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0 BOLETIM CONTEÚDO JURÍDICO N. 670 (Ano VIII) (04/8/2016) ISSN - - BRASÍLIA 2016 Boletim Conteúdo Jurídico - ISSN – 1984-0454

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BOLETIM CONTEÚDO JURÍDICO N. 670

(Ano VIII)

(04/8/2016)

 

ISSN- -  

 

 

 

 

 

 

 

 

BRASÍLIA ‐ 2016 

Boletim

Conteú

doJu

rídico-ISSN

–1984-0454

 

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Boletim Conteúdo Jurídico n. 670 de 04/08/2016 (ano VIII) ISSN

 ‐ 1984‐0454 

ConselhoEditorial 

COORDENADOR GERAL (DF/GO/ESP) - VALDINEI CORDEIRO COIMBRA: Fundador do Conteúdo Jurídico. Mestre em Direito Penal Internacional Universidade Granda/Espanha.

Coordenador do Direito Internacional (AM/Montreal/Canadá): SERGIMAR MARTINS DE ARAÚJO - Advogado com mais de 10 anos de experiência. Especialista em Direito Processual Civil Internacional. Professor universitário

Coordenador de Dir. Administrativo: FRANCISCO DE SALLES ALMEIDA MAFRA FILHO (MT): Doutor em Direito Administrativo pela UFMG.

Coordenador de Direito Tributário e Financeiro - KIYOSHI HARADA (SP): Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP.

Coordenador de Direito Penal - RODRIGO LARIZZATTI (DF/Argentina): Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

País: Brasil. Cidade: Brasília – DF. Contato: [email protected] WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR

   

BoletimConteudoJurıdico

Publicação

  diária 

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SUMÁRIO

COLUNISTA DO DIA

 

04/08/2016 João Baptista Herkenhoff 

» Imparcialidade do juiz 

ARTIGOS  

04/08/2016 Danillo Vilar Pereira » Crimes fiscais e ilícito tributário: evolução histórica e distinção 

04/08/2016 Erotides Martins Reis Neto 

» Políticas afirmativas da União: cotas raciais e sociais 

04/08/2016 Marcio Scarpim de Souza 

» Alterações promovidas pela Resolução STJ no 03/2016 no rito da Reclamação nos 

Juizados Especiais Estaduais e do DF 

04/08/2016 Lucas Albuquerque Dias 

» Percepção cumulativa dos adicionais de insalubridade e de periculosidade à luz da 

jurisprudência do TST 

04/08/2016 Lucas Pepeu Galindo 

» A desconsideração da personalidade jurídica pela Administração Pública no âmbito 

das licitações e contratos administrativos 

04/08/2016 Júlio César Alves Figueirôa 

» Arbitragem: natureza jurídica e evolução legislativa 

04/08/2016 Thiago Augusto Barbosa Ferreira 

» A possibilidade de configuração da multiparentalidade e seus reflexos no 

ordenamento jurídico brasileiro 

04/08/2016 André Romero Calvet Pinto Ferreira 

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» A responsabilidade civil do Estado por condutas omissivas de seus agentes 

04/08/2016 Julio Cesar Araujo Monte 

» Critérios de classificação das espécies tributárias. Avaliação das correntes dicotômica, 

tricotômica e pentapartite .à luz da Constituição Federal 

04/08/2016 Higo Araújo Bezerra 

» Considerações introdutórias acerca do direito fundamental à moradia no Brasil e no 

mundo 

04/08/2016 Bruna Daronch 

» Os conflitos carcerários e os reflexos no discurso midiático 

04/08/2016 Arthur Cristóvão Prado 

» Considerações sobre a interpretação do negócio jurídico 

04/08/2016 Ricardo Pinto da Silva 

» A função social do protesto notarial de certidão de dívida ativa 

04/08/2016 Aline Bezerra Marques 

» O sofrimento que atinge milhares de mulheres 

 

 

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IMPARCIALIDADE DO JUIZ

JOÃO  BAPTISTA HERKENHOFF: Mestre  em Direito pela  Pontifícia  Universidade  Católica  do  Rio  de Janeiro.  Livre‐Docente  da Universidade  Federal  do Espírito Santo. Pós‐doutoramentos na Universidade de  Wisconsin,  Estados  Unidos  da  América,  e  na Universidade  de  Rouen,  França.  Professor  do Mestrado  em  Direito  da  Universidade  Federal  do Espírito Santo. Juiz de Direito aposentado. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro do Instituto dos Advogados do Espírito Santo. Membro da Associação de Juristas pela Integração da América Latina.  Membro  da  Associação  "Juízes  para  a Democracia". Membro da Associação  Internacional de  Direito  Penal  (França).  Autor  de  39  livros  e trabalhos publicados ou  apresentados no  Exterior, comunicações  em  congressos,  palestras, intervenções  em  debates,  trabalhos  inseridos  em obras coletivas, na França, nos Estados Unidos, no Canadá, no México, na Nicarágua, na Argentina.

A imparcialidade é a mais importante virtude de um juiz.

Entre um juiz culto e parcial e outro juiz, de poucas luzes porém imparcial, melhor será para o povo o juiz imparcial, ainda que portador de limitados conhecimentos.

O juiz parcial e culto usará seus saberes para proteger ou perseguir, conforme seja melhor para seu proveito pessoal ou para o prestígio fabricado por forças empenhadas numa determinada direção política.

O juiz de conhecimentos limitados, porém imparcial, jamais usará a toga para benefício próprio ou para servir a interesses de qualquer ordem.

Há algo de sagrado na profissão de magistrado.

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Confira-se o que disse o Profeta Isaías:

“Estabelecerás juízes e magistrados de todas as tuas portas para que julguem o povo com retidão de justiça”.

A imparcialidade que se exige do julgador não é apenas um preceito de ordem legal, ou de natureza humana. Tem a marca do divino.

Em razão da sacralidade do ofício judicial, a parcialidade é um sacrilégio, uma profanação, um ultraje.

Disse com razão o grande magistrado Adelmar Tavares: “o ofício judicial não é profissão, mas religião e sacerdócio.”

O juiz parcial enlameia as vestes que simbolizam seu ofício.

O juiz não se pode deixar contaminar pela luz dos holofotes, com a ambição de tornar-se um heroi nacional.

Muito mais digna de admiração é a biografia de milhares de juízes espalhados pelo Brasil, recolhidos na sua humildade. Quando transitam pelas ruas da pequena cidade do interior recebem a homenagem silenciosa, o olhar respeitoso dos cidadãos. Seu túmulo será velado com abençoado respeito através das gerações.

O juiz precisa fugir de recalques a fim de manter uma personalidade equilibrada.

A bondade não desmerece o juiz, mas é inerente a sua missão.

A tarefa de julgar não pode ser desligada do ser humano, feita de abstrações. É necessário que ocorra o “encontro” do juiz com a pessoa humana.

Não se exige do Advogado o equilíbrio. Perdoam-se até mesmo seus excessos. Na defesa apaixonada de um cliente ou de

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uma tese, o destempero do Advogado, ainda que não seja desejável, deve ser aceito, respeitado e compreendido.

Ao Juiz impõe-se o equilíbrio, como virtude inerente a seu ofício. O equilíbrio não é apenas uma virtude aconselhável aos homens de toga. É obrigatória.

Num momento da vida brasileira, em que as paixões estão exacerbadas, o que é perfeitamente natural no cotidiano democrático, a Justiça deve ter autoridade moral e legal para dirimir os conflitos e serenar os ânimos.

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CRIMES FISCAIS E ILÍCITO TRIBUTÁRIO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E DISTINÇÃO

DANILLO VILAR PEREIRA: Procurador Municipal. Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba.

RESUMO: O presente artigo teve por objetivo analisar a relação entre o crime fiscal e ilícitos tributários. Inicialmente, será apresentado um estudo sobre a evolução histórica no direito comparado e no ordenamento pátrio da criminalização de condutas relacionadas ao pagamento de tributos. Após análise histórica, diferencia-se o mero ilícito tributário do crime fiscal, defendendo-se que não se criminaliza a simples conduta de inadimplemento da obrigação tributária, na medida em que se exige do agente o elemento subjetivo fraude. Nesse contexto, será também analisado o elemento fraude no crime de descaminho e no crime de apropriação indébita previdenciária sob o enfoque jurisprudencial.

Palavras-chave: Sonegação fiscal. Ilícitos tributários. Evolução histórica. Descaminho. Apropriação indébita previdenciária.

1 INTRODUÇÃO

A legislação penal tipifica condutas com objetivo de tutelar a Ordem Tributária por meio da Lei n.º 8.137, de 27 de Dezembro de 1990, além de outros dispositivos ao longo do Código Penal, especialmente art. 334 – que define o crime de descaminho – e art. 337-A, o qual define o crime de sonegação de contribuição previdenciária.

A relação existente entre o Direito Penal e o Direito Tributário é travada desde longa data, de modo que é necessária

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uma prévia análise do escorço histórico no direito comparado e da evolução legislativa da criminalização dessas condutas no ordenamento jurídico pátrio para compreender os crimes tributários.

Outrossim, ganha relevo a distinção entre os conceitos de mero ilícito tributário e crime tributário, notadamente os crimes de sonegação fiscal e apropriação indevida de tributo.

2 ESCORÇO HISTÓRICO

2.1 EVOLUÇÃO NO DIREITO COMPARADO

A análise do desenvolvimento histórico da tributação e dos meios de coerção para fins de adimplemento da obrigação tributária é estudo de premente necessidade para que se possa compreender o estágio atual em que se encontra a relação entre o poder de tributar e a sociedade, notadamente no que concerne à utilização do direito penal como forma de exigibilidade dessa obrigação.

A ideia de tributação está intrinsecamente relacionada à própria ideia de Estado, visto que essa ficção jurídica criada pelo homem não apresenta autonomia, de forma a necessitar de meios externos ao seu sustento, notadamente por meio da criação de tributos.

Não se olvida que a noção de tributo é, inclusive, anterior ao surgimento do Estado, na medida em que povos tribais já instituíam pagamentos compulsórios unilaterais dos integrantes da tribo em favor do chefe tribal, de modo que aquele que cultivasse a terra ou nela pastasse o gado, caçasse ou explorasse seus recursos devia ao chefe tribal parcela do seu trabalho[1].

