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ESTUDOS ESTRATÉGICOS Dossiê O comércio internacional e uma abordagem da questão nacional e da transição curador: Elias Jabbour Comissão Auxiliar da Presidência Nacional do PCdoB Novembro/2011

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Elias Jabbour

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ESTUDOS ESTRATÉGICOS

Dossiê

O comércio internacional e uma abordagem da questão

nacional e da transição

curador: Elias JabbourComissão Auxiliar da Presidência

Nacional do PCdoB

Novembro/2011

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Estudos Estratégicos doPartido Comunista do Brasil

Departamento Nacional de Quadrosda Secretaria Nacional de Organização

EditoresEditor responsável: Walter Sorrentino

Editores: Bernardo Joffily, Fabiana Costa, José Carlos Ruy e Nereide Saviani.

Corpo editorialAugusto Buonicore

Dilermando ToniElias JabbourFabio PalacioFelipe MaiaOlival Freire

Quartim de MoraesRenildo Souza

Ronaldo CarmonaSergio Barroso

Secretaria Eliana Ada Gasparini

Serviços EditoriaisCleber Rodrigues

ApoioFundação Mauricio Grabois

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Dossiê I.2 - O comércio internacional e uma abordagem da questão nacional e da transição 3

APrESENtAçãO

Estudos Estratégicos do PCdoBÉ instrumento do Departamento Nacional de Quadros João Amazonas, da Secretaria Nacional de

Organização, um produto com formato eletrônico e regularidade em fluxo, com o objetivo maior de orga-nizar e compartilhar conteúdos relevantes que subsidiam o estudo, reflexão e elaboração dos quadros de atuação nacional, em primeiro lugar os integrantes do atual Comitê Central.

Lidará com temas políticos, econômicos, sociais, diplomáticos, militares, científicos, tecnológicos, teóricos, filosóficos, culturais, éticos, etc. ademais dos temas teóricos socialistas. Fá-lo-á mediante indi-cação e disponibilização de textos, ensaios, livros e outros documentos destacados para a formulação e elaboração teórica, política e ideológica do PCdoB, socializando-os.

Sua necessidade está ligada às formulações da política de quadros contemporânea, particularmente quanto ao foco de formar conscientemente nova geração dirigente nacional para as próximas décadas. Fazem-se grandes as exigências de renovação da teoria avançada, em ligação com o quadro estratégico de forças em confronto no Brasil e no mundo na perspectiva de luta pelo Programa Socialista do PCdoB e, ainda, de fortalecimento de convicções e compromissos partidistas programáticos, elevando a confiança ideológica na luta transformadora. Como concluímos enfaticamente no 12º Congresso, isso deve ser en-frentado, sobretudo com os quadros partidários.

Deverá propiciar a todos, formação marxista e leninista viva e científica, comprometida ideologica-mente, sem dogmatismo, em ligação profunda com os problemas da época e os desafios programáticos brasileiros, é certamente a maior das responsabilidades dos integrantes do Comitê Central no sentido de autoformação e o maior desafio para o futuro do PCdoB. É a condição para cumprir de fato o alvo da política de quadros, a de forjar nova geração dirigente do partido, com ampla bagagem marxista, para os próximos 10-15 anos.

Por outro lado, visa-se a permitir superar a grande dispersão e cacofonia do regime de (in) forma-ção de hoje, que combina às vezes supersaturação com falta de atenção qualificada ao que realmente é importante; ou seja, a falta de foco, que torna o esforço abstrato e disperso, ou o excesso de foco, que o torna imediatista. O partido político se estrutura para a política, a ação política, e não propriamente para a elaboração de conhecimento. Mas a teoria, o conhecimento, a consciência política avançada, é basilar à luta dos comunistas e é cada vez mais fundamento indispensável para uma política programática. Donde o esforço pessoal em alcançar e produzir conhecimento, que não advém diretamente da informação, mas de elaboração individual, a partir da informação qualificada. A iniciativa proposta serve a esses propósitos.

Walter SorrentinoPelo Conselho Editorial

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Plano EditorialEstudos Estratégicos

O Plano editorial é composto de 3 séries:1. O novo projeto nacional de desenvolvimento – temas programáticos2. Formação histórica do Brasil3. Temas teóricos

Os dossiês propostos em cada série serão publicados entre 2011 e 2013

I. O novo projeto nacional de desenvolvimento – temas programáticosI.1. Política externa na perspectiva do desenvolvimento soberanoI.2. O comércio internacional e uma abordagem da questão nacional e da transiçãoI.3. A questão ambiental e a biodiversidadeI.4. Mídia, democratização, conteúdo nacionalI.5. A questão energéticaI.6. A Cultura, identidade e projeto nacionalI.7. A questão agrária e agrícolaI.8. A Questão urbanaI.9. A AmazôniaI.10. Questão indígena no BrasilI.11. A defesa nacionalI.12. Política nacional de Ciência & Tecnologia & InovaçãoI.13. A questão tributária e fiscalI.14. Estado indutor do desenvolvimentoI.15. Política macroeconômica – juros e câmbioI.16. Política macroeconômica – inflação e vulnerabilidade externaI.17. Defesa da economia nacionalI.18. Política industrial, Industrialização/desindustrialização

II. A Formação histórica do BrasilII.1. Povo uno – a formação do povo brasileiroII.2. Formação histórica da nação e suas contradiçõesII.3. Formação e situação atual das classes sociais no BrasilII.4. Formação do Estado brasileiro

III. temas teóricosSub Série A questão nacional

III.1. A Questão nacionalIII.2. A questão democráticaIII.3. A questão socialIII.4. O Papel do EstadoIII.5. Desenvolvimento, globalização neoliberal e dependência imperialista

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Sub Série Capitalismo contemporâneo

III.6. Características e tendências do capitalismo contemporâneoIII.7. As tendências geopolíticas e econômicas do mundoIII.8. A crise capitalista e perspectivas do “pós-crise”III.9. Imperialismo contemporâneo, neoliberalismo, globalização

Sub Série Ciências

III.10. Fronteiras da ciência, implicações produtivas e filosóficas

Sub Série Socialismo e MarxismoIII.11. O conceito de transição capitalismo-socialismoIII.12. O papel do mercado no socialismoIII.13. A transição na experiência socialista na ChinaIII.14. A transição na experiência socialista no VietnãIII.15. A transição na experiência socialista em CubaIII.16. O conceito do trabalho, o proletariado modernoIII.17. O Partido enquanto agente transformadorIII.18. A questão de gênero: uma perspectiva atualizadoraIII.19. O pensamento de LêninIII.20. A obra de GramsciIII.21. Marxismo Latino-americanoIII.22. Marxismo e PCdoB

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ÍNDICE

Biografia do CuradorIntroduçãoApresentação dos textosObservações históricas sobre o capital comercial (Karl Marx)Sobre o Monopólio do Comércio Externo (Vladimir Lênin)Conferencia Del PC (b) R de La Provincia de Moscú (Vladimir Lênin)A Polônia e o Ciclo Longo (Ignacio Rangel)Brasil e China nos Fluxos Globais de Investimento Direto Externo (Luciana Acioly da Silva)A Verdade Cambial (Ignacio Rangel)A China e a Resistência Cambial (Luiz Gonzaga Belluzzo)A Evolução e as Transformações Estruturais do Comércio Exterior Chinês (Emilio Chernavsky e Ro-

drigo Ferreira Leão)Nos limites da Chimérica (Luiz Gonzaga Belluzzo) O G-20 e o Brasil: A “Guerra de Capitais” e a Geopolítica por Trás da “Guerra Cambial” (Lecio Morais)A Reorganização das Empresas Transnacionais e sua Influência Sobre o Comércio Internacional (Ce-

lio Hiratuka)O Brasil e a Rodada Doha (Roberto Azevedo)A inserção do Brasil em um mundo fragmentado: uma análise da estrutura de comércio exterior

brasileiro (Marta dos Reis Castilho)

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BIOgrAFIA DO CurADOr

Elias Marco Khalil Jabbour, 35 anos, é geógrafo. Doutor e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP. Militante do PCdoB desde 1991. É membro do Conselho Editorial da Revista Princípios e da Comissão Auxiliar da Presidência Nacional do PCdoB. Desde sua iniciação científica tem-se focado em pesquisas concernentes à questão da transição e da construção do socialismo em formações sociais periféricas, notadamente o caso chinês. “Destaque CNPq” nos anos de 1995, 1996, 1997 e 2002, 2003, semifinalista do Troféu Juca Pato de Intelectual do Ano em 2006, é autor de mais de uma centena de artigos sobre o tema. Escreveu dois livros, China: infra-estruturas e crescimento econômico (Anita Garibaldi, 2006 – 256 p.) e China: desen-volvimento e socialismo de mercado (Depto. de Geociências do CFH-UFSC,

2006, 86 p.). Está em vias de publicação de sua tese de doutorado – numa coedição entre a Editora Anita Garibaldi e a Editora da Universidade Estadual da Paraíba – sob o título, China hoje: projeto nacional, de-senvolvimento e socialismo de mercado.

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INtrODuçãO

“Com a manufatura, as diferentes nações entraram em uma relação de concorrência, em luta comercial, que foi levada a cabo através de guerras, impostos alfandegários de proteção e proibições das mais variadas, enquanto no passado as nações, quando ainda estavam em contato umas com as outras, mantinham entre si um intercâmbio comercial inofensivo. A partir de então o comércio passou a adquirir conotação política.”

Karl Marx e Friedrich Engels (A Ideologia Alemã)

Numa passagem interessante de seu texto Sobre o significado do ouro agora e depois da vitória completa do socialismo, Lênin lança a seguinte questão:

“Isto parece estranho. Comércio e comunismo? O resultado disto pode ser algo muito incoerente, absurdo e distinto. Porém se refletirmos do ponto de vista econômico, um não se distingue mais do outro que o próprio comunismo se diferencia da pequena agri-cultura camponesa, patriarcal.”

Evidente que Lênin estava raciocinando em formas de reanimar uma divisão social do trabalho que fora completamente inviabilizada com 1ª Guerra Mundial e a Guerra Civil num país de grandes dimensões territoriais e onde conviviam – em unidade e luta – diversas formas produção. Desde a pequena produção mercantil até o capital industrial instalado no início do século XX. E desde seus primeiros estudos sobre a questão camponesa na Rússia, datados ainda da última década do século XIX, que Lênin sabia do papel mediador do comércio e da economia de mercado às diferentes formações econômico-sociais presentes, conforme já dito, em unidade e luta. Determinados problemas postos pela história deveriam ser solucio-nados no campo da política e partindo de uma visão de processo histórico-econômico.

Era esse o apelo de Lênin para uma justa visão da problemática da transição. O que continua muito atual em tempos de hegemonia historicista e onde se tornou moda trabalhar a categoria de formação social fora do prisma do processo de acumulação, redundando em pobres análises sobre relações de pro-dução “historicamente” dadas, em completo desprezo à categoria de forças produtivas. Aliás, eis um dos dramas sofridos pelo marxismo no Brasil e na América Latina.

As incompreensões acerca do papel do comércio interno e externo têm raiz nesta disjuntiva de negação do econômico em detrimento do político e do social. Porém, chegou-se ao ponto em que a reprodução de um pensamento programático, estratégico e em consonância com um Brasil e um mundo em rápidas transformações demanda uma visão um tanto quanto mais sofisticada do processo histórico do qual somos contemporâneos. A justa retomada da temática desenvolvimentista deve remeter direta-mente ao assunto comércio exterior. A transformação do comércio exterior em variável central é fruto de todo um processo histórico que tem dois momentos-chave: a sedimentação da acumulação primitiva, algo que se tornou possível pela expansão marítima e comercial européia e as próprias revoluções euro-péias da década de 1840. O processo de geração geométrica de acumulação primitiva marca o rompimen-to com uma época em que o comércio intrafeudos era uma variável ínfima, para outro em que os Estados Nacionais europeus – dada a grande importância do comércio – passaram a ser agentes (politicamente) manipuladores desta variável. O colonialismo e o imperialismo são expressões concretas deste processo.

Logo, não é de somenos o fato de a chamada Questão Nacional – desde o início do processo de descolonização pós 2ª Guerra Mundial – se confundir com o direito tanto ao desenvolvimento quanto ao planejamento. Segundo, as leis econômicas do desenvolvimento social atestam que este mesmo desen-volvimento só é possível sob os marcos da reversão das tendências a primarização econômica, intrínsecas à lei do desenvolvimento desigual e combinado. Em curtas palavras, esta lei incide diretamente na “eterni-zação” da exportação de matérias-primas e importação de manufaturas por parte dos países periféricos. Daí se poder falar em face interna e face externa da Questão Nacional, o que nos remete – necessaria-mente – à velha insígnia da 3ª Internacional do caráter “antiimperialista” e “antifeudal” da revolução na periferia do sistema. Num sentido mais estratégico, relacionando a Questão Nacional com a abertura de

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um relevo de transição ao socialismo, é irresistível supor que mudanças qualitativas nas relações de pro-dução com o exterior é um passo essencial neste processo todo.

Não é a toa que as atuais transformações que se assiste no âmbito do comércio internacional ter como centro dois países (China e Índia) que passaram por processos semelhantes de independência, no mesmo período histórico e que às suas maneiras encontraram soluções nacionais às suas questões na-cionais. Apreender esse caractere é essencial para compreender os traços de nossa contemporaneidade. Ouso relacionar neste rol o interessantíssimo caso da Coreia do Sul.

Sobre o caso brasileiro, concretamente. Não são poucos cientistas sociais que trabalharam efusiva-mente esta questão do comércio exterior em nossa história, cabendo destaque, sobretudo, a Caio Prado Jr. e Ignacio Rangel. Não é o caso de comparar um ao outro, mas de perceber o papel do comércio ex-terior em nossa formação e desenvolvimento social. Neste caso, perceber que nosso desenvolvimento não é algo que se dá autonomamente e sim em concordância com o próprio desenvolvimento do centro do sistema não é nenhuma novidade. O que pode parecer uma novidade é o fato de o desenvolvimento brasileiro ser produto da síntese entre as leis econômicas internas ao nosso território em pleno contato (numa relação de unidade e luta) com as leis econômicas do já citado centro do sistema.

Neste sentido, é necessário salientar que os chamados saltos civilizacionais a quem o Programa Socialista faz menção são processos de rompimento com uma lógica externa em prol da indigenização de determinados mecanismos de produção e circulação. Assim fica clara a percepção que a internalização do capital comercial sediado em Portugal nos deu a independência em 1822, da mesma forma que a Revolu-ção de 1930 é o marco de nosso rompimento com o capital industrial inglês, internalizando a indústria. A presente revolução antiimperialista passa tanto pela instrumentalização de um capital financeiro nacional capaz de suportar nosso esforço de industrialização, quanto pela planificação dos atuais esquemas de comércio internacional. A luta por uma taxa de câmbio ajustada aos interesses nacionais, encetando uma reversão nos atuais esquemas da divisão internacional do trabalho (leia-se comércio internacional) é algo de caráter estratégico para quem pensa o país para os próximos dez, vinte, trinta anos. É neste espaço de tempo em que as linhas gerais de nosso Programa Socialista deverão estar em vias de alguma realização. É esta a razão ao apelo estratégico de como se deparar e analisar alguns problemas capitais de nosso país, dentre eles as nossas relações econômicas com o mundo.

Antes de proceder a uma apresentação mais focada nos artigos escolhidos para este dossiê, gostaria de falar algo acerca da premência da planificação do comércio exterior e do papel das empresas. A falta de indicativos – em nosso Programa Socialista – acerca do planejamento e seu papel na edificação de uma sociedade de nível superior constitui-se na falha mais gritante de nosso Programa Socialista. O problema não é novo, pois desde Marx, passando por Liszt, Lênin e desembocando nos planos qüinqüenais soviéti-cos o planejamento (ao lado da propriedade social dos meios estratégicos de produção) é uma das molas centrais da diferenciação entre capitalismo e socialismo e entre anarquia da produção x construção cons-ciente da sociedade. O planejamento não está no rol dos chamados temas de fronteira, dada sua quase secularidade. Mas, dialeticamente, precisa ser tratado como tal, pois a crise financeira em andamento serviu para – entre outras coisas – demonstrar que o planejamento econômico (como instrumento de Estado para o direcionamento do próprio mercado) ainda é o grande paradigma à governança de países de desenvolvimento tardio.

Neste ínterim valem, ainda, alguma considerações sobre Karl Marx e o comércio (interior e exte-rior). As definições e opiniões de Marx devem ser remetidas necessariamente ao tempo histórico em que ele viveu. Para ele o desenvolvimento do capitalismo, e consequentemente da classe operária, a nível mundial era uma tarefa histórica a ser cumprida pela “era do capital” e pré-condição ao surgimento – de condições objetivas e subjetivas – do socialismo. O comércio neste sentido, em Marx, tinha o poder de solvente de relações pré-capitalistas de produção, seja no âmbito de uma formação social específica, seja em âmbito mundial. O desenvolvimento do comércio e da produção voltada ao mercado carrega consigo a cosmopolitanização e o desenvolvimento do dinheiro sob o formato de “dinheiro mundial”. Seu tempo histórico exigia de um pensador de sua estatura a defesa do livre-câmbio a nível mundial e mesmo da condenação do protecionismo (“fabricação artificial de fabricantes”). As contradições do capitalismo

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só seriam possíveis de superação diante na medida em que o capitalismo se desenvolvesse, no centro do sistema, até o seu “limite”. O comércio é o mediador das relações entre classes e países. Esse é “x”.

Pode parecer estranho e contraditório a defesa que Marx faz do livre comércio e a defesa que Lênin fazia do monopólio do comércio exterior e mesma da “fabricação artificial de fabricantes” a nível nacio-nal. Para tal é preciso compreender que o monopólio empresarial sob o capitalismo não é sinônimo, au-tomaticamente, de imperialismo e de acirramente da luta-de-classes em âmbito mundial. O surgimento do imperialismo é a fronteira que define a unidade e a ruptura entre as visões de Marx e Lênin acerca do comércio internacional. Outras categorias entram no escopo da análise a partir de fatos políticos, entre eles o não sucesso da transição socialista no núcleo duro do centro do sistema capitalista internacional e o sucesso da revolução em um país semifeudal como a Rússia.

O surgimento do imperialismo sob a rubrica dos bancos sustentando a expansão dos monopólios/oligopólios como a própria essência do moderno Capitalismo de Estado impõe – aos países periféricos e/ou semiperiféricos – a extensão e a aplicação do planejamento ao comércio exterior. Passar ao largo desta tendência objetiva incorre num grave erro de compreensão do processo com conseqüências graves ao debate de ideias propriamente dito e a prática política em seu caráter estratégico*. No concreto, o que significa apreender o processo? Significa algumas coisas, sendo que a principal é perceber que o centro de gravidade do capitalismo (leia-se Capitalismo de Estado) é a “grande empresa” sustentada pelo “grande banco”†. Segundo, como demonstram alguns textos do dossiê é a de que toda crise é uma crise do comér-cio exterior e que toda crise é seguida por um verdadeiro “salve-se quem puder” de fusões e aquisições entre empresas, processo este responsável pela movimentação de trilhões de dólares e que na ponta do processo demonstra que as “grandes estratégias nacionais de desenvolvimento” têm seu centro de gravi-dade justamente na ação de imensos monopólios fora de seu território de origem; algo mais planificado do que imaginamos.

Da comuna primitiva à pequena produção mercantil; da transformação da pequena produção mer-cantil em indústria ao monopólio e oligopólio. Trata-se de um processo histórico que em paralelo levou a uma quase unidade mercantil internacional, desigual em todos os sentidos, mas que também – como tudo em matéria de desenvolvimento social – é regido por leis.

O pleno conhecimento destas leis é um dos grandes desafios teóricos a serem enfrentados por nosso movimento. Definitivamente, a compreensão da transição capitalismo – socialismo e suas nuances brasileiras para pela absorção deste fenômeno nada novo. Capaz de industrializar e desindustrializar. Re-troceder e avançar distintas formações sociais.

* Vide a descompostura da posição brasileira nesta “guerra cambial”: súplicas para que os todos os países do mundo adotem o modelo de “câmbio flutuante”. Piada de bom gosto, mas de péssimo tom.

† A China com a formação recente de 149 conglomerados industriais sustentados por cerca de 15 bancos de desenvolvimento de-monstra, empiricamente, que assim como capitalismo, no socialismo (por muito tempo) o centro de gravidade do sistema continuará a ser a fusão da “grande indústria” com o “grande banco”. Aliás, a própria sobrevivência de projetos nacionais na periferia e semiperiferia do capitalismo depende desta simbiose entre banco e empresa.

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APrESENtAçãO DOS tEXtOS

Confesso não ter sido fácil selecionar os textos que integram este dossiê. Mas ao menos foi desa-fiante. Seria muito tranqüilo se juntasse alguns textos de forte conteúdo teórico, com indicações muito abstratas sobre o fenômeno a que me propus enfrentar. O problema é que seria um trabalho por demais diletante, sem considerar as grandes diferenças de compreensão – em nosso meio – tanto do marxismo, quanto da Economia Política; aliás, a Economia Política e suas leis tornaram-se no século XX o grande calcanhar de Aquiles de nosso campo, hegemonizado por um marxismo europeu que se contrapôs a produção teórica soviética, agitou a bandeira do “antieconomicismo” e se afundou na compreensão de um “jovem Marx” distante de problemas concretos, sendo o principal deles a questão do reconhecimento do DNA das sociedade a partir da profunda análise da produção e, consequentemente, do processo de acumulação.

Essa é uma realidade (triste) que se aprofunda com as influências do contrarrevolução neoliberal e na substituição – na base da teoria do conhecimento – da objetividade histórica pelo relativismo neopo-sitivista. O movimento contrário é tortuoso e demanda paciência e visão de processo histórico. Estamos tentando e a alvíssara é ter o Partido a frente deste movimento.

Diante disto, o método para a seleção de textos teve de passar pela conjugação de longos artigos teóricos e empíricos com artigos curtos, fáceis de ler e apreender. Os temas variaram de observações históricas coletadas de Lênin à problemática cambial; das empresas ao exemplo de um modelo bem suce-dido de inserção no comércio internacional (China).

Evidente que como primeira experiência deste tipo, este pequeno compêndio tem seus limites. É apenas o primeiro passo para aprofundarmos um debate que poderá ter conseqüências muito interes-santes mais adiante.

***Texto 1. Considerações históricas sobre o capital comercial (Karl Marx)Aos iniciantes o mais importante, em matéria de materialismo histórico e dialético, está na apre-

ensão do aspecto histórico dos fenômenos em plena concomitância com o desenvolvimento da base material da sociedade, seja ela capitalista ou socialista. Outra aspecto é o da centralidade adquirida pelas contradições internas na presidência dos fenômenos. Neste clássico texto do livro 3 de O Capital, Marx analisa o aspecto norteador e desencadeador de fenômenos sociais surgidos tanto no processo de pa-dronização produzida internamente com o advento do capitalismo, quanto dos efeitos internacionais da irupção do “mercado internacional”. O comércio é um fator mediador de determinados processos de transformação assistidos nos últimos dois séculos. E é isso que temos de apreender no momento, daí a necessidade histórica de ser objeto de monopólio e planificação. As considerações históricas sobre o capi-tal comercial ainda estão em pleno desenvolvimento e seu domínio é central para nortear uma estratégia nacional. O exemplo dos chineses e coreanos estão aí para ilustrar isso.

Texto 2. Sobre o Monopólio do Comércio Externo (Vladimir Lênin)Primeiro texto da série que se inicia com dois artigos de Lênin. Cada um com sua importância e

valor mais históricos do que simplesmente teóricos e práticos. Devem ser lidos sob o prisma da tomada de consciência de Lênin, em primeiro lugar, da centralidade da reativação do comércio interno como par-te essencial da mediação tanto de formações sócio-econômicos díspares (pequena produção mercantil, capitalismo, capitalismo de Estado, socialismo) quanto da otimização da economia de mercado como o metro do processo de desenvolvimento. Em Sobre o Monopólio do Comércio Externo o leitor poderá ter a primeira noção da importância do monopólio estatal sobre este ferramental a partir das conclusões de Lênin sobre o acúmulo de ouro e sua importância. Tratam-se de duas cartas escritas para Stálin com um valor histórico inestimável. Numa viragem histórica, é muito válida a comparação entre este acúmulo de ouro e a centralidade (e centralização do estoque de divisas) do acúmulo de divisas estrangeiras com ser-ventia tanto à proteção a crises externas, quanto a utilização de taxa de juros interna atraente ao crédito.

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Texto 3. Conferencia Del PC (b) r de La Provincia de Moscú (Vladimir Lênin)Trata-se da intervenção mais marcante de Lênin acerca da gradual centralidade que o comércio

exterior passou a tomar diante da possibilidade real de derrota dos brancos na guerra civil. A ampla visão do revolucionário russo após três do fim da 1ª Guerra Mundial e de um mundo onde o comércio com a Rússia era imprescindível, por conta de suas riquezas naturais e das amplas possibilidades de acumulação para empresas estrangeiras amplamente exploradas pela Rússia soviética por meio de grandes acordos comerciais com países do Ocidente, notadamente a Inglaterra. Inspirado em Clausevitz, é muito claro neste texto a notória relação entre Guerra, Paz e Comércio. A sobrevivência da Rússia passaria a depender de sua capacidade em transferir a competição entre os dois sistemas da guerra bélica para o campo do comércio exterior. Como atenta o próprio Lênin, a entrada do socialismo no mercado internacional é um feito histórico. A atualidade deste tipo de assertiva reside no papel do comércio exterior à sobrevivência e o atual sucesso da experiência chinesa.

Texto 4. A Polônia e o Ciclo Longo (Ignacio Rangel)Na verdade, é muito rara a disponibilidade de materiais que tratem diretamente da relação entre

comércio exterior e socialismo e comércio exterior e transição. Os clássicos do marxismo, sobretudo Engels trataram da relação entre estatal e privado no seio da formação socialista como uma forma de transição da economia privada à economia de tipo socialista. Lênin trabalhou a categoria de Capitalismo de Estado e a realidade concreta russa pós-revolucionária o colocou diante da necessidade de tratar de alçar a outro patamar esta questão da concorrência interna para o externo. Não é exagero dizer que Ignacio Rangel te-nha sido, talvez, pioneiro nesta questão e o texto que apresento aqui parte de dois fatos históricos (crise da dívida na Polônia e os acordos comerciais entre a França e URSS em torno do gasoduto Sibéria-Paris) para expor características da atual fase, entre elas o da existência no mundo de dois tipos de comércio internacional, o regido pela anarquia da produção e outra planificada e que esta característica permeia as relações internacionais. Um texto no mínimo seminal. Como sempre fica o apelo à historicização do texto: vejamos como o centro do sistema tem-se saído da atual crise do capitalismo em comparação com países onde o comércio exterior é algo passivo de planificação (China e Índia).

Texto 5. Brasil e China nos Fluxos globais de Investimento Direto Externo (Luciana Acioly da Silva)As hipóteses que busco levantar neste dossiê demandam certo grau de apego com a realidade. A

ideia é fixar a noção para quem o comércio internacional guarda principalidade e a forma como se atua no comércio internacional determina – em todos os aspectos – o futuro de um país, de seu processo de industrialização (ou desindustrialização). A década de 1990 é um ótimo exemplo a ser estudado, exemplos de países que adentraram no mercado internacional de formas diferentes (leia-se forma anárquica e for-ma planificada). O estudo de caso do Brasil e a China e as formas com que os investimentos estrangeiros adentraram esses países poderá clarear um relevo de comparação único. Luciana Acioly da Silva, pesqui-sadora do IPEA, lança luzes neste sentido. Não existe projeto nacional sem aprofundamento do processo de industrialização; não existe industrialização fora de uma articulação planejada e soberana com a eco-nomia internacional. Para bom entender poucas palavras bastam. Texto essencial.

Texto 6. A Verdade Cambial (Ignacio Rangel)Volto a Ignacio Rangel. O texto é antigo, dos tempos da SUMOC. Mas remonta a uma discussão que

está à tona no Brasil de hoje: câmbio. De um lado o texto mostra o sentido histórico desta batalha. Não é de hoje que esta questão suscita grandes polêmicas, aliás, o centro de todas as polêmicas. Rangel, de for-ma didática, simples e muito rápida demonstra conceitualmente qual o papel da taxa de câmbio num país com as demandas do Brasil, e que o que se chama de “câmbio neutro” ou “pautado pelas leis mercado” não passa de algo simplista e que não serve aos interesses nacionais. Isso por que a chamada “verdade verdadeira” só é passível de percepção no momento em que os “custos sociais” são devidamente calcu-lados. Conceitualmente, trata-se de um texto atual, interessante e instigante. Simples sem ser simplista.

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Com grande serventia para elucidar a confusão em torno do “lado bom” do câmbio flutuante.

Texto 7. A China e a resistência Cambial (Luiz Gonzaga Belluzzo)Disse certa vez Mao Tsétung que “durante a luta antiimperialista a luta-de-classes fica em segundo

plano, pois a luta antiimperialista é o estágio supremo da luta-de-classes”. Uma das hipóteses que levanto é que a grande arena atual por onde percebe-se com mais clareza a luta-de-classes em seu sentido stricto sensu (a guerra responde pelo sentido lato sensu) é a arena do comércio internacional. Neste texto cur-to, mas completo em essência, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo expõe as razões pelas quais a taxa de câmbio praticada pela China é motivo de freqüentes ataques. O problema não é só o câmbio em si, mas o processo que ele engendra (para a China) como parte de um todo que envolve políticas mercantilistas agressivas e que alentam para rápidas transformações qualitativas ao desenvolvimento industrial; dimi-nuindo assim a grande lacuna existente entre países ricos e pobres, imperialismo e periferia e entre capi-talismo e socialismo. Este ensaio é mais um achega para discussões sobre a verdadeira essência do que se chama de “política industrial”. É possível política industrial conseqüente, algo para além de anúncios efusivos fora de uma taxa de câmbio condizente com este objetivo? Eis o “x” da questão.

Texto 8. A Evolução e as transformações Estruturais do Comércio Exterior Chinês (Emilio Cherna-vsky e Rodrigo Ferreira Leão)

O comércio exterior pode ter diversos papéis, dependendo da realidade e do momento histórico. Pode ser algo voltado somente para a busca de autossuficiência em determinados casos e produtos ou então ser um poderoso instrumento e ferramental fundamental ao impulso de determinado processo de desenvolvimento econômico. É esse o caso da China e talvez seja esse o principal objetivo por detrás da premência de uma planificação do comércio exterior em ampla escala. É exatamente isso que este texto, de Emílio Chernavsky e Rodrigo Leão, demonstra. Texto longo, mas de essencial importância, se concentra na evolução e as transformações estruturais internas causadas – na China – por uma política mercantilista clara, planificada tendo como objetivo a realização de objetivos estratégicos de grande alcance. Os dados empíricos e anualizados são um ingrediente chamativo para o aprofundamento do debate e na irresistível comparação com o caso brasileiro.

Texto 9. Nos limites da Chimérica (Luiz Gonzaga Belluzzo) Concordo com quem acha essa designação “Chimérica” algo de tremendo mau gosto estilístico. Mas

além da aparência existe uma síntese muito interessante encerrada neste termo, conseqüência direta da reorganização internacional da produção e da transformação do dólar em reserva de valor internacional. Difícil trabalhar a questão da industrialização da periferia do sistema longe desta compreensão. O comér-cio exterior ganhou tamanha complexidade no último quarto do século XX a ponto de se tornar impossível raciocinar a tarefa de combate à inflação nos Estados Unidos sem pensar no papel das importações vindas da China e outros países asiáticos e mesmo da América Central. É esse raciocínio para o qual apela o pro-fessor Luiz Gonzaga Belluzzo neste texto. A história econômica internacional dos últimos 50 anos é de pri-mária importância no sentido da elaboração de uma visão estratégica tanto da economia internacional, quanto do papel do Brasil neste processo. O texto do professor Belluzzo, sob o ponto de vista subjetivo, nos arremete a questão que permeia todo este dossiê: de que forma o desenvolvimento brasileiro pode ter ganhos qualitativos. A resposta pode estar no fato objetivo de a subvalorização da moeda chinesa é a outra face da mesma moeda da valorização do dólar (e do Real...).

Texto 10. O g-20 e o Brasil: A “guerra de Capitais” e a geopolítica por trás da “guerra Cambial” (Lecio Morais)

Existem momentos de pleno recrudescimento da luta-de-classes no plano internacional. A crise do capitalismo suscita esta radicalização por meio da guerra bélica e da proteção de mercados nacionais em crise, com empresas cambaleando e perda de espaços políticos e econômicos em terceiras partes

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do mundo. O texto de Lecio Morais aponta na direção da compreensão tanto desta dita radicalização entre interesses do centro e da periferia do sistema. A ferramenta principal desta guerra é a manipulação cambial via inundação de dólares pelo mundo (levando a valorização de moedas expostas como o Real). A apreensão histórica deste processo remete a três processos: o das vãs tentativas de regulamentação financeira internacional, a lenta decadência do sistema internacional sistematizada numa chamada Pax Americana e a crescente influência de países periféricos que aproveitaram a década de 1990 para ro-bustecer seus programas de modernização pela via do aumento de estoques em moeda estrangeira e utilização do comércio internacional como mola propulsora de distintos processos de industrialização, dialeticamente, apoiadas na abertura do mercado norte-americano. E o Brasil nesta história toda? Lecio Morais também se concentra em elucidar esta nada complexa questão.

Texto 11. A reorganização das Empresas transnacionais e sua Influência Sobre o Comércio Inter-nacional (Celio Hiratuka)

Tenho chamado muito a atenção para o papel estratégico das grandes corporações empresariais (estatais e privadas) à consecução de projetos nacionais, sejam de corte capitalista, sejam socialistas. Como tudo esse dito papel é expressão de um longo processo histórico que se realiza na fusão entre em-presas e sistema financeiro. Esse processo tem concretude, principalmente, com a violenta concorrência oligopólica que se acirra com o reordenamento internacional do processo produtivo, em direção à Ásia. O longo estudo do professor Celio Hiratuka aponta na direção de elucidar o real papel que as grandes empresas multinacionais cumprem na atualidade no que cerne ao crescimento geométrico do comércio internacional, integrando mercados ausentes – outrora – do circuito do comércio internacional. Quando selecionei este artigo ao dossiê, objetivei chamar a atenção com dados empíricos sobre o papel nuclear dos grandes conglomerados empresariais à plena realização de um projeto nacional. Exemplos não fal-tam. Os zaibatzus japoneses, os chaebols coreanos e a recente formação de 149 conglomerados estatais chineses demonstram – no mínimo – que não existe projeto nacional digno deste nome fora da existência de uma estratégia empresarial (capitaneada pelo Estado) capaz de sustentar o esforço interno e externo de modernização. A meu ver, essa questão encerra uma chamada fina flor da estratégia que infelizmente temos pouco ou quase nenhum domínio. E a bem da verdade, pouquíssima compreensão e consequen-temente muito preconceito.

Texto 12. O Brasil e a rodada Doha (Roberto Azevedo)Um texto sutil, sem grandes comprometimentos de fundo, mas com serventia para entender até

onde o Brasil chegou em matéria de concessões na chamada de Rodada de Doha da OMC e até onde poderá chegar com a manutenção de uma valorização cambial. O que se observa na essência deste texto do Embaixador Roberto Azevedo é exatamente isso: diante de uma realidade internacional onde os pa-íses desenvolvidos procuram cessar negociações, o que resta são posições quase elásticas por parte da diplomacia brasileira, mas sem grandes conseqüências diante da valorização de nosso moeda. O leitor deste texto pode ir além à compreensão dos limites de uma diplomacia ativa, soberana e com traços de “antiimperialismo” que não encontra correspondência na política monetária. Não é de hoje que tenho chamado a atenção para os limites de uma diplomacia incapaz de sustentar – financeiramente – suas posi-ções externas. Separar o técnico do político e ações externas de governo com opções técnicas em matéria de economia produzem contradições com grande tendência ao esgarçamento.

Texto 13. A inserção do Brasil em um mundo fragmentado: uma análise da estrutura de comércio exterior brasileiro (Marta dos Reis Castilho)

Texto leve e didático onde a professora da Universidade Federal Fluminense discorre sobre a inser-ção do Brasil no chamado “sistema de comércio internacional” o que em outras palavras significa apontar a real posição nacional na divisão internacional do trabalho. Aponta a decadência brasileira neste aspecto no que cerne a queda da participação da indústria nacional em nossas exportações e as mudanças, neste

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aspecto, que acompanham a configuração dos Investimentos Estrangeiros Diretos (IED`s) nas últimas dé-cadas. A comparativa com economias como a mexicana e chinesa mostram um quadro interessante para avaliarmos a real situação brasileira. Dados sobre balança comercial não servem para irmos fundo na análise do problema. A essência é saber em quais setores estamos em declínio e assim por diante. Tabelas e gráficos são componentes que ajudam a situar o leitor a ter uma impressão própria do processo em si.

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OBSErVAçõES HIStórICAS SOBrE O CAPItAL MErCANtILKarl Marx

Trataremos na parte seguinte da forma particular em que o capital comercial e o capital financeiro acumulam dinheiro.

Do exposto ressalta absurdo considerar o capital mercantil, seja na forma de capital comercial ou na de capital financeiro, espécie particular de capital industrial, como, por exemplo, a mineração, a agricultu-ra, a pecuária, a manufatura, a indústria de transporte, etc., que, em virtude da divisão social do trabalho, constituem ramificações determinadas e por conseguinte esferas especiais de aplicação do capital indus-trial. Bastaria para aniquilar essa concepção grosseira a simples observação de que todo capital industrial, quando na fase de circulação do processo de reprodução, enquanto capital-mercadoria e capital-dinheiro, desempenha funções que são as mesmas e as únicas do capital mercantil em suas duas formas. No capital comercial e no financeiro há autonomia da fase de circulação do capital industrial, dissociada da produti-va, pois as formas e funções determinadas que este capital assume transitoriamente nessa fase passam a ser formas e funções autônomas e exclusivas de parte separada do capital. Essa forma transmutada do capital industrial nada absolutamente tem com as diferenças materiais entre os capitais produtivos apli-cados, oriundas da natureza diversa dos ramos de produção.

A falta de sensibilidade dos economistas para as diferenças de forma, que geralmente só lhes inte-ressam sob o aspecto material, explica essa confusão que a economia vulgar sustenta por dois motivos: primeiro, sua incapacidade de esclarecer o que é peculiar ao lucro mercantil; segundo, seu empenho apologético em derivar do próprio processo de produção, como figuras que dele necessariamente se originam, as formas de capital-mercadoria e capital-dinheiro (e ainda as de capital-comercial e capital--financeiro), decorrentes da forma específica do modo capitalista de produção, que antes de tudo tem por base a circulação de mercadorias e por conseguinte a circulação de dinheiro.

Se o capital comercial e o financeiro não se distinguem da triticultura de outra maneira que não seja aquela que a distingue da pecuária e da manufatura, fica meridianamente claro que a produção e a pro-dução capitalista são coisas absolutamente idênticas, e sobretudo que a repartição dos produtos sociais entre os membros da sociedade, seja para consumo produtivo ou individual, tem de ser feita pelos comer-ciantes e banqueiros tão eternamente quanto o fornecimento de carne tem de ser feito pela pecuária e o de roupas, pela indústria de confecções*.

Os grandes economistas como Smith, Ricardo, etc., por terem estudado o capital em sua forma básica, a de capital industrial, e o capital de circulação (capital-dinheiro e capital- mercadoria) na reali-dade apenas como fase do processo de reprodução de todo capital, ficaram embaraçados com o capital mercantil como espécie distinta. As proposições derivadas imediatamente da observação do capital in-dustrial, sobre formação do valor, lucro, etc., não se ajustavam diretamente ao capital mercantil. Por isso, deixaram-no inteiramente de lado, mencionando-o apenas como variedade do capital industrial. Quando dele tratavam especificamente, como Ricardo ao discorrer sobre comércio exterior, procuravam demons-trar que não criava valor algum (nem mais-valia, portanto). Mas, o que é válido para o comércio exterior estende-se ao comércio interno.

Até agora examinamos o capital mercantil do ângulo e dentro dos limites do modo capitalista de produção. Mas, o capital mercantil — e o comércio — é mais antigo que o modo capitalista de produção; é, na realidade, do ponto de vista histórico, o modo independente de existência mais antigo do capital.

Só trataremos agora do capitai comercial, pois já vimos que o comércio de dinheiro e o capital nele * O sábio Roscher** concebeu a luzente idéia de que, se certos autores caracterizam o comércio como “mediação” entre produtores

e consumidores, poderemos, com a mesma razão, caracterizar a própria produção como “mediação” do consumo (entre que elementos?). Infere-se dai naturalmente que o capital mercantil é parte do capital produtivo, como o capital da agricultura e o de uma indústria. Assim, por se dizer que o homem só pode obter seu consumo por meio da produção (o que tem de fazer mesmo sem o diploma de Leipzig), ou que o trabalho é necessário para o ser humano apropriar-se da natureza (o que se pode chamar de. “mediação”), deduz-se naturalmente que uma “mediação” social decorrente de uma forma social específica da produção — por ser mediação — tem o mesmo caráter absoluto da neces-sidade, a mesma importância. O que decide tudo é a palavra mediação. De reato, os comerciantes não são intermediários entre produtores e consumidores, se deixamos provisoriamente de lado os consumidores que não produzem: são intermediários da troca entre os próprios produtores, são as pessoas interpostas de um intercâmbio que em milhares de casos se efetua sem eles.

** Die Grundlagen der Nationalökonomic, 3ª ed., Stuttgart, 1858, p. 103.

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adiantado só precisam, para desenvolver-se, da existência do comércio em grande escala e do capital comercial a ele ligado.

O capital comercial está confinado na esfera da circulação, e sua função consiste exclusivamente em propiciar a troca das mercadorias. Por isso, para existir — excetuadas formas rudimentares derivadas da troca direta — bastam as condições indispensáveis à circulação das mercadorias e do dinheiro. Ou melhor, está é que é sua condição de existência. Qualquer que seja o modo de produção donde saem os produtos que entram na circulação como mercadorias — seja a comuna primitiva, a produção escravista, a da pe-quena agricultura, a pequeno-burguesa ou capitalista — não se altera o caráter deles como mercadorias, e como tais têm de passar pelo processo de troca e por todas as metamorfoses que ele implica. O capital mercantil supõe, como acontece com o dinheiro e o movimento do dinheiro, os extremos entre os quais medeia: basta que esses extremos existam como mercadorias, não importando que a produção seja em sua totalidade produção de mercadorias, ou que se lance ao mercado só o excedente sobre o consumo direto de produtores independentes. O capital mercantil apenas agencia o movimento desses extremos, as mercadorias que para ele são condições de existência.

O volume da produção que entra no comércio, passa pelas mãos dos comerciantes, depende do modo de produção e atinge o máximo com o pleno desenvolvimento da produção capitalista, onde o pro-duto assume, com exclusividade, o caráter de mercadoria e não mais o de meio de subsistência imediato. Mas, qualquer que seja o sistema econômico, o comércio incentiva o acréscimo de produção destinado a entrar na troca, para aumentar as fruições ou os tesouros dos produtores, ou melhor, dos proprietários da produção, subordinando-a portanto cada vez mais ao valor-de-troca.

A metamorfose das mercadorias, o movimento delas, consiste 1) materialmente, na troca das mer-cadorias umas pelas outras, 2) formalmente, na conversão da mercadoria em dinheiro, venda, e na con-versão do dinheiro em mercadoria, compra. A função do capital mercantil se reduz assim à troca de mercadorias por meio de compra e venda. Limita-se portanto a propiciar a troca de mercadorias, que entretanto não deve ser a priori interpretada como troca efetuada entre os produtores diretos. Na escra-vatura, na servidão, na vassalagem (sociedades de tipo primitivo) é o senhor de escravos, o senhor feudal, o estado que recebe o tributo, os possuidores e portanto os vendedores do produto. O comerciante com-pra de muitos e vende para muitos. Em suas mãos concentram-se compras e vendas, que por isso deixam de estar ligadas à necessidade imediata do comprador enquanto comerciante.

Qualquer que seja a organização social das esferas de produção donde saem as mercadorias tro-cadas por intermédio dos comerciantes, o patrimônio destes existe sempre como ha- veres em dinheiro e seu dinheiro exerce sempre a função de capital. A forma desse capital é sempre D — M — D’; o ponto de partida é o dinheiro, a forma independente do valor-de-troca, e o objetivo autônomo é o aumento do valor-de-troca. A própria troca de mercadorias e as operações que a propiciam — separadas da produção e efetuadas por não-produtores — são apenas meio de acrescer a riqueza, mas a riqueza em sua forma social geral, o valor-de-troca. O motivo e o fim determinantes é converter D em D + ΔD; os atos D — M e M — D’ que possibilitam a operação D — D’ constituem meros aspectos transitórios dessa transforma-ção de D em D + ΔD. D — M — D’, movimento característico do capital mercantil, distingue-o de M — D — M, que representa o comércio de mercadorias entre os próprios produtores, subordinado à troca dos valores-de-uso como fim último.

Por isso, quanto menos desenvolvida a produção, tanto mais os haveres em dinheiro se concentram rias mãos dos comerciantes, tanto mais se patenteiam forma específica da fortuna mercantil. No modo capitalista de produção — isto é, depois que o capital se apoderou da própria produção e lhe imprimiu forma específica inteiramente nova — o capital mercantil aparece apenas como capital destinado a uma função particular. Em todos os modos anteriores de produção, o capital mercantil se apresenta como a função por excelência do capital, e é tanto mais assim quanto mais a produção tem por objetivo o consu-mo imediato dos próprios produtores.

É fácil portanto de compreender porque o capital mercantil aparece como forma histórica do capital muito antes de o capital submeter a própria produção a seu domínio. Para desenvolver-se o modo capita-lista de produção, é mister historicamente que o capital mercantil exista e atinja certo grau de desenvolvi-

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mento, 1) pois é condição prévia da concentração dos haveres monetários, e 2) porque o modo capitalista de produção supõe produção para o comércio, venda em grande escala e não a freguês individual, logo, a comerciante que não compra para satisfazer necessidades pessoais, mas, cm sua compra concentra muitos atos de compra. Demais, todo desenvolvimento do capital mercantil atua no sentido de orientar a produção cada vez mais para o valor-de-troca, de transformar os produtos cada vez mais em mercadorias. Todavia, seu desenvolvimento, considerado de per si, não é, conforme veremos, suficiente para possibili-tar e explicar a transição de um modo de produção para outro.

Na produção capitalista, o capital mercantil deixa a antiga existência soberana para ser um elemen-to particular do investimento de capital, e o nivelamento dos lucros reduz sua taxa de lucro à média geral. Passa a funcionar como agente do capital produtivo. As condições sociais particulares que se formaram com o desenvolvimento do capital mercantil deixam de ser determinantes; ao revés, onde ele ainda pre-valece, reinam condições arcaicas. É o que se verifica até no mesmo país, onde por exemplo as cidades puramente mercantis estão próximas e as industriais se distanciam do passado*.

O desenvolvimento autônomo e preponderante do capital como capital mercantil significa que a produção não se subordina ao capital, que o capital portanto se desenvolve na base de uma forma social de produção a ele estranha e dele independente. O desenvolvimento autônomo do capital mercantil está portanto na razão inversa do desenvolvimento econômico geral da sociedade.

A fortuna mercantil autônoma, como forma dominante do capital, é o processo de circulação que se torna autônomo perante seus extremos, e esses extremos são os próprios produtores que participam da troca. Esses extremos permanecem independentes do processo de circulação, e vice-versa. O produto aí se torna mercadoria por meio do comércio. Aí é o comércio que leva os produtos a se transformarem em mercadorias; não é a mercadoria produzida que, movimentando-se, forma o comércio. Aí, o capital mesmo aparece portanto primacialmente no processo de circulação. É no processo de circulação que o dinheiro vira capital. É na circulação que o produto se torna valor-de-troca, mercadoria e dinheiro. O capital pode e tem de formar-se no processo de circulação, antes de aprender a dominar seus extremos, os diferentes ramos de produção, ligados pela circulação. A circulação de dinheiro e a de mercadorias podem servir de intermediários a ramos de produção com as mais diversas organizações, essencialmente dirigidas, por sua estrutura interna, para a produção de valores-de-uso. Essa autonomia do processo de circulação na qual um terceiro fator liga os ramos de produção tem duplo significado: primeiro, a circu-lação ainda não se apoderou da produção, que desempenha o papel de condição prévia da circulação; segundo, o processo de produção ainda não incorporou a circulação a si como simples fase dele. Ao revés, essas duas circunstâncias se verificam na produção capitalista: o processo de produção repousa por intei-ro na circulação, e esta é mero elemento, fase transitória da produção, simples realização monetária do produto gerado como mercadoria, e reposição dos elementos de produção também gerados como mer-cadorias. A forma do capital oriunda diretamente da circulação — o capital mercantil — aparece então como uma das formas do capital em seu movimento de reprodução.

A lei, segundo a qual o desenvolvimento do capital mercantil está na razão inversa do grau de de-senvolvimento da produção capitalista, patenteia-se melhor na história do tráfico praticado pelos vene-zianos, genoveses, holandeses, etc. Obtinham o lucro principal não exportando os produtos do respec-tivo país, mas servindo de intermediários na troca dos produtos de comunidades menos desenvolvidas no plano comercial ou mesmo econômico, e explorando os dois países produtores†. O capital mercantil

* W. Kiesselbach (Der Gang des Welthandels im Mittelaiter, 1860) ainda continua a viver efetivamente num mundo onde o capital mercantil é a forma do capital. Não tem a menor idéia do que seja o conceito moderno de capital, do mesmo modo que Mommsen, quando em flua história romana fala do “capital” e de domínio do capital. Na história inglesa moderna, os comerciantes propriamente e as cidades mercantis se revelam reacionários, no domínio político, e ligados à aristocracia rural e à financeira contra o capital industrial. Basta comparar o papel político de Liverpool com o de Manchester e Birmingham. O capital mercantil inglês e a aristocracia financeira só reconheceram o domínio completo do capital industrial, depois de abolida a proteção aduaneira aos cereais, etc.

