettendo-me a nunca mais passar sequer pela porta de um theatro!

– Sáe dahi pra fóra! respondi-lhe eu. Se tivesses chelpa, não te farias taverneiro, mas emprezario...

Eugenio tem motivos de sobra para dizer essas e outras, porque, se perdeu o tal fogo sagrado, foi sempre o typo do actor consciencioso, empregando todos os esforços por acertar, e acertando na maior parte dos casos.

Educado na boa escola de Furtado Coelho, mostrou sempre essa grande virtude que infelizmente tem faltado á maioria dos seus collegas: o respeito pelo publico. Nenhum espectador o sorprehendeu arrastando um papel mal sabido, ou vestindo impropriamente um personagem, – e ainda hoje, apezar de todas as agruras por que elle tem passado, essa virtude ainda o não abandonou. Eugenio é um modelo de correcção.

Conheço-o desde que soltou os seus primeiros vagidos de actor, no theatro São Luiz, ao lado de Ismenia, Amoedo, Fraga, Martinho e tantos outros que desappareceram, levddos pela morte, pela velhice ou pela invalidez. Assisti á sua estreia representando a encantadora figura de um rei adolescente, e vi-o crescer de peça em peça, até occupar com muita dignidade o posto do nosso primeiro galan dramatico, posto que durante muito tempo ninguem se atreveu a disputar-lhe.

Ao ponto culminante do seu talento chegou Eugenio n’aquelle mesmo Recreio, com o Don Juan de Marana, de Zorrilla, e o Filho de Coralia,de Delpit. Este ultimo ficou sendo até hoje o seu papel mais sentido, mais vibrante, mais completo; todavia, antes e depois d’isso, quantos e que estrondosos triumphos!

Quem ha ahi que se não lembre das suas “épocas” ao lado de Furtado Coelho e Lucinda Simões? Seria difficil enumerar nestas columnas ligeiras todos os seus bons papeis. Basta citar o do Raul de Nanjac no Demi-monde.

Quem não se lembra d’aquelle impetuoso e apaixonado Ernesto, do Grão galeoto, uma das peças que têm sido mais bem representadas no Rio de Janeiro?

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Quem não se lembra de o ter admirado no melodrama, no drama e na comedia?

Eugenio só é inferior quando representa o vaudeville, o que felizmente raras vezes lhe tem succedido, ou quando não traja á moda do dia. Ainda assim, punha com muita elegancia a capa e o chapéo desabado de Don Juan, e em 1874 era um encanto, como já disse, vel-o vestido de rei adolescente, – calça de meia e bombachas.

Quando aqui estiveram, pela segunda vez, os artistas portuguezes do theatro D. Maria, carregaram com elle para Lisboa, mas o nosso artista (eu considero-o brasileiro comquanto elle nascesse em Portugal) o nosso artista foi sempre relegado para a segunda fila, o que de certo não lhe aconteceria se, em vez de ter entrado para o theatro Normal, fosse para outro onde os primeiros logares não estivessem tomados.

Além disso, Eugenio adoeceu gravemente em Lisboa, tão gravemente, que se espalhou no Rio de Janeiro a noticia da sua morte. Assisti, na igreja d e São Franscisco, a uma missa que a Ismenia mandou rezar por sua alma, e resolvi, quando soube que elle estava vivo, nunca mais ouvir missas por alma de amigos de cuja morte não estivesse plenamente convencido.

Mas o Eugenio tem a pelle dura, graças a Deus. Em Maceió, ha quinze annos,pouco mais ou menos, representando não sei que dramalhão de grande espectaculo, foi victima de uma explosão de polvora. Ficou horrivelmente queimado da cabeça aos pés. Possúo uma photographia sua, tirada no primeiro dia em que se ergueu do leito de dôr. Ninguem será capaz de descobrir n’aquelle retrato o sympathico astista. Parece um morphetico.

– Quando o theatro no Rio de Janeiro começou a andar para traz,Eugenio desgostou-se e levou alguns annos afastado da scena, curtindo, em S. Paulo, a nostalgia dos bastidores.

Chamado instantaneamente por Dias Braga, e por mim, que me gabo de haver concorrido para que elle voltasse, reappareceu no Ary Koerner do Anjo da meia noite. Era o mesmo artista; apenas trazia a voz um pouco modificada.

D’ahi por diante, em que peza ao seu desalento e ao seu desejo de abrir uma taverna, tem feito sempre boa figura. Foi ainda o Eugenio dos bons tempos quando ha poucos mezes tomou parte na representação do Amigo das mulheres, de Dumas Filho, e, mais recentemente, na Electra, de Galdós.

É instruido, tem conversação, sabe contar o que vio e o que ouvio. Quando esteve em Lisboa, deu um pulo a Paris, e aprendeu alguma cousa na boa escola da Comédie-Française e do Odéon.

É um dos poucos artistas dramaticos, portuguezes ou brasileiros, a quem o poeta póde confiar desassombradamente um papel em verso. Escreveu em

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tempo alguns bonitos sonetos,mas não quer que lhe fallem n’isso. Não tive meios de conseguir que transcrevesse um d’elles no meu album.

Por minha vontade não haveria hoje no Recreio logar para a cabeça de um alfinete. Não conheço artista que mereça, mais do que Eugenio de Magalhães, a sympathia e a protecção do publico fluminense.

A. A.

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O Theatro, 27/03/1902

[t. i.]Não percebo, porém, o que levou o meu distincto collega a escrever o

seguinte periodo:“Chovam as chufas, e as invectivas disfarçadas em espirito appareçam,

multipliquem-se e mordam, que nada d’isso demoverá os oganisadores das conferencias do seu nobre intento.”

Não creio que tão nobre idéia seja recebida com chufas, e quando uma ou outra chacota de máo gosto lhe atirem nas secções alegres da nossa imprensa, não será isso arma que possa matal-a.

Estou quasi a dizer que, no caso, é preferível o gracejo ao silencio, – e quando aquelle, por ventura levado até o paroxismo da chalaça, produzisse algum effeito no espirito publico, os organisadores das annunciadas conferencias teriam bastante força e coragem para annullar esse resultado.

Não creiam que uma propaganda de arte, feita de boa fé, desinteressadamente, com todo o ardor, com toda a convicção, elevada, persuasiva, e brilhante, possam attingir os bofes do ridiculo. Ridiculo será o enxovedo que pretende deslustrar o generoso esforço, a patriotica intenção revelada n’esse movimento sympathico.

Não tenho, confesso, muita confiança no exito da propaganda; mas nem por issso deixarei de animal-a e applaudil-a.

O nosso theatro é, infelizmente, um enfermo que precisa de medicina mais energica. O carioca aprecia muito a oratoria, mas os discursos entram-lhe por um ouvido e saem pelo outro... Tratando-se do theatro no Rio de Janeiro vem de molde a applicação da velha chapa: Res non verba.

As condições moraes do nosso theatro dependem das suas condições materiaes.

É preciso cuidar do corpo antes de cuidar da alma, e sem a intervenção dos poderes publicos não me parece que se consigam bons resultados.

O theatro Municipal, que está legalmente creado, será o primeiro passo para a realisação de um sonho que deve ser o sonho de todo animal pensante da nossa terra.

Se ultimamente não tenho insistido na minha velha propaganda, se tem creado ferrugem a manivela do meu realejo, é por dous motivos: o primeiro por me parecer inopportuno o momento, pelas difficuldades tremendas com que lucta o governo municipal, e o segundo porque o sei animado dos melhores desejos, e poderia, se não fosse o receio de me tornar indiscreto, adiantar

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alguma cousa mais, que encheria de contentamento os verdaeiros amantes da arte dramatica.

As conferencias serviriam efficazmente para mostrar ao publico a maravilhosa evolução por que tem passado o theatro na Europa, principalmente em Paris, que continúa a ser o centro da intellectualidade artistica do universo inteiro. Preparariam o espirito das massas para receber e acceitar as novas formulas da litteratura dramatica. Sem destruir os velhos idolos, cujos pedestaes inconcussos têm resistido ao odio systematico dos excessivos e dos exaltados, incutiriam na intelligencia dos ouvintes tudo quanto ha de bello na obra da renovação do drama e da comedia.

Não creio, porém, que das conferencias, por mais eloquentes que fossem os oradores, sahisse o theatro propriamente dito, sahissem os artistas que devem ser a base da construcção.

Poucos, muito poucos possuímos actualmente, e de dia para dia o pessoal se rarefaz; é necessario procurar, descobrir, inventar, permittam-me o termo, quem os substitua, e ninguem abraçará uma carreira cujas condições materiaes não offereçam certa garantia de futuro.

No theatro o actor acompanhou naturalmente a evolução do auctor. O repertorio moderno,todo de observação e analyse só póde ser comprehendido e interpretado por artistas de certa educação litteraria. Hoje, no palco, exige-se alguma cousa mais do que a technica de outr’ora; a paixão não é apenas exhibida: é também explicada pelo auctor, que deve estar apercebido para sentir e fazer sentir todas as subtilezas do theatro moderno.

Não duvido que entre nós se encontrem esses actores; creio mesmo que não será difficil descobril-os; mas para isso é necessario dar-lhes de antemão a certeza de que terão na sociedade a importancia que devem ter.

Portanto, repito que convem cuidar do corpo antes de cuidar da alma.

***

Nos theatros nada de novo.Continuam no Recreio as recitas de Quo vadis?, apenas interrompidas

por uma boa representação da Morgadinha de Val-Flor, dada em beneficio de Eugenio Magalhães, e hoje e amanhã pelos officios da Paixão. É um successo. Renovo os meus parabens a Eduardo Victorino.

– A excellente companhia do Lucinda fez reprise do magnifico vaudeville de Feydeau Ha caça e... caça, o qual, tendo sido outr’ora muito bem representado na rua do Lavradio, nada perdeu com a mudança para a do Espirito-Santo. Mattos e Peixoto conservaram os seus papeis. O publicou rio e applaudio.

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Fui obsequiado com um exemplar da comedia em um acto, os Apuros de Lulú, representada pela primeira vez no Lucinda, em novembro do anno passado.

É escripta pelo Sr. Marinonio Piedade (nome ou pseudonymo?), e editada pelos Srs. Jacintho Ribeiro & Santos.

Uma simples farça, que não prima pela orignalidade, nem pela observação: parece-se com muitas outras, fóra de uso, e exhibe um tristissimo incidente da vida conjugal, que no mundo real jamais teria solução pacifica.

Uma senhora joven, casada com um velho hemorrhoidoso e dissoluto, perdoa ao marido, com uma facilidade que nem mesmo nas farças se admitte, o afastal-a do lar domestico para introduzir n’elle uma rapariga de menor idade, que para fins libidinosos lhe foi torpemente vendida por uma alcaiota.

O personagem mais repugnante da peça não é o velho libertino e imprudente, de uma imprudencia absurda, que transforma a sua casa em alcouce; é a mulher que perdôa essa infamia, depois de se divertir á custa d’ella.

Entretanto, a farça revela certo engenho, e fará rir desde que o papel de Lulú seja confiado a um bom actor comico.

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Os auctores dramaticos brasilleiros devem muitos agradecimentos ao Dr. Nylo Pessanha pelo bellissimo discurso com que, discutindo o projecto do codigo civil, defendeu brilhantemente a propriedade litteraria.

Querem um argumento vivo em favor da generosa idéa do illustre deputado? Martins Penna morreu ha cincoenta e quatro annos, a ainda vive a sua unica filha, D. Julieta Penna, que é pobre, muito pobre...

A. A.

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O Theatro, 03/04/1902

Uma questão que interessa muito de perto aos escriptores que produzem peças theatraes é, não ha duvida, a da propriedade litteraria; por isso, não obstante sei essa questão uma questão vencida, uma questão morta, e a minha prosa um sermão no deserto, venho fazer algumas considerações á Chronica litteraria, publicada ante-hontem n’esta folha por Medeiros e Albuquerque.

Em primeiro logar não creio que toda a gente, como pensa o meu illustre confrade, confunda direitos auctoraes com propriedade litteraria, pois é precisamente o destaque entre uma cousa e outra a base da divergencia.

Medeiros, que está, mais que ninguem n’este paiz, senhor absoluto da materia, e legislou sobre ella, diz que “propriedade litteraria” é uma metaphora enganadora; reconhece, entretanto, que ella figura nas legislações do Mexico, de Guatemala e de Venezuela.

Bem sei que esses tres paizes estão longe de ser os mais civilisados do orbe terraqueo, mas a verdade é que no cado de que se trata elles são mais liberaes e mais justos que as grandes nações européas, pois não ha em toda a jurisprudencia motivo para suppor e dizer que a propriedade litteraria não seja uma propriedade como outra qualquer.

Isto não é (sirvo-me das expressões do collega) um “debate palavroso, sem o minimo fundo de seriedade”, e, se realmente foi um homem sanguinario, o tal dictator Barrios, quem primeiro se lembrou de reconhecer a propriedade litteraria, tenho que esse homem fez jus ao reconhecimento de todos os litteratos.

A lei,tal qual está consagrada nos codigos dos paizes mais adiantados, não foi feita por escriptores de profissão, e ora ahi têm porque a propriedade litteraria é uma metaphora. Os grandes litteratos como Alexandre Herculano, e outros, entre os queaes Lemercier, para citar o mais excessivo, que dizia considerar-se deshonrado no dia em que recebesse dinheiro pelo fructo do seu talento, tem contra a sua opinião a de outros não menos illustres.

Turgot proclamava a propriedade intellectual a primeira, a mais sagrada e imprescriptivel de todas. D’esse parecer eram Diderot, Seguier, Montalambert, de Segur, Lamartine, Victor Hugo e quantos, quantos mais!

Em 1811 Lamartine dizia no parlamento francez, quando se discutia a propriedade intellectual: “Peço 50 annos para os direitos da intelligencia, porque sinto que ainda não chegou a occasião de se lhe conceder mais; entretanto, tambem vos digo que no dia em que proclamardes a perpetuidade da propriedade litteraria, tereis emancipado o pensamento humano. E esse dia, senhores, ha de chegar. Por ventura as objecções que se appresentaram contra

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a applicação dos principios do direito commum á propriedade intellectual deixaram de ter valor? No estado da nossa legislação não será permittido consagrar o direito que deveriam ter os auctores de todas as obras litterarias e artisticas, como os auctores de todas as producções, de dispor livremente e para sempre do fructo do seu trabalho?”

Já vê o meu querido Medeiros que os legisladores do Mexico, da Guatemala e de Venezuela estão em muito boa companhia.

Alphonse Karr, que n’outros escriptos se mostrou estravagante e paradoxal, um tanto desorientado, talvez, pela preoccupação parisiense de ter espirito, escreveu sobre o assumpto um artigo irrespondivel, innumeras vezes citado.

“Examinemos, disse elle, um d’esses admiraveis argumentos que triumpharam do direito da propriedade litteraria: ‘As obras do espirito são como a luz do sol; carece d’ellas a humanidade; logo, pertencem-lhe. Seria vergonha sugeital-as ao vil mercantilismo.’ Tambem o pão é necessario á humanidade e comtudo os padeiros exigem dinheiro por elle á humanidade; as casas são tambem necessarias á humanidade – especialmente em tempo de chuva e frio – e a humanidade, se não pagar o aluguel, tem que dormir ao ar livre.”

“Ha só um argumento contra a propriedade litteraria, continúa Alphonse Karr, – é que os homens de genio e de talento são uma pequenissima minoria e estão á mercê dos outros.”

E já agora não resisto ao ensejo de copiar mais o seguinte, e copiar, digo porque encontrei o artigo já traduzido:

“Limitar-me-hei por agora a responder a duas das objecções que oppõem á propriedade litteraria.

É a primeira – o interesse que a sociedade tem em evitar que um herdeiro máo fanatico ou insensato anniquile a obra de seu antepassado.

N’este caso, não é possivel anniquilar clandestinamente um livro e ficam existindo sempre os exemplares das bibliothecas, as leis sobre propriedade material indicam, para remediar o mal, um meio simplicissimo: a expropriação por utilidade publica.

A segunda objecção é a seguinte: A execução d’este projecto apresentaria grandes difficuldades.

Não creio; todavia, parece-me que as leis sobre propriedade material as têm apresentado; têm-se escripto e escrevem-se ainda centenares de volumes sobre o assumpto; e, apezar de todos esses volumes, enxames de advogados de toda a especie vivem d’essas difficuldades tão frequentemente resolvidas e sempre renascentes.”

Em Portugal a questão foi magistralmente tratada por um escriptor aliás pouco fallado, Vicente Machado de Faria e Maia, no volume XIII do Instituto

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de Coimbra, “o primeiro periodico do reino em sciencia e litteratura”, disse Camillo Castello Branco, que transcreveu com muitos gabos esse escripto, pedindo á imprensa lida que o reproduzisse “afim de insinuar na consciencia dos legisladores que o trabalho da intelligencia é uma propriedade.”

Tenho pena de não ver com a boa justiça, que é a justiça do Mexico, de Guatemala e de Venzuela, o meu confrade Medeiros e Albuquerque, um dos homens de lettras da nossa Patria que mais admiro e respeito pelo seu talento, pela sua illustração e pelo seu labor incessante e fecundo.

***

A unica novidade que os nossos theatros nos apresentaram durante a semana foi uma comediasinha, um a – proposito do actor Pedro Augusto, – a Direcção dos balões.

N’esta, como n’outras comedias já representadas, o prestimoso artista revelou muita habilidade, comquanto a peça, apezar de curta, fosse um pouco prejudicada pela representação.

É o que sempre acontece, infelizmente, ás comedias ensaiadas para um espectaculo certo e determinado, fóra das horas do expediente, como se diz nas repartições publicas.

É pena que assim seja. Não ha razão para que em qualquer jantar os cozinheiros não se esmerem no preparo dos hors-d’œeuvres.

– E mais nada. Continúa no Recreio a gloriosa carreira do Quo vadis, realisando assim o meu prognostico, e tem as malas feitas a companhia do Lucinda, anciosamente esperada na Paulicéa.

A. A.

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O Theatro, 10/04/1902

No meu folhetim de 27 de março ultimo, noticiando que um grupo de moços, jornalistas de talento, resolvera encetar, por meio de conferencias publicas, uma propaganda activa em favor do nosso pobre theatro, fiz algumas ligeiras considerações, entre as quaes a seguinte, quando tratei da necessidade, que se me afigura fundamental, da renovação do nosso pessoal artistico:

“No theatro o actor acompanhou naturalmente a evolução do auctor. O repertorio moderno, todo de observação e analyse, só póde ser comprehendido e interpretado por artistas de certa educação litteraria. Hoje, no palco, exige-se alguma cousa mais do que a technica de outr’ora; a paixão não é apenas exhibida: é também explicada pelo actor, que deve estar apercebido para sentir e fazer sentir todas as subtilezas do theatro moderno.”

Um amigo que se interessa vivamente por estes assumptos, acaba de me remetter um numero do Gaulois, de Paris, em que vem publicada uma carta da Duse a proposito da Ristori e da má opinião que, segundo alguns jornaes italianos, a gloriosa octogenaria emittira sobre a sua illustre successora, opinião, aliás, immediatamente desmentida pela propria Ristori.

Essa carta, ou eu muito me engano, ou foi escripta por Gabriel d’Annunzio, que é, como se sabe, o director espiritual da Duse.

É evidentemente obra de um escriptor revolucionario. Tratei de perto a grande actriz, conheço-a perfeitamente, e não creio que no seu sentido se operasse uma transformação maravilhosa a ponto de leval-a a citar latim. Demais, o que se advoga na carta do Gaulois é menos a causa da arte que a da litteratura dramatica.

Mas não é d’isso precisamente que venho tratar; tanto se me dá que a carta seja escripta por D’Annunzio como pela Duse. O meu fito é dizer aos leitores que encontrei n’aquelle documento, expressa por outras palavras, ainda que menos desenvolvida, a observação acima transcripta.

“O interprete de uma obra d’arte, escreve a Duse, não deve ser hoje mais do que um collaborador fiel, attento e, por assim dizer, transparente na sua simplicidade. Já não pensa em tomar o logar ao poeta, mas esforça-se sinceramente em transmittir ao publico a creação poetica sem a deformar. Ha quem diga, segundo a antiga formula, que no meu repertorio novo não “creei” nenhum personagem. É esse o meu elogio, e mereço-o pelo meu fervor, pela minha humildade e tambem pelo prazer purissimo que experimento diante do poder da poesia.”

Realmente, d’antes, Montanelli era esmagado pela Ristori, Giacometti pelo Salvini, Octave Feuillet pelo Rossi, D’Ennery por Frederick Lamaitre, etc.

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Mesmo entre nós temos o exemplo de João Caetano: ninguem falla nos seus auctores. Hoje o auctor e o actor completam-se um ao outro. A evolução foi tal, que o dramaturgo é dispensado de saber a arte de combinar os effeitos scenicos, e no actor exige-se uma forte cultura intellectual.

O talento do actor vivia outr’ora das situações theatraes que encontrava no seu papel, hoje, sob esse ponto de vista, todos os papeis são “máos”, como se costuma dizer nos bastidores nos bastidores: o trabalho do actor é todo de interpretação psychologica.

É preciso notar que sou carranca; nunca me emancipei da influencia do velho Sarcey, e agora é tarde para arripiar carreira. Entretanto, como comprehendo o progresso, seria, quando tivessemos um theatro organisado, o primeiro a aconselhar que acompanhassemos a corrente moderna.

Não creio que o nosso publico se acommodasse com muita facilidade ás novas formulas de arte: essas inovações são como a luz dos astros, que levam muito tempo para chegar á terra. Os proprios parisienses têm se mostrado difficeis, e a prova d’isso ahi está no triumpho incomparavel de Edmond Rostand, quando se lembrou de lhes dar, no Cyrano de Bergerac, um amalgama de Molière, Regnard, Marviaux, Beaumarchais, Victor Hugo, Alexandre Dumas e Theodore de Banville.

No preparar o publico fluminense para receber a luz dos novos astros deve consistir, já eu disse, o esforço das projectadas conferencias, que são esperadas, digamol-o, com muita sympathia.

***

Nenhuma novidade nos deram os theatros depois do meu ultimo folhetim, e, comquanto regressasse de S. Paulo a companhia Silva Pinto, que vem para o Lucinda, nenhuma teremos tão cedo, a não ser que nol-a traga a companhia Tomba, que vem para o Apollo.

A companhia Silva Pinto trazia uma opereta nacional, que representou com successo em S. Paulo, Um caso colonial, de Gomes Cardim, musica de Carlos de Campos. Seria uma novidade, uma bella novidade; mas, pelos modos, uma pequena divergencia havida entre o auctor do libretto e o emprezario,privará o nosso publico do prazer de ouvir, pelo menos por emquanto, a opereta paulista.

Aquella divergencia provém do titulo da peça: o emprezario não gosta de Um caso colonial e tem razão; o auctor quer conservar o seu titulo e tem tambem razão.

O emprezario quer que a peça se intitule Os portuguezes no Brasil em 1610; o auctor protesta: embirra com os titulos compridos e faz bem.

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No meu entender, haveria um meio de contentar ambas as partes: era annunciar a peça por esta fórma: “Um caso colonial, titulo que, na opinião da empreza d’este theatro, deveria ser substituido pelo seguinte: “Os portuguezes etc.”

E o publico fluminense não ficaria privado de assistir á representação de uma peça que agradou tanto na Paulicéa, – lettra e musica.

– A estréa da companhia Silva Pinto será, portanto, com o eterno Tim tim por tim tim, o que aliás não desagradará, creio, aos innumeros admiradores da peça que, talvez, tenha tido maior numero de representações em todo o Brasil, tanto mais que a Pepa (e não se comprehende o Tim tim sem a Pepa) lá está com os seus famosos desoito papeis.

Releva dizer que a companhia não vem permanecer no Rio de Janeiro; o intento do emprezario, que continúa a ser o salta-obstaculos que todos conhecem, é regularisar o repertorio, fazer a toilette álgumas peças, e levantar immediatamente o vôo para o Norte, onde os povos suspiram pelo Tim tim.

***

Realisa-se hoje no Recreio Dramatico a récita do feliz auctor de Quo vadis.Eduardo Victorino não precisa absolutamente de reclamos; a sua peça está

em toda a pujança de uma bonita carreira, o theatro encher-se-ia hoje, mesmo em récita ordinaria.

Entretanto, não me furto ao prazer de recommendar aos leitores que não percam a occasião de manifestar a sua sympathia por um escriptor que a merece, não só pelo talento que tem manifestado em tantas occasiões, como, e principalmentte, pelo constante labor de que tem dado tão salutares exemplos.

Antes de ser o auctor do Quo vadis, simples tarefa de intelligencia e pachorra, Eduardo Victorino conquistou o honroso diploma de auctor dramatico, escrevendo peças originaes, que foram e hão de ser devidamente applaudidas.

Demais – e disso posso dar testemunho – é um excellente camarada, que se interessa pela boa fortuna dos collegas, e os anima e estimula, o que é raro, muiro raro. Não leva a amisade ao ponto de considerar, como tantos, que este sentimento seja uma especie de alienação de todos os outros. Por isso, desejo, como se se tratasse de um irmão, que os seus triumphos se reproduzam, e sempre em escala ascendente.

A. A.

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O Theatro, 17/04/1902

Tenho passado estas ultimas noites entregue a uma verdadeira delicia, lendo attentamente o theatro inedito, isto é, não imprenso, de Martins Penna, e todo escripto pela propria mão do grande comediographo fluminense.

Achavam-se esses manuscriptos na Bibliotheca Nacional, por doação feita pela filha de Martins Penna; constando, porem, a esta senhora que uma casa editorial pretendia publicar as peças ineditas e para isso solicitara a quem de direito permissão para extrahir n’aquelle estabelecimento as necessarias copias, pedio ella a restituição dos preciosos autographos, afim de que de taes copias se encarregasse pessoa de sua inteira confiança.

D. Julietta Penna incumbio-me de dirigir tão arduo serviço, e, logo que esteja este concluido, todos os autographos serão de novo levados á Bibliotheca, onde estarão no seu verdadeiro logar.

Das comedias representadas de Martins Penna tenho presentes os manuscriptos originaes das seguintes: O juiz de paz da roça, O judas em sabbado de aleluia, Quem casa quer casa e O caixeiro da taverna, sendo que das duas ultimas ha não só os borrões, como as primeira cópias, tiradas pelo proprio punho do auctor.

Das peças publicadas faltam,portanto, entre estes manuscriptos, as seguintes: O noviço,A familia e a festa da roça, O dilettante e Os dous ou o inglez machinista. D’esta ultima existem alguns fragmentos n’um maço especial, com outros que ainda não esmiucei.

Das peças representadas e até hoje não publicadas figuram na collecção as seguintes:

Dramas: Viliza ou Nero de Hespanha, em 1 prologo e 5 actos, em verso; Dona Leonor Telles, em 5 actos e 6 quadros; Fernando, ou o santo accusador, em 3 actos; D. João de Lyra, em 3 actos, peça cujo titulo primitivo era O repto; Itaminda, ou o guerreiro de Tupan, drama indigena em 3 actos.

Comedias: Os tres medicos, em 1 acto; O namorador, ou a noite de S. João, em 1 acto; Os meirinhos, em 1 acto; O cigano, em 1 acto; As desgraças de uma criancinha, em 1 acto; As casadas solteiras, em 3 actos, imitação de francez, unica peça de Martins Penna, penso eu, que não é original.

Ha uma comedia sem titulo, que tambem poderia intitular-se Os meirinhos, e que não creio que seja O terrivel capitão do matto, representado em 1846, o qual não figura n’esta opulenta collecção.

Podemos considerar perdidos: O segredo de estado, drama em 1 acto; A barriga de meu tio, comedia burlesca em 3 actos; Um sertanejo, comedia em 1 acto; O jogo de prendas, comedia em 1 acto, e O usurario, comedia em 3 actos.

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Das duas ultimas aqui estão, entretanto, alguns fragmentos, que ainda não classifiquei, e não duvido, depois do rapido exame a que já os submetti, que pelo menos O jogo de prendas esteja completo, o que, aliás, não afianço.

Não sei se pertencerão ao Sertanejo algumas scenas do Sertanejo na Corte, comedia incompleta, que põe em scena, com muita graça, um mineiro quasi selvagem, vindo... sabem de onde?... do Curral d’Elrei, que é hoje Bello Horizonte.

Entre estes manuscriptos figura uma comedia que, pelo menos com esse titulo, nunca foi representada nem impressa: Os ciumes de um pedestre, a qual, tendo sido annunciada em beneficio do actor Francisco de Paula Dias, a 29 de janeiro de 1846, foi, dias antes do espectaculo, prohibida pela policia, apezar de approvada pelo presidente do Conservatorio, DiogoSoares da Silva Bivar.

Cá está a sentença,copiada ipsis verbis:“Não concedo licença para subir a scena a comedia constante da censura, e

emendas, Rio, em 20 de janeiro de 1846. – Campos.”Quem ler essa comedia debalde procurará uma scena, uma situação, um

dito, ao menos, que justifique o rigor policial.Não duvido que esses Ciumes de um pedestre sejam a mesma comedia, a que

já me referi, representada a 5 de julho d’aquelle anno, com o titulo O terrivel capitão do matto; mas não tenho certeza d’isso; esse e outros pontos hei de elucidar opportunamente, o que não será difficil compulsando os jornaes da época.

Como se vê, a obra de Martins Penna está quasi inteiramente salva da acção destruidora do tempo. N’um incendio que devorou, ha annos, uma casa da rua do Rezende, perdeu-se um caixão contendo todos os papeis que estavam em poder do comediographo quando elle falleceu em Lisboa, a 7 de dezembo de 1848. É possivel que se perdesse algo n’esse caiyão, mas não poderia ser cousa de grande importancia, porque Martins Penna esteve apenas um anno na Europa e durante esse anno enfermo sempre.

Não quero por emquanto dizer as impressões que tive, ou por outra, que estou tendo, com a leitura, ainda não concluida, das peças ineditas do auctor do Noviço.

Entretanto, posso afirmar desde já que esta leitura me tirou um grande pezo d’alma. Receiava que, tendo Martins Penna consentido que umas peças se imprimissem e outras não,as ineditas fossem inferiores ás publicadas. Assim não acontece, felizmente. Todos os manuscriptos que tenho tido são dignos do creador da comedia brasileira.

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Os dramas vieram revelar-me um Martins Penna que eu não conhecia absolutamente, muito diverso do outro; mas força é dizer que o dramaturgo não está na altura do comediographo.

É curioso que esse escriptor tão profundamente brasileiro, ou antes, tão profundamente carioca, buscasse na historia estrangeira o assumpto dos seus dramas, excepção feita de Itaminda, que é nosso, genuinamente nosso, e no qual o leitor encontrará, talvez, os precursores de Pery e Cecy, dez annos antes de apparecer o glorioso livro de José de Alencar.

Aqui não é um indio, são dous indios que se apaixonam pela filha do fidalgo portuguez, e essa rivalidade dá logar a algumas scenas de grande intensidade dramatica.

Além disso, Pery, quero dizer Itaminda é casado e tem um filho, o que augmenta o horror das situações.

Ainda hoje, representado por Dias Braga e Ferreira de Souza, e bem posto em scena, pois que se presta a uma enscenação muito pittoresca, o drama de Martins Penna produziria effeito.

Eu embirro solemnemente com os indios em scena, que dão a idéa de uns espanadores ambulantes, mas no Itaminda a acção dramatica é tão heroica e violenta, e a peça é tão brasileira, que eu fecharia os olhos ao desgracioso da nudez selvagem tão mal fingida com roupa de meia.

Considerar-me-hei feliz em quanto estiverem commigo os manuscriptos de que sou depositario transitorio. E como ha de viver e morrer, sirva este folhetim de declaração do deposito de um thesouro que pertence á Nação.

A. A.

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O Theatro, 24/04/1902

Com quanto não fosse o theatro a especialidade do talento de Aurélien Scholi, não posso deixar de registrar n’este folhetim o nome d’esse grande morto,consagrando-lhe algumas linhas ao correr da penna.

Em 1883 vi-o em Paris, no café Madrid, onde elle era infallivel todas as tardes, á hora do apperitivo, e guardo fielmente a visão da sua cabelleira romantica, do seu nariz petulante, e do seu monoculo, ainda mais petulante, que parecia grudado no olho esquerdo.

Scholl estava então no apogeo da sua fama: era o redactor-chefe do Voltaire, que apparecera recentemente, e todos os apontavam como o parisiense mais espirituoso d’aquelle tempo. As suas chronicas do Nain Jaune, do Figaro e de outros jornaes tinham-lhe valido essa invejavel reputação, e elle não a desmentio depois, no Echo de Paris.

Demais, já n’aquella época era Scholl não só o auctor acclamado de vinte e tantos volumes que tinham sido lidos e relidos por duas gerações, como o inventor mais fertil e mais feliz de nouvelles à la main, genero pelo qual os parisienses dão o cavaquinho. Se o querem conhecer por essa face, que o torna um emulo de Chamfort, leiam os tres volumes do seu livro L’esprit du boulevard, publicado em 1886.

Elle estreara-se no theatro, aos 20 annos, com uma comediazinha escripta com Siraudin e Lambert Thibonst, Ne jouez pas avec l’amour; depois fez representar na Comédie Française, em 1859, Rosalinde, 1 acto, escripta com o mesmo L. Thiboust; no Odéon, em 1861, Jaloux du passé, 1 acto; no Déjazet, em 1861, Singuliers effets de la foudre, 1 acto, de collaboração com Langeac; no Gymnasio, em 1864, La question d’amour, 1 acto, de collaboração com Paul Bocage; no Variedades, em 1866, Les chaines de fleurs, 1 acto; no Déjazet,em 1868, L’hótel des illusions, 1 acto,de collaboração com Flr O’Squarr; no Odéon, em 1876, Le repentir, 1 acto; no Variedades, no mesmo anno, On demande une honnête femme, 1 acto, de collaboração com Victor Kening, e no Odéon, om 1878, Le nid des autres, 3 actos, de collaboração com Armand d’Artois. De todos os seus trabalhos theatraes, foi esse o unico que teve alguma repercussão. Nenhum d’elles foi representado no Brasil.

Durante doze annos Scholl abandonou completamente a litteratura dramatica, até que, em 1890, enthusiasmado pelo successo do Theatro Livre, escreveu e entregou a Antoine, que a fez representar, uma comedia em 1 acto, L’amant de sa femme, que tinha muito de espirituosa e alguma cousa de livre, mas não era absolutamente uma novidade.

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Finalmente, em 1892, o brilhante chronista fechou a sua carreira de dramaturgo, fazendo representar no Nouveau Theatre, uma pantomima em 3 actos, La danseuse de corde, escripta de collaboração com Jules Reques, musica de Raul Pugno.

Foi Aurélien Scholl, naturalmente, quando tinha menos idade, pois que morreu quasi septuagenario (nascera em 1833), uma especie de Petronio, isto é, de arbitro das elegancias parisienses; além disso, amador emerito de esgrima e versadissimo nas leis do duello, era muito ouvido em questões de desaggravos e pendencias.

Apezar de se haver casado com uma ingleza, era o mais parisiense dos parisienses, e não tomava a sério, já não digo os estrangeiros e os provincianos, embora francezes, mas os proprios parisienses que não fossem figuras obrigadas do boulevard, dos cercles e das premières. Creio ter sido elle o primeiro que se lembrou de dar aos estrangeiros a classificação geral de japonezes.

A esse respeito contarei uma anecdota, que até hoje se tem conservado inedita, e vai aqui sob a responsabilidade de Eduardo Garrido, que m’a transmittio:

Achando-se em Paris o grande poeta Guerra Junqueiro, e passeando no boulevard, em companhia de um escritor parisiense, entendeu este que devia apresental-o a Aurélien Scholl,com quem se encontrára e que haiva parado para comprimental-o.

– Apresento-lhe o Sr. Gurerra Junqueiro, o primeiro poeta portuguez da actualidade.

O chroniqueur medio o japonez de alto a baixo, através do seu monoculo insolente, e, dirigindo-se ao seu compatriota, disse-lhe:

– Desculpe-me, meu caro, mas essa não como eu! O primeiro poeta portuguez da actualidade já me foi apresentado não ha muito tempo: era mais baixinho e mais gordo.

E seguio o seu caminho.A condição essencial para estimar e admirar certas celebridades

parisienses, é... não conhecel-as de perto.

***

Já viram os leitores que me não enganei quando, ao dar noticia da primeira representação do Quo vadis, me convidei para a festa de meio-centenario.

Essa festa realisou-se hontem, infelizmente com chuva, o que me privou de levar um aperto de mão a Eduardo Victorino e outro a Dias Braga.

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O drama, que não disse ainda a sua ultima palavra, e póde contar com uma brilhante reprise, vai descançar, cedendo amanhã o palco á Honra, de Sudermann, traduzida pelo meu illustre confrade Cunha e Costa.

Quem vio a peça do grande dramaturgo allemão quando exhibida pela companhia Della Guardia, não duvidará do exito que a espera no Recreio, onde a representação será, se quizerem, muito acceitavel.

Tenho um magnifico assumpto para o meu proximo folhetim.