Após o surgimento do Estado, notadamente com a construção de Roma, as linhas do poder de tributação passaram a apresentar contornos mais nítidos, aspecto evolutivo este acompanhado pelas formas de coerção em seu adimplemento.

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Relata Maximiliano Führer[2] a figura do censor com a função de revelar a situação pessoal dos cidadãos e a grandeza de suas respectivas propriedades, mencionando a existência de três espécies de tributos em Roma: “deceuma, cobrada dos proprietários; scriptaura, cobrada dos donos de rebanhos; e portarium, devida em função da importação ou exportação”.

Surge, nesse período, a primeira regra clara do Direito Penal Tributário em que àquele que ludibriasse o censor seria aplicada pena sobre seu corpo ou sua vida[3].

Após o período romano até a era medieval, não há relatos históricos importantes acerca da relação entre o poder de tributar e o direito penal.

O correr do período medieval foi marcado pelo enfraquecimento do poder real e o predomínio dos senhores feudais, os quais compartilhavam o poder com o clero, caracterizou-se por excessiva carga tributária com a finalidade de sustentar os luxos da nobreza e a imponência da Igreja, sendo observado um desenvolvimento exacerbado dos meios coercitivos para que os plebeus cumprissem suas obrigações tributárias, inclusive por meio da utilização, nos termos de Maximiliano Führer, de um Direito Penal Mágico[4].

Na Era Medieval, os meios coercitivos eram instrumentalizados tanto por normas jurídicas – nesse momento histórico, as leis eram ditadas pelos senhores feudais – quanto por normas morais, estas muito mais eficazes que aquelas, pois incutiam no particular o receio de uma retaliação divina por meio de pragas, além de promessas de bênçãos de fartura.

Dessarte, a carga tributária era gigante, além dos tributos devidos à Igreja consistente no dízimo e no “tostão de São Pedro”, o servo era sujeito passivo de, pelo menos, dezessete espécies diferentes de prestações ao senhor feudal, dentre o qual se destaque o curioso ius primae noctis em que o senhor possuía o direito de passar a primeira noite com a noiva do servo, podendo

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essa obrigação ser substituída pelo pagamento de uma taxa compensatória[5].

A Igreja se valia de penalidades diversas tais como a nunciação de um mal divino até a possibilidade de excomunhão e declaração de herege impenitente pela inquisição, enquanto que os senhores feudais tomavam as medidas que bem entendessem, v.g. assenhorear os bens do servo.

Após a centralização do poder na pessoa do monarca, a questão tributária continuou a ser tratada da mesma forma que na Era Medieval: excessiva carga tributária e finalidade não democrática dos recursos. Assim, reunidos os motivos perfeitos para uma revolução, a qual aconteceu por meio da famigerada Revolução Burguesa, a excessiva carga tributária foi substituída pelo que se denominou de capacidade tributária, ao passo que a destinação dos recursos passou a se legitimar na ideia de sua conversão em prol da nação por meio da prestação de serviços públicos em benefício da coletividade[6].

Após a era medieval, relata FÜHRER[7] que a repressão passou a ser tema de direito administrativo ou civil, de modo que o Direito Penal aparentemente se afastou das fraudes fiscais durante o século XIX e metade do século XX.

Ressalte-se que a história não é linear, de modo que a ausência de criminalização reflete um momento histórico da Europa, notadamente os Estados influenciados pela dita Revolução. Isso porque em Portugal a sonegação poderia ser punida com pena de morte natural ou degredo, além da perda de bens[8].

Percebe-se que a ausência de democratização na destinação dos tributos aliada à excessiva carga tributária aumenta os casos de sonegação. Nesse contexto, “o Direito Penal Tributário é a história das punições impostas ao dominado pelo dominante em decorrência da ausência ou da deficiência da homenagem devida”[9].

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Todavia, quando há uma democratização do poder o Direito Penal deixa de ser visto como uma ferramenta de opressão social e passa a ser um importante meio de prevenir desvios de comportamentos nocivos à coletividade, tornando-se assim um instrumento legítimo.

Nessa vertente, o surgimento do Estado de Direito Social elevou novamente as infrações fiscais à categoria de infrações penais, porém sob uma nova justificativa consubstanciada na maior necessidade de intervenção do Estado na regulação da economia e na necessidade de assegurar uma justiça distributiva na repartição de riqueza[10].

Dessa forma, a análise do direito comparado e evolução histórica mundial permite concluir que a criminalização de ilícitos tributários é prática contumaz nos ordenamentos jurídicos alienígenas, não sendo adstrita ao ordenamento jurídico pátrio.

2. 2 EVOLUÇÃO LEGISLATIVA NO BRASIL

O ordenamento jurídico brasileiro não vivenciou todas as fases históricas anteriormente explanadas, em razão do curto lapso de tempo entre os tempos atuais e a formação do Estado do Brasil. Todavia, as leis nacionais se curvaram à influência internacional, de modo que foram capitulados, tanto no código penal, quanto em leis extravagantes, os ilícitos tributários.

O início do escorço histórico legal brasileiro remonta à época do Brasil Império com o advento do Código Criminal do Império, de 1830, por meio do qual foi criminalizado o descaminho[11].

Idêntica conduta foi criminalizada por meio do Código Penal Republicano, de 1890, capitulado no artigo 265, porém com a previsão de pena privativa de liberdade de 1 a 4 anos.

O próximo precedente legislativo no ordenamento jurídico pátrio foi o Código Penal (Decreto-Lei n.º 2.848/40) que se limitou a manter a criminalização do crime de descaminho. No entendimento

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de Luiz Regis Prado,[12] a ausência de criminalização dos ilícitos tributários nesse momento histórico foi consequência da influência iluminista em que o individualismo e a liberdade eram alçados a bens jurídicos mais importantes, os quais cederam lugar à justiça distributiva e à igualdade material com o advento do Estado Social.

Nesse passo, transcorreram vinte e cinco anos para que a matéria fosse novamente tratada pelo poder legislativo, notadamente com a promulgação da Lei n.º 4.357/65 que incluiu dentre os fatos constitutivos do crime de apropriação indébita (168 do Código Penal) o não-recolhimento, dentro de 90 (noventa) dias do término dos prazos legais, as importâncias do Imposto de Renda, seus adicionais e empréstimos compulsórios, descontados pelas fontes pagadoras de rendimentos.

Entretanto, a Lei n.º 4.729/65 foi que instituiu os crimes de sonegação fiscal, sendo esse o marco inicial que transformou os ilícitos meramente administrativos em crimes de sonegação fiscal[13].

Destaque-se que a lei vergastada não criminalizou a simples conduta de inadimplemento das obrigações tributárias. Isso porque a sonegação de tributos pressupõe uma fraude anterior acrescida à finalidade de burlar o fisco, de modo que, em regra, a sonegação fiscal é praticada por meio dos crimes de falsidade documental ou ideológica, os quais são absorvidos pelo crime fiscal em razão da aplicação do instituto da consunção.

A matéria atinente à sonegação fiscal foi tratada no bojo da Lei n.º 8.137/90, a qual definiu os Crimes Contra a Ordem Tributária. O entendimento majoritário é que a referida lei revogou tacitamente a Lei n.º 4.729/65, não obstante sua aplicação às condutas praticadas ao tempo de sua vigência, em razão de aplicação da lei mais benigna[14].

Atualmente, a matéria é disciplinada densamente pela Lei n.º 8.137/90 e dispositivos do Código Penal, v.g., 337-A que trata da sonegação de contribuição previdenciária.

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Outrossim, paralelamente aos crimes de sonegação tributária, há o crime de apropriação indevida de tributo, de sorte que, do ponto de vista legal, há uma nítida distinção entre três ilícitos tributários: inadimplemento da obrigação tributária, sonegação de tributo e apropriação indevida de tributo.[15]

A apropriação indevida de tributo foi prevista, inicialmente, por meio da Lei n.º 8.137/90 em seu art. 2º, II, cujo tipo penal consiste em deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.

Entretanto, especificamente quanto à apropriação de contribuições devidas à Seguridade Social, o tema passou a ser tratado por meio da Lei n.º 8.212/91 em seu art. 95, “d”, de modo que a Lei n.º 8.137/90 não é mais aplicável no que diz respeito à Previdência Social, notadamente no que concerne à apropriação de tributo, apesar da redação semelhante em ambos diplomas legislativos.

Ocorre que o tipo penal foi incorporado ao Código Penal por meio da Lei n.º 9.983/00 sob a denominação de apropriação indébita previdenciária, com previsão legal no art. 168-A do mencionado código, ao passo que o art. 95 da Lei n.º 8.212/91 foi expressamente revogado.

Ressalte-se que não houve abolitio criminis, visto que a Lei n.º 9.983/00 basicamente reproduz as mesmas descrições contidas no art. 95, d, da Lei n.º 8.212/90.[16]

Alfim, em contraponto à criminalização dos ilícitos tributários, foram criados institutos despenalizadores, notadamente a extinção da punibilidade pelo pagamento do crédito tributário e suspensão da punibilidade pelo parcelamento.

3 CRIME FISCAL E ILÍCITO TRIBUTÁRIO

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A tipificação dos crimes contra a ordem tributária é tema que deve ser analisado sob o aspecto do ordenamento jurídico de cada Estado, não sendo possível, aprioristicamente, elaborar um conceito genérico da mencionada conduta delituosa.

Nesse passo, o ordenamento jurídico pátrio tipifica as condutas tanto no Código Penal por meio dos artigos 168-A; 334 e 337-A, quanto em leis esparsas, notadamente lei n.º 8.137/90, que trata dos crimes de sonegação fiscal.

A posição adotada pelo legislador revela que o crime tributário não se confunde com o mero inadimplemento do tributo devido, mormente por, via de regra, ser precedido pela prática de crime de falsidade ideológica ou documental.

Com efeito, equiparar a conduta do crime de sonegação fiscal ao mero inadimplemento seria criminalizar a dívida, o que viola princípios do direito penal da subsidiariedade, além de contrariar remansosa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que veda a prisão por dívida, salvo na hipótese de dívida alimentar.