† Os habitantes das cidades mercantis importavam de países mais ricos manufaturas refinadas e artigos de luxo caros, destinados a satisfazer a vaidade dos grandes proprietários de terras, que avidamente compravam essas mercadorias, pagando-as com grandes quanti-dades de produtos primários de suas terras. Assim, naquele tempo, o comércio de grande parte da Europa consistia na troca dos produtos primários de um país por manufaturas de outro país, mais adiantado industrialmente... Logo que o gosto por elas se generaliza e ocasiona procura importante, começam os comerciantes, para evitar os custos de transporte, a estabelecer manufaturas semelhantes no respectivo país” (A. Smith, [Wealth of Nations, Aberdeen, Londres, 1848] livro III, capítulo III [p. 267]).

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aparece aí puro, separado dos extremos, os ramos de produção que enlaça. Temos aí uma das principais fontes de sua formação. Mas, ao decair o monopólio do tráfico, decai o próprio tráfico na proporção em que progride a economia dos povos, que explorava como intermediário e cujo subdesenvolvimento era a base de sua existência. Essa transformação significa mais que a decadência de um tipo determinado de comércio; marca o fim da preponderância dos povos puramente comerciais e de sua riqueza mercantil, nele baseada. Temos aí apenas uma forma particular em que a subordinação do capital comercial ao in-dustrial transparece no curso do desenvolvimento da produção capitalista. De mais a mais, a economia colonial em geral (o chamado sistema colonial) e em particular a economia da antiga Companhia Holan-desa das Índias Orientais ilustram de maneira contundente como o capital mercantil administra onde domina diretamente a produção.

O movimento do capital mercantil é D — M — D’. Por isso, o lucro do comerciante provém, primeiro, de atos que ocorrem no processo de circulação, os atos de comprar e de vender, e, segundo, realiza-se no último ato, o de venda. É portanto lucro de venda, profit upon alienation. É evidente que o lucro comercial puro, independente, não pode aparecer, quando os produtos se vendem por seus valores. Comprar bara-to, para vender caro é a lei do comércio. Não se trata portanto de trocar equivalentes. O conceito de valor está aí implícito, na medida em que as diferentes mercadorias representam todas valor e por conseguinte dinheiro; qualitativamente são todas elas por igual expressões do trabalho social. Mas, não são valor da mesma magnitude. No início, é inteiramente fortuita, casual, a relação quantitativa em que os produtos se trocam. Assumem a forma de mercadoria, na medida em que são permutáveis, isto é, expressões do ter-ceiro termo que as torna homogêneas. A troca continuada e a reprodução mais regular para troca elimina cada vez mais essa casualidade: no começo, porém, não para os produtores e consumidores, e sim para o intermediário entre ambos, o comerciante, que compara os preços em dinheiro e embolsa a diferença. Com as próprias operações estabelece ele a equivalência.

Nos primórdios, o capital mercantil é movimento mediador entre extremos que não domina e pres-supostos que não cria.

Da mera forma da circulação das mercadorias, M — D — M, surge dinheiro não só como medida do valor e meio de circulação, mas também como forma absoluta da mercadoria e por conseguinte da riqueza, como tesouro, e a imobilização e acréscimo como dinheiro tornam-se um fim em si mesmo. Ana-logamente, da simples forma de circulação do capital mercantil, D — M — D’, surge o dinheiro, o tesouro, como algo que se conserva e aumenta por meio de mera alienação.

Os povos comerciantes da Antiguidade existiam como os deuses de Epicuro que habitavam nos in-termúndios do universo, ou melhor, como os judeus que vivem nos poros da sociedade polonesa. As pri-meiras cidades e os primeiros povos mercantis, independentes e grandemente desenvolvidos, exerciam comércio apoiado, como puro tráfico, na barbárie dos povos produtores, entre os quais desempenhavam o papel de intermediários.

Nos primórdios da sociedade capitalista, o comércio domina a indústria; na sociedade moderna, dá-se o inverso. O comércio naturalmente influi mais ou menos sobre as comunidades entre as quais é exercido; submete a produção cada vez mais ao valor-de-troca, ao fazer as fruições e a subsistência de-pender mais da venda que da produção de consumo direto. Assim, desagrega as antigas relações sociais. Aumenta a circulação de dinheiro. Não se limita mais a lançar mão do excedente, mas passa pouco a pou-co a apoderar-se da própria produção, e submete a seu domínio ramos inteiros da produção. Essa ação dissolvente, entretanto, depende muito da natureza da comunidade produtora.

Quando o capital mercantil agencia a troca de produtos de comunidades pouco desenvolvidas, o logro e a trapaça aparecem no lucro comercial, que deles deriva em grande parte. Há aí aspectos a consi-derar além da circunstância de o capital mercantil explorar a diferença entre os preços de produção dos diferentes países (e então atua nivelando e determinando os valores das mercadorias). Aqueles modos de produção possibilitam ao capital mercantil apropriar-se de parte preponderante do produto excedente: seja porque esse capital se interpõe entre comunidades com produção essencialmente orientada para o valor-de-uso e com organização econômica para a qual é de importância secundária a venda da parte do produto destinada à circulação, em geral, portanto, a venda dos produtos pelo respectivo valor; ou seja,

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porque, naqueles antigos modos de produção, os possuidores principais do produto excedente com os quais lida o comerciante, o proprietário de escravos, o senhor feudal, o Estado (por exemplo, o déspota oriental) representam a riqueza a fruir, exposta às armadilhas do comerciante, conforme já percebia acer-tadamente A. Smith na passagem citada, relativa à época feudal. O capital mercantil, quando domina, estabelece por toda parte um sistema de pilhagem*, e seu desenvolvimento entre os povos comerciais, dos tempos antigos e dos modernos, está diretamente ligado à rapina, à pirataria, ao rapto de escravos, à subjugação de colônias; assim foi em Cartago, Roma e, mais tarde, com os venezianos, portugueses, holandeses, etc.

O desenvolvimento do comércio e do capital mercantil leva a produção por toda a parte a orientar-se pelo valor-de-troca, aumenta o volume dela, diversifica-a. e dá-lhe caráter internacional, e faz o dinheiro converter-se em dinheiro universal. O comércio por isso exerce sempre ação mais ou menos dissolvente sobre as organizações anteriores da produção, as quais em todas as suas diversas formas se guiam essen-cialmente pelo valor-de-uso. Até onde vai essa ação dissolvente depende, antes de mais nada, da solidez e da estrutura interna do antigo modo de produção. E o que resultará desse processo de dissolução, isto é, qual será o novo modo de produção que substituirá o antigo, depende não do comércio, mas do cará-ter do próprio modo antigo de produção. No mundo antigo, a atuação do comércio e o desenvolvimento do capital mercantil resultavam sempre em economia escravista, ou, de acordo com o ponto de partida, ocasionavam apenas a transformação de um sistema escravista patriarcal, baseado na produção de meios de subsistência imediatos, num sistema voltado para a produção de mais-valia. No mundo moderno, ao contrário, levam ao modo capitalista de produção. Infere-se daí que outras circunstâncias, além do desen-volvimento do capital mercantil, determinaram esses resultados.

Está na natureza das coisas que, ao separar-se da agrícola a indústria urbana, os produtos desta são de saída mercadorias, que, para serem vendidas, precisam da intervenção do comércio. É evidente que o comércio se apóia no desenvolvimento urbano e que este reciprocamente é condicionado pelo comércio. Entretanto, até que ponto surge aí um desenvolvimento industrial paralelo depende de outras circuns-tâncias bem diversas. Na Roma antiga, já nos fins do período republicano, o capital mercantil chegou a nível que nunca atingira antes no mundo antigo, sem que houvesse progresso industrial. Já em Corinto e noutras cidades gregas da Europa e da Ásia Menor, grande progresso em atividades industriais acompa-nha o desenvolvimento do comércio. Por outro lado, o espírito comercial e o desenvolvimento do capital mercantil aparecem em povos nômades, contrariando o pressuposto do desenvolvimento urbano com as condições correspondentes.

As descobertas geográficas, por certo, provocaram grandes revoluções no comércio e maior veloci-dade no desenvolvimento do capital mercantil, e essas transformações constituíram fator fundamental de aceleração da passagem do modo feudal de produção para o capitalista. Mas, justamente esse fato levou a concepções de todo errôneas. A expansão súbita do mercado mundial, a multiplicação das mercadorias em circulação, a luta entre as nações européias para se apoderarem dos produtos asiáticos e dos tesou-ros americanos, o sistema colonial, contribuíram substancialmente para derrubar as barreiras feudais da produção. Entretanto, o moderno modo de produção, em seu primeiro período, o manufatureiro, só se desenvolveu onde se tinham gerado as condições apropriadas no curso da Idade Média. Comparemos

* “Os comerciantes se derramam agora em queixas contra os cavaleiros ou ladrões, e apontam os graves perigos que têm de enfrentar no comércio, sendo presos, espancados, extorquidos, roubados. Seriam verdadeiros santos, se sofressem tudo isso por amor à justiça... Se no mundo inteiro os comerciantes praticam tão grandes injustiças, logros e ladroeiras nada cristãos, mesmo entre si, por que admirarmo-nos se Deus faz que esses grandes haveres injustamente ganhos se percam, sejam roubados, e que os próprios comerciantes sejam golpeados na cabeça ou presos?... E os príncipes devem com energia adequada punir e evitar que os súditos sejam tão vergonhosamente esfolados pelos comerciantes. Mas, eles se omitem: Deus então faz dos cavaleiros e dos salteadores demônios para punir as injustiças dos comerciantes, do mesmo modo que, no Egito, atormentou com demônios ou arruinou com inimigos a terra e o povo. Castiga um patife com outro, e não precisa dar a entender que salteadores são menos ladrões que os comerciantes, pois estes roubam o mundo inteiro todos os dias, enquanto aqueles uma ou duas vezes por ano despojam uma ou duas pessoas”. — “Atentai para o que diz Isaías: Teus príncipes se associaram aos ladrões. É o que fazem quando mandam enforcar os que furtam um florim ou metade, e traficam com os que roubam o mundo todo e com mais segurança que os demais ladrões, confirmando-se a verdade do provérbio: os grandes ladrões enforcam os pequenos ladrões. Ou como dizia Catão, senador romano: os ladrões de pouco jazem acorrentados nas masmorras, mas os ladrões públicos ostentam ouro e seda. Mas qual será a palavra final de Deus? Ele fará o que falou pela boca de Ezequiel: fundirá, como chumbo e cobre, príncipes e ladrões, ladrões com ladrões, num incêndio capaz de consumir uma cidade inteira e que extinguirá todos os príncipes e comerciantes” (Martin Luther, Bücher vom Kaufhandel und Wucher, 1527).

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por exemplo Holanda e Portugal*. E se no século XVI e em parte ainda no século XVII, a extensão súbita do comércio e a criação de novo mercado mundial exerceram influencia preponderante na decadência do antigo modo de produção e na ascensão do modo capitalista, isto se deu, entretanto, na base do modo capitalista de produção já existente. Este, na verdade, se apóia sobre o próprio mercado mundial. Mas, a necessidade imanente ao capitalismo, de produzir em escala cada vez maior, leva à expansão contínua do mercado mundial, de modo que não é o comércio que revoluciona constantemente a indústria, mas o contrário. E o domínio comercial é agora função da predominância maior ou menor das condições da indústria moderna. Comparemos por exemplo Inglaterra e Holanda. A história do declínio da Holanda como nação comercial dominante é a história da subordinação do capital mercantil ao capital industrial. Os obstáculos que a solidez interna e a estrutura de modos de produção pré-capitalistas nacionais opõem à ação dissolvente do comércio se revelam de maneira contundente nas relações dos ingleses com a índia e a China. Nesta, o modo de produção tem por base a unidade da pequena agricultura com a indústria do-méstica, e a esse tipo de estrutura, na índia, acresce a forma das comunidades rurais baseadas na proprie-dade comum do solo, forma que vigorava primitivamente na China. Na índia, os ingleses como dominado-res e proprietários de terras empregaram conjuntamente a força política direta e o poder econômico para desagregar essas pequenas comunidades econômicas†. O comércio inglês só atua aí revolucionariamente na medida em que destrói, com os preços baixos de suas mercadorias, a fiação e a tecelagem, elementos antiquíssimos dessa unidade da produção industrial e agrícola, e assim lacera as comunidades. Mas, essa obra desagregadora só se efetiva muito lentamente, e mais lentamente ainda na China, onde os ingleses não dispõem do poder político direto. A grande economia e o ganho de tempo resultantes da conexão imediata entre agricultura e manufatura oferecem a mais tenaz resistência aos produtos da indústria mo-derna, com preços onde entram os custos necessários mas improdutivos do processo de circulação que a traspassa por todas as partes. Ao contrário do comércio inglês, o russo deixa intata a base econômica da produção asiática‡.

A transição que se opera a partir do modo feudal de produção apresenta dois aspectos. O produtor se torna comerciante e capitalista, em oposição à economia natural agrícola e ao artesanato corporativo da indústria urbana medieval. Este é o caminho realmente revolucionário. Ou então o comerciante se apodera diretamente da produção. Este último caminho, embora constitua uma fase de transição his-tórica, de per si não consegue revolucionar o velho modo de produção, que conserva e mantém como condição fundamental. É o que sucedeu por exemplo com o comerciante inglês de panos do século XVII: colocou sob seu controle os tecelões, embora estes fossem independentes, vendendo-lhes lã e com-prando-lhes pano. Até à metade deste século, os fabricantes da indústria francesa de seda, da inglesa de malhas e de rendas eram fabricantes apenas nominalmente, de fato meros comerciantes, que faziam os tecelões trabalhar dispersos, à maneira antiga, e só os controlavam como comerciantes para os quais eles realmente trabalhavam§. Esse sistema por toda parte estorva o verdadeiro modo capitalista de produção e perece ao desenvolver-se este. Sem revolucionar o modo de produção, apenas agrava a situação dos produtores imediatos, transforma-os em meros assalariados e proletários em piores condições que as experimentadas pelos diretamente submetidos ao capital, e apropria-se do trabalho excedente na base do antigo modo de produção.

* Escritores do século XVIII já expuseram a importância decisiva que teve no desenvolvimento holandês, além de outras circunstâncias, a base constituída pela pesca, pela manufatura e agricultura. Ver, por exemplo, Massie. — A velha concepção que subestimava o volume e a importância do comércio asiático, antigo e medieval, foi substituída pela moda de superestimá-los. Para curar esse exagero, o melhor é com-parar as exportações e importações inglesas do começo do século XVIII com as atuais. Elas eram, entretanto, incomparavelmente maiores que as de qualquer povo mercantil de épocas anteriores (Ver Anderson, History of commerce, [pp. 261ss]).

† Dificilmente a história de um povo apresentará experimentos econômicos tão desacertados e realmente estúpidos (na prática infa-mes) como os da administração inglesa na Índia. Em Bengala criou ela uma caricatura da grande propriedade fundiária inglesa; no Sudoeste indiano, uma caricatura da pequena propriedade agrícola; no Noroeste fez tudo por transformar a comunidade econômica indiana apoiada sobre a propriedade comum do solo, em caricatura dela mesma.

‡ Com os imensos esforços feitos pela Rússia para desenvolver produção capitalista própria, destinada ao mercado interno e ao mer-cado asiático limítrofe, as coisas começaram a mudar. — F.E.

§ O mesmo se estende à fabricação de fitas e galões e à tecelagem de seda da Renânia. Em Krefeld construiu-se até uma ferrovia espe-cial para os tecelões-à-mão do interior poderem manter contato com os “fabricantes” citadinos, mas depois a tecelagem mecânica paralisou esses tecelões e a ferrovia. — F.E.

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A mesma coisa, algo modificada, se encontra em parte da fabricação de móveis, em nível de arte-sanato, em Londres, amplamente explorada sobretudo nos bairros orientais. A produção é dividida em muitos ramos independentes entre si. Um ramo se especializa em cadeiras, o outro em mesas, o terceiro em armários etc. Mas, esses ramos funcionam mais ou menos como artesanatos, tendo por base um mestre com poucos oficiais. Não obstante, o volume de produção é demasiado para servir diretamente a fregueses individuais. Os compradores são os donos das lojas de móveis. Aos sábados o mestre procura o lojista e vende-lhe o produto, quando se regateia o preço, como acontece na casa de penhor, com o mon-tante a emprestar sobre cada objeto. Os mestres precisam dessa venda semanal, sem o que não poderão na semana seguinte comprar matérias-primas necessárias nem pagar os salários. Nessas circunstâncias não passam de intermediários entre seus trabalhadores e o comerciante. Este é o verdadeiro capitalista, embolsando a maior parte da mais-valia*. Algo semelhante se passa na transição, para manufatura, de ramos antes explorados como artesanato ou ramos acessórios da indústria rural. De acordo com o desen-volvimento técnico revelado por essa pequena exploração autônoma — quando já emprega máquinas que permitem exploração em escala de artesanato — há também transição para a indústria moderna; a máquina não é mais impulsionada pela mão e sim pelo vapor, como acontece ultimamente nas empresas britânicas de meias.

A transição portanto triplica-se: primeiro, o comerciante se torna diretamente industrial; é o que se dá com atividades baseadas no comércio, sobretudo com as indústrias de luxo, que os comerciantes importam do exterior juntamente com as matérias-primas e os trabalhadores, como sucedeu no século XV, na Itália, que foi buscá-las em Constantinopla. Segundo, o comerciante torna os mestres artesãos seus intermediários ou compra diretamente do produtor autônomo; deixa-o nominalmente independente e intato o modo de produção dele. Terceiro, o industrial se torna comerciante e produz em grosso direta-mente para o comércio.

Conforme diz acertadamente Poppe, o comerciante na Idade Média se limita a “distribuir” as mer-cadorias conforme são produzidas pelos membros das corporações e pelos camponeses. O comerciante tornar-se-á industrial ou, pelo contrário, fará trabalhar para ele a indústria do artesanato ou a pequena indústria rural. O produtor, por sua vez, se torna comerciante. O mestre tecelão, por exemplo, em vez de receber a lã em pequenas porções do comerciante e trabalhar para ele com seus oficiais, passa a com-prar diretamente a lã ou o fio e a vender o pano ao comerciante. Os elementos de produção entram no processo de produção como mercadorias compradas pelo próprio produtor. E em vez de produzir para o comerciante individual, ou para determinados fregueses, o tecelão produz agora para o mundo do co-mércio. O produtor é ao mesmo tempo comerciante. O capital mercantil fica limitado a efetuar o processo de circulação. Na origem, o comércio era condição primordial para se transformarem em empreendi-mentos capitalistas os ofícios corporativos, a indústria doméstica rural e a agricultura feudal. Transforma o produto em mercadoria, criando-lhe mercado, introduzindo novos equivalentes-mercadorias, novas matérias-primas e auxiliares para a produção. E assim instaura ramos de produção, de saída baseados no comércio, destinados a produzir para o mercado interno e o externo, ou dependentes de condições de produção oriundas do mercado mundial. Logo que a manufatura atinge certo nível de desenvolvimento — o que é mais válido ainda para a indústria moderna — cria ela para si o mercado, conquista-o com suas mercadorias. O comércio se torna então servidor da produção industrial, para a qual é condição de vida a expansão contínua do mercado. Produção em massa cada vez maior inunda o mercado existente e por isso se empenha sempre em expandi-lo, em romper seus limites. O que limita a produção em massa não é o comércio (enquanto “exerce apenas a função de expressar procura existente), mas a magnitude do capital em funcionamento e a produtividade atingida pelo trabalho. O capitalista industrial tem de estar sempre atento ao mercado mundial, compara e tem continuamente de comparar os próprios preços de custo com os preços de mercado de seu país e do mercado mundial. Antes, essa comparação cabia quase exclusivamente aos comerciantes, o que assegurava ao capital mercantil o domínio sobre o industrial.

As primeiras análises do moderno modo de produção — feitas pelo mercantilismo — partiram ne-cessariamente dos fenômenos superficiais do processo de circulação tais como se patenteiam de maneira

* Esse sistema desenvolveu-se com bem maior amplitude, a partir de 1865. Pormenores a respeito no First report of the select com-mittee of the House of Lords on the aweating system, Londres, 188. — F.E.

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autônoma no movimento do capital mercantil, e daí só terem apreendido a aparência. A razão disso está em que o capital mercantil, além de ser o primeiro modo livre de existência do capital em geral, exerceu influência preponderante na fase que iniciou a transformação da produção feudal e deu origem à pro-dução moderna. A ciência real da economia moderna só começa quando a análise teórica se desloca do processo de circulação para o de produção. Por certo, o capital a juros é também forma arcaica do capital. Mais adiante veremos por que o mercantilismo não partiu dele, mas antes encarou-o de maneira polê-mica.

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SOBrE O MONOPóLIO DO COMÉrCIO EXtErNOLénine

1Ao secretário do CC camarada Stáline.13/X/1922A decisão da reunião plenária do CC de 6.X. (acta n.° 7, ponto 3) estabelece uma reforma aparente-

mente pouco importante, parcial: «adoptar uma série de resoluções separadas do Conselho do Trabalho e da Defesa sobre a permissão temporária de importação e exportação de certas categorias de mercadorias ou aplicada a certas fronteiras.»

Mas, na realidade, isso é um torpedeamento do monopólio do comércio externo. Não é de admirar que o camarada Sokólnikov tenha procurado conseguir e tenha conseguido isso. Ele sempre procurou consegui-lo, ele gosta de paradoxos e sempre quis demonstrar que o monopólio é desvantajoso para nós. O que admira é que votaram a favor disso, sem perguntar pormenores a nenhum dos administradores da economia, pessoas que defendem o monopólio por princípio.

O que significa a resolução aprovada?Abrem-se escritórios de compras para importação e exportação. O proprietário do escritório tem o

direito de comprar é vender apenas mercadorias que são especialmente indicadas.E onde está o controlo? Onde estão os meios de controlo?O linho custa na Rússia 4 rublos e meio, na Inglaterra 14 rublos. Todos nós lemos em O Capital como

é que o capital se transforma internamente e ganha audácia com um crescimento rápido do juro e dos lucros. Todos se lembram que o capital é capaz de chegar rapidamente ao ponto de arriscar a cabeça, e Marx reconheceu-o muito antes da guerra e dos seus «saltos».

E o que acontece hoje? Que força impedirá os camponeses e os comerciantes de fazerem uma tran-sacção muito vantajosa? Será preciso cobrir a Rússia com uma rede de vigilantes? Apanhar o vizinho dum escritório de compras e tentar provar-lhe que o seu linho é vendido para uma exportação secreta?

Os paradoxos do camarada Sokólnikov são sempre espirituosos, mas é preciso distinguir os parado-xos da dura verdade.

É absolutamente impossível qualquer «legalidade» a propósito de semelhante questão na Rús-sia rural. E absolutamente incorrecta qualquer comparação com o contrabando em geral («de qualquer modo, dizem, também o contrabando mina fortemente o monopólio»): uma coisa é o contrabandista especialista na fronteira, e outra coisa é todo o campesinato, o qual, todo, se defenderá e lutará contra o poder, que procura arrebatar-lhe o lucro «que lhe pertence».

Sem ter ainda posto à prova o regime de monopólio, o qual apenas começa a dar-nos milhões (e dará dezenas de milhões e mais), implantamos um caos completo, abalamos os mesmos esteios que ainda mal começámos a consolidar.

Começámos a edificar um sistema: tanto o monopólio do comércio externo como as cooperativas estão a ser iniciados por essa edificação. Dentro de um ano ou dois haverá alguns resultados. O lucro do comércio externo mede-se em centenas por cento; começamos a receber milhões e dezenas de milhões. Nós começámos a criar sociedades mistas, começámos a aprender a obter metade dos seus (monstruo-sos) lucros. Nós vemos já uma certa perspectiva dum enorme lucro estatal. E abandonamos tudo isso na esperança de taxas alfandegárias, que não podem proporcionar um lucro em nada semelhante, abando-namos tudo isso e corremos atrás dum espectro!

A questão foi levada à pressa à reunião plenária. Não houve nada que se parecesse com uma dis-cussão séria. Não há nenhumas razões para estar com pressa. Só agora é que os administradores da eco-nomia começam a aprofundar as coisas. Solucionar as questões mais importantes da política comercial de um dia para o outro, sem ter recolhido materiais, sem ter pesado os prós e os contras com documentos e números — onde é que existe aqui ainda que a sombra de uma atitude correcta para com o assunto? As pessoas cansadas votam em alguns minutos, e acabou-se. Ponderámos questões políticas menos comple-

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xas por muitas vezes e resolvemo-las, com frequência, ao longo de vários meses.Lamento muito que a doença me tenha impedido de estar naquele dia na reunião e que me veja

obrigado a solicitar agora uma certa excepção à norma.Mas penso que a questão deve ser ponderada e estudada e que é prejudicial estar com pressa.Proponho: adiar a solução desta questão por dois meses, isto é, até à próxima reunião plenária, e

até lá recolher documentos reunidos em conjunto e verificados sobre a experiência da nossa política co-mercial.

V. Uliánov (Lénine)

P.S. Na conversa de ontem com o camarada Stáline (não estive na reunião plenária e procurava informar-me através dos camaradas que estiveram na reunião plenária) abordámos, entre outras coisas; de modo hipotético, a abertura temporária dos portos de Petrogrado e de Novorossiisk. Parece-me que ambos os exemplos mostram o perigo extremo de semelhantes experiências, ainda que seja para a mais pequena lista de mercadorias. A abertura do porto de Petrogrado aumentará o contrabando do linho pela fronteira finlandesa até proporções terríveis. Em lugar da luta contra os contrabandistas profissionais cai-rá sobre nós a luta contra todo o campesinato da região do linho. Quase certamente seremos derrotados nessa luta, derrotados de modo irreparável. A abertura do porto de Noveeiisk sugará rapidamente os ex-cedentes de cereais: será isso prudente, quando as nossas reservas para a guerra são pequenas? Quando uma série de medidas sistemáticas a fim de as aumentar não tiveram ainda tempo de dar resultados?

Além disso, é preciso pensar no seguinte. O monopólio do comércio externo deu-nos o início dum afluxo de ouro para a Rússia. Ainda mal se está a tornar possível calcular: a primeira viagem de um deter-minado comerciante à Rússia deu-lhe em meio ano, deu-lhe, digamos, centenas por cento de lucro; ele eleva o preço de compra desse direito de 25 % a 50 % em proveito do Comissariado do Povo do Comércio Externo. Começámos a obter a possibilidade de aprender e de aumentar a dimensão desse lucro. Tudo isso perecerá imediatamente, todo o trabalho parará, porque se diferentes portos são parcialmente aber-tos, por algum tempo, nenhum comerciante dará nem sequer um vintém por semelhante «monopólio». Isso é claro. É preciso pensar e calcular várias vezes antes de decidir correr um tal risco. Sobretudo se se trata ainda de um risco político de deixarmos entrar não os comerciantes estrangeiros, que estamos a verificar nominalmente, mas toda a pequena burguesia em geral.

Com o Comissariado do Povo do Comércio Externo começámos a contar com um afluxo de ouro. Não vejo outros cálculos, a não ser, talvez, o monopólio do vinho, mas aqui existem seriíssimas conside-rações morais e uma série de objecções práticas de Sokólnikov.

Lénine

P.P.S. Informam-me agora (1.30 horas) que uma série de administradores da economia solicitam um adiamento. Não li ainda essa solicitação, mas apoio-a fortemente. Trata-se apenas de dois meses.

Lénine

Publicado pela primeira vez em 1950, na 4.ª ed. em russo das Obras de V. I. Lénine, t. 33.

Obras Completas de V. I. Lénine, 5.a ed. em rus-so, t. 45, pp. 220-223.

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2Ao camarada Stáline, para a reunião plenária do CCConsidero importantíssimo examinar a carta do camarada Bukhárine. No primeiro ponto ele diz

que «nem Lénine nem Krássine disseram uma só palavra sobre as inúmeras perdas que a economia do país sofre por causa da incapacidade do Comissariado do Povo do Comércio Externo, que decorre da sua estrutura ‘de princípio nem uma só palavra sobre as perdas motivadas pelo facto de nós próprios não estarmos em condições (e durante muito tempo nós não estaremos em condições, devido a razões bem compreensíveis) de mobilizar o fundo mercantil camponês e de o incluir na circulação internacional de mercadorias».

Essa afirmação é inteiramente falsa, pois Krássine fala claramente, no parágrafo II, sobre a formação de sociedades mistas, que representam um meio, em primeiro lugar, para mobilizar o fundo mercantil camponês e, em segundo lugar, para obter dessa mobilização um lucro, não inferior a metade, para o nos-so tesouro público. Deste modo, quem elude o fundo é o próprio Bukhárine, que não quer ver o facto de que «a mobilização do fundo mercantil camponês» dará um rendimento que irá inteira e exclusivamente para as mãos dos nepmans*.

A questão consiste em saber se o nosso Comissariado do Povo do Comércio Externo vai trabalhar em proveito dos nepmans, ou se vai trabalhar em proveito do Estado proletário. Esta é uma questão fun-damental pela qual se pode e deve certamente lutar no congresso do partido.

A questão da incapacidade do Comissariado do Povo do Comércio Externo em comparação com esta primeira questão, fundamental, de princípio, é absolutamente secundária, pois essa incapacidade não é maior nem menor do que a incapacidade de todos os nossos comissariados do povo, que depende da sua estrutura social geral e exige de nós longos anos de um trabalho tenacíssimo para elevar a instru-ção e o nosso nível em geral.

O segundo ponto das teses de Bukhárine declara que «pontos como, por exemplo, o § 5 das teses de Krássine, são também inteiramente aplicáveis às concessões em geral». E, uma vez mais, a mentira mais clamorosa, porque a tese 5 de Krásssine afirma que «no campo será introduzido artificialmente o mais maligno explorador, açambarcador, especulador, agente do capital estrangeiro, que maneja o dólar, a libra, a coroa sueca». Nada de semelhante decorre das concessões, nas quais nós prevemos não só o território, mas também uma autorização particular para o comércio de artigos particulares e, além disso, o que é o principal, mantemos nas nossas mãos o comércio de tais ou tais artigos dados em concessão; sem ter objectado uma só palavra aos argumentos de Krássine de que não manteremos o comércio livre nos limites estabelecidos pela resolução da reunião plenária de 6/X., de que o comércio será arrancado das nossas mãos pela pressão não só dos contrabandistas, mas também de todo o campesinato, sem ter respondido a esse fundamental argumento econômico e de classe com uma só palavra, Bukhárine dirige contra Krássine acusações que surpreendem pela sua inconsistência.

No terceiro ponto da sua carta Bukhárine escreve: «O § 3 de Krássine». (Por engano diz 3 em lugar de 4.) «A nossa fronteira mantém-se», e ele pergunta: «O que significa isso? Significa de facto que nada se faz. Do mesmo modo que numa loja com um belo letreiro onde não há nada (o sistema da ‘Direcção Central do Ferrolho’)». Krássine diz de maneira perfeitamente determinada que a nossa fronteira se man-tém não tanto pela protecção aduaneira ou por uma segurança fronteiriça, como pela existência do mo-nopólio do comércio externo. Bukhárine não objecta nem pode objectar uma só palavra a esse facto claro, evidente e indiscutível. A expressão «o sistema de ‘Direcção Central do Ferrolho’» pertence ao mesmo tipo de expressões às quais Marx respondia no seu tempo com a expressão «Freetrader vulgaris», pois isto não é mais que uma frase free-traderista vulgar.

Mais adiante, no quarto ponto, Bukhárine acusa Krássine de não ver que nós devemos caminhar para o aperfeiçoamento da nossa política aduaneira e simultaneamente acusa-me de cometer um erro ao falar em vigilantes em todo o país, quando se trata, de facto, apenas dos pontos de importação e de exportação. Uma vez mais as objecções de Bukhárine surpreendem pela leviandade e não atingem o alvo, porque Krássine não só vê o aperfeiçoamento da nossa política aduaneira, não só o reconhece intei-

* Nepman: nome dado aos que enriqueciam a coberto da nova política econômica. (N.Ed.)

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ramente, como o assinala com uma exactidão que não admite nem sombra de dúvida. Esse aperfeiçoa-mento consiste precisamente em que nós adoptámos o sistema do monopólio do comércio externo, em primeiro lugar, e em segundo lugar, o sistema da formação de sociedades mistas.

Bukhárine não vê — e esse é o seu erro mais surpreendente, um erro puramente teórico — que nenhuma política aduaneira pode ser efectiva na época do imperialismo e de uma diferença monstruo-sa entre os países miseráveis e os países incrivelmente ricos. Várias vezes Bukhárine evoca a protecção aduaneira sem ver que nas condições indicadas qualquer dos países industriais ricos pode quebrar por completo essa protecção. Para isso bastar-lhe-á estabelecer um prêmio de exportação pela exportação para a Rússia daquelas mercadorias que são sujeitas no nosso país ao imposto aduaneiro. Qualquer país industrial tem dinheiro mais do que suficiente para isso, e em resultado dessa medida qualquer país in-dustrial quebrará de certeza a nossa indústria nacional.

Por isso todas as divagações de Bukhárine sobre a política aduaneira não significam na prática outra coisa senão o desamparo mais completo da indústria russa e uma passagem, sob uma forma mais velada, para o sistema do comércio livre. Devemos lutar contra isso com todas as forças, lutar até ao congresso do partido, pois não se pode tratar de forma alguma hoje, na época do imperialismo, de outra política aduaneira séria além do sistema do monopólio do comércio externo.

A acusação de Bukhárine a Krássine (no quinto ponto) de que este não compreende toda a impor-tância da intensificação da circulação é refutada completamente por aquilo que Krássine diz em relação às sociedades mistas, porque essas sociedades mistas não perseguem outros objectivos senão precisamente a intensificação da circulação, mantendo uma protecção real e não fictícia, como acontecia na protecção aduaneira da nossa indústria russa.

Quando a seguir, no sexto ponto, Bukhárine escreve, em objecção a mim, que para ele não é im-portante o facto de que o camponês conclua uma transacção vantajosa e que a luta se travaria pretensa-mente não entre o camponês e o Poder Soviético, mas sim entre o Poder Soviético e o exportador, isso é uma vez mais radicalmente falso, visto que o exportador, dada, por exemplo, a diferença entre os preços por mim indicada (o linho custa na Rússia 4,5 rublos, e 14 rublos na Inglaterra), mobilizará em torno de si todo o campesinato da maneira mais rápida, segura e indubitável. Na prática Bukhárine assume a defesa do especulador, do pequeno burguês e das camadas superiores do campesinato contra o proletariado in-dustrial, o qual não está de modo algum em condições de restabelecer a sua indústria e de tornar a Rússia um país industrial sem a protejer exclusivamente pelo monopólio do comércio externo e não, de forma alguma, por uma política aduaneira. Qualquer outro proteccionismo nas condições da Rússia actual é um proteccionismo completamente fictício, existente apenas no papel, que não dará nada ao proletariado. Por isso, do ponto de vista do proletariado e da sua indústria, essa luta tem um significado fundamental, de princípio. O sistema das sociedades mistas é o único sistema que está realmente em condições de me-lhorar o mau aparelho do Comissariado do Povo do Comércio Externo, pois nesse sistema estão a traba-lhar lado a lado o comerciante estrangeiro e russo. Se não soubermos, mesmo em tais condições, estudar, aprender e aprender completamente, então o nosso povo é irremediavelmente um povo de estúpidos.

Mas se talarmos na «protecção aduaneira» isso significará que fechamos os olhos aos perigos in-dicados por Krássine com toda a evidência, que não foram refutados, em nenhuma das suas partes, por Bukhárine.

Acrescentarei ainda que a abertura parcial das fronteiras trará consigo os perigos mais sérios no que respeita às divisas, pois na prática cairemos na situação da Alemanha, trará consigo perigos muito sérios no sentido da penetração na Rússia, sem que tenhamos a menor possibilidade de controlo, da pequena burguesia e de agentes de todo o gênero da Rússia de além- -fronteiras.

Aproveitar as sociedades mistas para aprender de uma maneira séria e prolongada — tal é o único caminho para o restabelecimento da nossa indústria. Lénine

Ditado por telefone em 13 de Dezembro de 1922. Pu-blicado integralmente pela primeira vez em 1930 na revista Proletárskaia Revoliútsia, n.° 2-3.

Obras Completas de V. I. Lénine, 5.” ed. em russo* t. 45, pp. 333-337.

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CONFErENCIA DEL PC(b)r DE LA PrOVINCIA DE MOSCÚLénine

20-22 DE NOVIEMBrE DE 1920

1NuEStrA SItuACIóN EXtErIOr E INtErNA

Y LAS tArEAS DEL PASuDO

DÍSCURSO DEL 21 DE NOVIEMBRE(Aplausos) ¡Camaradas! Hablando de la situación internacional de la República Soviética tendremos

naturalmente que referirnos más nada, a la guerra polaca y a la derrota de Wrangel. Creo que en una reu-nión de militantes del partido, que, claro está, han seguido la prensa del partido y escuchado repetidas veces informes fundamentales sobre este problema, no es necesario y cierto sería superfluo hablar en detalle de todo este período o de cada fase de la guerra contra Polonia, del carácter de nuestras ofensivas, de la significación de la derrota sufrida a las puertas de Varsovia. Supongo que, en este aspecto, la cues-tión es ya tan conocida para la mayoría de los camaradas que tendría que repetirme, y con ello sólo haría que los camaradas no estuvieran satisfechos. Por eso no me referiré a los diferentes episodios y virajes de nuestra campaña polaca. Sólo me detendré en el análisis de los resultados que hemos obtenido.

Después de las brillantes victorias del Ejército Rojo en el verano, después de la tremenda derrota a las puertas de Varsovia, después de la firma de la paz preliminar con Polonia, que ahora precisamente, en Riga, se está convirtiendo o debe convertirse en una paz definitiva, han aumentado en enorme medida las probabilidades de que esta paz preliminar sea de verdad definitiva, han aumentado gracias a la derrota de Wrangel. Ahora que esa derrota se ha definido, la prensa imperialista de la Entente comienza a descubrir su juego y a reconocer lo que hasta el momento más se esforzó por ocultar.

No sé si habrán prestado ustedes atención a un suelto que publica la prensa de hoy o de estos días, acerca de que el periódico francés Le Temps*, vocero de la burguesía imperialista francesa, dice ahora que la paz con Polonia se ha firmado a pesar de los consejos de Francia. Es indudable que allí, los represen-tantes de la burguesía confiesan la verdad que más quisieron ocultar y que verdaderamente han ocultado durante mucho tiempo. Pese a las condiciones desfavorables de la paz polaca (aunque más ventajosas que las que nosotros mismos propusimos en abril de este año a los terratenientes polacos para evitar cualquier guerra), y son desfavorables desde el punto de vista de lo que podría haberse conseguido si no se hubiese creado una situación extremadamente grave en las cercanías de Varsovia, hemos logrado, no obstante, condiciones de paz que desbaratan la mayor parte del plan general de los imperialistas. La bur-guesía francesa reconoce ahora que insistió en que Polonia continuase la guerra, que se manifestó contra-ria a la firma de la paz por temor a la derrota de Wrangel y con el deseo de apoyar una nueva intervención y una campaña contra la República Soviética. A pesar de que las condiciones del imperialismo polaco: han empujado y empujan a la guerra contra Rusia, a pesar de ello, el plan de los imperialistas franceses ha fracasado, y como resultado obtenemos ahora algo más sustancial que una simple tregua.

De los pequeños Estados que formaban parte del antiguo Imperio ruso, Polonia figuraba entre los que manifestaron más hostilidad hacia el pueblo gran ruso durante los tres últimos años, y que más pre-tensiones tenían sobre gran parte de los territorios poblados por no polacos. También hemos firmado la paz con Finlandia, Estonia y Letonia, contra los deseos de la Entente imperialista, pero esto fue fácil de conseguir porque en Finlandia, Estonia y Lituania la burguesía no tenía sus propios fines imperialistas que hiciesen necesaria la lucha contra la República Soviética, mientras que los apetitos de la república burguesa polaca orientaban, no sólo hacia Lituania y Bielorrusia, sino también hacia Ucrania. Además, la república burguesa polaca se ve empujada en esta dirección por la lucha secular de Polonia, que en su tiempo fue una gran potencia y que ahora enfrenta a otra gran potencia, Rusia. Ni siquiera hoy puede desistir Polonia de su vieja lucha secular. Por eso mismo ha manifestado mayor belicosidad y más tesón en sus planes militares contra nuestra república, y por eso mismo tiene mayor importancia nuestro éxito de

* Le Temps (“El tiempo”): diario conservador publicado en París desde 1861 hasta 1942. Reflejaba los intereses de los círculos dirigen-tes de Francia; virtualmente era el órgano oficial del ministerio de Relaciones Exteriores. (Ed.)

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firmar la paz, mal que le pese a la Entente. Entre los Estados qué conservan el régimen burgués y limitan con Rusia, no hay otro país que Polonia en el cual la Entente pueda confiar en un plan de intervención militar de largo alcance; es por eso que, en su odio común al poder soviético, todos los Estados burgueses están directamente interesados en que los terratenientes polacos dominen la Galitzia oriental.

Además, Polonia tiene pretensiones sobre Ucrania y Lituania. Esto da a la campaña un carácter particularmente agudo y persistente. Naturalmente, proveer de material militar a Polonia fue la preocu-pación principal de Francia y de algunas otras potencias, y son incalculables las sumas destinadas a este fin. Por eso es tan grande la importancia de la victoria que en fin de cuentas ha logrado el Ejército Rojo, a pesar de la derrota a las puertas de Varsovia, porque colocó a Polonia en una situación tal que le resulta imposible continuar la guerra. Ha tenido que aceptar una paz que le dio menos de lo que le ofrecíamos en abril de 1920, en vísperas de la ofensiva polaca, cuando nosotros, que no queríamos interrumpir la construcción económica, propusimos fronteras que eran sumamente ventajosas para nosotros, entonces, la prensa de los patriotas pequeñoburgueses, entre los cuales 80 encuentran también nuestros eseristas y mencheviques, acusó a los bolcheviques de conciliación, y de actitud poco menos que tolstoiana la que adoptó el poder soviético. Calificó de actitud tolstoiana que accediéramos a la paz según la línea Pilsudski de aquel entonces, según la línea en virtud de la cual Minsk quedaba en manos de Polonia, en tanto que la frontera pasaba a unas 50 verstas, y en ciertos lugares a unas 100 verstas, al este de la línea ahora de-marcada. Naturalmente, no tengo que decir a una reunión de militantes del partido porqué aceptamos y tuvimos que aceptar fronteras peores si realmente nuestra construcción económica no debía ser inter-rumpida. El resultado fue que, al librar la guerra, Polonia, que conservaba su régimen burgués, provocó la aguda desorganización económica de todo el país, provocó un extraordinario aumento del descontento, provocó el terror burgués, que se ensaña no sólo con los obreros industriales sino también con los peones agrícolas. Toda la situación de Polonia como Estado burgués, se hizo hasta tal punto inestable, que no era posible continuar la guerra.

Los éxitos alcanzados en este sentido por el poder soviético son enormes. Cuando tres años atrás planteamos las tareas y las condiciones para la victoria de la revolución proletaria en Rusia, siempre diji-mos terminantemente que esa victoria podía no ser estable a menos que fuera seguida por la revolución proletaria en occidente, y que una apreciación correcta de nuestra revolución sólo era posible desde el punto de vista internacional. Para obtener una victoria duradera, debíamos conseguir la victoria de la revolución proletaria en todos o cuando menos, en varios de los principales países capitalistas. Después de tres años de guerra encarnizada y persistente vemos en qué sentido no se han materializado nuestras predicciones y en qué sentido se han materializado. No se materializaron en el sentido de que no ha ha-bido una solución rápida o simple del problema. Naturalmente, ninguno de nosotros esperaba que una lucha tan desigual como la de Rusia contra todas las potencias capitalistas del mundo pudiese prolongarse durante tres años. Resultó que ninguna de las partes, ni la República Soviética de Rusia ni todo el resto del mundo capitalista, obtuvo para sí la victoria o salió derrotado; al mismo tiempo resultó que si bien nues-tras predicciones no se materializaron simple, rápida y directamente, se cumplieron en la medida en que obtuvimos lo esencial, pues lo esencial era mantener la posibilidad de existencia del poder proletario y de la República Soviética, inclusive en el caso de que se demorase la revolución socialista mundial. Y en este sentido es necesario decir que la situación internacional de la República da hoy la mejor y más precisa confirmación de todos nuestros planes y de toda nuestra política.

Es innecesario decir que no se pueden comparar las fuerzas militares de la RSFSR con las de todas las potencias capitalistas. En este sentido somos diez, cien veces más débiles que ellas; sin embargo, des-pués de tres años de guerra hemos obligado a casi todos ésos Estados a renunciar a la idea de una nueva intervención. O sea, que ocurrió lo que hace tres años, en la situación de la guerra imperialista aún no aca-bada, creíamos posible, a saber un prolongado estancamiento de la situación, no resuelto decididamente a favor de ninguna de las dos partes. ¿Pero por qué razón ocurrió así? Ocurrió así no porque militarmen-te fuésemos más fuertes y la Entente más débil; sino porque se intensificó la desintegración interna en los Estados de la Entente, mientras que, por el contrario, en nuestro país se produjo un fortalecimiento interno. Esto ha sido confirmado y demostrado por la guerra. La Entente no fue capaz de luchar contra nosotros con sus propias fuerzas. En los Estados capitalistas no se pudo obligar a los obreros y campesinos

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a combatir contra nosotros. Los Estados burgueses pudieron salir de la guerra imperialista conservando intacto su régimen burgués. Pudieron demorar y aplazar la crisis que se cernía directamente sobre ellos, pero básicamente minaron su situación de tal manera, que al cabo de tres años, y a pesar de todas sus gigantescas fuerzas militares, tuvieron que reconocer que no estaban en condiciones de aplastar a la República Soviética, que apenas tiene fuerzas militares. Así, pues, resultó que quedaron confirmadas fun-damentalmente, en todo sentido, nuestra política y nuestras previsiones, y que nuestros aliados fueron realmente las oprimidas de todo Estado capitalista, pues ellas detuvieron la guerra. Nos encontramos en la situación de que, sin haber logrado una victoria internacional, la única victoria segura para nosotros, hemos conquistado las condiciones que nos permiten subsistir al lado de las potencias capitalistas, obliga-das ahora a establecer relaciones comerciales con nosotros. En el proceso de esta lucha hemos conquis-tado el derecho a una existencia independiente.

Por lo tanto, una mirada a nuestra situación internacional en su conjunto mostrará que hemos logrado éxitos inmensos, que no sólo hemos ganado una tregua, sino algo mucho más importante. En-tendemos por tregua un breve período, durante el cual las potencias imperialistas han tenido muchas oportunidades de renovar con mayor fuerza la guerra contra nosotros. Tampoco ahora nos permitiremos dejarnos llevar por el entusiasmo, ni negar la posibilidad de una futura intervención militar de los países capitalistas. Es esencial para nosotros mantener nuestra preparación militar. Sin embargo, si examinamos las condiciones en que frustramos todas las tentativas de la contrarrevolución rusa y conseguimos la fir-ma formal de la paz con todos los Estados de occidente, resultará claro que tonemos algo más que una tregua: hemos entrado en un nuevo período en el que hemos ganado nuestra existencia internacional fundamental, en el sistema de los Estados capitalistas. La situación interna no permitió a un solo Estado capitalista poderoso lanzar sus ejércitos contra Rusia; así se manifestó el hecho de que dentro de esos países la revolución ha madurado y les impide vencernos tan rápidamente como podían haberlo hecho. Durante tres años hubo en territorio ruso tropas inglesas, francesas, japonesas. No cabe duda que la más insignificante concentración de las fuerzas de estas tres potencias habría sido más que suficiente para vencernos en unos meses, si no en algunas semanas. Y si fuimos capaces de contener ese ataque, sólo se debió a la desmoralización entre los tropas francesas, y a la inquietud que comenzó a manifestarse entre los ingleses y japoneses. Siempre hemos aprovechado esa divergencia de los intereses imperialistas. Der-rotamos a los intervencionistas sólo porque sus intereses los dividían, mientras que a nosotros nos unían y fortalecían. Así aseguramos una tregua e hicimos imposible la completa victoria del imperialismo alemán en la época de la paz de Brest*.

Ahora, últimamente, esas disensiones se han agravado aun más, sobre todo a causa del proyecto de tratado sobre concesiones con un grupo de tiburones capitalistas norteamericanos, de los más fuertes, encabezados por un multimillonario que espera formar un grupo de multimillonarios. Sabemos que casi todos los despachos del Extremo Oriente testimonian el gran resentimiento que existe en Japón ante la concertación de dicho tratado, aunque este todavía no exista y sea sólo un proyecto. Pero la opinión públi-ca japonesa ha empezado ya a agitarse, y hoy he leído una información en la que se dice que Japón acusa a la Rusia soviética de querer indisponerlo con Norteamérica.

Nosotros hemos apreciado correctamente la intensidad de la rivalidad imperialista y nos hemos dicho que debemos utilizar sistemáticamente la disensión entre ellos para dificultar la lucha contra no-sotros. La divergencia política en las relaciones entre Inglaterra y Francia es ya un hecho. Hoy podemos hablar, no sólo de tregua, sino de reales posibilidades de un nuevo y más largo período para la construcci-ón. En realidad, hasta ahora no habíamos tenido ninguna base en el plano internacional. Ahora tenemos esa base, debido a la actitud de las pequeñas potencias que dependen completamente de las grandes potencias en el sentido militar y en el económico. Ahora resulta que Polonia, a pesar de la presión ejer-cida por Francia, ha firmado la paz con nosotros. El odio de los capitalistas, polacos al poder soviético es muy fuerte; reprimen con incomparable ferocidad las huegas más comunes. Ellos quieren la guerra con la Rusia soviética más que ninguna otra cosa pero, de todos modos, ellos prefieren la paz con nosotros que cumplir las condiciones de la Entente. Vemos que las potencias imperialistas dominan todo el mundo, aunque ellas abarcan una parte insignificante de la población mundial. El hecho de que un país haya sur-

* Véase V. I. Lenin, ob. cit., t. XXIV, nota 63. (Ed.)

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gido y que durante tres años haya resistido al imperialismo mundial, ha modificado considerablemente la situación internacional, y por este motivo todas las pequeñas potencias — que constituyen la mayoría de la población mundial—, se inclinan por la paz con nosotros.

El establecimiento de relaciones comerciales del país socialista con los países capitalistas es el factor más importante que asegura nuestra subsistencia en una situación tan compleja y absolutamente excep-cional.