***

O máo tempo, que hontem me impedio de dar pessoalmente os parabens a Dias Braga e Eduardo Victorino, tambem me impedio de assistir á estréa da companhia Tombo, no Apollo, o que aliás pouco me contrariou, porque não fui convidado, nem se exhibia uma peça nova, mas os famosos Granadeiros, que têm servido invariavelmente para todas as estréas da mesma companhia n’esta capital.

***

Teve a companhia Silva Pinto a singular fortuna de apanhar no Lucinda algumas boas casas com o Tim tim por tim tim, o Periquito e os Sinos, tanto os de Corneville como o do eremiterio. Isso explica-se, não pelo repertorio, que não é máo mas está muito batido, mas pelo pessoal da companhia, o melhor que actualmente se póde exigir.

Nos Sinos de Corneville o papel de Rosalina foi, pela primeira vez no Rio de Janeiro, representado pela Pepa,e é pena, com franqueza o digo, que esse interessante papel não lhe tivesse sido sempre confiado.

E a proposito da Pepa, noticiarei aos seus admiradores e amigos que ella prepara a sua festa paaa breve com a primeira representação de Um caso colonial, a opereta dos Drs. Gomes Cardim e Carlos de Campos,á qual me referi no penultimo folhetim.

Desappareceram, felizmente, os ligeiros obstaculos que se oppunham á representação d’essa opereta, que, tendo agradado em S. Paulo, provavelmente agradará no Rio de Janeiro.

Disse-me o emprezario que embirrára com o titulo porque, quando percorreu, com a peça, parte do interior de S. Paulo, notou que o publico suppunha que a palavra colonial se referisse não á colonia, mas aos colonos que actualmente trabalhavam nas fazendas, e estes pouco interesse despertavam.

Como, porém, aqui na Capital Federal não ha receio de que se estabeleça tal confusão, o titulo Um caso colonial não soffre os mesmos inconvenientes.

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Recommendo aos leitores a bella matinée que se realisará domingo proximo no salão do Instituto Nacional de Musica.

O concerto é organisado pelas eximias pianistas D. Amelia de Mesquita e D. Alcina Navarro, que apresentarão duas das suas alumnas mais adiantadas.

Far-se-hão ouvir as applaudidas cantoras Olivia Cunha e Nicia Silva, e virtuoses de primeira força, taes como Cernicchiaro, A. Bevilacqua e Jeronymo Silva.

Ahi está um domingo bem empregado.A. A.

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O Theatro, 01/05/1902

O publico fluminense acaba de travar conhecimento, pela primeira vez, com um dramaturgo allemão. “Pela primeira vez” repito, porque ás representações de Sudermann, dadas em italiano pela companhia Della Guardia, não assistiu o publico, o grosso publico, mas uma parte, aliás reduzidissima, da sociedade. O bello drama que Dias Braga com um bello gesto acaba de engastar no seu repertorio ecclectico, foi exhibido por aquella companhia apenas duas vezes, a primeira em 1899, a segunda o anno passado,e em ambos os espectaculos a concurrencia foi diminuta.

Não sei qual será o resultado da sympathica tentativa do empresario do Recreio; em todo caso,já cá temos o grande Hermann Sudermann, n’uma traducção litteraria de Cunha e Costa, e não perco a esperança de ver um dia no palco fluminense Hauptmann, Lindau, Rosen, Willbrandt, Halbe, Feitag e outros. É tempo de nos convencermos, e convencermos as massas, de que não só os francezes que escrevem peças de theatro.

É verdade que ninguem as escreve como elles, tão claras, tão nitidas, tão harmoniosas, e esse mesmo Sudermann, o Sudermann da Honra, o Sudermann de 1889, antes de se deixar influenciar por Ibsen e todos os insurgidos da Scandinavia sacrificara nas aras de Dumas Filho e Augien.

A honra foi, effectivamente, o baptismo theatral do celebre dramaturgo, no Lessing-Theater, de Berlim, seis dias depois da proclamação da Republica Brasileira, a 21 do novembro de 1889.

A esse triumpho seguiram-se de perto mais dous triumphos: O Fim de Sodoma e O lar (die Heimath), mais conhecido por este outro titulo: Magdá, e tambem aqui muito bem representado pela comapanhia Della Guardia.

Não tiveram a mesma repercussão a Batalha das borboletas nem a Felicidade occulta (Das Gluck im Winkel), peça que tivemos a fortuna de ver primorosamente interpretada por Clara Della Guardia, Paladini e Orlandini.

O mesmo pode-se dizer que Morituri, Teja e Fritzchen, dramas em 1 acto, do Propheta João, drama biblico em 6 actos, da lenda fantastica as Tres pennas de garça, e sobretudo do ultimo trabalho de Sudermann, os Fogos de S. João, que foium fiasco monumental.

O dramaturgo principiou bem, muito bem, galgando facilmente o cume da celebridade; mas – que querem? – deu ouvidos á critica dos novos, que achavam nas suas peças o defeito de serem muito bem feitas, defeito que nenhum d’elles perdôa.

Sudermann penitenciou-se, bateu nos peitos, e emendou a mão: começou a fazer peças mal feitas, desarticuladas, symbolicas, para empregar a expressão

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da moda. Os novos exultaram de prazer, mas o publico voltou-lhe as costas. Sua alma, sua palma.

Aos recentes trabalhos, de uma psychologia indecisa, em que transparece o desejo visivel de sacrificar a propria habilidade aos processos modernos de dramaturgia, prefiro essa Honra, esse drama de estréa, espontaneo e sincero, com o seu palavroso barão Trast, fusão engenhosa de Desgonais, Carnioli e Chamillac, e toda a sua convenção de melodrama, em que o dinheiro apparece no desenlace como um Deus ex machina, em que um homem de bem, indignado ha pouco por lhe haverem comprado a irmã, acaba comprando a noiva, e o que é mais grave, com o dinheiro de um amigo, e tornando se cunhado de um bandido que não quiz ser seu cunhado.

Mas que importa me inquiete a felicidade futura d’aquelle bello idealista casado com a irmã do amante de sua irmã? Que me importa reflectir que o barão de Trast, generoso e liberal como é, poderia, com mais uma investida á burra, casar Conrado com Alma, como casou Roberto com Leonor? A peça é bem feita, muito bem feita: diverte, impressiona, commove, sobresalta, e isso é o essencial.

Aquella acção logica, singela, de um realismo cruel, que se desenvolve entre duas casas, miseraveis ambas, uma do pobre onde tudo se vende, e a outra do rico onde tudo se compra, é de uma belleza theatral inexcedivel.

Novidade não a tem a peça; a lucta do capital e do trabalho e o conflicto das castas são assumptos exploradissimos n’um sem numero de comedias, dramas e dramalhões francezes de todos os calibres; mas não ha duvida que Sudermann reformou,se assim me posso exprimir, esses assumptos e fez uma obra humana e pathetica. A prova disso ahi está no maravilhoso effeito que A honra produzio ultimamente em Paris, quando representada pela primeira vez no theatro Antoine.

Não ha no drama uma situação, póde-se dizer, que não figure n’esta ou n’aquella peça de auctor francez, mas a critica, e muito menos os espectadores parisienses, não notaram absolutamente esta circumstancia, porque, na realidade, o drama berlinez dá a sensação exacta do novo, do inedito, da idéa virgem.

Não contarei mais o argumento da Honra; já o fiz aqui mesmo,quando a peça foi representada em italiano,e não quero repetir-me.

O desempenho dos papeis agradou-me sem me enthusiasmar; alguns dos artistas fizeram muito, mas poderiam, se quizessem, ter feito alguma cousa mais.

Estou quasi a convencer-me de que a publicação das revistas parisienses Le théâtre e L’art du théâtre, que são preciosissimas como documentação,

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tem certos inconvenientes no estrangeiro. Dias Braga, que desempenha brilhantemente o papel do barão Trast, vio a photographia do actor Dumény, entendeu que se devia caracterisar como o seu collega do theatro Antoine, e arranjou a cabeça do rei Leopoldo da Belgica, quando era mais novo.

Ora, aquelle typo, nem o nosso Dias Braga o sentio, nem o harmonisou com o seu physico. O personagem me teria agradado muito mais, se elle o fizesse com a mesma cara com que faz o Carnioli, isto é, com a sua propria cara, e mesmo com a sua calva, muito natural n’um homem que supportou durante annos os rigores da canicula africana. Isto, porém, é uma questão secundaria: o personagem moral foi interpretado como devia ser.

Eugenio de Magalhães desforrou-se largamente do Petronio, que de decididamente não lhe assentava como uma luva; o papel de Roberto Heinecke está perfeitamente nas suas cordas, e elle dá-lhe toda a vibração possivel.

Ferreia de Souza não tem no velho Heinecke o seu melhor trabalho. D’este reparo é elle o unico culpado pela enorme serie de papeis que tem representado de um modo excepcional, papeis que fariam d’elle uma celebridade de excursões transatlanticas, se por sua desgraça não fosse um actor feito no Brasil.

Se eu distribuisse a peça, teria dado o papel do velho Heinecke a Dias Braga e o do barão Trast a Ferreira de Souza. Estou certo de que não erraria.

Eduardo Vieira agradou-me sem restricções no papel de Conrado Muhlingh, e Lucilia Peres mostrou todo o seu talento e toda a sua consciencia no de Leonor.

Olympio Nogueiro, que poz de lado as photographias parisienses, caracterisou-se muito bem e foi um Muhlingh acceitavel. Que boa figura faria este actor brasileiro n’um theatro onde só se representassem peças nacionaes! Os seus proprios defeitos de prosodia se transformariam em qualidades.

Achei impertinente a chibatinha de Lothario, manejada por Grijó, principalmente na scena com Leonor, em que ella (refiro-me á chibatinha) chega a ser ameaçadora.

Tambem não gostei dos sapatinhos de Michalski, calçados pelo Bragança. Quando a peça é realista, é indispensavel que o actor tambem o seja, e da cabeça... aos pés.

Os demais personagens foram bem interpretados, não obstante faltar á Aurelia Delorme certas condições physicas para o de Alma.

Da enscenação, confiada a Eduardo Victorino, só ha que dizer bem.Os scenarios, mobilia e accessorios são apropriados. Não figurou em scena,

mirabile dictu! nenhum objecto alugado aos aderecistas.

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Ha mezes, quando a companhia Dias Braga se achava no Amazonas, correu n’esta capital a noticia do fallecimento da actriz Deolinda Rodrigues, que então fazia parte do respectivo elenco.

Enganado, como toda a gente, referi-me n’um dos meus folhetins á morte da pobre Deolinda, e n’essa occasião fiz justiça aos seus merecimentos. Com que prazer desmenti, n’outro folhetim, a prematura noticia!

Entretanto, quando a companhia chegou, e Deolinda veio ter commigo para agradecer-me, coitada! a pá de cal que eu atirára ao seu cadaver imaginario, verifiquei, olhando para ella, que a noticia tivera, infelizmente, um fundamento terrivel, e que Deus não tardaria chamal-a para si.

E assim foi. Deolinda deixou de soffrer ha seis dias; lá está debaixo da terra.Não era uma talento; era, porém uma utilidade na rigorosa accepção do

termo, nem sempre bem applicado. Tomava a sério o trabalho, mostrando, pelo menos, ardor e boa vontade, virtudes que muitas vezes faltam aos melhores artistas.

Ultimamente estava desempregada (Que emprezaio quereria uma enferma?) e arrastava, sabe Deus como, os restos de uma existencia gemida.

O seu enterro foi feito por um amigo desinteressado, o Sr. Eduardo Ribeira, que me perdoará a indiscrição.

O corpo não foi acompanhado ao cemiterio por nenhum artista...Deus a tenha comsigo e lhe desconte em bemaventurança o muito que

soffreu.A. A.

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O Theatro, 08/05/1902

Do Sr. Julio Tapujós, meu distincto collega de imprensa, recebi a seguinte communicação, a que dou publicidade com prazer:

“Como, já ha tempos, tive occasião de lhe participar, reapparecerá este mez a minha revista O Theatro, em molde e feitio completamente diverso d’aquelle que adoptára na primeira tentativa, que V. com tanta gentileza encorajou, mas que, infelizmente, fracassou.

O Theatro, que reapparecerá em 15 proximo, augmentou muito de formato, adoptando o da revista franceza Le Théâtre; trará numerosas illustrações, em photogravura, de scenas, typos e retratos de actores e auctores, nossos e do estrangeiro. Conta com collaboração o mais possivel escolhida e variada; será impressa em elzevir corpo 10, em muito bom papel e sahirá quinzenalmente. A redacção está a cargo de Noel Baptista, Raphael Pinheiro e o auctor d’esta carta.”

A publicação da annunciada revista poderá prestar os melhores serviços á arte nacional,se lhe não faltar – e porque faltaria? – o concurso de quantos ainda prezam o theatro.

Antes mesmo de apparecer o primeiro numero d’essa revista,já se póde louvar sem restricções a coragem do Sr. Julio Tapajós, que não se deixa intimidar pela indifferença que no momento actual o publico fluminense parece votar a toda e qualquer manifestação de litteratura e arte. Esse facto que seria anomalo se não estivessem a entrar pelos olhos as causas da apathia publica, centuplica o valor do generoso e patriotico esforço do meu confrade.

O Theatro, sobre ser um estimulo para artistas e auctores, e um chamariz do publico arredio, terá mais tarde, pelo seu caracter documentario, uma grande importancia historica.

Dispondo-se, como hoje se dispõe, de tão maravilhosos processos de applicação da photographia, é realmente para lastimar que não transmittamos ao futuro a physionomia physica da nossa época e dos nossos costumes.

Que thesouros possuiriamos, se a gravura houvesse conservado alguma cousa do nosso theatro de outr’ora, tão pittoresco, tão digno de ser estudado! N’esse ponto somos de uma pobreza commovedora, porque nem mesmo nos jornaes do tempo, que eram muito mal feitos, se encontra alguma cousa que nos instrua e elucide. Estamos astrictos á tradição oral, muitas vezes fantasista e mentirosa.

Se de um facto capital, como a execução de Tiradentes, que deveu abalar profundamente esta cidade, não se póde com segurança determinar o local em

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que se realisou, que diremos dos pequenos factos, que na occasião passavam naturalmente despercebidos, e hoje nos interessam tanto?

Persevere o director da nova revista, e se o presente lhe deparar espinhos e obstaculos, lembre-se de que trabalha tambem para o futuro.

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Uma noticia triste... e retardada:Soube ante-hontom, por acaso, que falleceu na Italia, em agosto do anno

passado, a actriz Marietta Aliverti, que o publico fluminense tantas vezes applaudio.

D’esse fallecimento, aliás esperado, porque a pobre rapariga partira para a Italia com uma enfermidade extremamente grave, não em tempo comunicação alguma; a noticia chegou ao meu conhecimento por via de S. Paulo.

A Aliverti nasceu em Sondrino (Italia) em 1862. Veio para o Rio de Janeiro em 1880, com o marido, e entraram ambos para o Sant’Anna, elle como violinista, ella como corista.

Do Sant’Anna passou para o Lucinda, onde, em 1883, tendo adoecido, ou cousa que o valha, a Irene Manzoni, que desempenhava o papel da protagonista na opereta Dona Juanita, offereceu-se ao empresario para substituil-a au prid levé.

O emprezario, que era o Souza Bastos, sympathisava muito com essas audacias, acceitou o offerecimento, e o resultado não poderia ser melhor: nova Juanita obteve um triumpho, e a peça continuou a fazer a sua obrigação.

D’ahi por diante a Aliverti nunca mais perdeu o logar que conquistára aquella noite. É verdade que não deu nem um passo para a frente, mas foi sempre de grande utilidade nas companhias de cujo elenco fazia parte.

A sua sina era salvar situações, substituir collegas que adoeciam ou fugiam á ultima hora, levadas por um d’esses caprichos femininos tão communs em os nossos theatros, onde não ha nem póde haver fé nos contractos.

A Aliverti sabia todos os papeis da opereta que se representava, e estava prompta,ao menor signal do empresario, para qualquer substituição razoavel. Não lhe pedissem, por exemplo, que substituisse o Mattos ou o Peixoto!

Era uma rapariga intelligentissima, e mostrava ter tido alguma educação litteraria: pelo menos fallava e escrevia muito bem a nossa lingua. Diziam mesmo, não sei com que fundamento, que tinha sido professora na sua terra.

Conhecia-a corista na Companhia Heller, e muitas vezes disse ao emprezario que ella me parecia muito aproveitavel, e seria de bom aviso confiar-lhe um papelinho, a titulo de experiencia; mas o Heller não tinha a mesma opinião que eu, não acreditava que de uma simples corista se pudesse

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fazer alguma cousa, não obstante o exemplo de Jeanne Grénier, que pertenceu ao corpo de córos das Folies-Dramatiques, e é hoje uma das primeiras actrizes de Paris, collocada no mesmo plano que a Bartet e a Réjane.

Quando, na companhia Souza Bastos, a Aliverti mostrou para o que servia, lembrei ao Heller o meu conselho, e elle torceu as orelhas, porque a ex-corista naturalmente lhe seria então de grande utilidade.

O Souza Bastos escreveu, na sua Carteira do artista, que “a Aliverti teria feito uma fortuna se não fosse desequilibrada.” De quantos emprézarios se poderia dizer o mesmo!

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Morreu Xavier Montépin, o celebre romancista popular, que foi tambem um fecundo fabricante de dramalhões.

Não darei aos leitores a lista das suas peças, nenhuma das quaes, me parece, se conservará por muito tempo no repertorio. Algumas d’ellas foram representadas no Rio de Janeiro, como os Estroinas de Paris e o Castello da Rocha Negra, que, se me não falha a memoria, foi o titulo que teve, no S. Luiz, La nuit du 20 septembre.

A penultima peça de Montépin aqui representada, foi a Padeira (La pórteuse de pain), no S. Pedro, por uma companhia organisada por Emilia Adelaide, e a ultima foi A mendiga de S. Sulpicio, pela companhia Dias Braga, no Variedades.

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Parabens a Osorio Duque-Estrada pelo successo da sua revista Petropolis no prego, representada em Petropolis pela companhia Soares de Medeiros.

Mas que idéa a de fazer compadre da revista um sujeito que ninguem conhece no antigo Corrego-Secco! Não seria melhor dar essa honra a um diario?

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Por fallar em honra:Amanhã, no Recreio, as representações da Honra, que está fazendo uma

carreira honrosa, serão interrompidas para dar logar a um espectaculo em beneficio do José Luiz, o decano das gazistas dos nossos theatros.

Comquanto o beneficiado d’esta vez não me apparecesse para pedir um reclamosinho, elle cá está. Que querem? o José Luiz é um velho camarada, e tão sympathico, tão trabalhador, tão honesto, que a gente lembra-se d’elle, mesmo quando elle não apparece.

A. A.

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O Theatro, 15/05/1902

A compania Dias Braga encerra hoje a primeira serie de representações da Honra, de Sudermann, e, fiel aos seus principios eclecticos, annuncia para qualquer noite d’estas a primeira representação da comedia em tres actos, O mais feliz dos tres, de Labiche e Gondinet.

As vinte representações do bello drama allemão tiveram, pelo menos, a grande virtude de provar á evidencia que o paladar do publico está menos estragado do que se diz.

O mais feliz dos tres é uma das comedias mais engraçadas do antigo repertorio do Palais-Royal, onde foi representada, pela primeira vez, a 11 de janeiro de 1870 (no anno terrivel!) por Geoffroy, Gil-Pérès, Lhéritier e Brasseur.

Já não existe nenhum d’esses grandes comicos; já não existem os auctores da peça. A morte é um sorvedouro terrivel.

O mais feliz dos tres é uma das poucas peças de Labiche que nunca foram representadas no Rio de Janeiro, porque o defunto Conservatorio Dramatico jamais consentio que a representassem. Fizeram-se varias tentatias e todas ellas infructiferas. Quando o Conservatorio mettia os pés á parede, não havia forças humanas que o movessem!

Hoje que a absurda instituição desappareceo (e essa é a recordação mais grata que conservo do governo do Dr. Prudente de Moraes), vamos ter, finalmente, a satisfação de ver O mais feliz dos tres interpretado pelos nossos artistas. O publico terá occasião de verificar que, se a comedia não é precisamente uma lição de moral, nem se recommenda ás meninas solteiras (o que aliás se póde dizer de todos os romances e peças de theatro), não é mais apimentada que a Niniche e tantos outros vaudevilles e operetas que mereceram a approvação do alludido Conservatorio Dramatico.

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No Lucinda, a companhia Silva Pinto, que tem variado seus espectaculos com o Tim tim, a Capital Federal,a Donzella Theodora, etc., annuncia para amanhã Um caso colonial, a nova opereta brasileira a que mais de uma vez me tenho referido,lettra de Gomer Cardim,musica de Carlos de Campos. A primeira representação é dada em beneficio da Pepa, que tem um magnifico papel. É mais um motivo para chamar ao theatro extraordinaria concurrencia.

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A talentosa actriz portugueza Adelaide Coutinho,artista feita n’esta capital e que o nosso publico tantas vezes applaudio, escreve de Lisboa, com data de 25 do mez passado, pedindo-me para dizer aos meus leitores que ella tem

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agradado immenso em Portugal; que o seu trabalho tem sido justamente apreciado tanto pela imprensa como pelo publico; que a empreza do Gymnasio a contractou para “fazer duas épocas”; que o seu primeiro beneficio, com a Dama das Camelias,foi um triumpho, etc.

Esta feita a vontade á festejada actriz, que, segundo confessa, bastante se incommodou com o facto de haver uma folha desta capital noticiado que ella tinha sido mal recebida e desagradara completamente quer em Lisboa quer no Porto.

Não li a noticia alludida, nem mesmo sei se realmente foi publicada; a propria Adelaide Coutinho não a leu: teve sciencia d’ella por um collega, um bom collega.

Não me parece que fosse caso para uma reclamação; os melhores artistas estão sujeitos a essas e outras, e devem dar ao desprezo taes maldades, desde que tenham consciencia do seu valor.

O cavaco dado por Adelaide Coutinho prova claramente que ella ainda não está bem persuadida de haver feito jús aos applausos de Lisboa e Porto, e o seu protesto é uma injustiça feita a si propria. Não ha, entre os seus apreciadores do Rio Janeiro, nenhum que,pela simpes noticia de uma folha, acredite que as platéas portuguezas a recebessem mal.

É curiosa a susceptibilidade das nossas actrizes! Não me refiro especialmente a Adelaide Coutinho; fallo em regra geral. Uma noticia desagradavel irrita-as a ponto de lhes despertar o prurido da epistolographia, e um elogio, por mais exagerado que seja, difficilmente as obriga á pequenina despeza de um simples cartão de visita.

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No seu folhetim do Jornal do Brasil, o meu collega Cunha e Costa pronunciou-se contra a escolha da Tosca para beneficio de Lucilia Peres, que, sem ser uma actriz perfeita, e um phenomeno seria se o fosse, é hoje, incontestavelmente, a nossa primeira actriz dramatica,

Concordo com o meu collega em genero, numero e caso. Estou convencido de que Lucilia será uma Tosca mais dramatica, mais vibrante do que foi a outra Lucilia, cujo talento mais se coaduna com a comedia; mas que necessidade tem ella de se expôr, temerariamente, a ridiculos confrontos, apenas para satisfação da vaidade?

A Tosca é um papel extraordinariamente complexo, escripto por um maravilhoso dramaturgo para aproveitar não só as eminentes qualidades como os proprios defeitos da primeira actriz que a França tem produzido. Nós, os cariocas, tivemos a fortuna de ver e ouvir a Tosca representada por

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essa interprete excepcional, diante da qual Ismenia dos Santos, Amelia Vieira, Lucinda Simões. Zaira Tiozzo, Lucilia Simões e a propria Clara Della Guardia nos pareceram personagens de parodia; que necessidade tem Lucilia Peres de formar n’essa phalange, embora não fique na extrema rectaguarda?

Se a Tosca fosse uma peça que aproveitasse á empreza, eu nada diria, porque entendo que o primeiro dever de um emprezario intelligente e honesto é procurar encher o theatro; trata-se, porém, de um tragedia batida, batidissima, que offerece um espectaculo penoso, insupportavel, desde que o papel da protagonista não seja desempenhado pela phenomenal artista pra quem foi escripto.

Esta é a verdade. Não creia Lucilia Peres que esse tiro a eleve no conceito d’aquelles que sinceramente a estimam e apreciam. Ninguem louvará o seu talento, mas a sua audacia, se a louvarem, porque no nosso theatro as audacias têm sido tantas, e tão successivas, que hoje passam completamente despercebidas.

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Se os meus conselhos valessem alguma cousa,eu aconselharia a Lucilia Peres que para a noite da sua festa lançasse mão de uma peça nacional, em que houvesse um bello papel de mulher, que se amoldasse ao seu talento.

Não seria preciso procurar muito: a peça está escripta, e eu tenho-a n’este momento diante dos olhos: é o drama em 4 actos, Honesta, que o auctor, o meu collega Domingos de Castro Lopes, ha tempos submetteu á apreciação da empreza do Recreio.

A representação de Honesta seria n’aquella noite muito mais acertada que a da Tosca, ou a de qualquer outra peça estrangeira.

O drama tem todos os requisitos para agradar á mesma platéa que applaudio a Honra: é bem escripto, bem concebido, apaixonado, vibrante, moralisador, e á acriz que se encarregar do papel de Luiza, a protagonista, offerece, principalmente no ultimo acto, campo sufficiente para mostrar um grande talento dramatico.

Releva dizer que esse papel foi escripto para Lucilia Peres.Acabo de ler o manuscripto, que me foi obsequiosamente confiado pelo

auctor, e afianço que, tirante uma ou outra pagina, que reclama, talvez, ligeiras modificações, é um drama que figuraria immediatamente no palco brasileiro se viesse recommendado pelo applauso europeu.

Accresce que a representação d’esse drama inedito, alem de ser mais interessante, seria mais barato que uma reprise da Tosca.

A. A.

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O Theatro, 22/05/1902

Realisa-se hoje, finalmente, no theatro Lucinda, o beneficio da Pepa, com a primeira representação de Um caso colonial, opera-comica em 3 actos, lettra de Gomes Cardin, musica de Carlos de Campos.

A peça foi representada pela primeira vez na capital de S. Paulo, a 4 de janeiro do corrente anno, e agradou muito, independentemente da sympathia de que alli gosam tanto o auctor do libretto como o da musica, ambos advogados e jornalistas de talento.

Gomes Cardin, filho do operoso compositor dos Argonautas, que teve no Rio de Janeiro a sua hora de celebridade, e metteu-se depois em S. Paulo a fabricar cognac, não é um estréante nos palcos do Rio de Janeiro. Lembrarei, para citar apenas dous trabalhos, os Louros, espirituosa comedia, ou antes vaudeville em 3 actos, que elle escreveu de collaboração com José Piza, e foi representado no ex-Variedades e ex-Moulin Rouge, e um gracioso lever de rideau intitulado Uma prova de consideração, representado no Recreio por Medina de Souza e Colás.

Hontem, sahindo dos meus habitos, assisti ao ensaio geral da opera-comica (não é uma operetta) que hoje se exhibirá no Lucinda; fil-o com o interesse exclusivo de chamar a attenção dos meus leitores para um espectaculo genuinamente nacional.

O libretto de Gomes Cardim é leve e gracioso, mas não é comico, não provoca uma hilaridade continua e turbulenta, o que talvez o prejudique um tanto na opinião da nossa platéa, que só se diverte quando ri a bandeiras despregadas.

O auctor de Um caso colonial preoccupou-se menos do que devia com os effeitos technicos da peça, a que falta a columna vertebral, isto é, a acção. Elle quiz dar-nos, e effectivamente nos deu, um quadro da vida brasileira no seculo XVII, fazendo obra de reconstrucção historica. N’estes tres actos apparece-nos o typo em bryonario do paulista de hoje, no momento em que principia a formar-se com os elementos mais heterogeneos. A escravidão dos indios e as lutas havidas, por esse motivo, entre os jesuitas e os colonos constituem o eixo da peça, cujo entrecho é descripto hoje n’outra secção d’esta folha.

Quem vai alcançando esta noite um bello triumpho é Carlos de Campos, o auctor da musica, e esse é um estreante, na rigorosa accepção da palavra. A partitura de Um caso colonial é uma revelação, uma brilhante revelação.

Confesso que não tenho grande confiança nas minhas opiniões sobre musica; sou de um ecclectismo absoluto, e alguem já disse que em qualquer materia o ecclectismo representa apenas falta de convicção. Mas, seja como

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fôr, a musica de Um caso colonial agradou-me tanto, causou-me tão agradavel impressão, que, se o meu enthusiasmo não fosse um pouco frio de natureza, eu teria dado ao compositor, que estava no theatro, um abraço, mas um abraço de metter os tampos dentro, como o que hoje lhe deu o Gastão Bousquet na sua quadrinha d’O Paiz.

Sente-se n’aquella partitura um filhote de aguia que ensaia o vôo, batendo as azas e fitando a immensidade. Com uma orchestra completa, cantores de prima-ordem e um bom corpo de córos, a musica de Um caso colonial faria boa figura n’um meio mais exigente e mais civilisado que o nosso. Esta me parece a verdade.

Faço votos para que o talento de Carlos de Campos não fique estagnado como o de Abdou Milanez, o de Assis Pacheco, o de Costa Junior e outros, que foram cruelmente sacrificados á estreiteza do nosso meio.

Elle é muito moço, é natural de um Estado generoso e opulento, é filho de um politico em evidencia, – dispõe, finalmente, dos elementos necessarios para realisar o vôo e conquistar o espaço. Que a cegueira dos seus conterraneos não o condemne eternamente a uma banca de advogado, onde as azas do musico não possam crescer, e que um dia, n’um theatro de opera, applaudamos um drama lyrico d’este compositor, que, se quizerem, será uma gloria de S. Paulo e do Brasil.

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A terrivel e caprichosa epidemia da febre amarella,que nos favoreceu com a sua ausencia durante os mezes da canicula e surgio agora, em maio, no mez de Maria e das flores, no mez risonho em que brotam alegremente as primeiras violetas, assassinou, ha dias, o pobre Raphael Tomba, emprezario da companhia do Apollo.

Eu mal o conhecia: nunca lhe fallei e apenas o entrevi duas ou tres vezes; mas senti profundamente a sua morte: era um trabalhador, era um martyr, porque a vida do emprezario honesto (e quero crer que elle o fosse) não é senão um martyrio.

O theatro attrae o emprezario como a luz attrae a borboleta: elle não recua nem mesmo diante do perigo da morte; não ha contrariedade que o obrigue a desistir da sua profissão.

A vida de Raphael Tomba foi, como a de todos os emprezarios, uma vida de altos e baixos, de opulencia e miseria; mas aos 65 annos elle tinha ainda o ardor, a actividade, as esperanças de um moço, e corria o mundo,longe da patria, de theatro em theatro, passando a existencia dos heróes de Scarron, dormindo em camas e comendo em mesas de aluguel.

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Passados tres dias de luto, a companhia Tomba reencetou hontem os seus trabalhos sob a direcção de um filho do fallecido emprezario.

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Dissolveu-se em Santos a companhia Cinira Polonio, que se metteu impensadamente, fazer uma excursão em São Paulo, levando no repertorio apenas cinco peças com algumas das quaes sabia de ante-mão que não poderia absolutamente contar.

Ahi está uma lição que deve aproveitar ás futuras emprezas excursionistas. A companhia Cinira Polonio devia ter ficado e insistido. Lá diz a sabedoria das nações que boa romaria faz quem em sua casa fica em paz.

Espero que Mattos, Peixoto, Rosa Villiot, e os seus excellentes companheiros se unam (a união faz a força) e insistam. A insistencia é, em theatro, uma virtude fundamental.

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Leio n’O Paiz de hoje que “o Dr. 2º delegado auxiliar chamou a Sra. Duperrier á sua presença e a prevenio de que se a empreza da Guarda-Velha annunciasse o seu trabalho, a obrigaria a cumprir o contracto, e, em caso de allegação de molestia,submettel-a-ia ao exame medico no gabinete da policia.”

Se essa violencia se realisa, fica aberto um precedente pelo qual os nossos empresarios deverão manifestar-se reconhecidos ao Dr. 2º delegado auxiliar.

A. A.

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O Theatro, 29/05/1902

Um incommodo de saude, que ha tres dias me tem preso em casa, privou-me de assistir ante-hontem, no Recreio, à primeira representação da comedia O mais feliz dos tres, de Labiche e Gondinet.

Eu estava com muita curiosidade de verificar pessoalmente o effeito que faria sobre a nossa platéa uma das mais engraçadas producções do famoso academico.

Depois da morte de Labiche (ha quinze annos) o theatro passou em França por grandes transformações, que necessariamente se reflectiram sobre o resto do mundo. A comedia tem agora pretensões que n’aquelle tempo não tinha, e o vaudeville, que a substituo, exige situações tão complicadas e tão extravagantes, uma fantasia tão turbulenta e excessiva, que o theatro d’aquelle mestre se tornou em Paris insufficiente e anodino.

Tirante as duas peças, por bem dizer, classicas do opulento repertorio que elle deixou, La cagnotte e Le chapeau de paille d’Italie, as quaes serão representadas emquanto houver um theatro em França, parece que nenhuma outra sobreviverá, nem mesmo Le voyage de Monsieur Perrichon e Le mysanthrope et l’auvergnal, que são duas obras primas de observação e de graça.

O proprio Palais-Royal, que representou com estrondoso successo uma centena de peças de Labiche, ha muito tempo não faz reprise de outra que não seja La cagnotte. Se me não engano, a peça ante-hontem representada no Recreio, Le plus heureux des trois, d’esde 1874 não figura nos programmas d’aquelle theatro, e no emtanto, apezar de ter sido representada no anno da guerra, foi um dos maiores successos do theatro parisiense.

Não ha muito tempo, ha, talvez, cinco annos, a Comédie-Française pretendeu incluir no seu repertorio uma comedia de Labiche, e escolheu naturalmente, uma das melhores, Celimare, le bien aimé. O resultado foi negativo.

A cousa se passou na ultima phase da existencia de Francisque Sarcey, que, por occasião d’essa tentativa, analysou syntheticamente, n’um dos seus folhetins do Temps, toda a obra de Labiche.

De vez em quando um ou outro theatro de segunda ordem vae buscar ao archivo alguma peça mais ou menos esquecida do illustre comediographo, mas pelos modos jámais se reproduzirão os successos de outr’ora. Ainda ás ultimas datas o Cluny fazia uma pallida reprise da deliciosa comedia Les vivacités du capitaine Tic, que fez rir ao publico fluminense com o titulo A penna e a espada.

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Tinha eu, portanto, grande curiosidade em verificar se Labiche, que na minha opinião é um auctor por todos os respeitos dignos da fama que alcançou, soffreu no Rio de Janeiro a mesma depreciação que em Paris, isto é, se o nosso publico, para rir, precisa que lhe façam cocegas com a Lagartixa, o Arara, o Hotel do Livre Caminho, o Paraiso, e que jandas vaudevillices.

Se no palco do Recreio a peça fizer, como espero, uma boa carreira, haverá no facto dous symptomas, um bom e outro máo. Um bom, porque o nosso publico mostrará que ainda sabe fazer justiça, e não troca o mestre pelos seus discipulos e continuadores; um máo, porque provará que elle, o nosso publico, ainda se mostra insensivel ao renovamento contemporaneo da litteratura dramatica.

***

Ao que parece, tem tido muita aceitação a assignatura aberta para os doze espectaculos da Réjane, e uma vergonha seria se assim não fosse.

A mim ainda me parece um sonho que possamos admirar e applaudir a grande actriz parisiense alli na Guarda-Velha, sem atravessar o oceano!

A Réjane na America!... a Réjane no Brasil!... a Réjane longe do boulevard!... – pois isto é lá cousa em que se acredite! Os emprezarios Braga Junior e Celestino da Silva metteram uma lança n’Africa, e os cariocas devem-lhes boas alviçaras! Que! pois vamos ouvir a Amoureuse e Ma cousine, representadas pela sua primeira e unica interprete? Será possivel?...

Eu vi a dezenove annos a Réjane em Paris. N’aquelle tempo ella não era ainda o que é hoje; posso mesmo accrescentar, sem receio de que me desmintam, que não promettia tornar-se uma celebridade universal.

Vi-a representar, n’uma revista do Variétés, o papel de Maurice Bernhardt, filho da grande Sarah, que tiveraa fantasia de fazer d’elle que era um fedelho o emprezario do Anbigu-Comique. A Réjane cantava com muita graça um rondeau, e apparecia, n’outra scena, para imitar a propria Sarah na Fédora, e realmente a imitava de um modo... inimitavel.

Alguns dias depois da ultima representação d’essa revista, a Réjane era contractada... por quem? pelo menino Mauricio, e ia crear, no Ambigu, o papel da protagonista do drama de Richepin La Geu, que foi mais tarde representado n’esta capital com o titulo A mulher visgo, titulo que não se póde chamar precisamente um achado.

Fui ver La Geu. A Réjane agradou-me, não ha duvida, mas me pareceu que ella continuava, no drama, a imitar a Sarah, como na revista. De resto, n’aquelle tempo, em Paris, a grande tragica era um modelo commum a todas as actrizes novas.