Ademais, há meio específico para cobrança dos débitos fiscais, a qual deve ser efetivada por meio da execução fiscal, após regular inscrição em dívida ativa, de modo que, considerar o direito penal como meio coercitivo válido para cobrar os valores não recolhidos é atentatório ao princípio do devido processo legal.

Maximiliano Führer sintetiza o entendimento ora defendido:

O sonegador sofre ação penal não por estar devendo, mas por ter praticado uma modalidade especial de estelionato, retendo para si indevida vantagem econômica, em prejuízo de outrem, mediante meio fraudulento, que geralmente envolve uma falsidade documental[17]

Arremata ainda o autor[18] que “não é dívida tributária singela, cobrável por executivo fiscal, mas, sim, a farsa

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economicamente concretizada que fundamenta a eventual prisão criminal do sonegador”.

Posição idêntica é perfilhada por Luiz Régis Prado[19], asseverando que, em regra, os crimes contra a ordem tributária têm como fundamento a fraude ou falsidade, os quais denomina de burla tributária ou fiscal, aduzindo, ainda, que a fraude pode ser analisada sob o viés da violação dos deveres de informação e de verdade que incidem sobre o cidadão contribuinte.

O elemento fraude torna-se evidente na tipificação da conduta em que o legislador fez inserir verbos como “omitir”, “fraudar”, “falsificar”, dentre outros que indicam a intenção do legislador em punir com o rigor da sanção penal aqueles que não simplesmente deixem de recolher o tributo devido, mas sim aqueles que o façam por meio ardil ou fraudulento.

Nesse sentido, tecendo comentários acerca da Lei n.º 8.137/90, Guilherme Nucci[20] leciona que o objeto material do tipo incriminador é a informação ou declaração falsa por meio da qual o agente consegue atingir o bem jurídico tutelado, que é a arrecadação tributária.

Dessa forma, a prática do crime de sonegação depende para sua concretização de manobras ardilosas por parte do agente, notadamente inserção de elementos inexatos ou omissão de operações nos respectivos documentos, alcançando seu intento de suprimir ou reduzir tributos.

Antônio Carlos Martins[21] diverge em ponto específico ao asseverar que não existe diferença substancial entre a infração tributária e o delito, de modo que a conversão de infrações tributárias em criminais não afeta o teor do injusto, o que seria modificado é apenas a natureza da sanção.

O autor se posiciona no sentindo de deslocar a reprovabilidade para a sanção, tornando o contribuinte temoroso das consequências que poderá enfrentar caso pratique a conduta.

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Todavia, não é esse o modelo criminal que ora se defende, mormente quanto ao parâmetro para elaboração de normas incriminadoras pelo legislador.

O Direito Penal deve pautar-se nos princípios da mínima ofensividade, subsidiariedade e fragmentariedade, de sorte que não é mais admissível que se possa defender o injusto de conteúdo de uma conduta criminosa em razão de simples temor que a sanção pode ocasionar.

Outrossim, num estudo descritivo acerca do ordenamento jurídico se pode afirmar que há diferenças entre o ilícito tributário e o crime tributário, notadamente pela previsão do artigo 136 do Código Tributário Nacional, o qual prescreve que as infrações à legislação tributária independem da intenção do agente.

Ora, é inadmissível em direito penal que ao agente seja imputada conduta criminosa sem que se analise a sua intenção (dolo ou culpa) no momento da pretensa ação delituosa, sob pena de responsabilidade penal objetiva.

Nesse sentido, é diametralmente oposta a posição legislativa adotada pelo legislador no âmbito penal do âmbito tributário, na medida em que o direito penal brasileiro veda qualquer responsabilização objetiva:

Diga-se, pois, que o CTN, ao adotar o princípio da responsabilidade objetiva, afasta o que é tradicional no Direito Penal brasileiro – o princípio da responsabilidade subjetiva –, em que a imputabilidade depende da subjetividade, ou seja, da análise do que pensou ou previu o agente, à luz do elemento volitivo.[22]

Assim, percebe-se que os parâmetros para caracterização de infração tributária e crime tributário divergem de forma gigantesca, justificando a imposição de penas de cerceamento de

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liberdade àqueles que praticam crimes tributários, em detrimento das condutas adstritas ao âmbito dos ilícitos administrativos fiscais.

Contudo, não se olvida ser possível a coincidência, em algumas situações, das infrações tributárias com os crimes contra a ordem tributária, na medida em que as instâncias administrativa e penal são independentes, sendo possível a cumulação entre as sanções.

4 FRAUDE NA APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA

O crime de apropriação indébita previdenciária, espécie de crime tributário, é tipificado no art. 168-A do Código Penal consistindo na conduta de “deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional”.

O Superior Tribunal de Justiça entendeu que para configuração do crime de apropriação indébita previdenciária prescindiria a necessidade de demonstrar intenção de fraudar o INSS, consoante ementa do julgado veiculado no informativo 528, in verbis:

DIREITO PENAL. DOLO NO DELITO DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA.

Para a caracterização do crime de apropriação indébita de contribuição previdenciária (art. 168-A do CP), não há necessidade de comprovação dedolo específico. Trata-se de crime omissivo próprio, que se perfaz com a mera omissão de recolhimento de contribuição previdenciária no prazo e na forma legais. Desnecessária, portanto, a demonstração do animus rem sibi habendi, bem como a comprovação do especial fim de fraudar a Previdência Social. Precedentes citados do STJ: REsp 1.172.349-PR, Quinta Turma, DJe

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24/5/2012; e HC 116.461-PE, Sexta Turma, DJe 29/2/2012; Precedentes citados do STF: AP 516-DF, Pleno, DJe de 6/12/2010; e HC 96.092-SP, Primeira Turma, DJe de 1º/7/2009.[23]

Arremata a Ministra Relatora Laurita Vaz que “o delito de apropriação indébita previdenciária constitui crime omissivo próprio, que se perfaz com a mera omissão de recolhimento da contribuição previdenciária dentro do prazo e das formas legais, prescindindo, portanto, do dolo específico”.

Não obstante o julgado em epígrafe, a tese ora defendida continua plenamente válida, na medida em que o precedente deve ser interpretado com cautela.

O desvalor na conduta consistente na omissão no recolhimento da contribuição previdenciária é notório no caso específico, visto que para caracterização do tipo penal é necessário que haja o prévio recolhimento do tributo, sem que tenha concretizado o repasse, de modo que o contribuinte, em regra, o empregado, é ludibriado pelo responsável tributário, o empregador, que desconta de sua remuneração os valores a título de contribuição previdenciária, porém não os repassa para a receita federal.

Celso Delmanto[24] ensina que se trata de conduta mista, em que o recolhimento integra o tipo penal, corroborando com o posicionamento supra a respeito da necessidade do prévio desconto dos contribuintes.

Ora, não se trata de crime de sonegação fiscal em sentido estrito, em que o contribuinte suprime tributo devido por algum meio fraudulento, por exemplo, omissão das remunerações pagas pela empresa, mas, sim, de crime tributário peculiar em que o inadimplemento ocorre sem necessidade de recurso a meios fraudulentos, direcionando-se a vontade do agente para o não recolhimento da contribuição previdenciária do qual era responsável[25]. Nesse caminhar, além de lesionar o patrimônio

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público e contribuir para o mal funcionamento deste serviço essencial que é a previdência, lesiona, também, o contribuinte que, a priori, não poderá gozar do benefício.

Dessarte, o crime referido apresenta como sujeito passivo o Estado, especificamente o órgão ou ente da previdência social no âmbito das três esferas a depender do ente a que se destinam as contribuições, e secundariamente o contribuinte lesado[26].

Ressalte-se que, não obstante a ausência de fraude, a conduta é, de per si, reprovável, podendo ser equiparada à burla fiscal nos crimes de sonegação, notadamente pela confiança depositada pelo empregado no repasse das contribuições descontadas.

5 FRAUDE NO DESCAMINHO

O crime de descaminho, também espécie de crime tributário, é tipificado no art. 334 do Código Penal, consistindo em “iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”.

O tipo penal foi objeto de discussão jurisprudencial a respeito da necessidade de dolo específico de iludir o fisco por meio fraudulento para fins de subsunção da conduta à norma penal incriminadora.

Há precedente do Superior Tribunal de Justiça, asseverando que a simples introdução no território nacional de mercadoria estrangeira sem pagamento dos direitos alfandegários, independentemente de qualquer prática ardilosa visando iludir a fiscalização, tipifica o crime de descaminho, de modo que basta o dolo genérico, consoante ementa do julgado abaixo:

PENAL. RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. DOLO GENÉRICO.

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1. O tipo subjetivo do descaminho é o dolo, genérico, consistente na vontade livre e consciente de iludir, no todo ou em parte o pagamento do tributo. Nenhuma outra conduta é exigida, bastando ao tipo que não se declare, na alfândega, a mercadoria excedente à cota.

2. Recurso conhecido e provido.[27]

Esse posicionamento ainda é seguido por alguns Tribunais, v.g., Tribunal Regional da 5ª Região que em sede de apelação criminal se posicionou no sentido que basta o dolo genérico para configuração do crime, entendido este como vontade livre e consciente de internalizar mercadoria no território nacional sem pagar os tributos devidos[28].

Noutra monta, há posicionamento doutrinário e jurisprudencial que defende a necessidade de efetiva fraude por parte do agente para considerar o fato típico, não sendo suficiente a ausência de declaração na alfândega:

DESCAMINHO (CASO). DOLO (AUSÊNCIA). AUTORIA (NÃO COMPROVAÇÃO).

1. A demonstração do elemento subjetivo será feita por meio do fato principal e de suas circunstâncias, não havendo falar em presunção.

2. Assim, se o agente em nenhum momento procurou desviar-se das barreiras alfandegárias, conduzindo a mercadoria no local próprio do veículo – identificável, portanto, mediante singela fiscalização –, onde foi encontrada por agentes da Polícia Federal, descaracteriza-se qualquer conduta dolosa.

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3. Agravo regimental improvido.[29]

Ressalte-se que no caso em epígrafe o Superior Tribunal de Justiça se inclinou no sentido da necessidade de existência de elemento típico da fraude, no caso, a burla às barreiras alfandegárias.