He tenido ocasión de comprobar cómo Spargo, un socialchovinista norteamericano, parecido a nuestros eseristas de derecha y mencheviques, uno de los dirigentes de la II Internacional y miembro del Partido Socialista de Norteamérica*, una especie de Alexinski norteamericano, autor de una verdadera montana de libros contra os bolcheviques, nos ha reprochado — y lo ha presentado como evidencia del total fracaso del comunismo— hablar de transacciones con las potencias capitalistas. Escribe: no puedo imaginar mejor prueba del total fracaso del comunismo y del desmoronamiento de su programa. Yo creo que quienes hayan pensado acerca de ello, dirán lo contrario. Es imposible encontrar mejor prueba de la victoria material y moral de la República Soviética de Rusia sobre los capitalistas de todo el mundo, que el hecho de que las potencias que tomaron las armas contra nosotros debido a nuestro terror y a todo nuestro sistema, se hayan visto obligadas, contra su deseo, a emprender el camino de los contactos co-merciales, sabiendo que con esto nos fortalecen. Habría sido posible presentar esto como una prueba del fracaso del comunismo sólo si hubiésemos prometido o soñado transformar todo el mundo con las fuer-zas de Rusia sola. Pero nunca hemos tenido ideas tan extravagantes, y hemos dicho siempre que nuestra revolución vencerá cuando sea apoyada por los obreros de todos los países. En realidad, la apoyaron a medias, pues han debilitado el brazo que se alzó, contra nosotros, pero haciendo eso nos han ayudado.

No me detendré más en este problema pero señalaré únicamente que en, este momento hay en el Cáucaso una situación muy compleja y sumamente difícil de analizar, con la posibilidad de que la guer-ra puede sernos impuesta el día menos pensado. Pero con la paz con Polonia casi asegurada y con la completa liquidación de Wrangel, esa guerra no puede ser muy temible, y si nos la impusieran, ella nos promete reforzar y consolidar aun más que antes nuestra posición. Las informaciones de los periódicos sobre los acontecimientos en Armenia y en Turquía nos dan cierta idea al respecto. Se está creando una situación extremadamente confusa, pero estoy completamente seguro de que saldemos de ella, mante-niendo la paz sobre la base actual, que en algunos aspectos es sumamente favorable, sobre una base que es satisfactoria para nosotros y permite nuestra existencia económica. Y para ello empeñaremos todos los esfuerzos. Es posible, sin embargo, que las circunstancias nos impongan directamente la guerra o que, indirectamente, lleven a ella. Podemos encarar esta perspectiva con toda tranquilidad: sería una guerra en una alejada región, con total superioridad de fuerzas de nuestra parte, y probablemente asegure ven-tajas mayores que las de la guerra polaca. La guerra polaca fue una guerra en dos frentes, con la amenaza de Wrangel, y no podía ser calificada de periférica, porque la línea Pilsudski no corría muy lejos de Moscú. Con esto termino el análisis de la situación internacional.

[...suprimido pelo editor...]

* Véase V. I. Lenin ob. cit., t. XVI, nota 9. (Ed.)

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A POLôNIA E O CICLO LONgOIgnácio Rangel

IntroduçãoCOM NOTÁVEL pontualidade, a economia capitalista mundial imergiu na crise correspondente à

transição do Quarto Ciclo de Kondratieff, de sua fase a (ascendente), para sua fase b (descendente). Exa-tamente um século depois de transição semelhante, do Segundo Ciclo Longo e 52 anos depois (uma defa-sagem mais do que razoável, num período que envolveu duas guerras mundiais) do advento da fase b do Terceiro Ciclo Longo. Depois, como das vezes anteriores. dado que os ciclos longos não excluem os ciclos mais breves, especialmente o médio, vencida a fossa dos anos 74-75, os indicadores econômicos torna-ram-se um pouco menos loucos, mas os tempos estavam irremissivelmente mudados, isto é, acabara-se o quartel de século de expansão notável, correspondente à fase a do Quarto Ciclo Longo. Sua duração fora virtualmente a mesma das precedentes fases a, mas pela amplitude e intensidade, nada houve, no passa-do, que se lhe comparasse. Ora, como é próprio dos movimentos ondulatórios, uma forte fase ascendente deve prenunciar um enérgico movimento descendente.

A fase a do Quarto Kondratieff corresponde a um fenômeno muito relevante: a chamada Revolução Científico-Técnica, que muitos são propensos a considerar um fenômeno singular, sem precedentes, mas que o velho Kondratieff provavelmente explicaria como uma ocorrência própria às ondas longas em geral, e não somente a esta. Noutros termos, durante a fase b do Terceiro Kondratieff parece haver-se acumu-lado um estoque imenso de inovações tecnológicas — ou melhor, de condições prévias para estas - de tal maneira que a reconstrução do segundo pós-guerra assumiu a forma de radical remodelação de todo o parque produtivo do sistema capitalista.

A teoria do ciclo, que tanta voga havia tido, nos meios acadêmicos ocidentais, nos lustros finais da fase b do Terceiro Kondratieff, pondo em evidência, como de astros de primeira grandeza, nomes ilustres como os de Juglar, Kondratieff e Schumpeter, caiu em virtual esquecimento, submersa pela onda de oti-mismo que acompanhou a fase a do Ciclo Longo, para voltar à voga, agora, que a economia capitalista mundial está novamente em crise e sem qualquer perspectiva de superação.

Segundo todas as aparências, estamos agora (1982) mergulhando na fase b do Segundo Ciclo Médio inscrito na fase b do Quarto Ciclo Longo — já que a correspondente ao primeiro coincidiu com a fase b do ciclo longo. É como se, mutatis mutandis, estivéssemos revivendo o período 1929-33.

O Socialismo e o Ciclo LongoA economia mundial encontra-se agora — como em 1929-33 — dividida em duas economias con-

trapostas e de comportamentos muito diferentes, perante o Ciclo Longo: a capitalista e a socialista. Como da outra vez, embora a crise tenha origem no bojo da economia capitalista, a outra economia contraposta não poderia escapar às consequências do choque. De fato, o Primeiro Plano Quinquenal soviético fora concebido na expectativa de um ativo comércio com o mundo capitalista, hipótese que não se confirmou. Consequentemente, a economia socialista teve que se voltar sobre si mesma, em medida insuspeitada, forçada pelos próprios fatos, encerrando-se os debates intermináveis em torno de certos parâmetros do plano, notadamente o papel do comércio exterior e o grau de prioridade a se conceder à indústria pesada. A insuficiência do comércio exterior foi, como é notório, compensada por uma prioridade absoluta para o crescimento da indústria pesada, o que pôs em evidência um potencial produtivo desconhecido, no seio da economia. Nós, no Brasil, passamos por experiência semelhante — embora não comparável, do ponto de vista quantitativo — no mesmo período.

Simetricamente, hoje, a crise do mundo capitalista está suscitando, no interior do mundo socialista, problemas semelhantes. Mais uma vez é posto em causa o esquema da divisão internacional do trabalho, com a diferença de que, agora, o peso do sistema socialista é muito maior, abrindo-se a possibilidade de que ele passe a exercer papel muito mais ativo. Assim, em vez de uma generalizada busca da autarcia

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— como aconteceu durante a outra Grande Depressão — é possível que se amplie o quadro da divisão internacional do trabalho, não apenas no interior do sistema socialista, mas também com as parcelas do mundo capitalista que, por suas próprias razões estejam menos inclinadas a perseguir a autarcia.

No momento, a divisão do trabalho no interior do mundo socialista apresenta quadros muito dife-rentes, conforme se trate da divisão entre setores e regiões do mesmo país ou entre países soberanos. A divisão do trabalho intranacional é maximizada, ao passo que o intercâmbio com outros países, não ape-nas é muito limitado, como, no fundamental obedece ainda a normas herdadas do capitalismo, apesar de três décadas de COMECON. Enquanto perdurassem as condições gerais da fase ascendente do Ciclo Lon-go, isso seria inevitável, porque os mercados capitalistas não podiam deixar de fazer sentir sua atração. Foram, é certo, estabelecidos modelos de um comércio de novo tipo — comércio planificado de Estado —, mas o comércio tradicional perdurou, com resultados notórios.

A insolvência da Polônia é apenas uma das manifestações desse socialismo a meias, um pouco pre-sente por toda parte e, especialmente na Rumânia, na Hungria e na Iugoslávia. Entretanto, agora que a crise faz sentir o seu império, num momento em que importantes países capitalistas consentem em entrar em transações de novo tipo, segundo o protótipo dos acordos relativos ao gás siberiano pela Europa Oci-dental, os pruridos autonomistas, que bloquearam por tanto tempo o desenvolvimento do intercâmbio entre os países socialistas, terão que cessar. É sintomático que o intercâmbio do Mercado Comum Euro-peu com a União Soviética vá de vento em popa, quando as relações do mesmo MCE com os outros países socialistas se empantanam num quadro de óbvia insolvência, sem perspectivas. Parece claro que o que está em crise é um estilo especial de comércio, que deriva o seu prestígio da tradição, mas que esgotou suas possibilidades: o comércio de tipo capitalista.

Um estilo novo de comércio, que já floresce entre países dos dois mundos, tenderá, com maior ra-zão, a florescer no interior do mundo socialista, cujas condições reflete.

Divisão Internacional do Trabalho ou AutarciaTal como ocorreu quando da Grande Depressão, a guerra comercial acirra-se agora sem cessar. Cada

país capitalista procura preservar para si mesmo a maior fatia possível de mercado e, como é natural, o primeiro mercado a conquistar ou preservar, é o próprio. (Países que, como o Brasil, presentemente, lon-ge de conquistar novos mercados ou sequer preservar o seu próprio, para suas indústrias, na busca cega de novos financiamentos externos, ao contrário organizam a conquista do próprio mercado por indústrias alheias, não constituem a regra, pelo menos entre os países capitalistas desenvolvidos. Mesmo para esses países tal “política” deve ser vista como transitória, reflexo de um estado de coisas já passado, o semi--colonialismo).

Potencialmente, a redistribuição dos mercados que está implícita nessa guerra comercial não pas-sará sem consequências para as oportunidades de inversão e, por essa via, sobre as diversas conjunturas econômicas nacionais. Com efeito, para alguns países, o esforço implícito de substituição de importações — a exemplo do que aconteceu com o Brasil nos quadros da Grande Depressão - pode trazer consigo o motor primário de um sério processo de desenvolvimento. Para outros, como talvez seja o caso dos EUA, o fechamento da economia pode trazer consigo um importante esforço de soerguimento da economia nacional, ainda que transitório. Mas esse não será, necessariamente, o caso geral.

Para numerosos países (desenvolvidos e subdesenvolvidos; grandes e pequenos) por várias razões, as condições criadas pelo sustentado esforço de crescimento econômico do segundo pós-guerra torna-ram essencial um elevado coeficiente de abertura, não apenas para o desenvolvimento, mas simples-mente para limitar os efeitos depressivos da conjuntura mundial. Ora, tais países não poderiam deixar de sentir — e, de fato não deixaram de sentir — o significado das possibilidades de comércio abertas pelo mundo socialista e, no presente estágio, principalmente pela União Soviética, para qualquer programa que vise a compensar o fechamento geral das economias capitalistas, nos quadros da fase b do Ciclo Longo. E, de fato, especialmente desde o advento da fase b do Ciclo Longo (1973-74) o intercâmbio entre os dois mundos não tem parado de crescer, embora ainda se mantenha em nível muito baixo, porque as

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economias socialistas foram levadas a um grau muito elevado de autarcia, pelo bloqueio intencional do comércio ou pela simples inadequação do estilo tradicional de comércio, para com as condições específi-cas das economias socialistas. Com efeito, o comércio internacional suscita problemas muito complexos de planejamento. Uma coisa é tomar decisões — por vezes a prazos muito dilatados, como no caso do gás siberiano — interessando a setores ou regiões do mesmo país, e outra é transportar essas decisões para a arena internacional, mesmo entre países socialistas.

Precisamente esse problema começa a ser posto em equação, nos quadros da presente recessão. O intercâmbio entre os dois mundos — e, até certo ponto, no interior do próprio bloco socialista — continua a se desenvolver nos quadros do tradicional comércio capitalista: a permuta de excedentes mais ou me-nos eventuais. Um comércio verdadeiramente socialista, envolvendo uma divisão planificada do trabalho, no campo internacional, continua a ser exceção, insistamos, mesmo entre países socialistas, não obstante todos os esforços envidados desde a fundação do COMECON, há três décadas. Esse estado de coisas ten-de a mudar agora, em consequência da crise mundial do capitalismo, que é também a crise do comércio tradicional, não planificado.

Claro está que contra o comércio de novo estilo erguem-se resistências sob os mais especiosos pre-textos — inclusive sob o pretexto de uma auto-gestão que, de fato, visa a institucionalizar a anarquia da produção, isto é, bloquear o planejamento, em geral, e o planejamento do comércio exterior, em particu-lar. E, por outro lado, esse comércio de novo tipo conviverá com o comércio tradicional, que está condu-zindo a becos sem saída, como o da Polônia, cujo endividamento em pouca coisa difere do nosso próprio endividamento. O problema consiste em saber se a tendência será o retorno ao comércio de velho tipo ou, ao contrário, a generalização do comércio de novo tipo — comércio planificado e de Estado — do qual os contratos relativos ao gás siberiano representam um bom prenúncio.

O Olho do FuracãoAo assumir a presidência dos EUA, Ronald Reagan definiu como meta prioritária de seu governo

obrigar a Europa Ocidental a renunciar a esta e congêneres operações, e tem-se mantido fiel à sua pro-messa, embora sem muito êxito visível, porque as assinaturas dos contratos se sucedem. Revela-se muito difícil levar os países do Mercado Comum Europeu, imersos numa crise que, entre seus indicadores, já apresenta um desemprego de mais de 10 milhões de trabalhadores, a renunciar às poucas transações re-almente brilhantes que se lhes antolham. O Japão, mais discretamente, discute operações semelhantes, interessando a Sibéria Oriental.

A relutância dos países da Europa Oriental em se engajarem mais a fundo em operações integracio-nistas, no seio do bloco socialista — e a rebelião polonesa não passa de uma manifestação dessa relutân-cia — não terá futuro se os próprios países capitalistas, com a Alemanha Ocidental, a França e a Itália à frente, prosseguem no caminho que estão começando a trilhar. O gasoduto de quase 5 mil quilômetros, da Sibéria Ocidental até a França, começou a ser construído, em condições que tornam difícil um passo atrás, porque o Ocidente está jogando nele seu próprio dinheiro, o qual estaria perdido, em caso de guer-ra. Essa operação é, portanto, um ato de fé na paz, vale dizer, uma tomada de posição contra tudo o que o atual governo dos EUA representa. Anuncia-se para o próximo ano a conclusão da obra.

Não se trata, pois, de uma simples questão de se tornarem ou não os países da OTAN energetica-mente dependentes da Sibéria, porque essa dependência seria apenas parcial e, do ponto de vista eu-ropeu, distribuiria melhor os riscos. Trata-se de que a operação tem uma inequívoca conotação política, dado que, na hipótese de uma guerra, ela não se justificaria absolutamente. Trata-se, além disso, de uma clara opção por formas socialistas de divisão internacional do trabalho, digam o que disserem os porta--vozes dos países europeus ocidentais.

Ora, o Solidariedade representa, para a Polônia, o repúdio a essas formas novas de comércio, que são, a longo prazo, incompatíveis com os exclusivismos nacionais, porque estabelecem vínculos duradou-ros, talvez indissolúveis entre os países interessados. Se transações como a do gás siberiano se multipli-cam, a luta contra a depressão econômica mundial tornar-se-á muito mais fácil, mas a guerra ter-se-á

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tornado impensável, porque o bem-estar de cada país tornar-se-á muito dependente do que esteja acon-tecendo a outros países distantes. Tão impensável como seria, hoje, a guerra entre as províncias de um mesmo país.

A Economia, a Política e a GuerraDizia Clausewitz que a guerra é a política levada a cabo por outros meios. Por meios violentos,

acrescentaria Lenin. Ora, simetricamente, podemos dizer que a política é a economia levada a cabo por outros meios. Noutros termos, os conflitos que não encontram solução no seu campo de origem, que é, basicamente, o econômico, tendem a comprometer as classes sociais, no campo interno, e os povos, na arena internacional; vale dizer, tendem a transferir-se para o campo político onde, eventualmente, encon-trarão solução. Se, entretanto, isso não ocorrer, o conflito humano, ou regredirá para o campo econômico ou evoluirá para o militar. Assim, os conflitos fundamentais de interesses suscitados pela presente crise econômica mundial do capitalismo assumem a forma de conflito político.

O paradoxal é que, entre os blocos militares potencialmente em confronto — o Pacto de Varsóvia e a OTAN — não há conflitos econômicos, os quais surgiram, no fundamental, entre os aliados militares. A política da União Soviética de consolidar a paz, isto é, de transferir a contenda para o campo econômico, só não é inteiramente privada de sentido, por esse motivo, isto é, porque ela julga ser possível ajudar as potências capitalistas a encontrar saídas para seus problemas. Com efeito, vimos que, para alguns dos países capitalistas, certa medida de isolamento seria um alívio para sua situação. Este é, basicamente, o caso dos EUA. Entretanto, como esse não é o caso geral, os países que perderem posições no mercado norte-americano terão sua crise agravada, a menos que novo cliente se apresente.

A posição da União Soviética e do mundo socialista é excepcionalmente forte, para levar a cabo esse tipo de política. O planejamento econômico que — como durante o Primeiro Plano Quinquenal — revelou sua eficácia ao suscitar artificialmente uma medida extraordinária de auto-suficiência ou autarcia, já que as expectativas de comércio exterior haviam sido frustradas pela crise do capitalismo, pode perfeitamente ser usado agora para criar complementaridades, isto é, oportunidades de comércio.

É certo que toda vez que a União Soviética e seus aliados se revelam interessados em comprar no estrangeiro seja lá o que for — desde simples cereais, a tecnologia de ponta — não faltará quem nisso veja o calcanhar de Aquiles do sistema socialista e, consequentemente, uma oportunidade de ouro para derrubar o colosso de pés de barro, simplesmente embargando a exportação daqueles itens específicos. Comércio com os soviéticos, sim, mas somente suprindo-lhes coisas que não lhes façam falta. Isso, não obstante multiplicarem-se os casos em que os soviéticos aparecem como exportadores de artigos que figuravam antes nas listas de embargos às exportações para a mesma União Soviética.

E esse tipo de política sem perspectivas uma das coisas que presentemente estão em pauta na are-na mundial. O Ocidente, nas vascas de. uma crise para a qual não se vislumbram saídas, insiste em achar o calcanhar de Aquiles do sistema socialista, mas, como é natural, mesmo no Ocidente vai-se tornando difícil encontrar quem ainda acredite em tais fábulas. Quem acredite, por exemplo, que seja possível do-brar a União Soviética, que produz 800 quilos de grãos por habitante, pelo expediente de sonegar-lhe a venda de cereais. Ora, antes da segunda Guerra Mundial, essa produção não chegava a 500 quilos, o que não impediu que as cidades estivessem amplamente supridas, quando o conflito começou, sem o que, por exemplo, a defesa de Leningrado durante quase mil dias de cerco não teria sido praticável.

A humanidade acha-se, pois, sobre o gume de uma navalha. Por um lado, os EUA, desesperados de vencer a competição econômica, especulam com a possibilidade de transferi-la para o campo militar; por outro, a União Soviética se esforça por desagudizar o conflito, fazendo-o regredir a seu campo de origem. E é impossível saber, com segurança, qual será o desfecho desta crise, provavelmente a mais grave deste pós-guerra.

A reação do mundo capitalista não é unívoca, inclusive pela razão já indicada, isto é, porque a crise não alcança por igual a todos os países. Para alguns, é possível que a corrida armamentista seja estimu-lante da economia, mas, para muitos outros, ela apenas servirá para agudizar os problemas. Além disso, a

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posição dos diferentes países, perante a hipótese da guerra, não é a mesma. Para a Europa, por exemplo, a guerra somente pode oferecer o ingrato papel de campo de batalha. Se vitória houver, será para outros — norte-americanos ou russos — não para os europeus. Compreende-se, pois, a reticência destes em se-cundar os norte-americanos em sua política de agudização do conflito, transferindo-o do campo político para o militar.

A Integração Econômica Conduz à PazA revolução científico-técnica, posta em marcha nas condições da guerra e da reconstrução pós-

-bélica, torna cada vez menos brilhantes as perspectivas de desenvolvimento econômico nos quadros de economias nacionais fechadas — mesmo que se trate de países tão vastos e dotados de tão variadas constelações de recursos, como os EUA ou a União Soviética, embora nestes casos o imperativo da inte-gração se faça sentir com menos força. A autarcia, isto é, a busca de auto-suficiência, tende a bloquear o emprego da tecnologia de ponta, seja por motivo de escala, seja da constelação dos recursos. Assim, o nacionalismo econômico tende a tornar-se hostil ao desenvolvimento, a menos que o intercâmbio inter-nacional esteja em expansão, como vinha acontecendo neste pós-guerra e ameaça deixar de acontecer. Em 1981, o quantum do comércio internacional declinou.

A técnica do planejamento permite levar a autarcia a extremos, isto é, a limitar os inconvenientes da auto-suficiência. A União Soviética do Primeiro Plano Quinquenal (1928-32) era um país agrícola atra-sado, quase sem indústria. Uma substituição de importações, em grande parte pré-industrial (artesanal e manufatureira, isto é, pouco exigente em matéria de recursos e de escala), era perfeitamente possível como primeiro passo para uma industrialização a sério, como nós, brasileiros, sabemos, ou devêramos saber, por experiência própria. Era possível conciliar o exclusivismo nacional — aliás imposto de fora para dentro — com o desenvolvimento industrial.

Quanto aos países socialistas da Europa Oriental, um pouco por toda parte, até fins dos anos 50, o planejamento compatibilizou perfeitamente o desenvolvimento e a autarcia, isto é, a redução ao mínimo do comércio exterior. Com os anos 60, pelo menos em dois casos — Alemanha Oriental e Tchecoslováquia — uma medida maior de integração revelou-se necessária, e isso foi feito tanto através de transações de novo tipo com os outros países socialistas, especialmente com a União Soviética, como pela ativação do intercâmbio com o mundo capitalista, então em plena fase de prosperidade. Não por acaso, eram esses os países mais desenvolvidos do sistema. Entretanto, outros países, notadamente a Rumânia e a Polônia, seja por disporem de mais diversificadas constelações de recursos e população compatível com maiores escalas, puderam prosseguir com seu desenvolvimento a elevadas taxas e beneficiando-se do dinamismo que então reinava no mercado mundial capitalista. Ambos esses países, ao longo dos anos 60 e gran-de parte dos 70, apresentaram as mais altas taxas de crescimento do bloco e do mundo, de modo que compreende-se sua resistência a quaisquer ponderações interessando ao seu estilo de planejamento, em geral, e a sua política hostil à maior integração com os outros países socialistas. Nos 17 anos de 1960 a 1977, a Rumânia esteve desenvolvendo sua indústria ao ritmo de 12,7% ao ano e a Polônia a 9,1%, contra 8,7% de todo o bloco socialista e 4,8% do mundo capitalista desenvolvido.

Uma análise séria do problema poria em evidência que esse estado de coisas teria que mudar, pre-cisamente em razão do nível de desenvolvimento já alcançado, que tornaria as economias nacionais mais sensíveis aos problemas de escala e constelação de recursos, mas não é fácil levar um país com tão bri-lhantes desempenhos a se pautar por preocupações relativas a um futuro mais ou menos incerto. Quando a conjuntura muda, então torna-se possível levantar o problema, mas serão necessários muitos anos de crise para que a opinião pública em geral se torne sensível a ele. Compreende-se que aqueles que não desejam ver resolvido o problema surjam como intransigentes defensores da autogestão, a qual numa economia em crise não tem nada de bom a oferecer.

Mas o planejamento econômico não é apenas um instrumento capaz de permitir a um país prescin-dir em grande parte do comércio exterior, como ficou demonstrado durante o Primeiro Plano Quinquenal e, afinal, durante o meio século que se seguiu. Em geral, se alguma coisa puder ser feita, planificadamente se fará melhor. Assim, se à outra parte também convier — isto é, não somente aos outros países socialis-

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tas, mas também aos países capitalistas —, o planejamento pode ser utilizado para, pelo aumento do in-tercâmbio, aumentar o grau de integração da economia do sistema e mundial. Esta parece ser a presente política da União Soviética, aproveitando o fato de que, sob o acicate da mesma crise, nem todos os países capitalistas estarão interessados em isolar-se economicamente e os países socialistas da Europa Oriental, em geral, já esgotaram suas possibilidades de desenvolvimento autárcico.

Não admira, pois, que a crise polonesa — que é a crise do nacionalismo econômico socialista - te-nha, como pano de fundo, a crise política dos países da OTAN, em torno do problema do gás siberiano, que não passa do ponto de partida para um esforço de integração da economia mundial em novas bases. É completamente óbvio que os aliados atlânticos europeus — como a França, a Alemanha e a Itália — não se podem engajar em transações como esta, sem renunciar aos planos de guerra que inspiram a OTAN desde o seu nascimento. Essas transações são, por todo o seu peso, incompatíveis com a guerra.

A Opção pela Paz é PlausívelO governo militar polonês, na escassa medida em que já definiu sua política econômica, foi para

conferir primeira prioridade à produção destinada aos países Credores ocidentais. Claro está que, ainda que fosse por simples questão de atenção para com os credores como tais, caberia prioridade à produção destinada aos outros países socialistas, e, em primeiro lugar, para a União Soviética, seu primeiro credor, mas, a julgar pelo que tem transpirado para nossa imprensa, os “irmãos socialistas” podem esperar, e os outros não.

Do ponto de vista de política interna, essa prioridade conferida à produção destinada aos credores ocidentais vem mesmo a calhar, porque seria muito difícil para o Solidariedade e para a Igreja pôr em dúvida a sabedoria dessa orientação como base para o diálogo que, depois de haverem recusado liminar-mente, parecem querer agora. (Todos devem estar lembrados que os grupos extremistas que pareciam dar o tom no Solidariedade, como o KOR e o Polônia Independente, recusavam qualquer diálogo com o governo. Era mister derrubar o governo e não dialogar com ele, o que colocou o Solidariedade na disjun-tiva de empreender uma ação para a qual não estava preparado, perdendo, em consequência, a partida.) Seria, entretanto, uma surpresa que os países credores ocidentais saudassem tal política. Esses países podem estar interessados no gás e no petróleo siberianos, mas não parecem propensos a receber em pagamento produtos manufaturados, que constam das próprias pautas de exportação e que são tudo o que os poloneses poderão oferecer, se, ou quando, se dispuserem a trabalhar.

O Ocidente — especialmente os EUA, o principal interessado em toldar as águas — começa a brin-car com a idéia de que à União Soviética cabe a responsabilidade pelo pagamento das dívidas polonesas (assim como, provavelmente a seu tempo, as rumenas, as húngaras e, quem sabe, as chinesas também) sob a alegação de que esses países são seus satélites e estão (ou estarão) sob virtual ocupação. A insistên-cia de que houve intervenção na Polônia, contra toda a evidência, talvez tenha esse endereço, isto é, fazer com que o cobrador tome o caminho de Moscou e não o de Varsóvia.

Trata-se, obviamente, de uma manobra sem perspectivas. Quando o Egito tomou a decisão de rom-per com os soviéticos e expulsar os milhares de técnicos russos que estavam ajudando a implantar uma centena de grandes projetos (inclusive Assuan), Moscou não disse palavra acerca dos bilhões de dólares que os egípcios lhe devem nem, muito menos, falaram em mandar o cobrador a Washington, já que não faria sentido mandá-lo ao Cairo. É que os investimentos soviéticos no Egito tinham clara conotação po-lítica e só politicamente poderão ser acertados, do mesmo modo como os investimentos ocidentais na Polônia foram políticos, visando a sustentar a orientação anti-soviética do governo polonês ora deposto e cujos cabeças estão nas prisões, a começar por Gierek.

Pode-se alegar que os soviéticos também compram a crédito no Ocidente e se preparam para dever pesadamente, mas isso se faz em condições incomparáveis com as que informaram os endividamentos polonês, rumeno ou húngaro, como o sugere o fato de que a crise que reduziu a zero o crédito desses países no mesmo Ocidente não afetou o crédito soviético. O que está em crise é um certo modo capitalis-ta de transacionar — um comércio de mão única — não o modo planificado e potencialmente socialista

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de comerciar, do qual os acordos do gás siberiano são um bom exemplo. Para começar, no momento em que são firmados os tratados (porque, em verdade, são tratados, assunto de direito público externo) fica claro como será exigível o ressarcimento. Ora, o fato mesmo de os países ocidentais, membros da aliança anti-soviética, se empenharem em adiantar à União Soviética somas imensas, para ressarcimento escalo-nado por todo um quartel de século, significa não somente que confiam firmemente na boa fé desse país, como, o que é mais importante, digam o que disserem os seus porta-vozes, que não somente não querem a guerra, como que não acreditam na possibilidade de os EUA e a OTAN virem a promovê-la.

É de antiga sabedoria política que, com o inimigo, há que escolher entre fazer-lhe a guerra, ou com-por com ele. Parece que os membros europeu e japonês da trilateral já optaram pela segunda alternativa. Resta ver quanto tempo o terceiro membro — os EUA — tomarão para seguir o mesmo caminho, porque a guerra está deixando de constituir opção válida, numa época em que, mesmo sem o emprego de armas nucleares, a sobrevivência da humanidade pode ser posta em causa, pelas armas químicas e biológicas.

Em crise o “Socialismo Independente”Outro sinal dos tempos está sendo o comportamento de países como a Rumânia, a Iugoslávia e

a própria China, a propósito da crise polonesa. Noutros confrontos, menos graves, entre o Oriente e o Ocidente, eles se têm apressado a tomar o partido ocidental, mas seu silêncio atual está sendo muito eloquente. No caso da Rumânia a mudança de atitude foi mais longe, a ponto de aprovar explicitamente a ditadura militar polonesa. Ora, seria de espantar que essa mudança de comportamento político tardasse muito em fazer-se seguir de mudanças de orientação em matéria de política econômica.

A Iugoslávia — o protótipo dos países comunistas independentes — expressão que o Ocidente re-serva para os países que se comportam objetivamente contra a União Soviética — está recebendo da vida uma duríssima lição de coisas. Sua independência traduziu-se, na prática, em dependência para com o Ocidente, especialmente a Alemanha Ocidental. Seu modelo de autogestão, ao permitir a falência das empresas socialistas, engendrou desemprego, e como isso ocorreu ao tempo do “milagre alemão”, a mi-gração para a RFA estava na ordem natural das coisas. Agora, quando o referido milagre é uma agradável lembrança do passado, os gastarbeit tomam o caminho de volta de suas casas e a Iugoslávia compete com a Inglaterra pelo primeiro lugar na Europa em matéria de desemprego (cerca de 12%). Para um país socialista não está nada mal.

Quando a Rumânia passou a aparecer em nossa imprensa ocidental com o elogioso qualificativo de “independente”, foi por se haver recusado a participar de esquemas integracionistas mais íntimos com os “irmãos socialistas”. Como prêmio, obteve no Ocidente um tratamento simpático, que conduziu a um endividamento externo comparável ao polonês. A princípio, tudo parece haver corrido bem e, como já ficou indicado, a Rumânia obteve taxas espetaculares de crescimento. Agora, as estatísticas econômicas da Rumânia deixaram de figurar nos Monthly das Nações Unidas, o que talvez signifique que algo não está correndo bem.

A lua-de-mel da China Popular com o Ocidente também parece estar sendo empanada por inciden-tes imprevistos. A China representa o paradoxo de um país agrícola atrasado que tende a comportar-se, no comércio internacional, como exportador de produtos industriais. Isto pode-se explicar facilmente, porque, embora em termos relativos sua produção agrícola seja mais barata e a industrial mais cara, as posições se trocam quando passamos a cogitar, não da produção média, mas da incremental. Noutros termos, é provável que a produção industrial possa crescer a custos estáveis ou mesmo decrescentes, ao passo que o aumento da produção agrícola se deve fazer a custos fortemente crescentes. De qualquer forma a memória do ex-presidente Liu Chao-shi está sendo reabilitada e, na esteira da reabilitação da memória do “Khrushev Chinês”, é possível que entre na ordem do dia a dos técnicos soviéticos escorraça-dos da China quando foram repudiados os modelos soviéticos de planejamento econômico, trocados por outros, autóctones e, supostamente, muito mais dinâmicos. Aliás, a China recusou-se a interromper seu comércio com a Polônia.

Esse problema dos métodos de planejamento volta à tona em toda parte. Na China, punha-se em

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dúvida a necessidade do equilíbrio intersetorial; na Iugoslávia aplicava-se (e se aplica ainda) um planeja-mento inspirado na “autogestão” — uma autogestão que pode levar à falência das empresas e, portanto, ao desemprego. O Solidariedade reclamava a autogestão, com a visível esperança de chegar muito mais longe do que os outros “socialistas independentes”, os quais, afinal, haviam preservado o fundamental das instituições socialistas, inclusive a propriedade social dos meios de produção e a coletivização da agri-cultura, ao passo que a agricultura polonesa é privada, hostil a qualquer planejamento, um caldo de cul-tura para o renascimento do capitalismo. Se isso tivesse acontecido há vinte anos, ao tempo dos milagres econômicos ocidentais, é pouco provável que qualquer ditadura militar, mesmo que fosse tão violenta como essa que os EUA patrocinam em El Salvador, pudesse haver cortado o caminho à contra-revolução. Agora, porém, quando países capitalistas poderosos, como a França, a Itália e a Alemanha Ocidental, con-sentem em transacionar nos mesmos moldes, mutatis mutandis que foram, no passado, refugados pelos “independentes”, tal retorno parece fora de cogitações.

A imagem de um povo unanimemente levantado contra o seu governo, que nos vinha sendo pinta-da, obviamente não corresponde à verdade. Um povo assim comporta-se como o de El Salvador se está comportando, não como se está comportando o polonês.

ConclusãoEm suma, a crise polonesa é apenas um dos lados do problema. Trata-se de um dos modos como

a crise que sacode o mundo capitalista está repercutindo sobre o mundo socialista, pondo em causa re-lacionamentos impostos por um balanço geral de forças já passado e pelo atrativo da profunda e geral prosperidade capitalista. Afinal, o planejamento econômico é uma disciplina que tem seus inconvenien-tes, os quais devem ser balanceados com as vantagens que traz. Nada mais difícil, pois, do que impor o planejamento em período de prosperidade do capitalismo, quando tudo parece se acertar espontanea-mente. Só quando cessa a prosperidade é que certos aspectos do planejamento são seriamente postos na ordem do dia.

Ora, mesmo quando a vitória do Solidariedade parecia favas contadas, as negociações relativas ao gás siberiano não puderam ser interrompidas, prosseguindo impassivelmente, não obstante as pressões de Washington e o fato de que essas negociações conduzem à renúncia a costumes comerciais arraigados, como esse que impede a vinculação, que figura em corpo de lei no Brasil. Sem mudar nossas leis, o Brasil não poderia participar de tais operações e o mesmo, provavelmente, vale para os países europeus, que devem estar passando por cima de suas próprias praxes e leis. Isso significa, provavelmente, que a vitória do Solidariedade, isto é, o retorno ao capitalismo, nunca passou de uma ilusão. A Polônia, pela força dos fatos, terá que buscar o apoio dos outros países socialistas, num relacionamento sério e abrangente, até como meio de restabelecer seu crédito no Ocidente ou de possibilitar a conservação de sua agricultura fora do enquadramento socialista por algum tempo ainda.

A entrada da economia mundial na fase b do Quarto Ciclo Longo teria que trazer desajustamentos e abalos de toda sorte. A crise polonesa é apenas um desses abalos, mas devemos estar preparados para fazer frente à nossa própria crise, que está começando. Nem tudo terá que mudar, mas muita coisa terá que fazê-lo.

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BrASIL E CHINA NOS FLuXOS gLOBAIS DE INVEStI-MENtO DIrEtO EXtErNO

Luciana Acioly da Silva

I - Introdução

As duas últimas décadas mostraram mudanças profundas na visão e na prática do desenvolvimento econômico. Frente à crise da dívida e do desenvolvimento nos anos 80, a nova concepção política - a new policy approach - procurou liberar as empresas da intervenção do Estado, defendendo a proeminência das forças de mercado como veículo de aumento do bem-estar das nações.

Nessa perspectiva, a retomada do crescimento dos fluxos globais IDE pós- recessão de 1981-1982 gerou uma série de expectativas positivas por parte de analistas e governos com relação ao papel que o investimento direto externo (IDE) exerceria na integração econômica mundial e na competitividade dos países e regiões, tanto de destino quanto de origem desses investimentos. Este papel relevante seria devido às relações existentes entre investimento, comércio, tecnologia e fluxos financeiros. O aumento do IDE num ritmo maior que o do produto e das exportações mundiais levaria a uma forte contribuição dos recursos externos na formação bruta de capital fixo das economias, e a um aumento da presença das corporações multinacionais nessas economias promovendo uma mais eficiente produção e distribuição de mercadorias e serviços vis-à-vis as empresas isoladas produzindo num único mercado.

As corporações transnacionais (TNCs) possuiriam, nessa visão, «recursos de eficiência» derivados de uma série de vantagens, que contribuiriam positivamente para a performance econômica dos países, desde que fossem retiradas todas as barreiras relativas às transações internacionais, incluindo aí a libera-lização dos fluxos de IDE, comércio e tecnologia. A maior abertura à entrada das TNCs lhes possibilitaria, então, o exercício de um duplo papel: de um lado, sua maior presença levaria ao aumento da pressão competitiva no mercado doméstico, desestabilizaria as firmas ineficientes e aumentaria a eficiência da produção interna e a competitividade dessa economia. Por outro lado, essas empresas facilitariam o aces-so da economia em questão, a recursos e mercados externos, melhorando a performance de suas expor-tações.

Essa agenda dos «novos tempos» foi internalizada com entusiasmo na América Latina, e com o sucesso do Plano Brady iniciou-se um processo de abertura das economias latino-americanas ao capital estrangeiro já no final dos anos 80. Assim, frente à explosão dos investimentos diretos nas economias avançadas em meados dos 80 e depois de uma década de escassez de financiamento externo, os países latino-americanos passaram a adotar políticas de reformas estruturais no sentido de eliminar barreiras e garantir os «benefícios» advindos de uma mais ampla inserção nos fluxos de investimentos internacio-nais. Nesses países, o IDE, além de colaborar para a reestruturação industrial, fornecendo recursos tec-nológicos para a modernização organizacional e produtiva garantindo acesso a canais de comércio, teria ainda uma outra função: contribuir com aportes de recursos externos para a estabilização monetária de países com processos inflacionários crônicos.

Depois de mais de uma década de experiências de abertura, reformas e implementação de políticas agressivas de atração de IDE por parte dos países em desenvolvimento, a frustração das expectativas com relação ao papel «virtuoso» desses fluxos parece evidente, principalmente quando se observa o desem-penho da maioria desses países. Após alguns sinais de sucesso inicial, os constrangimentos estruturais já conhecidos reapareceram: baixo nível de formação de capital e de progresso tecnológico nos setores mais dinâmicos, aumento das importações e desempenho exportador insatisfatório, aumento do desemprego e da exclusão social, sem mencionar as crises especulativas avassaladoras de que foram alvo boa parte dessas economias.

Analisando as principais características dos fluxos globais de IDE nos últimos 20 anos, podem-se observar mudanças importantes em sua natureza e direção, de modo que o novo “ciclo de investimen-tos” surgido nos anos 1980 não poderia cumprir, por si só, os papéis a ele atribuído. Entre o imediato pós- guerra e o início dos anos 80, a tendência do IDE tinha sido o de expandir o investimento através

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da instalação de novas plantas, sobretudo na indústria manufatureira, com uma distribuição geográfica mais abrangente. A partir dos oitenta, no entanto, o dinamismo apresentado pelos fluxos globais de IDE foi caracterizado por um crescimento sem paralelo das operações de fusões e aquisições transfronteiras - acompanhado da expansão do investimento de portfólio e da formação de “megacorporações” -, por sua preferência pelo setor de serviços e por uma distribuição espacial mais concentradora.

Em que pese essas tendências mais gerais, a inserção dos países em desenvolvimento nesses fluxos foi bastante diferenciada, de modo que alguns deles conseguiram se beneficiar dessa nova onda de in-vestimentos. Este foi particularmente o caso da China. Grande líder na atração de investimentos diretos desde os anos 90, este país vem recebendo altos volumes de investimentos novos (greenfield investment) dirigidos grandemente à indústria de transformação e, cada vez mais para as atividades de maior valor agregado. Além disso, seu desempenho tem sido notável, em termos de taxa de crescimento econômico, ritmo das exportações, aumento da participação da produção industrial no PIB e acumulação de reservas.

O Brasil também ocupou nesse período um lugar de destaque nos investimentos globais, ocupando o segundo lugar entre os países em desenvolvimento que mais receberam IDE. No entanto, sua inserção nesses fluxos seguiu as tendências mais gerais, tendo as fusões e aquisições um grande peso nos inves-timentos recebidos, dirigidas ao setor de serviços não- comercializáveis, com a indústria sofrendo uma retração em sua posição histórica como destino de novos projetos das empresas transnacionais. Apesar de ter promovido políticas mais amplas e rápidas de abertura de sua economia, o desempenho do país, particularmente nos anos 90, foi de baixo crescimento do PIB, inserção no comércio internacional insatis-fatória e de envolvimento em duas crises cambiais.

O objetivo deste artigo é traçar uma comparação entre as inserções do Brasil e da China nos fluxos globais de IDE, discutindo em que medida os fatores internos ligados aos processos de abertura dessas economias ao capital estrangeiro as inseriu de modo diferenciado na globalização. Após esta introdução, o próximo item apresentará as principais tendências dos fluxos globais de IDE, em termos de sua compo-sição, direção setorial e distribuição geográfica; o terceiro ponto fará uma comparação entre o Brasil e a China quanto às configurações assumidas pelo IDE em suas economias e às principais políticas adotadas para receber esses investimentos; o quarto item dedica-se às considerações finais do trabalho.

II - tendências dos Fluxos globais de Investimento Direto Externo

Superada a recessão mundial de 1981-1982, os fluxos globais de IDE cresceram a uma taxa de apro-ximadamente 29% ao ano, entre 1983-1989, superando em mais de três vezes o ritmo de crescimento das exportações mundiais e em cerca de quatro vezes a taxa de crescimento do Produto Mundial. Em termos brutos, o crescimento do IDE foi mais concentrado na segunda metade da década, quando os fluxos de IDE saltaram de US$ 53,7 bilhões em 1985 para US$ 196 bilhões em 1989 (tabela 1) e esteve basicamente circunscrito às economias avançadas e a alguns poucos países em desenvolvimento.

Os investimentos diretos realizados ao longo dos anos 1990 também apresentaram performance semelhante: saltaram de aproximadamente US$ 243 bilhões em 1990 para cerca de US$ 1,2 trilhão em 2000, porém englobando um número maior de países em desenvolvimento. A taxa de crescimento do IDE nessa década foi um pouco menor que a dos anos 1980, devido à desaceleração nos planos de expansão das grandes empresas frente ao menor ritmo de crescimento da economia mundial verificado entre 1991-1992. Porém, considerando-se o intervalo 1993-2000, quando os investimentos foram retomados, o ritmo de crescimento do IDE chegou novamente à casa dos 28,5%.

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A partir de 2001, os fluxos globais de IDE desaceleraram acentuadamente. Depois de terem atingido um nível recorde de US$ 1,2 trilhão em 2000, os investimentos realizados contabilizaram em 2001 cerca de US$ 711 bilhões, pouco mais de US$ 647 bilhões em 2002, e US$ 612 em 2003. Esse quadro resultou, entre outros fatores, do lento crescimento global, notadamente das três maiores economias do mundo, as quais entraram em recessão diminuindo seus planos de investimentos.

Durante esses períodos observa-se que o perfil dos fluxos globais de IDE apresentou algumas mu-danças quando comparado ao perfil do ciclo de expansão dos investimentos entre o imediato pós-guerra e o início dos anos 80.

Primeiramente, as fusões e aquisições foram o principal instrumento de acesso ao mercado exter-no, tornando-se assim na modalidade predominante do IDE*. Entre 1987 e 2000, em média 3/4 dos fluxos de IDE dirigiram-se para aquisição de empresas, e só em 2000 essa participação foi de mais de 90%. Entre 2001 e 2003 a participação das fusões e aquisições no total do IDE recebido caiu para 64%, devido ao fato de que as corporações sediadas nas principais economias avançadas reduziram o valor dessas operações para pouco mais de 1/3 do valor verificado em 2000, incluindo as transações acima de um bilhão de dóla-res - os mega deals (Gráfico 1).

Do ponto de vista da distribuição geográfica, caracteriza os fluxos globais de IDE pós-85 a sua tendência à concentração espacial. Em meados dos anos 80, esses fluxos se realizaram quase inteira-mente entre as economias desenvolvidas, que absorveram, em média, 78% dos investimentos mundiais contra 22% dos países em desenvolvimento, sendo que em meados de 1970, a participação das econo-mias avançadas não passou de 69%. Em termos de investimentos realizados, a participação dos países desenvolvidos nos investimentos globais foi expressiva: 97%, em média. Na década de 1990, os países em desenvolvimento experimentaram um aumento de sua participação, tanto nos fluxos recebidos (cerca de 30%) quanto realizados (em torno de 12%), sugerindo uma maior desconcentração espacial do IDE em relação à década anterior, sem, contudo, chegar aos níveis dos anos 70. A tabela 2 ilustra esse ponto com a participação dos 10 maiores recebedores de IDE no investimento global entre 1985-2003.

Por último, outra tendência importante dos fluxos de IDE pós 1980 foi a sua crescente preferência pelo setor de serviços. Durante a década de 1950, os investimentos estiveram basicamente direcionados para uma ampla gama de produtos primários, e particularmente voltados para a indústria de transforma-ção (UNCTAD, 1991: 15), mas, o setor de serviços foi tornando-se destino da maior parte dos investimen-

* A participação das F&As no total de IDE deve ser vista apenas como uma tendência, uma vez que não se podem derivar diretamente os montantes de F&As dos valores de IDE, dado que os mesmos são mensurados por fontes e metodologias distintas (ver Quadro 1 no final deste item).

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tos diretos, de modo que, do estoque mundial de IDE na década de 1970, o setor de serviços respondia por apenas 1/4; em 1988, por 44%; em 1999 por 51%. O crescimento dos serviços como destino dos fluxos de IDE refletiu o amplo direcionamento das operações de fusões e aquisições para esse setor, particu-larmente para as finanças, serviços pessoais, serviços relacionados a negócios, serviços de transportes, armazenagem e comunicações (Gráfico 2).

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Os períodos de grande dinamismo atingidos pelos investimentos diretos e pelas fusões e aqusições transfronteiras coincidiram não só com os períodos de relativo crescimento econômico e de difusão da re-estruturação industrial em muitas economias, como foram condicionados pelas mudanças nos mercados de capitais. Estas geraram uma massa global de fundos emprestáveis, proporcionados pelas inovações financeiras, sem o que as grandes operações entre empresas não teriam sido possíveis*.

Quadro 1: Investimento Direto Externo e Fusões e AquisiçõesInvestimento direto externo é definido como um investimento envolvendo uma relação de longo prazo que reflete o interesse e controle de uma entidade residente em uma economia em uma empresa residente em outra economia que não a investidor. Isto é, o IDE implica que o investidor exerce um significante grau de influência na administração da empresa residente numa outra economia.Fluxos de IDE compreende capital originado (diretamente ou através de empresas relacionadas) de um investidor dire-to externo numa empresa, ou capital recebido de uma empresa estrangeira por um investidor direto externo. Existem 3 componentes do IDE:• Ações (Equity capital): compra por parte do investidor estrangeiro de participação nas ações de uma empresa num país outro que não o do investidor.• reinvestimento de ganhos (Reinvested earnings): compreende a participação do investidor estrangeiro (em propor-ção direta a participação nas ações) nos lucros não distribuídos como dividendos pelas filiais ou rendas não remetidas ao investidor direto. Também diz respeito aos lucros retidos pelas filiais que são reinvestidos.• Empréstimos intracompanhias (intercompany loans): referem-se a empréstimos de curto ou longo prazo e tomada de fundos entre investidores diretos (matrizes) e as empresas filiais.Estoque de IDE é o valor da participação de seu capital e reservas (incluindo retenção de lucros) atribuídos às matrizes, mais as dívidas líquidas das filiais com as suas matrizes. Note-se, no entanto, que os dados de fluxos e estoque de IDE: utilizados no world Investment Report e, portanto nesse trabalho, nem sempre são definidos como acima. Formas de investimento não acionárias. Os investidores estrangeiros podem obter controle sobre a administração dos negócios de outras entidades através de outros meios que não o da compra de participações acionárias, como, sub--contratação, contratos de administração, franchising, licenças etc...Fusões e Aquisições. Uma empresa pode realizar um investimento direto noutro país de duas maneiras: fazendo um investimento novo (greenfield) ou pela aquisição ou fusão de uma empresa local já existente. Esta pode ser privada ou de propriedade estatal. As fusões e aquisições “transfronteiras” (cross-border mergers and acquisitions) envolvem a transferência de controle para um não-residente.No caso de uma fusão, os ativos e operações das duas firmas pertencentes a dois diferentes países se combinam para estabelecer uma nova entidade legal. No caso de uma aquisição, o controle de ativos e as operações são transferidos da firma local para uma firma estrangeira. A primeira torna-se, então, uma filial da segunda. Tanto o investimento gre-enfield como as fusões e aquisições significam que os ativos do país receptor estão sob os auspícios das corporações transnacionais (TNCs).Aquisições podem ser minoritárias (participarão nas ações acima de 10% e abaixo de 49%); majoritária (participação entre 50% e 99%) e controle total (participação de 100%). Aquisições envolvendo menos de 10% constitui investimento de portfólio.Com relação aos aspectos metodológicos é difícil estimar precisamente que montante de IDE corresponde às fusões e aquisições porque um valor não pode ser comparado diretamente com o outro. Se os dados sobre as fontes de finan-ciamento das fusões e aquisições fossem separadamente disponíveis, seria possível distinguir as F&As dos fluxos de investimento tipo greenfield. Além do mais, dados de IDE e de F&As são coletados por fontes distintas.Fonte; UNCTAD World Investment Report, 2000

Essas características mais gerais dos fluxos de IDE ao longo dos últimos 25 anos escondem diferenças significativas entre países e regiões tanto quanto ao perfil do IDE por eles recebido quanto ao realizado. Esses comportamentos diferenciados do IDE refletiram as distintas estratégias dos governos e empresas de participarem do processo de globalização. O projeto europeu de constituição de um mercado único para enfrentar a concorrência dos Estados Unidos e do Japão na arena internacional; a própria posição comercial e financeira do Japão e o projeto de industrialização dos países asiáticos (incluindo o desejo da China de possuir suas próprias multinacionais); a situação de endividamento externo das economias latino-americanas nos anos 80 e seus programas de modernização institucional nos anos 90 foram fatores que condicionaram as tendências dos fluxos globais de investimento direto no período recente.