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Quem no drama de Richepin me agradou extraordinariamente foi a actriz Agar, que representava o papel da avó de um rapaz seduzido pela Glu. Era terrivel a scena final, em que ella matava, com um machado, a amante do neto. A scena passava se no alto de uma escada de quatro ou cinco degráos, e a Réjane, cahindo de costas, vinha estrebuchar e morrer no proscenio, o que produzia um effeito medonho.

Foi muito depois d’essa época (1883), que appareceu a grande actriz que nos vem visitar. A sua celebridade começou com Germinie Lacerteux, no Odéon, e Ma cousine, n’aquelle mesmo theatrinho onde a ouvi cantar um rondeau de revista.

Imaginem se tenho ou não desejos de ver a borboleta que sahio d’aquella chrysallida!

***

Os jornaes deram ha dias a noticia do fallecimento de D. Julia Sezefreda dos Santos, filha legitima de João Caetano e de Estella Sezefreda.

Era sexagenaria e professora publica.Ainda estão vivos um filho e uma filha do nosso grande actor.

A. A.

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O Theatro, 05/06/1902

Em o nosso mundo theatral não ha, certamente, quem não houvesse conhecido Feliciano Prazeres, o velho Prazeres, como todos lhe chamavam, não porque fosse realmente idoso, mas porque tinha o aspecto de um septagenario, aspecto que elle não procurava, aliás, corrigir nem modificar; poucos individuos tenho conhecido tão pouco preoccupados com a elegancia e a moda.

Era filho de Sergipe e bacharel em direito pela faculdade do Recife. Logo que deixou a Academia, tentou a vida pratica, mas qual! uma vocação irresistivel o levou para o jornalismo, que n’esta boa terra é a unica profissão em que um pobre diabo, além de ser considerado vadio pela imbecilidade feroz da maioria dos seus concidadãos, tem a doloroza certeza de que será toda a vida um necessitado, e nenhum amparo encontrará na enfermidade nem na velhice.

Prazeres era um verdadeiro amante do theatro; ainda academico, no Recife, escreveu e traduzio algumas peças, que foram alli representadas. Infelizmente não tenho a lista d’esses trabalhos; publical-a-hia se m’a communicassem, pelo empenho em que estou de que n’estes folhetins algum futuro investigador possa encontrar ao menos um reflexo da nossa vida theatral.

Em Aracajú publicou Feliciano Prazeres, em 1886, um livrinho de contos ligeiros, intitulado Historias da época. Sem me conhecer pessoalmente, dedicou-me o Fructo prohibido, conto que na collecção occupava o primeiro logar, e essa amabilidade naturalmente estabeleceu entre nós certa sympathia que se converteu em camaradagem logo que elle aqui chegou, ha alguns annos.

Encarregado da secção theatral do Jornal do Brasil, Prazeres revelou-se de um optmismo absoluto, que se tornou, talvez, um tanto ridiculo, mas concorreu grandemente para a popularidade d’aquella folha. O seu systema de dizer bem de tudo e de todos não podia deixar de conquistar immensas sympathias n’um meio em que por via de regra ha mais confiança nos elogios alheios que no merecimento proprio.

Para mim, elle não era precisamente um Pangloss, mas um ironico, um philosopho que no intimo ria da vaidade d’aquelles e sobretudo d’aquellas a quem louvava incondicionalmente.

Conhecia o theatro por dentro e por fóra e raciocinava com discrição e acerto; mas a critica, a verdadeira critica, não a escrevia: dizia-a nas palestras dos intervallos, e afianço-lhes que era criteriosa e justa.

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Modesto, quasi timido,e triste, de uma tristeza que não se compadecia com o seu apellido, Prazeres tinha, talvez, um fundo de mysantropia, e d’ahi – quem sabe? – a sua indifferença pelos homens; – sim, porque achar que todos são muito bons é, me parece, tambem uma fórmula da indifferença.

Com a sua morte, cuja noticia me suprehendeu dolorosamente, perde o theatro um dos seus bons amigos.

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Foi com muito prazer que hontem li, nos annuncios do Recreio Dramatico, a seguinte declaração: “A empreza, de accôrdo com distinctos homens de lettras, resolveu commemorar, por uma fórma artistica e litteraria, no proximo domingo, 8 do corrente, o 4º centenario da representação do primeiro auto do Gil Vicente.”

Effectivamente, foi a 8 de junho de 1502 que Gil Vicente representou, na côrte de D. Manuel, o Monologo do vaqueiro, para festejar o nascimento do principe que veio a ser el-rei De. João III, e no qual o grande poeta comico encontraria mais tarde um protector.

Essa estréa foi, entretanto, de máo agouro para o theatro portuguez.Gil Vicente, que tinha dentro de si um Moliére, e era um observador

profundo da sociedade em que vivia, foi, pela força das circumstancias, um auctor palaciano, obrigado a escrever, durante cerca de trinta annos, peças de encommenda, fantasias e allegorias para solemnisar nascimentos, baptisados e casamentos reaes.

O theatro portuguez teria sido plantado para sempre, se o poeta comico do Juiz da Beira fosse senhor absoluto do seu talento, e escrevesse, não para reis, fidalgos e frades, mas para o povo.

Acresce que de quarenta e duas peças que elle deixou, trinta e cinco foram, no todo ou em parte, escriptas em hespanhol, porque as rainhas eram hespanholas.

Entretanto, Gil Vicente merece o alto juizo de Theophilo Braga, que o considera “homem verdadeiramente grande e humanitario, o que mais comprehendeu a alma portugueza, e que mais trabalhou para a secularisação da sociedade portugueza no seculo XVI, e que presentio as idéas da Reforma, o maior escriptor dramatico portuguez, apezar de terem passado tres seculos e uma mais vasta civilisação sobre a sua obra gigante”.

A colaboração d’este centenario não foi, creio, lembrada a tempo de se poder exhibir domingo ao menos uma scena de Gil Vicente, ou a bellissima comedia que elle inspirou a Garrett; mas o espectaculo annunciado tem dous

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clous: a representação de uma comedia original de Cunha e Costa, Natal na aldeia, e a estréa de Julião Machado como comediographo.

O illustre artista escreveu uma farça, O primo Al’vro, e assignou-a com o pseudonymo de João Matheus, com que tem assignado as suas inimitaveis chronicas tauromachicas. Como toda a gente sabe que João Matheus é Julião Machado quando troca o lapis pela penna, cuido não ser indiscreto nem taralhão.

***

Estando actualmente prohibido pelo meu medico de sahir de casa á noite, ainda desta vez não posso fallar da representação d’O mais feliz dos tres.

A proposito, farei um pequeno reparo:No meu penultimo folhetim affirmei que a comedia de Labiche e Gondinet

nunca foi representada n’esta capital, porque a isso se oppuzera o defunto Conservatorio Dramatico.

Um collega de imprensa affirmou dias depois, que O mais feliz dos tres fôra traduzido por Moreira Sampaio e representado com o titulo O x do problema.

O collega enganou-se. A peça de Labiche, traduzida por Moreira Sampaio e representada a 13 de janeiro de 1880, no theatro Principe Imperial (ex-Variedades e ex-Moulin-Rouge), com o titulo O x, e ha dous annos, no Recreio, com o titulo O x do problema, foi a comedia Doit on le dire? e não a comedia Le plus heureux des trois.

Se Moreira Sampaio traduzisse essa ultima, não commeteria por certo o desaso de substituir um titulo tão espirituoso e sugestivo.

Fique, pois, o collega convencido de que Le plus heureux des trois foi representado pela primeira vez no Rio de Janeiro pela companhia Dias Braga. Creia que sou uma especie de diccionario vivo do nosso movimento theatral durante os ultimos trinta annos. Tivesse eu talento como tenho memoria!

***

E para prova aqui está que me não esqueço de que o sympathico maestro Luiz Candido de Figueiredo me pedio para prevenir os leitores d’A Noticia de que o seu concerto, annunciado para hoje, no Club Euterpe, foi transferido para 9 do corrente.

A. A.

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O Theatro, 12/06/1902

Domingo passado tivemos nada menos de seis primeiras representações. Excusez du péu.

No Sant’Anna houve um espectaculo em beneficio dos artistas Maria Leal e Machado Moreira, durante o qual foram exhibidas duas comedias do fecundo dramaturgo Sr. Fonseca Moreira, – os Descasados, em tres actos, e a Encruzilhada do inferno, em um acto. Além d’essas duas comedias, houve um entreacto comico intitulado Um plano infallivel, original do Sr. Marinonio Piedade, auctor de uma comediasinha geitosa, os Apuros de Lulu, da qual já me occupei n’um dos meus folhetins.

Em mais interessante o espectaculo do Recreio, organisado para commemorar o 4º centenario da representação do primeiro auto de Gil Vicente: estavam anunciadas uma comedia original de Cunha e Costa, outra, tambem original de João Matheus, e ainda outra, imitada por Acacio Antunes.

Não me fui dado assistir a nenhuma das seis premières: a noite estava borrascosa, e eu não queria brigar com o meu medico; mas felizmente ante-hontem o Recreio annunciou a repetição do mesmo programma, o tempo estava firme, e eu lá fui.

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Depois de representada a Cavalleria Rusticana sem musica, subio o panno a comedia imitada por Acacio Antunes.

“Comedia” dizia o annuncio, “comedia” repetiram as noticas; entretanto, era apenas um monologo, um espirituoso monologo, naturalmente francez (não lhe conheço o auctor), traduzido em magnificos alexandrinos, faceis e fluentes, como os sabe fazer o traductor de Le roi s’amuse.

Trata-se de uma senhora que, collocada entre a photographia do marido morto e a de um namorado vivo, que se quer casar com ella, dirige-se ora a um, ora a outro retrato, decidindo-se afinal pelo namorado, porque entende que o marido é o proprio a aconselhal-a que deixe de ser viuva.

Este gracioso monologo, a que não faltam fantasia nem originalidade, foi bem representado por Lucilia Peres, e melhor o seria com mais algum estudo, isto é, com mais variedade nas entonações, e sem a precipitação de alguns effeitos, principalmente o final, que foi prejudicado pela volubilidade da actriz.

O genero é difficilimo, não sei mesmo que haja em theatro escolho mais perigoso que o monologo em verso; sente-se, porém, que Lucilia Peres, depois de mais tres ou quatro representações, poderá dizer irreprehensivelmente os alexandrinos da Viuvinha.

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– Tinham-me dito que a comedia de Cunha e Costa era symbolica; se assim é, com um pouco de boa vontade se encontrará symbolismo em todas as peças de theatro. Não sei qual seja a esse respeito o sentimento do auctor, mas não creio que elle pretendesse escrever uma comedia que se afastasse dos modelos classicos.

É um trabalho simples e delicado como o seu titulo – Natal na aldeia –, um trabalho em que se revela brilhantemente o escriptor de talento habituado a dizer com facilidade o que pensa, n’uma linguagem que tanto tem de crystalina como de vernacula.

As qualidades propriamente theatraes de Cunha e Costa sobresahirão, sem duvida, n’outra peça, drama ou comedia, cuja acção seja menos singela, e cujas personagens se prestem a um estudo mais desenvolvido.

No Natal na aldeia ha, comtudo, dous typos que se destacam: o de uma rapariga, Maria do Céo, atormentada pela saudade elegiaca de quem espera um amor que partio para longe sem prometter voltar, e o de um octagenario, figura veneranda e patriarchal, que forneceu a Ferreira de Souza mais um ensejo de se mostrar o artista superior que é.

De resto, a comedia não é mal representada, e eu diria muito bem de Maria da Piedade, uma bonita criadita, bem aldeã, se ella, servindo a uma ceia que daz lembar involutariamente a dos Velhos, não tivesse a infeliz idéa de limpar com a saia (a saia de baixo!) uma colher que ergue do chão.

As peças d’aquelle genero devem ser representadas com poesia,e uma condição essencial da poesia é o asseio.

Em resumo: optima estréa de um escriptor de pulso, que promette um dramaturgo feliz.

– Terminou o espectaculo com uma gargalhada que durou vinte minutos: o Primo Alv’ro, de João Matheus, que pedio emprestado o lapis a Julião Machado para fazer a caricatura de um saloio.

O pobre diabo emigra para o Rio de Janeiro, onde chego affligido por uma grande dóse de soidades, e outra, ainda maior, de sal amargo, tomada a bordo.

Vai para casa de um tio, e, graças a um assomo de cavalheirismo, mais natural em rudes camponios que nos bonifrates das grandes cidades, consegue dar no olho á prima Idalina; receio, porém, que o primo Alv’ro, palurdio como é, jámais consiga escovar-se a ponto de ser o marido feliz de uma senhorita educada.

Mas o futuro a Deus pertence. A Deus e a João Matheus, que talvez ainda nos mostre n’outras comedias o Primo Alv’ro commendador e a Volta do primo Alv’ro. O typo presta-se perfeitamente a essa triologia comica.

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O merecimento da peça consiste nas cousas que o saloio conta que lhe succede na aldeia, e conta-as com uma graça e uma ingenuidade realmente encantadoras, que aliás não me surprehenderam, porque ha muito tempo conheço a penna espirituosissima de Julião Machado. Conservo cuidadosamente uma carta de algumas folhas de papel, que elle um dia me escreveu para Poços de Caldas, e é um primor de graça e de ironia.

O auctor do Primo Alv’ro teve a fortuna de encontrar um excellente interprete no actor Grijó, que caracterisou com talento a ingenuidade e a parvalheira do typo. Infelizmente muitas palavras e até phrases me escaparam, mas creio que o mesmo succederia se estivesse a ouvir um verdadeiro saloio, e, portanto, o senão redunda em qualidade.

Nas mãos de um artista de menos tacto e menos comedimento, seria perigosa a scena em que o primo Alv’ro, achando-se á mesa, sente os effeitos do sal de bordo. O actor conseguio fazer rir sem se tornar repugnante.

Tanto Cunha e Costa como Julião Machado, em duas peças cada qual de uma poetica diversa, que só o programma do espectaculo approximaria, foram enthusiasticamente applaudidos pelo publico.

Que esses applausos, espontaneos e sinceros, os estimulem a proseguir na carreira encetada, é todo o meu desejo. E como, não obstante serem portuguezes, é no Brasil que se fizeram comediographos, permittam ambos que no tocante ao theatro os considere meus compatriotas e os incite a escrever peças brasileiras.

O mesmo pedido dirigiria eu a Eduardo Victorino, se ha muito tempo o não considerasse dos nossos.

Multiplicando-se no Brasil o numero dos auctores dramaticos,talvez possamos ter um theatro, mas um theatro a valer, onde as peças sejam convenientemente exhibidas e onde a preferencia á producção nacional seja systhematica e não aconselhada por quaesquer incidentes opportunos e adventicios.

Cunha e Costa é um litterato, um jornalista: qualquer dia seria representado independentemente de qualquer circumstancia; mas o desenhador Julião Machado, se não fosse o centenario de Gil Vicente, tarde ou nunca se revelaria o comediographo que é.

A. A.

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O Theatro, 19/06/1902

Estreou-se ante-hontem, no Apollo, a companhia dramatica portugueza dirigida pelo actor Affonso Taveira.

Escusado é dizer que o theatro estava completamente cheio, e o publico primava pela qualidade.

A escolha da peça de estréa não podia ser mais acertada: representou-se a Sapho, comedia extrahida do romance de Daudet, pelo proprio Daudet e por Adolpho Belot, o Belot do Testamento de Cezar Girodot e de Mademoiselle Giraud, ma femme, escriptor de talento que teve a sua hora de celebridade, mas de quem hoje em dia pouco se falla; é morto ha dez annos, e des morts vont vile.

A peça, escripta logo depois do apparecimento do romance, foi representada pela primeira vez em Pariz, no Gymnasio, a 18 de dezembro de 1885, com Jane Hading e Dumala nos principaes papeis. Teve um bom numero de representações, e, voltando á scena mais tarde, com a Réjane no papel da protagonista, agradou ainda mais que na primitiva.

O argumento da comedia é, muito por alto, o seguinte:Um moço provençal, por nome João Gounssin, deixa a sua provincia e vae

para Paris seguir o curso sem o qual nenhum cidadão francez póde, ao que parece, abraçar a carreira consular.

Convidado para um baile a fantasia em casa de certo banqueiro, Goussin encontra-se ahi com uma rapariga que se chama Fanny Légrand, mas que no mundo alegre é conhecida pela Sapho, por ter servido de modelo para a estatua da celebre poetiza grega, trabalho do esculptor Caoudal, artista feito, condecorado e membro do Instituto.

Sapho apaixona-se por João Goussin, que a principio liga pouca importancia ao que suppõe um simples capricho. Quer afastal-a de si: ella volta, insiste, sedul-o, e não tarda nada que os dous estejam de cama e pucarinha.

Depois vem o habito, e o pobre diabo sente-se preso n’uma engrenagem de onde lhe será muito difficil sahir. Elle bem vê o perigo, mas falta-lhe a energia e deixa-se vencer. Quando sabe que a sua companheira teve um passado vergonhoso (e aqui para nós: é exquisito que o não soubesse desde o primeiro dia), sente não repugnancia, mas ciume...

Um dia ella e elle, por instancias d’ella, recolheram á casa e adoptaram um pobre orphão abandonado. Goussin descobre que o menino é filho do gravador Flamant, ex-amante da Sapho, que por causa d’ella fez dinheiro falso e foi condemnado a dez annos de prisão. Essa descoberta dá logar a uma scena terrivel, que parece afastar para sempre um do outro os dous amantes.

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Goussin volta para a sua Provença, e procura a salvação no casamento com uma deliciosa priminha, personagem que merecia dos auctores da peça um desenvolvimento que infelizmente não tem. Sapho vai ter com elle, vai buscal-o: elle, porém, resiste, sabe Deus como ás suas lagrimas, e deixa-a partir sosinha.

Parece que está salvo, mas qual! sente-se cada vez mais apaixonado, e agora e elle quem vai ter com ella, em Paris. Diz-lhe que foi ou vai ser nomeado consul no Brasil, e quer trazel-a comsigo para a nossa terra.

Sapho tem já as malas promptas para ir ter com Flamant, o gravador,que foi indultado e sahio da prisão; entretanto, finge que aceita o reatamento das suas relações com Goussin; mas, apanhando o a dormir n’um canapé, escreve uma carta dizendo-lhe toda a verdade, para que elle a leia quando acordar, e foge para nunca mais tornar a vel-o.

Essa é a ultima scena do ultimo acto. Como o panno cahisse ficando o consul a dormir, os espectadores, um tanto desorientados pelo brusco desenlace, deixaram-se ficar tambem nos seus logares, esperando a continuação da peça, o que prova mais uma vez que no theatro é perigoso sahir da convenção.

A continuação cada qual que a phantasie como entender. A mim não me parece que João Goussin se suicidasse. O mais provavel é ter voltado para a Provença e encontrado uma consolação definitiva no amor da prima, que, ingenua e pura como é, facilmente lhe perdôou. Para o Brasil não veio elle consul, pois, se viesse, todos nós o saberiamos.

Não me admiraria tambem se me dissessem que, depois de casado e com filhos, o pobre Goussin de novo se unio á Sapho, quando o gravador, cançado de a aturar, a poz no olho da rua.

Cada qual poderá imaginar um sexto acto, mas o caso é que a peça terminha onde deve terminar. Qualquer scena que lhe addicionassem os auctores, seria ociosa.

O argumento, que contei um pouco auxiliado pelos Annaes de Noel e Stoulling, não dá uma idéa exacta da comedia, que é movimentada, nervosa e divertida, apezar de todo o interesse convergir directamente sobre os dous personagens principaes.

Sente-se que a peça é tirada de um romance, mas é forçoso reconhecer que o trabalho não poderia ter sido feito com mais habilidade, embora muitos e muito bons episódios fossem sacrificados. O 2º acto, principalmente, de um parisianismo adoravel, é primoroso.

Entretanto, para quem não conhece o romance, que, na minha humilde opinião, pondo de parte a incomparavel triologia tartarinesca, é o melhor de

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quantos escreveu Dandet,o typo de Fruny Légrand não está bem definido, e o espectador sae do theatro sem saber ao certo se ella é um typo de bondade ou de perversidade. Francamente, apresentada assim, sem os complicados accessorios psychologicos do romance, Sapho só tem para mim um defeito: a falta de franqueza. Mas, que diabo! se João Goussin é infeliz,a quem o deve?... porque se lhe metteu em cabeça achar um anjo n’uma rapariga encontrada n’um baile de gente da vida airada, – uma rapariga que levou, depois da festa, para o seu quarto de rapaz solteiro, e que teve o perverso capricho de subir tres andares,carregada nos braços d’elle?

Angela Pinto, que desempenhou o papel da protagonista, é realmente uma artista de talento e de intuição, mas desigual e incompleta. O seu trabalho tem altos e baixos, arrebatamentos de actriz consummada e descabidas de principiante. Ás vezes commove e arrebata: é insinuante, penetrante, communicativa; outras vezes deixa o espectador frio, a pedir mais. No 4º acto teve scenas de transição dignas da melhor platéa do mundo; no 5º acto não vibrou absolutamente.

Releva dizer que o papel de Sapho é muito complexo, e Angela Pinto o interpretava ante-hontem pela primeira vez, pois que a peça, traduzida, ainda não foi representada em Lisboa. Não se póde exigir muito de um artista, mesmo genial, que representa pela primeira vez um papel de responsabilidade para um publico estranho para elle.

Espero, portanto, para julgar definitivamente Angela Pinto, aprecial-a n’outros papeis com os quaes esteja mais familiarisada, sem as hesitações e os tropeços que os melhores artistas encontram naturalmente nos papeis novos.

Talento (já eu o disse), bom orgam, muita naturalidade, agradavel presença e o melhor dos dotes, a mocidade, tem ella; supponho, por conseguinte, que não me faltarão ensejos de admiral-a sem restricções.

O papel de João Goussin é um papel ingrato, completamente subjugado pelo de Sapho; mas Luiz Pinto, que tambem luctava com um personagem novo para elle, aproveitou habilmente os melhores effeitos, e nas récitas subsequentes dará sem duvida ao personagem o calor que lhe faltou ante-hontem.

Carlos de Oliveira me agradou muitissimo no papel de Dechelette, que só tem uma scena: a narração do suicidio de Alice Deré; mas essa narração elle a disse com um comedimento e uma correcção que me encantaram.

Taveira comprehendeu perfeitamente o typo e Caouldal, e deu-nos um esculptor genuinamente parisiense.

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O mesmo não se póde dixer de Conde, que fez do tio Cesario, antigo viveur, tambem parisiense, mas ttenuado e tonificado pelo campo, um lavrador portuguez.

Não farei carga ao nosso Campos pela sua falsa interpretação de physico de De Potter, porque o personagem, tão accentuado ao romance, está apenas indicado na comedia; mas não perdôo a Santos ter feito do poeta La Borderie um typo quasi carnavalesco.

A provecta Emilia Eduarda está bem na sympathica tia Divonne, e Nanette de Souza é adoravel de ingenuidade e frescura na priminha Irene.

Que pena a companhia Taveira não dispor de uma Darlaud para o papelinho de Alice Doré, a pobre rapariga que se atira de um terceiro andar quando Dechelette a abandona! Se querem saber o que foi aquelle papelinho nas mãos de Darlaud, leiam estas poucas linhas da um critico parisiense: “Le triumphe de Mlle. Darlaud était complet dans ce hout de rôle d’Alice Doré, dont tous les mots étaient soulignés par une salve d’applaudissements.” Depois d’isto digam-me se ha papeis pequenos.

Gaspar, outro velho conhecido nosso, nada tem que fazer no papel do papá Légrand, Luiza de Oliveira faz rir no de Francina, e dos demais artistas que tomaram parte na representação não ha que dizer bem nem mal.

O publico applaudio,e mais applaudiria, depois do ultimo acto, se o espectaculo,podendo terminar á meia noite, não acabasse tão tarde, por causa dos longos intervallos só desculpaveis n’uma noite de estréa.

***

Recommendo aos meis leitores o espectaculo que se realisa amanhã, no Lucinda, em beneficio dos maestros Capitani e Serpa.

O programma constará da opereta Os 28 dias de Clarinha e de um grande intermedio musical, sendo o espectaculo offerecido a Francisco Braga, em regosijo pela sua recente nomeação para o corpo docente do Instituto Nacional de Musica.

A. A.

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O Theatro, 26/06/1902

A companhia Taveira deu-nos segunda-feria, a Zazá, comedia que, não obstante ser para o nosso publico de um exotismo absoluto, tem o condão de agradar-lhe.

No theatro do Rio de Janeiro ha phenomenos que se não explicam: o successo da Zazá é um d’elles. A peça não é bem escripta nem bem feita, e como estudo de paixões é também mediocre. Que nos importa uma pobre mulher que se vende até encontrar um homem a quem ama devéras, e continua a vender-se quando reconhece que já o não ama?

Comprehende-se que o publico de Paris achasse certa attracção na Zazá, porque a peça, escripta por um velho actor, contém alguns quadros de costumes theatraes parisienses, e elle interessa-se por tudo quanto de longe ou de perto diga respeito ao theatro. Mas esses costumes são locaes, e, portanto, a comedia não póde, por esse lado, ser devidamente apreciada fóra da França.

Mas o caso é que a nossa platéa gosta d’ella, e a prova d’isso é que segunda-feira,apezar do máo tempo, o Apollo encheu-se.

Angela Pinto pôde ser apreciada com mais fundamento que na Sapho. Está completamente senhora do papel de Zazá, porquanto,segundo o annuncio, o representou cem vezes em Lisboa.

Apenas uma cousa lhe falta agora: a deixa. Sente-se que aquella Zazá está muito habituada a outro Dafresne, a outro Cascard e a outra Anays. Em Lisboa aquelles papeis era desempenhados por João Rosa, Augusto Rosa e Carolina Falco.

É uma Zazá muito menos fina que a dos meus sonhos; é forçoso, entretanto, reconhecer que no proprio texto da peça Angela Pinto encontra plena justificação para o caracter canaille que pretendeu imprimir ao personagem. Por esse lado merece louvores, tanto mais que se afastou, creio, da interpretação dada ao papel pela propria Réjane, que o creou.

Accrescentarei que nas scenas mais ou menos impetuosas o seu trabalho teve tal ou qual vibração, embora a sua physionomia não tenha ainda toda a mobilidade que adquirirá sem duvida com mais alguma pratica, porque – é preciso que se saiba – Angela Pinto levou o melhor tempo da sua vida artistica, fazendo parte d’essas companhias de operettas e revistas em que por via de regra as primeiras actrizes tem mais predominio que os ensaiadores e os proprios emprezarios; ha tres annos apenas cultiva a verdadeira arte, em companhia de mestres como o Brasão e os dous Rosas.

Na minha humilde opinião, o que lhe falta na Zazá e lhe ha de faltar em outras peças do mesmo genero e da mesma procedencia, é aquella elegancia

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facil, toda parisiense, que se chama chic. Zaza póde ser filha de uma bebeda, póde ser analphabeta e desprovida de todo o senso moral; o que não póde é deixar de ter chic, pois sem chic jamais seria estrella de primeira grandeza de café concerto.

Angela Pinto é donaiorosa, mas o chic parisiense não se confunde com o donaire portuguez: é um traço caracteristico, uma especialidade como o salero hespanhol. Uma das grandes qualidades de Lucinda Simões, que considero a primeira actriz portuguesa, é ser parisiense quando o quer ser. Que o digam os Amantes, de Donnay; que o dissesse a propria Zazá, se lhe désse na veneta interpretar esse papel em vez de o dar á filha. – Está velha, objectar-me-hão talvez, como se as boas actrizes envelhecessem. Lucinda tem precisamente a idade da Réjane.

Em rigor só se deve exigir dos artistas que se caracterisem tão accentuadamente quando representam personagens da sua propria nacionalidade, e acharão talvez um excesso de critica pretender que elles se desnacionalisem, conforme os papeis que lhes forem confiados; hão de convir, porém, que com um pouco de observação e estudo não lhes será isso difficil. O exemplo da Lucinda ahi está.

Luiz Pinto, que fazia o Dufresne, papel tão ingrato como o do Goussin da Sapho, ainda não nos disse ao que veio: qualquer noite d’estas ha de tomar brilhantemente a sua desforra. Rangel foi um Cascard acceitavel e Nanete uma agradavel Simonne. Gaspar teve o máo gosto de transformar o velho Dubuisson em vigete de farça, e Emilia Eduarda seria uma Anays idéal se soubesse o papel.

Os demais artistas concorreram para o bom exito da representação.Angela Pinto foi calorosamente applaudida.

***

Nos demais theatros não houve novidade alguma, além de dous esplendidos concertos de Vianna da Motta e Moreira de Sá.

Ia-me esquecendo: temos agora no S. Pedro mais um fregoli. Não fui ouvil-o porque abomino o genero. Não me soffre o animo ver um marmanjo a fingir de mulher.

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Publicações theatraes:A casa Garnier acaba de publicar em volume O sorvedouro, drama em 5

actos, escripto pelo nosso compatriota Sr. J. M. Cardoso de Oliveira.Esse drama, já representado na Suissa, com applauso, em 1901, está

tambem publicado em francez (Le Gouffre), e em inglez (The whirpool).

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Por occasião de receber a brochura franceza, manifestei, n’um dos meus folhetins, a boa impressão que me causou a leitura da peça, a que não faltam qualidades scenicas.

– Os Srs. A Lavignasse Filho & C., proprietarios do acreditado jornal de modas a Estação, fundado pelo saudoso Henrique Lombaerts, editaram em folhetos as comedias do Sr. Eduardo Peixoto, Uma lição e Por causa das semelhanças, publicadas ambas no mesmo jornal.

Interessantes trabalhos esses, com o direito de ser bem recebidos n’um paiz onde se tem tornado tão escassa a producção litteraria destinada ao palco. A par de alguns descuidos de fórma, faceis de corrigir, o Sr. Eduardo Peixoto revela qualidades de observação e de espirito, que espero ver um dia aproveitada em obra de mais folego.

***

Falleceu em Paris o velho actor Maubant,que desde 1889 se achava retirado do palco, e foi uma das figuras salientes da Comédie Française, no tempo em que figuravam no societariato actores como Got,Delaunay,Coquelin, Fébvre, Worms, Thiron, Barré, etc., e actrizes como Favart, Croisette, Sarah, Reichemberg, etc., sem esquecer Jouassein, a illustre duègne, a incomparavel Mme. Pernelle, que tambem acaba de morrer.

D’aquelle bom tempo, que difficilmente se renovará, só uma grande figura alli resta: a de Mounet-Sully.

Maubant nasceu em 1821, sahio do Conservatorio com o segundo premio de tragedia em 1841, estreou-se na Comédie no anno seguinte, passou logo depois para o Odéon, onde ficou até 1845, época em que entrou de novo para a casa de Moliére. Foi eleito societario em 1852 e retirou-se, como já disse em 1889, depois de 44 annos de bons serviços.

Era o que lá se chama de un grand prèmier rôle classique. De estatura elevada, porte grave, voz sonora, cheia e retumbante, possuia todas as qualidades naturaes exigidas para representar a tragedia, o que aliás não o impedia de interpretar maravilhosamente o repertorio de Molière.

Os papeis classicos em que mais sobresahio,foram o Dom Diégue do Cid,o Lusignan da Zaira, e o Theseu da Phedra; no repertorio moderno creou com muita auctoridade o papel do almirante na Sphinx, de Feuillet, o do conde d’Ars no Lion amoureux, de Gozlan, e o de Carlos Magno na Fille de Roland. Tive o prazer de vel-o, em 1883, no de Saint Valliers, do Roi s’amuse, de Victor Hugo, em que elle diclamava primorosamente a famosa imprecação do 1º acto:

Seigneur, je ne viens pas vous demander ma fille.

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Entretanto, dizem que o velho Maubant valia mais como jogador de xadrez que como actor, e as suas victorias do Café da Regencia eram menos incontestaveis que as do theatro. Não sei.

A. A.

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O Theatro, 03/07/1902

O folhetim de hoje devia constar de uma palavra só, – Réjane –, pois que Réjane é toda a nossa actualidade theatral. Não seria preciso mais nada do que escrever esse nome, para escrever a chronica dos ultimos dias.

Olavo Bilac disse hontem, n’esta mesma folha,que a gloriosa actriz parisiense veio ao Rio de Janeiro, não para ser criticada, mas para ser admirada. Teve toda a razão. Ella trouxe a consagração do velho mundo; para que havemos de importunal-a com esses adjectivos, os mesmos que empregamos todos os dias a torto e a direito?

A Réjane representou ante-hontem Zazá e hontem Ma cousine; é difficil dizer em qual das duas peças é mais completa. A Sapho amanhã nos collocará na mesma indecisão, e assim por diante. Cada papel em que ella se apresente será um novo assombro.

Ma cousine, sem produzir o mesmo effeito scenico, da melhor que Zaza, talvez,a medida exacta de todos os recursos da Réjane.

Aquelle primeiro acto, que ella representa, desde a primeira até á ultima scena, sem sahir de um divan, é um tour de force, unico, talvez, em theatro.

Quando vi a peça representada em italiano, náquelle mesmo theathro, ha já um bom par de annos, esse 1º acto me pareceu longo e fastidioso. Hontem não tive a mesma impressão. Sem deixar o divan, ora sentada, ora deitada, ora ajoelhada, Réjane consegue dar um movimento extraordinario ao seu papel. Não sei que critico parisiense disse que ella fazia do divan de Riquette um pequenino palco independente do outro; a obsevação é exacta.

A primeira edição de Zazá que conheci, foi aquella com que uma noite nos surprehendeu, ha tres annos, a bella Clara Della Guardia.

Todos se lembram do formidavel effeito produzido pelo trabalho da insigne actriz italiana, que vai caminho da celebridade; eu, pela minha parte, imaginei que era aquella a heroina ideal da comedia de Berton

A interpretação da Réjane faz honra á da Della Guardia: ficou agora claramente averiguado que esta não copiou absolutamente aquella; mas de que vale a outra Zazá – e era encantadora! – comparada com a de ante-hontem?

Que delicia é ver um artista excepcional metter-se assim na pelle de um personagem, confundir-se com elle, estudar-lhe todas as minuciosidades, identificar se maravilhosamente com uma vida tão diversa da sua! Quem ante-hontem poderia descobrir onde acabava a Réjane e principiava a Zazá?

Já tive occasião de dizer, n’um dos meus ultimos folhetins, que a vi trabalhar em 1883, quando nem sequer bruxoleava a aurora da sua fama; como a conhecesse, sobresaltava-me, até certo ponto, a idéa de vel-a em scena e

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achar exaggerados os elogios da critica parisiense, mesmo porque os francezes, em materia de theatro, é para onde lhes dá... Pois bem! a minha espectativa foi excedida: a Réjane, que tive o inexprimivel prazer de admirar e applaudir hontem e ante-hontem, é maior, muito maior que a Réjane que eu esperava inquieto e ancioso.

Á platéa causou ella a mesma impressão que a mim, poeque, apezar da proverbial reserva do nosso publico das primeiras representações,os applausos foram calorosos, embora discretos,dessa discrição que, vamos e venhamos, é preferivel a certas ovações turbulentas e desordenadas.

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Entre as minhas ephemerides theatraes cá me fica esta: “1º de julho de 1902. Pela primeira vez foi visto, no Brasil, o chefe do Estado dar palmas no theatro a um artista.” Nunca lhe doam as mãos ao Dr. Campos Salles.

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É de justiça dizer que a Réjane veio bem acompanhada que, n’outro theatro e com outra enscenação, os espectaculos do Lyrico pouco ficariam devendo aos de Paris.

Além da provecta Gressot, que sabe o seu officio como ninguem (esperem pela Marche aux flambeaux, de Hervieu) vieram com a Réjane os actores Grand e Dubosc, que gosam de muita acceitação em Paris. O primeiro ainda se não estreou: o segundo já nos deu duas brilhantes amostras da sua habilidade.

No espectaculo de hontem distinguio-se tambem o auctor-comico Paulet, representando um papel celebrisado pelo incomparavel Baron – e, além d’esses artistas, conta a companhia alguns outros que dão menos mal o seu recado.

Vamos ter, portanto, uma série de representações deliciosas, a que o nosso publico, se fôr justo, deve concorrer solicito e agradecido.

Nem sempre teremos a fortuna de apreciar uma Réjane. E não ha duas.

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A companhia Taveira continuou a serie dos seus espectaculos com O outro eu, titulo que deu Eduardo Garrido a sua magnifica traducção do Le coup de fonet, vaudeville em 3 actos, de Maurice Hennequin e Georges Duval, grande successo do anno passado nas Nouveautés, de Paris.

Trata-se n’esta farça de um sujeito que, mesmo sem se disfarçar, passa por outro aos olhos de sua mulher e de sua sogra. D’este ponto de partida, de uma extravagancia e de um absurdo extraordinarios, sae uma série de quiproquós e epizodios de um comico espalhafatoso e excessivo, que produz uma hilaridade não menos excessiva e espalhafatosa.

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Independente d’esses effeitos hilariantes, alcauçados pelas situações e pelos episodios, a peça tem muita graça, e promette um bom numero de representaçoes.

Taveira tomou para si um papel creado por Germain, o Brandão parisiense, papel que não está absolutamente nas suas cordas; entretanto, faz o que póde.

Rangel, o nosso Rangel Junior, distinguio-se na interpretação de um bom ganache, e eu fólgo de ver distinguir-se n’uma companhia estrangeira um actor feito no Brasil.