Perfilhando o mesmo posicionamento, leciona Celso Delmanto:

a caracterização do crime de descaminho somente ocorre quando fica demonstrado que o agente atuou dolosamente buscando iludir o Fisco (…) e não na hipótese em que apenas deixa de procurar a repartição competente a fim de efetuar o referido pagamento[30]

Posicionamento idêntico é adotado pelo festejado autor Fernando Capez[31], asseverando que o núcleo do tipo “iludir” significa enganar, não se confundindo com o verbo “elidir”, o qual significa suprimir, hipótese em que seria suficiente o comportamento omissivo, ao passo que não é suficiente a mera omissão no recolhimento do tributo para fins de caracterização do crime de sonegação fiscal.

Não obstante o respeitável posicionamento dos ilustres doutrinadores, razão assiste à primeira corrente que pugna pela concretização do tipo penal o simples fato de não declarar o contribuinte a mercadoria tributável.

Não se pretende desconstruir todo o raciocínio desenvolvido alhures em que foi defendido com fervor a necessidade de fraude ou outro elemento para fins de tipificação do crime fiscal, tendo em vista que o fato de não declarar já configura uma espécie de burla ao fisco.

É dever do contribuinte declarar ao fisco a ocorrência do fato jurídico-tributário que deu ensejo ao nascimento da obrigação, visto

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que o imposto de importação – um dos tributos incidentes sobre a importação – é lançado por homologação, sendo da competência do importador o cálculo do montante do imposto e seu recolhimento antecipado.

Assim, a omissão do agente em declarar a mercadoria importada configura uma quebra no dever de cooperação por parte do contribuinte, além da afronta à confiança que o fisco deposita no importador, sendo, pois, suficientemente reprovável a conduta omissiva.

Ademais, a conduta omissiva no crime de descaminho se revela adequada ao conceito amplo de fraude ou burla, consoante já exposto, mormente dever legal do importador em declarar a mercadoria que adentra ao território nacional, não havendo diferença substancial da conduta praticada pelo agente que omite acréscimo patrimonial para fins de cálculo do imposto de renda.

Outrossim, em contraposição aos formalistas, que se apegam à literalidade da lei, especialmente no âmbito penal, destaque-se que o tipo penal incriminador menciona iludir o pagamento de direito ou imposto devido, não mencionando iludir a atividade de arrecadação do tributo em si.

Dessa feita, não resta caracterizado o crime referido caso haja o mero inadimplemento da obrigação tributária, de modo que o direito penal não representa apenas uma ferramenta para cobrança do respectivo crédito. De fato, há um desvalor na conduta caracterizado pelo elemento fraude.

Por todo o exposto, é necessário que haja um elemento de reprovabilidade na própria conduta para fins de tipificação do crime de sonegação fiscal, não sendo aceitável que este elemento seja a mera impontualidade no recolhimento do tributo.

6 CONCLUSÃO

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Desde os tempos remotos da humanidade, há registros de contribuição por parte dos membros da sociedade, no intuito de alcançar fins que transcendem a esfera do particular. Entretanto, a civilização romana é a primeira a estabelecer regras sistemáticas a respeito da arrecadação, inclusive cominando sanção para aqueles indivíduos inadimplentes.

Nos diferentes períodos históricos, há a constatação de que o ente arrecadante se vale de diferentes meios no afã de angariar o máximo de recursos necessários para consecução de seus fins, sendo que o Direito Penal sempre foi uma ferramenta auxiliar bastante útil e eficaz na coerção do indivíduo em pagar o tributo devido.

O ordenamento jurídico pátrio não acompanhou todo o escorço histórico legislativo internacional em razão da jovialidade do Estado brasileiro, porém o Direito Penal também foi utilizado como instrumento de coerção na arrecadação tributária com o advento do Código Imperial de 1830, por meio do qual foi criminalizado o descaminho. Atualmente, a Lei n.º 8.137/90 é a principal lei que trata do tema, disciplinando os crimes de sonegação fiscal, bem como os crimes praticados por funcionários públicos.

Outrossim, não se criminaliza a simples conduta de inadimplemento da obrigação tributária, na medida em que se exige do agente o elemento subjetivo fraude, sendo precedido, em regra, dos crimes de falsidade ideológica ou documental, os quais restam absorvidos pelos crimes fiscais, em razão do instituto da consunção.

O crime de apropriação indébita previdenciária prescinde da necessidade de demonstrar intenção de fraudar o INSS, consoante precedentes do Superior Tribunal de Justiça, contudo, a conduta é, de per si, reprovável, podendo ser equiparada à burla fiscal nos crimes de sonegação. Noutra vertente, a simples introdução no território nacional de mercadoria estrangeira sem pagamento dos direitos alfandegários, independentemente de qualquer prática

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ardilosa visando iludir a fiscalização, tipifica o crime de descaminho, de modo que basta o dolo genérico.

REFERÊNCIAS

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TRF5, Rel. Desembargador Francisco Cavalcanti, Apelação Criminal n. 6597, DJe. 15.02.2013.

NOTAS:

[1] SOARES, Antônio Carlos Martins. A extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 6.

[2] FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto.Curso de direito penal tributário brasileiro. São Paulo: Malheiros. 2010, p. 25.

[3] Idem, ibidem, p. 25.

[4] Idem, ibidem., p. 29.

[5] Idem, ibidem., p. 31-32.

[6] SOARES, Antônio Carlos Martins. op. cit., nota 1, p. 14-15.

[7] FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. op. cit., nota 2, p. 35-36.

[8] Idem, ibidem., p. 36-37.

[9] Idem, ibidem., p. 21.

[10] ARAÚJO, Marisa Almeida. No Percurso do Discurso Legitimador do Direito Penal Tributário: o Crime de Fraude Fiscal – Reflexões. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2010, p. 8.

[11] PRADO, Luiz Régis. Direito penal econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 404.

[12] Idem, ibidem, p. 404.

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[13] MARQUES, Renan do Valle Melo. A natureza jurídica da interferência da instância administrativa no crime estabelecido no art. 1º da lei 8.137/90. João Pessoa: Sal e Terra. 2011, p. 21.

[14] SOUSA, Ercias Ridrigues de, 2002. Crimes contra a ordem tributária. Breve análise da Lei nº 8.137/90. Jus Navegandi, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. <http://jus.com.br/artigos/3310>. Acesso em: 13 nov. 2013.

[15] TEIXEIRA, Francisco Dias. Crime contra a Previdência Social em face da Lei n º 9.983/00, 2000. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_20/artigos/FranciscoDias_rev20.htm>. Acesso em: 11 fev. 2014.

[16] IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 17. ed. rev. amp e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 475.

[17] FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. op. cit., nota 2, p. 43.

[18] Idem, ibidem, p. 43.

[19] PRADO, Luiz Régis. op. cit., nota 11, p. 411.

[20] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 4ª ed. rev. atual; e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 988.

[21] SOARES, Antônio Carlos Martins. op. cit., nota 1 p. 58.

[22] SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 726.

[23] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de divergência em recurso especial. EResp.1.296.631 RN. Relator: Laurita Vaz. Julgado em 11 de setembro de 2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/infojur/doc.jsp>. Acesso em: 29.11.2013.

[24] DELMANTO, Celso. et al. Código penal comentado. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 609.

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[25] SOUZA, Cristiane Castro Carvalho de. Odelito de apropriação indébita previdenciária e o processo administrativo fiscal. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 dez. 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.51508&seo=1>. Acesso em: 26 jul. 2016.

[26] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. 23. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2005,p. 293.

[27] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial. Resp. 125.423 SE. Relator: Edson Vidigal. Julgado em 13 de outubro de 1998. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=199700212181&pv=010000000000&tp=51>. Acesso em: 24.11.2013.

[28] TRF5, Rel. Desembargador Francisco Cavalcanti, Apelação Criminal n. 6597, DJe. 15.02.2013.

[29] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimental no recurso especial. Ag no Resp.1113701 PR. Relator: Nilson Naves. Julgado em 15 de setembro de 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revistaeletronica/inteiroteor?num_registro=200900608503&data=14/12/2009>. Acesso em: 27.11.2013.

[30] DELMANTO, Celso. et al. op. cit., nota 24, p. 963.

[31] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial: dos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 359-H). 5. ed. rev. e atual. São Paulo: saraiva, 2007, p. 519. 3 v.

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POLÍTICAS AFIRMATIVAS DA UNIÃO: COTAS RACIAIS E SOCIAIS

EROTIDES MARTINS REIS NETO: Técnico do Ministério Público da União, Bacharel em Direito pela Faculdade Católica do Tocantins.

Resumo: Este trabalho discorre sobre as políticas afirmativas da União com vistas à superação dos obstáculos criações em razão de questões étnico-raciais ou econômico-sociais, em específico sobre as cotas raciais e sociais em universidades e no acesso a cargos públicos efetivos.

Palavras-chaves: Políticas públicas afirmativas; cotas raciais; cotas sociais; União.

Dentre as ações afirmativas levadas a efeito no Brasil têm-se destacado a utilização de cotas raciais e sociais para o acesso ao ensino superior e aos cargos públicos. Cuida-se da reserva de um quantitativo de vagas em instituições de ensino superior públicas ou de bolsas concedidas pelo Poder Público em instituições de ensino privadas e de vagas em concursos públicos para provimento de cargos públicos.

As cotas raciais, como o próprio nome indica, leva em conta fatores raciais. Há quem chegue a dizer que o debate sobre as políticas de ação afirmativa tem por chave mestra a cota racial[1]. Muitas apontam falha na terminologia ou na própria política por se basear no conceito de raça, questionado por muitos estudiosos. No entanto, não é esse o foco do presente trabalho. As cotas raciais são aquelas destinadas às pessoas pretas e pardas.

Em geral esse sistema é justificado em razão de processos históricos depreciativos que atingiram determinados grupos ou categorias de pessoas, que, em virtude disso, teriam

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maior dificuldade de mobilidade social e de oportunidades educacionais ou que surgem no mercado de trabalho. Além disso, como seriam vítimas de discriminações nas suas interações com a sociedade.