* Apesar dos empréstimos bancários ainda se constituírem em importantes fontes de financiamento das fusões e aquisições, as finan-ças diretas através das common stocks e do corporate debt ganharam importância para essas transações. Em termos de valor, um terço dos acordos realizados entre as corporações transnacionais utilizou um desses dois tipos de financiamento e, em termos de número, cerca de 50% (UNCTAD, 2000:108).

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III- As Inserções Diferenciadas do Brasil e da China nos Fluxos de Investimento Direto Externo

Os anos 1990 foram marcados pelo volume crescente de investimento direto em direção aos países em desenvolvimento. Nesse contexto, países como o Brasil e a China procuraram criar condições favo-ráveis à entrada de IDE em suas economias, motivados pelo desejo de modernização de suas estruturas industriais e de um melhor desempenho no comércio internacional.

Desde o final dos anos 80 o discurso amplamente aceito nos meios acadêmicos e políticos era de que o IDE, além de fornecer recursos tecnológicos e melhorar a competitividade de um país, significaria também um compromisso de longo prazo dos investidores estrangeiros com a economia na qual investe. Assim sendo, essa forma de financiamento externo torna-se preferida vis-à-vis outras formas de inves-timentos, como os investimentos de portfólio e os empréstimos internacionais. Porém, para gozar de todos esses benefícios seria preciso que a economia interessada em receber IDE promovesse uma ampla abertura comercial e financeira e adotasse políticas mais ativas e padronizadas de tratamento ao capital estrangeiro.

O grande sucesso na atração de investimentos diretos para o Brasil e China desde os anos 90 tem sido creditado por muitos analistas à abertura que esses países vêm promovendo em suas economias. No entanto, pouca atenção tem sido dada às diferenças marcantes entre tais países quanto aos tipos de reforma e abertura que promoveram, particularmente quanto aos tipos de mudanças introduzidas nos quadros regulatórios para o IDE e à qualidade dos investimentos por eles recebidos.

Os distintos ambientes institucionais criados pelo Brasil e pela China para receber o IDE resultaram das distintas estratégias de inserção internacional adotadas por seus governos, as quais estiveram apoia-das numa certa visão de desenvolvimento que incorporou o capital estrangeiro, como fonte de financia-mento para cobrir o déficit em conta corrente, ou como fonte de desenvolvimento das forças produtivas. Diferentemente do Brasil, a China mostrou que é possível inibir o componente mais ou menos especulati-vo e patrimonial do investimento direto externo (tão característico do ciclo atual de IDE) através do qua-dro regulatório local, desafiando o discurso de que fora das regras dos mercados globalizados, os países em desenvolvimento estariam fadados a um processo de marginalização da economia global. Isso pode ser observado pela configuração que assumiu o investimento externo em cada uma dessas economias.

III.1 O perfil do IDE na Economia Brasileira

Nos anos 1990, mediante a liberalização financeira e depois de uma década de escassez de financia-mento externo, o Brasil voltou a ser receptor de capital estrangeiro. Segundo dados da Unctad, o Brasil re-cebeu no ano de 1990 quase US$ 1 bilhão em investimento direto externo e em 2000, esses investimentos já chegavam a US$ 33,8 bilhões. Entre 2001-2003 ocorreram quedas sucessivas nesses montantes, como reflexo não apenas da desaceleração global dos fluxos de IDE a partir de 2001, mas também devido a fato-res de ordem interna, relacionados ao fim do ciclo privatista e ao baixo crescimento econômico. A taxa de crescimento da economia brasileira na década de 90 foi oscilante, registrando uma média de 2,0% entre 1990-1999 e 2,5% entre 2000 e 2003, um patamar bem inferior à média dos paises em desenvolvimento, particularmente dos países asiáticos.

De qualquer modo, o grande volume de IDE recebido pelo Brasil nos anos 90 levou o país a sair de uma participação nos fluxos mundiais de investimentos diretos de 0,5% em 1990 para 2,4% entre 2000-2002, enquanto que sua participação nos investimentos destinados aos países em desenvolvimento pas-sou de 2,6% para 13,8% entre 1990 e 2000. Ainda, o Brasil ocupou naquela década o 11° lugar no ranking dos 20 países que mais receberam investimentos diretos e a terceira posição dentre os países em desen-volvimento, sendo superado apenas pela China e Hong Kong.

A excelente posição do país como destino dos fluxos globais de IDE não esteve, no entanto, disso-ciado de sua inserção nas fusões e aquisições mundiais. Dos 20 países que mais se envolveram nessas operações, do lado das vendas de empresas, durante a década de 1990, o Brasil ocupou o 9o lugar no ranking mundial e liderou os países em desenvolvimento nessas operações. O país acumulou US$ 136,1 bilhões em investimentos diretos, e US$ 83,7 bilhões em operações de fusões e aquisições entre 1990-2000, resultando numa

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participação média das fusões e aquisições sobre os fluxos totais de IDE em torno de 61,5% no período (Gráfico 3).

A distribuição setorial do IDE mostrou mudanças importantes em sua composição quando compara-da àquela verificada nas décadas anteriores: o crescimento do setor de serviços ultrapassou grandemente a indústria como destino dos investimentos recebidos. Ativos baratos devidos à desvalorização da moeda nacional e ao processo de privatização foram fatores relevantes na explicação do crescimento do setor de serviços como alvo de investimentos estrangeiros.

Em 1980, a participação da indústria de transformação no estoque de IDE foi de aproximadamente 74% contra menos de 20% do setor terciário*. Como mostra a tabela 3, a distribuição do estoque de IDE em 1995 foi de 55% para a indústria contra 43% dos serviços, com o setor primário respondendo por apenas 1,6%. Entre 1996-2000, a distribuição dos fluxos acumulados de IDE foi amplamente favorável ao setor de serviços não comercializáveis, que contabilizou uma participação média de 80%, contra 18% da indústria, invertendo completamente o quadro dos anos 80.

Do estoque de IDE em 1995, a extração de minerais metálicos, a agricultura e a pecuária responde-ram por quase 80% do total do setor primário. No setor industrial destacaram-se a indústria química e os setores automotivo e de metalurgia básica que juntos responderam por 43% de todo o estoque de investi-mento na indústria naquele ano, enquanto que no âmbito dos serviços, os serviços prestados a empresas

* Naquela década as indústrias que mais receberam investimentos estrangeiros foram: a indústria química (19%), de material de trans-porte (18%) e mecânica (13%). Já os investimentos nos serviços concentraram-se em consultorias (52%), comércio em geral (19%) e bancos (16%), sendo que os serviços relacionados à utilidade pública registraram conjuntamente apenas 1,2% no total dos investimentos nesse setor (BACEN, 1997).

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foram de longe o mais importante setor de destino do IDE, com uma participação de 62%. Em termos de fluxos acumulados entre 1996-2000, as atividades relacionadas à extração de petróleo responderam por cerca de 50% dos fluxos no setor primário; dentro da indústria, que concentrou apenas 18% do total de IDE recebido pelo país, os setores mais importantes foram os setores automotivos, de produtos alimen-tares e bebidas e de material eletrônico e de comunicação, com uma participação conjunta em torno de 56%.

Portanto, na segunda metade dos anos 1990, com os serviços respondendo por 4/5 do investimento direto recebido, as atividades de correios, telecomunicações e intermediação financeira somaram sozi-nhas 36% do setor. Nesse quadro, as privatizações tiveram importante papel, contabilizando quase US$ 30 bilhões no período (BACEN, 2002).

A importância do setor de serviços nos fluxos de IDE foi grandemente influenciada pela abertura dos setores de infraestrutura (telecomunicações, e distribuição de energia) e do sistema financeiro aos investidores externos. O processo de abertura levou várias corporações transnacionais desses setores basicamente da Espanha e de Portugal) a incluir o Brasil nas suas estratégias de expansão. O Brasil arreca-dou em 1998 cerca de US$ 16,5 bilhões com a privatização do Sistema Telebrás, quando o volume total de IDE foi de US$ 28,4 bilhões. Isso colocou o Brasil na lista dos países mais envolvidos nos “mega acordos” internacionais, ou seja, nas transações que envolvem operações de aquisições acima de um bilhão de dólares (UNCTAD, 1999).

O processo de privatização no Brasil iniciou-se já nos anos 80, quando entre 1986 e 1992 foram pri-vatizadas 38 empresas avaliadas em cerca de US$ 800 milhões. No governo Collor, com a criação do Pro-grama Nacional de Desestatização (PND), o processo criou maior abrangência, com a privatização de 18 empresas dos setores de siderurgia, fertilizante e petroquímica, com uma arrecadação de US$ 4 bilhões pagos com títulos da dívida pública. No período 1995/97 ocorreram outras 26 privatizações, arrecadando US$ 6,5 bilhões, concluindo praticamente a venda das empresas estatais que atuavam no segmento in-dustrial, incluindo a Vale do Rio Doce. Em 1997, 36 empresas foram vendidas (21 federais e 15 estaduais) somando US$ 22,6 bilhões*, Em 1998 o governo federal procurou vender estatais para os capitais externos como uma forma de aliviar a restrição ao financiamento do balanço de pagamentos. Os governos esta-duais também passaram a desenhar modelos de privatização que incentivaram a participação do capital estrangeiro, o que resultou na venda de 12 holdings criadas a partir do Sistema Telebrás, contabilizando US$ 22.057 milhões (CANO, 2003).

Outro passo importante foi a privatização das empresas de energia elétrica e a privatização da ma-lha ferroviária, transferindo a exploração de portos para a iniciativa privada. Em 1999 o processo de pri-vatização se desacelera, devido às incertezas do cenário macroeconômico pós-desvalorização cambial, e também, pelas dificuldades inerentes aos setores que ainda restavam para ser privatizados. Foi arreca-dado nesse ano US$ 3,2 bilhões resultantes das vendas de 6 empresas federais e 5 estaduais; em 2000 aumenta o valor das privatizações para US$ 10,7 bilhões (Idem, ibidem).

No entanto, a participação das empresas estrangeiras nas privatizações dos segmentos indus-triais foi baixa, permitindo às empresas nacionais adotar estratégias de compras das estatais em seus respectivos setores como forma de ganhar market share. Já a participação das empresas estrangeiras nas privatizações do setor de serviços foi bem maior, como resultado da atratividade do tamanho do mercado e seu potencial de expansão, correspondendo a uma participação nas privatizações de 60% do valor arrecadado entre 1991 e 2001 (US$ 41 bilhões dos US$ 85,2 bilhões totais).

Essa nova configuração do IDE implicou em mudanças importantes também quanto à origem do IDE no Brasil. Os Estados Unidos continuaram como o maior investidor no país, porém, ocorreu um aumento das participações da Espanha e Portugal e o declínio da presença da Alemanha. Em 1995 o estoque de IDE americano no Brasil estava concentrado na indústria de transformação (68%). Em 2000 esses investi-mentos eram mais fortes nos serviços (60,3%). A Alemanha, que era o segundo maior investidor no país em 1995, com forte presença na indústria brasileira (87% do estoque), particularmente na fabricação de produtos químicos e na fabricação de veículos automotores, teve sua presença nesse setor reduzida para

* Os dados apresentados nesse item sobre as privatizações no Brasil são retirados de Cano (2003:100-1003)

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63% em 2000, dados de estoque. Espanha e Portugal juntos somaram 30% do IDE acumulado no país em 2000 com forte presença do setor de serviços. O crescimento das inversões da Holanda seguiu a mesma direção, acumulando mais de 80% do IDE nos serviços (telecomunicações, intermediação financeira e comércio varejista) no estoque de IDE em 2000 (BACEN 1997 e 2002).

Dadas as características mencionadas, a contribuição do IDE para o desempenho da economia bra-sileira foi modesta. Embora a participação do IDE na formação bruta de capital fixo (FBCF) tenha aumen-tado de 2% entre 1990- 95 para 28,4% em 2000, sugerindo uma contribuição efetiva do IDE para o inves-timento e o crescimento do produto, a leitura correta é outra. A FBCF não acompanhou o crescimento do IDE, uma vez que a taxa de investimento do país (FBCF/PIB) variou, com tendência declinante, entre 21% e 19% entre esses períodos (LAPLANE e SARTI, 2003).

Quanto ao desempenho no comércio internacional, a participação do Brasil nas exportações mun-diais em 1980 era de 1%, chegou a 1,4% em 1984-85 e manteve uma média de 0,9% nos anos 90. A partir da implantação do Plano ‹Real, a balança comercial tornou-se deficitária (1995-2000), e só dois anos de-pois, com a desvalorização cambial, a balança voltou a ter superávits (IMF, 2001). Nesse sentido, existem evidências apontadas pela literatura de que o padrão de inserção comercial das transnacionais operando no Brasil explica parte dos déficits da balança comercial na década de 90, particularmente em setores com forte presença de empresas estrangeiras, relacionados aos déficits crescentes que as mesmas têm com os países-sede controladores de seu capital (MIRANDA, 2001; DE NEGRI e ACIOLY, 2003).

Em linhas gerais, o investimento direto externo no Brasil durante a década de 90 mostrou pouca inclinação à construção de novas plantas produtivas e uma maior preferência pelo setor de serviços não--comercializáveis, embora tenham ocorrido investimentos das multinacionais em expansão e ampliação de unidades essencialmente dirigidas para a produção de bens de consumo, visando ao Mercosul. Porém, ao contrário das décadas anteriores, quando a instalação ou expansão de filiais era uma forma predomi-nante de conquista de mercado, as aquisições de empresas têm se constituído no principal instrumento de market share global das transnacionais no Brasil (MIRANDA, 2001). Vale dizer que essas características foram resultado da opção do país por certo tipo de integração à economia internacional e tem resultados duradouros.

Mesmo no período mais recente e após a desvalorização cambial, os serviços continuam predomi-nando, com uma participação de 54,7% entre 2001-2005, ainda que a indústria de transformação tenha recebido maiores montantes de IDE nesses anos. As fusões e aquisições diminuíram em termos quanti-tativos, mas em alguns setores e anos selecionados, essas operações foram bastante importantes e até redesenharam a dinâmica setorial.

III.2 A Orientação Liberal das reformas e da Abertura da Economia Brasileira - o Papel do Investi-mento Direto Externo

No início dos anos 90, a economia brasileira encontrava-se frente a uma inflação crônica, baixos índices de crescimento do produto e enorme dívida externa herdada dos anos 80. A eleição de Fernando Collor de Mello para a Presidência da República marcou, nesse contexto, o inicio das mudanças que per-mitiriam ao país montar uma nova estrutura institucional sintonizada com recomendações do chamado Consenso de Washington aos países latino-americanos, de introdução de reformas estruturais e de maior abertura aos fluxos de capitais. O governo acreditava que tais reformas removeriam o clima de incerte-za sobre as expectativas do crescimento e, com a volta da estabilidade em relação ao valor externo da moeda nacional, estariam dadas as condições para a retomada da expansão da economia. Porém, como o sucesso dessa estratégia dependia do retorno dos fluxos de investimentos e créditos externos, foi reali-zada a Reforma Monetária e introduzido o processo de liberalização para retomar a negociação da dívida e assim conseguir a reaproximação do país com os movimentos de capitais internacionais (BELLUZZO e ALMEIDA, 2002).

Como parte dessa estratégia, o governo introduziu: i) a abertura comercial, através da abolição dos controles administrativos sobre as importações - um dos principais pilares da proteção da indústria

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nacional, até então - e da redução da escalonada do imposto de importação; e ii) a abertura financeira indiscriminada ao exterior, através da implementação de várias medidas para facilitar a entrada e saída de capitais estrangeiros no país. No entanto, o cenário econômico e financeiro internacional adverso devido à crise dos bancos internacionais impediu, em parte, o alcance daqueles objetivos.

Mais tarde, com a subida de Fernando Henrique Cardoso à Presidência, foi introduzido o Plano Real, em 1994, o qual procurou também debelar a inflação e recuperar a confiança da moeda nacional por meio da garantia de seu valor externo. A “ancora” foi a estabilização da taxa de câmbio nominal garantida por financiamento em moeda estrangeira ou por um montante de reservas capaz de desestimular a es-peculação contra a paridade escolhida. Esse aspecto mudou o perfil do financiamento externo brasileiro e o Brasil passou de doador de poupança nos anos 80 a absorvedor de recursos financeiros. Adotou-se o regime de câmbio fixo com um regime de conversibilidade limitada, o que levou a sobrevalorização da moeda e a taxas de juros muito altas. Em que pese os fatores conjunturais que levaram a esse resultado, o objetivo da política econômica era não apenas a estabilidade de preços via âncora cambial, mas imple-mentar um projeto de desenvolvimento liberal supondo a convergência rápida das estruturas produtivas e da produtividade da economia brasileira na direção dos padrões competitivos das economias avançadas (BELLUZZO e ALMEIDA, 2002, p. 373).

Desse modo, assim como outros países latino-americanos, o Brasil entrou no processo de globa-lização através da execução de programas de estabilização de acordo com as normas dos mercados fi-nanceiros globalizados, adotando um programa de estabilização com abertura financeira. Isso significou a criação de uma oferta de ativos atraentes que pudessem ser incorporados pelo movimento geral da globalização, tais como: títulos da dívida pública (de curto prazo e de elevada liquidez); ações de empresas em processo de privatização; bônus e papéis comerciais de empresas e bancos de boa reputação; e, pos-teriormente, ações depreciadas- de empresas privadas, especialmente daquelas afetadas pela abertura econômica, valorização cambial e taxas de juros altas (BELLUZZO, 1999).

Como consequência do processo de abertura, os fluxos de capitais estrangeiros recebidos pelo Bra-sil passaram por 3 fases nos anos 90. Entre 1990 e 1994, quando os montantes de capitais eram ainda pouco expressivos, e foram introduzidas mudanças no arcabouço institucional caracterizada pela abertura comercial e financeira; entre 1994-96, durante o Plano Real quando o país já se encontrava incorporado aos mercados financeiros internacionais. Neste período o capital externo foi utilizado para mudar o perfil do balanço de pagamentos (financiamento do déficit em conta corrente) e para promover a estabilização de preços. E entre 1997-1999, quando ocorreram mudanças na qualidade dos capitais recebidos em dire-ção ao investimento direto externo, este, tido como uma mudança positiva na composição dos fluxos de capitais, por significar um financiamento estável e menos suscetível a variações nos humores do mercado financeiro internacional. Mas os investimentos externos no Brasil estiveram na maioria das vezes asso-ciados ao baixo preço das empresas brasileiras em dólar, atraindo fusões e aquisições e recursos para o programa de privatizações*.

Outra dimensão importante da política de desenvolvimento liberal foi a visão da necessidade de se introduzir mudanças no papel do Estado. A perda de dinamismo das economias latino-americanas teria sido resultado da falta de concorrência devido à elevada proteção tarifária e ao excesso de regulação por parte do Estado (FRANCO, 1998). A alternativa seria, então, promover a competição como motora do crescimento, introduzindo a abertura comercial e as privatizações. É dentro desse contexto que deve ser analisada a inserção do Brasil nos fluxos globais de investimento direto externo. Os governos Collor e Fernando Henrique Cardoso, adotaram uma percepção do papel das corporações transnacionais como essencial na retomada do crescimento sustentado do país, onde o capital estrangeiro desempenharia pa-pel crucial na nova fase de expansão: financiaria o crescimento e os desequilíbrios externos transitórios, participaria ativamente na reestruturação industrial, fornecendo recursos tecnológicos para a moderni-zação organizacional e produtiva, e garantiria acesso a canais de comércio internacional. A concentração

* No final dos anos 90 o Brasil amargou uma crise financeira, em decorrência da crise asiática e da Rússia que levou o país a aumentar as taxas de juros para reter capitais de curto prazo e evitar o estrangulamento cambial, tornado inevitável à desvalorização da moeda nacional. Nesse momento aumentou a entrada de IDE e os empréstimos em moeda entre matriz e filiais das corporações transnacionais operando no Brasil (ANTUNES, 2000).

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e a desnacionalização associadas à ruptura do tripé (empresa nacional, empresa estrangeira e empresa estatal) seriam processos necessários, embora dolorosos, para a construção das bases para a retomada do crescimento sustentado (LAPLANE e SARTI, 1999).

Em consonância com essas orientações foram introduzidas alterações significativas no quadro regu-latório brasileiro referente ao investimento direto externo. Tais mudanças tiveram impactos importantes na determinação do volume e da configuração que assumiu o investimento direto externo na economia brasileira. As principais mudanças foram: a abertura de novos setores ao investimento direto estrangeiro, tais como, os resultantes da privatização, da queda da reserva de mercado na informática e a permissão para registro de patentes no setor bioquímico (fármacos). Também em 1994, através de emenda consti-tucional, equiparou-se a empresa estrangeira à empresa nacional, o que permitiu a primeira o acesso ao sistema de crédito público e a incentivos fiscais; mudanças na legislação de remessa de lucros, suprimiu--se a proibição da remessa de royalties por marcas e patentes. A tributação de remessa de lucros foi refor-mulada substituindo-se o sistema de alíquotas crescentes e variáveis, em função do valor enviado e cuja incidência mínima era de 25%, pela alíquota única de 15% sobre o total remetido.

III.3. China: Evolução, Composição e distribuição do IDE

A entrada de investimento direto externo na China foi autorizada apenas em 1979. A partir de en-tão, os volumes de IDE para esse país experimentaram quatro fases distintas. Nos anos oitenta e início dos 90 o IDE aumentou de forma moderada acumulando US$ 22,9 bilhões (Gráfico 4). Entre 1992 e 1997 esses fluxos conheceram um dinamismo extraordinário, contabilizando US$ 192,7 bilhões como resultado da maior confiança dos investidores na política de abertura do país e frente às mudanças introduzidas na estrutura regulatória para atração de IDE, que passou a contemplar novas áreas e setores passíveis de investimentos estrangeiros.

Uma terceira fase pode ser notada entre 1998-2000, quando os fluxos de IDE sofrem uma desacele-ração devido à queda da taxa do crescimento econômico do país (Tabela 3.3), confirmando a tendência do IDE de ser fortemente influenciado pelas flutuações do crescimento econômico. No ano de 2001, a China entrou para a OMC e houve uma recuperação da entrada de investimentos diretos no país, cujo montante passou de US$ 40,7 bilhões em 2000 para US$ 46,8 e US$ 52,7 em 2001 e 2002, respectivamente. Note-se que a reconversão desses fluxos em direção a China, deu-se num contexto de forte declínio do IDE para o resto do mundo.

Sendo o terceiro maior país do mundo e o mais populoso, a China vem apresentado um crescimento

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médio de 9,5% na década de noventa e acumulando US$ 284,6 bilhões em investimento direto externo (e US$ 440 bilhões desde a abertura). Ocupa o 3o. lugar no ranking dos maiores absorvedores de investimen-to do mundo, e o 1°. lugar entre os países em desenvolvimento. A participação da China nos fluxos de IDE dentre as economias em desenvolvimento passou de 7,2% entre 1980-1989 para 24% entre 1990-1999. Mas, essa crescente inserção nos investimentos diretos mundiais não foi dirigida pelo envolvimento do país nas operações de fusões e aquisições transfronteiras. Segundo dados da Unctad, essas operações na China foram ausentes nos anos 1980 e somaram pouco mais de US$ 9 bilhões entre 1990-1999, resultan-do numa participação média dessas operações sobre o total de IDE recebido de apenas 3,1% no período.

As privatizações, via investimentos diretos, também foram baixas naquele país, não ultrapassando o valor de US$ 400 milhões ao longo da década de 90, soma igual a da Índia, porém muito inferior ao montante verificado para o Brasil, que ficou em US$ 32 bilhões (UNCTAD, 2000).

Quanto à distribuição setorial dos investimentos diretos recebidos, esta também guardou uma es-treita relação com os estágios de abertura da economia chinesa ao capital estrangeiro. De 1979 até mea-dos dos anos 80, os investimentos diretos concentraram-se nas atividades de prospecção geológica e no setor de serviços relacionados ao turismo e às atividades imobiliárias. O IDE nas atividades de prospecção geológica correspondeu a participação das empresas ocidentais na exploração dos campos de petróleo da China, os quais foram prioridades para política do país naquele momento (BROADMAN & SUN, 1997). Os investimentos no setor imobiliário e nos serviços em geral (hotéis, restaurantes, companhias de táxi etc.) foram dirigidos pela necessidade da política de abertura, no sentido de criar condições mínimas para receber os próprios investidores estrangeiros e que garantissem o retorno rápido dos recursos investidos.

A partir de 1986 tem início a segunda fase da abertura do país quando o governo chinês adota me-didas para mudar a estrutura setorial do IDE a favor de investimentos em setores export-oriented de maior valor agregado e de mais alta tecnologia. Como resultado da nova orientação, o IDE no setor primário caiu de 40,1% em 1988 para 3,1% em 1993 e o setor manufatureiro registrou uma participação de 51,2% nesse último ano. Após esse período, o perfil do IDE recebido pela China muda substancialmente em favor da indústria.

Depois que o governo chinês anunciou seu objetivo de construir uma “economia socialista de mer-cado” e passou a adotar novas medidas de política para o capital estrangeiro, o boom dos investimentos diretos na China pós-1992 foi dirigido pelo setor manufatureiro e pelo setor de serviços. O IDE em proje-tos imobiliários nas grandes cidades chinesas registraram uma participação de 39% em 1993, coinciden-tes com a chamada “febre dos imóveis” no país. A indústria registrou em 1993 uma participação de 59% no total de IDE dirigido ao país; o setor imobiliário, 24%; a agricultura, 1%; comércio e comunicações, 6%; construção, 6%; e, outros, 7% (LEMOINE, 2000).

Apesar da forte presença do setor imobiliário, o investimento direto externo nos serviços foi bastan-te limitado nesse período, dado que poucas atividades estavam abertas ao capital estrangeiro, não sendo permitido investir, por exemplo, nos serviços financeiros ou no comércio varejista, a não ser em casos específicos e restritos a certas áreas geográficas.

Dentro da manufatura, a distribuição de IDE apresentou algumas mudanças. Durante essa terceira fase, foram abertas novas áreas e setores ao IDE e lançado um pacote de incentivos para fortalecer as indústrias capital-intensivas e de tecnologia mais avançada, como a química, a indústria de máquinas e equipamentos, equipamentos de transporte, eletrônica e comunicações. Assim, na segunda metade dos anos 1990, enquanto a indústria tradicional viu uma estagnação nos investimentos recebidos, a indústria eletrônica e de telecomunicações tornaram-se foco de novos investimentos diretos: entre 1997-2000, a primeira aumentou de US$ 3,9 bilhões para US$ 11,3 bilhões e, a segunda, de US$ 3,1 bilhões para US$ 4,6 bilhões.

Observando os montantes acumulados de IDE na China desde o início da abertura até 2000, pode--se verificar o perfil setorial que assumiram os investimentos externos naquele país. Em 2000 a indús-tria já contabilizava, em termos de valor, uma participação de 60,8% e 73% em termos de número de projetos apresentados; os serviços 37,3% do valor total, com o setor imobiliário e de utilidade pública, concentrando 23,6% e 10% do número de projetos (Tabela 4). A evolução da distribuição do IDE entre os

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macro-setores da economia chinesa mostra uma clara predominância do setor secundário em relação aos demais setores (Gráfico 5).

Mesmo para o período mais recente os dados revelam que a indústria continua a ser dominante como destino do IDE na China, contabilizando uma participação de 68%, com a liderança da indústria eletrônica e de equipamento de comunicações que respondeu por 1/4 do total entre 2001-2002. O setor de serviços teve uma participação de 26,4%, mas com o setor imobiliário perdendo importância relativa, com apenas 11%. Serviços de transportes e telecomunica-ções absorveram 2,8% e a participação do IDE nos bancos e nas finanças permaneceu ínfima, com 02% do total.

O rápido crescimento do IDE destinado à China foi acompanhado também por mudanças no padrão geográfico de distribuição dos países de origem desses investimentos. Até 1991 apenas 3 países respondiam pela maior parte des-ses fluxos: Hong Kong (62%), Japão (14%) e os Estados Unidos (10%). Nos anos 90, os países asiáticos foram origem de 80% do total de IDE na China, com o predomínio de Hong Kong* (50%). Os Estados Unidos responderam por 8% e os pa-

* Deve-se destacar que a partir de 1992, boa parte dos investimentos oriundos de Hong Kong representou uma reciclagem do capital da Grande China, os quais queriam gozar de tratamento preferencial dado aos investidores estrangeiros.

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íses da então Comunidade Econômica Européia (CEE) por 9%. Em termos setoriais, as empresas de origem asiáticas tenderam a investir nas atividades orientadas para as exportações. No caso dos investimentos americanos e europeus, estes tenderam a se concentrar em setores intensivos em capital e tecnologia e foram mais dirigidos por estratégias de expansão do mercado doméstico chinês.

A dinâmica dos investimentos intra-asiáticos pode ser explicada em grande parte pela condução da política cambial chinesa. Durante o período em que a moeda japonesa, o ien, esteve fortemente valori-zada frente ao dólar, entre 1985 e 1995, a China, assim como outros países asiáticos, beneficiou-se dos investimentos diretos japoneses, de Hong Kong e de Singapura e também do comércio regional associa-do a esses investimentos. Em 1995, com a desvalorização do ien frente ao dólar, caíram os investimen-tos diretos japoneses vinculados às exportações asiáticas para terceiros mercados, particularmente para os Estados Unidos, impactando negativamente a dinâmica regional. Como esses países tinham regimes cambiais vinculados ao dólar, a valorização daquela moeda levou a uma valorização real das principais moedas asiáticas. Um ano antes o yuan havia sido desvalorizado e o governo chinês decidido que manteria a taxa fixa nominal de câmbio do yuan/dólar. A partir de então, a China passou a deslocar os produtores regionais, receber grandes montantes de investimentos diretos americanos e a se constituir num grande mercado asiático; a estabilidade do yuan passou a se contrapor à instabilidade do ien frente ao dólar e a política de sustentação de sua da taxa nominal de câmbio a partir de 1997 ajudou na superação da crise asiática, evitando a corrida cambial, além de afirmar a estabilidade da moeda chave para o comércio re-gional (MEDEIROS, 2005).

Em termos de contribuição do IDE para o desempenho da economia chinesa, verifica-se que após 20 anos de políticas de atração de investimento direto externo, a participação das firmas estrangeiras no produto industrial chinês aumentou significantemente, em termos de valor: passou de 5,5% em 1991, para 22,5% em 2000 (MOFTEC, 2001, p. 6-31). A presença das empresas estrangeiras no dinamismo das expor-tações da China deve ser destacada. A criação das Zonas Econômicas Especiais (SEZs) incentivou a entrada das empresas estrangeiras basicamente no setor industrial, que passou a absorver 61% do total acumulado de IDE no país. As exportações da China cresceram a uma taxa anual de 15%, entre 1989 e 2001. Em 1989, as filiais estrangeiras contabilizavam menos de 9% do total das exportações chinesas e, em 2002, respon-diam por metade do total. Na indústria de transformação, a participação das filiais estrangeiras no total das exportações no ano de 2000 foi de 91%, particularmente em alguns setores de alta tecnologia, como eletrônicos, automação e processamento de dados e telefonia móvel.

Quanto à participação do IDE para a formação bruta de capital na China, esta foi elevada, em mé-dia 12,1% entre 1990-2001, ficando acima da média asiática de 10%. A participação do IDE no PIB chinês passou de 7% em 1990 para 32% em 2000. Deve-se notar que diferentemente do Brasil, o aumento da relação IDE/PB CF na China deu-se num contexto de crescimento econômico e de aumento contínuo da taxa de investimento dessa economia (FBCF/PIB), a qual passou de 25,8% em 1990 para 37,5% em 2000-2002 (OECD, 2003).

III.4. O Lento Processo de Liberalização da Economia Chinesa e as Diretrizes da Política para o IDE

O processo de abertura da China iniciado em 1979 tem sido caracterizado do ponto de vista comer-cial pela promoção de suas exportações e ao mesmo tempo por fortes medidas para proteger seu mer-cado doméstico. Tal política apresentou, nesse sentido, similaridades com a de outros, porém, para não onerar os produtos de exportação que poderiam ter seus preços majorados devido a um custo maior na obtenção de bens de capitais e de bens intermediários, as indústrias exportadoras puderam importar em regime livre de impostos alfandegários.

Essa política comercial dualista acabou favorecendo, de um lado, a criação de indústrias voltadas para o mercado externo, baseadas na transformação de mercadorias importadas; e, de outro lado, a manutenção das importações num nível relativamente baixo. As importações de empresas locais e de consumidores estiveram sujeitas as fortes restrições e experimentaram um crescimento bem modesto, totalizando menos da metade de todas as importações nos anos 90 (LEMOINE, 2000).

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Com relação ao investimento internacional, a China impôs ao longo dos anos 90 sérias restrições aos fluxos de capitais envolvendo investimentos de portfólio e empréstimos bancários. Em linhas gerais, os fluxos de capitais na China foram inexpressivos até o início dos anos 80, mas a partir de 1984 a ca-tegoria “outros investimentos”, os quais incluem empréstimos bancários, aumentou significantemente, contabilizando a maior participação no total dos fluxos recebidos ao longo dos oitenta. O IDE foi aumen-tando gradualmente nesse período e cresceu de forma substancial nos anos noventa, passando a ser o componente de maior peso no total dos fluxos de capitais recebidos.

Nesse sentido, o processo de abertura da economia chinesa disse respeito quase que exclusivamen-te à entrada de investimento direto externo, fortemente associado à sua política comercial. As condições de entrada do IDE no país foram estabelecidas gradualmente e em termos bastante seletivos, baseadas em tratamentos preferenciais, como obtenção de redução de tarifas e de isenções fiscais naquelas indús-trias aonde o IDE foi considerado desejado: setores exportadores e setores alvos de política de substitui-ção de importações.

A preocupação com relação às restrições de balanço de pagamentos foi uma constante na política para o capital externo e várias medidas foram tomadas em relação às empresas estrangeiras no sentido de evitar evasão de divisas. Medidas como a imposição de cotas de exportações e o estabelecimento de obrigações para manter o equilíbrio das contas em moedas estrangeiras, exemplificam essa questão. Mais recentemente, essas restrições têm sido relaxadas, dentro do cronograma de adesão da China à OMC (CHUNLAI, 1997).

Desse quadro, resultou, portanto, um padrão de fluxos de capitais bastante distintos de outros paí-ses em desenvolvimento, o que permitiu a China uma relativa tranquilidade para dar curso a sua política de modernização e se manter praticamente isolada das crises financeiras características do final dos anos 90. Observando a estrutura do financiamento externo da economia chinesa podemos identificar basica-mente três períodos: durante 1983-1991 a China acumulou um total de US$ 67 bilhões, com os emprés-timos sendo a grande fonte de capitais externos (60% do total). De 1992-1998, o financiamento externo quintuplicou para US$ 327 bilhões e o IDE tornou-se a maior fonte de fundos dirigidos à China (70% do total). O investimento de portfólio permaneceu limitado e aumentou só em 1997 (12% do financiamento externo) (Tabela 5).

Pode-se notar o papel dominante do IDE no financiamento externo da China já no final dos anos 90, o que permitiu manter administrável o nível de débito externo, em torno de US$ 140 bilhões em 1998, representando 15% do PIB, participação essa que se mantém até agora. O débito externo tornou-se uma carga moderada para a economia chinesa, com o déficit na conta de serviços tomando menos de 10% de sua renda anual com exportações de mercadorias e serviços nesse período (WORLD BANK, 1999).

É importante notar, nesse contexto, que o padrão de financiamento da China é baseado na ex-pansão do crédito interno para alimentar as atividades industriais domésticas. A aquisição de poupança externa através de um setor externo gerador de divisas (associada às zonas de processamento) teve um

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papel muito mais importante na manutenção do ritmo da modernização (EPSTEIN e BRAUNSTEIN, 2002).Especificamente no que se refere às diretrizes da política para o investimento direto externo, estas

foram parte integrante da reforma econômica e da política de abertura. A nova orientação política pro-curou estimular o aumento da participação da China no comércio internacional e favorecer seu acesso às fontes externas de capital e tecnologia. Nesse contexto, o IDE foi considerado a melhor maneira de se alcançar 3 diferentes tarefas: acelerar a transferência de tecnologia moderna, introduzir novas práticas administrativas e obter divisas (LEMOINE, 2000). Em 1975, Deng Xiaoping havia participado da elaboração de uma série de documentos sobre desenvolvimento econômico, cujo eixo de reflexão foi a política indus-trial e regional* e nessa linha foram definidas quatro áreas alvos de modernização†: agricultura, indústria, ciência e tecnologia, e defesa nacional, sendo dado ao capital estrangeiro papel central nessa política. Essas idéias, no entanto, foram duramente atacadas como “capitalistas” e Deng Xiaoping foi removido do partido e deposto do governo (CHUNLAI, 1997; WEIJIA, 1994).

Mais tarde, ao retornar ao poder, Deng Xiaoping reintroduziu essas idéias e já no final de 1978 a China iniciou, sob sua liderança, um processo de reforma econômica na qual a elaboração de uma política para o capital estrangeiro passou a ter papel crucial. Baseado na experiência de outros países em desen-volvimento, particularmente do Leste e Sudeste Asiático, a liderança política da China reconheceu o IDE como uma maneira efetiva de atingir esses objetivos, desde que o país não tivesse que realizar pesados gastos em moeda estrangeira. Essa estratégia exigia, no entanto, a construção de uma arquitetura institu-cional para direcionar os investimentos externos de acordo com as prioridades do país (SILVA, 2004). As-sim, o processo de abertura da economia chinesa ao IDE foi executado de forma lenta e gradual, passando basicamente por cinco fases ou estágios.

A partir da “Equity Joint Venture Law” de 1979, a China estabeleceu 4 zonas econômicas especiais (ZEEs): Shenzhen, Zhuhai, Xiamen e Shantou, localizadas em Guandong e nas províncias Fujian. O Estabe-lecimento dessas zonas não significou apenas o início da política de abertura da China, mas constituiu-se em pedra angular de uma política de abertura mais ampla. Do ponto de vista político, essas zonas signi-ficaram o restabelecimento de uma fronteira com Hong Kong (vizinha de Shenzhen); do ponto de vista geográfico, a proximidade das ZEEs, as quais são os locais de origem de muitos Chineses não-residentes, de Hong Kong, Macau, Taiwan e ASEAN, fez com que fosse possível a China explorar vantagens nacionais utilizando a rede de negócios de chineses no exterior; dentro de uma estratégia de abertura voltada para o desenvolvimento do mercado interno (market-oriented reforms), o estabelecimento dessas zonas ser-vira ainda como “laboratório” para as reformas econômicas a serem aplicada na China como um todo; e finalmente, do ponto de vista dos interesses políticos internos, a criação das zonas diminuiriam as resis-tências políticas dos mais “conservadores” do Partido contra as reformas orientadas para o mercado, uma vez que essas experiências serviriam para introduzir as reformas e a abertura de forma mais lenta (CHEN CHUNLAI, 1997).

Seguindo as experiências das zonas de exportações estabelecidas em Taiwan, Coréia e outros paí-ses em desenvolvimento (ZEEs), as zonas de exportações na China foram alvo de regulações e exerceram múltiplas funções. O grande objetivo inicialmente foi atrair investimento direto externo, através de isen-ção tarifária para os investidores estrangeiros. Dentre as políticas preferenciais para as empresas estabe-lecidas nas ZEEs, estão aquelas que reduzem em vários níveis os impostos para empresas que se engajem no setor produtivo, com projetos que superem 10 anos.

A segunda fase da abertura, entre 1986-1991, foi uma resposta à pressão política de várias provín-cias para também receber tratamento preferencial, o que levou o governo chinês a aumentar o número de zonas alvos de políticas especiais, formando geograficamente um cinturão que significou, do ponto de vista econômico, o estreitamento dos laços com o mercado externo e uma mais ampla conexão com o mercado interno. As políticas adotadas para o IDE nessas cidades orientaram-se para estabelecer uma Zona de Desenvolvimento Econômico e Tecnológico (Economic and Tecnological Development Zones -

* Deng Xiaoping (1984) “Some Questions on Accelerating Industrial Development” in Select Works of Deng Xiaoping (1975-1982). Foreign Language Press, Beijing.

† Essas questões foram levantadas no Fourth National People’s Congress em janeiro de 1975 (citado em Chunlai, 1997).

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ETDZs) com incentivos graduados em função do engajamento das empresas estrangeiras em setores tec-nologicamente avançados.

Ainda com o objetivo de atrair mais investimentos diretos e aumentar a difusão de seus efeitos diretos e indiretos para o interior e outras regiões, foram criados os três triângulos de desenvolvimento (Development Triangles) - Yangzi River Delta Region (perto de Shanghai), o Pearl River Delta Region (pró-xima a Guanskhou) e o Minnan Delta Region (perto de Xiamen). Foram incluídas ainda as penínsulas de Lianodeng e Shandong e criando-se a chamada Estratégia de Desenvolvimento da Costa (Coastal Develop-ment Strategy) quando o governo chinês estendeu sua política de IDE para o restante das áreas costeiras.

A terceira fase da abertura, compreendida entre 1991-1997, foi caracterizada pelo aprofundamento das políticas anteriores e criação de novas áreas especiais e novos setores, com o objetivo não só de inter-nalizar tecnologia e aumentar as exportações, mas também como instrumento de diminuir as diferenças regionais que foram sendo criadas ao longo desse processo. As principais medidas para atrair IDE incluíam tratamentos preferenciais para o IDE destinado às regiões consideradas prioritárias pela política industrial e para atividades de alta ou nova tecnologia. Esta política foi estendida a 52 cidades, incluindo todas as capitais das províncias do interior exceto o Tibet e Urumqi em Xinjiang, e as grandes cidades ao longo do Yangzi River, e as 15 cidades fronteiriças com países ao oeste, norte e nordeste da China (UNCTAD, 1994 p. 68).

Entre 1997-2000, à política industrial estabeleceu para o capital estrangeiro quatro categorias de industrias: as indústrias “proibidas”, “permitidas”, “restritas” e “proibidas”*. Inicia-se, assim, a construção sistemática de uma estrutura regulatória, cujas novas diretrizes procuravam não apenas priorizar os in-vestimentos nos setores alvo da reestruturação industrial, mas também incentivar uma maior dispersão geográfica dos mesmos. Questões como “direitos de propriedade” e adaptação às regras internacionais de comércio e investimentos começam a ser tratadas nesse período. Com a entrada da China na OMC em 2001 iniciou-se uma revisão das principais diretrizes para o IDE, envolvendo discussão sobre setores prioritários, novo quadro legislativo para adequação às regras da daquela instituição. Com relação à po-lítica industrial, o “Guiding Foreign Investment - Industrial Catalogue” foi alvo de uma revisão em janeiro de 2005, para permitir a expansão do setor de serviços e encorajar o IDE nas indústrias hi-tech e no es-tabelecimento de centros de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Com relação à política regional, a nova orientação é a “Go West”, uma tentativa de desenvolver e atrair investimentos para o interior do país, cuja área corresponde a 56% do país, detém 23% da população e 14,8% do PIB. (MOFCOM, 2005).

Outro ponto a destacar diz respeito ao modo de entrada de investimento direto externo na China. E este se deu primeiramente sob a forma de joint ventures - as chamadas foreign invested enterprises (FIEs) cuja lei estipulava que o capital estrangeiro poderia contabilizar 25% do capital total de uma joint- venture. Estabeleceu-se mais tarde uma variação dessa forma, a cooperative joint venture, pela qual a distribuição dos lucros não dependia da quota de participação dos parceiros nas ações, mas seria deter-minada pelo acordo entre os parceiros no contrato. A segunda forma de entrada de IDE foi por meio da organização das Wholly foreign firms - empresas com participação estrangeira total, permitidas apenas dentro das zonas especiais. Deve-se ressaltar que, frente à inexistência de um setor privado, o governo não pretendia lançar esse tipo de empresa para o restante do país. Só depois de muita controvérsia e após um período de julgamento, as empresas 100% estrangeiras foram autorizadas, em 1986, mas somente caso exportassem 50% de sua produção ou produzissem mercadorias tecnologicamente avançadas. Mais tarde, essa forma jurídica de empresas foi sendo estimulada para além das zonas especiais. Entre 1990 e 1999, as empresas 100% estrangeiras tiveram uma participação média nos investimentos recebidos pela China, em termos de valor, de 35%, enquanto as joint-ventures contabilizam 62% (MOFTEC, 2000). Com o ingresso da China na OMC essas restrições têm sido flexibilizadas.

IV - Considerações finais

O novo ciclo de investimentos diretos que teve início na segunda metade da década de 1980 teve um dinamismo surpreendente e trouxe algumas características bem distintas daquelas verificadas du-

* “Guiding Foreign Investment - Industrial Catalogue”

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rante o período compreendido entre o pós-guerra e o início dos 80. A tendência do IDE nesse período tinha sido a de expandir o investimento de natureza produtiva, sobretudo na indústria manufatureira, e sua distribuição espacial foi muito mais abrangente envolvendo países da periferia. O dinamismo recente apresentado pelo IDE foi caracterizado por um crescimento das operações de fusões e aquisições trans-fronteiras, pela expansão do investimento de portfólio, formação de “megacorporações”, por uma distri-buição espacial concentradora e preferência pelo setor de serviços.

Em que pese essas tendências mais gerais e o discurso liberalizante dos anos 90, uma maior de-sagregação dos dados mostra diferenças significativas entre países e regiões quanto as suas inserções nos fluxos globais de IDE. Do ponto de vista das políticas de atração de capital estrangeiro, as ações dos governos também não foram homogêneas. Esses comportamentos diferenciados refletiram distintas es-tratégias dos governos e empresas de participarem do processo de globalização.

Este artigo procurou mostrar que a China seguiu um caminho próprio e se inseriu de modo diferen-ciado nos investimentos globais, o que pode ser evidenciado quando se observa não só o perfil assumido pelo investimento direto externo em sua economia, como a sua contribuição para o desempenho do país. Diferentemente dessas experiências, o comportamento dos investimentos estrangeiros no Brasil foi mais sintonizado com as tendências globais apresentadas por esses fluxos, tanto em termos de direção setorial quanto em termos de modos de entrada e tipo de contribuição para a economia.

O Brasil foi o terceiro maior recebedor de investimento direto dos países em desenvolvimento nos anos noventa e esta posição esteve diretamente associada a sua inserção nas fusões e aquisições trans-fronteiras que se dirigiram em grande parte ao setor de serviços, especialmente para privatizações do setor elétrico e de telecomunicações. A configuração assumida pelo IDE na China foi bastante distinta, com as empresas estrangeiras realizando seus investimentos sob a forma predominante de novos proje-tos destinados às atividades industriais e através de joint-ventures. Esses distintos perfis assumidos pelo IDE no Brasil foram resultados das distintas estratégias de seus governos de se integrarem à economia mundial e dependeram da forma como cada país fez a reforma e abertura de sua economia e construiu o quadro legal e institucional para receber o investimento direto externo.

O Brasil promoveu no final dos 80 e ao longo dos anos 90 uma série de reformas de orientação li-beral e introduziu várias medidas para aumentar o grau de abertura financeira e comercial da economia brasileira e redefinir o papel do Estado na economia. A visão subjacente a essas políticas estava plena-mente de acordo com as recomendações do Consenso de Washington de retirar todas as restrições à livre movimentação dos fluxos financeiros, comerciais, de investimento direto e de tecnologia e de reduzir o papel do Estado na produção (redefinindo, inclusive, sua função na esfera fiscal).

Nessa direção, mudanças rápidas foram introduzidas no quadro regulatório para receber o investi-mento direto externo, as quais diziam respeito ao fim da diferenciação entre capital estrangeiro e capital nacional e das restrições de ordem setorial, societária etc. Estas mudanças foram fruto de certa visão do papel a ser cumprido pelas empresas transnacionais no processo de modernização, de que além de contribuir com aportes de recursos para a desejada estabilização monetária, essas empresas facilitariam o acesso do país a recursos financeiros e tecnológicos e contribuiriam ainda para melhorar a inserção do Brasil no comércio internacional.

Uma década e meia depois, os resultados mostraram-se frustrantes, tanto em termos da contribui-ção do IDE para a taxa de investimento, quanto para o desempenho exportador do país que amargou até 2000 grandes déficits comerciais. A grande contribuição do IDE para a economia brasileira parece ter sido na cobertura dos déficits em conta corrente durante parte dos anos 90 e entre 2001-2002. A predomi-nância das fusões e aquisições como modo de entrada na economia, num contexto de baixo crescimento econômico e de câmbio e juros altos, resultou de motivações de investimentos mais associadas ao sur-gimento de um ciclo de oportunidades gerado pelo processo de privatização do que uma tendência de longo prazo.

A China também introduziu medidas de natureza sistêmica e regulatória para receber o investimen-to direto externo. Porém, o processo de abertura executado por este país foi lento e gradual (utilizando as ZEEs de forma experimental) e disse respeito quase que exclusivamente a entrada de investimento pro-

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dutivo, desestimulando outras formas de investimentos internacionais. Dentro do objetivo de modernizar sua indústria e introduzir novas práticas administrativas, as políticas para o IDE foram sendo introduzidas de maneira a orientar os investimentos para os setores prioritários da política industrial, e o controle so-bre a forma de entrada do capital estrangeiro na economia (via joint-ventures e não através de fusões e aquisições) foi parte fundamental desta estratégia.

Deve-se ressaltar que a China enveredou por uma estratégia de desenvolvimento nacionalista com forte apoio do Estado. Sua opção de se integrar à economia global deu-se através do investimento direto e do comércio, como mostram não só os crescentes ingressos de IDE, como o desempenho exportador do país, grandemente determinado pelas estratégias exportadoras das filiais estrangeiras que operam em sua economia. Note-se o papel da política de crescimento do governo chinês, baseado no crédito interno, e sua política de manutenção da estabilidade cambial com moeda desvalorizada nesses desdobramentos, além do processo de negociação para o estabelecimento do cronograma de adesão do país a OMC. Desse modo, o IDE na China é algo complementar, para trazer divisas e manter o ritmo de modernização.