Os papeis femininos estão muito bem com Angela Pinto, Thereza Mattos e Augusta Cordeiro, que teve o bom gosto de atirar ás urtigas a opereta, e tornar-se, no theatro Normal, de Lisboa, uma excellente actriz de comedia.

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Nos demais theatros nada de novo, a não ser a reintegração de Eduardo Victorino no logar de diretor de scena do Recreio, o que é caso para dar parabens á empresa Dias Braga.

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N’esse theatro (Recreio) realisa-se amanhã, com a Honra, de Sudermann, um espectaculo cujo producto reverterá para os cofres da Caixa Beneficente Theatral.

Ha muito tempo não faz beneficio a piedosa associação que tantos serviços tem prestado e tão pouco protegida é pelos proprios que deveriam ser os primeiros a trabalhar para o seu engrandecimento e progresso.

O espectaculo de amanhã foi generosamente cedido pelo empresario Dias Braga, actual presidente da Caixa, que não poderia ser dirigida por melhores mãos.

Com quanto a maravilhosa Réjane, representando a Sapho, attraia necessariamente ao Lyrico, amanhã, grande parte do publico, espero que de resultado o espectaculo da Caixa, afim de que esta continue a subistir sem tocar no seu capitalzinho.

A. A.

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O Theatro, 10/07/1902

A arte brasileira não poderia ser mais cruelmente ferida do que o foi, a 6 do corrente, com a morte de Leopoldo Miguez, o grande compositor.

Eis ahi um nome que não andava de bocca em bocca, afagado pela popularidade, mas que algum dia será talvez um labaro na nossa civilisação artistica. Leopoldo Miguez sofreu o doloroso destino d’aquelles que se tornaram superiores ao meio e á época em que viveram. Trabalhou para o futuro, e o futuro lhe pagará em gloria o que o presente lhe regateou em consideração e fortuna.

Leopoldo Miguez passou apenas pelo theatro: as representações do seu drama lyrico Sablanes, o anno passado, estao ainda bem vivas na memoria do publico para que precisemos recordal-as aqui. Ouvida muito poucas vezes, a partitura só foi comprehendida e apreciada por meia duzia de iniciados; ao publico, ao grosso publico naturalmente escaparam as grandes bellezas d’aquella musica, e eu não tenho a pretensão de me excluir da massa geral. Para applaudir a obra do artista, louvei-me, e ainda me louvo, no parecer dos juizes mais competentes e de cuja sinceridade não posso duvidar.

Miguez não era fecundo, mas a sua obra é a mais consideravel que ainda deixou um compositor brasileiro. Agora que elle está debaixo da terra, vai começar, espero, um movimento de sympathia e saudade, cujo resultado ha de ser a consagração definitiva do seu talento.

Ao Instituto Nacional de Musica, que elle dirigia desde que, com o advento da Republica, esse estabelecimento succedeu ao antigo Conservatorio, fará muita falta sem duvida o administrador activo intelligente e zeloso; deve o governo reflectir maduramente antes de conferir a quem quer que seja tão pesada successão: de alguns traços de penna depende a sorte do Instituto.

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E já que incidentemente fallei d’aquella escola de arte, que tão bellos fructos deu sob a direcção do illustre morto, lembrarei aos nossos dirigentes que é tempo de reparar uma grande injustiça, restituindo a Carlos Cavalier o logar que lhe compete no corpo docente do Instituto. Esse acto de reparação seria tão bem recebido como foi a nomeação de Francisco Braga, que a opinião publica reclamou com tanta insistencia.

Carlos Cavalier é um artista respeitadissimo pelos artistas, é um professor cuja reputação não está por fazer, e cuja existencia tem sido toda de devotamento e trabalho. O seu logar é no Instituto Nacional de Musica.

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Os espectaculos da Réjane têm sido numa serie de victorias, desde a Zazá até La course du flambleau, o surprehendente e maravilhoso drama hontem representado, inicio de uma nova phase na gloriosa carreira da grande actriz parisiense.

Mas que poderia dizer da fascinadora Réjane aqui n’esta folha, em cujas colunnas a prosa de um poeta se encarregou da sua glorificação? Que poderei accrescentar ao enthusiasmo ardente e sincero de Olavo Bilac? Elle tem dito e dirá tudo quanto se póde dizer d’aquelle peregrino talento.

O drama de hontem, que revelou ao publico fluminense a existencia do grande dramaturgo que se chama Paul Hervieu, foi um magnifico derivativo para os frequentadores do Lyrico, já um tanto enfarados, talvez, do cocottismo das Saphos, Zazás, Riquettes e Clotildes. Mas que transfiguração! que metamorphose!...quem adivinhara tanta intensidade dramatica na graciosa interprete de Ma cousine! A Sabina de hontem elevou Gabriella Réjane á altura de Sarah Bernhardt, a unica que me impede de lhe dar o primeiro logar entre as actrizes francezas do nosso tempo.

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Tenho que fazer uma pequena errata ao meu folhetim passado: escrevi que entre as minhas ephemerides theatraes cá me ficava esta:”1º de julho de 1902. Pela primeira vez foi visto, no Brasil, o chefe do Estado dar palmas no theatro a um artista”. Faltou, depois da palavra artista, a palavra dramatico.

Esta errata foi provocada por um anonymo que se assignou Pote de ginjas & Companhia (vê-se que é homem de espirito), e, a proposito d’quella ephemeride, me chamou “engrossador”. A quem diabo quiz eu engrossar, não me dirão?

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Nos demais theatros não ha novidade alguma.No Recreio voltou á scena o Quo Vadis? que tem dado boas casas,

comquanto a empreza melhor faria guardando a reprise da peça para mais tarde, quando ella estivesse um pouco mais descauçada.

A companhia Taveira, que com O outro eu conseguio attrahir enorme concurrencia ao Apollo, annuncia para hoje a 1ª representação da Rosa Engeitada, comedia em 3 actos, de D. João da Camara, o insigne auctor dos Velhos e da Tríste víuvinha.

A peça agradou muito em Lisboa. O papel da protagonista, creado por Adelina Ruas, será desempenhado por Augela Pinto, e todos contam que seja um grande successo para a distincta artista.

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Ha, naturalmente, grande anciedade no publico por conhecer a nova obra de D. João da Camara.

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Ainda não appareceu o primeiro numero da revista O Theatro, ha tanto tempo annunciada, e todavia já essa revista (é o cumulo da prematuridade!) editou, n’um folheto de 36 paginas, a Ceia das sacristães, parodia de Demetrio Alvares á Ceia dos cardeaes, de Julio Dantas, com uma carta-prefacio de Torquato Tapajós.

Não posso apreciar devidamente esse trabalho, porque não li a peça de Julio Dantas, da qual conheço apenas os ligeiros extractos que publicaram os jornaes; entretanto, mesmo sem haver lido o original, achei graça na parodia, escripta em versos alexandrinos espirituosos e fluentes, em que figuram muitos termos e locuções da pittoresca gyria carioca.

Demetrio Alvares é ponto de theatro, profissão que foi tambem exercida por Cruz e Souza, e é, todavia, a menos apropriada para um moço que pensa e produz.

O auctor da Ceia dos sacristães escreve com facilidade e tem o verso natural e espontaneo, o que me faz esperar vel-o apontar as suas proprias peças.

Que estas não sejam exclusivamente parodias e chocarrices. Nos nossos costumes encontrará o poeta magnificos veios, que nunca foram explorados.

***

Ha muitas noites o Lucinda conserva-se fechado, mas não lhe falta de portas a dentro movimento e animação. Prepara-se alli uma revista – Comeu! – cuja primeira representação será brevemente annunciada. Do libretto nada posso dizer, porque foi perpretrado pelo meu melhor amigo, mas afianço-lhes que a musica de Abdon Milanez é bonita, e que os artistas estão seriamente empenhados em que a peça agrade

A. A.

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O Theatro, 17/07/1902

A grande nota do dia, não só no theatro como em tudo mais, continua a ser Gabriella Réjane, a extraordinaria artista que nos honra com a sua presença. Infelizmente uma enfermidade passageira nos privou dos seus espectaculos desde segunda-feira até hontem; hontem, porém, proseguio a série interrompida dos seus triunphos, proporcionando-nos o prazer de admiral-a na encantadora e inverosimil Jacqueline de La passarelle, a sua penultima creaçao do Vaudeville.

Essa, como tantas outras peças do repertorio da Réjane, é mais uma brilhante prova do grande talento da portentosa actriz. Personagem menos de comedia que de vaudeville, Jacqueline seria impossivel nas mãos de outra qualquer actriz. É preciso ter talento, muito talento, para fazer acceitar, sem troca, aquella absurda rapariga que se presta, por dinheiro, a casar-se sem se casar, isto é, a servir de ponte para um homem, que ella não conhece, chegar até outra mulher.

É verdade que Jacqueline é aconselhada pelo padrinho, um advogado que a sabe tola, e o seu amor-proprio desperta a tempo de evitar que se complete a venda, mas vá lá interpretar aquillo outra que não seja uma Réjane!

A grande actriz até hoje só me causou uma decepção: foi com a Madame Sans-Gêne, o trabalho, aliás, que mais concorreu, segundo penso, para a sua celebridade: não me parece, francamente o digo, que Lucinda Simões lhe seja inferior nesse papel. Em compensação, La course du flambear sorprehendeu-me, maravilhou-me, causou-me aquelle fremito raro, que me percorre os nervos sempre que tenho diante de mim alguma cousa de assombroso, de genial.

Hoje repete-se La course du flambeau. Pudesse eu, e faria com que as nossas actrizes, especialmente Lucilia Peres, isto é, aquella com quem mais conto para o nosso theatro, assistissem a essa representaçao da obra prima de Paul Hervieu. Fatalmente aprenderiam alguma cousa, não só com a Réjane, mas tambem com a excellente Grassot, que mostra, no papel de Mme. Fontenai, que, n’arte dramatica, é a simplicidade o meio mais seguro de fazer resaltar todos os effeitos, ainda os mais violentos.

Um critico de primeira ordem, Augustin Filon, disse, referindo-se ao talento da Réjane: “Si on on étudie le mécanisme secret, on en tirera tonte une technique á Fusage dos comédiennes.” É, pois, aproveitar o modelo.

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Que a Réjane não nos faça esquecer os demais artistas da companhia franceza. Ha dias era Grand que na Amoureuse tomava de assalto a sympathia do publico; hontem foi Dubosc que na Passarelle disputou valentemente as honras da noite com a sua gloriosa collega.

É de justiça não esquecer tambem o excellente Paulet, sempre muito discreto em todos os seus papeis. O Bienaimé de hontem – o tal advogado, padrinho de Jacqueline – é um papel que lhe faz honra, e no qual será bem acceito no Vaudeville, se algum dia tiver a fortuna de substituir o Tarride.

***

D.João da Camara, o delicado poeta dos Velhos e da Triste viuvinha, desceu da sua torre de marfim para escrever um melodrama, a Rosa Engeitada, que acaba de ser exhibido, no Apollo, pela companhia Taveira.

Quem conhece e admira o talento d’aquelle dramaturgo, unico no theatro portuguez que hombreou com Almeida Garret, e até o excedeu (o que naturalmente só se affirmará urbi et orbi depois que elle morrer), lamenta que a sua penna experimentasse um genero para o qual não foi talhada. Que diriamos nós de um rouxinol que pretendesse imitar com o seu canto o rugir de uma fera, ou de um Marivaux que se aventurasse a caçar nas terras de um Pixérecouri?

Releva, entretanto, notar que D. João da Camara escreveu a Rosa Engeitada para um theatro popular: não armou absolutamente ao applauso do publico de Dona Amelia nem do Dona Maria. De que conseguiu o que desejava, isto é, viver e fazer viver os artistas, para depois philosophar, é prova o succeso que teve a peça em Lisboa, e se renovou no Rio de Janeiro. A empreza do Apollo – é triste dizel-o, mas é a verdade – não realisaria tão consideraveis receitas com uma reprise dos Velhos, nem mesmo com a ultima peça litteraria de D.João da Camara, a Aldeia na côrte, um primor de estylo, de graça, de sentimento artistico.

É preciso notar que na Rosa Engeitada, fazendo abstração dos defeitos inherentes a um genero inferior, que só póde agradar aos paladares educados quando temperado com a habilidade de um D’Ennery, que tinha o segredo dos condimentos imprescindiveis a tão indigestos guizados, notam-se algumas scenas do costumes finamente observadas, e outras em que transparece, embora vagamente, a musa graciosa e elegiaca do poeta dos Velhos.

Demais, a peça está representada, e Angela Pinto, no papel da protagonista, a que dá todo o realce, bem merece os applausos que lhe não têm sido regateados pela platéa.

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Na sua chronica Prosadores, publicada no Correio da Manhã de ante-hontem, diz o meu illustre confrade José Verissimo que um drama ultimamente publicado em Genova pelo nosso compatriota Rubem Tavares, tem, pelo menos, a originalidade do titulo,que é um ponto de interrogação.

Ora, o drama tem muitas originalidades, mas essa não: Affonso Celso Junior, quando ainda era estudante de direito, fez representar no theatro S. José, de S. Paulo, uma comedia cujo titulo era tambem um ponto de interrogação, e ha tres annos, no theatro Sant’Anna, d’esta capital, assisti á representação de um entremez que tinha exactamente o mesmo titulo e era assignado pelo saudoso Orlando Teixeira.

***

Parece que vamos ter uma série de parodias á Ceia dos cardeaes. No meu ultimo folhetim fallei da Ceia dos sachritães; agora escreve-me Pae Paulino, remettendo-me o ultimo numero do alegre Rio Nú, em que vem publicada a sua Ceia dos cortezans.

“A Ceia dos cortezans, pergunta elle, não merecerá tambem uma palavra do Mestre?” Ao que parece, o Mestre sou eu... Antes fosse!

A parodia tem alguns versos menos maos, cuja leitura é agradacel, e o auctor soube evitar escabrosidades a que poderiam leval-o as interlocutoras; mas não me parece que no theatro conseguisse fazer rir, e fazer rir é a unica razão de ser de uma parodia.

Uma das cortezans, Maria do O’, diz “com lagrimas na voz” o penultimo verso da peça. Nas parodias são prohibidas as lagrimas.

***

Está imminente no Lucinda a primeira representação da revista Comeu!A peça foi escripta de boa vontade, para satisfazer ao pedido de um

emprezario amigo; a crise, porém, que atravessava os nossos theatros não permittio, naturalmente, que o auctor concebesse grandes esperanças.

Entretanto, assistindo aos ultimos ensaios, elle animou-se um pouco, não pelo valor do seu trabalho, que não é nenhum, mas pelo esforço dos artistas. Clelia, a incomparavel Clelia, Pepa, Medina de Souza, Mattoz, Colás, Leonardo, Edmundo Silva, França, finalmente todo o pessoal do Lucinda está empenhado na salvação do Comeu! em cujos ensaios Colás se tem revelado um magnifico enscenador.

A. A.

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O Theatro, 24/07/1902

Depois do meu ultimo folhetim, a Réjane deu-nos Le demi-monde, de Dumas Filho, o Sylvie, ou la curieuse d’amour, de Abel Hermant,dramaturgo quasi desconhecido, mesmo em Paris, pois que nenhuma notoriedade alcançou com a sua primeira comedia, La meute, representada em 1804, no Rennaissance.

Esta mesma Sylvie, peça muito original, não nego, porém mal feita e brutal, agradou mediocremente no Vaudeville quando foi alli representada pelo primeira vez em dezembro de 1900; mas – que querem? – a Réjane adora o papel da protagonista, que se adapta admiravelmente ao seu talento, e aquillo é peça de que ella não se desfará nas suas tournées nem á mão de Deus Padre. A grande actriz só vê naquelles quatro actos o papel de Sylvie: o resto pouco lhe importa... Demais, seria doloroso não mostrar aquella esplandida colleção de toilettes, cada qual mais digna de attenção.

Realmente, se não fôra o ignobil scenario do 1º acto, teriamos diante dos olhos um quadro digno de ser pintado por Watteau n’um leque da Pompadour, e no 3º acto a Réjane fez-nos lembrar o famoso retrato de Mme. Récamier, pintado por David. Não póde haver outra Sylvie mais bella nem mais suggestiva.

Infelizmente não me foi dado assistir á representação do Demi-monde, que, segundo me afiançam pessoas competentes, foi um triumpho não só para a Réjane como para toda a companhia.

É hoje o anti-penultimo espectaculo com o Divorçons, comedia de que o nosso publico dever guardar saudosas recordações; depois de amanhã será o penultimo com La dame aux camélias, o domingo, em matineé, o ultimo com a mesma peça.

Vamos ter duas primicias: Réjane e Grand representarão pela primeira vez os papeis de Marguerithe Gautier e Armand Duval. Ahi está um facto que faria correr o tout Paris des premières e daria pasto á tagarelice do boulevard.

Estou ancioso por ver e ouvir a adoravel artista n’um grande papel inteiramente novo para ella, interpretado sem a certeza, a segurança, o dominio, a posse absoluta que necessariamente resultam de um grande numero de representações consecutivas. Vamos ter uma Dama das Camelias avant la lettre. Os que prezam de entender e estimar a arte não se privarão certamente d’esse espectaculo.

Mais tres dias; e Réjane deixara o Rio de Janeiro...Ainda ahi está, e já tenho saudades! Consolem-nos as duas promessas que ella nos fez no palco do Lyrico, por signal que de joelhos: aprender o portuguez e voltar ao Rio de Janeiro.

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Não creio que a Réjane estude nossa lingua: é muito difficil e ella não teria que fazer de similhante prenda; espero, porém, que um dia tenhamos a fortuna do admiral-a e applaudil-a de novo, sem sahir da nossa terra. Deus nol-a traga!...

***

Para substituir a Rosa Engeitada, que, se não enriqueceu a empreza, fez, pelo menos a sua obrigação, como se diz em gyria de bastidores, a companhia Taveira deu-nos o Filho sobrenatural, comedia buffa em 3 actos, de Maurice Vaucaire, um dramaturgo inedito no Rio de Janeiro, e Grenet-Dancourt, auctor das Tres Mulheres para um marido, de hilariante memoria. A traducção é de Eduardo Garrido; não preciso dizer mais nada.

É uma peça engraçadissima, com algumas scenas de comedia, de verdadeira comedia, e muita novidade no dialogo e nas situações, o que é raro no theatro d’esse genero mais que explorado.

O ponto de partida do Filho sobrenatural, que não é, como se poderia suppor, uma parodia do Filho natural, é o seguinte:

Um sugeito casado, provinciano, que vae de vez em quando pintar a manta em Paris, precisando de um pretexto para as suas ausencias e de uma justificação para as suas despezas, inventa um carapetão vaudevillesco; diz á esposa que tem uma confissão a fazer-lhe, consequencia de um erro da sua mocidade. E inventa um filho!

Esse filho, que não existe, e justifica o titulo da peça, enche tres actos alegres, de uma alegria douda e turbulenta, dando logar a uma serie vertiginosa de quiproquós, cada qual mais bem arranjado e mais comico.

A companhia Taveira, com o intelligente actor-emprezario á frente, deu a este magnifico vaudeville um desempenho muito satisfatorio.

***

A companhia do Lucenda reprezentou sabbado, pela primeira vez, a revista comeu! escripta pelo meu melhor amigo.

O publico rio e applaudio, – isso me satisfez. Muita gente notou que os scenarios não fossem todos novos e as vestimentas não deslumbrassem os espectadores com o brilho dos setins e dos dourados. Em todo o caso, o emprezario não enganou o publico, não prometeu mais do que deu, e, vamos e venhamos, a enscenação é limpa.

Commetterei uma indiscrição, de que peço desculpas á empreza do Lucinda, dizendo que, com aquelles scenarios velhos (ainda assim retocados) e aquella rouparia pobre, a “montagem” do comeu!, que custou (não parece) perto de oito conto de réis, representa um verdadeiro milagre, um prodigio de

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força de vontade. Ninguem calcula, não póde calcular os esforços e sacrificios que fez a empreza para chegar áquelle resultado. Assisti a tudo e de tudo posso dar testemunho...Quando o panno subio para o primeiro acto, parecia me um sonho.

Os artistas do Lucinda têm todo o direito á benevolencia e á sympathia do publico fluminense, e este não os abandonará, espero. Se o publico perdôa a quem não lhes dá o luxo nas enscenações porque não quer, com mais razão perdoará a quem lh’o não dá porque não póde...

Um collega, alliás muito amavel e generoso, achou a peça melancolica de certo ponto em diante. Não defendo o autor. Como poderia elle evitar que uma revista de factos fugisse ao tom dominante da sua epoca e do seu meio? Pois não é tudo hoje melancolia n’este paiz? O proprio prazer não se tornou melancolico?

Quanta melancolia n’aquelle titulo – Comeu! –, que é nada mais nem menos que um grito de guerra, levantado pelo Correio da manhã, victoriosa folha que foi, por bem dizer, a musa inspiradora da revista?

Vamos! peguem na penna, meus senhores, satyrisem a vida fluminense: dou-lhes um doce se conseguirem ser menos melancolicos do que o auctor do Comeu!

***

Nos outros theatros nada de novo, a não ser, no S. Pedro, um prestigitador o Sr. Watry, que tem agradado muito e de quem toda gente diz maravilhas.

No Recreio está em ultimos ensaios a Bohemia, um drama illustre, tirado por Theodore Barriére de celebre romance de Henri Murger. A traducção foi caprichosamente feita por Machado Corrêa, e os ensaios estão sendo dirigidos por Eduardo Victorino, que põe todo o seu talento e todo o seu carinho ao serviço d’essa obra profundamente artistica e profundamente humana.

A. A.

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O Theatro, 31/07/1902

O espectaculo de despedida de Réjane foi um dos mais bellos a que tenho assistido. A ovação feita pelo nosso publico á eminente artista não podia ser mais calorosa nem mais vibrante, sem os ridiculos excessos que infelizmente se têm visto em occasiões analogas. Nenhum espectador ficou em mangas de camisa; nenhum chapéo voou das galerias para o palco; entretanto, houve muito enthusiasmo, e o espectaculo fechou com chave de ouro: um discurso de Manuel Victorino, o grande orador brasileiro.

A representação da Dama das Camelias foi a ultima prova, e a mais decisiva, do extraordinario talento de Réjane. Como se póde representar com tanta arte, pela primeira vez, diante de uma sala excepcionalmente agitada, um papel tão complexo, tão variado, tão perigoso como o de Margarida Gauthier?

O trabalho de interpretação não foi e nem podia ser completo: faltavam-lhe, necessariamente, os ultimos retoques; mas as linhas geraes estavam bem traçadas: Réjane, depois de mais duas ou tres representações, será um assombro na velha heroina de Dumas Filho.

A proposito de Grand, que foi um esplendado Armando Durval, repetirei o que por outras palavras disse alhures:

Foi pena que não apreciassemos n’outros grandes papeis esse bello artista, destinado sem duvida á Comedie Française.

Foi pena, tambem, que Daynes-Grassot não se exhibisse n’outra peça do seu repertorio, além da Course du flambeaut.

Dubosc, actor desigual, que não se emancipou inteiramente dos processos do ensino official do Conservatorio, mas que n’alguns papeis é realmente notavel, e Paulet, uma grande “utilidade”, formavam, com aquelles dous artistas, pondo de parte a incomparavel Réjane, um agradavel quartetto, – e o resto da companhia, diga-se a verdade, era todo muito acceitavel. Não se podia exigir mais nem melhor.

Permittam que eu reproduza n’estas colunnas a “carta aberta” que me dirigio a grande Réjane. Faço-o, não por um sentimento de vaidade, mas pelo desejo de registrar esse documento n’um dos meus folhetins, que são o repositorio fiel de todas as minhas impressões e sensações do theatro:

“Lettre Ouverte á Mr. Arthur Azevedo. – Quel lettré plus auctorisé, quel ami plus indulgent et plus sûr pourrait choisir pour exprimé á ce public de Rio, si distingué, si fin, la peine que j’éprove á le quitter; á cette jeunesse des écoles, si cultiveé, la reconnaissance que je lui garde pour son enthousiasme et sa spontaneité, á tant d’amis que je quitte maintenant, des amis d’autant plus

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précieux et plus sûrs qu’il a fallu les conquerir! – nous ne nous connaissions ni les uns ni les autres, et ce n’est qu’au bout de quelques jours que nous nous sommes compris et aimés profondément, et, je le crois, pour jamais.

Voulez-vous, cher Mr. Azevedo, en transmettant ces remerciements émus, exprimer á la presse; en notre nom á tous, l’expression de noutre gratitude pour l’appui si puissant et si éclairé qu’elle vient de préter á nos efforts.

Quant á vous, cher monsieur et ami, faites taire toute galanterie en me rappelant que vous me vites pour la premiére fois, il y a quatorze années, ce que me met á l’aise pour vous embrasser du meilleur de mon coeur.”

RéjaneA violencia feita á minha galanteria é um pouco mais grave, porque foi, não

ha quatorze, mas ha dezenove annos, em janeiro de 1883, que vi Réjane pela primeira vez, conforme já tive occasião de contar aos leitores da Noticia.

Mas, como se vê, a illustre comediante não envelheceu e privilegiada, como é, pela natureza, espero vel-a ainda, d’aqui a outros 19 annos, assombrar a platéa com a sua arte inexcedivel, de commoção, de mocidade e de encanto.

Entretanto, faço votos para que, antes d’esse prazo, realmente longo, ella volte a conquistar os nossos applausos sinceros e calorosos.

***

Em principios de 1898, Henry Lavedan, accendendo uma vela a Deus e outra ao diabo, isto é, uma vela á Academia Franceza e outra ao boulevard, dava ao mesmo tempo no Variétés o veneno com Le nouveaujeu, uma das peças mais livres de que rezam os annaes do theatro parisiense, e na Comédie Française o contra-veneno com essa Catharina que hontem ouvimos no Apollo atravez de uma boa traducção de Acacio Antunes, e que amputada uma scena do 3º acto, poderia ser exhibida, sem o menor escandalo, n’um collegio de irmãs de caridade.

Antes de mais nada, louvemos sem restrições a pasmosa actividade da companhia Taveira, que não trouxe de Lisboa o repertorio ensaiado, e em mez e meio tem dado quatro ou cinco peças de espectaculo, preparadas aqui. Deus ajude a quem trabalha.

É a primeira vez que uma peça de Lavedan figura no palco brasileiro, mas o nosso publico, depois de ouvir os quatro actos de Catharina, ficará conhecendo por uma face apenas, e não a mais accentuada, o talento d’esse dramaturgo.

Entretanto a comedia é primorosa e de grande elevação moral.Catharina Vallon, moça pobre e honesta que com seu trabalho faz viver

uma familia inteira, é contractada pela velha duqueza de La Rive para dar lições de piano á sua filha. A professora impressiona por tal fórma o duque,

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filho da velha fidalga, herdeiro do titulo paterno, que elle resolve fazer d’ella sua esposa.

O casamento não encontra muita dificuldade, porque o defunto duque, pouco antes de morrer, recommendou á duqueza que sob pretexto algum contrariasse a inclinação dos filhos no tocante ao matrimonio.

Catharina é amada par um excellente rapaz, Jorge Mantel, que leva toda a vida a sacrificar-se pela felicidade alheia; vendo que a moça o não ama e é amada por um duque jovem, formoso e abastado, esse galan romanesco é o primeiro a exigir que o casamento do outro se realize.

Catharina torna-se duqueza e vai com seu marido habitar o castello de La Rive, levando em sua companhia o pai, um velho organista, a irmã, que vivia a pintar abat-jours, e dous irmãos pequenos. A mãi já não existe.

A presença de todos esses burguezes no castello começa a enervar o duque. A duqueza percebe-o e inquieta-se, mas o que lhe dá maior cuidado não é isso, é a presença de Helena de Grisolles, mulher casada, separada do marido, que ama loucamente o duque e quer ser correspondida.

Um dia essa infeliz confessa-lhe a sua paixão entre lagrimas, pede-lhe “uma hora da sua vida” e lança-se nos braços d’elle, que enternecido, não reage.

Catharina sorprehende-os aos beijos, mostra-se digna: uma separação é inevitavel; mas apparece o Deus ex-machina, figurado pelo sympatico Jorge Mantel, que promove a reconciliação do casal, sacrificando-se mais uma vez.

A representação foi um pouco arrastada, porque nem todos os papeis estavam convenientemente sabidos, mas Angelo Pinto e Augusto Cordeiro brilharam nos de Catharina e Helena.

Taveira caracterisou com talento o velho Vallon, pae de Catharina; Luiz Pinto foi um Mantel rasoavel e Carlos de Oliveira teve scenas felizes no papel de duque.

Emilia Eduarda não estava muito á vontade no da velha duqueza, aliás o mais solido da peça, o Nanete disse todo o papel da irmã de Catharina, a tal dos abat-jours, com lagrimas na voz, o que não era preciso.

Augusto Campos e os demais artistas que tomaram parte na representação deram boa conta do recado.

O publico applaudio.

***

No Recreio temos hoje a 1ª representação do drama Bohenia, de Henry Murger e Theodore Barriére, que esperou cincoenta e tantos annos para ser representado no Rio de Janeiro, e jamais o seria, talvez, se não fôra o grande successo da opera de Puccini. Ainda bem que se trata de uma d’essas obras que

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não envelhecem. Posta cuidadosamente em scena, como está, deve a Bohemia sustentar-se por muito tempo no palco do Recreio.

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Nada de novo nos outros theatros:No Lucinda prosseguem as representações do Comeu! (a récita dos actores

está marcada para 11 de agosto), e no S. Pedro continua o successo do magico Watry.

– Quarta-feira proxima fará beneficio, no Recreio, a provecta actriz Felicidade dos Santos, que ha tanto tempo está sem theatro.

– Annuncia-se uma nova serie de concertos brasileiros, organisados pelo sympatico violoncellista Figueiredo, incansavel propagandista da musica nacional.

A orchestra será dirigida pelo eximio professor Agostinho de Gouvêa, e tomarão parte nos concertos os nossos melhores artistas.

A. A.

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O Theatro, 07/08/1902

Não deixes para amanhã o que puderes fazer hoje. Aqui estou eu, mais uma vez, pezaroso de não haver seguido essa velha e sabia sentença. Guardei-me para assistir hontem á representação da Bohemia, sem me lembrar que hontem era o beneficio da Felicidade com o Drama do Povo.

O que vale é que meu collega da secção theatral, um dos jornalistas fluminenses que mais entendem do riscado, já disse aos leitores d’A Noticia o que pensava da peça e do bom desempenho que lhe deram os artistas de Recreio; o meu juizo não adiantaria nada.

Segundo a opinião geral, a Bohemia foi bem traduzida, bem posta em scena e bem representada; o meu parecer não seria uma nota destoante n’esse unisono de merecidos louvores.

Conheço a peça e posso dizer que é um encanto. Ainda agora acabo de ler o folhetim que o mais illustre e o mais exigente dos criticos, Theophile Gautier, escreve quando ella foi pela primeira vez representada em Paris. Disse elle:

“Jamais on ne vit un parcil d’artifice de mois et traits; á chaque instant étincelle, dans uno phrase nette, bréve, imagée, une pensée ingeniese, philosophique ou attendrissante, car, don rare et merveilleux, l’esprit de M. Murger est plein de coeur; le rire, ches lui, touche aux larmes et n’a pas cet éclat sec et strident qui blesse; le caprice ne nuit en rien á la verité;tout est observé, ressenti, souffert, pour ains dire; on voit que cette ceuvre a été vécue avant d’étre écrite.”

Mais adiante o critico, fallando de Musette, tem uma phase deliciosa: “ses amours, diz elle, sont une chanson en beaucoup de couplets, dont Marcel est le refrain.”

Entretanto, La vie de Bohéme (refiro-me especialmente ao romance) é um livro pernicioso, que deitou a perder muitos rapazes. A bohemia é uma bella cousa, com tanto que seja passageira; o eterno bohemio é o mais desgraçado dos mortaes. Mais de um companheiro dos meus vinte annos continuou, empanturrado de Murger, a ser Rodolpho ou Schaunard, mesmo depois de casado e com filhos. Isso é lamentavel. Foi o proprio Murger que disse, creio, que la jeunesse n’a qu’un temps.

– Enganei-me quando no meu folhetim passado escrevi que La vie de bohéme, datando de 1819, só agora foi representada no Rio de Janeiro.

O ex-actor Martins, hoje meu companheiro de trabalho numa repartição publica, disse-me que a peça foi exhibida no Gynnasio, durante o brilhante periodo em que alli funccionou a Associação Dramatica,cujos trabalhos foram inaugurados em 1860 com o Luxo e vaidade, de Macedo, e que durou até 1863,

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pondo em scena, entre outras muita producções nacionaes, a Historia de uma moça rica, de Pinheiro Guimarães, os Mineiros da desgraça, de Quintino Bocavuva, a Epoca, de Achilles Varejão, os Typos da actualidade, de França Junior, o Cynico, de Sizenando Nabuco, Gabriela, de Maria Ribeiro e Lusbella, de Macedo.

Dê-me ao trabalho de percorrer a colecção do Jornal do Commercio e nada encontrei; provavelmente a Vida da Bohemia foi representada naquele theatro, mas antes da formaçao da Associação Dramatica.

– Afianço-te que a peça foi a scena, insistio o Martins; lembra-me bem que o Vasques fazia o papel do creado Baptista, hoje feito pelo Ferreira.

Publicarei com muito gosto qualquer commuincação que sobre o assumpto me façam.

– Outro amigo me afiança que La vie de Bohéme foi representada, quando era ainda novidade, por uma companhia franceza que deu esperaculos no theatro de S. Januario.

Tudo isso é facil de averiguar.– O papel de Schunard foi representado em Lisboa com extraordinaria

felicidade, no theatro D. Maria II, pelo actor Guilherme da Silveira. Como se sabe, esse artista foi, durante muitos annos e em diversas épocas, empresario no Rio de Janeiro; entretanto, não quiz nunca pôr em scena uma peça que lhe valéra um triumpho no seu paiz. É verdade que a peça cahira em Lisboa; isso, porém, não quer dizer nada, porque muitas peças que lá não derem vintem aqui têm dado muito dinheiro, e vice-versa. O successo da Bohemia no Recreio será, espero, mais um argumento contra certas prevenções infundadas.

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Parece ter agradado muito em Lisboa essa pobre Catharina, que foi o espectaculo mais infeliz da companhia Taveira.

A peça de Lavedan era digna de melhor sorte. A nossa impresa foi injusta para com ella, não a viu com bons olhos, negou-lhe tudo... Essa condennação in limine é muito discutivel, e eu discutil-a-ia, talvez, se valesse a pena gastar tinta com uma comedia que passa e desaparece sem deixar vestigios.

Lavedan é hoje substituido por Feydeau. Vamos ter logo no Apollo a famosa Lagartixa. Ha no publico certa anciedade por ver Angela Pinto no papel da protagonista, que foi aqui tão mal desempenhado por Lucilia Simões, o que aliás não impediu que a applaudissem freneticamente.

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Chegou a companhia lyrica do denodado Sansone,a qual se estreará segunda-feira, o que motivou transferir-se para terça a recita dos auctores da revista Comeu!

Eu não daria noticia d’esse espectaculo, se fosse o unico auctor da peça; mas o beneficio é tambem de Abdon Milanez, e faço todo empenho em que o meu companheiro de trabalho seja feliz.

E feliz tambem desejaria que fosse amanhã o Colás, que realisa a sua festa artistica, no Lucinda, com uma representação extraordinaria da Capital Federal.

***

Agora uma noticia para a qual chamo especialmente a attenção dos meus leitores:

D. Julieta Penna, filha de Luiz Carlos Martins Penna, o illustre creador da comedia nacional, ultimamente enviuvou, e acha-se reduzida a um estado precario. Sabendo disto, alguns amigos a aconselharam que organisasse n’um dos nossos theatros um espectaculo em seu beneficio. Ella veio ter commigo, afim de que eu lhe indicasse os meios praticos de realisar esse espectaculo, e em boa hora escrevi ao meu amigo e collega Eduardo Victorino, director de scena do Recreio Dramatico, uma carta de que ella propria foi portadora. Eduardo Victorino obteve immediatamente da empreza d’aquelle theatro o generoso offerecimento de todas as facilidades para que o projectado espectaculo seja levado a effeito a 3 de setembro proximo, custando apenas a diaria, isto é, as pequenas despesas de prompto pagamento. Tudo o mais será liberalmente cedido pela empreza Dias Braga.

Estou empenhado em que o programma d’esse espectaculo seja o mais attrahente possivel, e desde já posso communicar aos meus leitores que será representada uma comedia em 1 acto, de Martins Penna, até hoje conservada inedita entre os papeis deixados pelo escriptor fluminense.

Essa comedia, que é engraçadissima, e se intitula Os meirinhos, foi representada pela primeira vez no theatro São Pedro de Alcantara a 27 de janeiro de 1846; deu poucas representações, e depois d’isso nunca mais voltou á scena.

O manuscripfo, encontrado entre os papeis do comediographo, é, não uma cópia, mas um borrão cheio de emendas: em mais de uma pagina foi preciso adivinhar o que lá estava: entretanto, a cópia entregue ao Recreio Dramatico está feita com muito cuidado, e foi escrupulosamente revista por mim, que puz n’essa tarefa o carinho e o respeito que me merece Martins Penna.