Por seu turno as cotas sociais levam em conta fatores socioeconômicas e visam à superação das desigualdades sociais existentes num dado contexto histórico, proporcionando igualdade de oportunidades a pessoas que ocupam diferentes níveis econômicos na sociedade.

A respeito do tema relevante mencionar as leis federais nº 12.711/2012 e 12.990/2014, que cuidam, respectivamente, da reserva de vagas em universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

A Lei nº 12.711/2012 utilizou-se tanto de critérios raciais quanto sociais, com vistas a beneficiar as camadas mesmos favorecidas da população, seja em razão de discriminação histórica ou de sua condição socioeconômica. Em seu art. 1º, caput, garante que, no mínimo, 50% das vagas oferecidas por instituições federais de educação em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, sejam reservadas a estudantes que tenham estudado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Com efeito, a clientela do ensino médio das escolas públicas são jovens e adolescentes cujas famílias dispõem de poucos recursos financeiros. Ademais, é cediço que a qualidade da educação pública está longe de alcançar níveis satisfatórios ou, no mínimo, razoáveis. Com isso, os estudantes que não dispõem de condição para estudar em uma escola particular, que,

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empiricamente, tem se mostrado com maior qualidade de ensino, são negativamente desigualados com os que podem pagar.

Assim, a Lei nº 12.711/2012 garante que os desiguais de fato (os que estudaram em escolas particulares, que normalmente tem maior qualidade de ensino, e os que estudaram em escolas públicas, cujas estatísticas mostram a baixa qualidade) tenham igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior. O referido diploma, ainda com foco em critérios socioeconômicos, estabelece que 50% dessas vagas reservadas sejam destinadas a estudantes com renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (art. 1º, Parágrafo único).

Especificamente quanto às cotas raciais, a Lei nº 12.711/2012 estabelece a reserva de vagas, dentre aquelas destacadas da concorrência universal pelo art. 1º, caput, para estudantes pretos, pardos e indígenas na proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do IBGE (ar. 5º, caput). Tal disposição é extremamente relevante na realização da igualdade material e na superação de obstáculos históricos sofridos pelas pessoas ora beneficiadas. Essa medida garantirá que o acesso de pretos, partos e indígenas seja, no mínimo, proporcional às respetivas populações.

Disciplina semelhante é aplicável aos processos seletivos para ingresso em instituições federais de ensino técnico de nível médio que concluíram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas (arts. 4º e 5º).

Por sua vez, a Lei nº 12.990/2014 garantiu a reserva de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União (art. 1º, caput). A medida visa garantir a participação de uma população historicamente marginalizada na

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atuação estatal. Tal disposição alcança todos os cargos públicos federais de provimento efetivo que forem ofertados em concurso público.

Almeja-se que as desigualdades que estão sendo corrigidas por meio das medidas estabelecidas nas leis mencionadas devem aos poucos desaparecer em razão da aplicação das referidas ações afirmativas. Por isso, elas tem caráter provisório, eis que assim que obtido o fim almejado com a utilização do discrímen as medidas devem cessar, sob pena de violação do princípio da igualdade.

É por isso que as Leis nº 12.711/2012 e 12.990/2014 estabelecem limitações temporais à aplicação de suas disposições. A primeira aduz que o Poder Executivo deverá promover, no prazo de 10 (dez) anos, a contar da publicação da referida lei, a revisão do programa especial para o acesso de estudantes pretos, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação superior (art. 7º). Ou seja, um ato do executivo poderá, dentro dos próximos 10 (dez) anos da publicação daquela lei diminuir ou extinguir o alcance das ações afirmativas nela disciplinadas. Por sua vez, a Lei nº 12.990/2014 tem prazo de vigência limitado a 10 (dez) anos, nos termos do art. 6º.

Sobre a legitimidade das cotas, o Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões já se manifestou nesse sentido. Digno de nota é o julgamento da ADPF 186, na qual o Tribunal Excelso decidiu, por unanimidade, que o sistema de cotas raciais da UnB é constitucional. Na oportunidade, asseverou-se que “a regra tem o objetivo de superar distorções sociais históricas, empregando meios marcados pela proporcionalidade e pela razoabilidade”.

No entanto, não se pode desconsiderar a eventual situação de pessoa que, não sendo pertencente aos grupos beneficiados pelas medidas positivas, venha a delas se utilizar. Isso

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se dá, especificamente, no que concerne às cotas raciais, seja para ingresso nas instituições de ensino superior, seja em concursos públicos de provimento de cargos públicos. A razão está no fato de que as respectivas leis elegem a autodeclaração como critério para vinculação da pessoa a determinada cor de pele ou raça (preto, pardo ou índio).

Para evitar fraudes o administrador público está autorizado a revisar a autodeclaração, desde que assegure a manifestação da parte interessada, o contraditório e a ampla defesa, bem como haja presunção relativa de boa-fé da declaração. Nesse sentido decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região na Apelação Cível 2005.70.00.004708-9/PR:

DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO. DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS. AÇÕES AFIRMATIVAS. PROTEÇÃO CONTRA DISCRIMINAÇÃO DE IDENTIDADES E DE ESCOLHAS FUNDAMENTAIS. COTAS ÉTNICO-RACIAIS. RESERVA DE VAGAS. AUTODECLARAÇÃO DE IDENTIDADE RACIAL. COMPREENSÃO E RELEVÂNCIA CONSTITUCIONAL DE RAÇA. CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL.REVISÃO ADMINISTRATIVA. (...) 7. O direito brasileiro adota a autodeclaração como técnica de identificação racial. Compreensão da Convenção para a Eliminação de Discriminação Racial, instrumento internacional de direitos humanos explicitamente internalizado no direito nacional, com força de direito supralegal ou mesmo de direito fundamental. 8. (...) 9. Em favor da autodeclaração também milita a compreensão do Supremo Tribunal Federal sobre o racismo e a raça como construções sociais, produzidas no seio das relações sociais

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e culturais experimentadas por cada indivíduo e grupo. 10. Além do regime jurídico próprio da proibição de discriminação racial, a fazer prevalecer a técnica da autodeclaração, a manifestação individual é a regra no exercício de outros direitos fundamentais abarcados pelo direito da antidiscriminação, como ocorre com a condição indígena e a opção por confissão religiosa, escolha fundamental juridicamente protegida contra discriminação. 11.O risco de fraude não invalida a autodeclaração, requerendo atenção sobre a possibilidade de desonestidade, a ser corrigida por outros meios que não a impossibilidade da prática do ato. 12. A adoção da autodeclaração como regra para a atribuição de identidade racialnão obsta que, na presença de razões suficientes, a Administração sindique a honestidade e a correção da declaração, hipótese explicitamente ressalvada na Recomendação do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas. 13. Do ponto de vista normativo, o procedimento revisional deve não-só assegurar a manifestação da parte contrária, conforme os princípios do contraditório e da ampla defesa, como também partir da presunção juris tantum de boa-fé em favor da declaração. Deve também valer-se da compreensão constitucional manifestada pelo Supremo Tribunal Federal acerca das identidades raciais, resultantes de um processo social, político-cultural. 14. Do ponto de vista fático, o procedimento revisional, quando necessário e justificado, deve valer de elementos fáticos, tais como declarações prestadas em documentos públicos ou privados

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e a manifestação de terceiros, sendo relativa a comprovação ou não de a declarante ter sofrido discriminação direta e intencional anteriormente, até mesmo em virtude do caráter difuso e não-intencional da discriminação institucional. Também fica relativizada e imprestável, como elemento exclusivo, qualquer consideração biológica que reduza a classificação racial a um dado biomédico ou antropomórfico. 15. No caso concreto, a análise da contestação e dos elementos constantes dos autos revela que a revisão administrativa não observou estes parâmetros, mormente a diretriz fixada pelo Supremo Tribunal Federal, deixando de apresentar justificativa hábil a afastar a declaração da parte autora. Desprovimento dos agravos retidos e provimento do recurso de apelação.

Nesta senda, não há impedimento para a Administração de instituir comissões com vistas a sindicar e revisar as autodeclarações, desde que tenha motivos razoáveis, em ordem a apontar uma possível desonestidade do declarante, apenas com o fim de obter vantagem. É necessário ter em conta, no entanto, a necessidade de se presumir, ainda que de forma relativa, a veracidade da autodeclaração, lembrando ainda que a definição não se dará apenas com base em um dado biométrico ou antropomórfico (fenótipo), mas à luz dos elementos do caso concreto, a demonstrar que socialmente o declarante insere-se naquele grupo.

As ações afirmativas, especialmente as cotas raciais e sociais para ingresso em instituições de ensino superior e para concursos a cargos públicos são medidas fundamentais, no tempo necessário, para o alcance de uma equalização nas oportunidades das pessoas que formam o Brasil.

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REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Cota racial e estado: abolição do racismo ou direitos de raça?. Cad. Pesqui. [online]. 2004, vol.34, n.121 [citado 2015-06-28], pp. 213-239. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742004000100010&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1980-5314. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742004000100010.

BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 25 jun. 2015.

BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>. Acesso em: 25 jun. 2015.

BRASIL. Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L12990.htm>. Acesso em: 25 jun. 2015.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível 2005.70.00.004708-9. 3ª Turma. Apelante: Angélica Xavier de Miranda Ribas Vianna. Apelado: Universidade Federal do Paraná. Relator: Juiz Federal Alcides Vettorazzi. Disponível em: <http://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&txtValor=200570000047089&selOrigem=TRF&chkMostrarBaixados=&todasfases=S&selForma=NU&todaspartes=&hdnRefId=2070d5a50a4b43bc246ba50545dcd983&txtPalavraGerada=wEsS&txtChave=>. Acesso em: 26 jun. 2015.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186. Requerente: DEMOCRATAS. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2691269>. Acesso em: 28 jun. 2015.

AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Cota racial e estado: abolição do racismo ou direitos de raça?. Cad. Pesqui. [online]. 2004, vol.34, n.121 [citado 2015-06-28], pp. 213-239. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742004000100010&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1980-5314. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742004000100010.