Por outro lado, as opções de cada um desses países dependeram do estágio de desenvolvimento em que se encontravam no momento em que se inicia a nova onda de investimentos globais. Isto implica em maiores ou menores oportunidades de investimentos relacionados à abertura ou não de novos seto-res e reflete o nível de engajamento no circuito financeiro internacional, dando maior ou menor raio de manobra para alavancar as políticas de crescimento. Assim, o perfil do IDE numa determinada economia depende da visão de desenvolvimento do país que faz a absorção.

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A “VErDADE CAMBIAL”*

Ignacio Rangel

Os arraiais da direita estão engalanados para festejar a Instrução 204 da Sumoc, apontando-a como um retorno à “verdade cambiar”, a qual, por sua vez, é entendida como sinônimo de câmbio neutro. Ora, é claro que, posta a questão nesses termos, nós, os homens que procuramos falar pela nação popular — vale dizer, pelo desenvolvimento, a cujo lado o povo está sempre e não apenas ocasionalmente, como acontece com os senhores do outro lado — não podemos festejar também a reforma, como queremos.

Nós também somos pela verdade cambial, mas entendemos por tal verdade não o câmbio neutro, e sim o câmbio promocional do desenvolvimento econômico, o câmbio como instrumento de planejamen-to econômico, como ferramenta nas mãos do Estado nacional, o câmbio ativo.

* * *

Por vezes, dadas as condições concretas, o câmbio ativo se aproxima ou parece aproximar-se da re-lação correspondente aos custos visíveis dos produtos de importação ou exportação; outras vezes se afas-ta. Segue-se que o critério simplista do “câmbio neutro” não nos pode servir, porque é fonte perene de equívocos. O que o câmbio deve buscar — assim como os outros instrumentos de política econômica — é a verdade verdadeira, isto é, os custos sociais, que podem discrepar amplamente dos custos aparentes.

Com efeito, quando a economia supre um adicional de bens e serviços pelo uso de capacidade ociosa, pode acontecer que os custos aparentes sejam crescentes, mas isso não altera o fato de o custo do produto obtido nessas condições é decrescente ou mesmo nulo. Com isso chegamos a um critério operativo para a determinação da verdade cambial: é aquela que conduza ao mais completo emprego possível do potencial econômico do país, a que propenda para a redução das reservas de capacidade ociosa disponíveis.

* * *

Vista a Instrução 204 sob este ângulo, ela surge como uma aproximação corajosa da verdade cam-bial. Ainda não pudemos configurar todas as consequências plausíveis da medida, mas isso não é motivo para silêncio. Duvidamos que seus próprios autores tenham alcançado ou prefigurado ao menos a série virtualmente infinita de repercussões que alcançarão, independentemente de nossa vontade, todos os recantos do organismo econômico. Sabemos ainda muito pouco da anatomia e da fisiologia do sistema econômico brasileiro.

Encarecerão os derivados de petróleo, o pão e os equipamentos, não há dúvida. Mas seria grave equívoco dedicarmos atenção demasiado exclusiva aos efeitos próximos dessas mudanças, especialmen-te sobre o salário real dos trabalhadores. Não que esses efeitos não sejam importantes ou não exijam me-didas compensatórias. Ao contrário, temos o dever de definir e mensurar esses efeitos e exigir corretivo, tendo o cuidado de fazer com que esses corretivos tenham, por sua vez, efeito promocional do desenvol-vimento econômico, porque sem isso os interesses dos trabalhadores seriam postos em conflito com os interesses gerais do sistema, que são supremos.

Se o pão e as passagens dos transportes urbanos vão encarecer, por que não pedirmos ao gover-no que tome medidas contra os especuladores que manipulam ao seu talante os preços dos gêneros de produção nacional, que chegam ao consumidor a níveis que não guardam qualquer relação com o preço pago aos produtores?

É a hora de desmantelar as quadrilhas que praticam um verdadeiro jiu-jitsu contra a economia, mantendo os preços dos gêneros agrícolas, aos produtores, em nível injustamente baixo — induzindo assim limitação da produção —, enquanto no nível dos consumidores, os preços, precisamente pela es-cassez resultante, são conservados em nível de extorsão.

* Publicado em 27 de março de 1961.

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Com isso, não apenas apagaríamos os efeitos das medidas ora tomadas sobre o custo da vida e, por-tanto, sobre o salário real, como, o que é mais importante ainda, tornaríamos relativamente mais rentável a agricultura voltada para o mercado interno, o que facilitaria o programa de controle da superprodução do café e outros produtos destinados à exportação. Segue-se quê se as reivindicações populares se pau-tarem por essa linha, em vez de criarem obstáculos ao governo, o estarão ajudando, de fato.

* * *O que se nos afigura como os pontos altos da medida são as passagens relativas à elevação do cha-

mado câmbio de custo e as que dizem respeito à política do café.A elevação do câmbio de custo aumenta o poder de competição da indústria nacional, que estava

sendo vitimada por verdadeiro dumping do mercado financeiro pelo próprio Estado, que tinha o dever de protegê-la. Uma medida que produziu muito bons efeitos na fase de implantação da indústria pesada, converteu-se em verdadeira calamidade, agora que esta está implantada e luta pelo mercado. O produtor nacional — inclusive o estrangeiro aqui radicado — tinha que competir com um produto estrangeiro sub-sidiado e, ainda por cima, financiado, quando só agora a economia brasileira começa a preparar-se para financiar sua própria produção.

Como o câmbio de custo geralmente vinha acompanhando de financiamento externo, reduzia-se igualmente a capacidade de competição dos novos mercados para a colocação dos seus produtos no Bra-sil — condição essencial para que eles se habilitassem a comprar nossos produtos excedentes de expor-tação. Agora que esses mercados nos venderão mais, também comprarão mais.

As compras brasileiras declinarão somente na área dos chamados supridores tradicionais, mas, visto como eles são os nossos credores, não haverá mal algum nisso, porque usaremos o saldo para o acerto das contas vencidas.

* * *Quanto à política do café (e do cacau) o desdobramento do fundo de ágios em dois fundos especí-

ficos representa um passo decisivo no sentido da criação de condições institucionais para a programação econômica dessas duas atividades. O produto da venda do câmbio ganho por elas lhes é devido, o que lhes dá excepcionais condições de estabilidade. Mas, por outro lado, sua receita deixa de depender do volume da produção para depender apenas da receita cambial, o que quer dizer que a expansão da pro-dução, especialmente no caso do café, somente servirá para reduzir sua rentabilidade, porque eleva as despesas sem efeito sobre a receita. À base desse pacto, é possível programar.

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A CHINA E A rESIStêNCIA CAMBIALLuiz Gonzaga Belluzzo

(publicado no jornal Valor Econômico - 06/04/2010)

A partir do segundo trimestre de 2009, o comércio mundial começou a emergir (+ 0,5%) do mer-gulho profundo em que se lançou entre o 4o trimestre de 2008 (-7,8%) e o 1o trimestre de 2009 (-10,7%). Essa modesta estabilização do comércio mundial foi promovida, sobretudo, pelas importações dos países asiáticos que cresceram 7,2% no período enquanto as importações dos países desenvolvidos continuaram a se contrair.

Estudos sobre a evolução do comércio mostram que o plano anticíclico de US$ 580 bilhões (cerca de 12% do PIB) colocado em prática pelo governo chinês impulsionou a demanda doméstica e teve impacto importante nas economias vizinhas. Coréia e Cingapura elevaram as despesas públicas em infraestrutura e estimularam a expansão do crédito. Os efeitos benéficos da estratégia chinesa destinada a enfrentar a crise não pouparam os exportadores de commodities, felizes beneficiários da recuperação dos preços e volumes dos bens destinados ao comércio exterior.

Apesar dessas ações virtuosas, um dos temas do momento é a resistência da China diante das su-gestões ou das súplicas para que deixe o yuan flutuar. São cada vez mais frequentes as queixas dos que se julgam prejudicados pela agressiva “invasão chinesa” nos mercados de manufaturas. Não são poucos os países que apontam a “resistência cambial” dos asiáticos como o maior obstáculo à almejada correção dos desequilíbrios de balanço de pagamentos que afligem gregos e troianos no jogo da economia global.

O Tesouro americano ameaça colocar a etiqueta de “manipulador da moeda”, no Império do Meio, ainda que uma fração importante do superávit comercial chinês tenha origem nas exportações das em-presas americanas para os Estados Unidos. Seja como for, muitos países estão incomodados com teimosia dos asiáticos que não parecem dispostos a abandonar as políticas de subvalorização de sua moeda.

Os chineses, todos sabem, seguiram a cartilha de seus antecessores asiáticos na busca da indus-trialização rápida e da graduação tecnológica. Adotaram políticas agressivas de comércio exterior com o objetivo de sustentar estratégias de crescimento acelerado. A busca de saldos comerciais expressivos, com rápido crescimento das exportações, tem o propósito de permitir taxas de acumulação de capital elevadas, acompanhadas forte expansão do crédito e do investimento domésticos.

Nos países asiáticos e, com menor intensidade, na China, o aumento da participação das exporta-ções de manufaturas foi acompanhado por um aumento correspondente na geração do valor agregado manufatureiro mundial. Isso tem uma implicação importante: o valor das exportações se elevou com a maior integração da economia ao comércio internacional e induziu o crescimento da renda interna. Nesse caso, pode-se concluir que houve um “adensamento” das cadeias produtivas domésticas que permitiram a apropriação do aumento das exportações pelo circuito interno de geração de renda e de emprego.

Essas políticas são desdenhosamente chamadas de neomercantilistas porquanto colocam ênfase na obtenção de um saldo comercial favorável e na acumulação de reservas. Na visão contemporânea, tais práticas afetam negativamente o comércio internacional, na medida em que perpetuam desequilíbrios nos balanços de pagamentos de outros países e subtraem liquidez às transações globais.

Em um mundo em que são fortes as assimetrias de poder econômico e financeiro entre as nações, as práticas neomercantilistas permitiram o avanço tecnológico e produtivo das economias em desenvol-vimento. Apoiadas em políticas de crédito generosas, as estratégias neomercantilistas alentaram a rápida expansão do investimento industrial e, no caso da China, financiaram a expansão da infraestrutura. A acumulação de reservas elevadas - capturadas por meio dos saldos comerciais - garante o atendimento da demanda por liquidez em moeda forte e assegura a estabilidade da taxa de câmbio.

A revista “The Economist” diz que, depois da crise cambial e financeira de 1997, é compreensível que os países asiáticos desejem manter reservas elevadas para defender suas moedas de futuros ataques. Mas afirma, corretamente, que as operações de esterilização - mediante a colocação de títulos públicos para absorver o “excesso” de liquidez gerado pela formação de reservas - vão se tornando cada vez mais

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onerosas.Muitos países da região, inclusive a China, estão estimulando empresas e famílias a adquirir ativos

no exterior, como formas de evitar os efeitos monetários da expansão das reservas. Desde 2000, algumas economias asiáticas tornaram-se - no fluxo anual de capitais - credoras líquidas, ajudando a financiar os déficits do balanço em conta corrente dos Estados Unidos.

A economia mundial, depois do forte deslocamento do capital produtivo das últimas décadas, está com capacidade excedente em quase todos os setores. A recessão desencadeada pela crise financeira ini-ciada em 2007 agravou o problema da capacidade sobrante e são ainda tênues os sinais de recuperação da demanda para os setores mais atingidos. Uma fração importante da nova capacidade criada pelos dois últimos ciclos de expansão está localizada na Ásia. Essa circunstância vai tornar ainda mais acirrada a luta pela conquista de mercados e mais difícil o ajustamento da conta corrente nos países deficitários, particularmente o dos Estados Unidos.

O realinhamento entre o dólar e o yuan, segundo os otimistas, promoveria a ativação das fontes de crescimento domésticas na China e, consequentemente, a moderação da estratégia exportadora chinesa, compensada por um reequilíbrio da conta corrente americana. Mas, os advogados da valorização imedia-ta do yuan (e, consequentemente, da desvalorização do dólar) parecem ignorar as dificuldades da tran-sição de uma economia «exportadora de manufaturas» para uma economia apoiada na expansão da de-manda doméstica. As lideranças chinesas sabem que a mudança, se ocorrer, será lenta, gradual e segura.

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A EVOLuçãO E AS trANSFOrMAçõES EStruturAIS DO COMÉrCIO EXtErIOr CHINêS*

Emilio Chernavsky Rodrigo Pimentel Ferreira Leão†

1 INtrODuçãOA partir das reformas econômicas promovidas pelo governo, após a ascensão ao poder de Deng Xia-

oping no final da década de 1970, a economia chinesa passou por profundas transformações que modifi-caram de modo radical a estrutura produtiva interna, assim como o padrão de inserção externa do país.

Desde então, o produto interno bruto (PIB) da China se multiplicou por quinze vezes em termos reais, crescendo a uma taxa média de quase 10% ao ano (a.a.), valor muito superior ao de qualquer outro país neste período. Entre os fatores que contribuíram para este crescimento extraordinário do produto chinês, o comércio exterior assumiu uma posição central. De fato, a estratégia adotada pelo governo, marcada pelas reformas que foram introduzindo lenta e progressivamente, embora de forma inequívoca, elementos característicos do funcionamento de uma economia capitalista, incorporava uma mudança decisiva no papel do comércio exterior. O comércio deixava então de ter como objetivo quase único a bus-ca da autossuficiência para constituir-se numa ferramenta fundamental no impulso ao desenvolvimento econômico do país.

Na nova estratégia, o aumento das exportações aparecia como elemento central para a superação da restrição externa que historicamente havia limitado as importações, tanto dos bens de consumo não duráveis (principalmente alimentos) necessários para sustentar o consumo interno, quanto dos insumos e bens de capital requeridos para impedir a formação de gargalos estruturais — tão característicos no período maoísta (1949 a 1976) no rápido processo de industrialização. No entanto, mais do que aumentar as exportações, o governo incentivou que elas fossem dirigidas para aqueles setores mais dinâmicos da cadeia produtiva global. Por sua vez, a regulação das importações também surgiu como forma de impedir que seu aumento indiscriminado afetasse o desenvolvimento das indústrias nacionais e pressionasse a taxa de câmbio. A coordenação de dois distintos regimes de comércio criados neste período — o primeiro centralizado em empresas estatais e o segundo apoiado na entrada de capital estrangeiro — buscou al-cançar simultaneamente estes objetivos. A maneira como estas reformas foram conduzidas, tendo como pano de fundo algumas transformações importantes no contexto internacional, trouxe impactos não so-mente na pauta de comércio exterior da China, que passou a incluir uma maior participação de setores mais intensivos em tecnologia, mas também na configuração espacial dos fluxos comerciais.

Este capítulo procura discutir as mudanças comerciais da China, tentando incorporar os aspectos mencionados. Para tanto, na segunda seção a seguir, apresenta-se o desempenho mais geral do comércio exterior chinês, indicando as principais transformações em termos de volume, pauta e dispersão geo-gráfica das exportações e importações. Na terceira seção, discute-se a lógica das reformas do comércio exterior do país desde o início dos anos 1980, quando se conformaram dois regimes comerciais distin-tos, destacando a importância da articulação entre o capital nacional e o estrangeiro para dinamizar as exportações e atrair tecnologia. Na quarta seção, apontam-se os instrumentos de política utilizados para implementar estas reformas e analisa-se a forma de gestão ativa da taxa de câmbio. Por último, seguem--se as considerações finais.

2 A EVOLuçãO DO COMÉrCIO EXtErIOr DA CHINATrês processos fundamentais, que serão discutidos aqui, marcam o desenvolvi mento do comércio

exterior chinês do final da década de 1970 ao final dos anos 2000. O primeiro se refere à rápida expansão

* Os autores agradecem as valiosas opiniões e sugestões de Marcos Antonio Macedo Cintra e Celio Hiratuka, que leram versões iniciais deste estudo. Falhas e omissões são de exclusiva responsabilidade dos autores.

† Pesquisadores do Programa de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD) na Diretoria de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais (Deint) do Ipea.

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dos fluxos de comércio e da parti cipação chinesa no comércio global, resultante da liberalização comer-cial forte mente administrada pelo Estado nacional, que culminou na drástica diminuição da quantidade e alcance dos controles existentes, levada a cabo pelas políticas governamentais adotadas no período. O segundo processo, que tem início num momento à frente e passa a ocorrer simultaneamente ao primeiro, do qual é em parte produto, consiste na sofisticação da pauta do comércio externo do país, que resultou na consolidação de um setor exportador dinâmico e com crescente inten sidade tecnológica. O tercei-ro, que responde não somente à progressiva liberali zação do comércio, mas também às transformações geopolíticas e à redefinição da divisão regional do trabalho na Ásia, concerne ao redirecionamento dos fluxos de comércio, em especial das exportações. Trata-se da formação de um padrão espa cial específico do comércio exterior chinês, no qual os Estados Unidos se consti tuíram no principal mercado consumidor para as exportações do país, e as nações asiáticas, nos principais fornecedores para a produção destes bens exportados.

2.1 Evolução dos fluxos comerciais

Os últimos trinta anos assistiram a um crescimento vertiginoso do comércio exterior da China. As exportações se multiplicaram por mais de 120 vezes, crescendo a uma taxa média de 18% a.a. De menos de 5% do PIB em 1978, elas passaram a representar aproximadamente 32% em 2008. Quanto às importa-ções, embora tenham crescido a um ritmo um pouco mais lento, em torno de 16% a.a., elas aumentaram quase 90 vezes, passando de cerca de 5% do produto em 1978 para 26% em 2008, um grau de penetração quatro vezes superior ao do Japão e igual ao dobro da participação das importações no PIB dos Estados Unidos. Este comportamento excepcional das exportações e importações chinesas pode ser observado no gráfico 1, tanto em valores absolutos (eixo esquerdo) quanto em porcentagem sobre o PIB (eixo direito).

Entre 1978 e o final da década de 1990, as exportações cresceram, em média, 15,2% a.a., e as importações, 13,7% a.a., um ritmo de expansão sumamente elevado para um país que estava pratica-mente fechado até o início do processo de reformas. No início dos anos 2000, todavia, as exportações e importações chinesas passaram a crescer a uma taxa média anual ainda maior, respectivamente de 24,7% e 22,8%, fazendo com que a participação mundial do comércio exterior chinês aumentasse consideravel-mente.

Conforme aponta o gráfico 2, até o início dos anos 2000 a participação da China nos fluxos de

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comércio global não tinha superado 4,5%. Desde então, as taxas de crescimento das exportações e im-portações chinesas superiores à taxa mundial impulsionaram a rápida expansão de sua participação, que atingiu, em 2008, o valor de 10,2% no caso das exportações, e 7,9% no caso das importações.

As profundas modificações nos fluxos de comércio exterior da China evi dentemente tiveram impac-tos importantes sobre a evolução da balança comercial do país, conforme mostra o gráfico 3, que traz esta evolução em termos absolutos (no eixo esquerdo) e em porcentagem sobre o PIB (eixo direito).

Os resultados observados mostraram que, até meados da década de 1990, o saldo comercial da Chi-na era muito reduzido e, inclusive, apresentava frequentemente valores negativos. A partir deste período, o crescimento mais acelerado das exportações em relação ao das importações permitiu a obtenção de superávits sistemáticos na balança comercial que, contudo, mantiveram-se — com exceção dos anos de 1997 e 1998 - em níveis inferiores a 3% do PIB até 2004. Nos três anos que se seguiram, em meio à explo-são verificada especialmente nas exporta ções, que mais do que compensou o aumento das importações no período, o sal do da balança comercial se multiplicou por pouco menos de 10 vezes, chegando próximo da cifra de US$ 300 bilhões em 2008, quase 7% do PIB.

2.2 transformações na pauta comercial

Conforme mencionado, a segunda importante transformação do comércio exte rior chinês desde o início das reformas foi a sofisticação da pauta de exportação, no que tange aos produtos e à intensidade tecnológica, além das consequentes alterações na pauta de importação. Até o final dos anos 1970, as ex-portações chinesas, muito reduzidas, concentravam-se basicamente em produtos agrícolas e petróleo e derivados. Com o início das transformações, ocorreu um deslocamen to em direção à exportação de bens intensivos em mão de obra, extremamente abundante e barata no país. Assim, os produtos exportados pelo país passaram a se concentrar principalmente em manufaturas leves tais como têxteis, calçados e brinquedos. Entre 1980 e 1998, a exportação destes itens se multiplicou por mais de dez vezes: passou de US$ 4,3 bilhões para US$ 53,5 bilhões e alcançou em 1998 uma participação de quase 30% do total das ex-portações chinesas e entre 8,5% (no caso dos têxteis) e 20,7% (para os calçados) do total de exportações mundiais destes produtos (LARDY, 2003).

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Posteriormente, ainda preservando a posição de grande exportador mundial de manufaturados le-ves, a China se transformou, num primeiro momento, numa plataforma de montagem de produtos ele-troeletrônicos e de informática, ativi dade ainda intensiva em mão de obra. Mais recentemente, começou a projetar e produzir os componentes utilizados nesta indústria. Finalmente, nos últimos anos tem-se observado um crescimento das exportações chinesas de máquinas e equipamentos de transporte, além da continuidade da expansão, diversificação e sofisticação das exportações do complexo eletroeletrônico, setores significativa mente mais intensivos em tecnologia.

Notou-se nessa evolução, portanto, a progressiva diversificação e sofisticação da pauta de expor-tações da China, que respondeu ao expressivo aumento da participação das exportações de produtos de alta tecnologia e à redução da parti cipação das exportações de produtos intensivos em trabalho, a des-peito da grande importância que este setor ainda possuía.

De fato, durante a década de 1990, houve um aumento significativo das exportações de produtos de média e alta intensidade tecnológica, em detrimen to de commodities e bens intensivos em trabalho e recursos naturais, que, não obstante, continuariam, até o final da década, sendo as principais categorias de exportação por intensidade tecnológica. Deste modo, em 1990 estes dois grupos de produtos básicos respondiam por quase 60% das exportações chinesas, e os bens de média e alta intensidade tecnológica representavam apenas 26% do total. Dez anos depois, as commodities e os bens intensivos em trabalho e recursos natu rais haviam reduzido sua participação para 47% do total exportado — com desta que para a queda da participação das commodities, de mais de 40% —, enquanto os bens de média e alta intensida-de tecnológica haviam aumentado sua participação para 43% do total.

Mesmo após essas importantes mudanças na pauta de exportações ocorridas na década de 1990, o ritmo de transformações acelerou-se no início dos anos 2000. Assim, em 2004 a participação dos produ-tos de média e alta intensidade tecnológica era de, respectivamente, 21% e 33% do total das exportações, ao passo que as commodities e os bens intensivos em trabalho e recursos naturais obtinham percentuais de 8% e 28% do total exportado, distribuição que não se alterou significativamente nos anos seguintes. A evolução da intensidade tecnoló gica das exportações chinesas está presente no gráfico 4.

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A evolução na intensidade tecnológica das exportações chinesas desde o começo da década de 1980 pode ser também vista no gráfico 5, que utiliza uma classificação distinta, dividindo as exportações por tipo de produto.

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Pode-se observar que, no período inicial das reformas, os produtos manufa turados e os combustí-veis dominavam as exportações chinesas. Nos primeiros seis anos da década de 1980, quase três quartos dos fluxos exportados pela China eram de bens manufaturados (excluindo máquinas e equipamentos) e de com bustíveis. Os dez anos seguintes assistiram a uma redução das exportações de bens básicos, es-pecialmente de combustíveis, que foram sendo progressivamente substituídas pelas de máquinas e equi-pamentos. Como resultado desta mudança, entre 1985 e 1995, a participação das exportações chinesas de produtos básicos caiu de 50% para apenas 15%, enquanto a das exportações do setor de máquinas e equipamentos cresceu de 3% para 18%.

Desde então, a participação relativa de combustíveis e outros produtos básicos (provenientes da agricultura e do extrativismo mineral e vegetal) se reduziu ainda mais, caindo para menos da metade, respectivamente, de 4% e 11% em 1995 para 2% e 3% em 2008. Agregou-se a isto uma diminuição das exportações de outros manufaturados (categoria composta por bens intensivos em mão de obra com baixa intensidade tecnológica), que em 1995 representavam 64% e em 2008, 47%. Em compensação, a participação das exportações de máquinas e equipamentos, que era de 21% em 1995, mais do que dupli-cou no período e atingiu 47% em 2008, demonstrando com isso o aumento da intensidade tecnológica nas exportações do país.

A composição da pauta de importações, por sua vez, embora tenha sido alterada de forma menos intensa do que a pauta de exportações, foi fortemente afetada pelas mudanças verificadas nesta, confor-me se pode constatar no gráfico 6.

Os resultados observados sugerem que no início da década de 1980, em virtude da execução dos projetos de desenvolvimento industrial levados a cabo no âmbito das reformas econômicas, a aquisição externa de bens manufaturados, principalmente de máquinas e equipamentos, impulsionou uma expan-são da par ticipação dos produtos industriais nas importações chinesas, em detrimento dos básicos. Em 1980, a participação de básicos era de 34%, e a de manufaturados, de 66%; em 1985, ela se reduziu na primeira categoria de bens para 12% e se elevou na segunda para 88%.

A partir desse período, as importações de manufaturados continuaram sendo o principal compo-nente da pauta, embora nos anos 2000 se tenha verificado uma elevação, ainda que sutil, das importa-ções de produtos básicos, em especial combustíveis, que refletiu não apenas o aumento da quantidade importada, mas também dos preços internacionais das commodities. Entre as décadas de 1990 e 2000, as

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importações desta categoria de bens, necessários à sustentação do acelerado ritmo de crescimento eco-nômico do país, aumentaram quase oito vezes sua participação, passando de 2% em 1990 para 15% em 2008. Quanto ao setor de manufaturados, vale destacar que, por um lado, sob o impacto da diversificação da produção altamente competitiva da indústria nacional, a participação de produtos manufaturados (ex-cluindo máquinas e equipamentos) se contraiu, passando de 50% em 1990 para 29% em 2008. Por outro lado, a participação das importações de máquinas se tornou a mais importante, alcançando um percen-tual de 39% do total importado em 2008.

Esse aumento pode parecer paradoxal se considerar-se que, no mesmo período, a participação das máquinas e equipamentos nas exportações se elevou significativamente. Tal resultado é, no entanto, previsível, uma vez que a produção de produtos de alta intensidade tecnológica está em geral interna-cionalmente integrada e depende, portanto, da importação de componentes igualmente intensivos em tecnologia.*

2.3 parceiros comerciais

A terceira e última mudança a ser discutida é a configuração de um novo padrão espacial para o co-mércio exterior chinês. As mudanças na economia internacio nal, em especial nas relações com os Estados Unidos e com os países asiáticos desenvolvidos, resultaram, entre os anos 1980 e começo dos 1990, em uma maior aproximação do comércio exterior chinês com os países desenvolvidos. Entre tanto, mais re-centemente, em razão do acelerado crescimento econômico e da diversificação da estrutura produtiva, a China tem aumentado suas importações de bens primários e insumos industriais, produzidos tradicional-mente por países em desenvolvimento. Desse modo, ao contrário do que aconteceu com as ex portações, a origem de grande parte das importações chinesas, nos últimos anos, foi se deslocando para países da Ásia em desenvolvimento e da América Latina, fabricantes de commodities e de peças e componentes, a despeito da grande im portância que as importações de máquinas e equipamentos oriundas de nações desenvolvidas mantiveram.

Historicamente, inclusive nos primeiros anos das reformas, a China dependia pesadamente das importações de bens de capital produzidos nos países desenvolvidos para equipar e modernizar sua in-dústria, e de bens intermediários para permitir o funcionamento do regime de processamento de ex-portações. No entanto, conforme a indústria se desenvolvia e aumentava sua capacidade de produzir e exportar, a China passou a depender relativamente menos da importação de máquinas e equipamentos e mais intensamente das importações de commodities, tais como petróleo e minério de ferro, fortemente concentradas nos países em desenvolvimento. Mesmo nos setores mais sofisticados, o estreitamento das relações comerciais com países vizinhos, motivado pela abertura das zonas especiais, fez com que as importações de insumos industriais e de bens de capital também sofressem um processo de desconcen-tração.

Logo, a participação dos países desenvolvidos nas importações chinesas, que superava 80% no iní-cio da década de 1980, reduziu-se progressivamente e passou a flutuar em torno de 50% a partir da dé-cada de 1990, diminuindo ainda mais em anos recentes. Em compensação, conforme pode ser observado no gráfico 7, as importações oriundas dos países em desenvolvimento, que constituíam cerca de 15% do total em 1980, aumentaram continuamente desde então (tanto em função das quantidades quanto dos preços), até ver sua participação superar a dos países desenvolvidos em 2002 e chegar a 54% em 2006.

Ao contrário do ocorrido na trajetória das importações, a forte expansão das exportações se deu simultaneamente ao crescimento da importância relativa dos mercados de países desenvolvidos, cuja participação superou, desde o início da década de 1990, a dos países em desenvolvimento.

* “O elevado conteúdo tecnológico das exportações chinesas pode assim ser explicado pelo também elevado con teúdo tecnológico de suas importações. É interessante notar que a maioria das exportações de bens intensivos em tecnologia se refere a partes e componentes, o que ilustra o aprofundamento da divisão internacional do trabalho. Na China não se localizam somente os estágios finais da produção, mas têm lugar etapas situadas no meio da cadeia de valor. Bens finais respondem por menos da metade das exportações intensivas em tec-nologia, com bens de capital representando de longe a maior categoria” (tradução livre). (The high-tech content of Chinas exports can thus be explained by their high-tech import content. Interestingly, most exports of high-tech products also take place in parts and components, illustrating the deepening of the international division of labour. China is not only a location for the final stages of production but has taken place in the middle of the value-added chain. Final goods account for less that half of high-tech exports, with capital goods representing by far the largest category). (GAULIER, LEMOINE e ÜNAL- KESENCI, 2005, p. 27).

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Conforme aponta o gráfico 8, a participação dos países desenvolvidos ultrapassou, em 1993, 50% do total exportado pela China e tem oscilado des de então entre este patamar e 60%. A participação das economias em desen volvimento, que foi dominante na década de 1980 e chegou a superar 60% no início da década de 1990, apesar de ter perdido sua posição relativa em 1993, manteve-se relevante, flutuando desde o início dos anos 2000 em torno a valores pouco acima dos 40%. Esta mudança se deveu, princi-palmente, ao fato de os Estados Unidos terem aumentado consideravelmente o volume de importações provenientes da China.

Não somente a participação dos países desenvolvidos como destino das exportações chinesas au-mentou fortemente, mas também importantes modificações ocorreram dentro deste grupo de países, como se nota no gráfico 9. Tais mudanças foram produtos da reconfiguração da produção compartilha-

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da asiática — caracterizada pela transferência de etapas da cadeia de produção de firmas dos países desenvolvidos para aqueles em desenvolvimento do continente, e facilitada pela abertura do mercado consumidor norte-americano às exportações com esta origem —, que produziu um efeito-substituição na estrutura do comércio internacional chinês. Este efeito-substituição se traduziu na ascensão dos Estados Unidos, que tomou o lugar do Japão como grande importador da China, o que resultou no estabelecimen-to de um padrão de comércio crescentemente superavitário com os norte-americanos e deficitário com os países da Ásia, especialmente Japão e Taiwan (gráfico A.1 no anexo).

Com a transferência das indústrias do Japão e de Taiwan para outros países da Ásia, houve um deslocamento dos fluxos de comércio japoneses e taiwaneses por meio da instalação de novas estrutu-ras de exportações nestes mercados asiáticos menos desenvolvidos, inclusive a China. Assim, conforme mostram os dados do gráfico 9, o Japão deixou de ser o principal mercado para as exportações chinesas, uma vez que entre 1984 e 2008 sua participação no total caiu de 21% para apenas 8%. No entanto, o for-talecimento do comércio chinês com os Estados Unidos e, em menor escala, com a União Europeia com-pensou esta queda. No mesmo período, a participação das exportações aos Estados Unidos sobre o total aumentou 9 pontos percentuais (p.p.), e a das destinadas à União Europeia cresceu 5 p.p., fazendo com que estes mercados representassem, respectivamente, 18% e 13% das exportações chinesas em 2008.

Ainda que nesta seção tenham sido mencionados alguns aspectos explicativos das mudanças so-fridas pelo comércio internacional, estas somente podem ser compreendidas se analisadas sob a lógica das reformas de comércio exterior realizadas no período. Estas reformas, implementadas mediante um espectro de políticas específicas, dirigiram setorialmente estas transformações estruturais, bem como determinaram a oportunidade de sua execução segundo os objetivos traçados pelo Estado chinês. Desse modo, torna-se fundamental discutir a lógica do processo de reformas e, posteriormente, os instrumen-tos de política empregados para efetivá-las.

Sendo assim, na próxima seção discute-se a estratégia das reformas para o comércio exterior, desta-cando a aproximação com o capital estrangeiro. Mostra-se como efetivamente foram criados dois regimes distintos de comércio, um lidera do por empresas estatais responsáveis por regular o processo de abertura e outro comandado pela articulação do capital estrangeiro com empresas nacionais, que foi direcionada para acelerar o crescimento das exportações.

3 A LógICA DAS rEFOrMAS E OS DOIS rEgIMES DE COMÉrCIOAs impressionantes transformações do comércio exterior da China na década de 1990 e, especial-

mente, nos anos 2000, indicadas na seção anterior, resultaram em grande medida de uma nova estratégia

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formulada para o setor externo, conduzida pelo governo desde o final da década de 1970. Esta estratégia definiu uma lógica de execução das reformas de comércio exterior, que não somente fez com que este crescesse exponencialmente, como também foi responsável por determinar sua significativa mudança qualitativa.

Com a Revolução Chinesa, em 1949, o objetivo para o setor externo, definido pelo Partido Comu-nista Chinês (PCC), era alcançar a autossuficiência mediante a estatização de todas as relações comerciais com o mercado externo. Assim, até os anos 1970 a China se manteve uma economia extremamente fechada; suas importações, reduzidas, eram altamente concentradas em itens considerados estratégicos para promover o desenvolvimento da indústria pesada. Quanto às exportações, igualmente limitadas, denotavam uma incapacidade estrutural para financiar as importações, especialmente de alimentos e bens de capital, necessárias ao avanço da industrialização e à garantia do consumo interno da população.

Essa situação de restrição externa vigorou sem grandes modificações até o final da década de 1970. A partir de então, de forma lenta, progressiva e cautelosa, foi sendo introduzida uma série de reformas que compõem um longo cronograma, ainda em curso, em direção à maior abertura do país ao comércio internacional. Longe de responder a um programa predefinido e abrangente de reformas, esta abertura tem sido marcada por uma visão fortemente pragmática, em que as mudanças são implementadas de forma incremental, levando-se em conta os resultados de cada reforma no desenho da etapa seguinte (NAUGHTON, 2007; MARTIN e BACH, 1998).

Esse movimento tem como características centrais a flexibilização e descen tralização das operações ligadas ao comércio exterior. Até o início das mudanças no final da década de 1970, o comércio interna-cional chinês era quase intei ramente determinado pelo planejamento econômico centralizado. O plano de importações da Comissão Estatal de Planejamento cobria até então mais de 90% dos fluxos importados pelo país e especificava a pauta, composta principalmente de maquinário, matérias-primas industriais e bens intermediários, necessária para atingir as metas físicas de produção dos bens finais prioritários. O plano de expor tações era igualmente amplo, definindo as quantidades físicas a serem exportadas de mais de três mil produtos (LARDY, 2003). O comércio somente podia ser exercido por um pequeno grupo de trading companies (TC), empresas estatais especializadas no comércio exterior que tipicamente se ocu-pavam de um espectro limitado de produtos, em relação aos quais eram as únicas firmas autorizadas a transacionar com o exterior.

As reformas buscavam alterar essa situação por intermédio de, basicamente, dois caminhos que correram de forma paralela. O primeiro consistiu na expansão do número de companhias autorizadas a exportar e importar estabelecido em acordo com o padrão existente. Isto ocorreu em boa medida gra-ças à permissão concedida para que este tipo de empresa fosse criada por outros órgãos públicos que não o governo central. Na verdade, esta permissão respondeu a um traço fundamental do programa de reformas chinesas, que foi “a conciliação de meca nismos de planejamento central com descentralização administrativa” (MEDEI ROS, 2008, p. 288). Tendo em vista que o objetivo do governo era acelerar as ex-portações das empresas estatais, a orientação de descentralizar a gestão econômica fomentou a criação das TC por províncias ou distritos urbanos, que passaram a articular sua produção com indústrias regio-nais, proporcionando um novo di namismo ao regime de comércio exterior estatal. A combinação da ex-pansão das exportações das empresas estatais com a descentralização administrativa permitiu uma nova configuração comercial na China, favorável à rápida ampliação das cor porações dedicadas às exportações e à incorporação de novas regiões na realização do comércio internacional.

Com isso, se no começo das reformas apenas doze firmas centralmente controladas possuíam o status de TC, este número cresceu vertiginosamente ao longo da década de 1980 e, já em 1988, existiam mais de cinco mil empresas desta natureza no território chinês, todas de propriedade estatal, controladas tanto pelo governo central quanto pelos governos regionais (NAUGHTON, 1996). O número de tais em-presas não somente se expandiu, como seu funcionamento foi se modificando, com a adoção crescente de práticas comerciais típicas de empresas capitalistas. Um marco importante neste processo foi a condi-ção de entidades econômicas legalmente independentes conferida a estas empresas em 1994, o que lhes permitiu aumentarem progressivamente sua eficiência e flexibilidade operacional.

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3.1 As zonas especiais e o capital estrangeiro

O segundo caminho por meio do qual as reformas realizadas a partir do final da década de 1970 têm contribuído para reduzir o grau de centralização do co mércio exterior chinês foi a extensão dos direitos de comércio a outros tipos de companhias que não as empresas estatais. Nesse sentido, a China integrou sua política de abertura à criação de um novo regime de comércio, comandado pela articulação entre o capital nacional e o capital estrangeiro, ou seja, pela associação das empresas nacionais, principalmente as cooperativas instaladas no campo, com o investimento direto estrangeiro (IDE). Esta articulação, no entanto, previa que o IDE fosse dirigido para alcançar três diferentes tarefas: i) aumentar a participa ção do país nas exportações mundiais; ii) favorecer o acesso às fontes externas de capital e tecnologia avançada; e iii) introduzir modernas técnicas administrativas nas empresas chinesas.

Visando alcançar essas três tarefas, as condições de entrada do IDE no país foram estabelecidas em termos bastante seletivos. O gradualismo e a seletividade que têm caracterizado as políticas de atração de investimento direto, assim como a estrutura legal criada para lhes dar suporte, apenas ganharam sentido quando se levados em conta três conjuntos de preocupações centrais do governo chinês: i) a questão da localização setorial e espacial dos investimentos - para garantir in vestimentos em setores tradables; ii) a obtenção de reservas em moeda estrangeira - para manter o ritmo da modernização; e iii) o controle da propriedade do capital (ti pos de associação entre o capital estrangeiro e o capital nacional) (ACIOLY, 2005).

A materialização dessas condições de entrada foi propiciada pela formação gradual de zonas espe-ciais, onde era concedido às firmas de origem estrangeira associadas em joint-ventures com empresas nacionais o direito de exportarem seus bens produzidos localmente, dispondo de benefícios fiscais e ta-rifários. No entanto, num primeiro momento, a criação destas zonas esteve limitada a poucas províncias costeiras do país, o que permitia ao governo chinês executar uma política na qual os impactos da entrada do IDE poderiam ser avaliados num ambiente mais facilmente controlável, antes de permitir sua expansão às demais províncias.*

Posteriormente, as zonas especiais se expandiram e tiveram suas especificidades mais bem defi-nidas. Assim, surgiram as Zonas de Desenvolvimento Eco nômico e Tecnológico (ZDET) que, a partir de meados da década de 1980, co mandaram o aprofundamento da abertura ao IDE, expandindo-o para outras regiões costeiras,† e, consequentemente, o crescimento das exportações e a disse minação do pro-gresso tecnológico. No caso das ZDET, “a ideia central [era] criar um microambiente que reproduz[ia] as condições de produção [vigentes] nos países desenvolvidos (...) [onde] as empresas estrangeiras [podiam] manter víncu los tecnológicos e comerciais com empresas chinesas localizadas no seu entorno” (RUIZ, 2004, p. 62).

Além das ZDET, o governo também fomentou a criação de outras zonas especiais‡ com caracterís-ticas distintas. Entre elas, destacavam-se as Zonas de Pro cessamento de Exportação (ZPE)§ e as Zonas de Desenvolvimento da Indústria Hi-Tech (ZDHT),¶ cada uma com funções e regulamentações particulares, mas sempre estimulando as exportações de filiais e a disseminação de inovações em setores de alto con-teúdo tecnológico de firmas estrangeiras instaladas na China.

Desse modo, ainda que cada zona especial tivesse uma característica espe cífica, de modo geral todas elas praticavam o que ficou conhecido como proces samento de exportações: um regime no qual, a partir da entrada do IDE, as fir mas com investimento estrangeiro (FIE) tinham a permissão de realizar

* Essa estratégia, em grande medida responsável pela flexibilidade da experiência chinesa, já havia sido testada, por exemplo, nos contratos de responsabilidade na agricultura, implementados inicialmente apenas em algumas regiões antes de serem estendidos a outras (DULBECCO e RENARD, 1999).

† Somente mais tarde, em meados da década de 1990, a instalação dessas zonas foi autorizada em províncias localizadas no interior do país.

‡ Para uma reflexão sobre o processo de criação de todas as zonas especiais chinesas, ver Ruiz (2004).§ Áreas de processamento de exportações que estão obrigatoriamente ligadas aos investimentos das firmas com investimento es-

trangeiro (FIE).¶ Áreas de desenvolvimento industrial, nas quais participam apenas empresas estrangeiras (que necessariamente de vem associar-

-se a empresas nacionais) voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico. Embora não tenham obrigação de exportar, elas devem internalizar e desenvolver novas tecnologias.

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etapas de montagem de produtos para exportação dentro do mercado chinês, beneficiando- se da impor-tação livre de impostos, do baixo custo da força de trabalho e dos subsídios fiscais e financeiros. Em outras palavras, neste regime de processamento de exportações, as FIE realizavam, em aliança com empresas locais, a montagem de bens finais destinados à exportação para terceiros mercados, apoiando-se na im-portação de insumos produzidos em seus países de origem.

O processamento de exportações inicialmente foi estimulado pela entrada do investimento que provinha principalmente de Hong Kong - então sob controle britânico - e dos países industrializados lo-calizados próximos à China - sobretudo Taiwan -,* com os quais as zonas costeiras já possuíam redes de negócio que encora javam os investidores destes mercados a alocarem seus recursos. Mas, rapidamente os investimentos começaram a fluir também a partir de outros países que não apenas aqueles com os quais já existiam redes de negócio estabelecidas. Este movimento era entendido como resultado não so-mente do próprio processo de abertura a estes países promovido pelo governo chinês, mas também das transformações no cenário geoeconômico e geopolítico ocorridas no início da década de 1980.

A primeira fonte destas transformações se localizava nas pressões realizadas pelos Estados Unidos para desvalorizar o dólar, que resultaram na valorização do iene e na imposição de cotas voluntárias às exportações nipônicas, sacramentadas no Acordo Plaza de 1985 e no Acordo do Louvre de 1987.

Ao mesmo tempo, contudo, as autoridades japonesas inauguraram um período de forte relaxamento das condições monetárias domésticas, com o intuito de contra balançar os prováveis efeitos recessivos da valori-zação do câmbio sobre o superávit comercial japonês (LEVI, 1997, p. 48).Tal política impulsionou a transferência de empresas japonesas para as re giões menos desenvolvi-

das da Ásia. As restrições impostas pelos Acordos Plaza e do Louvre posteriormente também atingiram Taiwan e Coreia do Sul, o que fez com que as firmas destes países, da mesma forma que as japonesas, se deslocassem para outras nações menos desenvolvidas do continente. Este deslocamento intrarregional da produção dos países mais desenvolvidos da Ásia beneficiou a China, que passou a absorver investi-mentos e plantas produtivas sofisticadas direcionadas para a exportação (MEDEIROS, 1997; LEVI, 1997).

A segunda fonte destas transformações respondeu ao surgimento, no início da década de 1980, do que Fiori (1997) chamou de Segunda Guerra Fria.† Nesta fase, a política do governo norte-americano, ao mesmo tempo que procurava iso lar e derrotar a União Soviética, buscava incitar o desenvolvimento das zonas de influência do bloco socialista. Neste sentido, em razão da sua posição geopolítica privilegiada dentro da Ásia, a China assumia um papel estratégico fundamental para a política dos Estados Unidos. Para alcançar o objetivo de isolar a União Soviética e pulverizar a ideologia socialista, os norte-americanos formularam uma estratégia de aproximação com os demais países comunistas, apoiando grupos políticos e movimentos sociais de oposição aos regimes socialistas então vigentes e praticando políticas econô-micas expansionistas, a fim de trazê-los para sua órbita de influência, restringindo o espaço de atuação político e ideológico dos soviéti cos no sistema mundial.

Desse modo, a retomada das relações com a China e o apoio ao seu cresci mento era uma forma de os norte-americanos sinalizarem que os principais países do bloco socialista estavam progressivamente se deslocando para a zona de influ ência capitalista, não respondendo mais aos interesses dos soviéticos.

Logo, ainda que os primeiros sinais de aproximação tivessem emergido no governo Nixon (1969-1974), como no caso da concessão do tratamento de Na ção Mais Favorecida à China, foi entre 1979 e o início do decênio seguinte que as relações entre os dois países avançaram decisivamente. Neste ínterim, a China passou a ser classificada como nação em desenvolvimento, o que permitiu a dimi nuição das ta-rifas norte-americanas para as exportações de têxteis e vestuários em cerca de 50% (MEDEIROS, 1999). Ademais, o aumento das exportações de grãos e o acesso crescente do crédito oficial norte-americano levaram os chineses a conseguirem lançar um programa de importação de máquinas e equipamentos sem comprometer os avanços que vinham sendo obtidos tanto na agricultura quanto na indústria leve.

* Hong Kong e Taiwan, juntamente com a China continental, formam o que é conhecido nos dias atuais como a “grande China.”† A estratégia dessa Segunda Guerra Fria foi organizada em cinco frentes: o projeto militar e tecnológico Strategic Defense Initiative;

o apoio aos movimentos anticomunistas em diversos lugares do planeta; a instalação de uma rede de mísseis MX; a campanha para reduzir o acesso da União Soviética às divisas internacionais; e a rápida aproximação dos Estados Unidos com a China por conta da abertura do mer-cado norte-americano para os produtos chineses e das concessões financeiras para apoiar seu desenvolvimento (FIORI, 1997).

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Em suma, as transformações no cenário internacional que contribuíram para as reformas dos re-gimes comerciais da China tiveram basicamente duas ori gens. A primeira, de natureza econômica, en-contra-se nas pressões mercantilistas dos Estados Unidos sobre o Japão, Coreia do Sul e Taiwan, que impulsionaram o deslocamento das indústrias destes países para outras nações asiáticas, como a China. A segunda origem, de natureza política, identifica-se com o projeto de iso lamento do socialismo soviético, que motivou a abertura do mercado consumidor e creditício norte-americano para absorver e financiar as exportações da China.

O ambiente geopolítico descrito, juntamente com o sucesso do novo regime de comércio em ter-mos de crescimento das exportações e da criação de novas áreas econômicas preferenciais no interior do país, passou a motivar não somente as empresas de países asiáticos próximos a manterem e expandirem seus investimentos, mas também as de países desenvolvidos a investirem na China.* Logo, desde o início da década de 1990, as empresas multinacionais (EMN) oriundas de países desenvolvidos passaram a elevar consideravelmente sua presença no mercado chinês, investindo em setores mais intensivos em tecnologia.

Se, por um lado, o governo permitia que estas EMN usufruíssem das van tagens econômicas es-tabelecidas nas zonas especiais e de uma imensa oferta de mão de obra relativamente qualificada e de baixíssimo custo, assim como, pos teriormente, explorassem o potencial do enorme mercado consumidor chinês, por outro lado, direcionava-as para atuarem em setores exportadores de bens de maior intensi-dade tecnológica. Este direcionamento atendia aos objetivos de mo dernização econômica, aumentando a competitividade do parque produtivo e a sofisticação dos bens produzidos e exportados pelo país. Este processo se fortale ceu ao longo do tempo, atraindo um número cada vez maior de EMN do mundo de-senvolvido para o território chinês, o que ensejou não somente a expansão da produção de empresas estrangeiras, mas especialmente o aumento das exporta ções de bens produzidos nas zonas especiais.

Os resultados observados no gráfico 10 mostram que, desde 2002, as ZPE e as ZDTH começaram a contabilizar crescentes superávits comerciais, graças à expansão de suas exportações, assim como as

* Os países desenvolvidos ainda se favoreceram das iniciativas do governo chinês de consolidar uma estrutura insti tucional estável e ampliar os setores que podiam receber o IDE.

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ZDTE que, a partir de 2004, tam bém apresentaram crescentes saldos comerciais.* No entanto, desde 2004, foram as ZPE que atingiram as maiores taxas de crescimento dos saldos comerciais (138% em média entre 2004 e 2008). Este crescimento se traduziu numa expansão de oito vezes do seu superávit comer-cial, que em 2008 estava na casa dos US$ 50 bilhões.

Contudo, o fenômeno mais importante resultante da entrada das EMN europeias e norte-ameri-canas foi a inauguração de uma nova via de absorção tecnológica pelo comércio exterior da China. Até a década de 1990, apenas o comércio exterior realizado pelas filiais asiáticas nas zonas especiais era res-ponsável por este processo. A produção compartilhada destas filiais, por meio da importação de partes e componentes e exportação de bens finais, realizada em parcerias com as empresas cooperativas, era a forma predominante de catching-up tecnológico para a indústria chinesa. No entanto, a partir da chegada das firmas americanas e europeias, a China passou a absorver tecnologia também pela importação de produtos mais sofisticados, especialmente bens de capital, e pela transferência para o país de segmentos dos setores de pesquisa e desenvolvimento (P&D) destas empresas, elementos que configuraram uma segunda forma de catching-up tecnológico (GAULIER, LEMOINE e ÜNAL-KESENCI, 2005).

Com esse processo, as parcelas que as FIE detinham do comércio exterior chinês expandiram-se cada vez mais rapidamente, ocupando a quase totalidade das atividades de processamento de exporta-ções e concentrando, no período recente, quase 60% de todo o comércio exterior chinês.