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Mais de espaço voltarei a falar d’esse espectaculo, que honra a empresa do Recreio Dramatico.

A. A.

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O Theatro, 14/08/1902

Devo a dous mortos o melhor espaço d’este folhetim. Já não existe Giovanni Emmanuel, o grande artista que tivemos a fortuna

de admirar e applaudir em tres épocas: 1887,1891 e 1896. Finouse em Turim, cidade onde nascera, e onde o seu venerando pae, octogenario, assistio aos seus ultimos instantes.

Giovanni Emmanuel era formado em engenharia e tinha se feito jornalista, quando da noite para o dia um coup de tête, uma discussão a proposito do Othelo, atirou-o ao palco e fez d’elle o mais ilustre dos amadores dramaticos.

Esse papel de Othelo foi a sua fama e a sua gloria. Interpretava com muito brilhantismo o rei Lear e outros personagens esmagadores; mas foi no Othelo que se mostrou incomparavel, unico. Nem Rossi, nem o proprio Saivini lhe levaram as lampas no mouro de Veneza.

Era grande demais para a comedia, – grande no talento que só se adaptava ao tragico, e grande no physico, moldado para os heroes terriveis de Shakespeare.

A sua musa não era Thalia, mas MelpomeneEmmanuel deixou no Rio de Janeiro um grande numero de amigos e

admiradores, alguns dos quaes, hoje, ás 9 horas, na egreja de S. Francisco de Paula, tiveram ensejo de prestar-lhe um derradeiro tributo, assistindo ao officio funebre mandado celebrar pela Empreza Theatral do Brasil.

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O outro morto é Orestes Coliva, o insigne scenographo tambem italiano pelo sangue, mas brasileiro pelo coração.

Alguem, que o conhecia e apreciava, já hontem lembrou aos leitores d’A Noticia quem era esse artista, cujo desapparecimento constitue uma perda muito sensivel para os nossos theatros.

Coliva, que era florentino, tinha já um nome feito no seu paiz quando resolveu ir ao Rio da Prata, de onde se transferiu para o Rio Grande do Sul. Ahi casou-se com uma distinctissima senhora, patricia nossa, e nunca mais sahiu do Brasil.

Ha perto de vinte annos veio para o Rio de Janeiro, tornando-se logo conhecido e estimado pelos seus magnificos scenarios, alguns dos quaes eram verdadeiros primores, embora o artista algumas vezes abusasse um pouco dos tons violentos.

Depois que aqui chegou, Coliva só sahiu do Rio de Janeiro para ir ao Maranhão pintar o panno de bocca e alguns scenarios do theatro S. Luiz. O seu

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trabalho foi ali enthusiasticamente applaudido, e durante a sua permanencia n’aquella cidade o artista recebeu inequivocas provas de estima e consideração. Voltou de lá penhorado pela sociedade maranhense, e ultimamente manifestava a miudo o desejo de viver no Norte.

Elle foi surprehendido pela visita da morte com os pinceis na mão: viveu 64 annos e trabalhou até o fim. Ferido por uma congestão cerebral, ainda resistio durante alguns dias, fallecendo longe de sua adorada esposa, que se achava no Rio Grande do Sul, e só hontem chegou, chamada por telegramma.

Deixou pintada oito scenas e desenhadas mais seis para um drama de grande espectaculo que vai entrar em ensaios no Recreio Dramatico. O publico terá, pois, occasião de render preito á sua memoria diante de uma manifestação posthuma do seu talento.

O nobre artista legou-nos um bom discipulo a quem era muito afeiçoado e em cujas aptidões confiava muito, segundo elle proprio me disse mais de uma vez. Esse discipulo, muito novo ainda, chama-se Mesquita e é sobrinho do ilustre compositor d’O vagabundo.

Todos sabem, pouco mais ou menos, quanto valia Orestes Coliva como artista; ser-me-hia preciso um espaço de que infelizmente não disponho n’este folhetim para dizer aos leitores quanto elle valia tambem como homem. Era um cavalheiro finissimo, uma alma fidalga, cujo perfil tomaria todo o folhetim, e ainda ficaria muito por dizer. Reservo-me, pois, para outro lugar, onde possa fallar d’elle, unicamente d’elle.

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O ex-actor Martins, depois de ler o meu folhetim passado, não descansou emquanto não me trouxe a historia da Bohemia.

A celebre peça de Theodore Barriére e Henry Murger,que continua em scena no Recreio, foi representada com o titulo A vida da Bohemia, na Phenix Dramatica, a 20 de novembro de 1872.

Era empresario do theatrinho da rua da Ajuda o bom Jacintho Heller, que tinha então em scena, com grande successo, o Ali-Babá. A peça foi representada em beneficio de Eugenia Camara, e não interrompeu, el pour cause, a carreira da magica. Até o ultimo dia d’aquelle anno, A vida da Bohemia apenas quatro vezes figurou no cartaz, e sempre em beneficio.

O traductor foi Julio Xavier, que teve o mau gosto de mudar para Violeta o bonito nome de Musolle, e julgou a proposito dar os seguintes titulos aos actos: I, Passoros loucos; II, [p. i.] e Violeta, III, Dor e abnegação; IV Orgulho e amor; V, A vida da Bohemia.

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A distribuiçao dos papeis foi a seguinte: Durantin, Rodrigues; Rodolpho, Galvão; Marcello, Leal; Schaunard, Lisboa; Coline, Guilherme do Rego; Benoit, Lima; Baptista, Vasques; Mimi, Julia Heller; Violeta, Eugenia Camara; Eufrasia, Anna Costa; Uma senhora, Julieta.

Já não existem os auctores nem o tradutor da peça, e dos interpretes, pondo de parte Julieta, que conheci corista na Phenix e não sei que fim levou, so existem Julia Heller, que ha muito tempo se retirou do theatro e hoje vive de vender balas, e Leal, que actualmente é socio de uma casa de penhores na rua do Sacramento.

Sobreviveu tambem á hecatombe o velho Heller que ahi está fero e rijo, organisando um espectaculo em seu beneficio,o qual se realisará segunda-feira proxima com o sino do cremiterio, e um intermedio em que tomará parte Rose Meryss.

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Façam o favor de me dizer que espaço me resta agora para fallar da estréa da companhia lyrica, do reapparecimento da companhia Tomba, da representação d’A Lagartixa e da representação d’A ceia dos sacristães, a interessante parodia de Demetrio Alvares, a que ha dias me referi, e que teve contra si o apparecer antes da peça original, A ceia dos cardeaes?

– Limito-me a dar um aperto de mão ao intrepido Sansone pela victoria da companhia lyrica. O sympathico empresario quebrou a castanha na bocca dos agourentos e taralhões: os dous primeiros espectaculos, com a Manon, de Puccini e o Meplistopheles, de Boito, foram dous triunphos. A prima-dona Pasini e o tenor Zenatello (uma celebridade que começa no Rio de Janeiro, como a de Gayrre e a de Tamagno) salvariam a situação, se o conjuncto periclitasse; mas o conjuncto assegura uma bella temporada. E ainda ahi vem a Darclée!

– Dizem-me ter agradado muito, pela companhia Tomba, a opera-comica em 3 actos, Ninette, libreto de Charles Clairville, filho do celebre faiseur, e musica de Lecocq.

A peça representada com aquelle titulo nos Bouffes-Parisiens, onde passou quasi despercebida, a 28 de fevereiro de 1896, figura nos cartazes do S. Pedro com este titulo ultra-extravagante Ninon de Lenclos e Cyrano de Bergerac.

A um dos criticos pareceu que o libretto fosse inspirado pela vitoriosa comedia de Edmond Restand, quando, pelo contrario, apezar de mao, suggerio, talvez, ao poeta a primeira idéa do seu magnifico trabalho.

Ninette é a ultima partitura do illustre Lecocq, e talvez seja o seu canto do cysne; o insucesso mortificou-o dolorosamente, por ter sido injusto.

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– Resta-me dizer que Angela Pinto representa a primor o papel da Lagartixa, comquanto nas suas mãos o personagem nada tenha de parisiense. Culpada não é, de certo, a talentosa actriz, mas o mestre Eduardo Garrido que, traduzindo a peça, aportuguezou, nem podia deixar de aportuguezar, o typo, desde que era obrigado a procurar no calão de Lisboa as phrases equivalentes do argo de Paris. Nas peças de theatro o que principalmente caracterisa os personagens é a linguagem. Uma actriz de genio não poderá interpretar com mais verdade a dame de chez Maxim, fallando como se falla no Bairro Alto.

A. A.

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O Theatro, 21/08/1902

O nosso theatro teve ha dias o seu escandalo, não tão grande como o das pedras, mas não ha duvida que foi um escandalo: Angela Pinto deixou de fazer parte da companhia Taveira.

Escandalo não seria, se não se houvesse tornado publica e notoria a scena que se passou na caixa do Apollo durante a ultima representação da Largatixa,scena que não descreverei n’estas colunnas, onde jamais referi ou commentei o que se passa nos bastidores. Nada tenho que ver com a vida intima dos artistas e dos empresarios.

Quando Angela Pinto chegou a esta capital, vinha precedida de duas famas paralelas e simultaneas, uma que a dizia actriz de muito merecimento, outra que a pintava como uma boa doudejana, capaz de pregar uma boa peça ao seu empresario quando este menos esperasse. Ella justificou plenamente a primeira fama: era natural que justificasse tambem a segunda. Ca y est.

Bem sei que Angela Pinto esta no seu papel: as estrellas do palco só foram inventadas para desconto de todos os peccados e peccadilhos dos respectivos emprezarios, e é por isso que, se algum dia a desgraça me coagisse a ter uma empreza de theatro, do que Deus me livre e guarde, as estrellas não fariam parte do meu elenco, o publico haveria de vel-as por um occulo, como os astronomos. Se o honrado Taveira assim pensasse, não veria estrellas durante a representação da Largatixa.

Não sei que razões houvesse para irritar a graciosa actriz portugueza; mas, fossem quaes fossem, Angela Pinto deveria lembrar-se de que era a primeira figura da companhia, o astro em volta do qual gravitavam os outros artistas, reduzidos á posição de satelites, e, portanto qualquer manifestação mais grave do seu mao humor pertubaria consideravelmente o interesse geral.

O espectador, que não vê, felizmente para elle, o que se passa nos bastidores, observava que a empreza do Apollo, para ter direito aos bons serviços de Angela Pinto, pagava-lhe o melhor ordenado, distribuia-lhe os melhores papeis, anunciava-a do melhor modo possivel, e cercava-a de toda consideração devida ao seu nome e ao seu talento. Se tudo isso era apparente, isto é, se havia circumstancias intimas que a desgostavam, o publico ignova-as, e, portanto, ella ella deveria calal-as, porque o verdadeiro artista só vive para a sua arte.

Mas vão lá dizer estas cousas a uma estrella! Qualquer contrariedade as põe fora de si, o dito malicioso de um colega, ou antes, de uma collega, a falta de um alfinete, um engano da costureira, um prato que lhe não appeteceu ao jantar, – tudo é pretexto para uma estalada, e la se vai quanto Martha fiou!

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Por um capricho, por uma futilidade, perca o emprezario, percam os artistas, desmoralise se o theatro, escabreie se o publico!

Eu teria muita satisfação em saber que Angela Pinto e o seu emprezario se haviam harmonisado. Egual satisfação teria o publico.

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Não assisti hontem, no Apollo,á primeira representação d’Os filhos das hervas, retardado dous dias pela sahida de Angela Pinto, que foi substituida, au pied levé, por Augusta Cordeiro: conto, porem, que o meu collega dos Palcos e salões, com a sua competencia habitual, fale da peça aos leitores d’A Noticia.

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A companhia Lyrica, sem ser de primeirissima ordem continua, a satisfazer cabalmente ao nosso dilettantismo, que pouco a pouco vai reconhecendo que os tempos não estão para descabidas exigencias. Hoje teremos a Bohemia de Puccini, e espera-se que seja uma excellente Bohemia.

***

A do Recreio já deixou de figurar permanentemente no cartaz; deu apenas dez representações consecutivas.

O publico achou talvez, que Barriére e Murger não bastavam: faltou-lhe o Puccini. Até certo ponto não deixou de ter razão, porque o ideal dramatico é hoje outro que não o do La vie de Boheme e quejandas invenções de um romantismo gasto: mas – que diabo! – quando mesmo a nossa platéa houvesse acompanhado as novas correntes do theatro, não devia abandonar assim um drama celebre, bem traduzido, bem posto em scena e bem representado. A empreza do Recreio tinha o direito de contar, pelo menos, com um successo de curiosidade.

– Já que falei do Recreio, quero dar aos leitores a noticia de que já alli se está ensaiando a comedia inedita de Martins Penna. Os meirinhos, cuja primeira representação será dada, a 3 de setembro proximo, em beneficio de D. Julieta Penna, filha unica e ultima vergontea do illustre creador da comedia nacional.

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Nos outros theatros não ha nada novo: no S. Pedro a companhia Tomba vai dando as noites o seu conhecido repertorio, variando quanto possivel os espectaculos, e no Lucinda o Comeu! já não dá que comer a ninguem. Talvez seja esse o motivo que levou os auctores da peça a desistir da récita a que tinham direito, e que se devia realisar hoje.

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– Para depois d’amanhã está annunciada, com os Sinos de Corneville, a do Mattos, que pela primeira vez desempenhará o papel do baillio. Desejo-lhe uma enchente á cunha.

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Les morts von vite. Rezou-se hontem, na egreja da Lampadosa, a missa de setimo dia por alma de Orestes Coliva.

Compareceram ao acto um scenographo e meio, dous emprezarios, dous auctores, um actor e uma actriz. Os nossos theatros não se fizeram representar por mais ninguem...

Entretanto, Coliva tinha tantos amigos!

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A proposito do saudoso scenographo cumpre-me fazer uma rectificação:Disse, no meu folhetim passado, que o mestre deixara um bom discipulo

chamado Mesquita, sobrinho do illustre compositor d’O vagabundo. Não é sobrinho: é neto, e não tem o nome do avô: chama-se Arthur Timotheo da Costa.

Quem me induzio n’aquelle erro foi o proprio Coliva, que não tratava o seu discipulo predilecto senão por Mesquita.

A. A.

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O Theatro, 28/08/1902

Decididamente no theatro não ha situação inverosimil, como prova a publicação, feita por esta folha, do relatorio do Dr. Belisario Tavora, delegado da 8ª circumscrição policial urbana, sobre um casamento phantastico realisado n’esta capital.

Éo caso que Luiz Nogueira da Gama, o qual tambem acode ao nome de Luiz Augusto Pereira Kelly (o que abunda não prejudica), obteve que um dos seus amigos, o soiicitador Augusto Cezar de Andrade Paraizo, se disfarçasse em pretor, para casal-o com certa moça do Retiro-Saudoso. Os amigos são para as occasiões.

“Effectivamente (diz o Dr. Tavora n’um estylo a que não nos habituaram os relatorios policiaes) effectivamente, alli compareceu, convenientemente encasacado, sobraçando papeis, pince-nez armado, o solicitador Paraizo, vindo em um carro, encontrando já preparados noivos, convivas a festa. Acercando-se de uma mesa onde estavam os noivos e outras pessoas, disse que ia celebrar o casamento, lendo o quer que quiz (intrigou me esse quer que quiz; que dirá o Sr. Ruy Barbosa?) e dando a assignar um papel que no caso seria o livro de registro dos casamentos. Depois, despedindo se com as formalidades de estylo, Paraizo, que havia declarado casados os nubentes, e no acto dizendo-se juiz da 10ª pretoria, retirou-se ainda a carro, enquanto noivos, convivas e habitantes da casa entraram a gozar da festa.”

Toda aquella gente era tão ingenua, tão simploria, que Gama,ou Kelly, viveu dez meses casado com a moça do Retiro-Saudoso e teve um filho com ella. Só se descobriu a patifaria, quando o patife, a 17 do mez passado, se casou devéras...com outra mulher!

Os padres vão naturalmente lançar mão d’esse facto para mostrar as vantagens do casamento religioso, que não se presta com tanta facilidade a uma falsificação. Mesmo disfarçado em padre, o solicitador Paraizo não encontraria uma egreja nem mesmo um altar onde pudesse representar a ignobil comedia.

Se n’esta chonica despretenciosa e frivola, destinada exclusivamente a assumptos theatraes, me fosse permettido dar um conselho aos nossos legisladores, suggerir-lhes-hia a idéa de prohibir que os casamentos civis se realisassem fora das respectivas pretorias, excepto, já se sabe, nos casos em que um dos nubentes, por enfermo, não pudesse sahir á rua. D’esse modo se evitariam os casamentos simulados, que, como se vio, são faceis de arranjar.

Mas não foi para isso que eu trouxe a bulha esse escandalo de familia:

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Na burleta Pum! representada no theatro Apollo em 1994. Eduardo Garrido e eu inventamos dous estroinas que se disfarçavam, um em juiz e outro em escrivão, para simular um casamento, isto é, impedir que a namorada de um d’elles se casasse a valer com um homem a quem não amava.

Com o casamento simulado se realisava ás barbas da familia da noiva, e nem o pai, nem a mãe, nem o noivo, nem as testemunhas, nem os convidados de nada suspeitavam, pinuou muita gente que a scena era inverosimil, estravagante, mettida a martelo, e não sei que mais.

Ora ahi estão Kelly, ou Gama, e Paraizo a justificar os auctores do Pum! Convençam-se, meus senhores, de que no theatro não ha situações

inverosimeis, porque na vida real ha gente para tudo. Que cousa mais inverosimil (para apontar um facto de grande actualidade) que o tal pagamento dos 520 contos das pedras? Fizessem d’esse escandalo uma comedia, e os espectadores diriam todos á uma: – Que estravagancia! que falta de obsevação!...

Releva notar que os pais da moça do Pum! tinham sentimentos mais catholicos do que os pais da moça do Retiro Saudoso. O casamento religioso ia effectuar-se; toda a familia já estava em ordem de marcha para a egreja, e os dous estroinas afflictos por não saberem como impedir a cerimonia, quando um medonho bombardeio (a acção da burleta passava-se durante a revolta) debandava o cortejo, que fugia para a Tijuca.

***

Depois de procellosa tempestade, reina a paz do Senhor no theatro Apollo. Como pancadas de mulher e de criança não aviltam nenhum homem de bem, que aviltado seria se lhes désse o troco, e tendo a talentosa e irritadiça Angela Pinto se penitenciado em publico, fazendo a mais extraordinaria amende honorable de que ha noticia em theatro, o honrado empresario Taveira e ella harmonisaram-se, e os espectaculos so Apollo continuam como se nada houvesse. Ainda bem.

Um bom emprezario deve ser como o capitão de navio, que só de salva depois de ver salvo o ultimo marinheiro. Taveira sacrificou-se pela tripolação. Éum bello exemplo aos nossos emprezarios que por via de regra só de si cuidam.

***

Um anonymo, que com certeza não conhece tão bem como eu a vida do theatro, escreveu-me, rebatendo o que disse o meu folhetim passado a respeito das estrellas do palco.

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Creia o meu mysterioso correspondente que as minhas palavras foram a expressão da verdade. O velho Sarcey, que conhecia, como ninguem, o theatro por dentro e por fóra, tinha horror a esses astros; considerava-os um elemento de pertubação e desordem, e, realmente, o que elles dão a ganhar aos emprezarios, não compensa o que lhes fazem perder, mesmo quando não os esbofeteam.

Demais, as estrellas estabelecem nos elencos umas categorias absurdas. Para provar que não é só o talento que as faz, basta dizer isto: a velha Clelia, que, apesar de velha, é, no seu genero, uma artista incomparavel,e em certos papeis insubstituivel,ganha no theatro,quando lhe pagam, pouco mais que uma reles corista.

Angela Pinto não está, certamente, no caso de muitas estrellas cujo unico merecimento é serem ou terem sido bonitas; mas a maior parte d’ellas tem sobre a platéa um ascendente com o qual a arte dramatica não tem nada, absolutamente nada que ver.

Entretanto, estou a perder o meu latim, porque nos theatros do Rio de Janeiro já não ha estrellas, felizmente para os emprezarios... Qual das nossa actrizes é hoje capaz de attrahir, só por si, uma enchente ao theatro em que trabalha? Nenhuma.

Tivemol-as. Algumas conheci que eram mais velhas que eu quando eu tinha vinte e cinco annos e quasi poderiam ser minhas filhas quando cheguei aos quarenta; mas um bello dia se convenceram, ou as convenceu o espelho, de que la jeunessé n’a qu’un temps...

A quantos emprezarios vi desesperados, fóra de si, batando com a cabeça nas paredes, maldizendo o instante em que se metteram n’aquella vida – tudo por causa das estrellas! Um dos phenomenos mais extraordinarios que tenho observado são os cabellos pretos do Jacintho Heller. O que soffreu aquelle homem!...

Uma estrella conheci – e aliás não era de primeira grandeza – que fez á ultima hora transferir o espectaculo com uma enchente á cunha, porque tinha um cachorro enfermo e não podia separar-se d’elle! Um medico muito condescendente jurou á fé do seu gráo que a doente era a estrella!

***

Houve duas tristezas á semana passada: os Filhos das hervas e Lakmé; entretanto, ha muito tempo não tinhamos semana tão alegre. A propria morte, que nem sempre é sinistra, trouxe-lhe uma nota comica. Os funeraes dos diplomatas chilenos, pranteados pelo mesmissismo pessoal dos piqueniques da vespera, fez sorrir os philosophos e os contemplativos.

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Mas ora adeus! – a recepção feita aos nossos vizinhos transadinos foi a imagem perfeita da vida humana, em que os risos andam sempre misturados com as lagrimas. Champagne e agua-benta.

A. A.

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O Theatro, 04/09/1902

A menos que não se restabeleça o estimado actor Grijó, que hontem se achava enfermo, realisa-se amanhã, no Recreio Dramatico, a primeira representação da comedia em 1 acto, inedita, de Luiz Carlos Martins Penna, intitulada Os meirinhos.

Essa comedia foi representada em 1846 no theatro S. Pedro de Alcantara; não é de presumir que ainda viva algum dos espectadores que a applaudiram ha cincoenta e seis annos, e, se vive ainda, já não vai ao theatro, porque no Rio de Janeiro os septuagenários por via de regra não saem de casa á noite. É, pois uma novidade, uma grande novidade a representação dessa comedia, que vae ficar, como Quem casa quer casa e Os irmãos das almas, no repertorio da companhia Dias Braga.

Como todas quantas escreveu Martins Penna, Os meirinhos é uma peça de costumes. A acção passa-se n’esta cidade, em 1845 (o actor precisa a época), n’uma loja de botequim e bilhares, como ainda hoje as ha por ahi.

Essa loja é, ao que parece, o ponto de reunião dos meirinhos, – meirinhos como os havia n’aquelle tempo e cujo typo se modificou profundamente de alguns annos pra cá. Póde-se dizer que o cigano desappareceu, e com elle o meirinho de outr’ora, repugnante e rebarbativo. A propria palavra meirinho já é pouco usada: hoje diz-se: official de justiça, e o official de justiça é um homem decentemente vestido, bem falante, apresentavel, que se confunde com outro qualquer cidadão.

Os meirinhos de Martins Penna são os genuinos do seu tempo, desenhados com uma firmeza de traço e uma nitidez de contorno admiraveis. O comediographo, escrevendo esta satyra dos nossos costumes forenses, que felizmente hoje são outros, embora não chegassemos ainda ao ideal,espremeu toda a essencia comica d’aquelles singulares agentes da justiça publica.

Logo ao começar a peça. O espectador ouvirá um dialogo que lhe dará toda a psychologia d’elles:

“– Hontem pela manhã, diz um, tivemos ordem de dar em uma casa onde havia meias caras...(*). A diligencia havia de ser feita á noite, mas eu, que já sei por experiencia do mundo como se vive, fui mais que depressa contar tudo ao dono dos meias caras... e quando lá chegamos á noite, os meiros estavam fóra do ninho!

– E isso rendeu-te...? pergunta outro.– Cincoenta mil réis!– Bravo!

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– Regra geral: toda a vez que uma maroteira render mais do que o cumprimento do dever, haverá no mundo maior numero de velhacos do que de homens de bem.”

A esta sentença, que não perdeu em cincoenta e seis annos aquillo que o Sr. Cezar Zama chamava o sal da opportunidade, observa outro:

“– É verdade. Tu ganhaste cincoenta mil réis por fazer uma maroteira, e eu uma sova de páo por cumprir hontem o meu dever.

– Como foi isso?– Um sujeito lá de Inhauma devia certa quantia a outro cá da cidade, e

não queria pagar. O credor a custa de muito empenho obteve um mandato de penhora e me escolheu para executal-a. Aluguei um cavalo no largo da Sé (que bacamarte! levei dois formidabillissimos tombos no caminho... e que caminhos!... tambem a Camara Municipal não vê isso!...) e, chegando á casa do executado, apresentei-lhe o mandado. O patife, em vez de se prestar de boa vontade ao andamento da justiça, puxou por um páo, e agora verás! Vocês riem-se? Cá tenho o lombo em pandarecos...e, se não deito a correr como um veado, la me ficava o canostro!”

Mas esse traço de costumes não é nada comparado com o que se passa n’aquelle botequim, provavelmente situado nas immediações da antiga rua dos Ciganos, que era então o campo de operações de tal gentinha.

Não venho contar aos leitores do meu folhetim a comedia inteira, em primeiro logar porque, se o fizesse, os privaria do prazer da surpresa, e em segundo logar porque o entrecho, como em todo o theatro de Martins Penna,que era menos inventivo que observador, é um simples pretexto para reproduzir ao vivo algumas scenas apanhadas em flagrante. Ha mesmo, em certas partes dialogo, alguma declaração que destòa do tom geral da peça, defeito que aliás se nota n’outras comedias do illustre escriptor fluminense, e que devemos attribuir á sua época.

N’aquelle tempo a preoccupação dominante no theatro era a correcção dos costumes por meio de palavrões sentimentaes, como se não bastasse, para a satisfação de tão generoso intuito, a simples e singela exhibição scenica do erro ou do ridiculo.

Sente-se que Martins Penna torce um tanto a natureza do seu talento para pregar moral. Desde que deixa de rir e pede á platéa que não ria, já não é o mesmo.

Sem aquella preoccupação, é de uma espontaneidade moliéresca. Entre os seus meirinhos, ha um, o Piaba, personagem principal da peça, em que o auctor reunio com mão de mestre todos os effeitos que o cigano depararia ao mais profundo analysta.

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Piaba não é um meirinho, é o meirinho de 1840. O espectador apreciará o typo por todas as suas faces. Sem o fazer sahir do botequim, o comediographo teve a grande habilidade de apresental-o consecutiva e simultaneamente nas suas funcções de homem vicioso, chefe de familia e serventuario publico. Accresce que o personagem é de um comico formidavel e turbulento, perfeitamente mantido na linha que separa a farça da comedia, e sem sahir d’esta para pisar n’aquella.

Mas o grande encanto que tem, para mim, esta comedia, escripta sem o menor cuidado de fórma, para o beneficio de um artista, isto é, para viver uma noite, para o triumpho alheio, o seu maior encanto, dizia eu, é ser, como o noviço e tantas outras do nosso Penna, exclusivamente nacional. Alli não transparece a mais leve influencia do theatro estrangeiro antigo nem moderno; Piaba, admoestado por sua mulher por ter bebido de mais, não se parece nada com Sganarello admoestado por Martinha, e, todavia, n’aquella situação era natural uma reminiscencia de Moliére, que Martins Penna estudadva devéras, como terei um dia occasião de provar.

Mais não digo, e conto que os espectadores confirmem o meu juiso, se a comedia for bem representada, e é natural que o seja, confiada, como se acha, a artistas que sabem o que fazem.

O espectaculo, já o tenho dito, e repito, é dado em beneficio de D. Julietta Penna, filha do grande comediographo brasileiro. O publico raras vezes terá occasião de concorrer para uma obra tão meritoria como seja a de aliviar a pobresa dessa digna e respeitavel senhora, collocada, por uma viuvez recente, na mais afflictiva situação.

***

Além dos Pescadores de perolas, de Bizet, que foram, a julgar pelo que tenho ouvido de pessoas competentes, sitisfactoriamente cantados pela companhia Sanzone, nenhuma novidade houve em nossos theatros desde o meu ultimo folhetim.

A companhia Taveira, que foi dar um gyro alli a S. Paulo, promette-nos uma serie de novidades para quando voltar. Venham ellas!

A. A.

(*) Meias-caras eram os africanos escravisados a despeito da lei, isto é, importados clandestinamente.

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O Theatro, 11/09/1902

Por molestia do estimado actor Grijó, incumbido do papel de Manuel Piaba na comedia Os meirinhos,de Martins Penna, deixou de se realisar segunda-feira, no Recreio Dramatico, o espectaculo annunciado em beneficio de D. Julietta Penna, filha do illustre comediographo brasileiro. Ficou para hoje esse espectaculo, que, espero, attrahirá grande concurrencia.

Demais me tenho occupado d’esse beneficio; entretanto, ha certos assumptos que me não fatigam; pelo contrario: dá-me certo prazer insistir sobre elles. E não me fartarei de chamar a attenção do publico para a exhumação de qualquer trabalho esquecido do creador da comedia nacional.

Demais, D. Jullieta Penna me pedia n’este folhetim agradecesse; em seu nome, a quantos contribuiram para o espectaculo de hoje. Em primeiro logar á empreza de Recreio, que não lucrara absolutamente nada com este beneficio; a Eduardo Victorino e aos artistas da companhia Dias Braga,que tão boa vontade mostraram na organização do programma; ás folhas diarias, que inseriram gratuitamente os annuncios; ao Sr. Raphael Sergio, que tambem gratuitamente forneceu os bilhetes.

A beneficiaria agradecerá pessoalmente ao Sr. Presidente da Republica o havel-a auctorizado a annunciar a sua presença no espectaculo, e ao Sr. General Hermes da Fonseca, digno commandante da brigada policial, ter-lhe cedido uma banda de musica para abrilhantar a festa.

Bem sei que todas essas cousas interessam mediocramente aos meus leitores, mas que querem? – o nome Martins Penna está envolvido n’isso, e eu, mesmo antes de o escolher para meu patrono na Academia Brasileira, jurei aos meus deuses tornal-o bem lembrado todas as vezes que os accasos da vida me deparassem ensejo de fazel-o.

***

Com que então, chegou a Darclée e se estréa amanhã na Traciata, que, se não mente a fama, é uma das operas em que o seu talento mais brilha.

O intrepido Sansone deve estar radiante. Diz-se pela bocca pequena, tão grande como a da noite, que Darclée não vinha, e a Darclée ahi está em carne e osso, a menos que seja uma contrafigura, como certa Loie Fuller que nos impingiram ha annos, n’aquelle mesmo theatro Lyrico.

Mas não ha duvida, é ella, é a Darclée, a celebre Darclée, que faz da voz o que quer, cantando hoje como soprano ligeiro e amanhã como soprano absoluto.

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Sou capaz de apostar que muitos snobs torceram o nariz quando viram annunciada a Traviata: preferiam musica mais moderna, mais sabia, mais complicada. Entretanto, não ha, talvez, em todo o repertorio lyrico, um papel como o de Violeta para dar toda a medida do talento de uma artista quer como cantora quer como actriz. Basta dizer que é Margarida Gauthier por musica.

O publico vio, não ha muito tempo, esse papel declamado pela Réjane; vai vel-o agora cantado pela Darclée, e faça um parallelo entre essas duas celebridades da arte.

Parece que a mão da fatalidade pesou sobre a Casa de Moliére. Surprehendeu-me dolorosamente a noticia, que hontem li n’esta folha, do fallecimento de Wanda de Boneza, uma das mais bellas esperanças da Comedia Française.

Essa artista que, alem de ter um talento excepcional, era excepicionalmente formosa, foi, durante certo periodo, precisamente, já se deixa ver, por causa d’aquelles dous atributos, victima da inveja e das pequeninas intrigas infaliveis em qualquer theatro, mesmo no primeiro theatro do mundo.

Logo que ella sahio do Consevatorio, entrou para o Odeon, e ahi faz a mais brilhante figura. A Comédie reclamou-a por um direito de que usa e abusa, e começou então para a pobresinha o classico martyrologio de que tantas outras se têm queixado, e a que algumas têm até succumbido. Relegavam-na para o panno de fundo, davam-lhe papeis que não estavam com ella, faziam-lhe mil picardias, ajudados, já se sabe, por certos jornaes filiados ao partido d’essa panellinha; entretanto, Wanda de Boneza, que tinha merecimento real e consciencia de quanto valia, procurou e conseguio vencer todos os obstaculos com que pretenderam affligil-a. Ultimamente, na esperança, talvez, de derrubal-a, deram-lhe na Estrangeira, de Dumas Filho, o papel de mistress Clarkson, em que Sarah Bernhadt deixara uma tradiçao gloriosa, e no qual cahiram redoudamente todas as outras actrizes que lhe pegaram. Pois foi um triumpho, e esse triumpho se renovou, ha mezes, com o Marquez da Perola, de Lavedan. Wanda de Boneza vencera, e é em plena victoria fulminada pela morte, e que morte estupida!

Desapparece aos trinta annos, a mesma idade em que morreu a inolvidavel Jeanne Samary, o riso, a graça, o encanto da Casa de Moliére.

Durante muito tempo conservei no meu gabinete, perto da mesa em que trabalho, uma photographia de Wanda de Boneza; fazia-me bem, alegrava-me a alma o olhar para aquelles olhos profundos, enlevar-me na contemplação d’aquelle formoso rosto de uma belleza primitiva, que lembrava um modelo de Alma Tadema.

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Um bello dia esse retrato desapareceu, provavelmente surrupiado por alguem devoto da plastica feminina. Que tristeza lembrar-me de que aquelles olhos se apagaram, e estão sendo comidos pelos vermes!

***

A Caixa Beneficiente Theatral, benemerita associação que tanto prezo, e que, bem comprehendida e bem dirigida, póde prestar os melhores serviços, e os tem prestado, – a Caixa Beneficiente Theatral, ia eu dizendo, perdeu hontem uma bella occasião de não fazer uma assembléa geral.

Uma questiuncula de caracter intimo havida entre um dos directores e o escripturario, questiuncula que deveria ter sido resolvida pela directoria, foi o motivo d’essa reunião turbulenta, cujas consequencias podem ser as mais lamentaveis.

Não havia absolutamente necessidade de assoalhar com tanto escandalo uma questão “lana caprina”, que deveria ficar em familia, como se costuma dizer.

Tanto o director como o escripturario têm serviços máos prestados a Associação; o interesse collectivo era reconcilial-os pois não havia entre elles irremediaveis aggravos. Propuz alguma cousa nesse sentido, mas não me attenderam. Queira Deus que não se arrependam.

A Caixa esta dividida, infelizmente, em duas facções: uma que apoia o escripturario e outra que se poz do lado do thesoureiro, e toda a gente sabe qual é, por via de regra, o resultado d’esses conflictos. Não ha sociedade que lhes resista.

Se ainda é tempo, restabeleçam a harmonia perdida, e para isso não será preciso mais que fazer de parte a parte pequenas concessões, que não ficam mal a nenhum homem de bem. A Caixa foi fundada para curar enfermos e enterrar mortos: é tristemente inopportunno um esforço, um movimento, um gesto que não sejam para ajudal-a a cumprir a sua missão de piedade e de amor.

A. A.

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O Theatro, 19/09/1902

O nosso anno theatral de 1902 será o anno da Réjane e da Darclée.Sexta-feira e sabbado, na Traviata, e ante-hontem, na Tosca,esta

maravilhosa cantora, a primeira que ainda me foi dado ouvir, conquistou fartamente a sympathia e a admiração do publico.

Já na primeira coluna d’O Paiz,ainda sob o encanto indizivel d’aquella voz, ou antes, d’aquellas vozes, porque a Darclée tem todas as vozes, e cada qual mais bella, entornei todo o enthusiasmo que me provocou a incomparavel artista. Não posso dizer mais do que disse n’aquelle artigo.

Os pacientes leitores, que têm tido a heroica bondade de acompanhar a serie, já um tanto longa, d’estes folhetins, repararam talvez, que o theatro lyrico não é a maior das minhas preoccupações. Isso explica-se, quem sabe? por uma especie de ciume de auctor dramatico. No Rio de Janeiro a musica mereceu sempre mais attenção e carinho que o drama e a comedia; houve até um periodo da nossa historia em que o governo se arvorou em emprezario de opera, contractando artistas na Italia, construindo um theatro, legislando sobre intrigas de bastidores, etc. A litteratura dramatica, essa nunca lhe mereceu consideração de especie alguma.

Entretanto, diante de um artista como a Darclée, calam-se todos os meus velhos resentimentos de propagandista despeitado; – e, demais, ella não é simplismente uma cantora: é tambem uma actriz dramatica de primeira ordem.

Comprimento, com toda a sinceridade o amigo Sansone, e agradeço lhe a parte que me cabe na inestimavel delicia que proporcionou aos cariocas, trazendo-lhes a artista lyrica mais completa que cá tem vindo desde que me entendo.