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ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA RESOLUÇÃO STJ NO 03/2016 NO RITO DA RECLAMAÇÃO NOS JUIZADOS ESPECIAIS ESTADUAIS E DO DF

MARCIO SCARPIM DE SOUZA: Bacharel em Direito e Pós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade Estácio de Sá (UNESA/RJ).

RESUMO: O presente artigo apresenta as alterações promovidas pela Resolução STJ no 03/2016 nas regras de competência e cabimento de Reclamação nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais dos Estados e do DF. O fluxo volumoso de Reclamações no STJ em face de decisões de Turmas Recursais estaduais e distritais é indicado na mencionada resolução como fator de motivação para a sua edição, restando revogada a Resolução no12/2009. Todavia, ao transferir para os Tribunais de Justiça a competência para processar e julgar as Reclamações ao STJ, bem como ampliando desmesuradamente a hipótese de cabimento “para garantir a observância de precedentes”, a nova resolução do STJ criou uma espécie recursal sem previsão legal. Dessa forma, verifica-se que o novo regramento da Reclamação é inconstitucional por violação à competência privativa da União para legislar sobre direito processual, à autonomia dos Estados-Membros e do DF para sua organização judiciária (art. 125, §1º da CF/88), à autonomia orgânico-administrativa dos Tribunais de Justiça (art. 96, I, da CF/88) e à norma no art. 105, I, “f”, da CF/88, que prevê a reclamação ao STJ para preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões.

Palavras-chave: Constitucional. Processual civil. Juizado Especial. Reclamação. Uniformização de Jurisprudência. Resolução STJ no 03/2016. Competência privativa da União.

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SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DESENVOLVIMENTO. 2.1. Disciplina constitucional e legal da Reclamação. 2.2. Reclamação ao STJ no âmbito dos Juizados Especiais dos Estados e DF. 2.3 Inconstitucionalidade das alterações promovidas pela Resolução STJ no 03/2016. 3. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.

1. INTRODUÇÃO O presente artigo apresenta as alterações promovidas pela

Resolução STJ no 03, de 7 de abril de 2016, nas regras de competência e cabimento de Reclamação nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais dos Estados e do DF, com a finalidade de proceder a uma filtragem constitucional de suas disposições.

No desenvolvimento, será apresentada na seção 2.1 uma visão panorâmica da disciplina constitucional e legal da Reclamação, abrangendo as hipóteses constitucionais aplicáveis ao STF e ao STJ (arts. 102, I, “l”, 105, I, “f” e 103-A, §3º da CF), bem como o regramento infraconstitucional do novo Código de Processo Civil de 2015, dos Regimentos Internos do STF (RISTF) e do STJ (RISTJ) e das normas previstas em leis específicas.

Na seção 2.2, o objeto de estudo será a construção jurisprudencial que levou à admissibilidade excepcional e temporária do cabimento da Reclamação Constitucional para o STJ em face de decisões de Turmas Recursais dos Juizados Especiais dos Estados e do DF. Tal possibilidade decorre da lacuna normativa da Lei no 9.099/95, a qual, diferentemente das Leis no10.259/01 (Juizados Especiais Federais) e 12.153/09 (Juizados Especiais da Fazenda Pública), não previu o instituto do pedido de uniformização de jurisprudência para preservação dos entendimentos consolidados do STJ. Serão apresentadas as inovações trazidas pela Resolução STJ no 03/2016, comparando-as com as disposições da Resolução STJ no 12/2009, que disciplinava a matéria anteriormente.

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Em seguida, na seção 2.3 será analisada a constitucionalidade formal e material da Resolução STJ no 03/2016, verificando-se que, ao transferir para os Tribunais de Justiça a competência para processar e julgar Reclamação, bem como ampliando desmesuradamente a hipótese de cabimento “para garantir a observância de precedentes”, o novo regramento criou uma nova espécie recursal sem previsão legal, o que implica violação da competência privativa da União para legislar sobre direito processual, da autonomia dos Estados-Membros e do DF para sua organização judiciária (art. 125, §1º da CF/88), da autonomia orgânico-administrativa dos Tribunais de Justiça (art. 96, I da CF/88) e da norma no art. 105, I, “f” da CF/88, que prevê a reclamação ao STJ para preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões.

Finalmente, na conclusão são tecidas considerações finais sobre os assuntos tratados neste artigo e sobre os vícios de inconstitucionalidade apontados na Resolução STJ no 03/2016.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1. Disciplina constitucional e legal da Reclamação

A Reclamação é resultado de construção jurisprudencial do STF anterior à Constituição de 1988, sob o fundamento da teoria dos poderes implícitos[1]. Segundo essa teoria, os tribunais possuem o poder implícito de dar efetividade às suas decisões e defender sua competência, em virtude do poder explícito de prestar a tutela jurisdicional. O regramento positivado da Reclamação surgiu em 1957, quando foi incluído no RISTF[2]. A edição de 1980 do regimento trata da reclamação nos arts. 156 a 162.

Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, a Reclamação passou a ser expressamente prevista no ordenamento constitucional brasileiro, sendo da competência originária do STF ou do STJ nas seguintes hipóteses de cabimento:

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a) para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões, conforme arts. 102, I, “l” (STF) e 105, I, “f” (STJ), da CF/88; ou

b) para anular ato administrativo ou cassar decisão judicial que contrarie súmula vinculante ou a deixe de aplicar indevidamente, conforme art. 103-A, §3º da CF/88, incluído pela Emenda Constitucional no45/2004.

Após a entrada em vigor da CF/88, o RISTJ, editado em 1989, disciplinou a Reclamação nos arts. 188 a 192, atualmente com algumas modificações introduzidas pela Emenda Regimental no 22/2016. Em 1990, foi editada a Lei no 8.038/90, instituindo normas procedimentais nos arts. 13 a 18 sobre o rito das Reclamações perante o STF e o STJ. Todavia, com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (Lei no 13.105/15) em 18 de março de 2016, aquelas normas da Lei no 8.038/90 foram revogadas.

Com respeito à propositura de Reclamação ao STF para garantia da autoridade de suas decisões consolidadas em súmulas vinculantes, o art. 7º da Lei no 11.417/06 prevê o seu cabimento em face de decisão judicial ou ato administrativo que contrariar, negar vigência ou aplicar súmula vinculante indevidamente. Tratando-se de omissão ou ato administrativo, o §1º do mencionado artigo exige o esgotamento da via administrativa, só após a qual estará presente o interesse de agir do autor da Reclamação.

Finalmente, o CPC/2015, ao buscar racionalizar a observância dos precedentes judiciais pelas instâncias ordinárias, conferiu nova disciplina ao rito da Reclamação, ampliando as hipóteses de cabimento perante qualquer tribunal, conforme disposto no art. 988:

“Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:

I - preservar a competência do tribunal; II - garantir a autoridade das decisões do tribunal;

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III - garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016).

IV - garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência. (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016).

§ 1º A reclamação pode ser proposta perante qualquer tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir.

[...] § 4º As hipóteses dos incisos III e IV

compreendem a aplicação indevida da tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela correspondam.

§ 5º É inadmissível a reclamação:(Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016).

I – proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada;(Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016).

II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias. (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016).

§ 6º A inadmissibilidade ou o julgamento do recurso interposto contra a decisão proferida pelo órgão reclamado não prejudica a reclamação.”

Conforme salienta a doutrina[3], o CPC/2015 inova ao prever a possibilidade de ajuizamento de Reclamação para garantir a

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observância de precedentes decididos em incidentes de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e em incidentes de assunção de competência. Interpretando-se a contrario sensu o inciso II do §5º do art. 988, incluído pela Lei no13.256/16, é possível ajuizar Reclamação também para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, após o esgotamento das instâncias ordinárias[4]. Relevante destacar que a mencionada hipótese representa superação legislativa da jurisprudência do STF que, antes da vigência do CPC/2015, não admitia o cabimento de Reclamação com fundamento em recurso extraordinário julgado segundo a sistemática da repercussão geral[5].

É necessário salientar, ainda, o não cabimento da reclamação em face de decisão judicial transitada em julgado, conforme previsão expressa do inciso I do § 5º do art. 988 do CPC/2015.

Quanto à natureza jurídica da Reclamação, entende a doutrina majoritária[6] que se trata de ação autônoma de impugnação de decisões judiciais. O STF, por sua vez, já afirmou[7] que a reclamação consubstancia exercício do direito de petição, previsto no art. 5º, XXXIV, "a", da CF/88:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;”

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Dessa forma, consideradas as normas supramencionadas da CF/88 e da legislação processual, verifica-se que a finalidade essencial da Reclamação é servir de instrumento para que o próprio tribunal possa afastar decisões ou atos que representem usurpação de sua competência ou inobservância de sua jurisprudência consolidada. Não há previsão de Reclamação sendo processada e julgada por outro tribunal diverso daquele que fora desrespeitado pela decisão ou ato impugnado. O §1º do art. 988 do CPC/2015 é expresso ao determinar que o julgamento da reclamação “compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir”.