Esse crescimento pode ser visto no gráfico 11, que explicita, com escala no eixo esquerdo, a evolu-ção da participação relativa das FIE no total do comércio exterior da China e, com escala no eixo à direita, os fluxos totais relativos às expor tações e importações geradas por essas empresas. A participação rela-tiva das FIE, que era de apenas 5% em meados da década de 1980, elevou-se continuamente e superou, a partir de 2000, 50%, mantendo-se desde então acima deste patamar, mostrando com isso o peso das empresas estrangeiras no comércio exterior chinês.

Num segundo momento, essas empresas também adquiriram um papel mais importante na gera-ção de inovações e disseminação de novas tecnologias no país. Um indicador deste fato pode ser obtido no gráfico 12, por meio do qual se observa, desde 2002, o rápido crescimento da instalação por parte de empresas estrangeiras de novos laboratórios de pesquisa e desenvolvimento (P&D).

* O gráfico A.2 do anexo, que desenha a evolução das exportações dessas zonas especiais, mostra, por exemplo, o crescimento das exportações das ZPE, que saltaram de US$ 358 milhões em 2001 para mais de US$ 100 bilhões em 2008.

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Após explicar a lógica das reformas do comércio exterior, cumpre entender quais instrumentos de políticas foram utilizados para possibilitar não somente a execução das reformas, mas principalmente a regulação do processo de abertura. Além disso, ainda deve-se analisar a gestão da política cambial que foi conduzida de modo pragmático, sempre no intuito de impulsionar as exportações.

4 INStruMENtOS DE POLÍtICA COMErCIAL E A tAXA DE CÂMBIO

4.1 Os instrumentos de política comercial

Os dois processos discutidos, quais sejam, a multiplicação das TC e o desen volvimento das zonas especiais, efetivamente criaram um sistema de comércio exterior muito mais descentralizado e dinâmico e mais adequado para permitir o crescimento intenso verificado nas exportações e importações. Os di-ferentes instrumentos de políticas aplicados a cada um deles fazem com que o regime comercial chinês possa ser compreendido de duas perspectivas.

De um lado, há um regime próprio às zonas especiais, destinado à promoção das exportações, no qual as importações cumprem o papel exclusivo de fornecerem insumos para a produção de bens expor-táveis. Neste regime, as FIE assumem um papel central, intervindo na maior parte dos fluxos de comércio. De outro lado, o restante do comércio exterior chinês, concentrado nas TC, caracteriza o que se pode chamar de regime “ordinário”. Um ponto fundamental deste segundo sistema é que sob sua regência são processadas todas as importações cujo desti no é o consumo no mercado interno. Medeiros (1999) resu-me as características desses dois regimes:

A política econômica chinesa, tal como praticada desde os anos 1980, introduziu simultaneamente o desen-volvimento do mercado interno e a promoção de exportações. E possível falar na existência de dois regimes. O regime de promoção de exportações foi estabelecido com as ZEE, que se espalharam ao longo das zonas costeiras. (...) Esse regime baseia-se no processamento de importações com empresas locais contratadas por empresas estrangeiras ou com empresas com participação estrangeira com autonomia de exportação. (...) As empresas que não se encontram sob o regime das ZEE subordinam-se à política chinesa de comércio exterior, fortemente protecionista e dirigida simultaneamente para as exportações e para o desenvolvimento do mercado interno. [Nesse segmento] todo o comércio exterior é centralizado em tradings estatais (TE), que exercem o monopólio cambial e tomam a iniciativa das exportações, promovendo a produção das EVM [Empresas de Vilas e Municípios].* Do mesmo modo as importações são centralizadas, as tarifas sobre impor-tações são elevadas e existem barreiras não tarifárias para diversos bens (MEDEIROS, 1999, p. 401).

* Neste capítulo, em vez de TE e EVM, empregam-se TC (trading companies) e TVE (township and villages enterprises).

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Apesar do avanço no sentido da descentralização ter ocorrido nos dois siste mas, as políticas im-postas a cada um deles estiveram longe de serem as mesmas. As diferenças verificadas puderam ser atribuídas aos distintos objetivos fixados para cada regime. De fato, se no regime “ordinário” a preocu-pação central consis tiu em descentralizar e liberalizar as importações sem impedir o desenvolvimento das exportações e das indústrias nascentes, no regime de processamento o prin cipal objetivo era gerar instrumentos capazes de impulsionarem as exportações mantendo o controle do governo chinês sobre o raio de ação das empresas insta ladas nas zonas especiais.*

Assim, no caso do último regime, ao lado da liberalização quase completa das importações, já em meados da década de 1980 foram estipulados incentivos fiscais para promover a participação das FIE no setor exportador chinês, principalmente naqueles mais intensivos em tecnologia. Uma corporação estrangeira que se estabe lecesse no mercado chinês no setor de tecnologia poderia conseguir isenção do im posto de renda por até dois anos. Para estas empresas, além da isenção, haveria uma redução de metade do pagamento de todos os impostos, desde que 70% de suas vendas totais tivessem como desti-no o mercado externo (LAZZARI, 2005). Adi cionalmente, em 1986 entrou em vigor uma lei que protegia os lucros das empresas estrangeiras, mesmo quando elas ingressavam no mercado chinês sem nenhuma associação com empresas locais.† O governo chinês também podia fornecer apoio financeiro às FIE; para tanto, foi criada uma nova regulamentação possibilitando a estas empresas, no caso de reinvestirem seu lucro na China, terem acesso a uma linha específica de crédito a taxas de juros mais baixas (DANG, 2008).

Além disso, nesse período, os investidores estrangeiros receberam subsídios fiscais e financeiros para formarem alianças com empresas locais (principalmente as recém-criadas township and villages en-terprises — TVE), dando origem às joint- ventures. Nesse sentido, a criação das TVE, conforme mostra Sicular (1998), revelou-se fundamental para possibilitar inicialmente aos investidores asiáticos a entrada num país onde praticamente não existia um setor privado, e onde o setor estatal era muito fechado e cercado de controles.‡ A associação com este tipo de companhia era extremamente conveniente para as FIE, em especial as de países vizinhos à China, uma vez que lhes permitia contar com vantagens tributárias regionais e acesso a um mercado de trabalho mais flexível e com salários mais baixos e, com isso, elas poderiam aumentar sua competitividade.

Ao incentivo proporcionado às FIE pela possibilidade de formar alianças com as TVE somava-se o desenvolvimento de um marco legal e de procedimentos e regras que permitiam a atuação de empresas exportadoras. Foi criado também um programa especial de incentivos para o processamento de expor-tações que possibilitava a importação de insumos e bens intermediários, livre de impostos, desde que

* Conforme mostra o gráfico A.3 no anexo, as exportações, que originalmente estavam concentradas exclusivamente num reduzido conjunto de TC, passaram a se expandir e se realizar tanto no regime “ordinário” quanto, crescente mente, no regime de processamento de exportações, o que fez com que o regime de processamento aumentasse sua participação no total das exportações chinesas. Se, no inicio da década de 1980, quase 100% das exportações eram realizadas pelo regime “ordinário”, em 2007 mais de 50% já eram realizadas pelo regime de processamento.

† “A Lei da República Popular da China sobre empresas de propriedade estrangeira (WFOE - Wholly Foreign-owned Enterprises), pu-blicada em 12 de abril de 1986, forneceu uma proteção para os lucros e juros devidos a investidores estrangeiros que criarem WFOE na China. Uma série de outras leis e regulamentos expandiu o relaxamento das restri ções chinesas à promoção de IDE com medidas que aumentavam a autonomia das empresas e facilitavam a remessa de lucros, o recrutamento da mão de obra e o uso da terra” (tradução livre). (The Law of People’s Republic of China on Wholly Foreign-owned Enterprises (WFOEs), published on April 12, 1986, provides for the protection for the profits and interest of foreign investors when they founded WFOEs in China. A series of other laws and regulations further relaxed Chinas restriction in promoting FDI with measures for enterprise autonomy, profit remittances, labor recruitment and land use). (DANG, 2008, p. 14).

‡ Ao comparar a China com a Rússia, tem-se que “uma razão que explica a atratividade da China para os investi dores é a presença de um setor intermediário entre os setores estatal e privado. Ambos os países - [China e Rússia] - possuem grandes setores estatais, que têm apresentado, no entanto, um fraco desempenho em termos de lucratividade e [...] são problemáticos para investidores. Ambos os países também têm pequenos setores privados, mas que operam em condições regulatórias e de mercado imprevisíveis e não possuem o forte suporte oficial que pode ser essencial para o sucesso numa economia de transição. Investidores têm uma terceira alternativa na China, o setor de TVE. No curto e médio prazos, as TVE proporcionaram uma opção atrativa para investidores residentes e não residentes” (tradução livre). (One reason for Chinas attractiveness to investors is the presence of an intermediate sector between the state owned and private sectors. Both countries - [China and Rússia] - have large state sectors, but these sectors have had weak profit performance and, for reasons discussed above, are problematic for investors. Both countries also have small private sectors, but the private sectors operate in an unpre-dictable regulatory and market settings and lack the strong official backing that can be essential to success in a transition economy. Investors have a third alternative in China, the TVE sector. In the short and medium run, TVEs have provided an option that attractive to both resident and nonresident investors. While Russia may lack initial conditions for a TVE sector resembling Chinas, there may be routes for developing alternative sector for investors). (SICULAR, 1998, p. 12).

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fossem dirigidos para a produção cujo destino seria a exportação.* A operacionalização deste programa ocorria de duas formas, como aponta o trecho a seguir:

Duas formas de realização dessa política foram efetivadas. A primeira delas, o [...] comércio com processa-mento livre de impostos [...], ocorre sob um contrato no qual a parte estrangeira, normalmente localizada em Hong Kong, envia materiais para empresas chinesas para processamento ou montagem e subsequente reexportação. A firma estrangeira retém a propriedade e paga uma taxa de processamento para a empresa chinesa. Assim, a fábrica na China exerce um papel fundamentalmente passivo, tomando as encomendas e recebendo os materiais de empresas de comércio exterior. Fábricas de propriedade local, frequentemente TVE, respondem pela maior parte do valor exportado sob essa variante. Na segunda delas, a fábrica chinesa adquire material importado e organiza a produção e o comércio de forma autônoma. As firmas estrangeiras têm atuado de forma mais importante nessa segunda forma de processamento de exportações (NAUGHTON, 1996, p. 299-300. Tradução livre).†Nos anos 1990, novas políticas foram implementadas no sentido de liberalizar- se a entrada do IDE,

desde que dirigido para os setores exportadores de bens intensivos em alta tecnologia. A principal inicia-tiva neste sentido foi a formação do Guiding Foreign Investment — Industrial Catalogue, em 1995, que restringia setorial e regionalmente a entrada do IDE, concentrando os mecanismos de apoio aos capitais estrangeiros intensivos em tecnologia e direcionados ao setor exportador. Para aqueles setores econô-micos classificados como “incentivados” ou “permitidos”, como era o caso das indústrias direcionadas às exportações e as de alta tecnologia, os incentivos fiscais e financeiros, inclusive para importar livremente, foram atrelados e expandidos.

Em contraste com o amplo conjunto de incentivos concedidos ao setor de processamento, o co-mércio exterior realizado pelo setor “ordinário”, embora também tenha sido flexibilizado ao longo do tempo, permaneceu objeto de forte regulação. O monopólio comercial exercido por algumas poucas TC que vigorou até o início das reformas foi eliminado, mas não emergiu no seu lugar um sistema totalmente liberalizado. Em vez disso, foi substituído, inicialmente, por um regime de licenciamentos compulsórios, largamente utilizado na década de 1980, à medida que parcelas cada vez maiores do comércio eram re-movidas do sistema de planejamento e escapavam aos controles do Estado.

Posteriormente, esse sistema de licenciamentos foi sendo substituído de modo progressivo por um quadro de restrições baseado num conjunto de listas tanto negativas quanto positivas, as quais especifi-cavam os itens que somente teriam a permissão de serem negociados por certas firmas (MARTIN e BACH, 1998). As restrições ao comércio neste regime se manifestaram não somente na introdução de tais listas, mas também na elevação das tarifas de importação e principalmente na imposição de maiores barreiras não tarifárias ao comércio internacional, que se mantiveram num nível muito elevado até a década de 1990.‡

Portanto, longe de ser um regime liberalizado, o comércio exterior do setor “ordinário” esteve sub-metido a um quadro regulador do Estado chinês, por meio de um conjunto abrangente de regras e restri-ções impostas pelo governo central. Assim, importantes restrições continuaram presentes, a despeito de, como resul tado das reformas das últimas três décadas, i) o monopólio comercial e os rígidos sistemas de

* De fato, as importações destinadas a esse fim vieram a representar uma grande parcela do total, superando 50% desde 1996. No gráfico A.4 no anexo, apresenta-se uma evolução das importações segundo o regime de comércio.

† “Two variants of this policy are in effect. The first type of duty free processing trade (...) takes place under a contract in which a foreign business, usually located in Hong Kong, ships materials to Chinese enterprises for processing or assembly and subsequent reexport. The foreign business retains ownership and pays a processing fee to the Chinese enterprise. The factory in China plays a fairly passive role, taking orders and receiving materials from foreign trading companies. Indigenously owned factories, often TVE, account for the bulk of the export value. In the second type of duty-free trade (...) the factory in China purchases the imported materials and organizes production and trade on its own. Foreign-invested firms account for the bulk of export value under this variant”.

‡ “No começo dos anos 1980 foi publicado um novo e mais elevado conjunto de tarifas, que permaneceram ele vadas ao longo da década seguinte. Em 1992, de acordo com a análise do Banco Mundial, as tarifas chinesas eram similares às de outros países em desenvolvi-mento altamente protegidos. A tarifa média era de 43% e a tarifa média ponderada pelo comércio era de 32% (a mesma do Brasil na época). Igualmente importantes eram as barreiras não tarifárias. O mesmo estudo do Banco Mundial mostrou que 51% das importações estavam sujeitas a uma ou mais de quatro barreiras não tarifárias diferentes e sobrepostas” (tradução livre). (In the early 1980s a new set of tariffs were promulgated that raised tariffs, which stayed high for the next decade. In 1992, according to the analysis in World Bank, China’s tariffs were similar to other highly protected developing countries. The unweighted mean tariff was 43%, and the trade-weighted mean tariff was 32% (the same Brazil at the time). Equally important were nontariff barriers (NTBs). The same World Bank study found that 51% of imports were subject to one or more of four different overlap- ping nontariff barriers.) (NAUGHTON, 2007, p. 385).

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licenciamento terem sido suprimidos; ii) o comércio de um número cada vez menor de bens estar ainda limitado às TC; e iii) um número cada vez maior de empresas ser autorizado a exportar e importar.*

Além das relevantes diferenças na forma como a abertura do comércio se verificou entre os dois regimes, dentro de cada regime o ritmo das reformas foi distinto, consideravelmente mais lento no caso das importações do que nas exportações, conforme se observou pela quantidade de regulamentações aplicadas ao longo do tempo às importações, em contraste com o número limitado de restrições impostas às exportações.

Essa diferença é particularmente marcante no caso do regime “ordinário”, em que as exportações, apesar de também sujeitas a restrições, foram sendo mais rapidamente liberalizadas e inclusive rece-beram incentivos, contrastando forte mente com o grande número de controles utilizados pelo governo central sobre as importações, visando não expor as indústrias nascentes à competição estrangeira. Os incentivos concedidos às exportações tomaram principalmente duas formas. Por um lado, novas cidades foram autorizadas a produzir para exportar. Por outro, foi permitida a associação das atividades das TC e das TVE — possibilitando a subcontratação ou transferência das etapas de produção de exportações das TC para as TVE, reduzindo os custos de produção daquelas —, o que aumentava a atratividade da produção para a exportação também neste sistema e elevava a par ticipação direta das TVE no total das exportações “ordinárias” (NAUGHTON, 1996). Estes movimentos permitiram que, a partir de meados da década de 1990, as exportações realizadas dentro deste regime fossem inclusive capazes de acompa nhar as altas taxas de crescimento das exportações das zonas especiais.

Mais tarde, com a entrada do país na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, que so-mente foi possível após a negociação de um extenso cronograma, ocorreu uma aproximação entre a le-gislação do regime “ordinário” de comércio e o de processamento de exportações. Visando alcançar esta meta, o governo iniciou um processo de redução das tarifas de importação, que caíram de um pico relati-vamente elevado de 56% em 1982 para 15% em 2001, e de forte diminuição do número de bens sujeitos à exigência de licenças de exportação ou importação (LARDY, 2003). Além disso, foi garantida a maior acessibilidade do setor de serviços ao investidor estrangeiro, principalmente a partir de 1999, quando foi permitida a entrada de empresas do exterior especializadas no comércio internacional de serviços (na forma de joint-ventures) (LAZZARI, 2005; NAUGHTON, 2007).

Entretanto, mesmo depois de aderir à OMC, o processo de abertura daqueles setores considera-dos estratégicos — infraestrutura, agricultura, automotivo, energia etc. — permaneceu sujeito a fortes intervenções do governo chinês. Na indústria automotiva, por exemplo, foram introduzidas novas medi-das resultantes de uma política específica para o setor em 2005. Segundo as regras de importação desta política, peças adquiridas no exterior passaram a ser altamente tarifadas, inibindo sua importação pelos fabricantes automotivos locais. Foi ainda estabelecido que, se o valor das partes importadas de um veícu-lo excedesse um determinado limite, a tarifa aplicada sobre cada parte importada seria equivalente à co-brada de automóveis completos (25%), valor substancialmente superior ao da importação de autopeças (10%).† Desse modo, para continuar regulando e coordenando a abertura, em especial daqueles setores

* Outras restrições às importações vigentes até meados da década de 1990 são descritas por Naugthon (1996, p. 306): “Antes das reformas, a importação de qualquer bem era monopólio de uma determinada TC nacional. Hoje, elementos importantes do monopólio per-sistem, devido às limitações do processo de liberalização. No primeiro caso, somente TC (...) são autorizadas a importar bens para a venda no mercado doméstico; as 3.400 empresas ligadas à produção que têm direito de comerciar somente são autorizadas a importar para suas próprias necessidades. [...] Além disso, as TC apenas têm o direito de fazer negócios dentro de um espectro limitado de produtos (escopo de negócios), estão frequentemente limitadas a uma província determinada, e por vezes são obrigadas a servir a uma categoria específica de cliente. Nenhuma TC é livre para escolher que produto importar. O escopo de negócios de uma firma pode ser muito estreito (especial-mente se ele inclui um produto fortemente controlado) ou relativamente amplo (caso no qual tipicamente excluem-se todas as categorias importantes de produtos fortemente controlados)” (tradução livre). (Before reform, the import of any good was the monopoly of a certain national TC. Today, important elements of monopoly persist, due to the limitations of the liberalization process. In the first, only TC (...) are authorized to import goods for sale in the domestic market; the 3400 production enterprises that have trading rights are only authorized to import for their own production needs. In this sense, their position to that of the FIE, although they are subject to closer scrutiny. But import for sale in the domestic market requires the intermediation of a state-owned TC. Moreover, TC are chartered to engaged in business within a particular product range (business scope), are often limited to a designated province, and are sometimes constrained to serve a specified category of costumer. No TC is free to choose what products it imports. A firm’s business scope may be very narrow (especially if it includes a tightly controlled import) or relatively broad - in which case it typically will exclude all important categories of tightly controlled imports.)

† Ainda em julho de 2008, em reunião da OMC, o governo chinês declarava que não reduziria suas barreiras para a importação de açúcar, arroz e algodão, além de recusar a proposta de corte profundo nas tarifas para bens industriais.

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considerados estratégicos, o governo central ainda manteve boa parte destes setores sob a tutela do regi-me “ordinário”, que ainda era bem mais protegido se comparado ao regime de processamento.

Ficam, portanto, claramente identificadas as duas clivagens existentes no processo de reforma no sistema de comércio exterior da China. Por um lado, tem-se um regime de comércio exterior fortemente liberalizado, no que se refere tanto às exportações quanto às importações, apoiado pelo capital estrangei-ro e realizado nas zonas especiais, e um regime de comércio “ordinário” sujeito a im portantes controles do Estado e a um processo de abertura bem mais rígido. Por outro lado, pode-se constatar também que, especialmente no regime “ordinário”, as reformas avançaram de forma mais intensa no que tange às ex-portações do que às importações, sujeitas estas a maiores restrições, a despeito dos avanços obtidos nas últimas décadas.

4.2 A política cambial

Um dos determinantes centrais do comportamento do comércio exterior de qualquer país encon-tra-se na evolução da taxa de câmbio, preço relativo que afeta a competitividade de uma economia. Se historicamente a China havia mantido taxas de câmbio valorizadas de forma a implicitamente subsidiar a importação de bens de capital, o que tornava fundamental o estabelecimento de um rígido controle do mercado cambial, esta situação se alterou radicalmente, embora de forma progressiva, com as reformas econômicas (LARDY, 2003). As mudanças ocorreram ao longo de três períodos com características pró-prias, conforme mostra a evolução das taxas de câmbio nominal e real da moeda chinesa em relação ao dólar entre os anos de 1980 e 2008, apresentada no gráfico 13.

No primeiro período, entre 1980 e 1994, a taxa nominal, cuja média em 1980 era 1,50 iuane para cada dólar, depreciou-se contínua e intensamente até descender, naquele último ano, à média de 8,62 iuanes por dólar. A desvalorização da moeda não impactou apenas a taxa nominal, mas afetou também a taxa de câm bio em termos reais*, que saltou de 0,59 iuanes por dólar em 1980 para 5,23 em 1994. Ao lado da forte desvalorização da moeda, na primeira metade do período, em 1984, ocorreu uma alteração es-trutural no mercado de câmbio, que passou a dividir-se em dois compartimentos. O primeiro era o oficial, administrado por meio de uma taxa flutuante, e o segundo era o mercado de swaps, com acesso restrito às empresas localizadas nas zonas especiais e às TC. Neste segundo mer cado, a taxa de câmbio era ainda

* No cálculo da taxa real, utilizou-se como deflator a relação dos índices de preços ao consumidor dos Estados Unidos e da China.

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mais desvalorizada, de modo a favorecer mais fortemente as exportações. “Essa situação permaneceu até 1994, quando ocorreu a unificação da taxa de câmbio, com significativa desvalorização do iuane, e se estabeleceu um mercado interbancário de divisas em Xangai, de forma a substituir os centros de swaps” (MEDEIROS, 1999, p. 402).

Desde então, a despeito da estabilidade do câmbio nominal que configurou um regime de câmbio fixo, a taxa real continuou se desvalorizando. Se, depois de 1994, a taxa nominal permaneceu fixa em 8,28 iuanes por dólar, a taxa real se desva lorizou de forma progressiva até alcançar, em 2005, o valor de 8,07 iuanes por dólar.

Todavia, após um interregno de mais de dez anos, em julho de 2005 esse sistema de paridade fixa em relação ao dólar foi substituído por um sistema cam bial flexível, administrado segundo a variação de uma cesta de moedas. Análises preliminares identificaram que o dólar respondia por 45% desta cesta, enquanto o iene e o euro participavam, respectivamente, com 20% e 15%.* Desse modo, o regime que na prática funcionava como uma taxa nominal fixa em relação ao dólar deu lugar a uma política na qual o câmbio passou a poder flutuar dentro de uma banda estreita (inicialmente de 0,3%) (CUNHA et al., 2006).

Foi graças à instauração desse novo regime que a taxa nominal de câmbio sofreu uma discreta apreciação de 2004 a 2008, caindo de 8,27 para 6,95 iuanes por dólar. Entretanto, ao contrário do que se esperaria, a mudança do regime cambial não afetou a competitividade da economia e das exportações chinesas em relação ao conjunto de seus parceiros comerciais. Isto porque, depois de um período de esta-bilidade ou mesmo valorização (particularmente acentuada em alguns casos) frente às principais moedas do mundo na segunda metade da década de 1990, os anos 2000 assistiram a uma consistente desvaloriza-ção do dólar (ainda a principal moeda na ponderação do valor do iuane) nos mercados globais de divisas, que mais do que compensou a apreciação da moeda chinesa em relação ao dólar.†

A partir de julho de 2008, em razão do aprofundamento da crise internacional, que retraiu a deman-da externa, e do interesse de fortalecer o uso da moeda local nas trocas regionais, a China interrompeu a trajetória de valorização nominal da sua moeda, fixando novamente a taxa de câmbio, desta feita em 6,8 iuanes por dólar (gráfico A.5 no anexo).

Dessa maneira, os chineses procuraram, ao longo da implementação das reformas comerciais, sus-tentar uma política cambial pragmática na qual as taxas nominal e real deveriam se manter em patamares competitivos, levando-se em conta não somente os aspectos internos, mas também as transformações da eco nomia global, e analisando seus possíveis efeitos para o setor externo da economia do país. Foi sob esta perspectiva que se compreendeu a postura do governo chinês de, num primeiro momento, ce-der às pressões externas e anunciar a valorização do iuane para reduzir os desequilíbrios do balanço de pagamentos global,‡ ainda que de maneira gradual, a fim de não afetar o equilíbrio do sistema financeiro nacional, segundo mostraram Cunha et al. (2006, p. 21):

Há nessa nova estratégia chinesa um reconhecimento de que os superávits em conta corrente e na conta capital podem agravar o quadro de desequilíbrios no comércio internacional, com um potencial político de provocar retaliações sobre o país. (... ) A opção de ligar o [iuane] a uma cesta de moedas, enfatizando o caráter “gradual” e “adaptativo” do novo sistema, parece revelar a preocupação do governo chinês em equi-librar tensões que são contraditórias. No front externo a pressão pela valorização do [iuane] frente ao dólar manifesta-se no plano comercial e diplomático, especialmente nas ameaças de retaliações protecionistas dos EUA. Ademais, os influxos crescentes de capitais de curto prazo posicionados nos mercados futuros em torno de apostas em um [iuane] forte vêm adicionando um elemento especulativo ao processo corrente de ajuste cambial. (...) Por outro lado, no plano interno, havia de se compatibilizar um eventual fortalecimento da moeda doméstica com o equilíbrio do sistema financeiro. Nos últimos anos os bancos chineses foram capitalizados com ativos financeiros denominados em dólares. Com isso, uma valorização do [iuane] nos

* Além da participação de cada país no comércio exterior chinês, também teriam sido levados em conta aspectos financeiros, tais como o perfil da dívida externa da China em termos de denominação monetária, bem como a origem dos fluxos de investimento externo, que tem sido a forma predominante de absorção de capitais (CUNHA et. al, 2006, p. 19).

† Exemplo desse processo foi a desvalorização do dólar em relação ao euro, entre meados de 2001 e meados de 2008, de mais de 60%. Tamanha desvalorização influenciou a cotação da moeda chinesa, provocando a continuidade da desvalorização do iuane frente às moedas de uma parcela considerável dos parceiros comerciais da China e aumen tando com isso a competitividade de seus produtos.

‡ Para uma reflexão a respeito desses desequilíbrios do balanço de pagamentos global, ver Cunha et al. (2006).

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níveis desejados em Washington e Wall Street — algo entre 10% e 20% — poderia causar um profundo de-sequilíbrio patrimonial nos bancos chineses, com efeitos potencialmente desestabilizadores sobre o sistema financeiro, em particular, e o conjunto da economia, em uma perspectiva mais geral.Pela mesma ótica se entendeu por que, num segundo momento, o governo voltou a fixar o valor do

iuane em relação ao dólar para ampliar o papel regional de sua moeda e contrabalançar os efeitos nega-tivos da crise, tendo em vista a rele vância de suas exportações para o avanço da industrialização e para a manutenção do crescimento econômico.

Outro ponto importante da política cambial se refere à liberdade concedida aos agentes para ope-rarem com divisas. Nesse sentido, a livre conversibilidade da conta-corrente somente foi instaurada em 1996 (este não foi o caso das transações na conta de capital, para cujo controle foi mantido um forte aparato regulatório). Esta mudança permitiu que os residentes e não residentes instalados na China tives-sem acesso às moedas estrangeiras, facilitando, dessa forma, a importação de bens e serviços em moeda estrangeira tanto pelas FIE quanto pelas empresas chinesas — desde que, obviamente, possuíssem a autorização prévia do governo chinês para realizar compras no exterior.

As características da evolução das taxas nominal e real no período analisado permitem concluir que a política cambial foi efetivamente utilizada enquanto ins trumento decisivo para buscar e manter a competitividade externa da economia do país. Além disso, procurou-se impedir que os movimentos voláteis dos merca dos cambiais afetassem seu sistema financeiro, fato confirmado pelo emprego, até os dias atuais, dos controles de capitais. Com este objetivo, foi trilhada num pri meiro momento, após o início das reformas, uma via deliberada de desvalorização da moeda, aprofundada com a instalação do merca-do dual do câmbio, seguida pela adoção de uma política de câmbio quase fixo frente ao dólar até 2004. Desde então, houve uma flexibilização do câmbio em relação a uma cesta de moedas, mas este continuou sofrendo intervenções contínuas do Banco do Povo da China, exemplo do que foi a recente fixação do câmbio nominal em relação ao dólar.

Essas mudanças deixam evidente a forma de gestão da política cambial chinesa. Tal gestão está atrelada aos objetivos de dinamizar as exportações e impedir grande volatilidade das taxas de câmbio. Em razão disso, o Banco do Povo da China, especialmente em momentos de crise ou retração da demanda externa, tem plena liberdade para atuar no mercado de câmbio a fim de sustentar a estabilidade do iuane e garantir sua competitividade em relação às moedas dos outros países.

5 CONSIDErAçõES FINAISO dinamismo do comércio exterior chinês nas últimas três décadas, particularmente a partir dos

anos 2000, contribuiu decisivamente para transformar o país asiático numa das maiores economias do mundo. Este fato chama mais atenção quando se leva em conta que a China realizou no período uma transição de uma economia totalmente planificada, em que o comércio internacional era extremamente limitado e centralizado, para uma economia de mercado, em que as exportações líquidas se constituíram num instrumento importante para o crescimento econômico do país.

Essa transição foi realizada sob a batuta do Estado chinês que, graças a uma abertura gradual e pragmática, pôde controlar o ritmo de liberalização das importações e de promoção das exportações. De fato, o governo procurou manter o controle sobre o que era considerado estratégico dentro do comércio internacional e, ao mesmo tempo, dinamizar os fluxos de comércio nas zonas especiais, principalmente nos setores em que a China possuía vantagem comparativa (intensivos em mão de obra) e naqueles liga-dos ao complexo tecnológico.

Com esse objetivo, a estratégia de abertura resultou na formação de dois regimes de comércio distintos: um primeiro, centralizado nas TC (estatais especializadas no comércio exterior, submetidas a uma série de restrições, principalmente no que diz respeito às importações) e com controle sobre setores estratégicos; e um segundo, realizado nas zonas especiais sob a liderança dos investimentos estrangeiros. O estabelecimento deste segundo regime - com a permissão para a entrada de empresas estrangeiras e a liberdade para importar -, aliado à concessão de subsídios cambiais, fiscais e financeiros para as empresas que direcionassem suas atividades para o setor exportador, constituiu a principal inovação do governo

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chinês para impulsionar as exportações.As reformas do comércio exterior que resultaram no desenvolvimento dos dois regimes estavam

inseridas num contexto de reorganização da economia mundial em que se verificava, por um lado, o deslocamento de parte da estrutura produtiva de Taiwan, Coreia do Sul, Hong Kong e Japão para locais onde fosse possível produzir e exportar a custos mais baixos e, por outro, a abertura do mer cado norte--americano para as exportações dos países asiáticos, entre eles a China. Neste quadro, os fluxos comer-ciais originados do país ou a ele destinados foram progressivamente modificando suas direções. Assim, se até a década de 1980 os países desenvolvidos eram os principais fornecedores das importações e os em desenvolvimento o destino mais importante das exportações chinesas, ao longo da década de 1990 esta situação se inverteu, inicialmente no caso das exportações e, num segundo momento, nos anos 2000, também para as importações.

Ao lado das mudanças na configuração dos fluxos comerciais, o processo de reformas promovido pelo governo chinês conduziu à modificação da pauta de exportações chinesa em direção a uma estrutura mais intensiva em tecnologia. No início do processo de abertura, o país aproveitou sua força de trabalho abundante e a proximidade com mercados razoavelmente desenvolvidos para atrair empresas e gerar exportações de bens pouco elaborados, como têxteis. Desde o final dos anos 1990, a geração de exper-tise nas estatais e a apropriação de tecnologia ganharam força, principalmente em virtude das parcerias realizadas com empresas estrangeiras e da diversificação da indústria nacional. Como resultado, a par-ticipação das exportações de bens mais sofisticados já superou a dos setores intensivos em trabalho ou recursos naturais.

Por fim, é possível sugerir que a China, embora tenha de fato recorrido a importantes reformas que introduziram no país características próprias ao funcionamento de uma economia de mercado, utilizou e utiliza um amplo e variado leque de instrumentos regulatórios e de intervenção direta sobre o comércio exterior com o objetivo de controlar o processo de abertura, especialmente das importações, priorizar o desenvolvimento de exportações consideradas estratégicas e, simultaneamente, aproximar sua estrutura produtiva às indústrias mais modernas da economia internacional.

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NOS LIMItES DA “CHIMÉrICA”Luiz Gonzaga Belluzzo

(publicado na revista Carta Capital, 21/11/2009)

Há poucos anos, um grupo minoritário de observadores notou que, em sua grande tela, a história desenhava uma relação peculiar entre a China e os Estados Unidos. O historiador Niall Ferguson, por exemplo, cunhou a expressão “Chimérica” para designar a natureza das relações comerciais, produtivas e financeiras que se desenvolviam entre a China e os Estados Unidos.

Digo “parcialmente” porque Ferguson tratou logo de esclarecer em vários artigos e livros que Chi-mérica ia além de um neologismo inteligente. Ele falava da quimera, monstro híbrido, parte leão, parte bode e parte serpente. “A Chimérica consiste fundamentalmente na combinação entre o desenvolvimen-to chinês, comandado pelas exportações, e o superconsumismo americano(...) Por certo tempo, a Chimé-rica não parecia um monstro, mas um casamento concertado no paraíso. O comércio global ‘explodiu’ e o preço dos ativos foi às alturas.”

Escrevi muitas vezes sobre o tema em CartaCapital, mas vou aborrecer o leitor com algumas repe-tições: a “monstruosidade” Chimérica, acusada por Ferguson, é tão somente a culminação de um longo processo de transformações da economia global no pós-guerra. É a exasperação das formas de articulação e do modo de crescimento da economia global na segunda metade do século XX.

O aturdido historiador imagina monstruosa a expansão mundial do capitalismo sob a hegemonia americana. Ela mudou a divisão internacional do trabalho e o esquema centro-periferia proposto pela he-gemonia inglesa. Na Pax Britannica prevalecia a divisão clássica entre um “centro” industrializado e uma periferia produtora de matérias-primas. Já a economia continental norte-americana, desde o século XIX, é simultaneamente grande produtora de manufaturas, matérias-primas e alimentos. A sua hegemonia não se exerceu - nem se exerce - mediante o comércio, mas pela expansão da grande empresa.

No segundo pós-guerra, é a expansão da grande empresa que promove a ampliação dos fluxos co-merciais entre os países. Na verdade, a primazia cabe às relações de comércio inter e intra firmas. Esse movimento primeiro envolve a Europa e a América Latina. Avança, mais tarde, para o Pacífico. Ao chegar à Ásia, altera profundamente a divisão internacional do trabalho: a região se torna produtora competitiva de manufaturas e importadora de matérias-primas e alimentos.

A partir das reformas empreendidas no final dos anos 1970, a China torna-se formidável produtora e processadora de peças e componentes, inunda os mercados de bens de consumo e equipamentos ba-ratos e inicia uma escalada de graduação tecnológica. Conforma-se na Ásia uma mancha manufatureira, grande importadora de matérias-primas, que pulsa em torno da China. A partir daí, o mundo presencia o nascimento da Chimérica, um cataclismo na divisão internacional do trabalho.

Mas a história da economia mundial, desde meados dos anos 40, não pode ser contada sem a com-preensão das peripécias do dólar em seu papel de moeda de faturamento nas transações internacionais e de ativo de reserva universal. No imediato pós-guerra, sob a égide de Bretton Woods, o poder do dólar conversível sustentou três processos simultâneos: 1. O déficit na conta de capitais, produto da expansão da grande empresa americana, garantiu o abastecimento da liquidez requerida para o crescimento do comércio mundial. 2. Daí, a reconstrução dos sistemas industriais da Europa e do Japão. 3. A industrializa-ção de muitos países da periferia, impulsionada pelo investimento produtivo direto em conjugação com políticas de desenvolvimento nacional.

Os desequilíbrios crescentes do balanço de pagamentos americano levaram à breca o sistema de conversibilidade e taxas fixas de Bretton Woods, ao impor a desvinculação do dólar em relação ao ouro em 1971 e a introdução das taxas de câmbio flutuantes em 1973. A continuada desvalorização do dólar nos anos 70 colocou em apuros a economia mundial.

A regeneração do papel do dólar como standard universal foi efetivada mediante uma elevação sem precedentes das taxas de juro, em 1979, nos EUA. O fortalecimento do dólar, como moeda de reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras, promoveu profundas alterações na estrutura e na

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dinâmica da economia mundial. A força do dólar estimulou a redistribuição da capacidade produtiva na economia mundial - sobretudo na indústria manufatureira - e ampliou os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa, bem como o avanço da chamada “globalização financeira”.

Na condição de gestor da moeda reserva, os EUA gozaram do privilégio de atrair recursos para os seus mercados financeiros e de manter taxas de juro moderadas. Essa combinação de virtudes propiciou a emergência de dois fenômenos correlacionados: 1. A expansão do gasto das famílias amparado no crédito abundante e na inflação de ativos. 2. A acumulação de reservas nos países asiáticos, como contrapartida da ampliação dos déficits em conta corrente dos EUA. O gasto americano movido a crédito determina a “poupança” dos chineses, que, por sua vez, fornecem o funding para os déficits gerados nos Estados Uni-dos, tanto o público quanto o privado.

A Chimérica concedeu aos Estados Unidos a liberdade para a adoção de políticas monetárias e fiscais generosas, fontes das taxas elevadas de crescimento. A inflação de ativos propiciou as delícias do efeito-riqueza para fruição das famílias viciadas no endividamento e no hiperconsumo. A cada ciclo de expansão elevava-se o déficit em conta corrente e, assim, engordavam as reservas chinesas. (A farra cul-minou na crise atual.)

Diante das assimetrias estruturais da economia global, a almejada correção de desequilíbrios me-diante o “re-alinhamento” entre as moedas é, sim, quimérico. A dita correção, dizem alguns, passa neces-sariamente por uma “redistribuição” de déficits e superávits entre as regiões envolvidas. O realinhamento entre o dólar e o yuan, segundo os otimistas, promoveria a ativação das fontes de crescimento domésticas na China e, consequentemente, a moderação da estratégia exportadora chinesa, compensada por um reequilíbrio da conta corrente americana.

Mas os advogados da valorização do yuan (e, consequentemente, da desvalorização do dólar) ig-noram o choque negativo de oferta desferido sobre os custos manufatureiros, por conta da mudança de preços relativos. Para recuperar a competitividade e o emprego dos americanos, diante da baixa proba-bilidade de uma redução dos salários reais, a desvalorização do dólar em relação ao yuan terá de ser su-ficientemente drástica para «ajustar» os custos salariais americanos aos chineses. A Chimérica parece ter chegado a seus limites, assim como a fórmula americana do pós-guerra. O yuan subvalorizado é a outra face da supremacia do dólar.

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O g-20 E O BrASIL: A “guErrA DE CAPItAIS” E A gEOPOLÍtICA POr tráS DA “guErrA CAMBIAL”

Lécio Morais(publicado na revista Princípios, edição 110)

O fracasso do encontro do G-20 em Seul refletiu os conflitos derivados da imposição dos interesses dos Estados Unidos contra os países emergentes e outras nações

Resultou em fracasso o encontro do G-20 em Seul, sem respostas concretas a nenhum dos proble-mas em pauta. Em relação à questão cambial, os EUA defendiam uma pauta que condenasse a política da China de manter o yuan “artificialmente” desvalorizado, pretendendo ainda que se estabelecessem limites fixos de déficit e superávit comerciais para equilibrar os saldos dos balanços comerciais. Acabaram sem nada nas mãos e ainda expuseram ao mundo a evidência de que sua liderança hegemônica vacila e se enfraquece. O entendimento de que o problema cambial não está primariamente no yuan, mas sim no dólar, denunciado pela primeira vez pelo governo alemão, teve adesão ampla, isolando os EUA, que tiveram de se contentar com a conclusão genérica de que os países deverão se abster de realizar “políti-cas cambiais de desvalorização competitiva”. Os “emergentes”, por sua vez, ainda lograram arrancar uma declaração que legitima a adoção de medidas cambiais “macroprudentes” - eufemismo para controle de capitais - para fazer frente à valorização de suas moedas (1).

Ao inconcluso debate da “guerra cambial” somou-se o enterro virtual da Rodada de Doha, da OMC, quando mais uma vez os EUA foram responsabilizados pela inviabilidade da retomada das negociações. Esse isolamento do líder hegemônico no G-20 fez com que vários observadores passassem a denominar o encontro de “G-19 contra um”.

O isolamento norte-americano foi fortemente influenciado pelo anúncio do Federal Reserve (FED) de que reiniciaria um programa de recompra de títulos do Tesouro no mercado, denominado eufemisti-camente de “afrouxamento quantitativo de liquidez”, o segundo a acontecer desde a crise de 2008. Essa medida, anunciada na semana anterior ao G-20, recomprará US$ 600 bilhões em títulos de longo prazo do Tesouro durante 10 meses, à média de US$ 75 bilhões por mês: Os demais membros do G-20, com a Alemanha à frente, tomaram essa segunda emissão maciça de dólares como uma ação deliberada para enfraquecer a moeda norte-americana, provocando maior valorização artificial das demais moedas, em prejuízo de suas economias.

Nos meses que sucederam a crise de 2008, o governo dos EUA, por meio do FED, emitiu centenas de bilhões de dólares em créditos para salvar seu sistema financeiro, e realizou o primeiro “afrouxamento quantitativo de liquidez” comprando 1,8 trilhões de dólares de títulos podres com o objetivo de ressusci-tar seus capitais financeiros. Na época, o G-20, elevado à condição de novo fórum da governança mundial, apoiou essa ação por consenso. De lá para cá, no entanto, o consenso sobre esse tipo de iniciativa de liquidez se dissolveu.

A razão é que, a partir de 2009, muitas economias se recuperaram e voltaram a crescer - os BRIC, a Alemanha e parte do Leste Asiático - enquanto os EUA continuaram estagnados. Essa assimetria de dinamismo no sistema mundial fez com que uma parte dos dólares emitidos pelo FED em 2008 migrasse como capital especulativo para os países que retomaram seu crescimento, ameaçando a estabilidade dessas economias com bolhas especulativas, inflação e a valorização artificial de suas moedas. Essas con-sequências só puderam ser neutralizadas naqueles países que mantêm taxas de câmbio administradas, como China e outros países menores do Leste e Sudeste Asiático e os produtores de petróleo do Golfo Pérsico (2). Por esse motivo, o “afrouxamento quantitativo 2” de US$ 600 bilhões, foi recebido pelo G-20, em Seul, com franca hostilidade e encarado pelos demais países-membros como uma ameaça do Estado norte-americano às suas economias.

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O que estão realmente fazendo os EuA?

Primeiro, é preciso deixar claro que esse “afrouxamento quantitativo de liquidez” não passa de emissão pura e simples de dinheiro do “nada” em troca de dívida do próprio Estado: Esse tipo de ação por parte de um banco central sempre foi condenado pela ortodoxia econômica, uma inadmissível emissão de dinheiro que desvaloriza a moeda e gera uma inflação diretamente proporcional ao tamanho da emissão. O fato de a emissão ser proposta pelos EUA não apenas uma vez, mas duas, mostra a total desorientação das autoridades monetárias diante da premência em defender os interesses nacionais estadunidense, aliada à mais completa falência do paradigma neoliberal de políticas macroeconômicas. É o vale-tudo, com consequências que podem ser as mais desagradáveis e funestas.

O resultado imediato mais provável disso será uma aceleração das medidas defensivas de muitos países em defesa da estabilidade de suas moedas nacionais. Mas a compreensão do que os EUA estão fazendo vai mais além da «guerra cambial».

Além de ser uma «guerra cambial» a iniciativa estadunidense corresponde também a uma «guerra de capitais». Ao recomprar títulos do Tesouro (treasuries), o FED converterá em capital monetário o capi-tal financeiro até então expresso nesses títulos de longo prazo, sem passar pelo mercado. Esses capitais “congelados” em treasuries por muitos anos, repentinamente, voltarão “à vida” transformados em di-nheiro vivo e sem qualquer custo aos contribuintes americanos! Eles ainda poderão dar a volta ao mundo comprando ativos mais rentáveis em troca apenas de papéis verdes. A “recompra” de treasuries recriará, assim, capital monetário em massa para os investidores americanos.

Se tal ciclo de “ressuscitação” de capitais acontecesse dentro das fronteiras econômicas dos EUA, e este país não fosse o emissor da moeda de reserva do sistema capitalista mundial, os males daí advin-dos - como a desvalorização de todos os capitais de sua economia, via inflação - ficariam hipoteticamente restritos ao próprio país.

No entanto, com a economia dos EUA estagnada e de outros países crescendo, boa parte dos capi-tais assim ressuscitados inundará, novamente, outras economias, levando consigo inflação, desvaloriza-ção dos capitais nacionais e valorização artificial das suas moedas - com as exceções já citadas.

Na verdade, as consequências de uma emissão de dinheiro de tal monta nas economias receptoras ainda não são completamente compreendidas.

Claramente os EUA assumiram uma estratégia de beneficiar seus capitais à custa do empobrecimen-to dos demais países.

Porém, isso ainda não diz tudo sobre o “afrouxamento quantitativo 2”. Como haverá uma troca tí-tulos da dívida do Estado norte-americano por dinheiro emitido pelo seu banco central, o “afrouxamento qualitativo” terá a função mágica de reduzir a dívida do Tesouro estadunidense sem nenhum custo ao seu orçamento, apenas aumentando sua base monetária. Os US$ 600 bilhões emitidos resgatarão, em dez meses, cerca de 5% do total da dívida hoje no mercado, reduzindo a dependência futura do governo norte-americano de refinanciamento, melhorando, em longo prazo, sua posição frente aos seus grandes credores externos - China e Japão à frente. Esse “efeito benéfico” (para os EUA) representa também um ganho geopolítico considerável para o governo norte-americano, ao aliviar sua dependência financeira de credores externos e soberanos.

Mas, é importante repetir que esse “efeito benéfico” só acontecerá se os dólares assim emitidos forem aplicados fora da economia americana. Caso contrário, a mágica se desfaz e os EUA terão que en-frentar uma explosão inflacionária e um desequilíbrio ainda maior em suas contas públicas.

Desse modo, a mágica do “afrouxamento quantitativo 2” mostra-se não só como uma estratégia econômica de beneficiar-se à custa do resto do mundo, mas também como uma arma geopolítica.

Para os demais países, a defesa mais efetiva contra essa ofensiva de Washington é a criação de barreiras à movimentação de capitais, impedindo a nova enxurrada de capitais especulativos. Cresce em todo o mundo o consenso de que tais barreiras são armas legítimas de defesa. No entanto, mesmo se tal defesa for adotada e mostrar-se eficiente, a situação do sistema mundial pode continuar se agravando pela própria deterioração econômica dos EUA.

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Certamente haverá uma tendência de depreciação dos treasuries, acarretando perdas patrimoniais relevantes para os países credores e, de toda forma, o mundo sofrerá com uma provável onda inflacioná-ria a partir da alta de preços de commodities estratégicas como petróleo, ferro, metais não ferrosos, soja, milho e trigo. Se adicionarmos a isso o fato de os EUA ainda serem o maior importador mundial, vê-se que o imbróglio econômico e geopolítico tende a ficar cada vez mais complexo (3).

Em contrapartida a essas consequências nefastas para todo o mundo, a capacidade de liderar dos EUA deve sofrer novo declínio, o que pode ser compensado - infelizmente - pelo maior uso de seu incom-parável poder militar e por uma crescente histeria de direita na política americana. O mundo estará assim em marcha para um caos sistêmico, reeditando a estagflação dos anos 1970 e a insegurança.

O Brasil na roda-viva

O Brasil vem aparecendo, até agora, como uma das maiores vítimas da “guerra de capitais” escondi-da pela “guerra cambial”. Essa situação decorre diretamente da política monetária vinculada a uma meta de inflação e a manutenção artificiosa de um regime de câmbio flutuante. Enquanto o Banco Central se preocupa em atingir uma meta de inflação tendo como único instrumento a taxa de juros da dívida pú-blica, ele atrai capitais especulativos que pressionam a taxa cambial do Real para cima, obrigando a acu-mulação de reservas. O custo da dívida pública e da acumulação de reservas torna muito elevado o ônus fiscal dessa política monetária, limitando a capacidade de ação do Estado. É a armadilha em que o Brasil foi metido pelas reformas macroeconômicas da era FHC, representando a forma atual que assume a res-trição externa que suportamos como economia dependente na periferia do sistema mundial capitalista.

Outro fator determinante para essa vulnerabilidade é o peso político desproporcional dos setores ligados aos circuitos internacionais de valorização financeira que sustentam o regime de câmbio flutuante e hostilizam a intervenção estatal. Esses setores ainda são fortes no aparelho de Estado e na grande mídia.

Até o momento, o Brasil vem se defendendo da valorização do Real, com pouco sucesso, apenas pela tributação da entrada de investimentos em carteira. No entanto, nossa vulnerabilidade externa con-tinua a se deteriorar, o que pode ser visto pelo crescente déficit em transações correntes e pelo avanço da desindustrialização. Mas, a partir do fracasso do G-20, o problema da taxa de câmbio deve assumir maior urgência.

A iniciativa do “afrouxamento quantitativo 2” deixa claro que a valorização cambial do Real não de-corre de “forças de mercado”, mas sim da ação deliberada do mais poderoso Estado do mundo em defesa de seus interesses nacionais (4). Isso vem enfraquecendo o discurso liberal de que o problema do câmbio e das contas externas deve ser deixado às forças de mercado, sem a interferência do Estado brasileiro. Mesmo uma publicação conservadora, como a revista Conjuntura Econômica, da FGV, mudou sua opinião sobre a melhor forma de defender o Real. O editorial de novembro dessa revista (5) não só defende o uso do IOF sobre os investimentos em carteira como recomenda estendê-lo a todas as operações de entrada de dólares, inclusive dos exportadores (!), como forma de fechar todas as portas de entrada do capital especulativo.