E o nosso publico, diga-se a verdade, tem se mostrado tão gentil com Darclée, que alimentamos a esperança de vel-a de novo no Rio de Janeiro, figurando n’uma temporada inteira.

***

A representação d’Os meirinhos não produzio todo o effeito com que eu contava. O actor Grijó, que se incumbira do principal papel, foi para a scena enfermo, e representou fazendo um esforço generoso para que o espectaculo não fosse mais uma vez transferido.

A indispoisção do artista encarregado do principal papel necessariamente neutralisou os effeitos, o primeiro dos quaes dependia do movimento e animação das scenas. Era visivel a preoccupação que tinham os demais artistas,

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de não agravar o estado de saude em que se achava o collega, a quem um simples encontão poderia ser fatal.

Foi pena, porque, desempenhando em condiçoes normaes o papel de Manoel Piaba, que tem muito por onde se lhe pegue, o sympathico Guijó alcançará sem duvida um triumpho igual ao d’O Primo Alvaro. O personagem é de uma grande intensidade comica.

A comedia não é a melhor, nem mesmo das melhores de Martins Penna; já eu disse que para esse espectaculo escolhi, entre as peças ineditas do mestre, não a mais brilhante, mas a que mais facilidade offerecia para a exhibição scenica; entretanto, ha neste quadro de costumes uma situaçao verdadeiramente original, que produzio muita hilaridade: a mulher de Manoel Piaba, vendo que o marido está bebado, tenta leval-o do botequim para casa; elle mansa-se a acompanhal-a: quer ficar ali, quer beber mais. Que faz ella? Pega na garrafa, mostra-lh’a, – e dirige-se para a porta da rua. Elle ergue-se, cambaleando, e, fascinado, lá vae atrás, não da mulher, mas da garrafa que lhe foge como um fantasma. Essa invenção é digna de Moliére.

Estou satisfeito; graças á empreza Dias Braga, a Eduardo Victorino e aos artistas que tomaram parte no espectaculo, D.Julietta Penna conseguiu fazer um bom beneficio, e a concurrencia era não só numerosa como escolhida.

E a proposito:O meu collega da secção theatral do Correio da Manhã estranhou que a

imprensa não fosse convidada para esse espectaculo. Posso affirmar-lhe que a beneficiada levou, em pessoa, um bilhete a cada um: das redacções das nossas folhas diarias. Infelizmente a entrega desses bilhetes foi feita com muita antecedencia, uns vinte dias antes do espectaculo, de sorte que o convite ficou esquecido.

***

Nada mais de novo em os nossos theatros.Na Lucinda voltou á scena o Ali Babá, e no Recreio está annunciada para

hoje a primeira representação de uma peça sacra, de grande espectaculo, intitulada O martyr do Calvario, original de Eduardo Garrido.

O nome do auctor tem causado estranheza a muita gente. Esperava-se tudo do grande talento de Garrido, menos uma oratoria, em que apparecessem Christo e a Virgem Maria.

Pois que! o hilariante Garrido da Gran-Duqueza, do Joven Telemaco, da Mascotte e da Lagartixa; o Garrido das magicas,o calembour que se fez homem, a pilheria personificada, o neto de Antonio José, que ha quarenta annos faz rir

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duas gerações de portuguezes e brasileiros, – escreveu uma peça sacra original, poz a Paixão do Senhor em scena?!

Estou ancioso por ver e ouvir O Martyr do Golgotha, escripto pelo auctor do Alho e d’O meu amigo Banana.

A peça, dizem-me, está posta em scena com sumptuosidade. Exhibir-se-hão n’ella os ultimos scenarios pintados pelo saudoso Orestes Coliva.

***

A Noticia entrou no seu nono anno de existencia, e eu, dos seus collaboradores o primeiro pela data e o ultimo pelo merecimento, saudo-a pela vez oitava, fazendo votos para renovar, durante muitos annos e bons, a minha saudação.

Aqui fica um abraço para Rochinha, que com tanto talento e criterio tem dirigido esta empreza, e outro para o Salvador Santos, em quem a Noticia encontrou um administrador ideal.

A. A.

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O Theatro, 25/09/1902

O meu esclarecido collega, que faz critica theatral d’A Noticia, já escreveu tanto e tão bem a respeito d’O Martyr do Calvario, que nada mais devo fazer senão louvar-me no seu auctorisado juizo.

A empreza Dias Braga jogou uma cartada perigosa: era de recear que o publico, pouco habituado a ver no palco o Novo Testamento, levasse a mal uma tentativa innocente e quasi piedosa; mas os artistas do Recreio houveram-se tão discretamente, estudaram com tanta intelligencia os meios de evitar qualquer escandalo, que é de esperar para este drama christão uma carreira pelo menos tão fructuosa como a do Quo vadis? onde aliás as figuras de S. Pedro e S. Paulo já eram sympathicamente recebidas pela platéa.

A traducção de Eduardo Garrido (pois que é uma traducção e não um original, como eu suppunha) surprehendeu a muita gente pela belleza lyrica dos versós; a mim não me surprehendeu, porque tenho aquelle talento em grande conta, o ha muito tempo lhe conheço o estro que transparece brilhantemente nos proprios coupleis de opereta.

Garrido, sendo, aliás, um escriptor laborioso, tem poucos trabalhos de invenção propria; entretanto, as suas traducções por via de regra são superiores ás peças originais, quer pelo espirito do dialogo, quer pela perfeição do verso. Comparem o Joven Telemaco de Garrido com o de Blasco, e digam-me qual d’elles parece o original.

Sou capaz de apostar que a peça (não a conheço: deve ser hespanhola, a julgar por alguns redondilhas com rimas toantes) traduzida por Garrido com o titulo O martyr do Calvario não tem tão bonitos versos como o original.

Infelizmente o poeta em certas passagens abusou um pouco da sua vis comica. Um drama d’aquelle genero não se presta absolutamente a trocadilhos. O sinistro papel do Judas não deveria ter nada de comico.

Um dos principaes attractivos da peça, que está muito bem posta, são os scenarios de Orestes Coliva, derradeiros trabalhos do insigne e honrado artista que tanto amava a nossa terra, sob a qual dorme o ultimo somno. Causou-me certa melancolia a vista d’esses scenarios, que elle pintou com tanto enthusiasmo e tanto sentimento da sua arte. Mal sabia o pobre artista que nunca mais utilisaria os seus pinceis. Ainda bem que a sua ultima obra não foi uma apotheose de magia ou de revista.

***

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Um anonymo,talvez o mesmo de quem me occupei n’um dos meus folhetins passados, escreve-me estranhando que eu considerasse a Darclée, como actriz, superior a Sarah Bernhardt.

Perdão, não escrevi esse disparate; li-o algures, transcripto, creio, de um jornal de Madrid. Seria preciso não entender de theatro para dizer semelhante cousa. Sarah Bernhardt é, talvez, o phenomeno mais curioso na historia do theatro de todas as épocas e de todos os povos.

Não comparei a Darclée nem a Sarah Bernhadt, nem a nenhuma outra actriz dramatica. O que disse, e redigo, é que, em theatro lyrico, nunca tivemos no Rio de Janeiro, de trinta annos para cá, uma artista tão completa, quer como cantora, quer como actriz.

Essa é a opinião de quantos a ouviram e admiraram nas tres operas que ella tem cantado até hoje, – Traviata, Tosca e Aida.

Esta annunciado para amanhã o beneficio d’ella. Com o ter escolhido para a sua festa o Guarany do nosso Carlos Gomes, revelou a Darclée uma delicadeza de sentimentos a que o nosso publico saberá, de certo, corresponder. Conto que haja no espectaculo de amanhã uma formidavel manifestação de sympathia e enthusiasmo.

***

Promessas de artistas celebres quasi sempre ficam no ora vejam (A Duse e o Novelli que o digam!); mas a Réjane, a imcomparavel Réjane cumprio o que nos prometteu: de volta do Rio da Prata, dar-nos-ha dous espectaculos, e a noticia d’este supplementosinho, com que muita gente não contava, alvoroçou a todos os admiradores da grande actriz.

O primeiro d’esses espectaculos será depois de amanha. Sabbado, no S. Pedro de Alcantara, – com uma peça inteiramente nova para o Rio de Janeiro: La petite marquise, comedia em 3 actos, de Meilhac e Halévy.

Escripta para Celine Chaumont, Dupuis e Baron, representada pela primeira vez em Paris, no Variétés, a 13 de fevereiro de 1874, La petite marquise conserva, apezar dos seus vinte e oito annos, uma encantadora frescura. Seria um primor, se o desenlace, penosamente inventado, estivesse na altura das situações e do dialogo.

Ainda assim, eu consideral-a-hia uma das comedias mais interessantes sos dous famosos auctores,se se pudesse dizer qual seja, de quantas elles escreveram, a menos interessante.

Ainda agora acabo de receber o 7º tomo do Theatro de Meilhac e Halévy.Não ha n’estes sete volumes recentemente publicados, peça que não se leia

e releia com satisfação.

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O papel da petite marquise, uma parisiense que poderia figurar na magnifica serie de desenhos que Gavarni denominou Fourberies de femmes, uma nevrotica que detesta mas não consegue, pelo menos durante os tres actos da peça, enganar o marido, personagem ridiculo, talvez menos de comedia que de vaudeville, offerece vasto campo ao talento de Réjane, e amolda-se admiravelmente aos seus predicados artisticos. Vamos passar uma noite divertidissima.

Entretanto, se um conselho meu pudesse chegar tão alto, eu diria á eminente actriz que de agora em diante abandonasse a sua curiosissima collecção de cocottes, adulteras e semi-virgens. A victoriosa interpretação da Course du flambeau veio mostrar claramente que lhe estão resevados mais gloriosos destinos. A illustre e brilhante pleiade dos novos dramaturgos francezes lhe proporcionará sem duvida, o ensejo de grandes creações modernas, que a elevarão ao apogeu da arte do theatro.

***

Está de novo no Apollo a companhia Taveira,e no Lucinda ensai-se o Fausto, de D’Ennery, com o provecto Medeiros no papel de Mephistofeles.

***

Não terminarei meu folhetim sem consagrar algumas linhas a Gaspar Alves Meira, que a dias falleceu n’esta cidade.

Não era um homem de grande relevancia na sociedade; creio que não occupou nenhum cargo publico, a não ser o de fiscal da freguezia do Sacramento, ainda no tempo do imperio.

Era, porém, um grande amigo do theatro, um dilettante apaixonado, que soffria por ver o descalabro do nosso palco. Foi o derradeiro emprezario da esquecida Phenix Dramatica.

Gostava tambem muito de theatrinhos de amadores. Não representava, mas ensaiava, aconselhava, tranmittindo aos moços as lições da sua velha experiencia.

Sempre que o pobre Meira se encontrava commigo, perguntava-me pelo Theatro Municipal.

Se vivesse mais algum tempo, teria, talvez, a satisfação de ver, pelo menos, meio caminho andado para a solução que ambos desejavamos...

A. A.

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O Theatro, 02/10/1902

Já não é prefeito do Districto Federal o Dr. Joaquim Xavier da Silveira Junior.

Eu diria que essa demissão tinha sido uma desgraça para o theatro Municipal (Ainda, Sr. A.A.? Ainda e sempre!), se não tivesse toda a esperança de que o prefeito interino, coronel Leite Ribeiro, completará dignamente o que o illustre demissionario fez... pela calada.

O que isso foi não o direi publicamente, porque prometti a maior reserva de minha parte, e estou escravisado a tal promessa. Continuo a esperar, entretanto, com a velha confiança que não me abandonou ainda, nem me abandonará no tocante ao theatro Municipal.

***

A imcomparavel Réjane, que hontem deixou a America, e lá vai, mar em fóra, buscando a patria saudosa, deu-nos mais tres deliciosos espectaculos, com Ma cousine, La passarele e La petite marquise.

O nosso publico ainda não a tinha admirado n’esta ultima comedia, um pouco desfigurada pela transformação do sexo de um chevalier que nos appareceu chanomnesse. No papel da petite marquise a Réjane é adoravel como em todos os seus papeis, dando um colorido extraordinario ao dialogo e fazendo ressaltar todas as subtilezas do espirito de Meilhac e Halévy.

Se não conhecessemos Duboscq, o magnifico Duboscq da Course du flambeau, da Robe rouge e da Passarelle, se apenas o vissemos e ouvissemos no papel do visconde de Boisgommé da Petite marquise, fariamos bem triste idéa do seu talento. Raramente temos visto um bom papel tão mal interpretado por um bom actor.

O discreto Paulet figurou dignamente em todos esses tres espectaculos supplementáres; mas tanto Daynes-Grassot como Georges Graud, apparecendo apenas em dous papelinhos insignificantes, não nos deixaram matar saudades suas.

A Réjane recebeu á despedida uma ovação enthusiastica, e deve ir bem satisfeita com todas as manifestações que lhe fez o publico, especialmente a mocidade das nossas escolas, que a obsequiou com muito carinho. É de esperar que um dia ella atravesse de novo o Attlantico, para nos dar ainda uma vez a satisfação de admiral-a e applaudil-a. Deus a traga!

***

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Quando ouvira, na minha infancia, a historia de João mais Maria, contada pela minha “mãe preta”, não imaginava naturalmente, que, quasi meio seculo mais tarde, poderia ouvil-a por musica, n’um libretto de opera.

Lamentei que o máo tempo não me deixasse ir ouvir hontem, no Lyrico, essa lenda infantil, esse Hensel e Gretel, que foi pára Hauperdinck o mesmo que Cavalleria rusticana para Mascagni, tornando-o celebre da noite para o dia.

Em toda a parte essa producção tem causado grande sucesso, e quero crer que o mesmo acontecesse hontem no Lyrico. Mas não será isso tambem devido á popularidade universal da lenda de João mais Maria? Poucas pessoas haverá no mundo inteiro que não a ouvissem, mutatis mutandis, nos saudosos tempos da infancia, que ninguem esquece, e cuja rememoração é a maior delicia da alma.

Comprehendo que se tire um libretto de opera d’essa lenda, assim como não comprehendo que se ponha em musica a Tosca, e outros dramas ou romances a que faltam, visivelmente, as situações musicaes. Entretanto depois que transformaram em opera a Mulher de Claudio, não perdi a esperança de ver musicado o Codigo Civil.

***

O beneficio da Darclée, com o Guarany, foi tambem uma ovação.A respeito d’esta grande artista, cujo talento é muito discutido, não na

imprensa, mas nos corredores do Lyrico e n’aquelle outro grande corredor que é a rua Moreira Cesar, conversarei com os meus leitores quinta-feira proxima, a proposito de uma carta que me dirigio um dilettante exigente, o Sr. João Pinto Menezes, que não tenho a honra de conhecer. Hoje ha outros assumptos reclamando o pequeno espaço de que disponho.

***

No Apollo tivemos peça nova, representada pela companhia Taveira, O Major do 36, tres actos pandegos e frescos, de Antonin Mars e Kerul, traduzidos pelo infatigavel Garrido com aquella graça toda sua, em que ninguem o excede.

A peça, que no original se intitula Le billet de logement, pertence á categoria d’esses vaudevilles militares que desde Les 28 jours de Clairette e Champignol malgré lui se têm succedido em Paris com uma insistencia talvez um pouco excessiva.

O publico do Appolo ri a valer, e a companhia Taveira, em cujo elenco figura agora o nosso Mattos, dá, não ha duvida, á representação o tom exigido n’este genero de theatho. Mas a nossa platéa começa a desinteressar-se, e com rasão, d’essas produções em que o especialismo dos costumes francezes não póde ser comprehendido nem interpretado por estrangeiros.

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Não andou bem o discreto e avisado Taveira em não trazer-nos outra producção portugueza além da Rosa Enjeitada. Dizem-me que a companhia está ensaiando os Velhos. Ahi está uma noticia que me alegrou. A obra prima de D. João da Camara, no repertorio de uma companhia portugueza, vale mais que todos os vaudevilles parisienses. Esta é a verdade.

***

O martyr do Calvario continua, apezar do máo tempo, a levar grande concurrencia ao Recreio Dramatico. A empreza Dias Braga verá, espero, largamente compensados os sacrificios que fez para pôr em scena este mysterio com a sumptuosa propriedade que o assumpto exigia.

***

Comquanto não fosse o theatro a especialidade do talento de Emilio Zola, o grande morto de hontem, não é tão pequena, como talvez supponha muita gente, a lista das suas peças,representadas em Paris.

A primeira foi um drama Les mysteres de Marseille, exhibido no theatro Beaumarchais, em 1867; seguiram-se-lhe: Thérese Raquim, drama em 4 actos (Renaissance, 1873); Les héritiers Rabourdin, comedia em 4 actos (Cluny, 1874); Le bouton de rose, vaudeville em 3 actos (Palais Royal, 1878); Nana, drama em 5 actos, de collaboração com William Busnach (Ambigu, 1881; Pot Bouille, drama em 5 actos, de collaboração com o mesmo (Ambiyu, 1873); Renée, drama em 5 actos, extrahido de La curée (Vaudeville, 1887); Germinal, drama em 5 actos, tambem com Busnach (Chatelet, 1888); Madeleine Férat, drama em 3 actos (Theatro Livre, 1889).

Em Bruxelas fez representar, no theatro Moliére, em 1888, Tout pour l’honneur,comedia em 1 acto de collaboração com Henri Ceard.

Accrescente-se a esta lista os seus librettos de opera: Messador, e L’ouragan, postos ambos em musica por Alfred Brumean, que foi tambem o compositor de Le rêve, opera extrahida por Louis Gallet de L’attaque du moulin.

Dos romances de Zola foram tirados por outros auctores, os seguintes dramas: L’assommour, por Busnach e Gastineau (Ambigo, 1879); Le ventre de Paris, por Busnach (Théatre de Paris, 1887) Au Bosheur des Dames, drama em 6 quadros (Gymmasio, 1886), e La terre, drama em 6 quadros (Théatre Antoine, 1902), por Charles Hugot e Raoul de Saint Arroman.

De algumas novellas do illustre romancista foram tambem extrahidas pequenas peças: lembro-me de Jacque d’Amour, representada no Théatre-Livre.

Das peças mencionadas nesta noticia, o publico fluminense conhece apenas tres: Therése Raquim, L’assommour e Nana.

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A primeira foi um dos maiores successos de Lucinda Simões, tendo sido tambem representada, no Gymnasio, pela companhia da insigne actriz italiana Jacintha Pezzana, que era extraordinaria no papel de Mme. Raquin.

O Assommoir foi exhibido com o titulo A taverna, primeiramente no Recreio Dramatico, por uma companhia da qual era empresario Guilherme da Silveira, e posteriormente por uma companhia portugueza. Eugenio de Magalhães foi muito applaudido no papel de Copeau.

Nana foi tambem posta em scena por Guilherme da Silveira e n’aquelle mesmo theatro. Desempenhou o papel da protagonista a actriz Ismenia dos Santos.

Não ha grande romancista que seja grande dramaturgo; Zola não fugiu a essa regra; entretanto, no theatro que elle deixou ha extraordinarios lampejos do seu genio creador e fecundo.

A. A.

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O Theatro, 09/10/1902

Partio para S. Paulo a companhia Sanzone, e com ella a Darclée. Para fechar com chave de ouro a série das suas representações no Rio de Janeiro, a festejada artista mostrou ao nosso publico a mais perfeita, ou, se quizerem, a menos imperfeita interpretação que se póde dar ao papel de Mimi, na Bohemia, de Puccini.

No meu ultimo folhetim prometti converar hoje, com os leitores, sobre a Darclée, a proposito de uma carta que me dirigio o Sr. João Pinto de Menezes.

N’essa carta, e ainda n’outra que o mesmo cavalheiro me enviou depois da publicação d’aquelle escripto, são feitas as mais tremendas accusações á grande artista.

Vão vendo: Ella não smorza, não fila não tem mezza voce; na sua voz não ha frescura nem maleabilidade, o que a faz gritar em vez de cantar; a aria do 1º acto da Traviata, cantada por ella, é um verdadeiro pasticio; no 1º acto da Tosca ella engulio uma phrase por querer dizel-a piano; na Aida houve trechos em que foi obrigada a cortar phrases para poder respirar, etc.

Não venho defender a Darclée contra este espectador descontente; não sou critico musical, não tenho competencia technica, não me metto em camisas de onze varas.

Dê todas as acusações que elle formulou nas suas cartas apenas levantarei a seguinte, que transcrevo integralmente: “Nos dous actos seguintes (da Traviata) ella (a Darclée) não teve uma phrase que exprimisse com propriedade os sentimentos que a partitura tão bem traduz.”

Alto ahi! Póde ser que a Darclée não saiba filar, engula phrases e commetta outros imperdoaveis peccados, que deixo a apreciação dos entendidos; mais quanto á expressão, ao sentimento, ha de permittir o Sr. Menezes que eu repita o que já disse: é a primeira cantora que ainda ouvi, quer na minha terra, quer na Europa.

Ella fez com que eu recebesse em theatro lyrico, pela primeira vez na minha existencia, a impressão da verdade, a impressão da vida. Antes d’ella, um drama cantando, cujo libretto não explorasse o maravilhoso, como os de Wagner sempre me pareceu o mais absurdo dos generos theatraes, superior apenas á pantomina. Depois de vel-a e ouvil-a, acredito que a opera possa dar a visão authentica e a expressão real dos sentimentos e das paixões humanas.

Accresce que, hospede em arte musical, não descobri absolutamente defeitos no canto da Darclée, o que não quer dizer que ella os não tenha. Em todo o caso, da minha opinião foram os nossos dilettantes, que, pagando principescamente, a obrigaram a dar o dobro das representações que

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contractara com a empreza Sanzone; da minha opinião é Puccini que escreveu a Tosca expressamente para ella; da minha opinião são as grandes platéas européas que a têm ouvido e consagrado, comquanto ella não saiba smorzar.

O Sr, Menezes termina a sua primeira carta em latim, citando o velho proverbio: Amicos Plato, sed magis amica reritas. Ignoro quem ja n’este caso o Platão, mas creio que foi sempre aquella a minha divisa; desprezei sempre as dos discipulos de Pithagoras: Magister dixit. Quem quer que leia os meus folhetins encontrará n’elles uma impressão pessoal, independente de qualquer influencia ou suggestão alheia.

***

A proposito no meu ultimo folhetim, publicou esta folha uma carta, muito amavel, que lhe dirigiu Um velho artista dramatico, “para rectificar um equivoco e fazer uma reparação”.

O equivoco foi affirmar o folhetim que o Assommoir tinha sido posto em scena pelo empresario Guilherme da Silveira, no Recreio, e não pela empresaria Ismenia dos Santos, no S. Luiz. O Velho artista poderia accrescentar que ainda me equivoquei dizendo que a peça fóra então representada com o titulo A Taverna, quando figurou nos cartazes do verna, quando figurou nos cartazes do S. Luiz com o titulo original, considerado intraduzivel, tal qual o do Demimonde. Com aquelle titulo, A Taverna o Assommoir só foi exhibido tempos depois, nésta capital, pela companhia do theatro do Principe Real, de Lisboa.

Agora a reparação:Trata-se do drama Thereza Raquin. Transcrevo textualmente as palavras do

Velho artista: “É verdade que Lucinda Furtado Coelho deu uma interpretação magistral ao papel da protagonista; mas não menos verdade é que n’essa peça quem foi verdadeiramente assombrosa foi a velha actriz Clelia na parte de Mme. Raquim,paralytica e muda, e que fazia correr um frio pela espinha dos espectadores na terrivel scena em que a velha consegue por um soberano esforço atirar a um dos culpados a faca com que deve matar o seu cumplice no assassinato do filho d’ella Raquim”. E mais abaixo: “A Pezzana póde ter feito um successo em tal papel, em uma companhia italiana que cá estivesse; mas seguramente não excedeu á Clelia. Talvez não a igualasse mesmo”.

Ora, os leitores habituais d’estes folhetins e de outros escriptos meus com relação aos nossos theatros, não ignoram que a Clelia nunca teve, na imprensa fluminense admirador mais enthusiasta, mais vehemente, nem mais sincero que eu. Tenho-a louvado em todos os tons, insistindo a ponto de incorrer, que o sei, na censura de uns tantos inconscientes, que só elogiam os artistas depois que estes morrem e são consagrados pela rhetorica dos necrologios.

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Mas a minha grande admiração pela Clelia não vai muito além, confesso, dos seus papeis nacionaes, em que é absolutamente incomparavel. Quem a vio nesses papeis, não se lembra d’ella em mais nada. O mesmo dava-se com Xisto Bahia. Vi-a na Thereza Raquim, de Zola; preferio-a no Direito por linhas tortas, de França Junior, – ora ahi está! Isto não quer dizer que ella não fosse, não assombrosa (o Velho artista exaggera), mas admiravel no papel de Madame Raquin.

Assombrosa era a Pezzana, e estranho que o Velho artista, sendo artista e sendo velho, dè a entender que não a conhece, que não a vio nos ultimos tempos do saudoso Gymnasio, onde ella deu alguns espectaculos, infelizmente com o theatro quasi vasio.

Nessa occasião a Pezzana representou o papel de Hamlet, o fez uma conferencia, muito interessante, para provar que aquelle personagem seria representado com mais propriedade por uma actriz, que por um actor. Como se sabe, Sarah Berhardt renovou, não ha muito tempo, essa tentativa, e com exito.

Não tenho espaço n’estas colunnas para descrever o trabalho de Jacintha Pezzana na Thereza Raquin: era simplismente sublime.

É preciso notar que ella havia representado a peça na Italia com tal successo que Emilio Zola lhe escreveu de França uma carta de agradecimento e louvor. Dil-o Eduardo Boutet, um dos primeiros criticos italianos, no seu bello periodico Le cronache theatrale. Leia o Velho artista: “Léco di quel sucesso d’interpetrazione giunse a Emilio Zola, lá, a Médan, a Emilio Zola che scrisse una lettera di congratulazioni e di ringraziamenti. Ma piu che la lettera, forma ufficiale e consuetudinaria del genere, sarebe stato desiderabile che Emilio Zola avesse ammirato, giú della platea, quella grande interprete della sua signora Raquin. Egli avrebbe scritto cosi come scrisse di Tommasso saloni quando lo vide Corrado della Morte civile.”

Jacintha Pezzana, que ainda vive, embora já não represente, é considerada uma das actrizes mais illustres de Italia. Entretanto, era tão modesta, fazia-se annunciar com tão pouco ruido, que passou despercebida n’esta capital, aliás prompta, sempre, a render homenagem aos grandes talentos... do estrangeiro.

Agradeço ao Velho artista dramatico a sua amavel communicação.

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No Lucinda voltou a scena o Fausto, de D’Ennery, annunciado como trabalho do traductor Aguiar sempre a exhibição d’esse sacrilegio em 5 actos, embora a peça já reclama um Mephistofeles que á remoçe como ao seu protagonista. Os artistas deram boa conta do recado. O scenario do primeiro quadro, o laboratorio do Dr. Fausto, é o primeiro assignado por Timotheo da

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Costa, o discipulo predilecto de Orestes Coliva. Dir-se-hia, com sua perspectiva e os seus effeitos de luz, pintado pelo mestre. É o maior elogio que lhe posso fazer, Magnifica estréa do scenographo.

***

A companhia Taveira, que tem de ceder o Apollo a uma companhia lyrica italiana, da qual são empresarios os Srs. Rotoli e Milone, esta dando os ultimos espectaculos.

O de amanhã será em beneficio do empresario, o sympathico e distincto Afonso Taveira, que teve o bom gosto de escolher para a sua festa duas joias da litteratura portugueza, – os Velhos, de D. João da Camara, e a Ceia dos cardeaes de Julio Dantas.

***

Falleceu n’esta capital a actriz Luiza Ponci, que pertenceu á categoria dos artistas designados, em os nossos theatros, por este euphemismo: utilidades. Era muito boa rapariga, alegre, affectuosa, sympathica, e, no theatro, não era tão inutil como as utilidades o são por via de regra.

A. A.

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O Theatro, 16/10/1902

Escrevo este folhetim de volta do Cassino, onde fui ouvir o concerto de Arthur Napoleão. Ainda tenho os ouvidos maravilhados; foi uma festa de arte a que não faltou nenhum requesito.

Arthur ainda é o grande pianista que sempre foi: a mesma execução, o mesmo brio, a mesma agilidade, e, o que é mais extraordinario, o mesmo sentimento, ou mais, talvez, porque o artista quanto mais vive mais soffre, e quanto mais soffre mais adivinha.

Elle executou, com a orchestra, o Concerto em ré menor, de Mozart, e o Concerto em ré menor, de Rubinstin; com Alfredo Bevilacqua a famosa Tarantela, composiçao sua, do anno passado, e, sósinho, o Nocturno em dó menor, de Chopin, o Canto de Mignon, de Listz, estranha e difficillima composição em que o grande compositor transcreveu ao piano, palavra por palavra, a poesia de Goethe, e, finalmente, a 13ª Rhapsodia, tambem de Listz. É impossivel dizer em qual d’essas peças Arthur Napoleão foi mais brilhante, foi mais Arthur Napoleão. De certo não apontarei a mais applaudida: seria apontar a mais estrepitosa.

A Exma. Sra D. Elvira Gudin fez-nos ouvir a sua bellissima voz, cantando Hendel, Wagner, Saint-Saens e Massenet; mas os trechos que ella cantou não foram escolhidos com uma felicidade inaudita.

A orchestra, composta de setenta-bons professores, e regida por Alberto Nepomuceno, executou muito bem, além das peças em que acompanhou o piano de Arthur Napoleão, as aberturas d’Il matrimonio secreto, de Cimarosa, e de Fidelio, de Beethoven, a Gavotte e a Gigne, de Leopoldo Miguez, e por fim, Brasiliana, peça commemorativa do 4º centenario, composta por Arthur Napoleão. Esta ultima foi regida pelo proprio auctor.

Esta composição, se tivesse sido executada por aquella mesma orchestra e diversas bandas marciaes, por occasião das festas do centenario, teria causado um effeito estrondoso. No Cassino me pareceu deslocada, e não ganhou com a terrivel visinhança de Fidelio... Demais, faltava alli o elemento popular para ppplaudil-a freneticamente.

Imaginem que n’essa marcha, sim, porque é uma grande marcha,com grandes complicações de orchestra, em que figuram, desfazendo-se uns nos outros, com muita habilidade, o hymno portuguez, o da independencia, e o nacional. É o rendez-vous dos hymnos.

O Cassino estava atulhado pela fina flôr da nossa sociedade. Arthur Napoleão foi applaudido como devia ser: com enthusiasmo e respeito. Creio

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bem, que, apesar de tão habituado ás ovações, o grande artista guardará d’esta noite de trinpho uma recordação indelevel.

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Não me foi possivel assistir á representação d’Os velhos nem á d`A ceia dos cardeaes. Para ir ao concerto Arthur Napoleão tive que desobedecer ao meu medico. Mas quem podia lá resistir a um espectaculo d’esses?

Entretanto, senti profundamente não poder matar saudades da peça de D.João da Camara, uma das obras primas do theatro portuguez de todos os tempos. Quanto á Ceia, não perdi nada, cuido porque, a julgam pelas noticias, a representação não foi lá grande cousa.

Julio Dantas, cuja estréa de dramaturgo foi uma das mais brilhantes de que ha noticia em Lisboa, só é conhecido pelo publico do Rio de Janeiro atravez do drama Terra de Vera Cruz, que nasceu torta, como em geral as obras de encommenda.

Poucas vezes se terá visto nas mesmas paginas tanta extravagancia alliada a tanto talento. Admira até que a peça, tendo aquelle feito, não apanhasse para ahi umas trinta “casas”, porque – a verdade deve dize-se – o nosso publico – louvado seja Deus! – dá o cavaquinho pela teratologia historica no palco, e o Pedr’Alvares, de Julio Dantas, não é menos acceitavel que um celeberrimo D. Sebastião, nunca assaz applaudido no Recreio.

Mas... a representação d’A ceia dos cardeaes teria sido tão má como se diz? A peça (?) foi victima, talvez, dos exagerados louvores que a precederam, e cujos effeitos não podiam deixar de ser negativos.

Tinham-nos dito que se tratava de uma obra prima, tão original, tão bella, que Bicernson, o celebre dramaturgo norueguez, pretendia traduzil-a para a sua lingua!

Ora, a Ceia dos cardeaes, que não chega a ser uma peça de theatro, mas é um simples dialogo, tem, realmente, meia duzia de alexandrinos felizes, em que se sente a influencia de Edmond Rostand; entretanto, nao passa de uma fantasia de poeta, de um capricho de dramaturgo, nem creio que Julio Dantas tivesse a pretenção de impol-a como um primor.

Interpretada em Lisboa por tres artistas de primeira ordem, A ceia dos cardeaes produzio alli um effeito deslumbrante. Como no Apollo faltasse o deslumbramento, a obra foi reduzida ás suas justas proporções. Esta é a verdade.

Antes de serem declamados no Rio de Janeiro, já os versos de Julio Dantas tinham dado logar a tres parodias, uma representada, e todas tres impressas: a

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Ceia dos sacristães, a Ceia dos coiós e a Ceia das cortezans. Isto prova a nomeada que a precedeu.

Creio, entretanto, que d’esta vez o nosso publico terá occasião de travar relações definitivas com o poeta d’A que morreu de amor: está annunciada para hoje, no Apollo, a primeira representação da sua peça em 4 actos, A Severa, que foi muito applaudida em Lisboa, e o será, espero, no Rio de Janeiro. O espectaculo é em beneficio de Angela Pinto, que fará o papel da protagonista.

A Severa existio: é um typo dos mais populares de Portugal, e deve a sua popularidade, creio, aos versos de um fado em que figura como a amante querida do conde de Vimioso. O leitor talvez tenha ouvido, cantadas á viola, essas famosas decimas que principiam assim:

O conde de Vimioso.

Dos que a Severa morreu.

Ahi esta um papel nacional, que póde ter sido talhado com muita habilidade para o talento de Angela Pinto.

***

Nos demais theatro nada de novo.A empreza do Recreio, para agradecer ao publico o successo do Martyr

do Calvario, offerece-lhe hoje uma grande festa com a 29ª representação da applaudida peça.

É caso para uma recita d’aquellas que não excedem de certa conta só porque a policia manda suspender a venda dos bilhetes.

***

José Piza obsequiou-me com um exemplar da sua comedia em 1 acto, Má peça, editada em S.Paulo pelos Srs. Andrade & Mello. É o n.3 da collecção intitulada Theatro paulistano, titulo que me parece de um exclusivismo sem razão de ser. Porque paulistano e não brasileiro?

Esta Má peça não é uma peça má: tem graça, como todas que escreve José Piza; mas não augmenta a sua reputação de comediographo. Elle deve dedica-se de preferencia ao estudo dos costumes e dos caracteres, para o que lhe não faltam aptidões e talento.

– Foi tambem publicada pelo editor Sr. Jacintho Ribeiro dos Santos uma comedia em 1 acto, do Sr. Theophilo Soares Gomes, intitulada Oh! Ferro!... É uma peçasinha ingenua: parece escripta por uma criança maliciosa.

A. A.

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O Theatro, 23/10/1902

A proposito da noticia que escrevi no meu ultimo folhetim, sobre o concerto de Arthur Napoleão, escreveu-me o grande pianista a seguinte carta, que já está guardada entre os meus mais preciosos autographos:

“Meu caro Arthur Azevedo. – O meu fim escrevendo-te estas linhas é unicamente pedir-te o favor de fazeres uma reetificação na tua proxima quinta-feira d’A Noticia no mesmo logar onde se deu o engano. E, se te peço isso, é porque, lidos como são os teus deliciosos folhetins O theatro, ficaria substindo no animo dos teus leitores uma idéa erronea a proposito da minha composiçao Brasiliana, executada no Cassino a 15 do corrente.

Essa peça commemorativa do 4º centenario da descoberta do Brasil não tem absolutamente nada do hynno portuguez, que ahi estaria completamente deslocado. Não é, um rendez’vous dos hynnos, como espirituosamente disseste.

A Brasiliana é uma peça original, para orchestra e banda, com o caracter marcial e brilhante, proprios do genero a que pertence.

Apenas apparecem de tempos a tempos, trabalhos de modo diverso, os motivos do hynno da Independencia, de D. Pedro I, e o hynno nacional. Estes dous hynnos, conjugados, como estão, por vezes, até á s’rella final, apparecem enfim como apotheose na glorificação de duas grandes datas: a Descoberta e a Independencia.

Pelos applausos obtidos parece-me ter alcançado o fim almejado, embora, como muito bem dizes, o local não fosse talvez o mais apropriado para o caso.

Aproveito o ensejo para te dizer que me parece tambem ter havido confusão tua na parte referente á visinhança de Fidelio. Fidelio estava collocado no seu logar de abertura, e a Brasiliana fechava o concerto, tendo por visinhança Massenet, Saint-Saens e Miguez, todos tres meus companheiros e amigos, alem de confrades.

Concluo,meu caro Arthur, agradecendo-te de coração as palavras por demais benevolas e lisongeiras que nesse e noutros folhetins me tens dirigido, e desculpa este meu cavaco, quanto á rectificação, cavaco que eu não daria se não fosse o muito valor que dou a tudo quanto escreves. Amigo etc. – Arthur Napoleão.”