Não obstante a CF/88 prever apenas a Reclamação para o STF e o STJ, nada obsta à lei processual prever instrumentos – com natureza recursal ou não – para que os tribunais possam fazer valer sua competência e sua jurisprudência consolidada, tal como fez do CPC/2015. Em verdade, os Estados também podem prever o instrumento da Reclamação em suas respectivas Constituições, conforme já admitiu o STF, com fundamento no art. 125, §1º da CF/88, segundo a qual a Constituição do Estado definirá a competência dos tribunais de justiça:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 108, INCISO VII, ALÍNEA I DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ E ART. 21, INCISO VI, LETRA J DO REGIMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL. PREVISÃO, NO ÂMBITO ESTADUAL, DO INSTITUTO DA RECLAMAÇÃO. INSTITUTO DE NATUREZA PROCESSUAL CONSTITUCIONAL, SITUADO NO ÂMBITO DO DIREITO DE PETIÇÃO PREVISTO NO ARTIGO 5º, INCISO XXXIV, ALÍNEA A DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO ART. 22, INCISO I DA CARTA. 1. A natureza jurídica da reclamação não é a de um recurso, de uma ação e nem de um incidente processual. Situa-se ela no âmbito do direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, inciso

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XXXIV da Constituição Federal. Em consequência, a sua adoção pelo Estado-membro, pela via legislativa local, não implica em invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I da CF). 2. A reclamação constitui instrumento que, aplicado no âmbito dos Estados-membros, tem como objetivo evitar, no caso de ofensa à autoridade de um julgado, o caminho tortuoso e demorado dos recursos previstos na legislação processual, inegavelmente inconvenientes quando já tem a parte uma decisão definitiva. Visa, também, à preservação da competência dos Tribunais de Justiça estaduais, diante de eventual usurpação por parte de Juízo ou outro Tribunal local. 3. A adoção desse instrumento pelos Estados-membros, além de estar em sintonia com o princípio da simetria, está em consonância com o princípio da efetividade das decisões judiciais. 4. Ação direta de inconstitucionalidade improcedente”. (ADI 2212, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 02/10/2003, DJ 14-11-2003 PP-00011 EMENT VOL-02132-13 PP-02403)

2.2. Reclamação ao STJ no âmbito dos Juizados Especiais dos

Estados e DF O sistema[8] processual dos Juizados Especiais (JE) é

composto pelas Leis no 9.099/95 (JE Cíveis e Criminais dos Estados/DF), 10.259/01 (JE Federais) e 12.159/09 (JE da Fazenda Pública dos Estados/DF e Municípios), as quais dão concretude ao comando do inciso I e § 1º da CF/88.

No âmbito dos JE Federais e JE da Fazenda Pública, as respectivas leis instituíram mecanismos para preservar os entendimentos consolidados ou mesmo sumulados do STJ.

O art. 14 da Lei nº 10.259/01 dispõe que a parte pode formular pedido de uniformização de jurisprudência para a Turma Regional de Uniformização (TRU) ou para a Turma Nacional de

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Uniformização (TNU), conforme a situação. Na hipótese de a orientação adotada pela Turma de Uniformização, em questões de direito material, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no STJ, poderá a parte prejudicada provocar a manifestação desse Tribunal Superior, que dirimirá a divergência (§ 4º).

Por sua vez, o art. 18 da Lei no 12.159/01 permite a formulação de pedido de uniformização de interpretação de lei quando houver divergência entre decisões proferidas por Turmas Recursais sobre questões de direito material. Na hipótese de divergência de interpretação de lei federal por Turmas de diferentes Estados, ou no caso de a decisão impugnada estiver em contrariedade com enunciado da súmula do STJ, o pedido de uniformização será por este julgado.

Importante destacar, nesse ponto, que, diferentemente da Lei no 10.259/01, a Lei no 12.153/09 não previu o cabimento do pedido de uniformização ao STJ contra acórdão de Turma Recursal de JE da Fazenda Pública em contrariedade com orientação firmada em jurisprudência do STJ. Esse entendimento foi confirmado em julgado da 1ª Seção, de 2015[9].

No caso dos Juizados Especiais Estaduais, contudo, a Lei no 9.099/95 não previu o pedido de uniformização ou instrumento semelhante parapreservação dos entendimentos consolidados ou sumulados do STJ desrespeitados por decisões das turmas recursais. Trata-se de uma lacuna normativa que, se não fosse colmatada, possibilitaria a eternização de decisões em contrariedade aos entendimentos consolidados do STJ, afrontando os princípios da segurança jurídica e da plenitude da tutela jurisdicional, uma vez que não é cabível a interposição de Recurso Especial em face de decisão de Turma Recursal, a qual não se enquadra no conceito de tribunal a que alude o art. 105, III, da CF/88, estando tal entendimento consolidado na Súmula 203 do STJ[10].

A fim de superar essa omissão legislativa, o STF passou a admitir, ao julgar Embargos de Declaração no RE no 571.572-BA, a propositura em caráter excepcional e temporário de Reclamação constitucional ao STJ, com fundamento no art. 105, I, “f”, da CF/88,

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em face de decisão de Turma Recursal de Juizado Especial Estadual, até a criação da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Estaduais e do DF:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUSÊNCIA DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO EMBARGADO. JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. APLICAÇÃO ÀS CONTROVÉRSIAS SUBMETIDAS AOS JUIZADOS ESPECIAIS ESTADUAIS. RECLAMAÇÃO PARA O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CABIMENTO EXCEPCIONAL ENQUANTO NÃO CRIADO, POR LEI FEDERAL, O ÓRGÃO UNIFORMIZADOR. 1. No julgamento do recurso extraordinário interposto pela embargante, o Plenário desta Suprema Corte apreciou satisfatoriamente os pontos por ela questionados, tendo concluído: que constitui questão infraconstitucional a discriminação dos pulsos telefônicos excedentes nas contas telefônicas; que compete à Justiça Estadual a sua apreciação; e que é possível o julgamento da referida matéria no âmbito dos juizados em virtude da ausência de complexidade probatória. Não há, assim, qualquer omissão a ser sanada. 2. Quanto ao pedido de aplicação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, observe-se que aquela egrégia Corte foi incumbida pela Carta Magna da missão de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional, embora seja inadmissível a interposição de recurso especial contra as decisões proferidas pelas turmas recursais dos juizados especiais. 3. No âmbito federal, a Lei 10.259/2001 criou a Turma de Uniformização da Jurisprudência, que pode ser acionada quando a decisão da turma recursal contrariar a jurisprudência do STJ. É possível, ainda, a provocação dessa Corte Superior após o

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julgamento da matéria pela citada Turma de Uniformização. 4. Inexistência de órgão uniformizador no âmbito dos juizados estaduais, circunstância que inviabiliza a aplicação da jurisprudência do STJ. Risco de manutenção de decisões divergentes quanto à interpretação da legislação federal, gerando insegurança jurídica e uma prestação jurisdicional incompleta, em decorrência da inexistência de outro meio eficaz para resolvê-la. 5. Embargos declaratórios acolhidos apenas para declarar o cabimento, em caráter excepcional, da reclamação prevista no art. 105, I, f, da Constituição Federal, para fazer prevalecer, até a criação da turma de uniformização dos juizados especiais estaduais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na interpretação da legislação infraconstitucional. (RE 571572 ED, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 26/08/2009, DJe-223 DIVULG 26-11-2009 PUBLIC 27-11-2009 EMENT VOL-02384-05 PP-00978 RTJ VOL-00216-01 PP-00540)

Tal posição do STF veio a ser incorporada pelo STJ, ao julgar em 2009 Questão de Ordem na Reclamação no 3.752-GO[11], implicando a edição da Resolução STJ no 12/2009, a fim de disciplinar o rito da Reclamação ao STJ no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais. De acordo com a referida resolução, será cabível a Reclamação quando decisão de Turma Recursal contrariar a interpretação de lei federal firmada pelo STJ em sede de julgamento sob a sistemática dos recursos repetitivos ou consolidada em súmula daquele Tribunal Superior. Uma terceira hipótese de cabimento da Reclamação, admitida pela jurisprudência do STJ, se verifica quando a decisão da Turma Recursal for teratológica, ou seja, flagrantemente absurda, ilegal ou abusiva. Tal hipótese de verifica, por exemplo, quando há aplicação de multa cominatória (astreintes) em valor exorbitante[12].

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É oportuno salientar que, diante da previsão do pedido de uniformização pelas Leis no 10.259/01 e no12.159/09, com possibilidade de julgamento pelo STJ, conforme o caso, a jurisprudência do STJ não admite o cabimento de Reclamação no âmbito dos Juizados Especiais Federais[13] e Juizados Especiais da Fazenda Pública[14].

Com a entrada em vigor do CPC/2015, há doutrinadores[15] que defendem a tese de que o regramento mais amplo da Reclamação naquele diploma processual acarretou a revogação tácita da Resolução STJ no 12/2009.

Não obstante o acerto de tal entendimento, não parece que o STJ tenha adotado essa tese, uma vez que, mesmo após a entrada em vigor do nosso CPC, o Tribunal da Cidadania editou a Resolução no 03/2016, de 7 de abril de 2016, dispondo sobre a competência para processo e julgamento das Reclamações em face de acórdão prolatado por turma recursal de Juizado Especial estadual ou do DF. Ademais, conforme decidido na Questão de Ordem proferida nos autos do Agravo Regimental na Reclamação no 18.506-SP, a Corte Especial do STJ assentou expressamente que “com o advento da Emenda Regimental nº 22-STJ, de 16/03/2016, ficou revogada a Resolução no 12/2009-STJ, que dispunha sobre o processamento, no Superior Tribunal de Justiça, das reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência desta Corte”. Dessa forma, entendeu o STJ que a Resolução no 12/2009 estaria revogada antes mesmo da entrada em vigor do CPC/2015.

Na próxima seção serão apresentadas as inovações promovidas pela Resolução no 03/2016, em comparação com o regramento anterior da Resolução no 12/2009 e com as disposições correlatas do novo Código de Processo Civil, da Constituição Federal e da jurisprudência do STF.

2.3. Inconstitucionalidade das alterações promovidas pela

Resolução no 03/2016-STJ A Resolução no 03/2016-STJ modificou a competência para

processo e julgamento das Reclamações nos Juizados Especiais

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Estaduais, bem como ampliou as hipóteses de cabimento, conforme transcrição a seguir:

“Art. 1º Caberá às Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça a competência para processar e julgar as Reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por Turma Recursal Estadual e do Distrito Federal e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, consolidada em incidente de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, em julgamento de recurso especial repetitivo e em enunciados das Súmulas do STJ, bem como para garantir a observância de precedentes.

Art. 2º Aplica-se, no que couber, o disposto nos arts. 988 a 993 do Código de Processo Civil, bem como as regras regimentais locais, quanto ao procedimento da Reclamação.

Art. 3º O disposto nesta resolução não se aplica às reclamações já distribuídas, pendentes de análise no Superior Tribunal de Justiça.

Art. 4º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.”

A principal inovação promovida pelo STJ, por meio da Resolução 03/2016, foi atribuir às Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça a competência para processo e julgamento das Reclamações em face de acórdão de Turma Recursal Estadual ou do DF que esteja em contrariedade com a jurisprudência daquele Tribunal Superior. Assim, o STJ promoveu uma espécie de delegação de sua competência constitucional, prevista no art. 105, I, “f”, da CF/88, para julgar as Reclamações quem tenham com causa de pedir violações de sua própria competência ou jurisprudência consolidada.