Mas não se pode esperar que os setores mais conservadores de nossas classes dominantes venham a apoiar uma reforma nas políticas macroeconômicas, verdadeira raiz de nossa vulnerabilidade. Mesmo após o G- 20 ter legitimado a adoção de certos controles de capitais como medida contra a valorização es-peculativa da moeda nacional, o realismo impõe que esperemos do governo Dilma uma estratégia incre-mentalista no enfrentamento do câmbio e do déficit nas contas externas. A adoção de uma taxa cambial administrada, excetuada uma catástrofe, parece fora de questão, pelo menos por enquanto.

Dentro dessa estratégia, a defesa contra a valorização artificial do Real só poderá ser mais efetiva na medida em que todos os mecanismos de formação da taxa de câmbio forem abrangidos e à medida que alcançarmos uma taxa de juro real compatível com a do centro capitalista. Com o IOF, apenas o mer-cado físico de moeda é atingido, mas as transações no mercado futuro e as operações de hedge a elas associadas também devem sofrer restrições. O controle dessas operações de futuro é difícil porque os grandes exportadores e importadores se valem delas para viabilizar suas operações de comércio exterior,

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protegendo-se da flutuação do dólar. Mas a criação dessas operações é intrinsecamente especulativa e deve ser onerada por tributação ou por exigência maior nas margens de garantia; o que depende não só do Ministério da Fazenda, mas também de regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da Bolsa BM&F Bovespa.

Em conclusão

Importante nesse encontro do G-20 é a grande maioria de seus membros ter expressado, pela pri-meira vez, o entendimento de que o problema internacional da “guerra cambial” tem origem no dólar fraco e não em outras moedas. Essa fraqueza do dólar reflete - a nosso ver - a perda de produtividade da economia norte-americana e o declínio da força competitiva de seus capitais. Esse é um problema estru-tural do capitalismo estadunidense que enfraquece também o seu Estado nacional, que não consegue mais se financiar adequadamente, criando embaraços à sua ação hegemônica.

A resposta dos EUA a esse problema vem sendo lançar mão da vantagem de emissor da moeda internacional para manterem seus privilégios de país hegemônico em detrimento do resto do mundo. A estratégia da China de vincular sua moeda ao dólar também resulta em problema para os demais países que mantêm taxas flutuantes de câmbio, mas essa é uma manifestação secundária do problema que tem origem e sede em Nova Iorque e Washington.

Para o Brasil, a situação põe em risco nosso futuro. Caso não venha a se formar um consenso ne-cessário a uma mudança em nossa política monetária e cambial, que neutralize a entrada especulativa de dólares de forma efetiva, o problema das contas externas e da desindustrialização resultante pode transformar-se em emergência nacional e com potencial de levar o Brasil de volta aos anos 1980.

*Lécio Morais é economista, mestre em Ciência Política e assessor técnico na Câmara dos Deputados.

Notas

(1) Essa assertiva, contida no ponto 6 da declaração final do encontro, foi uma vitória particular do Brasil, que se esforçou decisivamente pela sua inclusão e cujos termos se aplicam especialmente à situa-ção brasileira.

(2) Considera-se taxa de câmbio administrada toda taxa cuja formação seja diretamente deter-minada por um controle extensivo e permanente sobre o fluxo de capitais ou pela intervenção usual da autoridade monetária, como maior agente de mercado, visando atingir determinado alvo de taxa cambial. A existência pontual e provisória de tributação seletiva, como é o caso atual do IOF no Brasil, não pode qualificar nossa taxa cambial como administrada.

(3) A participação dos EUA na importação global vem decaindo a décadas, situando-se, em 2009, em 12%. A China, segunda colocada, tem 8%; mas evidentemente parte desse poder de compra chinês decorre de suas vendas aos próprios EUA, o que ainda lhe multiplica o poder de maior consumidor mun-dial.

(4) Discuti o enfrentamento teórico e político sobre a questão cambial entre a corrente dos “mer-cadistas” e a posição dos que defendem a intervenção estatal no artigo “O câmbio continua matando: o Real e a livre flutuação cambial”, no número 106, da revista Princípios, março-abril de 2010.

(5) Carta do IBRE, Conjuntura Econômica, vol. 64, n° 11.

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A rEOrgANIzAçãO DAS EMPrESAS trANSNACIONAIS E SuA INFLuêN-CIA SOBrE O COMÉrCIO INtErNACIONAL NO PErÍODO rECENtE

Celio Hiratuka*

1 INtrODuçãO

Desde o pós-guerra, o comércio mundial vem crescendo a um ritmo bastante superior ao do produ-to mundial. Nos últimos vinte e cinco anos, porém, embora esta tendência tenha se mantido, ocorreram também alterações bastante profundas nos padrões de comércio.

Essas alterações afetaram tanto a composição do fluxo de produtos transacionados quanto a parti-cipação relativa dos diferentes países e regiões no comércio internacional. No que diz respeito à compo-sição do comércio, os produtos manufaturados continuaram crescendo a uma taxa bastante superior à dos produtos primários agrícolas e minerais. Dentro do grupo das manufaturas, por sua vez, o comércio de produtos com maior conteúdo tecnológico cresceu a uma velocidade muito superior à dos produtos intensivos em trabalho e recursos naturais e com menor conteúdo tecnológico.

Porém, o aspecto que mais chama atenção é a intensificação da participação dos países em de-senvolvimento, graças ao aumento da participação dos produtos mais intensivos em tecnologia em suas pautas de exportação. De acordo com a UNCTAD (2002), os países em desenvolvimento tinham, em 1980, uma participação de 11,6% e 8,2% de produtos de alta e média intensidade tecnológica, respectivamen-te, em suas pautas de comércio. Em 1998, estes números passaram a 31% e 17%. Paralelamente a este movimento, nota-se uma queda da relevância dos produtos primários, que respondiam em 1980 por mais da metade das exportações dos países em desenvolvimento. Em 1998, esta participação declinou para 19% do total, fato que contraria a literatura tradicional de vantagens comparativas baseadas na dotação de fatores.

Esse processo de mudança no comércio mundial está associado a vários fenômenos. Em primeiro lugar, devem-se destacar os efeitos do progresso tecnológico que, ao criar novas formas de concorrência e desenvolver novas tecnologias e produtos, tornou reduzida a importância e o dinamismo das commo-dities em relação aos produtos manufaturados mais intensivos em tecnologia. Ou seja, a incorporação de elementos como inovação e diferenciação em produtos comercializados internacionalmente tem, em geral, se traduzido em maior elasticidade renda para estes produtos, o que ajuda a explicar o seu maior crescimento relativo.

Em segundo lugar, saliente-se o processo de liberalização comercial, que se acelerou nesse período. No âmbito multilateral, a rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em in-glês) e o surgimento e consolidação da Organização Mundial de Comércio (OMC) tiveram como resultado a redução das barreiras tarifárias e não tarifárias, além da ampliação do número de países membros. Ao mesmo tempo, no âmbito regional, os acordos de integração, sejam sob a forma de acordos de livre comércio, sejam sob a forma de uniões aduaneiras, multiplicaram-se. Em ambos os casos, a redução das barreiras comerciais foi muito mais efetiva no comércio de produtos manufaturados do que no de produ-tos agrícolas.

Porém, talvez o elemento que mais tenha contribuído para as alterações no comércio mundial des-critas tenha sido a mudança observada nas formas de atuação e organização das atividades internacio-nais das grandes empresas transnacionais (ETNs). Pressionadas pelo acirramento da concorrência, estas empresas passaram, em especial a partir da década de 1980, a reorganizar suas atividades internacionais, aumentando seu grau de internacionalização, por meio da intensificação dos fluxos de investimento di-reto, sobretudo na modalidade de fusão e aquisição. Ademais, passaram a operar de maneira mais ra-cionalizada, externalizando atividades antes integradas verticalmente e configurando redes de produção fragmentadas geograficamente.

De uma maneira geral, pode-se afirmar que foram as grandes corporações que levaram à frente o * Professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pesquisador do Núcleo de Economia Indus-

trial e da Tecnologia (NEIT) da UNICAMP

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processo de inovação e diferenciação de produtos no âmbito internacional. Além disso, foram elas que mais se beneficiaram da liberdade de ações propiciada pela redução tarifária em níveis global e regional. Estas empresas passaram a comandar direta ou indiretamente um volume cada vez maior dos fluxos de comércio mundial. Considerando-se apenas as exportações registradas pelas filiais das ETNs, isto é, sem se considerarem as exportações das matrizes, em 1982 seu valor correspondia a cerca de 33% das ex-portações mundiais. Em 2008, esta participação atingiu 41%. Vale destacar que as grandes corporações passaram a comandar uma grande parte dos fluxos comerciais por meio de esquemas de subcontratação internacional. Ou seja, considerando-se o comércio internacional realizado pelas matrizes e os fluxos co-mandados indiretamente via subcontratação, é possível concluir que a maior parte do comércio mundial está sob a influência direta ou indireta das grandes ETNs. Dessa maneira, é no mínimo parcial qualquer tentativa de análise dos fluxos e dos padrões de comércio sem se considerar que uma parcela cada vez maior destas movimentações é realizada de maneira internalizada por meio de ETNs ou esquemas de sub-contratação controladas por elas, não envolvendo, portanto, transações puras de mercado (arms-lentgh).

Este capítulo busca analisar de que maneira a relação entre empresas transnacionais, investimento direto e comércio internacional tem sido tratada por diferentes especialistas. Longe de ser uma análise exaustiva, que inclua todas as visões e correntes teóricas, o capítulo foca apenas duas abordagens dife-rentes, escolhidas em função de sua importância e influência sobre a maneira de entender a questão. A primeira delas é a teoria neoclássica de comércio e seus desdobramentos, tratados na seção 2. A segun-da abordagem, discutida na seção 3, ao contrário da primeira, não se constitui enquanto corpo teórico homogêneo, mas tem como traço comum entre suas vertentes a tentativa de explicação da existência e da forma de atuação das ETNs em um nível menos abstrato, considerando aspectos históricos relevantes para o entendimento da questão em tela e incorporando elementos da teoria da firma e de organização industrial. Além disso, a seção 3 procura organizar um esquema analítico geral a partir desta perspectiva. Finalmente, na última parte do capítulo são apresentadas as considerações finais.

2 OS MODELOS DE COMÉrCIO COM EMPrESAS MuLtINACIONAIS

Apesar das evidências do peso das ETNs na produção e no comércio mundial, são bastante recentes os esforços de entender-se como a atuação destas empresas exerce impactos sobre o comércio. Do ponto de vista da teoria neoclássica, o reconhecimento da importância das atividades das ETNs sobre os fluxos de comércio foi durante muito tempo negligenciado. A formalização dos modelos de vantagem compara-tiva do tipo Heckscher-Ohlin defendia entre os seus vários pressupostos a hipótese de que os fatores de produção eram imóveis internacionalmente, o que equivale a afirmar que os fatores de produção somen-te podiam ser explorados onde estivessem localizados. Além disso, a ideia de firma subjacente ao modelo era de uma unidade de produção, produzindo apenas um produto, com apenas uma planta em um am-biente onde prevalecia a concorrência perfeita em todos os mercados. Isto é, excluía-se de antemão qual-quer possibilidade de existência de firmas multinacionais, tanto pela impossibilidade de as firmas de um país utilizarem os fatores de produção de outro país quanto pelo impedimento de uma firma estrangeira acumular qualquer tipo de vantagem sobre as firmas domésticas para produzir no mercado local, dada a hipótese de concorrência perfeita.

Deve-se ressaltar ainda que, em grande parte por influência do artigo de Mundell (1957), o fluxo de produtos passou a ser considerado um substituto ao movimento dos fatores de produção. Segundo a conclusão do artigo, sob certas condições o movimento de produtos poderia levar aos mesmos efeitos em termos de preço e bem-estar que o movimento de fatores conseguiria. Consequentemente, dentro da teoria neoclássica não se avançou em direção a uma teoria do investimento direto internacional, ao con-trário das teorias de comércio, que se constituíam em padrão para explicar as relações produtivas entre países, fato que pode ser verificado na estrutura dos livros-texto de economia internacional.

Mais recentemente, as novas teorias de comércio têm procurado incorporar elementos da litera-tura de organização industrial — como economias de escala, diferenciação de produtos e economias de aglomeração — aos modelos tradicionais de comércio internacional para explicar a predominância do comércio intraindustrial, em especial entre os países desenvolvidos. Entretanto, pode-se afirmar que,

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como regra geral, a noção de firma utilizada por estes modelos continua bastante limitada. Os termos firma e planta produtiva são empregados na maior parte das vezes como sinônimos. Empresas operando com mais de uma planta e em mais de um país são excluídas da análise. Conforme argumenta Markussen (1995), nos modelos desenvolvidos pelas novas teorias de comércio, com raras exceções, a firma continua sendo entendida enquanto uma organização independente, que produz apenas um tipo de bem em uma determinada localização.

Porém, o reconhecimento de que em muitas indústrias — em particular naquelas em que as eco-nomias de escala e diferenciação de produtos são relevantes — grande parte das firmas é multinacional estimulou esforços de teorização para incorporar-se a presença destas empresas, originando um conjun-to de modelos que estudam o comércio internacional e a produção multinacional de maneira unificada. Embora, conforme será analisado mais detidamente adiante, a noção de firma multinacional continue restrita, vale a pena examinarem-se os desdobramentos destes avanços recentes.

Basicamente, podem ser identificadas duas linhas principais de argumentação para explicar o surgi-mento das multinacionais nos modelos. A primeira linha de estudos, entre os quais se destacam Helpman (1984), Helpman e Krugman (1985) e Zhang et al. (1996), procura explicar os investimentos verticais das multinacionais, isto é, aqueles investimentos caracterizados pela separação das etapas das cadeias produ-tivas em países distintos, por meio do aproveitamento das diferenças na proporção dos fatores dos países. A segunda linha, desenvolvida em trabalhos como Krugman (1983), Brainard (1993), Markusen (1995) e Markusen e Venables (1995), analisa os investimentos horizontais, isto é, a instalação multinacional de plantas com linhas de produtos semelhantes a partir dos custos de transporte e da semelhança dos países em termos de tamanho, renda e dotação de fatores.*

As duas linhas têm como elemento central o reconhecimento de que as grandes empresas realizam um conjunto de atividades criadoras de ativos que podem ser utilizados em várias plantas produtivas em diferentes localizações sem perda de seu valor. Atividades como pesquisa e desenvolvimento (P&D) e, de maneira mais geral, construção de know-how, envolvem custos que, uma vez incorridos, passam a ser fixos, originando economias de escala específicas à corporação.

Em um nível mais geral, as empresas multinacionais são identificadas com uma alta proporção de ativos intangíveis em relação ao valor total de mercado da firma. Essas variáveis explicativas dão origem ao conceito de ativos baseados nos conhecimentos específicos à firma. Esses ativos estão incorporados em elementos como o capital humano, patentes e outros conhecimentos técnicos exclusivos, copyright ou marcas; ou mesmo ativos mais intangíveis como a administração, know-how ou a reputação da firma (MARKUSEN, 1995, p. 174).

A ocorrência do investimento direto externo (IDE) e a decisão de produzir no exterior estariam mui-to mais associadas à existência desses ativos intangíveis do que aos ativos físicos sob o poder da firma. Em primeiro lugar, porque o custo de mobilidade espacial dos ativos intangíveis seria muito menor do que para os ativos tangíveis. Em segundo lugar, porque os ativos intangíveis teriam propriedades semelhan-tes a um bem público, no sentido de que poderiam ser utilizados e gerar rendas em várias plantas sem a diminuição de seu valor.

Dessa maneira, a existência de economias de escala verificadas no nível da corporação exerce um papel-chave tanto nos modelos com multinacionais horizontais quanto nos com verticais, uma vez que são estas economias que permitem separar as etapas do processo produtivo e a exploração destas eco-nomias fora do país de origem.

Modelos de proporção dos fatores e as multinacionais verticais

O modelo desenvolvido por Helpman (1984) explica as atividades das ETNs em termos de inte-gração vertical, ou seja, em termos do controle unificado de diferentes estágios do processo produtivo localizados em países diferentes. Em sua essência o modelo é bastante parecido com as novas teorias do

* Markusen et al. (1996) desenvolvem um modelo em que tratam de maneira unificada tanto os investimentos verticais quanto os investimentos horizontais, contudo, para maior clareza na explicação sobre cada um dos tipos de investimento, optou-se neste capítulo por tratar os dois modelos separadamente.

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Dossiê I.2 - O comércio internacional e uma abordagem da questão nacional e da transição102

comércio que incorporam as economias de escala e a diferenciação de produtos para explicar o surgimen-to do comércio intraindustrial. No modelo, existem dois países, dois fatores produtivos e dois setores. Um setor produz bens homogêneos com retornos constantes de escala e o outro produz produtos diferencia-dos com retornos crescentes de escala.

A diferença do modelo com multinacionais surge quando é permitida a separação espacial dos es-tágios de produção do setor diferenciado. As atividades corporativas, em especial as operações relaciona-das a P&D, seriam responsáveis pelos retornos crescentes deste setor, uma vez que podem ser utilizadas em várias plantas sem perda de seu valor. Nesse sentido, são considerados como custos específicos à firma, mas não à planta. Estas atividades são intensivas em capital, enquanto as atividades de produção são intensivas em trabalho.

Quando a dotação de fatores dos países é relativamente similar e o preço dos fatores pode ser equalizado pelo comércio, não existe espaço para o IDE, e os resultados se resumem àqueles previstos pelos modelos com firmas nacionais apenas. Uma parte do comércio será interindustrial, refletindo as vantagens comparativas em termos de dotação de fatores, e outra parte será intraindustrial, refletindo as economias de escala e a diferenciação de produtos.

Entretanto, quando a diferença na dotação relativa dos fatores for de tal monta que não seja possí-vel a equalização de seus preços por meio do comércio, algumas firmas do setor diferenciado vão separar o processo produtivo, localizando as atividades de P&D no país relativamente bem dotado de capital e as atividades de produção no país relativamente bem dotado de trabalho, exportando os produtos finais a partir deste país.

O investimento direto ocorreria, portanto, apenas em uma direção, do país melhor dotado de ca-pital para o país melhor dotado de trabalho. Haveria neste caso uma reversão na direção do comércio. O país com melhor dotação de capital iria importar o produto que utiliza capital de maneira mais intensa. Dessa forma, o comércio intraindustrial é substituído em parte pelo comércio intrafirma do tipo interin-dustrial. Na verdade, neste caso, caracterizar-se-ia a troca de produtos finais por serviços tecnológicos ou, de maneira mais geral, por know-how. O país onde se localiza a atividade produtiva exportará produtos finais, enquanto o país que sedia a atividade corporativa exportará os serviços tecnológicos.

Percebe-se, portanto, que no modelo de Helpman as multinacionais surgem endogenamente, e ao mesmo tempo provocam alterações importantes nos fluxos de comércio. Uma vez definidas a estrutura dos custos e a possibilidade de separação dos estágios do processo produtivo, é a dotação dos fatores que, em última instância, determinará a possibilidade de existência das multinacionais e os limites da produção no exterior. A posição de país investidor e exportador de serviços corporativos e a de receptor do investimento e exportador de produtos industriais que empregam os serviços da matriz como insumos também serão definidas pela proporção dos fatores. O comércio intrafirma — no caso, a troca de serviços corporativos por produtos manufaturados, ou de produtos intermediários por produtos finais — seria o resultado do aproveitamento dos diferenciais de custos dos fatores obtidos graças à produção multinacio-nal. O IDE funcionaria, portanto, enquanto um fator que ampliaria a possibilidade de equalização dos pre-ços dos fatores para além do que seria possível apenas com o comércio realizado por empresas nacionais.

Modelos de convergência e as multinacionais horizontais

Outro conjunto de modelos almeja explicar os investimentos das multinacionais horizontais com base na comparação entre as vantagens de proximidade ao mercado consumidor em relação ao aprovei-tamento de economias de escala.

Da mesma maneira que no modelo de Helpman, existem dois setores, um deles produzindo bens homogêneos com retornos constantes, e outro, bens diferenciados com retornos crescentes de escala. Entretanto, além dos retornos crescentes no nível da firma, poderia haver economias de escala no âmbito de cada planta, de maneira que concentrar a produção implicaria redução de custos. Outra variável fun-damental no modelo é o custo de transporte.

No caso da inexistência de diferenças na proporção dos fatores dos dois países, a localização da

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produção e a configuração da produção escolhida pelas firmas dependeriam fundamentalmente do custo de transporte e da relação entre as economias de escala no âmbito da planta e as economias de escala no âmbito da firma. As economias de escala na planta incentivariam a produção concentrada em apenas um mercado e a exportação a partir deste mercado. As economias de escala no nível da firma permitiriam colher os frutos desta economia em outras localizações que não o mercado doméstico, beneficiando-se da proximidade com o consumidor externo. Assim, desde que o custo de transporte não seja baixo, se as economias de escala verificadas na planta forem pequenas em relação às economias de escala no âmbito da firma, haveria uma situação em que as firmas do setor diferenciado em ambos os países teriam incenti-vos para se tornarem multinacionais, uma vez que o lucro associado à produção no mercado externo seria maior do que o custo de instalar uma nova planta (BRAINARD, 1993).

Uma situação de equilíbrio sem empresas multinacionais, apenas com empresas nacionais expor-tando a partir de seus mercados domésticos, ocorreria em um cenário em que: i) custos de transporte e barreiras ao comércio fossem pouco relevantes; ii) e os custos fixos da corporação fossem pouco impor-tantes em relação aos custos fixos no âmbito da planta.

Porém, à medida que os custos de transporte e as tarifas aumentam e as economias de escala da corporação se tornam mais importantes em relação às economias de escala no âmbito da planta, a pro-dução no exterior torna-se mais viável do que o comércio. Em uma situação de equilíbrio apenas com multinacionais, o comércio de produtos diferenciados seria totalmente substituído pela produção mul-tinacional. Haveria comércio apenas de serviços corporativos. De acordo com o argumento de Krugman (1983), os países realizam comércio porquanto ao longo do tempo desenvolveram tecnologia, expressas em know-how, para produzirem produtos diferenciados. Este comércio pode ser realizado tanto direta-mente, por intermédio da transferência de tecnologia dentro das firmas multinacionais, ou indiretamen-te, por intermédio do comércio de produtos que incorporam estas vantagens tecnológicas. Em última instância, comércio e empresas multinacionais seriam substitutos, da mesma maneira que comércio e mobilidade dos fatores são substitutos no modelo de Heckscher-Ohlin.

Markusen e Venables (1995) utilizam argumentação semelhante para relacionar a presença de mul-tinacionais com a semelhança nos níveis de renda, tamanho e dotação de fatores dos países. Quando os países envolvidos são muito diferentes em termos de dotação de fatores, de tamanho ou de tecnologia, o modelo prevê a predominância de firmas nacionais exportando a partir do país dotado de maior van-tagem relativa, o que é consistente com a teoria neoclássica tradicional de comércio. As firmas nacionais com planta única seriam beneficiadas pelo fato de concentrarem sua produção no país onde o volume de vendas é maior, o custo dos fatores é mais baixo ou a produtividade dos fatores é mais elevada.

Entretanto, à proporção que os países convergem para uma situação de simetria, inicialmente o comércio interindustrial é substituído pelo comércio intraindustrial, tal como nos modelos da nova teoria do comércio. Excluídas as multinacionais, a convergência nas características dos países engendraria o predomínio do comércio intraindustrial. Todavia, a partir do momento em que fosse possível a presença de multinacionais, o comércio seria substituído pelas suas vendas. Esta é basicamente a hipótese de con-vergência* proposta por Markusen e Venables (1995).

Na medida em que os países se tornam mais similares em tamanho, dotação dos fatores e eficiência técnica (os dois últimos determinando a renda per capita), a atividade econômica internacional vai ser crescentemente dominada pelas multi nacionais, que vão substituir o comércio desde que os custos de transportes não sejam muito pequenos. [Assim, a proporção das vendas da ETN em relação às suas expor-tações tenderia a crescer quanto maior a similaridade entre os países]

(MARKUSEN, 1995, p. 178).

Considerações críticas sobre a incorporação das ETNs nos modelos de comércio

Do ponto de vista teórico, os desenvolvimentos recentes propostos pelos autores analisados repre-sentam efetivamente um avanço em relação aos modelos tradicionais das novas teorias de comércio, uma

* Brainard (1993 e 1997) denomina a opção entre exportar ou instalar uma subsidiária para atender mercados externos de “tracde-o/fproximidade-concentração”.

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vez que integram uma teoria sobre as ETNs dentro dos modelos de comércio com equilíbrio geral. Este fato por si só representa o reconhecimento de que a atividade das ETNs é um fenômeno importante, que traz mudanças fundamentais na maneira de interpretar as questões relativas ao comércio internacional.

Apesar disso, analisando de maneira crítica os trabalhos apresentados, percebe-se que as conclu-sões ainda avançam pouco no que tange à complexidade relacionada à influência das ETNs sobre os fluxos de comércio.

No caso dos modelos de multinacionais verticais, o seu surgimento está associado ao aproveita-mento da diferença nos custos dos fatores entre os países por meio da separação das etapas do processo produtivo, resultando em comércio intrafirma, do tipo intersetorial, e aplicando-se, portanto, ao investi-mento realizado nos países com menor grau de desenvolvimento. No modelo de Helpman, o intercâmbio ocorreria entre serviços corporativos e produtos finais; mas supondo-se um processo produtivo com mais etapas de produção, poderia estender-se a argumentação para todo tipo de investimento efetuado de maneira a aproveitar diferenças na disponibilidade e custos dos fatores de produção, dando origem a co-mércio intrafirma também de insumos e produtos intermediários. Com certeza, este é um aspecto impor-tante. Porém, deve-se reconhecer que uma parte crescente do IDE ocorre por motivos que ultrapassam a busca de redução no custo dos fatores.

Os modelos de multinacionais horizontais pretendem justamente analisar o surgimento de multi-nacionais em países com características semelhantes, prestando-se, desta forma, a explicar o crescente fluxo de IDE realizado de maneira cruzada entre países desenvolvidos. Nestes modelos, as vantagens de propriedades específicas à firma levariam o investimento a ser efetuado de forma a explorarem-se as semelhanças entre os países em termos de tamanho de mercado, renda e dotação de fatores. Contudo, a situação de equilíbrio em que prevalecem as multinacionais resultaria no predomínio das vendas diretas no país de implantação das filiais, em detrimento das exportações.

A conclusão é que a realização do IDE teria uma relação de substituição em relação aos fluxos de comércio anteriormente existentes. Esta conclusão contraria a evidência empírica, que mostra que as vendas da ETN e os fluxos de comércio, mais do que substitutos, são complementares no âmbito de países e firmas (FONTAGNÉ, 1999; CLAUSING, 2000).

A utilização do modelo também não esclarece os elementos que poderiam auxiliar no entendimen-to dos fatores que estão na origem dessa relação de complementaridade. Segundo será argumentado na seção seguinte, o correto entendimento desta relação deve passar necessariamente pela análise da forma de atuação das ETNs no período atual. Dizendo de outra maneira, para iluminar os elementos que estabelecem as ligações entre IDE, comércio e ETN, é necessária a compreensão das estratégias de inter-nacionalização e organização das filiais implementadas por estas empresas no período recente.

Em razão de a própria estrutura básica dos modelos partir da análise neoclássica, não existe espa-ço para um exame mais aprofundado dessas questões. Embora incorporem elementos importantes dos trabalhos que procuram tratar as multinacionais por uma ótica de organização industrial — em especial observando-se a noção de que as firmas transnacionais possuem vantagens relacionadas à propriedade e ao uso de ativos intangíveis específicos à firma, que nos modelos analisados resultam em economias de escala no âmbito da corporação —, estes modelos ainda não discutem de maneira satisfatória aspectos fundamentais do comportamento destas empresas.

Em última instância, todas as decisões referentes ao que produzir e onde produzir são tomadas de maneira a minimizar os custos, e são estas decisões que determinarão a estrutura de IDE, produção e comércio entre os países envolvidos. Isto representa um reducionismo bastante grande, uma vez que originalmente os ativos intangíveis eram considerados elementos estratégicos importantes que dão à firma capacidade de competir e se expandir frente à concorrência. Esta concorrência não se expressaria apenas em termos de redução de custo, mas por meio de elementos variados que teriam o objetivo de criar ganhos monopólicos não facilmente imitáveis ou reprodutíveis por outras firmas. Daí a importância dos ativos intangíveis, tendo em vista que são específicos no sentido de não estarem imediatamente disponíveis para os concorrentes. E nesta acepção que o termo vantagem de propriedade, cunhado no trabalho pioneiro de Hymer (1960), foi utilizado por diversos outros autores que analisaram o fenômeno

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das multinacionais segundo esta ótica, como por exemplo Cantwell (1989) e Dunning (1988).Da mesma maneira, a existência de informações imperfeitas e assimétricas, a impossibilidade de se

preverem ex ante todas as contingências envolvidas na realização de transações e a necessidade de co-ordenar de maneira efetiva produtos e recursos produtivos são elementos levantados por vários autores englobados na chamada teoria da internalização (BUCKLEY e CASSON, 1976; TEECE, 1977). Tais elemen-tos ressaltam o fato de que a atividade das multinacionais e suas estratégias também levam em conta os custos de transação, buscando encontrar formas de governança adequada para garantir-se a apropriação dos resultados da posse de ativos específicos. Muitas vezes, as estruturas de coordenação das atividades podem originar redes de produção, com a substituição das formas de coordenação hierárquica via equity por outras formas contratuais.

Os parágrafos anteriores explicitam aspectos fundamentais associados às estratégias das ETNs que são mais amplos e complexos do que o comportamento de minimização de custos dos modelos analisa-dos. Mais do que isso, entende-se que para compreender o movimento de reorganização das grandes corporações no período recente é necessário levar em conta as alterações na lógica da concorrência decorrente do processo de globalização produtiva, inclusive com as mediações históricas associadas às mudanças nesta lógica.

A próxima seção visa incorporar esses aspectos, buscando esclarecer as relações entre comércio internacional e atividade das ETNs, a partir dos autores que analisaram o movimento de reestruturação e reorganização destas empresas no período recente. Esta alternativa, desenvolvida por autores de diferen-tes matizes, certamente não se constitui em um corpo teórico tão homogêneo quanto a teoria neoclássi-ca, porém fornece um guia mais adequado para interpretar o movimento histórico e o sentido geral das transformações nas estratégias implementadas pelas ETNs no período recente, assim como sua influência sobre o comércio internacional.

3 MuDANçAS NAS FOrMAS DE OrgANIzAçãO INtErNACIONAL DAS EtNS E IMPACtOS SO-BrE OS FLuXOS DE COMÉrCIO

Os estudos que buscaram analisar o IDE e a atuação das ETNs a partir de uma perspectiva diferente do mainstream, em especial dentro da teoria da firma e de organização industrial, preocuparam-se mais em explicar as motivações para a realização de IDE e as razões para a existência de empresas multinacio-nais do que em analisar as relações existentes entre a atuação destas empresas e os fluxos de comércio. Também a partir desta ótica, muitas vezes comércio e produção multinacional eram considerados formas alternativas de alcançar mercados externos. Se do ponto de vista da teoria neoclássica o trabalho de Mun-dell (1957) permitia tratar os movimentos de capitais e de produtos como substitutos, a análise de Vernon (1966) sobre o ciclo de vida do produto também dava margem a esta interpretação.

Vernon foi o primeiro a analisar os fluxos comerciais a partir do movimen to de expansão das multi-nacionais, estabelecendo uma relação dinâmica entre capacidade de inovação, internacionalização pro-dutiva e padrões de comércio. De acordo com Vernon, as condições da economia americana no pós-guer-ra ga rantiriam às empresas deste país a liderança tecnológica na inovação de produtos. Em um primeiro momento, quando o produto não estivesse ainda padronizado e a demanda mostrasse crescimento lento, a produção seria totalmente domés tica. Se o produto tivesse uma alta elasticidade—renda da demanda, o consu mo poderia crescer em países com renda per capita mais elevada, como os da Europa Ocidental, incentivando a exportação a partir do mercado doméstico. Com o crescimento da demanda, a maior esta-bilidade nas especificações técni cas de insumos e a rotinização do processo de produção, as firmas ame-ricanas poderiam optar por instalar uma filial nos mercados anteriormente atendidos pelas exportações. Tal opção ocorreria tanto pela avaliação de que os custos de produzir no exterior seriam menores do que o custo marginal de produzir para a exportação, quanto pela ameaça de perda dos ganhos monopólicos da inovação com a entrada de novos concorrentes locais.

A teoria do ciclo do produto descreve de maneira bastante precisa a sequência estilizada da expan-são internacional das grandes empresas americanas, inicialmente dirigida à Europa, depois aos países em

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desenvolvimento e, posteriormente, sofrendo o movimento de reação das grandes empresas europeias verificado nas décadas de 1950 e 1960. Esta sequência começaria pela produção e venda local, seguida por exportações e, finalmente, redundaria na produção no exterior. Nos países em desenvolvimento, em especial na América Latina, este movimento representou a possibilidade de internalizar setores intensivos em capital e escala por intermédio da instalação de filiais de empresas estrangeiras que buscavam novos mercados e tentavam contornar as barreiras tarifárias características das políticas de proteção deste pe-ríodo.

Considerando-se apenas um produto específico, é valido concluir que a sequência descrita pelo ciclo de vida do produto resultava efetivamente na substituição inicial do fluxo de comércio pelo IDE. Para o país de origem da ETN, isso representaria uma redução nas exportações e, para o país hospedeiro, inversamente, uma redução no volume de importações. Pode-se argumentar de qualquer maneira que, mesmo neste período, a relação de substituição tinha validade somente considerando um produto em particular, uma vez que o início da produção no exterior poderia gerar outros fluxos de comércio associa-dos, como, por exemplo, exportação de insumos e bens de capital.

Entretanto, conforme o próprio Vernon reconheceu em artigo publicado posteriormente (VER-NON,1979), a teoria do ciclo de vida teve um poder explicativo muito maior no período de transnaciona-lização das grandes empresas no imediato pós-guerra do que na etapa posterior de extensão e consoli-dação de uma rede maior de subsidiárias ao redor do globo.* A relação de substituição entre a produção transnacional e o comércio, subjacente à teoria do ciclo de vida, seria característica do primeiro período de transnacionalização, quando as operações das diversas filiais não estavam tão integradas e operavam ainda de maneira stand-alone.

O entendimento da forma como as grandes corporações transnacionais pas saram a exercer influên-cia sobre os fluxos de comércio passa pela compreensão das mudanças ocorridas nas formas de concor-rência e organização global destas cor porações, frente ao ambiente de grandes transformações ocorridas na passagem da década de 1970 para a década de 1980.

A reorganização internacional das atividades das grandes corporações internacionais no período recente

Na introdução deste capítulo, destacou-se o aumento da importância das filiais de ETNs nos fluxos de comércio global. E importante ressaltar, entretanto, que os números apresentados não refletem ape-nas mudanças quantitativas. Por trás dos dados estatísticos estão transformações qualitativas associadas à reorganização dos oligopólios mundiais. Estas transformações estão relacionadas à adoção, por parte das grandes corporações mundiais, de estratégias bastante diferentes daquelas utilizadas no período de internacionalização produtiva observadas no imediato pós-guerra.

Vale lembrar que a ordem econômica da chamada era de ouro foi marcada pela busca de criação de mecanismos e instituições capazes de propiciarem crescimento econômico e estabilidade nas relações internacionais. Contudo, conforme ressaltam Belluzzo (1995) e Medeiros e Serrano (1999), de fato, foi a estratégia geopolítica americana de resposta ao desafio da União Soviética e sua área de influência que garantiu o sucesso das políticas de recuperação dos aliados na Europa e na Ásia. Além da ajuda direta, a liquidez mundial pôde fluir a partir dos Estados Unidos (EUA) para estas regiões por meio da abertura do mercado americano às importações destes países e do investimento direto das grandes empresas esta-dunidenses. Cumpre lembrar, ainda, a tolerância observada em relação às políticas de subsídio às expor-tações e proteção ao mercado interno em relação aos produtos americanos. Nesse contexto, as políticas nacionais de inspiração keynesiana para promoção do crescimento da renda e do emprego puderam florescer, tendo como resultado não apenas taxas elevadas de crescimento, mas também a redução do abismo de produtividade em relação à economia líder em vários setores.

Os fluxos de investimento direto nas décadas de 1950 e 1960 estiveram associados à transnacionali-zação das grandes corporações americanas em direção à Europa e à periferia, onde as taxas de crescimen-to eram superiores à da economia dos EUA, expandindo as fronteiras de acumulação estadunidenses para

* A multinacional com escopo global se tornou uma realidade em um tempo mais curto do que o previsto por Vernon, que descreveu apenas um tipo de multinacional puramente hipotética em seu artigo de 1979.

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além do seu mercado interno, que, mesmo sendo de proporção continental, era incapaz de dar vazão aos lucros acumulados.* Ao mesmo tempo, as grandes corporações europeias e japonesas tiveram condições de reagir à penetração das empresas americanas, a partir de um parque tecnológico renovado, de um mercado em crescimento e de políticas ativas de apoio à penetração em mercados externos. As empresas europeias, principalmente, puderam inclusive mimetizar a estratégia de internacionalização das grandes multinacionais americanas, investindo diretamente tanto nos Estados Unidos quanto nos países perifé-ricos. As empresas japonesas, por sua vez, foram muito mais agressivas na expansão comercial, obtendo elevação das importações de seus produtos em indústrias importantes, principalmente nos EUA.

Nesse contexto, a concorrência entre as grandes corporações passou a ocor rer crescentemente no âmbito internacional, criando rivalidades oligopolistas que ultrapassavam as fronteiras nacionais. Confi-gurava-se, assim, uma forma de com petição denominada por Porter (1986) de multidoméstica. Ou seja, a concorrên cia no plano internacional se traduzia na reprodução das rivalidades dentro de cada mercado nacional, o que significa afirmar que o espaço de confronto entre as multinacionais era, em grande parte, limitado aos mercados nacionais, embora os competidores internacionais em cada mercado fossem qua-se sempre os mesmos.

A desestruturação das condições que haviam garantido o ciclo de crescimento da era de ouro e as mudanças na ordem econômica mundial observadas a partir da crise econômica dos anos 1970 susci-taram um profundo processo de reestruturação nas grandes corporações. Diante do novo ambiente de acirramento da concorrência e de maior instabilidade e volatilidade macroeconômica, com baixas taxas de crescimento das principais economias centrais, as grandes empresas transnacionais buscaram reforçar sua capacidade de adquirir e sustentar vantagens competitivas.

A necessidade de construir ativos intangíveis capazes de alavancarem ganhos monopólicos de difícil emulação por parte de concorrentes ganhou um novo impulso. A busca de capacitação para inovação em produtos e processos e o aumento em gastos de P&D são os aspectos mais destacados, mas o desenvol-vimento de outros ativos intangíveis também passou a receber crescente atenção: diferenciação de pro-dutos, vantagens organizacionais, qualificação e experiência da mão de obra, patentes, marcas, marketing etc.

Isso significou esforço adicional e uma necessidade maior de recursos para enfrentar a competição, ao mesmo tempo que crescia a incerteza em relação aos retornos esperados dos investimentos, em razão da maior instabilidade das variáveis macroeconômicas. A acumulação de vantagens específicas tornou-se mais premente, ao passo que aumentava a preocupação em racionalizar e aproveitar na maior extensão possível os retornos destes ativos. O impulso verificado a partir da década de 1980 no grau de interna-cionalização das grandes corporações mundiais e a forma como a expansão ocorreu estiveram, portanto, combinados com a busca de compatibilizar o desenvolvimento de ativos capazes de propiciar assimetrias concorrenciais, com a racionalização de recursos, a diminuição de sunk-costs e o aumento da flexibilidade. Tudo isso simultaneamente à necessidade de encontrarem-se novos espaços de acumulação, de maneira a aumentar a captura de quase-rendas associadas a estes ativos.

Vários dos movimentos estratégicos característicos das grandes empresas no período recente po-dem ser interpretados segundo esta lógica: a extensiva utilização de acordos de colaboração tecnológica e de P&D entre concorrentes, o redirecionamento e concentração de esforços nas áreas consideradas core--business com vendas de áreas consideradas não estratégicas, a externalização de atividades produtivas anteriormente integradas verticalmente, a busca de flexibilização de contratos de trabalho etc.

Entretanto, o aspecto mais importante para o argumento que vem sendo desenvolvido é que esse processo resultou em uma transformação fundamental na forma de operação internacional das grandes corporações mundiais. Estas - impulsionadas, de um lado, pelo novo contexto concorrencial, e de outro, pelas mudanças nas condições do macroambiente internacional, tais como liberalização crescente dos fluxos de comércio e de capital, desregulamentação financeira e surgimento de novas tecnologias de in-formação - ganharam liberdade maior para se expandirem e ao mesmo tempo reorganizarem o conjunto

* Conforme destacaram Coutinho e Belluzo (1980), a internacionalização funcionou enquanto um bloco de inovação tecnológica con-centrada, expandindo e dando vazão ao potencial de acumulação das empresas americanas.

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de suas operações internacionais.Se, no período de concorrência multidoméstica, a cadeia de valor da corporação era em grande

parte verticalmente integrada e reproduzida em cada local de implantação, o que significa afirmar que as várias etapas produtivas e funções corporativas eram replicadas em cada país, com a expansão e a racionalização desta estrutura a cadeia de valor passou a ser fragmentada com uma especialização maior das atividades realizadas em cada país ou região. A estrutura de recursos estabelecida anteriormente foi racionalizada, de maneira a aproveitar economias de escala e escopo possibilitadas pela gestão de ativi-dades produtivas geograficamente dispersas. Passou a ser comum, por conseguinte, a existência de filiais especializadas no fornecimento de componentes ou de determinadas linhas de produtos para o restante da rede em uma determinada região ou mesmo globalmente, ficando responsável inclusive por funções corporativas associadas a esta linha (UNCTAD, 1995).

Concomitantemente, a fragmentação e a dispersão da cadeia de valor passaram a ser organizadas de maneira a envolver crescentemente diferentes firmas em diversos países coordenadas pelas grandes corporações líderes, na medida em que várias atividades anteriormente controladas verticalmente pas-saram a ocorrer de maneira externalizada. Como destacam os trabalhos de Sturgeon (2002), Borrus e Zysman (1997), e Ernst (1997), este processo foi muito intenso, principalmente no complexo de eletroele-trônica e tecnologia de informação, embora não tenha ficado restrito a ele. As empresas destes setores, em especial as norte-americanas, passaram a externalizar crescentemente as atividades de manufaturas para empresas especializadas em fornecer um conjunto de serviços associados ao processo de fabrica-ção. Estas empresas, por sua vez, tornaram-se responsáveis por coordenar um conjunto de fornecedores de subsistemas, peças e componentes. As empresas fornecedoras de serviços de manufatura puderam aumentar incrivelmente a escala de produção, à medida que passaram a prestar serviços para vários clien-tes. As empresas contratantes concentraram seus recursos no desenvolvimento de ativos-chave, como o desenvolvimento de produtos e a fixação de marcas.

Assim, o processo de produção passou a ocorrer sob forma de uma rede internacional, integran-do diferentes países e diversas empresas e realizando etapas da cadeia de valor sob a coordenação das grandes corporações, que gerenciam suas próprias filiais e as demais empresas da rede* com o objetivo de obterem o máximo de retorno para o conjunto das suas atividades. Embora esta mudança tenha se verificado em várias indústrias, ela é mais intensa naqueles setores em que é possível separarem-se tec-nicamente as várias etapas do processo produtivo, e ao mesmo tempo o valor unitário dos produtos é elevado em relação a seu peso em cada etapa, como é o caso do complexo eletrônico e têxtil e vestuário.

Lembre-se, ainda, que a conformação das redes de produção em âmbito internacional aconteceu de maneira hierarquizada e seletiva (FURTADO, 2000; ENCISO, 2005). Hierarquizada porque a capacidade de apropriação do valor criado pelo conjunto das operações é diferenciada. A própria lógica dos sistemas internacionais de produção incorpora a questão das assimetrias entre os diferentes elos da cadeia de valor. Em um extremo, estão as empresas que detêm poder de comando sobre a cadeia, justamente por serem proprietárias de um conjunto de ativos que lhes permitem capturar grande parte da renda criada (capacitações tecnológicas, organizacionais, de marketing, de comercialização e de definição dos padrões dominantes). No entanto, a viabilização da criação de valor no conjunto da rede supõe que no outro extremo estejam as empresas que realizam as funções mais periféricas, responsáveis por etapas padro-nizadas e definidas pelos elos superiores da cadeia. A realização destas etapas não necessita obviamente do domínio dos mesmos ativos intangíveis definidos anteriormente e, por isso mesmo, significa uma par-ticipação muito menor na apropriação do total do valor criado. Entre os dois extremos podem localizar-se outras empresas, com o domínio de capacitações intermediárias —por exemplo, as empresas denomi-nadas ODM, original design manufacturing, que além das atividades típicas de serviços de manufatura, possuem capacitação para o desenvolvimento de design próprio de produtos inteiros ou componentes.

A seletividade no processo está associada ao fato de que a localização das diferentes etapas nos diferentes países ou regiões acontece buscando explorar os elementos fundamentais em cada etapa. En-

* Esse processo aparece recorrentemente na literatura com diferentes denominações: rede global de produção (Borrus e Zysman, 1997), produção internacional compartilhada (Yeats, 1998), sistemas internacionais de produção (UNCTAD, 2002), fragmentação e desinte-gração da produção (Feenstra, 1998).

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quanto as etapas nucleares tendem a se localizar nos países centrais, devido à existência de vantagens de localização que dão suporte à criação e sustentação das vantagens específicas às firmas, as demais etapas podem ser realizadas nos países em desenvolvimento. Dessa forma, a hierarquização que se observa no âmbito das firmas acaba se reproduzindo no âmbito dos países.

A intensificação da concorrência entre as grandes corporações mundiais e a forma como estas pas-saram a organizar a cadeia de valor ao redor do globo deixaram sua marca de maneira cada vez mais nítida nas atividades produtivas realizadas pelos países e nos fluxos de comércio. Se no período anterior, em que as grandes corporações organizavam suas operações em cada país de maneira relativamente independen-te das operações nos demais países, o impacto sobre os fluxos de comércio era limitado, no padrão atual é inerente à lógica concorrencial reorganizar as cadeias de produção e comercialização com dispersão geo-gráfica e especialização crescente, acarretando necessariamente transformações estruturais nos padrões de produção e comércio dos países onde estas empresas alocam as várias etapas de sua cadeia de valor.

EtNs e comércio internacional: um esquema analítico

Os resultados das discussões realizadas nas subseções anteriores podem ser sinteti zados no esque-ma analítico proposto por Dunning e Normam (1985) e por Dun- ning (1997) por meio de uma matriz, reproduzida com algumas modificações no quadro 1. Neste quadro, além de explicitar-se o caráter par-cial das explicações das teorias tradicionais de comércio sobre os padrões de intercâmbio, ressalta-se a importância de se considerar a influência das ETNs sobre os fluxos de comércio, tanto diretamente, por intermédio do comércio intracorporativo, quanto indire tamente, por meio do controle de redes de supri-mento e subcontratação.

O eixo vertical representa a composição dos produtos comercializados, com a parte inferior indican-do produtos semelhantes e, portanto, comércio intraindustrial. Subindo em direção à parte superior do quadro, o comércio seria intersetorial, com intercâmbio de mercadorias distintas.

Ao longo do eixo horizontal, está representada a forma de organização das transações internacio-nais, iniciando no lado esquerdo com as transações realizadas por meio do mercado. No extremo oposto estaria o comércio realizado por meio da forma hierárquica, sendo neste caso o intercâmbio intrafirma realizado pelas ETNs. Entre os dois extremos se situariam as transações organizadas por formas interme-

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diárias entre mercados e hierarquias.Analisando conjuntamente os eixos vertical e horizontal, chega-se a uma matriz dois por três, re-

presentando seis padrões de comércio característicos.*Na primeira coluna estão representados os pa-drões analisados pelas teorias tra dicionais de comércio. A parte superior (primeira célula) corresponde ao padrão clássico de intercâmbio norte—sul, explicado pelas diferenças nas dotações de fato res, tal como sugerido nos modelos do tipo Heckscher-Ohlin. Na segunda célula, está o comércio realizado por empresas totalmente independentes, mas transacio nando produtos semelhantes, tal como previsto nas novas teorias de comércio. O surgimento deste tipo de comércio se explica pela existência de economias de escala, diferenciação de produtos e semelhança nos padrões de demanda.

Restam então quatro tipos de comércio representados no quadro que não se encaixam adequa-damente nas explicações dos modelos tradicionais. Na coluna intermediária, a parte superior (terceira célula) representa as formas de subcontratação internacional típicas de setores tradicionais como têxteis e calçados. Seriam setores em que, de acordo com Feenstra (1998), a “desintegração” e deslocalização da produção resultariam na integração comercial por meio de processo de subcontratação. Embora a lógica deste tipo de relação ainda possa ser explicada pela dotação de fatores, observa-se a coordenação centralizada das transações por um agente único, sejam as grandes cadeias de varejo, sejam empresas “industriais”, que concentram as atividades de concepção e desenvolvimento do produto e marketing e terceirizam a produção. Utilizando a terminologia de Gereffi (1995), o comércio descrito na terceira célula seria composto pelos setores cuja cadeia produtiva estaria organizada de maneira global, porém com um nítido comando dos compradores sobre a organização da rede de produção e comercialização.

Entretanto, esse comércio também inclui grande parte do complexo eletrônico. De acordo com Ernst (1997), os elementos competitivos necessários para atuar nestes segmentos tornam-se cada vez mais complexos, obrigando as grandes empresas a enfrentarem uma concorrência de preços acirrada e, portanto, incentivando um controle de custos rigoroso, ao mesmo tempo que a diferenciação de produtos e a aceleração no lançamento de novos produtos também passaram a ser fundamentais. A necessidade de operar com estes requerimentos competitivos conflitantes resultou na fragmentação da cadeia de valor em funções discretas e na formação de redes de firmas especializadas em atividades de montagem, e mesmo em atividades-chave sofisticadas e intensivas em design. Porém, cada função passou a ser loca-lizada onde pudesse ser realizada de maneira mais eficiente em termos de custos e em termos de inte-ração com os outros estágios da cadeia de valor. A terceirização das etapas mais básicas e intensivas em montagem pode ser, portanto, classificada nesta célula.