Confundi, confesso, o hynno de Pedro I com o hynno portuguez, e o fiz justamente porque não me pareceu, como a Arthur Napoleão, que o hynno portuguez estivesse completamente desolcado naquella peça commemorativa: O descobrimento do Brasil é uma gloria portugueza, o Brasil foi portuguez durante 322 annos, portanto, era muito natural que o hynno portuguez

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figurasse na composição. Pois não figuram tres portuguezes no bello monumento erguido pela Associação do 4º Centenario?

Quanto a visinhança de Fidelio, creio que, morando eu n’uma casa com o n. 19, não tenho por visinhos unicamente os moradores dos ns. 17 e 21, mas todos os moradores da minha rua. Assim, num programa de concerto, todas as peças são visinhas uma das outras.

Não pretendi, por forma alguma, escurecer o merito da Brasiliana, que no seu genero satisfaz plenamente; apenas lamentei que a não ouvissemos ao ar livre, durante as festas do centenario. O effeito seria extraordinario.

***

Outra carta, ainda a proposito do meu ultimo folhetim:“Meu caro amigo. – Muito me penhorou a sua noticia sobre a minha

pequena comedia Má peça, n’A Noticia, de 16, mas não posso deixar sem resposta o exclusivismo que me attribue, dando ao meu incipiente theatro o titulo de paulistano.

Fil-o, antes por mal entendida modestia que por exclusivismo, pois que nas poucas comedias que tenho escripto e collaborado, predominam os costumes paulistas antes que os brasileiros.

Desde que são paulistanos, é natural que sejam, brasileiros, mas, se eu désse este titulo aos meus trabalhos theatraes, seria pretenção de minha parte, que pretendo nas minhas apoucadas forças intellectuaes crear um pequenino conjuncto de comedias paulistas. Entendeu, pois, mal, o meu illustre amigo e mestre, o intuito que tive ao baptisar o meu theatro com o titulo – paulistano. – Tive receio de chamal-o brasileiro, e elle nunca poderá ter tal titulo.

Não sei se entendo mal a interpretação que pretendo dar ao meu proprio intuito, mas la diz o velho brocando juridico: Ejus est interpretare cujus est condere legem.

Salva-me a intenção, não acha?Mais uma vez agradeço, e peço-lhe que não leve a mal as linhas escriptas.Abrace e disponha do amigo de. – José Piza.”

***

A companhia Taveira deu seus ultimos espectaculos com A Severa, peça em 4 actos, de Julio Dantas.

Este drama, ou antes, esta comedia tem o defeito de não ser uma peça; roda continuamente em torno da mesma situação, e não interessa nem diverte. Os personagens não tem relevo; a Severa é uma meretriz vulgarissima, e o conde de Marialva, seu amante, um fidalgo ignobil, que durante a peça inteira não tem um traço de nobreza nem de cavalherismo.

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N’uma scena do 3º acto, em que Marialva parodia com esta phase Isto é descer, marqueza? o Non, merci, de Cyrano de Bergerac, o sentimento dos espectadores é que o patife não faz outra cousa senão descer.

Entretanto, a comedia salva-se pelo talento de Julio Dantas; o dialogo é scintillante, é, atravez do dramaturgo, um pouco desorientado sobre o caminho a seguir, transparece o poeta, um verdadeiro poeta imaginoso e loução.

Angela Pinto n’algumas scenas exagerou o papel da protagonista, já de si exagerado; n’outros, porem, como na situação do 3º acto, em que, trepada a um muro, assiste a uma tourada invisivel para o publico, interpretou com talento o personagem.

Luiz Pinto, que este anno veio sem um papel em que pudesse mostrar o seu merecimento, não tem o physico d’aquelle Marialva estroina e valentão.

Portulez agradou extraordinariamente no papel do Custodia, um monstrengo, uma especie de Quasimodo, que tem na Severa a sua Esmeralda.

Os demais artistas que tomaram parte na representação deram boa conta de recado, excepção feita da actriz encarregada do papel de uma pobre marqueza que só apparece para tomar uma descompostura da Severa.

***

A companhia Taveira partiu hontem, levando consigo dous dos melhores actores dos nossos theatros, o Mattos e o Colás. O Souza Bastos, que vem para o anno, levará talvez o Peixoto, o Ferreira, o Brandão, o Leonardo, etc. Em pouco tempo terá desapparecido o ultimo artista do Rio de Janeiro, e o nosso theatro acabará como o combate de Cid: faute de combatants.

Entretanto, creio firmimente que, no momento opportuno, haverá uma renovação, e o theatro brasileiro surgirá das suas cinzas. Para isto são necessarios muitos esforços, mas não ha duvida que o milagre se fará desde que todos o queiram.

***

Não assisti a nenhum dos espectaculos da companhia lyrica Milone e Rotoli, no Apollo; mas, pelo que tenho lido e ouvido, os artistas agradaram, e a temporada promette.

***

Realisa-se hoje, no Recreio, um espectaculo em beneficio do estimado actor Grijó, que escolheu para esta noite tres peças originaes, – o Primo Alv’ro, de Julião Machado, Natal n’aldeia, de Cunha e Costa e o Badejo.

Grijó é um dos nossos artista mais aproveitaveis. Está aqui, está em Lisboa.A. A.

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O Theatro, 30/10/1902

Encontrei no jornal Le petit bleu, de Paris (não o confundam com o de Bruxellas) um artigo com oito titulos, que me pareceu de certo interesse para os leitores destes folhetins.

Vou transcrevel-o, interrompendo-o de vez em quando com alguns commentarios de minha lavra.

Diz elle:“Sabe-se que Antoine e sua companhia irão no anno vindouro dar uma

serie de representações na America do Sul. O organisador d’essa execusão é o visconde de Braga, o celebre emprezario de Lisboa, que tão poderosamente tem contribuido para tornar conhecidos os nossos auctores e os nossos artistas na America do Sul.

É um cavalheiro amabilissimo o Sr. de Braga. Tem o acolhimento sorridente e a jovialidade proverbial do portuguez, reunidos a não sei que fleugma britannica de fazedor de negocios. Elle falla-nos das suas vastas emprezas simplesmente, sem procurar impor-se á nossa admiração; mette-se nas mais atrevidas especulações e maneja os capitaes com uma virtuosidade tranquilla.

– Ha muito tempo, disse-nos elle, desejava contractar Antoine. Mas não me animava. Encontraria elle um publico preparado para apreciar o seu repertorio? Não seria arriscada a aventura, tanto para elle como para mim? Hoje, estou, pelo contrario, convencido de que nada mais temos que recear. Não foi impunemente que levei á America Sarah, Coquelin e Réjane. As suas excursões fizeram a educação do publico, que hoje é capaz de apreciar a nova escola. N’este momento Réjane termina a sua viagem. Esta noite representa no Rio de Janeiro. Pois bem, quer saber quaes foram, das peças em que se exhibio, as mais applaudidas? A Robe rouge e a Course du flambeau. Ora, a Robe rouge fez aqui uma bella carreira, mas a Course du flambeau pareceu ao publico parisiense uma peça por demais severa. Entretanto, os americanos do sul comprehenderam-na bem. O seu exito me decidio a contractar Antoine. Póde ir, que encontrará um publico preparado.”

Abro o primeiro parenthesis para dizer que o visconde de S. Luiz de Braga, o meu velho amigo Braga Junior, é brasileiro, filho do Rio Grande do Sul; que não foi elle quem trouxe ao Brasil Sarah e Coquelin; que nem estes dous grandes artistas vieram fazer a nossa educação, nem nos mostraram a nova escola, que até hoje só conhecemos de leitura; que a Course du flambeau é um drama simples, e não havia absolutamente rasão para que o não comprehendessemos; é extraordinario que o facto de terem agradado entre nós

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a Robe rouge e a Course du flambeau determinasse o emprezario a contractar Antoine, pois aquellas duas peças nada têm de commum com o repertorio do fundador do Theatro Livre.

Mas prossigamos na transcripção. Pergunta o jornalista ao Sr. de Braga:“– Não receia que certas peças escandalisem o auditorio?– Não. Ha hoje no Brasil, e em particular no Rio de Janeiro, um verdadeiro

publico de intellectuaes que, pelas suas viagens ou leituras, estão ao corrente das lettras francezas. Esse publico me agradecerá levar-lhe Antoine, e lhe fará, creio, uma recepção enthusiastica.”

Decididamente essa conversa foi uma conversa fiada. Não acredito que o Braga Junior dissesse que só hoje temos um publico intellectual, quando a verdade é que a nossa platéa, a respeito de intellectualidade, já não vale o que valeu n’outros tempos...

Mas continuemos. Continúa De Braga:“– Pela parte que me toca, estou satisfeitissimo por ter concluido este

negocio, cujos debates não foram, aliás, laboriosos. É uma delicia tratar com Antoine! Assignou o contracto almoçando commigo no Maire. Eu mesmo tive algumas vezes que defender os seus proprios interesses, com os quaes elle pouco se importava. Ah! se todos os artistas fossem assim! Alguns ha que não têm nada de commodos...

– Devéras?– Oh! as mulheres principalmente! Ora ouça: tenho as melhores relações

com a Duse. Pois bem: não ha meio de arranjar nada com ella: é caprichosa e phantastica. Só ha um ponto em que não varia: teimou em não querer representar senão as peças de d’Annunzio. D’Annunzio é incontestavelmente um dramaturgo de alto valor, mas eu receiaria fatigar o meu publico não lhe dando senão peças de D’Annunzio. E ora ahi está porque não ha meio de me entender com a Duse!

– Haveria pelo menos a vantagem de o não embaraçar com um repertorio muito complicado. Com Antoine a cousa é outra.

– Isso é. Não creio que houvesse ainda excursão com um programma tão extenso. Conhece-o?

– Sim: Blanchette, Leurs filles, Les revenants, L’arlicle 330, Soeur Philomène, Grasse matinée, Le père Lebonnard, etc, etc.

– Em uma palavra: todo o repertorio do theatro Antoine, e mais algumas peças como L’ami Fritz e Le gendre de Mr. Poirier. (Escaparemos, pergunto eu, da Dama das Camelias?) Temos peças para oitenta espectaculos!

– Não haverá difficuldade em pol-as em scena?

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– Nenhuma. Os theatros na America são bem machinados. Quanto aos scenarios, Antoine leva-os todos comsigo.

– Quanta bagagem!– Tudo se arranja facilmente com as companhias de vapores. E na America

representaremos apenas em quatro cidades.– E a excursão durará...?– Tres mezes, de junho a setembro, Antoine será apreciado como

director, como artista e mesmo como orador. Nunca fallou em Paris, mas ouvi-o em Lisboa, n’uma conferencia: tem o dom da palavra. Antes da primeira representação, no Rio de Janeiro, explicará ao publico as origens, a organisação e os fins do seu theatro. Estou certo de que esta parte do programma, a conferencia, não ha de ser a menos apreciada.

Com estas palavras o Sr. de Braga despede-se de mim, elle não veio a Paris apenas passeiar. Depois de ter dado Antoine á America, pensou nos espectadores do seu theatro de Lisboa: habituou-os a receber todos os annos a visita de uma companhia franceza. Elles applaudirão este anno Mme. Bartet e o Sr. Le Bargy. E mesmo, se não receiassemos commeter uma indiscreção, poderiamos quasi annunciar-lhes o contracto provavel do Sr. Monnet-Sully.”

Quando me lembro que esse audacioso De Braga é aquelle mesmo Braga Junior que teve medo de pôr em scena o Mandarim!

***

Os editores Laemmert & C. acabam de publicar a comedia em 1 acto A catarata, original de Verediano Carvalho.

Enviando-me um exemplar do seu trabalho, o auctor fel-o acompanhar da seguinte carta, cuja inserção n’este folhetim elle sem duvida me perdoará:

“Sr. A. A. – Atrevo-me a offerecer-lhe um exemplar da comedia em 1 acto – A catarata – que ousei escrever para ser representada pelo corpo scenico da Real Sociedade Club Gymnastico Portuguez.

Como a peça foi destinada a curiosos e não a artistas, deve ser desculpada a petulancia.

E vem de molde lembrar a V., que, tanto deplora a ausencia do theatro nacional, que não faltam n’esta capital theatrinhos particulares, curiosos de muito talento e comediographos que vão da minha serapilheira até á fina estofa de V.

Faça-me o favor de ler isso, e, quando por ventura nos encontrarmos, dir-me-ha... que tal está o da rabeca.

Com maxima reverencia – De V. – constante apreciador, Verediano Carvalho, Rio, 20 de outubro de 1902.”

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Se A catarata me desagradasse, eu esperaria encontrar-me com o auctor para dizer-lhe a minha opinião, mais ou menos disfarçada, como se usa em taes casos; como, porém, a leitura me causou muito prazer, e não perco ensejo de mostrar aos meus leitores que o theatro não é entre nós tão despresado como parece, venho publicamente comprimentar o meu distincto confrade pelo seu trabalho, despretencioso, é verdade, mas revelador de uma vocação que eu lhe não conhecia, e de um verdadeiro temperamento de comediographo.

O enredo, se o ha, é insignificante; trata-se de um pae que, soffrendo de uma catarata dupla, recebe de braços abertos um namorado da filha, suppondo receber de S. Paulo um sobrinho a quem a destina. Isto não é nada, mas é alguma cousa, porque os personagens estão bem observados, as situações bem combinadas, e o dialogo é vivo, natural e delicado. Sente-se, lendo esta comediasinha escripta para amadores, que Verediano Carvalho poderá, quando quizBer, escrever uma comedia para artistas.

Elle chama-me a attenção para os theatrinhos. Não era preciso. Ha muito tempo acompanho com interesse o desenvolvimento que têm tomado as representações particulares, e n’estes mesmos folhetins já muitas vezes o disse: as associações de amadores são magnificos viveiros de arte dramatica, e quantos nos interessamos pelo futuro do nosso theatro temos o direito de contar com ellas. De resto, todos os nossos bons artistas, a começar por João Caetano, começaram no theatrinho.

Se algum dia tivermos theatro a valer, não faltará quem escreva nem quem represente. Organise-se alguma cousa séria, e auctores e artistas surgirão por encanto, como as legiões de Buonaparte.

***

No Recreio, proseguem victoriosamente as representações do Martyr do Calvario, interrompidas uma noite, uma noite só, para a representação extraordinaria da Dalila, dada em beneficio de Cenira Polonio, que se esqueceu de me convidar para a sua festa, – e no Apollo continúa a agradar a companhia lyrica barata dos emprezarios Milone e Rotoli.

A. A.

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O Theatro, 07/11/1902

A primeira parte d’este folhetim, que devia ter sahido hontem, occupava-se de certo facto a respeito do qual recebi uma carta, que não só me penhorou, com me surprehendeu, escripta pelo meu distincto collega e bom camarada Renato de Castro, da Gazeta de Noticias, – carta que eu transcrevia integralmente.

Á vista, porém, das seguintes linhas que me dirigio o director da Noticia, resolvi supprimir aquella primeira parte, e supprimil-a era supprimir metade do folhetim. Ahi está explicado o meu sueto de hontem.

Agora, a carta do meu velho amigo Rochinha:Meu caro Arthur. – O teu folhetim de hoje – primeiro em oito longos annos

de collaboração – não me parece conveniente. Tratar de um caso que não se deu, conhecido por ti apenas pela referencia de um illustre collega, e que a fez particularmente quando podia tel-a feito no jornal em que escreve, é, pelo menos, irregular. E dar a tal caso, que esteve para haver, as proporções de uma manifestação de natureza collectiva, seria levar muito longe as coisas.

Desejo completar estas explicações pessoalmete, para dar-te mais uma vez as seguranças, de que aliás não precisas, do grande, do immenso apreço que ligo á tua preciosa collaboração, e de quanto lamento este pequeno incidente.

Saudades do teu – Rochinha.”As explicações verbaes do meu amigo que é o espirito mais conciliador

que conheço, calaram-me no animo. Entretanto, não me submetti sem primeiramente assegurar toda a minha liberdade de acção para o dia em que se repetir o facto que não se deu...

Resta-me pedir a Renato de Castro que me releve o deixar inedita, ainda que impressa no meu coração, a sua nobre missiva, que eu commentei, confesso, com um ardor a que não estão habituados os leitores da minha prosa tranquilla. Carta e commentarios apparecerão um dia, se a isso me coagirem.

***

Que dolorosa impressão me causou a noticia, com que fui ha quatro dias surpehendido pela Gazeta de Noticias, de haver fallecido em Lisboa o illustre escriptor Lino de Assumpção!

Fomos amigos, muito amigos, e collaboradores. Foi de sociedade com elle, e a seu convite, que perpretei a minha primeira revista de anno, o Rio de Janeiro em 1877, posta em scena pelo Valle.

Mais tarde, Lino de Assumpção, que era n’aquelle tempo, além de engenheiro e jornalista, um traductor theatral infatigavel, escreveu um bello

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drama original, os Lazaros, que Furtado Coelho representou com successo no São Luiz.

Elle já era dramaturgo quando veio de Portugal para o Brasil, tinha ali feito representar, entre outras peças cujos titulos me escapam, um drama em 1 acto, a Patria na officina; voltando ao seu paiz, dedicou-se de novo á litteratura dramatica, e exhibio, no theatro D. Maria II, pelo menos duas peças que foram bem recebidas pelo publico e pela critica: Eva e Monsenhor.

Todavia, tendo entrado como funccionario, para a Bibliotheca Publica de Lisboa, da qual fòra ultimamente nomeado director, a boa companhia dos velhos alfarrabios fez d’elle um erudito, um investigador do passado. Abandonando as suas antigas tendencias litterarias, entrou a reconstituir épocas, a exhumar figuras historicas, escrevendo livros sobre livros que revelavam a maravilhosa transformação do seu espirito de out’ora. Ao meu collaborador da revista do anno de 1877 devem as lettras portuguezas o Catholicismo no seculo XVI; o Catholicismo da corte ao scrivão, Frades e freiras, as Festas de outr’ora, as Freiras do Lorvão, Historias de frades, e outras obras monasticas, em que elle mostrou a paciencia e o talento de um benedictino.

Lino de Assumpção tinha direito a um folhetim inteiro. Sou, infelizmente, obrigado, pela escassez de espaço, a consagrar-lhe apenas estas linhas. N’outro logar me desobrigarei de quanto devo á sua memoria, e á lembrança de uma affeição que os annos e a distancia não desmentiram nunca.

***

Outro fallecimento, cuja noticia tardou em chegar aos meus ouvidos, e não figurou, que me conste, em nenhum jornal: morreu em S.Paulo,n’um hospital (como é triste dizel-o!) onde fòra recolhida pela caridade publica, a actriz brasileira Julia Gaubert.

Não lhe faltavam aptidões: era intelligente, sabia o que fazia, mas, coitada! luctava contra um physico ingrato: era gorda, muito gorda, quasi obesa, e a exagerada corpulencia é o mais implacavel inimigo das actrizes.

Passou a vida a mambembar, isto é, a percorrer, com outros artistas, todas as cidades, villas, povoações e logarejos do interior do Brasil.

***

Passei terça-feira uma noite feliz: João Matheus e Baptista Coelho leram-me a sua nova peça, Culpa antiga. Eu esperava do auctor do hilariante Primo Alv’ro e do auctor do 116 (engraçadissima comedia que se conserva inedita) alguma cousa que me fizesse rir. Imaginem a minha sorpresa ao ouvir uma peça moderna, engenhosamente urbida, com situações de uma grande intensidade dramatica, uma catastrophe bem preparada, personagens

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desenhados e coloridos com arte, e um dialogo theatral, interessantissimo, sem essa rhetorica desagradavel que é o escolho de quem se aventura ao theatro, e temperando com o espirito especial do palco a violencia dos lances.

Não direi ao leitor o que é a Culpa antiga, porque não tenho o direito de ser indiscreto, nem os auctores m’o perdoariam; posso, porém, affirmar desde já que a companhia Dias Braga vae ter nesse drama um dos seus mais interessantes successos.

Vejo com prazer que o Recreio se apercebe neste momento para dar-nos pelo menos tres peças originaes, que naturalmente não serão as unicas: os Lobos na malhada, de Cunha e Costa, que vae cumprir as brilhantes promessas feitas com Natal n’aldeia, – a Culpa antiga, de Baptista Coelho e João Matheus, – e o Retrato a oleo, do meu melhor amigo.

***

Tive ha dias o prazer de abraçar o insigne scenographo Carrancini, que voltou de Lisboa, ou antes, da Europa, porque foi tambem a França e á italia.

Voltou enthusiasmado pelos scenarios que o seu illustre collega Manini pintou para o Suave milagre, de Eça de Queiroz, reprezentado no D. Maria, de Lisboa, e ainda mais enthusiasmado pela scenographia que admirou em Paris, assistindo no Chatelet a uma representação da Viagem de Suzette e ouvindo a Opera os Barbaros, de Berlioz.

Carrancini vem encontrar, infelizmente, os nossos theatros em petições de miseria; entretanto, espero que contribua com o seu bello talento para dar-lhe um pouco de animação e de vida.

***

A proposito da referencia que fiz, no meu ultimo folhetim, á comedia A catarata, de Verediano Carvalho, escreveu-me o auctor uma carta bem interessante, que me apressaria em publicar se elle de alguma fórma não lhe désse o caracter de uma confidencia. Entretanto, aqui fica a ameaça da publicação, que farei quinta-feira proxima, salvo ordem terminante em contrario.

***

Nada de novo por emquanto em os nossos theatros. No Recreio prepara-se alegremente a commemoração do jubileu do Martyr do Calvario, e a companhia Milone & Rotoli continua a agradar no Apollo. Deu-nos um Baile de mascaras mesnos mao, uma Bohemia acceitavel e uma Força do Destino razoavel. O publico é muito sensivel a estes espectaculos de opera, que não o obrigam a fazer toilette nem a deitar as joias no prégo.

A. A.

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O Theatro, 13/11/1902

Remmetendo-me um exemplar impresso da sua lenda fantastica O Diabo no Paraizo, o meu fecundo collega Sr. Fonseca Moreira escreve-me queixando-se do prejuiso material que lhe acarretou a exhibição do seu trabalho, posto em scena á custa do proprio auctor. As tres primeiras representações, renderam perto de seis contos de réis, mas as tres ultimas (a lenda teve apenas seis representações) não deram para a diaria, de sorte que aquella esperançosa receita foi tão fantastica como a propria peça.

O Sr. Fonseca Moreira perdeu 7 contos de réis. É verdade que chamou a ferros o guarda-roupa, que deve ser sumptuoso, e a partitura que Assis Pacheco escreveu ás pressas para substituir, depois da primeira representação, o pastel (a expressão é do Sr. Fonseca Moreira) apresentado pelo compositor bisonho que fôra encarregado de musicar a obra, e que tão máo effeito produzio na estréa.

A esse pastel attribue o meu collega insuccesso do seu trabalho. Elle o diz na carta que me escreveu e nas seguintes linhas inauguraes do prefacio com que apresentou a preciosa brochura:

“O Diabo no Paraizo subio á scena no theatro Sant’ anna a 7 de setembro de 1901, com uma enchete colossal, e teria feito successo, se a musica correspondesse ao poema! Todos sabem que, nos dramas fantasticos e magicas a musica é um elemento de primeira ordem, e muitas vezes d’ella depende a carreira da peça. Se a musica não agrada, o poema está irremediavelmente perdido. O Diabo no Paraizo, apezar dessa contrariedade, cumprio a sua missão, e muito breve, auxiliado pelo genio do distincto compositor, nosso amigo Sr. Assis Pacheco, será novamente exhibido. Só então o publico ajuisará do seu merecimento, fazendo justiça ao laureado maestro, gloria da arte e da patria.”

Tambem eu tenho uma queixa, muito mais amarga que a do Sr. Fonseca Moreira, e aqui a pespego, como bom collega, para que elle possa consolar-se commigo. Tambem eu puz em scena este anno uma peça que apanhou uma enchente colossal á primeira representação, e, não obstante ter tambem alguma coisa de fantastica, levou um trambolhão que se tornará famoso, creio, nos annaes do palco do Lucinda.

Mas se o Diabo no Paraizo foi sacrificado pela musica, a musica da minha peça foi sacrificada pelo libretto, e a ahi está porque a minha queixa é mais amarga que a do Sr. Fonseca Moreira.

Abdon Millanez estava tranquillo em casa, com sua mulher e seus filhos; não se lembra absolutamente do theatro, não lhe passava pela cabeça fazer

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valsas para a Sra. Pepa, e eu, com a aggravante da premeditação, fui arrancal-o ao seu descanço, ou por outra, ás suas occupações – porque elle, coitado, aproveita o seu formoso talento musical para ensinar piano ás senhoritas, e pedi-lhe que escrevesse quarenta numeros de musica para a minha peça!

O auctor da Donzella Theodora, do Heróe á força, da Dama de espadas, do Barbeirinho da Sevilha, do Bico do papagaio e de tantas outras partituras applaudidissimas, escreveu, com a melhor vontade, aquelles quarenta (quarenta!) numeros, que lhe sahiram leves, saltitantes, graciosas, apropriados á lettra e ás situações... O resultado foi que se viu: o libretto, pesado e triste, matou a musica!

Não sei se o auctor da partitura do Diabo no Paraizo procurou o Sr. Fonseca Moreira para pedir-lhe perdão; eu, morando a dous passos da casa de Abdon Milanez, não tive ainda cara de lhe apparecer, e penitenciar-me. Não creio que elle me perdôe.

Note-se que o pobre Abdon perdeu, materialmente, muito mais que o Sr. Fonseca Moreira; não lhe resta a esperança de vêr um dia a sua peça novamente representada, nem elle carregou para casa o guarda-roupa, que, aliás, vendido, não lhe daria meia pataca.

O Sr. Fonseca Moreira é um honrado negociante de seccos e molhados que sonha com as glorias da litteratura dramatica, e eu sou um comediographo que daria uma perna ao diabo para ser negociante e seccos e molhados; portanto é incongruencia pretender cousolal-o. Entretanto, repito: elle que se console commigo: á sua peça faltou o talento de um musico, e a minha sacrificou um musico de talento.

Agradeço ao lareado auctor do Diabo no Paraizo o ensejo, que me proporcionou, de dizer sobre Abdon Milanez umas tantas cousas que ha muito tempo estavam no bico da minha penna. Ainda espero vel-o tomar uma desforra brilhante e n’um palco de opera, ao lado de Puccini.

***

Estou, felizmente, auctorisado a publicar a carta a que me referi quinta-feira, e que vai constituir o trecho mais interessante do meu folhetim. Eil-a:

“Sr. A.A. – Muito obrigado pelo diagnostico e prognostico que, como mestre na oculistica theatral, fez da minha catarata, comprimentando-me publicamente “pela vocação que não me conhecia”.

Pois olhe: essa vocação foi enfermidade de que soffri muito em pequeno. Os primeiros insultos d’ella – tive-os ha 40 annos, escrevendo um dramasito

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em 1 acto, sem damas. O Artista, que ainda hoje bate pelos theatrinhos particulares.

Por esse mesmo tempo fiz uma comedia em 2 actos, Inferno e Paraizo, e lembro-me que, dando-a ao Dr. Luiz de Castro, do Jornal do Commercio, elle, n’uma gazetinha, mandou me tratar de outro officio, não lhe passando pela mente que, 28 annos depois, eu pudesse ter a honra, como tive, de escrever folhetim durante 7 annos no respeitavel jornal.

Ha 25 annos, creando as diversões dramaticas da Real Sociedade Club Gynnastico Portuguez, escrevi e representei, com o Felinto de Almeida, o Floriano de Andrade e outros rapazes do commercio, um drama em 3 actos, tambem sem damas, os Positivistas.

Durante 25 annos passei bem da vista, mas, ha um anno, fazendo-me o corpo scenico d’aquella sociedade uma manifestação... em platinotypia, quiz-me lembrar de cinco lustros atrás e... apareceu-me a Catarata.

Já antes, e para um theatrinho em casa da familia de um compadre, fiz uma comedia em 1 acto, Estado de sitio, satyra sobre os successos da revolta de 1893, a qual foi representada em 5 de julho d’este anno no Club Thalia, e deu sorte, fazendo rir as sisudas familias do bairro de Catumby, a ponto de eu rir tambem!

Tenho visto pela Ristori, em 1869, e pela Della Guardia, em 1901, a primorosa comedia de Goldoni, a Locandeira, a conselho de um particular de grande talento, o meu collega pinta-lettras (guarda-livros) Frederico Costa, verti-a com destino ao Elite Club, e... ficou na gaveta.

Ahi tem V. a historia antiga e moderna dos crimes que commeti em lettras theatraes, podendo allegar, em defesa, que não os pratiquei em prejuizo de comediographos e actores de profissão; defesa semelhante á d’aquelle chinico francez que foi absolvido pelo Tribunal do Sena, considerando que o homem não fabricava drogas falsificadas para consumo em França, e sim no estrangeiro.

Não vá V. agora abusar do sigillo da confissão geral dos meus peccados theatraes, e denunciar-me no Santo Officio da Noticia, como fez hontem a respeito da Catarata.

Dirá V.:”quem não quer ser lobo não lhe veste a pele”. Quem mandou deitar a cabeça de fóra, depois de 25 annos de mettido na tóca?

Sempre etc. – De V. – constante etc. – Verediano Carvalho.Rio, 31 out, 1902.”

***

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O Recreio encerrou, com a festa da quinquagesima (em calembour) a primeira serie das representações do Martyr do Calvario, e annuncia para hoje a 1ª da engraçadissima comedia de Bissen Le bon juge, que Fram Paxeco e Antonio Lobo – dous escriptores de talento – traduziram com o titulo Juiz sem juizo.

No proximo folhetim fallarei da peça e dos traductores.

***

O Club Dramatico Riachuelense está organisando, para 22 do corrente, um espectaculo em beneficio da viuva de Gaspar Alves Meira. Ahi fica o aviso para todos os amigos – e eram muitos – do saudoso ensaiador.

A. A.

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O Theatro, 20/11/1902

A companhia dramatica Dias Braga, fundada a 20 de novembro de 1883, festeja hoje, com uma representação extraordinaria do Quo Vadis, o seu 19º aniversario.

De todas as emprezas theatraes havidas no Brasil, é a empreza Dias Braga a de existencia mais longa. Tem tido altos e baixos, vôos e quedas, triunphos e decepções, mas tem vivido. De vez em quando parece prestes a extinguir-se, abandonada pelo publico, mas com uma peça nova, ou uma viagem, recobra o alento perdido, e lá vai por diante, victoriosa e serena.

Essa admiravel resistencia explica-se unicamente pela pertinacia. Em theatro insistir é resistir. Dias Braga não se deixa intimidar pelo minotauro da crise, e affronta-o de animo firme e resoluto.

Nem a indifferença do publico, nem a invasão estrangeira o demovem de dar espectaculos todas as noites; o mais que poderão fazer é obrigal-o a tomar um paquete ou o caminho de ferro com a companhia as costas, – mas fechar o theatro estando elle e os seus artistas no Rio de Janeiro, isso nunca!

O publico, embora não pareça, aprecia aquella coragem, e recompensa-a todas as vezes que se lhe offerece occasião. Se maior não tem sido o premio, queixe-se o emprezario de si mesmo, porque durante um longo periodo não se preoccupou com a renovação de um repertorio estafado; só ultimamente se convenceu d’essa necessidade, e em boa hora o fez.

O seu repertorio foi sempre de um eclectismo que seria absurdo n’outro paiz onde o theatro estivesse firmado sob as sua verdadeiras bases, mas que se aceita, se comprehende e se desculpa entre nós. Dias Braga não fez mais do que João Caetano, que n’uma noite punha em scena a Clemencia de Augusto e na outra noite a Roman encantada; não faz mais que fez Furtado Coelho, que alternava as representações de uma comedia finamente litteraria com as da Baronesa de Cayapó.

No repertorio da companhia do Recreio têm figurado todos os generos, – a tragedia, o drama, o melodrama, a farça, o vaudeville, a opereta, a magica e a revista. Falta-lhe apenas a pantomina, pois que nem mesmo a opera lhe falta: a Cavalleria rusticana que o diga.

***

Ainda agora acaba a empreza Dias Braga de dar mais uma prova do seu electismo: o Martyr do Calvario foi substituido no cartaz pelo Juiz sem juizo, titulo com que Fran Paxeco e Antonio Lobo traduriam Le bon juge, de Bisson,

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vaudeville engraçadissimo, que tem um unico defeito: reproduzir, no 3º acto, a situação mais feliz do Contrôleur des wagons-lits, do mesmo auctor.

Os artistas do Recreio representam este rendeville como se representassem uma comedia, é esse o lado fraco do espectaculo. O mesmo defeito já se notara na representação do Toupinel, do mesmo auctor, peça que não deu nada, e no entanto, é, no seu genero, uma obra-prima.

Desde que o Juiz sem juizo seja representado como comedia e não como farça (pois que outra cousa não é o vaudeville), isto é, desde que os artistas tomem a serio os personagens e as situações, e pretendam humanisar o que está fóra das leis naturaes, o publico esfastia-se e até se enternece; o effeito é negativo.

Ferreira de Souza, que sabe a conta em que o tenho, representa de um modo magistral o drama e a comedia, mas não é nem póde ser um actor vaudevillesco, embora um dia acertasse, representando as Mulheres em penca, em que era impagavel.

Olympio Nogueira, um dos nossos artistas de futuro, e com quem mais podemos contar, procurou a nota, achou-a, ma, infelizmente, exagerou-a. Elle tinha feito durante cincoenta noites o papel de Jesus Christo,em que estava preso e manietado; desempenhando em seguida um titere de vaudeville, abusou da sua desforra, agitando-se de mais.

A peça, como a Robe rouge, dá uma tristissima idéa da magistratura de França, que não deve, não póde se aquillo... E dizer que os francezes escrevem com a esperança, com a quasi certeza de serem applaudidos pelo mundo inteiro!

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Os traductores do Juiz sem juizo são dous moços de talento. Fran Paxeco, que já cá esteve no Rio de Janeiro e a quem se deve a iniciativa da celebração do centenario de Basilio da Gama, é um jornalista e escriptor portuguez correctissimo, auctor de varias obras muito apreciadas. Depois de percorrer o Brasil de sul a norte, domiciliou-se no Maranhão, onde tem dado repetidas e brilhantes provas do seu raro merecimento litterario,e onde fez amisade com Antonio Lobo, o seu socio na traducção do Juiz sem juizo.

Antonio Lobo é um dos maranhenses mais distinctos da nova geração. Exerce na capital d’aquelle Estado o cargo de director da Bibliotheca Publica, e o seu ultimo relatorio foi saudado pela critica, não como uma simples peça official, mas como uma bella monographia, revelando muito estudo e muita competencia. N’esta mesma folha A. dos Santos fez-lhe os maiores elogiaos na sua apreciada Chronica litteraria.

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Espirito culto, escriptor elegante e criterioso, Antonio Lobo dirige, no Maranhão, a magnifica Revista do Norte, que em Fran Paxeco tem um dos seus mais assiduos collaboradores.

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A companhia lyrica Milone & Rotoli não dorme sobre os seus louros; deu-nos, a seguir, dous espectaculos muito interessantes: ante-hontem a Bohemia, que foi um successo para o tenor estreante, Ferrari, já nosso conhecido, e hontem a Favorita, para despedida do tenor portuguez Joaquim Tavares.

Como se isso não bastasse, annuncia para hoje a estréa de uma cantora brasileira no papel de Gilda, do Rigoletto.

A estreante chama-se Nicia da Silva, nasceu em S. Paulo, alcançou o primeiro premio de canto no Instituto Nacional de Musica, e é moça e bonita.

A sua estréa constitue, portanto, um acontecimento que chamará, espero, a attenção do nosso publico.

Faço votos para que o triumpho seja ineontestavel e o mais completo possivel, pela muita sympathia que me merece uma senhora brasileira que, affrontando o preconceito, abraça uma carreira honesta diante da qual tantos talentos femininos têm, desgraçadamente, recuado, e fal-o no seu proprio paiz, isto é, sem procurar receber no estrangeiro o baptismo da arte, para vir da Europa impôr-se, convenientemente rotulada, á admiração e aos applausos dos seus patricios.

– Onde estão os artistas? perguntam constantemente aquelles a quem aborrece o meu realejo do Theatro Municipal. Os artistas surgem. Surgiu agora uma cantora lyrica, – amanhã surgirá uma actriz dramatica.

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O Sr. Marinonio Piedade (nome que parece pseudonymo) obsequiou-me com um exemplar do seu entre-acto comico Um plano infallivel, representado, em junho do corrente anno, no theatro Sant’Anna.

Gostei mais dos Apurus de Lulú, do mesmo auctor.O plano de que se trata póde ser infallivel, mas é extravagante: uma

rapariga, ameaçada com um noivo de 57 annos, desejando obrigar o pae a consentir que ella se case por gosto e não á força, introduz o namorado no seu quarto de dormir, na propria casa paterna, e diz ao velho: – O meu coração já escolheu esposo, e já estou casada! – Já estás casada?! – É verdade, meu pae; apenas falta seu consentimento para legalisar... – E as bixas pegam.

O velho é mal desenhado. Na 1ª scena parece-se com o severo e rigoroso Gorgibus do Cocu imaginaire; na 3ª (só tem 3 scenas a peça) é um pax-vobis.

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Tambem não comprehendo porque o auctor exige que o namorado seja “medonhamente feio”. Isso admitte-se na vida real, mas nas comedias, e mesmo nos entreactos, os namorados devem ser sempre bonitos, a menos que haja motivo plausivel para serem feios.

Entretanto, o Sr. Marinonio Piedade revela habilidade para o theatro, e, se assim não fosse, eu não lhe consagraria 34 linhas do meu folhetim.

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A Ignez Gomes encontrou-me hontem e pedio-me para dizer aos meus leitores que o seu beneficio, tantas vezes annunciado e transferido, se realisará segunda-feira proxima, impreterivelmente, no Recreio, com a Honra, de Sudermann.

Está feita a vontade á Ignez Gomes.A. A.

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O Theatro, 27/11/1902

Depois do Juiz sem juizo, que não disse absolutamente ao que veio, nenhuma peça nova nos chamou a attenção. Um drama tivemol-o ha tres dias, mas não no theatro, com o desmoronamento de dous predios e a morte de seis pessoas. Não compete, entretanto, ao meu folhetim a analise desse drama, cujo protagonista e o personagem monstruoso e absurdo que se intitula “mestre de obras”, e que, para bem da humanidade, deveriamos supprimir para sempre.

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Fallando de Nicia da Silva, a estreante do Apollo, secrevi no meu ultimo folhetim:

“Faço votos pra que o triumpho seja incontestavel e o mais completo possivel, pela muita sympathia que, me merece uma senhora brasileira que affrontando e preconceito, abraça uma carreira honesta diante da qual tantos talentos femininos têm, desgraçadamente, recuado, e fal-o nos seu proprio paiz, isto é, sem procurar receber no estrangeiro o baptismo da arte, para vir da Europa impor-se, convenientemente rotulada, á admiração e aos applausos dos seus patricios.”

Os meus votos foram realisados. Cantando e representando o papel de Gilda, do Rigoletto, em que mais de uma artista provecta naufragou, Nicia da Silva obtve uma d’essas victoriosas que n’uma noite decidem da sorte de uma cantora. Chegou, vio e venceu.

Carinhosamente educada no Instituto Nacional de Musica, onde teve por mestre Mr. Gilland, e onde alcançou um primeiro premio, Nicia da Silva a ninguem sorprehendeu cantando. O mesmo não póde dizer da representação, que produzio geral sorpresa, porque no Instituto a nossa gentil patricia não aprendeu a representar, e, no emtanto, se não foi perfeita, mostrou-se – e já é muito – susceptivel de perfeição. Tirante alguns defeitos de gesticulação, ella satisfaria cabalmente a qualquer espectador que entrasse no theatro ignorando que se tratava de uma estréa.

Não assisti á segunda representação do Rigoletto, na qual, segundo me informaram, desappareceram alguns d’aquelles defeitos, que só o estudo e a experiencia poderão corrigir completamente.

Nicia da Silva, é um peregrino talento de intuição e, depois de tão bellas primicias, criminoso seria consentir que se estiolasse aquella flor, que se desvanecesse aquella esperança. Todos nós, que temos o sentimento da arte, nos devemos esforçar para que tal não aconteça.

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Agora, que a laureada alumna do Instituto se revelou aos seus compatriotas, agora, que a apaixonada Gilda teve para elle a mesma significação que a Noite do Castello para Carlos Gomes, é tempo de pedir ao velho mundo que complete e aperfeiçoe a educação theatral da nossa artista.

Ella é pobre (felizmente para nós, porque, se fosse rica, não abraçaria o theatro); por conseguinte, não dispõe de meios para poder, por si mesma, procurar aquelle aperfeiçoamento. Por iniciativa do illustre deputado fluminense Heredia de Sá foi, ha dias, submettido ao Congresso um projecto de lei, concedendo-lhe, durante um anno, a pensão mensal de um conto de réis para aquelle fim. Espero que os nossos congressistas não ponham uma pedra em cima d’esse projecto, não regateiem a uma artista brasileira, de merito excepcional, um modesto subsidio que ella compensará largamente, honrando o seu paiz.

Por outro lado, os distinctos emprezarios Milone e Rotoli, que foram para com a estrante de uma gentileza sem limites, offereceram-lhe uma recita, que se realisará segunda feira próxima, com a terceira representação da opera de Verdi. O producto d’essa recita, que será, quero crer, a consagração definitiva de tão formoso talento, contribuirá tambem para a viagem de que depende o futuro artistico de Nicia da Silva.

Conto que n’essa noite o Apollo apresente um aspecto excepcionalmente festivo, e que a nossa melhor sociedade concorra ao espectaculo com o interesse que lhe deve despertar um astro de primeira grandeza, despontando no limitado horisonte da arte brasileira. Nicia da Silva tudo merece.

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Coincidiu com a estréa da nossa cantora a festa com que a empreza Dias Braga commemorou o 19º anniversario da sua fundacção, mas nem por isso deixou de haver no Recreio muita gente e muito enthusiasmo.

Voitou á scena o Quo vadis? peça que não nega fogo, apezar de ter sido representada mais de setenta vezes quasi consecutivas. Ainda d’esta vez não lhe faltaram applausos.

Nero e Petronio vão, entretanto, ceder o palco do Recreio á peça em tres actos, Lobos na malhada, de costumes portuguezes, original de Cunha e Costa, que já nos deu, naquelle mesmo theatro, com a comedia Natal na aldeia, uma bonita amostra do seu talento de dramaturgo. Está muito esperado o novo trabalho do meu illustre collega do Jornal do Brasil.

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A companhia lyrica Milone & Rotoli, cuja temporada termina esta semana, cantou ante-hontem o Othelo, de Verdi, que não tive o prazer de ouvir. O ultimo

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espectaculo será precisamente o beneficio de Nicia da Silva, o que vale fechar a série com chave de ouro.

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Outro beneficio, annunciado para sabbado, no Lucinda, com um espectaculo variado, é o de Isolina Monclar, actriz brasileira por excellencia e que, como tantas outras, se acha ha muito tempo afastada dos nossos palcos, á falta de trabalho.

Isolina arreliou-se devéras commigo por amor de umas observações muito criteriosas que lhe fiz, e que ella deveria, pelo contrario, agradecer, porque partiam de uma penna que sempre lhe fez justiça; não seja isso razão para que eu não recommende ao publico o seu espectaculo. Por meu gosto, o Lucinda apanharia no sabbado uma enchente.

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Equivocou-se o nosso Bilac attribuindo, no seu scintillante Registro de hontem, a Francis de Croisset a auctoria da bella comedia Sylvie, ou la curieuse d’amour, aqui representada pela Réjane, e rigorosamente condennada pela nossa critica.

O auctor de Sylvie é Abel Hermant, dramaturgo quasi desconhecido, mesmo em Paris, onde nenhuma notoridade alcançou nem com essa, nem com outra comedia, La mente, representada em 1894, no Renaissance.

Francis de croisset é um dos auctores de La passarelle.

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Recebi mais uma parodia, impressa, da Ceia dos cardeaes. Intitula-se a Ceia dos federaes, e é uma satyra politica. Nada tem que ver com o theatro.

A. A.

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O Theatro, 05/12/1902

No dia da primeira representação dos Lobos na malhada, de Cunha e Costa, esperei debalde que a empreza do Recreio Dramatico me enviasse um bilhete. Á noite resolvi, contra os meus habitos, pedir-lhe que reparasse o esquecimento; chegando, porem, ao theatro, dei de frente com um lettreiro que dizia: “só ha entradas”, lettreiro que figurará na bilheteria, espero, por muitos sabbados e domingos.

Na noite seguinte não era possivel ir ao theatro porque necessitava recolher-me cedo para levantar-me ás cinco horas da manhã, estar ás sete no cáes Pharoux, embarcar n’uma lancha e ir receber a bordo do Cordillère meu irmão, que que chegava no Rio da Prata. Advinhasse eu que o paquete só entraria mais tarde, e teria ido ao theatro.

Ante-hontem tambem não pude lá ir, porque jantei com meu irmão, e, como havia tres annos que não nos viamos, o jantar, eu antes, a palestra prolongou-se pela noite fora.

Mandei pedir autorisação ao director d’A Noticia para transferir o folhetim de quarta para sexta – feira, contando poder assistir hontem á representação dos Lobos na malhada e escrever hoje sobre a peça tanto mais que a empreza do Recreio me obsequiára, hontem mesmo, não com um mas com dous bilhetes, favor a que me confesso publicamente agradecido.

Mas, oh, desgraça! ao cahir da tarde o céo enfurresceu-se e começou a chover a cantatos. Á hora em que eu devia sahir de casa para chegar ao Recreio a tempo de ver subir o panno para o primeiro acto, parecia vir o mundo abaixo!

Ainda assim, quiz affrontar o máo tempo, mas a familia oppoz-se energicamente a que eu puzesse o pé fóra de casa.

– E o teu rheumathismo? bradava a esposa afflicta. Se saes com uma noite destas, amanhã não pódes dar um passo!

– Senhora, o dever antes de tudo!– A peça póde esperar. Vel-a-has outo dia.– Já transferi o folhetim de hoje para amanhã, e não tenho absolutamente

outro assumpto! Demais, seria um escandalo escrever um folhetim sem falar dos Lobos na malhada!

– Falará quinta-feira.– Será um caldo requentado. Tenho que ir hoje por força ao Recreio!– Lembra-te que és doente!– Os leitores d’A Noticia nada têm que ver com isso! Quem é doente, quem

não póde ir ao theatro embora chova, não se encarrega de escrever folhetins theatraes!

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– Pois sim, mas não consinto que saias com um tempo d’estes!E voltando-se para os filhos:– Meninos, papae quer apanhar chuva! peçam-lhe que não saia!Eu não contava com a criançada. Os pequenos agarraram-se ás minhas

pernas, com uma voseria infernal:– Não saia, papae!... não saia, papae!...– Deixem-me! – Papae, não saia!... papae, não saia!...– Saio! Agazalho-me bem e calço as galochas...– Não, não, papae!... fique em casa!...– Não fico!E desprendendo-me dos bracinhos da pequenada, fui para o meu quarto e

comecei a vestir-me.– Que imprudencia! que loucura! disse minha mulher. Deixa estar que te

has de arrepender!O tom de convicção com que ella proferio essas palavras sinistras e

ameaçadoras assustou por tal fórma os pequenos, que estes começaram a chorar, repetindo entre lagrimas: – Não saia, papae!... não saia, papae!...

O copeiro, fiel servidor que me acompanha ha muitos annos, fez côro com a familia, observando:

– Isto é chuva de pegar; se eu fosse o patrão, não sahia.– Não saia, meu amo! intercedeu a cosinheira, que se approximara,

attrahida pelo berreiro das crianças.– O’mulher, vá tratar da sua vida! Quem lhe perguntou que horas eram?Entretanto, os pedidos continuavam com insistencia. Dir-se-ia que todos

em casa desconfiavam de um duello ou de um suicidio.E não eram só os pedidos: a chuva continuava tambem, como tomando

parte no desejo de que eu ficasse em casa.– Ora adeus! se é para o bem de todos, fico!Essa phrase historica foi recebida com vivas demonstrações de alegria.

Minha mulher abraçou-me, e os pequenos dançaram em volta de mim, cantando:

– Papae não sae!... papae não sae!...Vim para o meu gabinete, sentei-me á mesa e dispuz diante de mim

algumas tiras de papel em branco, resolvido a escrever quand même o folhetim.– Mas que vou eu dizer? Para justificar-me de não haver assistido á

representaçãodos Lobos na malhada, será preciso falar de minha familia, de meu irmão, de minha mulher, de meus filhos, e até dos meus famulos, do meu rheumatismo e das minhas galochas, o que é ridiculo. O melhor é fazer

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o que disse minha mulher: adiar para a semana a minha noticia. A peça do Cunha e Costa tem folego para trinta representações pelo menos, e póde, effectivamente, esperar.

Fechei o tinteiro, e tomei a deliberação de me ir deitar e dormir.Eu conhecia os Lobos na malhada pelas noticias da imprensa, sobretudo

pela do Jornal do Commercio, provavelmente escripta por João Luzo, que me impressionara com o seguinte trecho:

“É um retalho da vida aldeã portugueza, apanhado em flagrante, na viva interpretação dos typos e dos costumes, mas tocado de uma sã poesia, que enternece e faz bem. A alma de Julio Diniz parece perpassar por aquelles tres actos, derramando o seu incomparavel amor á terra, deixando em cada creatura uma vibração apaixonada. Ouve-se aquillo como um sonho, e, ao fim, os senões que acaso nos produziram um momento de desagradavel impressão, desapparecem para que do conjuncto só fique essa geral harmonia, sincera e interessante, vasada nos moldes simples de uma historia de aldeia”.

Quero crer que, se eu realmente assistisse á representação da peça, não escreveria tão bem, mas diria isso mesmo.

Entretanto, o meu sonho continuou: acabado o espectaculo, vim para casa e escrevi o seguinte, sonhando sempre:

“É uma bella comedia, que não teria um unico defeito, se o auctor durante o 2º acto não interrompesse a acção, para introduzir na peça, com descantes e bailaricos, um elemento que agrada sempre á nossa platéa. Cunha e Costa, que leva a sua intransigencia de dramaturgo ao ponto de não lêr revistas, segundo já declarou aos seus leitores do Jornal do Brasil, não teve mão em si, e fez aquella concessão aos espectadores – são tantos! – que dão o cavaquinho pelo Tim Tim por Tim tim.

E bem avisado andou o collega, porque no Rio de Janeiro os dramaturgos intransigentes lá irão para onde o paguem... O padre João, o Manoel Artilheiro e a Ritinha, por maior e mais nobre que fosse o carinho de arte com que os tratasse Cunha e Costa, não bastariam nunca ao paladar violento do publico.

Aquelle padre João é um santo homem, que trocou a farda de capitão do exercito portuguez pela modesta batina de parocho, e foi pascer um rebanho de almas n’uma aldeia minhota, onde vive como Deus com os anjos, em companhia de João Artilheiro, seu ordenança no tempo em que era militar, e da Ritinha, ovelha tresmalhada que conseguio trazer ao aprisco.

Alheio a politicagem e aos mexericos do logarejo, o padre João gosa na sua parochia de uma paz impertubavel e bem merecida; mas eis que alli chega um missionario, que com as suas predicas fanatisa o povo e o indispõe contra o ex-capitão, ao ponto de insultal-o e tentar bater-lhe.

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Graças ás intrigas e calumnias que fervem contra o bom padre, elle é suspenso de ordens; mas o revoltado rebanho reconhece a injustiça que praticou, arrepende-se, e vai pedir perdão ao paracho.

Este, alma candida e simples, contenta-se com isso, mas o sobrinho, Eduardo de Albuquerque, moço liberal, intelligente e educado, com o cerebro perfeitamente guarnecido de idéas modernas (personagem que o auctor introduzio na peça para fallar em seu nome), açula o povo contra o missionario, que é salvo pelo parocho.

O amor que entra na peça apenas como incidente, é representado por Eduardo e Ritinha. Entende o moço que a idyllica rapariga resgatou sufficientemente a sua falta e deve chamar-se D. Rita de Albuquerque.

O elemento comico entra em dóse mais elevada, graças a varios typos, entre os quaes sobresae o de Manuel Artilheiro, em boa hora confiado ao talento do actor Grijó, que de dia para dia vae ganhando terreno na sympathia e no apreço do publico.

De resto, a peça está muito bem representada: Ferreira accrescentou com o padre João a enorme lista dos seus bons papeis, e Eugenio foi um Eduardo de Albuquerque impetuoso, apaixonado e persuasive. Este diabo ha de chegar aos sessenta annos sem se decidir a entrar na casa dos paes nobres: declarou guerra aos cabellos brancos e aos sentimentos tranquillos. É ainda o D. Juan Tenorio e o filho de Coralia!

Dias Braga, para dar o bom exemplo aos seus artistas, encarregou-se de um papel pequeno, que se tornou maior nas suas mãos, o do Antonio da Felismína pae de uma desventurada rapariga, que morre fanatisada pelo missionario.

Bragança. Eduardo Vieira e Rangel deram muito realce a tres personagens pittorescos, e Olympio Nogueira, Alfredo Silva, Raposo, Marzulo, Ernesto Silva e Ramos, encarregando-se de papelinhos do segundo plano, contribuiram para o exito da peça.

Esta é bem defendida pelas actrizes, sendo de justiça nomear, antes das outras, Elisa de Castro, maito á vontade n’uma madrasta daquellas de quem se póde dizer que o nome lhes basta. Entretanto, Maria de Oliveira e Maria da Piedade satisfizeram completamente nos papeis de Ritinha e Rosa do Atalho.

Accrescentemos que os scenarios são novos e bons, e o guarda-roupa apropriado e pittoresco.”

Hoje, pela manhã, lembrando-me exactamente do meu sonho, resolvi trançar as linhas que ahi ficam e que rectificarei no meu proximo folhetim, porque me fio em sonhos.

A. A.

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O Theatro, 11/12/1902

Assisti ante-hontem, na realidade e não em sonho, á representação da comedia Lobos na malhada, e venho, como prometti no meu folhetim passado, rectificar a noticia que fantasiei ha sete dias.

Fantasiando essa noticia, pretendia provar que qualquer jornalista, com uma ligeira impressão bebida na prosa dos seus collegas, poderá fingir que assistem á representação de uma peça de theatro, e fazer crer que, escrevendo, não cura por informações; mas o grande caso e que se elle consegue fingir, pois não ha n’esta vida cousa mais facil que o fingimento, arrisca-se a ter mais tarde remorsos da sua opinião, que no final de contas era a opinião dos outros.

Começarei por dizer que tenho na melhor conta o auctor de Lobos na malhada. Quando Cunha e Costa não fosse o elegante escriptor que é, nem tivesse o bello talento que tem, bastaria o interesse que revela por tudo quando é theatro para tornal-o particularmente sympathico aos meus olhos e estabelecer entre nós uma especie de confraternidade artistica.

N’esta nova peça, como em – Natal n’aldeia, Cunha e Costa apparece-nos com todo o seu encanto de prosador-poeta; o seu dialogo tem surpresas agradeveis tanto para o ouvido como para o espirito; diz as cousas como devem ser ditas, e é simples e correntio sem deixar de ser imaginoso e colorido. Se uma vez por outra apparece uma pontinha de declamação e rhetorica, é para desapparecer immediatamente.

Mas, francamente, ainda d’esta vez não ganhou Cunha e Costa esporas de dramaturgo. Na sua comedia ha imperdoaveis defeitos, e elle proprio, examinando-a agora á luz da ribalta, deve estar convencido d’esses defeitos.

O principal personagem dá logar a uns tantos reparos. Acho exquisito que, nos nossos dias, um capitão do exercito, bravo, aguerrido, ensanguentado nas campanhas da Africa, e ainda moço e de animo belliceso, dispa a farda, deponha a espada e tome ordens para fazer-se parocho de aldeia.

É para mim a cousa mais natural do mundo que esse ex-soldado, sadio e vigoroso, dado ao sport da caça, offereça ensejo à murmuração e aos mexericos da aldeia, vivendo, como vive, de portas a dentro, com uma linda rapariga, seduzida por outro homem e repellida pela propria familia.

A madrasta da moça, a tia Quiteria, quando a calumnia, dizendo a toda a aldeia que ella é amante do padre, encontra naturalmente todos os espiritos preparados Para acreditar n’isso, e não ha na platéia espectador que não diga aos seus botões: – Ahi está uma calumnia difficil de desfazer! Quero ver como o auctor descalça esta bota! E o espectador espera pela rehabilitação dos innocentes.

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Mas espera debalde; o auctor não descalça a bota. A calumniadora, sendo um personagem essencial, brilha pela ausencia no 3º acto. Entretanto, havia uma scena que se impunha: a tia Quiteria obrigára a outra devota da sua laia, a tia Anna, a mentir, confirmando todas as suas calumnias; – bastava que essa tia Anna se penitenciasse, desdizendo-se.

Essa palinodia tornaria mais logica a situação em que toda a população da aldeia, com o regedor á frente, vem pedir ao Sr. abbade que lhe perdôe.

A scena violenta em que o Antonio da Felismina traz o missionario seguro pelo gasnete e o arroja aos pés do padre, não é convenientemente preparada, porque no acto precedente aquelle Antonio nos apparece como um bobo alegre, que ninguem sabe ao que vem.

A rapariga seduzida é um personagem tratado com muita delicadeza, e talvez o melhor da peça; mas o autor não devia ter deixado na sombra os incidentes da seducção; devia ter feito com que o espectador, conhecendo a historia d’aquelle infortunio, fosse o primeiro a desculpar o erro, afim de admitir o casamento esboçado no final da peça.

Vejam o trabalho a que se entregou Dumas Filho para justificar Denise; a narração da sua falta é o ponto culminante e o mais pathetico do drama. Na peça do Recreio, a ligeira referencia do parocho é insufficiente. O espectador quer saber tudo; está no seu direito.

O 2º acto é um aleijão, o que o não impede de ser muito applaudido; mas o que n’elle encontro de mais grave não é a desarticulção das scenas, a constante interrupção do fio conductor da peça...

O espectador está prevenido, pelo acto anterior, que, desde a chegada de um missionario estrangeiro, a aldeia, d’antes alegre, se tornara triste que nem um cemiterio. Entretanto, que vemos? Uma pendenga rasgada desde o principio até o fim do acto! Toda a gente canta, dansa, dá umbigadas, rebola-se, – um verdadeiro tripodio! Não é possivel imaginar população mais alegre! – Que seria então antes da vinda do tal missionario?

O effeito dramatico seria outro se o auctor, n’esse segundo acto, nos dèsse o aspecto de uma aldeia fanatisada, em ninguem fizesse outra cousa senão rezar, chorar, e ciliar-se, o que, aliás, não sacrificaria o elemento comico, pois não ha nada mais divertido que a estupidez humana. Nem Cunha e Costa perderia o ensejo de exhibir a sua interessante galeria de typos da aldeia.

Sobre o desempenho tenho tambem algumas rectificações que fazer á noticia que ha sete dias escrevi sonhando.

Eugenio Magalhães representa sem convicção o papel de Eduardo de Albuquerque. Pode ser que ante-hontem estivesse indisposto.

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Maria de Oliveira merece especial menção no de Ritinha, a rapariga seduzida; foi uma revelação, que deve obrigar a empreza Dias Braga a puxal-a para o primeiro plano.

Maria da Piedade, no papel da Rôsa do Atalho, que lhe assenta como uma luva, commetteu a mesma falta que já lhe foi censurada no Natal na aldeia: servindo a mesa para a ceia do abbade, limpou os pratos à saia, sem se lembrar d’esta linda phrase da peça: O asseio é o luxo dos pobres.

Olympio Nogueira cantou com a graça de Xisto Bahia e dansou com a do Leonardo um pot-pourri de modinhas, lundús e sapateados brasileiros, que eu applaudiria com enthusiasmo, se não fosse um contrasenso a inclusão d’esse trololó nos Lobos na malhada.

É um actor maleavel o nosso Olympio Nogueira, que poderá fazer a melhor figura no theatro nacional, cuidando seriamente da sua declamação, que tem certas inflexões absurdas.

Nada mais tenho que rectificar.

***

Peço muitas desculpas ao meu amigo França por não ter ido hontem ao Recreio aprecial-o, como lhe havia promettido, no papel de Bermudes da Vespera de Reis; mas como já o applaudi no mesmo personagem, no Barão de Pituassú, ouso affirmar que, depois do desastroso desapparecimento de Xisto Bahia, é elle actualmente o unico Bermudes possivel.

***

No meu ultimo folhetim devia ter vindo, e não veio, uma piedosa referencia ao fallecimento de Assis Vieira, rapaz de talento, mas excessivamente modesto, auctor da revista o Sarilho, que fez grande successo no Recreio, e co-auctor de outras peças em que o seu nome jámais figurou.

Assis Vieira era o poeta da empreza Dias Braga: sempre que havia espectaculo commemorativo, obrigado á recitação de uma poesia, elle se encarregava de fazer os versos, e fazia-os com muita facilidade, graduando habilmente os effeitos.

Na vespera de recolher-se ao hospital de uma Ordem Terceira, para morrer d’alli a dous ou tres dias, escreveu os alexandrinos que foram recitados durante o espectaculo commemorativo da Restauração de Portugal. Foi o seu canto do cysne.

Era um bohemio sympathico e affectuoso, que, sem se queixar de nada nem de ninguem, comia o pão que o diabo amassou. Paz á sua alma.

A. A.

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O Theatro, 18/12/1902

Os leitores d’estes folhetins sabem com que empenho me tenho esforçado pro salvar o theatro S. Pedro de Alcantara, ao qual se prendem tantas e tão respeitaveis recordações historicas, sem fallar das tradições artisticas.

Empreguei a palavra salvar, porque outra cousa não me parece que seja evitar a transformação d’aquelle monumento nacional em casa particular, ou vel-o applicado a outro destino senão áquelle para o qual foi construido ha quasi um seculo.

Sempre foi minha opinião que o theatro S. Pedro devia pertencer á cidade do Rio de Janeiro, adquirido, custasse o que custasse, pela municipalidade. Mesmo quando esta não estivesse obrigada por lei a criar o Theatro Municipal, nenhum obstaculo se opporia a essa aquisição patriotica.

O Dr. Xavier da Silveira Junior, quando prefeito do Districto Federal, procurou e encontrou meio de incluir o velho theatro da praça Tiradentes entre os proprios municipaes: propoz zo governo da União trocal-o pelo trapiche Mauá.

Para mostrar aos leitores que essa proposta nada tinha de inexequivel, nem de inacceitavel, dir-lhes-hei que o trapiche Mauá é um proprio arrendado, em 1872, á Companhia Locomotora pela ex-illustrissima Camara Municipal, por contracto que terminará em 1906 e foi, ha muitos annos, transferido ao governo, ou antes, ao Ministerio da Fazenda, que fez do trapiche uma dependencia da alfandega.

Até 1889 pagou o Thesouro pontualmente á municipalidade as prestações do arrendamento, á razão de 12:000$000 annualmente, mas d’aquelle anno em diante o pagamento cessou até hoje. Entretanto, e apezar disso, o Ministerio da Fazenda sublocou o proprio, pelo mesmo preço, recebendo pontualmente os alugueis d’esta, que por sua vez soblocou o immovel a Theodor Wille & C., por 18:000$000.

Desde 1898 que com reiteradas reclamações pedia a Prefeitura o pagamento dos alugueis vencidos, que já montam a mais de 150:000$000, e, não tendo o governo attendido a essas reclamações, foi então que Dr. Xavier da Silveira teve a boa idéa de propor ao ministro da fazenda a troca do trapiche e da somma devida á municipalidade pelo theatro S. Pedro, que o governo adquiriria por encontro de contas do Banco da Republica.

No seu officio declarou o prefeito que desejava o theatro (o theatro só, sem os edificios contiguos) para estabelecer o Theatro Municipal, e pedia para esse intuito a coadjuvação do ministro, com a qual suppunha poder contar.

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O papel correu os respectivos tramites no Thesouro, bem informado aqui, mal informado acolá, e em 14 de novembro o ministro Dr. Sabino Barroso deu o despacho, afim de ser communicado á Prefeitura, de que “o Ministerio não podia annuir á proposta, por não ter destino que dar ao trapiche”. Essa communicação foi objecto de um aviso assignado, ha dias, pelo Dr. Leopoldo de Bulhões, actual ministro.

Espero todavia, que S.Ex. reconsiderará o despacho do seu antecessor. Não é preciso que o governo dê outro destino ao trapiche Mauá senão o de ter alugado, como até agora, por 12:000$000 annuaes, ou de aluagal-o mais caro, conforme os termos do contracto feito com a União dos Trapiches.

A municipalidade propõe a troca de um immovel, que rende 18:000$000, por outro que não rende ou pelo menos não tem rendido n’estes ultimos annos nem a terça parte d’essa quantia, pois toda a gente sabe que se tornaram rarissimos os espectaculos no S. Pedro.

O theatro pertence ao Banco, é verdade, mas com um pouco de boa vontade por parte do ministro e dos directores d’aquelle estabelecimento, que enchergarão na troca alguma cousa mais interessante e mais sympathica do que um simples negocio, a transacção se fará com muita facilidade.

O Banco nenhum motivo terá para se oppôr á venda de um theatro que para elle não tem sido mais que um trambolho caro, e o governo nenhum sacrificio fará, porque está na consciencia de todos que, em dinheiro de contado, o Banco jámais lhe pagará tudo quanto lhe deve.

Accresce que a municipalidade provará, quando quizer, que é municipal o terreno doado por D. João VI ao seu compadre e cabelleireiro Fernando de Almeida, exclusivamente para a construcção do theatro. Nem el-rei era proprietario do campo da Lampadosa, nem ao immovel póde ser dado, em boa justiça, outro destino que não conste do decreto de doação.

Depende do Dr. Leopoldo de Bulhões evitar que o theatro de João Caetano, o unico que possuimos, seja, para vergonha nossa, transformado em qualquer cousa que não seja theatro.

Com algumas pequenas modificações, o S. Pedro se adaptará facilmente as exigencias do Theatro Municipal. A sua acquisição será o primeiro passo dado para a realisação de um sonho de civilisação e de arte que não sacrificará ninguem, – nem governo, nem municipalidade, nem banco.

O Dr. Leopoldo de Bulhões tem bastante talento para não se oppôr a uma simples troca de edificios, que tanto interessa á civilisação intelectual do nosso paiz.

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A velha Clelia, notavel actriz brasileira, unica no seu genero, vai fazer beneficio segunda-feira proxima, no Recreio, com uma peça do repertorio Dias Braga.

Não conheço e creio mesmo que não está definitivamente assentado todo o programma do espectaculo; pena será que não figure n’elle uma comedia em que a beneficiada appareça para satisfação dos seus amigos e admiradores.

A pobre Clelia, que merecia uma aposentação tranquilla e feliz, soffre, como soffre, aliás, a maioria dos nossos artistas dramaticos, os effeitos de uma crise que não existiria se no theatro tivessem todos a consciencia e o valor de que deu ella as mais brilhantes provas durante o seu longo tirocinio artistico.

Concorrer a esse espectaculo é proteger uma septuagenaria illustre, digna interprete de Martins Penna, Alencar, Macedo, Quintino Bocayuva, Pinheiro Guimarães e França Junior; é, portanto, quasi um dever a que nenhum dos meus leitores se deve furtar.

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Recebi um exemplar d’O Messias, drama sacro em 1 prologo, 4 actos e 18 quadros, do Sr. Cordeiro de Oliveira.

É uma das peças mais singulares que ainda li: tem scenas de grande effeito, visivelmente inventadas por alguem que conhece o theatro por dentro e por fora e possue tal ou qual erudição das sagradas escripturas; entretanto, ao dialogo falta absolutamente grammatica e por vezes bom senso.

N’um bilhete amavel, que me escreveu, disse-me o auctor: “Tenho a honra de offerecer a V. um exemplar do meu drama O Messias, que por ser um dos meus primeiros trabalhos theatraes, estou certo que V. o acceitará.” Pois bem, – todo o drama está escripto com essa mesma syntaxe.

O Sr. Cordeiro d’Oliveira deve cuidar seriamente de aperfeiçoar a sua lingua.

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Durante as ultimas noites apenas um theatro funccionou: o Recreio...A comedia Lobos na malhada vai fazendo a sua obrigação. Para a proxima

semana está annunciada a récita do auctor, que fornecerá, certamente, a Cunha e Costa mais uma prova da estima e consideração em que o tem a nossa platéa.

A. A.

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O Theatro, 25/12/1902

Ha muitas noites funcciona um unico theatro, o Recreio Dramatico, e sem esse mesmo vamos ficar, porque, segundo me consta, a comanhia Dias Braga parte para S. Paulo a 6 de janeiro proximo.

É verdade que no dia de Anno Bom será inaugurado o S. José por uma nova companhia organisada pelos actores Domingos Braga e Veiga, da qual fazem parte alguns artistas que o nosso publico habituou aos seus applausos.

O theatro S. José, meus senhores, é o ex-Moulin-Rouge, que tem tido mais nomes que o conde de Monte Christo.

Principiou sendo Principe Imperial; chamou-se depois, por pouco tempo, em 1887, Recreio Fluminense: em seguida, o emprezario Guilherme da Silveira intitulou o das Variedades, até que o Paschoal Segreto o transformou em Moulin Rouge. Agora é S. José e folgo que deixasse de ser café-cantante.

De todos aquelles nomes o mais infeliz é o actual. Apezar de ter sido cousa muito commum na Italia, em Portugal e no Brasil, sempre me pareceu disparate dos nomes de santos a quasquer estabelicimentos que não fossem egrejas e hospitaes. A que proposito vem o nome de São josé substituir o de Moulin-Rouge? Que póde haver de commum entre a religião e o theatro?

Já tivemos o theatro S. Januario o de S. Francisco e o de Santa Isabel, assim chamados por engrossamento ás princesas D. Januaria, D. Francisca e D. Isabel. Foram todos tres demolidos. O primeiro chamou-se tambem Atheneu, o segundo Gymuasio Dramatico e o terceiro Alcazar, antes e depois de ser Santa Isabel.

Tivemos tambem o theatro S.Luiz, construido por Luiz Candido Furtado Coelho que, apezar de não ser devoto, quiz dar ao estabelicimento o nome do seu patrono.

Ainda temos o Sant’Anna, assim denominado porque a esposa do cavalheiro que o construio se chamava D. Anna e temos o velho S. Pedro de Alcantara, que tinha sido de s. João por engrossamento feito a D. João VI. Se o nome de S. Pedro de Alcantara subsistio depois da abdicação do primeiro imperador, foi porque o segundo tinha o mesmo nome do pae.

Agora temos o S. José. Pois não assentava tão bem a esse theatro o seu antigo rotulo de Variedades?

O publico, esse não faz questão de nomes: irá ao S. José com o mesmo prazer com que vai ao Apollo; tanto lhe faz que o patrono seja santo da folhinha ou deus mythologico, comtanto que as peças e os artistas o attraiam.

Convencido d’isso, o pessoal do S. José está ensaiando cuidadosamente a Virgem negra, bonito drama de Eugene Nus, traduzido por Azeredo Coutinho.

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Por iniciativa do maestro Atilio Capitani, congraçaram-se (mirabile dictu!) os nossos principaes professores de orchestra, e resolveram dar uma serie de matinées musicaes no S. Pedro de Alcantara. O primeiro d’esses concertos foi domingo passado. A concurrencia infelizmente, não era numerosa, mas o programma, muito bem organisado, teve uma execução que satisfez aos mais exigentes, e não faltaram applausos.

Outra cousa não era de esperar de artista que, na sua maioria, fizeram parte da melhor orchestra que ainda se ouvio no Rio de Janeiro. Refiro-me á orchestra de Marino Mancinelle.

Capitani, que teve a feliz idéa d’estes concertos, vai convidar Alberto Nepomuceno e Francisco Braga para figurarem n’elles, regendo algumas das suas peças symphonicas. É de esperar que os dous eminentes artistas não se recusem a animar uma tentativa de que tantos beneficios podem resultar.

A pequena concurrencia do primeiro concerto não deve ser motivo que esmoreça a orchestra. Em geral os nossos dilettantes são desconfiados, e n’estas occasiões esperam sempre pelas noticias.

Verão que a segunda matinée será mais animadora.

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Annuncia-se para amanhã, no Recreio, o beneficio do actor Ferreira de Souza, cujo elogio está constantemente nos labios de quantos se interessam ainda pelo nosso theatro.

Para não dar a este folhetim as proporções de uma biographia, não porei aqui os titulos dos numerosos dramas e comedias com que Ferreira de Souza tem conquistado logar tão proeminente no palco brasileiro. Demais, estou certo de que os meus leitores acompanharam toda a série dos seus triumphos, desde a Causa celebre até os Lobos na malhada.

Para o seu espectaculo escolheu elle a reprise do Defunto, primorosa comedia em 1 acto, em verso, de Felinto de Almeida, tantas vezes applaudida n’aquelle mesmo theatro, e a 1ª representação do Retrato a oleo, comedia em 3 actos, escripta pelo auctor d’estas linhas.

A minha nova peça é uma simples exposição de costumes cariocas, doloroso quadro de familia que procurei pintar, não com as côres carregadas do drama, mas com as tintas risonhas da comedia.

Estou satisfeito, não porque a producção me sahisse digna de uma platéa illustrada, mas por te encontrado em Dias Braga um enscenador de talento, e muito boa vontade nos principaes interpretes.

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Graças as minhas férias burocraticas, pude assistir álguns ensaios, e venho, com toda a segurança, recommendar ao publico o trabalho de Lucilia Peres, Helena Cavalier, Ferreira de Souza, Grijó, João Barbosa, Olympio Nogueira e Bragança.

Mencionei apenas os principaes interpretes, mas a peça é bem defenida tambem pelos dignos artistas que se encarregaram dos papeis secundarios, inclisive a pequenina Odette, filha do auctor Louro, encantadora criança que promette muito.

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Sendo este o meu ultimo folhetim do anno, não quero rematal-o sem desejar aos leitores boas sahidas e melhores entradas.

Quinta-feira proxima publicarei a desoladora estatistica do nosso theatro em 1902, que foi o anno da Réjane e da Darclée. Faço votos para que o 1903 seja mais propicio á arte... nacional.

A. A.