Na última coluna, a quinta célula caracteriza as transações internalizadas pelas ETNs para garantir-se o acesso a matérias-primas e a insumos intermediários em quantidades, custos e condições adequadas, de modo a escapar das oscilações típicas dos mercados spot. Esta célula pode ser interpretada a partir dos modelos de comércio com multinacionais verticais, uma vez que o custo dos fatores continua sendo vari-ável explicativa chave para o tipo de comércio em questão e para a própria realização do IDE. Porém, uma vez que o problema não se resume apenas a uma questão de custos, dado que também existem aspectos transacionais referentes ao estabelecimento e monitoramento de contratos de suprimento, os trabalhos tradicionais das teorias da internalização (BUCKLEY e CASSON, 1976; HENNART, 1986) ainda podem ser utilizados para explicarem-se as atividades correspondentes a esta célula.

Na quarta célula, podem ser classificados os fluxos de comércio realizados por empresas que orga-nizam redes de fornecimento em atividades com um alto nível de complexidade em termos do processo produtivo e com produtos de maior conteúdo tecnológico. Os contratos de suprimento estabelecidos entre as empresas automotivas e seus principais fornecedores globais se enquadram neste perfil, assim como alguns segmentos do setor de bens de capital. Diferentemente dos fluxos descritos na terceira cé-lula, em geral o nível especialização não envolve disparidade tão grande em termos de capacitações exigi-das, resultando em transações mais próximas do tipo intraindustrial. Além disso, parte das transações do complexo eletrônico também pode ser classificada nesta célula, uma vez que as redes organizadas pelas

* O trabalho de Dunning (1997) apresenta uma matriz três por três, com um nível intermediário entre o comércio intra e intersetorial. Além disso, o autor trabalha não apenas com a transação de produtos, mas também com ativos. Para simplificar a exposição, optou-se por considerar apenas o comércio de produtos e eliminar uma linha do quadro original.

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empresas deste complexo contemplam não apenas atividades com exigência de capacitações e dotações de fatores muito diversas, como as transações classificadas na terceira célula, mas também atividades que exigem níveis mais próximos em termos de capacitação tecnológica e de domínio de ativos intangíveis.

Na sexta e última célula, encontram-se os fluxos de comércio intrafirma organizados pelas ETNs envolvendo produtos com maior grau de similaridade. Neste caso, conforme visto, a tendência de cres-cimento está associada à expansão e à racionalização e especialização das redes de filiais das grandes corporações. Também neste caso observa-se o predomínio de empresas atuando em setores de maior conteúdo tecnológico, como no complexo automotivo, químico e de máquinas e equipamentos. Mesmo no setor de informática e eletroeletrônica, em que o recurso à formação de redes externalizadas apresen-ta-se mais evidente, verifica-se uma combinação com a extensão interna das filiais.

O movimento histórico destacado na subseção anterior mostra que os padrões de comércio fo-ram deslocando-se paulatinamente para a direita, com o comércio intraindustrial sendo organizado pelas grandes ETNs tanto diretamente, sob a forma de comércio intracorporativo, quanto indiretamente, por meio da estruturação de redes de fornecimento, ganhando importância crescente.

CONSIDErAçõES FINAIS

Este capítulo buscou analisar o tratamento que as relações entre comércio internacional, investi-mento direto e ETNs têm recebido na literatura econômica recente. Enquanto a seção 2 resumiu as li-nhas gerais da abordagem das novas teorias de comércio sobre o tema, a seção 3 reconstituiu elementos históricos importantes para o entendimento destas relações no período atual, a partir do movimento de expansão das grandes corporações. Constatou-se que a estratégia de concorrência destas empresas no período recente obedece a uma lógica crescentemente global e, neste processo, tanto os fluxos de IDE quanto de comércio passaram a receber influência deste movimento.

Além disso, o esquema analítico proposto no final da seção 3 buscou explicitar a importância de se considerar que parte relevante do comércio internacional está sob o comando das grandes corporações. De certa forma, este esquema sintetiza as discussões realizadas ao longo do texto. Cabe, porém, nestas breves considerações finais, apontar mais alguns aspectos que resultam da análise efetuada no capítulo para a realização de estudos empíricos.

O esquema analítico proposto pode ser útil para o exame de casos concretos, em especial para entender-se a evolução da inserção dos países no comércio internacional, assim como a evolução de seus padrões de comércio no período recente. Ao colocar no centro da análise a estratégia de expansão das ETNs em âmbito global, o esquema auxilia na compreensão dos fatores que podem influenciar os diferen-tes padrões de comércio dos países, em particular dos países em desenvolvimento. Obviamente, existem diversos outros fatores específicos aos países que precisam ser considerados para a análise concreta, como política comercial, cambial, acordos regionais etc. Porém, estes elementos precisam ser analisa-dos em conjunto com as estratégias de investimento, produção, comercialização e aprovisionamento das grandes corporações transnacionais, uma vez que são estas decisões que, em grande medida, organizam direta ou indiretamente grande parte dos fluxos de comércio global.

Pode-se destacar essa influência em duas dimensões. A primeira diz respeito ao papel que o país ocupa ou pode vir a ocupar dentro das redes globais das grandes corporações estrangeiras. Compreen-der esta questão inclui analisarem-se aspectos como a motivação do investimento realizado, o papel e o grau de importância comercial, produtiva e tecnológica da filial local dentro da corporação global, o grau de envolvimento com fornecedores locais e as perspectivas de expansão. Estes aspectos terão grande influência sobre o volume e o perfil de comércio realizado pelo país, principalmente naqueles setores e cadeias onde as empresas estrangeiras dominam parte relevante do sistema produtivo.

A segunda dimensão vem ganhando importância em razão do crescimento das ETNs com origem em países em desenvolvimento. Isto significa que também é necessário avaliar o grau de desenvolvimento e capacidade de expansão das multinacionais de origem nacional em seu processo de internacionali-zação. Da mesma maneira que no caso dos investimentos recebidos, os investimentos realizados pelas

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ETNs de origem nacional devem exercer impacto importante sobre os fluxos, direção e perfil da pauta de comércio. Também neste caso, é fundamental avaliar quais as regiões de destino, as motivações para o investimento no exterior, o perfil setorial e o papel das filiais no exterior para fundamentar os impactos do processo de internacionalização sobre o comércio do país investidor.

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O BrASIL E A rODADA DOHA16 de março de 2011

Roberto Azevêdo* - O Estado de S.Paulo

O Brasil trabalha em Genebra para um desfecho favorável nas negociações da Rodada Doha, na Organização Mundial do Comércio (OMC). É de nosso interesse fortalecer um sistema internacional de comércio que seja baseado em regras claras e justas e que ofereça oportunidades de expansão à econo-mia brasileira.

As negociações se estendem há dez anos. Em julho de 2008, estivemos perto da conclusão da ro-dada, com base em conjunto relativamente equilibrado de concessões recíprocas - que o Brasil estava pronto a aceitar - sobretudo em disciplinas e condições de acesso a mercados para bens agrícolas e indus-trializados, assim como serviços. Mas o ciclo de negociações não se fechou naquele ponto em razão de diferenças tópicas entre os principais países, em particular sobre o mecanismo de salvaguardas agrícolas destinadas a proteger agricultores em países em desenvolvimento.

Na esteira da Reunião de Cúpula do G-20 de Seul, os membros da OMC decidiram, em novembro de 2010, dar novo ímpeto à rodada, com vistas a uma possível conclusão em 2011. Desde então, intensifica-ram-se as negociações. A disposição do Brasil para a negociação segue inalterada, sempre com base no mandato original da rodada e nos entendimentos alcançados até julho de 2008.

Nos últimos dois anos, países desenvolvidos - em particular os EUA -, ao alegar dificuldades internas para viabilizar concessões na rodada, passaram a sustentar que o pacote de 2008 deixou de ser equilibra-do e que, para corrigir essa situação, os países emergentes - Brasil, China e Índia - teriam de fazer conces-sões adicionais em rebaixas tarifárias para bens industrializados e em liberalização em serviços.

Ao Brasil não cabe julgar o que outros países são capazes ou estão dispostos a oferecer. Temos, todavia, a obrigação de reiterar nossa perspectiva. Mudar as regras em avançada etapa do jogo compro-mete o equilíbrio das negociações. As demandas adicionais apresentadas ao Brasil descaracterizam por completo o mandato original da chamada “Rodada do Desenvolvimento” e ignoram as evidentes assime-trias econômicas e sociais existentes entre diferentes países.

Chegamos, em julho de 2008, a nosso limite de concessões. Pela fórmula então aprovada, as tarifas de importação hoje vigentes no Brasil seriam reduzidas em 33%, em setores estratégicos e fonte impor-tante de empregos tais como automóveis, têxteis, vestuário, calçados e brinquedos. Diversos estudos apontam que, com o pacote atual, nossa abertura na área industrial criará maior volume proporcional de comércio do que em quase todos os demais membros da OMC individualmente. Maior, sem dúvida, que o volume gerado por qualquer dos desenvolvidos. Desconsiderar ou mesmo minimizar nossas concessões não é razoável.

Neste cenário, há que atentar para as crescentes assimetrias entre moedas. Trata-se, evidentemen-te, de questão complexa em que interagem diversos fatores. Entre estes, um dos mais relevantes são as políticas monetárias e fiscais excessivamente frouxas em alguns países desenvolvidos. No Brasil, a valori-zação do real tem concorrido para reduzir a competitividade das exportações e erodir a proteção confe-rida pelas tarifas de importação. Entre 2006 e 2010, o saldo comercial em produtos industrializados caiu de superávit de US$ 14,5 bilhões para déficit de US$ 33,5 bilhões, representando uma deterioração de US$ 48 bilhões em apenas quatro anos. Os EUA, por exemplo, são grandes beneficiários da apreciação do real: o superávit de US$ 9,9 bilhões no comércio bilateral de bens industriais, em 2006 transformou-se, em 2010, em déficit de US$ 7,8 bilhões.

Aproxima-se a hora de decisões críticas sobre a Rodada Doha. O Brasil continuará a perseguir uma conclusão exitosa das negociações. Não se trata, porém, de compromisso em aberto. Acreditamos que o delicado equilíbrio de julho de 2008 ainda é a única rota de voo capaz de conduzir a aterrissagem segura. Já não há espaço ou tempo para pedidos de concessões desproporcionais e não recíprocas.

* EMBAIXADOR DO BRASIL NA OMC

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A INSErçãO DO BrASIL EM uM MuNDO FrAgMENtADO: uMA ANáLISE DA EStruturA DE COMÉrCIO EXtErIOr BrASILEIrO

Marta dos Reis Castilho

IntroduçãoO recente processo de internacionalização das economias nacionais, genericamente chamado de

globalização, levou a uma reorganização da produção internacional desde os anos 1980. Se, por um lado, a (r)evolução tecnológica recente possibilitou a segmentação do processo produtivo, outros fatores a potencializaram e determinaram a distribuição das diferentes etapas do processo produtivo em torno do globo. Por outro lado, esse movimento de partilha dos processos produtivos, anteriormente concentra-dos geograficamente e/ou mesmo no seio de uma única empresa, impôs mudanças na distribuição de valores ao longo das cadeias produtivas e deslocou o centro do dinamismo produtivo e tecnológico das etapas finais para as etapas intermediárias do processo produtivo.

Tais mudanças produtivas e tecnológicas tiveram reflexos importantes no volume e na configuração do comércio internacional.* Os fluxos internacionais de partes e componentes se tornaram os segmentos mais dinâmicos do comércio mundial de produtos industrializados e a inserção de um país no intercâmbio internacional destes bens demonstra sua capacidade de se articular em um sistema produtivo segmenta-do internacionalmente. Sua capacidade de extrair benefícios de tal sistema dependerá, em grande medi-da, das características dos produtos produzidos e comercializados: se são produtos com maior conteúdo tecnológico ou segmentos mais customizados, onde a competição é acirrada (MEDEIROS, 2008).

A economia brasileira, por sua vez, passou por profundas mudanças desde os anos 1970. A estrutu-ra produtiva evoluiu de forma significativa a partir da aceleração do processo de industrialização naquela década. Sua inserção no comércio mundial, por consequência, também apresentou fortes mudanças - quantitativas e qualitativas - ao longo de todo esse período.

O presente artigo tem por objetivo analisar a inserção do Brasil no sistema de comércio mundial, tendo como pano de fundo as mudanças estruturais nos fluxos internacionais de comércio. Ou seja, pre-tende-se examinar a posição do país na atual divisão internacional do processo produtivo e avaliar em que medida a evolução da estrutura do comércio exterior brasileiro acompanhou as tendências apresentadas pelos fluxos internacionais de mercadorias. Nesse sentido, a comparação com outras economias emer-gentes e, em particular, a China é inevitável, tendo visto o desempenho e a estratégia comercial adotada por este país desde 1980. Além da China, também se compara o desempenho brasileiro com o mexicano, em virtude da inserção deste país no sistema internacional de comércio, que guarda similitude com o caso chinês no que se refere à intensidade de sua integração no comércio mundial, mas também diferenças importantes associadas à estratégia comercial e produtiva adotada. Ambos os países são interessantes para a análise do caso brasileiro, por colocar em evidência as oportunidades e limitações derivadas da segmentação do processo produtivo.

Para tal, procede-se inicialmente a uma caracterização do sistema de comércio mundial e da seg-mentação internacional do processo produtivo, bem como de suas causas e implicações. Em seguida, realiza-se um exame da evolução histórica e dos perfis geográfico e setorial das exportações brasileiras, detalhando a estrutura da pauta segundo estágio de produção e conteúdo tecnológico. Esta análise é feita de forma comparativa, tanto no que se refere à estrutura da pauta brasileira por parceiro comercial quanto com outras economias emergentes. Na última parte, delineiam-se algumas conclusões em termos de perspectivas da inserção brasileira.

1. Divisão Internacional do Processo Produtivo: caracterização e evolução recente

As mudanças tecnológicas ocorridas a partir dos anos 1980 impuseram alterações importantes no * Nesse último caso, essas mudanças guardam forte relação com a configuração, sobretudo dos investimentos diretos estrangeiros.

Porém, outros fluxos de capitais também estão relacionados - ainda que em menor medida - com essa evolução do processo produtivo, como, por exemplo, financiamento do comércio internacional.

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processo produtivo e no padrão de concorrência dos produtos nos mercados internacionais. A possibili-dade de se partilhar o processo produtivo levou a produção a se “desverticalizar”, com as diversas etapas produtivas sendo distribuídas em lugares diferentes. Esta evolução técnica possibilitou as empresas a subcontratarem atividades de outras empresas ou instalar filiais em outros países, de forma a aproveitar as vantagens comparativas que cada país dispunha em cada tipo de atividade. Assim, as empresas, por meio dos diversos arranjos, podiam se beneficiar das vantagens comparativas apresentadas por cada país.

A redução dos custos de transporte e das barreiras comerciais favoreceu este movimento ao barate-ar os custos de transação entre as diversas empresas ou, em grande parte dos casos, diversas unidades da mesma empresa. A redução das barreiras comerciais está associada à liberalização multilateral conduzida no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e à proliferação de acordos comerciais regionais. Estes últimos têm diferentes abrangências e coberturas e alguns deles prevêem tratamento tarifário di-ferenciado para processamento de partes e componentes no exterior. Esse é o caso dos acordos realiza-dos pela União Europeia (Outward Processing Trade) e pelos EUA (US Offshore Assembly Programme - OAP) com diversos países em desenvolvimento.* Como mostram vários autores (Milgram [2005], Feenstra [1998] e Görg [2000]), os sistemas de incentivos dados pelo tratamento tarifário diferenciado estimulam a realização de diferentes etapas do processo produtivo no exterior sob forma de subcontratação em di-versos setores - notadamente, têxtil/vestuário, calçados e máquinas e equipamentos diversos.

Esse movimento foi em grande parte alavancado pelas operações das empresas multinacionais (EMN) por conta de sua maior capacidade financeira para arcar com a logística de um processo produtivo segmentado em diversos sítios e/ou países, conforme assinala Medeiros (2007).

Fontagné, Freudenberg e Unal-Kesenci (1996) mostram que a distância geográfica é um fator que reforça as possibilidades do processo produtivo se espalhar por diversos países e, dessa maneira, reforçar a globalização, ainda que a especialização vertical das EMN vá além dos acordos de integração.

Esse movimento ocasiona um forte aumento dos fluxos de comércio internacional e a Ásia constitui o maior pólo de dinamismo do comércio mundial nos últimos tempos: a proximidade geográfica, os acor-dos comerciais e a convergência tecnológica dos países potencializam o comércio resultante desse novo paradigma produtivo.

Devido a esta reorganização da produção, o perfil do comércio mundial se alterou e o fluxo de partes e componentes dos produtos aumentou significativamente.† O perfil de especialização dos países também se modificou, assim como sua inserção no comércio mundial. Como afirmam Lemoine e Unal--Kesenci (2004), hoje o produtor de bem final não é necessariamente aquele que agrega mais valor ao bem final nem é o detentor da etapa produtiva com maior conteúdo tecnológico - as chamadas “maqui-ladoras” são uma boa ilustração deste fato. Como a inserção de um país nos mercados dinâmicos não se restringe, então, à sua participação nos mercados de bens finais ou de commodities, uma análise de sua competitividade e de sua posição relativamente aos centros dinâmicos do comércio mundial requer um exame acurado da inserção do país no intercâmbio de partes e componentes - tanto no que se refere às importações como às exportações.

A integração no sistema produtivo e de comércio fragmentado apresenta oportunidades inequí-vocas para os países. Medeiros (2008), no entanto, alerta que nem todos os países que dela participam conseguem extrair os mesmos benefícios. Esses últimos dependem do posicionamento do país dentro da cadeia de valor, que por um lado, pode propiciar benefícios bastante díspares, e, por outro lado, depende das vantagens comparativas - tradicionais e não tradicionais - dos países.

Do ponto de vista estrutural e tecnológico para um dado país, a questão central é a sua posição na hierarquia do valor adicionado da cadeia produtiva, as possibilidades de aprendizagem e mudança tec-nológica e o grau em que esta inserção permita uma adequada taxa de crescimento da economia. Com efeito, a separação do processo produtivo favorece especialmente aos detentores dos ativos intangíveis

* Normalmente, os produtos são exportados para receberem algum tipo de beneficiamento no exterior e, ao retornarem ao seu país de origem, a tarifa de importação incide somente sobre o valor adicionado no exterior.

† Segundo os dados da base COMTRADE, entre 1995 e 2008, o comércio mundial de partes e componentes e de bens de capital cres-ceu a uma taxa de 8% a.a. face a 6,5%a.a. para bens intermediários semi-acabados e 7,4% para bens de consumo. Apenas produtos primários, que se beneficiam de um efeito preço importante nos anos 2000, apresentam taxa de crescimento superior (13% a.a.).

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(P&D, desenho e concepção, marca, comercialização) na apropriação do valor adicionado, restando para as atividades padronizadas e de menor qualificação uma fração reduzida e submetida a elevada compe-tição (MEDEIROS, 2008, p. 10).

No caso brasileiro, por exemplo, é conhecida a diferença de especialização das exportações para seus vizinhos latino-americanos, para quem o peso da venda de produtos com maior conteúdo tecnoló-gico e valor agregado é maior do que, por exemplo, a venda para os países europeus ou asiáticos. Porém, pouco se conhece do comércio de partes e componentes e a consequente articulação produtiva entre os países da região.

Como chamam atenção Lemoine e Unal-Kesenci (2002), a análise por setor e estágio de produção coloca em evidência a natureza da especialização de um país. Em um setor ou cadeia produtiva, o país pode ter vantagens comparativas em um determinado estágio da produção sem que isso aconteça ne-cessariamente nos estágios a montante ou a jusante. Convencionou-se afirmar que uma especialização horizontal ocorre quando um país detém vantagens comparativas em todos os estágios da produção, en-quanto uma especialização vertical corresponde à situação na qual o país tem vantagens comparativas em apenas alguns estágios. Segundo Fontagné, Freudenberg e Unal-Kesenci (1996), a especialização vertical reflete sua inserção na segmentação internacional do processo produtivo, que incentivou o movimento de subcontratação das empresas.

Esses autores analisam o caso europeu e, por isso, têm um olhar do ponto de vista dos contratantes. Para eles, esse movimento permitiu a esses países explorar direta ou indiretamente as vantagens decor-rentes dos baixos custos de mão de obra dos países fornecedores de insumos ou partes e componentes para os bens finais por eles produzidos. Porém, esse esquema não parece beneficiar somente os países desenvolvidos ou produtores deles provenientes, supostamente fabricantes de bens finais de maior valor agregado. Por um lado, não necessariamente o produto final continua a ser aquele de maior valor agrega-do - componentes intensivos em tecnologia podem ocupar esse papel. Por outro lado, a China mostra ser capaz de promover uma transformação produtiva na qual vem avançando ao longo da cadeia produtiva tanto em termos de conteúdo tecnológico* como em termos de valor agregado.

1.1 Inserção de um país na divisão internacional do processo produtivo: mensuração

O processo de segmentação do processo produtivo vem sendo identificado por diversos autores desde os anos 1990 (o termo “fragmentação do processo produtivo”, por exemplo, foi proposto por Jones e Kierzkowski, 1990)†. Existe um consenso sobre a importância deste processo na evolução recente do comércio internacional e, em particular, no crescimento do dinamismo comercial dos países asiáticos (ver, por exemplo, Lemoine e Unal-Kesenci, 2002). Diversos autores vêm tentando mensurar tal fenômeno, porém, existem algumas dificuldades metodológicas importantes devido ao fato de ele assumir diferentes formas.

Três principais medidas e fontes de informação vêm sendo usadas para caracterizar este processo de fragmentação da produção e dos fluxos de comércio a ele associados; as estatísticas relativas aos di-ferentes regimes de comércio (“customs statistics on processing tradé’ ou estatísticas de re-exportação e re-importação, em português), peso dos componentes importados na produção calculado a partir de estatísticas oriundas das matrizes de insumo- produto e os dados de comércio internacional de partes e componentes.

As primeiras se referem aos regimes especiais que concedem exceção tarifária para subcontratação de parte do processo produtivo no exterior. Países como os EUA e a União Europeia têm regimes especiais - o “US Offshore Assembly Programme (OAP)” e o “Outward Processing Tradé’, respectivamente - e a Chi-na publica estatísticas de “processing frade”.‡ Além de cobrir apenas uma parte do comércio associado à

* Ver seção 0.† Como chamam a atenção Amador e Cabral (2008), outros diversos termos vêm sendo usados para este processo: especial-

ização vertical, decomposição das cadeias de valor, “outsourcing”, “offshoring”, “international production sharing”, desintegração da produção, internacionalização das cadeias produtivas ou de valor, entre outros.

‡ Ver, por exemplo, Gõrg (2000), Lemoine e Unal-Kesenci (2002) e Feenstra et al.(1998).

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fragmentação do processo produtivo - aquele decorrente das atividades de subcontratação (outsourcing) -, estas estatísticas não estão disponíveis para todos os países - é o caso do Brasil - e podem não cobrir todos os arranjos existentes para este tipo de relação. As estatísticas referentes ao Regime de Drawback, no entanto, podem dar uma ideia de parte desse tipo de comércio.

No que se refere às estatísticas de insumo-produto, elas possibilitam o cálculo do peso dos insumos importados na produção final, no consumo intermediário ou nas exportações. Segundo Amador e Cabral (2008), esta informação seria a mais apropriada para identificar de forma acurada quando um produto está sendo usado na produção de outro. O problema com este tipo de informação, além de sua publicação não sistemática e a dificuldade de comparação entre os países, é o nível de agregação setorial, em geral, muito elevado. Normalmente, as estatísticas são setoriais e não refletem a especialização fina (em nível de produto) que caracteriza a segmentação do processo produtivo.

Por último, as estatísticas de maior abrangência e comparabilidade são as de comércio internacio-nal. A classificação Standard International Trade Classification (SITC), em sua Revisão 3, distingue partes e componentes dos setores de maquinaria e material de transporte, permitindo a mensuração de parte importante - porém, incompleta - do comércio associado à fragmentação da produção. Além disso, como chamam atenção Athukorala e Yamashita (2006), subestima este tipo de comércio pois, pelo lado das im-portações, contabiliza tanto insumos para a produção voltada para exportações quanto para consumo do-méstico, e, pelo lado das exportações, desconsidera os bens finais fabricados com partes e componentes importados. Lemoine e Unal-Kesenci (2002) utilizam a classificação BEC - Classificação Econômica Ampla (Broad Economic Categories) - da Organização das Nações Unidas (ONU), que consiste em uma agregação da classificação SITC acima, para distinguir o comércio em 5 categorias segundo os estágios de produção. São elas: 1) bens primários; 2) bens intermediários semi-acabados; 3) bens intermediários partes e com-ponentes; 4) bens finais - bens de capital e 5) bens finais - bens de consumo. Segundo as autoras, as cate-gorias (3) e (4) consistem no comércio de partes e componentes que caracterizam os fluxos de comércio segundo a fragmentação do processo produtivo (ver tabela abaixo para correspondência da classificação BEC em estágios de produção).

No presente trabalho, mensura-se esse tipo de comércio usando a tipologia proposta por Lemoine e Unal-Kesenci (2002). Essa mensuração se estende sobre o período 1995-2008, devido à disponibilidade das estatísticas de comércio na classificação SITC Rev.3, levando em conta não somente os fluxos totais de importação e exportação brasileira, mas também a sua desagregação segundo os mercados de destino e origem. Indicadores de vantagens comparativas e de parte de mercado subsidiam a avaliação da inserção do Brasil nesse tipo de comércio*.

2. Evolução do comércio exterior brasileiro

O comércio exterior brasileiro apresentou uma forte mudança desde 1950. O volume de comércio se alterou significativamente, passando de um valor anual médio inferior a US$ 3 bilhões nos anos 1950 e 1960 a US$ 225 bilhões no quinquênio 2003-2008.

Essa evolução reflete as flutuações das economias doméstica e mundial e, evidentemente, as polí-ticas econômicas adotadas no plano interno. Pode-se observar na Tabela 1 e pelo Gráfico 1 que o ritmo de crescimento variou bastante entre os subperíodos e que a evolução em termos de saldo comercial também é bastante díspar, dependendo do subperíodo analisado. A partir de meados dos anos 1970, fica evidente a alternância de períodos de déficit e de superávit comercial, refletindo, em grande medida, os diferentes padrões de desenvolvimento e de inserção internacional da economia brasileira.

7 De forma complementar, pode-se utilizar os dados recentemente publicados pelo Instituto Brasilei-ro de Geografia e Estatística (IBGE) para a matriz de insumo-produto (ano de 2000 e 2005) a fim de avaliar

* De forma complementar, pode-se utilizar os dados recentemente publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a matriz de insumo-produto (ano de 2000 e 2005) a fim de avaliar a parte dos insumos importados na produção e nas exportações setoriais. Vale assinalar, no entanto, que a desagregação dessas matrizes é setorial, comportando apenas 33 setores industriais. Em outras palavras, sua interpretação deve ser utilizada de forma complementar às estatísticas de comércio descritas acima.

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a parte dos insumos importados na produção e nas exportações setoriais. Vale assinalar, no entanto, que a desagregação dessas matrizes é setorial, comportando apenas 33 setores industriais. Em outras palavras, sua interpretação deve ser utilizada de forma complementar às estatísticas de comércio descritas acima.

Apesar de um crescimento anual médio elevado ao longo de todo o período (em torno de 9%, sendo que os valores se encontram em dólares correntes), o grau de integração da economia brasileira nos flu-xos de comércio mundial mostrou não somente variações importantes ao longo do período, mas também um avanço tímido.

Mensura-se o “grau de integração no comércio mundial” da economia brasileira de duas formas. Em primeiro lugar, compara-se a corrente de comércio total brasileira (exportações + importações) com

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o Produto Interno Bruto (PIB) corrente. O Gráfico 2 apresenta esta evolução desde 1950, para cada quin-quênio a fim de minimizar efeitos de flutuações conjunturais. É possível se observar diversos subperíodos nesses quase 60 anos. O período inicial é caracterizado por um forte grau de abertura, consequência de uma inserção internacional via exportação de produtos primários. Esse grau de abertura decai nos anos 1960, devido a um crescimento mais acelerado da produção do que dos fluxos de comércio brasileiros. Nos anos 1970, a crise do petróleo e o crescimento da economia doméstica elevam as importações (tanto em valor como em volume), explicando o novo aumento do coeficiente de abertura até a virada da década de 1980. Nos anos 1980, tal coeficiente atinge níveis bastante elevados em virtude, sobretudo, do avanço das exportações, resultado do esforço exportador necessário para equilibrar as contas externas do país (do lado das importações, seu peso no PIB decai ao longo da década). Nos anos 1990, o grau de abertura se mantém relativamente estável, em um nível inferior ao observado na década anterior. Com a desvalo-rização de 1999, a razão comércio/PIB começou a subir, porém, de forma mais intensa a partir de 2001. Nos anos 2000, o grau de abertura da economia brasileira apresenta um crescimento sem precedentes. Embora o ano de 2004 tenha sido atípico - nesse ano, o grau de abertura atinge seu nível mais elevado (24%) - observa-se uma tendência ao longo de todo o período 2000-2008 de crescimento do grau de abertura. A maior exposição da economia brasileira se dá inicialmente pelo crescimento das exportações e mais tarde, pela aceleração das importações.*

A segunda medida do grau de integração da economia brasileira no comércio mundial se dá pela comparação das exportações ou importações brasileiras nas importações mundiais (Gráfico 3). Tal indicador atesta o pequeno peso do comércio brasileiro: ele gira em torno de 1% durante todo o período, com exceção de 1950. O indicador para esse período é elevado devido, sobretudo, ao volume de comércio mundial relativamente fraco. A partir daí, o comércio mundial cresce significativamente e o Brasil perde importância relativa.

* O grau de medida mensurado em termos constantes (fornecido pela base Penn World Tables) mostra algumas diferenças relativa-mente ao calculado em preços correntes. Nos anos 1980, por exemplo, o coeficiente a preços constantes é mais baixo do que a preços cor-rentes, devido aos efeitos da inflação sobre o PIB. Nos anos 1990, ocorre o inverso e o coeficiente de abertura medido a preços constantes é superior. Ambos os indicadores, no entanto, revelam a tendência de forte crescimento da abertura da economia brasileira nos anos 2000.

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2.1 Mudança estrutural e composição da pauta de exportações brasileira

A análise de um período tão longo merece um exame mais aprofundado dos fatos que levaram ao comportamento de tais indicadores nos diversos subperíodos. Visto que tal análise foge ao escopo do pre-sente trabalho, detém-se no período após 1995. Outros fatores fundamentam esta escolha. Em primeiro lugar, as transformações referidas anteriormente na estrutura do comércio mundial ocorrem, sobretudo, nas décadas de 1990 e 2000, possibilitadas pelas mudanças tecnológicas a partir dos anos 1980.

Em segundo lugar, como detalhado anteriormente na metodologia, a disponibilidade de dados esta-tísticos capazes de dar conta dos efeitos da segmentação do processo produtivo no comércio internacio-nal conduz a se iniciar a análise em 1995.

Enfim, a economia brasileira passa por forte transformação estrutural na segunda metade do século passado, como revelam as estatísticas de comércio exterior: as exportações de produtos básicos passam de 82% do total em 1962 a 37% em 2008, segundo a Secretaria de Comércio Exterior (SECEX). Os dados do Gráfico 4 ilustram essas mudanças, ainda que apresentados segundo a classificação da ONU para co-mércio (SITC). Como se verifica, exportações das matérias-primas de origem animal e mineral (S10, S1-2 e S1-3) cedem, em grande parte, lugar às exportações de manufaturados, que passam de 17% em 1970 a 61% do total em 1990, período de mudança estrutural mais acentuada na economia brasileira.

Ao se examinar a composição da pauta exportadora de forma mais desagregada (Tabela 2), nota-se que alguns setores manufaturados mostram avanços significativos ao longo de todo o período estudado. Em 2008, aqueles com mais peso são: equipamento de transporte (11%), químicos (7,2%), produtos side-rúrgicos (6,9%) e máquinas e equipamentos não elétricos (6,7%). Outros setores de bens manufaturados se destacam não por seu peso, mas por sua evolução, como o setor de papel e papelão ou de máquinas e equipamentos elétricos, cujas exportações crescem de forma significativa.

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Dentre as categorias que incluem matérias-primas, vale chamar a atenção para o crescimento das exportações de combustíveis - devido à expansão das exportações de petróleo a partir de 2000 - e para o fato de que essas categorias agregam tanto matérias- primas como produtos manufaturados. O

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exemplo mais evidente é a categoria de alimentos e produtos vivos. Nesse caso, há também um avanço e diversificação das exportações dos produtos incluídos.

Vale notar, no entanto, que nos anos 2000 ocorre uma pequena regressão da participação de manufaturados. Além do bom desempenho das exportações de manufaturados entre 2000 e 2005, o recente aumento dos preços das commodities e o avanço do peso das exportações de petróleo contribuem para tal evolução.

Esta evolução de longo prazo do comércio exterior brasileiro e, principalmente, das exportações evidencia o ganho de peso dos produtos manufaturados na produção nacional e reflete a mudança estrutural da economia brasileira nas últimas décadas analisadas. Estas mudanças são mais acentuadas até os anos 1980 e, a partir dos anos 1990, observa-se uma relativa estabilidade da pauta. Não obstante, as mudanças ocorridas desde então no comércio mundial e na própria pauta de exportações brasileira (insiste-se: ainda que menos acentuadas que nas décadas precedentes) induzem a analisar a inserção do Brasil no sistema de comércio mundial sob uma ótica diferente das análises tradicionais em termos de setores e intensidade tecnológica.

2.2 Distribuição geográfica do comércio brasileiro

Entre 1962 e 2008, observa-se uma diversificação dos parceiros comerciais do Brasil, caracterizada pela perda de importância dos EUA e o fortalecimento de outros tradicionalmente menos importantes, como os vizinhos latino-americanos e a China (ver Gráfico 5). Isto reflete em grande parte a evolução das exportações, visto que as mudanças nas importações, embora sigam a mesma tendência geral descrita, sejam menos acentuadas.

A diversificação da pauta de exportações brasileiras (gráfico 6) se manifesta, por um lado, pelo crescimento da participação dos “demais” países, pelo maior peso da China e pelo avanço dos vizinhos latino-americanos e, por outro, pela redução do peso dos EUA e, em menor medida, da União Europeia.

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A perda de importância do mercado norte-americano para as exportações brasileiras é evidente: ele passa de cerca de 35% das exportações brasileiras totais nos anos 1960 para cerca de 10% no final do período, apesar de certa recuperação nos anos 1990. Este movimento reflete, em grande parte, a diver-sificação das exportações brasileiras, mas é consequência também da perda de competitividade dos pro-dutos brasileiros no mercado norte-americano. Embora a perda de market share dos produtos brasileiros nos EUA não seja muito acentuada (o peso das exportações brasileiras passa de 2,3% em 1985 para 1,5% das importações norte- americanas em 2008), não se pode minimizar o impacto da competição chinesa sobre os produtos brasileiros naquele - e em outros - mercados.*

No caso dos vizinhos latino-americanos, sua importância é crescente para o desempenho exporta-dor brasileiro. Esses mercados não somente respondem hoje por cerca de H das exportações brasileiras como são os principais compradores de bens manufaturados.†

A diversificação geográfica da pauta de exportações brasileira ao longo do tempo tem a vantagem de reduzir a dependência de poucos mercados. O desempenho comercial brasileiro nos meses que se se-guem à crise financeira de 2008 parece corroborar essa afirmativa, sobretudo se comparar ao caso mexi-

* A China tem sido responsável pela perda de participação em diversos mercados de destino das exportações brasileiras, inclusive os EUA. As perdas se localizam tanto em setores tradicionais, como têxteis, calçados e produtos de madeira, como de máquinas e equipa-mentos. Para maiores detalhes sobre o desempenho recente, ver Batista (2005), Sarti e Hiratuka (2008), Jorge e Kume (2009), e Baumann et alii (2010). Dois trabalhos analisam as diferenças de qualidade dos produtos exportados pelo Brasil e pela China para os EUA, explicitando que, apesar da perda de mercado nos EUA, o nível de qualidade dos produtos brasileiros é, em média, superior (ver Jorge e Kume [2009], e o artigo “Qualidade e diferenciação das exportações brasileiras e chinesas: evolução recente no mercado mundial e na Aladi” do presente livro). Sobre a competição da China no Mercado Comum do Sul (Mercosul) e na Associação Latino-americana de Integração (Aladi), ver Sarti, F. e Hiratuka, C. (2008), por exemplo.

† Apesar de o comércio com o Mercosul apresentar, em 1998, um valor mais elevado, o intercâmbio regional volta a se intensificar com a recuperação da economia argentina a partir de 2003. Para uma análise detalhada da estrutura das exportações brasileiras para a América Latina, ver Castilho e Luporini (2009).

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cano, que é totalmente dependente das exportações para os EUA e cujas exportações sofrem forte queda.

3. Evolução do comércio exterior brasileiro de partes e componentes

As estatísticas sobre o peso do comércio de partes e componentes, que mostra a integração do Bra-sil no chamado processo de fragmentação internacional da produção, deixam evidente a disparidade da especialização brasileira e de outras economias emergentes mais dinâmicas, como México e China - ainda que muito diferentes (ver gráfico 7). Essa distância existe também relativamente à média mundial: o peso de partes e componentes e, em menor medida, de bens de capital é bastante reduzido no caso brasileiro.

Os gráficos a seguir comparam a evolução da composição da pauta brasileira segundo os estágios de produção entre 1995 e 2008 com a China e o México. No caso brasileiro, o peso de partes e compo-nentes e bens de capital é relativamente baixo. No caso dos bens intermediários - partes e componentes, o peso nas exportações se reduz de forma contínua, tendo caído de 10,7% em 1995 para 7,8% em 2008; enquanto que para bens finais - bens de capital, há um aumento de 8,2% em 1995 para 11,7% em 2008. Ainda assim, o peso desses bens nas exportações totais chega a representar 15,1% em 2000, tendo regre-dido a partir de então.

Na comparação com a China, fica evidente o movimento de sofisticação de sua indústria a partir de 1995. Embora o peso de bens intermediários semi-acabados e mesmo bens finais continue considerável, observa-se um crescimento do peso das partes e componentes e, sobretudo, de bens de capital. Na reali-dade, a China encontra-se no centro do processo de fragmentação da produção e, logra melhorar o perfil das suas exportações. O caso do México é diferente: o peso desses produtos é elevado, sem que, no en-tanto, haja mudanças significativas ao longo do período 1995-2008, período da criação do North American Free Trade Agreement (Nafta).

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A estrutura da pauta de exportações por estágio de produção evidencia também distinções impor-tantes de especialização da economia brasileira segundo os parceiros comerciais. As diferenças de espe-cialização das exportações brasileiras segundo os mercados de destino são conhecidas. Se comparar a pauta de exportações por grau de elaboração da pauta ou por fator agregado, identificam-se três padrões de especialização bastante diversos. Nos dois extremos, têm-se os países para os quais o Brasil vende ma-joritariamente ou produtos manufaturados ou produtos básicos, e, em terceiro lugar, os países europeus, se distinguem dos demais, pois as exportações brasileiras se dividem quase que simetricamente entre bens industrializados e básicos. No primeiro grupo, encontra-se basicamente os países americanos - do sul e do norte - e os países africanos. No segundo grupo, situa-se a maioria dos países asiáticos e do Orien-

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te Médio.* Ou seja, o Brasil vende produtos elaborados para os países mais próximos geograficamente, ainda que esse não seja o único fator explicativo - medidas de política comercial e nível de desenvolvi-mento dos países, entre outros, contribuem para essa configuração da pauta de exportações brasileiras.

Essas diferenças, rapidamente descritas, são captadas também pela descrição da pauta segundo o estágio de produção, conforme Tabela 3. Para os países mais próximos, o peso dos bens intermediários e de capital tende a ser mais importante do que para aqueles mais distantes, reforçando a hipótese de que a diminuição dos custos de transação tende a reforçar a integração produtiva dos países. Nas próprias Américas, o peso de partes e componentes é maior para os vizinhos mais próximos. No outro extremo, com percentuais abaixo daqueles observados para a totalidade das exportações (ver coluna “mundo”), encontram-se União Europeia e China.

As implicações dessa configuração geográfica e setorial em termos de dinamismo do comércio são diversas. Se mensurar o dinamismo como taxa de crescimento do comércio mundial, o comércio de com-modities é aquele que mais se notabiliza, devido à evolução dos preços internacionais e ao “apetite” mundial por commodities (em particular, o “apetite” chinês). A taxa de crescimento das exportações de commodities - tanto em termos de quantidade como de preço - supera em muito o crescimento dos bens manufaturados, sobretudo, a partir de 2005.

Esse apetite, no entanto, tem sido responsável pela absorção dos produtos de baixo grau de elabo-

* Para uma análise mais detalhada ver, por exemplo, Castilho e Luporini (2009).

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ração e, caso o dinamismo seja considerado do ponto de vista da geração de valor agregado, o desempe-nho das exportações brasileiras não tem sido muito satisfatório. Como se observa durante o ano de 2009 de forma mais intensa, parte crescente das exportações brasileiras tem se dirigido ao pólo mais dinâmico da economia mundial - a China -, porém, a demanda tem se dirigido cada vez mais a produtos de menor valor agregado.*

3.1 conteúdo tecnológico e exportações de bens de alta tecnologia

A comparação da pauta brasileira em termos de conteúdo tecnológico revela, de forma comple-mentar, a estratégia diferenciada do Brasil em relação a outros países em desenvolvimento. Por um lado, a parcela de bens de alta tecnologia† é superior no México e na China relativamente ao caso brasileiro (ver Gráfico 11). Por outro, a evolução dessa parcela também é contrastante. Em todos os casos, observa-se para 2008 percentuais inferiores a algum ponto da década - início da década para México e Brasil e 2005 no caso chinês. Porém, a queda da parcela desses bens no final da década é bem mais intensa no Brasil do que nos demais países.

Certamente, a retração das exportações de aviões e o ganho do peso das commodities, comenta-do anteriormente, respondem por grande parte dessa evolução. Esses dois movimentos ficam bastante

* Não que o crescimento das exportações de commodities agrícolas e minerais seja conflitante com as exportações de bens de maior valor agregado, mas é desejável que os recursos oriundos da exploração das vantagens comparativas naturais do país sejam utilizados de forma a apoiar políticas ativas que contribuam para reforçar a competitividade de indústrias que produzem bens de maior valor agregado e assim evitar a chamada “maldição dos recursos naturais”. Essa é a questão fundamental que se coloca com a exploração do petróleo do pré-sal e, em menor medida, com as exportações de produtos agropecuários.

† A presente classificação de produtos HT foi elaborada por Fontagné, Freudenberg et Unal-Kesenci (1999) a partir das classificações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Órgão de Estatística da União Europeia (Eurostat) de produtos high-tech. A classificação da OCDE, também utilizada aqui, classifica setores de acordo com o conteúdo tecnológico. Os autores citados acima realizaram uma listagem de produtos classificados pelo Sistema Harmonizado a partir da classificação da OCDE e do trabalho conjunto que esta realizou com a Eurostat, mas que difere sensivelmente da mesma por trabalhar com produtos ao invés de setores e pela conversão das classificações (SITC/SH). A lista contém cerca de 250 produtos e corresponde, guardadas as diferenças, aos produtos contidos nos setores de alta e média tecnologia da OCDE, exceto automóveis.

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claros pela Tabela 4, onde se verifica uma forte retração das exportações de alta tecnologia e, em menor medida, das exportações de baixa tecnologia, todas elas compensadas pelo avanço significativo dos pro-dutos não industriais, com destaque para a indústria extrativa.

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4. Considerações finais

A integração no sistema produtivo e de comércio fragmentado, tal qual descrito anteriormente, apresenta oportunidades inequívocas para os países. Porém, como argumenta Medeiros (2008), nem todos aqueles que dela participam conseguem extrair os mesmos benefícios. Esses últimos dependem do posicionamento do país dentro da cadeia de valor, que pode, por um lado, propiciar benefícios bastante díspares, e, por outro, depende das vantagens comparativas - tradicionais e não tradicionais - dos países.

Busca-se avaliar em que medida o Brasil se encontra inserido nesse mundo fragmentado e observa--se que, apesar do avanço das atividades manufatureiras desde 1960, a especialização da economia bra-sileira não posiciona o país de forma vantajosa nos setores em que o comércio mundial é mais dinâmico e que se encontram no centro do processo de desenvolvimento industrial (ou seja, o comércio de partes, componentes e bens de capital). Ao contrário, além do peso desses produtos nas exportações totais bra-sileiras ser reduzido, ele regride ao longo do tempo. Parte dessa evolução pode ser creditada à evolução dos preços das commodities agrícolas e minerais (refletindo a vigorosa demanda mundial por esses pro-dutos) e ao aumento da produção (e exportação) brasileira de petróleo, porém, a perda de competitivida-de de bens de maior valor agregado e conteúdo tecnológico também contribui para tal evolução.

No presente artigo, compara-se a pauta de exportações brasileiras com dois outros países emergen-tes - o México e a China - que se encontram fortemente engajados nesse processo de fragmentação da produção, como revela o elevado peso de partes, componentes e bens de capital na pauta de exportações desses dois países. Apesar da semelhança no elevado grau de integração à economia internacional, as estratégias de integração comercial e produtiva chinesa e mexicana são bastante diferentes, com conse-quências importantes (e também diferentes) em termos de crescimento econômico. A especialização do México, assim como a estabilidade de sua estrutura exportadora no período analisado, revela uma espe-cialização menos dinâmica* do que aquela observada para a economia chinesa, que vem promovendo uma mudança relativamente rápida de sua pauta exportadora em direção de bens com maior conteúdo tecnológico e maior valor agregado.

Não cabe aqui analisar de maneira detalhada as políticas industriais, tecnológicas e comerciais ado-tadas pela China, que vêm induzindo a esta mudança qualitativa importante no comércio exterior do país.† Porém, vale assinalar que um vasto arsenal de medidas e instrumentos que trazem para dentro da China o pólo dinâmico da rede comercial produtiva e comercial asiática é utilizado e, isso, a partir do final dos anos 1980, antes de sua entrada na OMC, o que lhe isentou de diversos limites impostos pelos acordos in-ternacionais.‡ O caráter ativo das diversas políticas produtivas adotadas pela China desde o final dos anos 1980 contrasta com o caráter reativo (ou inexistente) das políticas industriais e tecnológicas mexicanas.§

Essas observações podem levar à reflexão sobre a necessidade de adoção de políticas comerciais, industriais e tecnológicas ativas no caso brasileiro. No caso da política comercial, a estrutura da proteção é, sem dúvida, uma questão relevante. Nesse sentido, dois aspectos valem ser ressaltados no que se refe-re ao caso chinês. O primeiro diz respeito à existência de regimes comerciais diferenciados que concedem tratamento tarifário privilegiado para a importação de bens (normalmente, de capital) importados pelos investidores estrangeiros e de bens a serem re-exportados após montagem ou transformação.¶ O segundo diz respeito à estrutura tarifária que exacerba o fenômeno da escalada tarifária ao conceder tarifas infe-

* Como assinalado em Unctad (2007), a liberalização econômica mexicana manteve as vantagens comparativas estáticas do México nas indústrias intensivas em trabalho barato. A análise sobre o caso mexicano também chama a atenção para a falta de uma política tec-nológica ativa.

† Ver, entre outros, Lemoine e Unal-Kesenci (2002, 2004), Wang e Wei (2008), Medeiros (2006). Britto (2009) discute as políticas indus-triais não somente na China, mas também nos demais BRIC.

‡ Como condicionalidades para investimentos diretos, por exemplo.§ Instrumentos e fatores macroeconômicos como taxa de câmbio, nível de investimento e controle de capitais, não devem ser negli-

genciados na análise do sucesso da estratégia de crescimento e catching-up chinês, como mostra Medeiros (2008).¶ Como salientam Lemoine e Unal-Kesenci (2002, 2004), apesar da queda da proteção após entrada na OMC, as preferências tarifárias

concedidas no âmbito dos regimes especiais continuam a ser importantes e cerca de metade das importações chinesas entram no país com isenção de tarifas.

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riores aos bens intermediários, barateando, assim, os custos de produção dos bens finais.*

No caso brasileiro, apesar da cobertura relativamente ampla dos diversos regimes especiais de im-portação no Brasil - em 2008, 24% das importações se beneficiam de alguns dos 20 regimes existentes -, não há uma relação forte entre regimes especiais e desempenho exportador como ocorre na China. Vale assinalar que o único regime especial atrelado ao desempenho exportador é o Drawback, que responde por cerca de 6% das importações.† No que se refere à proteção tarifária, o fenômeno de escalada tarifária também está presente na estrutura de proteção (nominal e efetiva) brasileira, ainda que em menor me-dida do que no caso chinês. No entanto, não existe consenso sobre a pertinência de uma redução ainda maior da proteção incidente sobre as importações de bens intermediários pois, se por um lado, ela pode baratear os custos de produção de bens finais‡, por outro, pode contribuir para um menor adensamento das atividades industriais, o que, por sua vez, constitui um risco possível para os países em desenvolvi-mento, dadas as dificuldades de se promover um up-grade tecnológico no presente cenário.§

* Para esse ponto, ver a análise da estrutura tarifária chinesa em Araújo Jr. e Costa (2010). Os autores mostram que fenômeno análogo é observado para a Índia.

† Dados da Receita Federal, referentes a 2008. Para maiores detalhes, ver Castilho e outros (2009).‡ Ver Araújo Jr. e Costa (2010) para esse argumento.§ Como assinalado por Unctad (2002), a participação dos países em desenvolvimento nas cadeias internacionais de valor não induz

necessariamente a um ciclo virtuoso que permita ao país “avançar” (move up) na cadeia de valor. E isso, segundo a instituição, se deve, entre outros, às dificuldades de se promover um up-grade tecnológico e de se aumentar as produtividades possivelmente maiores no contexto de uma produção segmentada internacionalmente do que em “self-contained, independent industries” (p.77). O desempenho recente da China e do México deixa claro como os países podem se beneficiar de maneira diferente da integração a esse mundo segmentado.

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