Na redação da Resolução no 12/2009, o STJ havia seguido a lógica constitucional da Reclamação, sendo ele próprio o órgão julgador das Reclamações destinadas à preservação de sua competência ou garantia da autoridade de suas decisões. Por sua

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vez, o art. 988, § 1º, do CPC/2015, que entrou em vigor antes da edição da Resolução no 03/2016, também foi expresso ao estabelecer que o julgamento da Reclamação deve se dar pelo órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir.

Dessa forma, levando-se em conta que a Reclamação ao STJ em sede de Juizados Especiais Estaduais se fundamenta no art. 105, I, “f” da CF/88, conforme o decidido pelo STF nos Embargos de Declaração no RE no 571.572-BA, resulta configurada a inconstitucionalidade material da Resolução no 03/2016 do STJ por violação de regra de competência absoluta prevista na Carta Magna. Embora o STJ tenha considerado “o fluxo volumoso de Reclamações no STJ envolvendo Juizados Especiais” como motivação para editar a mencionada resolução, não se pode admitir que questões de política judiciária justifiquem a absoluta e permanente derrotabilidade[16] de normas constitucionais editadas pelo Poder Constituinte Originário.

Verifica-se, também, que a Resolução no03/2016 do STJ, ao prever que a Reclamação será processada e julgada pelas Câmaras reunidas ou à Seção especializada dos Tribunais de Justiça, violou a norma do art. 125, §1º, da CF/88, que confere aos Estados-membros a legitimidade para organizar sua Justiça, observados os princípios constitucionais, bem como definir a competência de seus tribunais na Constituição local, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça:

“Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

§ 1º - A competência dos tribunais será definida na Constituição doEstado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.”

Também se constata violação à autonomia orgânico-administrativa dos Tribunais de Justiça (art. 96, I, da CF/88), aos quais compete privativamente a elaboração de seus regimentos

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internos, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos:

“Art. 96. Compete privativamente: I – aos tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus

regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;”

Dessa forma, não cabe ao STJ definir quais os órgãos internos aos Tribunais de Justiça que deverão processar e julgar Reclamações, pelo que se identifica naquela resolução vício de inconstitucionalidade formal, conforme já apontado na doutrina[17].

Quanto ao cabimento da reclamação, a Resolução no 03/2016 estabelece que a decisão de turma recursal será impugnável quando for contrária a jurisprudência do STJ consolidada em:

a) incidente de assunção de competência; b) incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR); c) julgamento de recurso especial repetitivo; d) Súmulas do STJ; ou

e) precedentes do STJ. As hipóteses dos itens a) e b) são previstas nos inciso IV do

art. 988 do CPC/2015, estando em consonância com o novo Código. A hipótese do item c) está prevista no inciso II do §5º do mesmo artigo, dependendo, todavia, do prévio esgotamento das instâncias ordinárias. Quanto ao item d), este se enquadra no inciso II do art. 988, seguindo a lógica da antiga Resolução 12/2009[18].

Todavia, o item e) do art. 1º da Resolução 03/2016-STJ não tem correspondência do CPC/2015, o qual não autoriza o ajuizamento de Reclamação em face de meros precedentes. Conforme lição do professor Daniel Amorim Assunção Neves,

“Precedente é qualquer julgamento que venha a ser utilizado como fundamento de um outro julgamento que venha a ser posteriormente proferido.

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[...] o precedente é objetivo, já que se trata de uma decisão específica que venha a ser utilizada como fundamento do decidir em outros processos. [...] A jurisprudência, por sua vez, é abstrata, porque não vem materializada de forma objetiva em nenhum enunciado ou julgamento, sendo extraída do entendimento majoritário do tribunal [...][19]”.

Dessa forma, ao prever na Resolução 03/2016 o cabimento de Reclamação em face de decisões que violem meros precedentes, hipótese não prevista no CPC/2015, o STJ usurpou a competência privativa da União para legislar sobre direito processual, prevista no art. 22, I, da CF/88, implicando sua inconstitucionalidade formal:

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;”

Finalmente, é oportuno ressaltar que a jurisprudência do STF já teve a oportunidade de declarar a inconstitucionalidade de normas de regimento interno do TST que previam a possibilidade de propositura de reclamação perante aquele Tribunal Superior. No julgado em comento, o Pretório Excelso entendeu que, como a CF/88 só previu reclamação perante o STF e o STJ, o seu cabimento perante outros tribunais dependeria de previsão em lei, cuja iniciativa é da competência privativa da União por se tratar de direito processual (art. 22, I, da CF/88):

RECLAMAÇÃO - REGÊNCIA - REGIMENTO INTERNO - IMPROPRIEDADE. A criação de instrumento processual mediante regimento interno discrepa da Constituição Federal. Considerações sobre a matéria e do atropelo da dinâmica e organicidade próprias ao Direito. (RE 405031, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/10/2008)

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Portanto, não havendo previsão no CPC/2015 de propositura de reclamação em face de decisão de turma recursal que viola mero precedente do STJ, não poderia este Tribunal Superior ampliar desmesuradamente as hipóteses de cabimento previstas naquele Código, sob pena de usurpação da competência privativa da União para legislar sobre a matéria.

3. CONCLUSÃO Foram apresentadas as alterações promovidas pela

Resolução STJ no 03/2016 nas regras de competência e cabimento de Reclamação nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais dos Estados e do DF. Foi demonstrada a inconstitucionalidade material e formal da referida resolução, por meio da qual o STJ promoveu uma espécie de delegação aos Tribunais de Justiça de sua competência constitucional, prevista no art. 105, I, “f”, da CF/88, para julgar as Reclamações quem tenham com causa de pedir violações de sua própria competência ou jurisprudência consolidada. Foi violada a autonomia dos Estados-Membros e do DF para sua organização judiciária (art. 125, §1º da CF/88), bem como a autonomia orgânico-administrativa dos Tribunais de Justiça (art. 96, I, da CF/88) e a própria previsão da reclamação constitucional no art. 105, I, “f” da CF/88. Também padece de vício de inconstitucionalidade a ampliação desmesurada das hipóteses de cabimento da Reclamação, incluindo decisões de turmas recursais estaduais que contrariem meros precedentes do STJ, usurpando a competência da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I, CF/88).

REFERÊNCIAS CAVALCANTI, Marcio André Lopes. Resolução 03/2016 do

STJ e o fim das reclamações para o STJ oriundas dos Juizados Especiais Estaduais. Dizer o Direito, 2016. Disponível em

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<http://www.dizerodireito.com.br/2016/04/resolucao-032016-do-stj-e-o-fim-das.html>. Acesso em 26 jul. 2016.

CUNHA Jr, Dirley da. O que é derrotabilidade das normas jurídicas? JusBrasil. 2015. Disponível em <http://dirleydacunhajunior.jusbrasil.com.br/artigos/207200076/o-que-e-derrotabilidade-das-normas-juridicas>. Acesso em 26 jul. 2016.

DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 13 ed. Salvador: JusPodivm, 2016, vol. 3.

DONIZETTI, ELPÍDIO. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19. Ed. São Paulo: Atlas, 2016.

FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais da Fazenda Pública: comentários à Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8. Ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

NOTAS [1] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro

da. Op Cit. p. 527.

[2] DONIZETTI, ELPÍDIO. Op Cit. p. 1367.

[3] Idem, ibidem, p. 1237.

[4] Idem, ibidem, p. 1237.

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[5] STF, 1ª Turma, Rcl 21314 AgR, rel. Min. Edson Fachin, julgado em 29/9/2015.

[6] NOVELINO, Marcelo. Op Cit. p. 921.

[7] ADI 2212, Tribunal Pleno, rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 2/10/2003.

[8] FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Op Cit. p. 25.

[9] STJ, 1ª Seção, Rcl 22.033-SC, rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 8/4/2015.

[10] Súmula 203/STJ: Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais.

[11] STJ, Corte Especial, Rcl 3.752-GO, rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/11/2009.

[12] STJ, 2ª Seção, Rcl 7.861/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 11/9/2013.

[13] “[...] Não se admite a utilização do instituto da reclamação contra acórdão de Turma Recursal do Juizado Federal diante da previsão expressa de recursos no artigo 14 da Lei n. 10.259/2001. [...]” (STJ, 1ª Seção, AgRg na Rcl 7.764/SP, rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 24/10/2012).

[14] “[...] No caso dos autos, trata-se de ação ajuizada perante Juizado Especial da Fazenda Pública, a qual se submete ao rito previsto na Lei 12.153/2009. A lei referida estabelece sistema próprio para solucionar divergência sobre questões de direito material. [...] Nesse contexto, havendo procedimento específico e meio próprio de impugnação, não é cabível o ajuizamento da reclamação prevista na Resolução 12/2009 do STJ. [...]” (STJ, 1ª Seção, RCDESP na Rcl 8.718/SP, rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 22/8/2012).

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[15] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Op Cit. p. 555.

[16] Segundo Dirley da Cunha Jr, “deve-se ao autor inglês Herbert Hart o conceito de “derrotabilidade” (defeasibility), sustentado no famoso artigo “The Ascription of Responsability and Rights”, que publicou em 1948. A derrotabilidade da norma jurídica significa a possibilidade, no caso concreto, de uma norma ser afastada ou ter sua aplicação negada, sempre que uma exceção relevante se apresente, ainda que a norma tenha preenchido seus requisitos necessários e suficientes para que seja válida e aplicável. [...] Hart percebeu que em razão da impossibilidade de as normas preverem as diversas situações fáticas, ainda que presentes seus requisitos, elas contém, de forma implícita, uma cláusula de exceção (tipo: “a menos que”), de modo a ensejar, diante do caso concreto, a derrota/superação da norma. (CUNHA Jr, Dirley da. O que é derrotabilidade das normas jurídicas? JusBrasil. 2015. Disponível em <http://dirleydacunhajunior.jusbrasil.com.br/artigos/207200076/o-que-e-derrotabilidade-das-normas-juridicas>. Acesso em 26 jul. 2016)

[17] CAVALCANTI, Marcio André Lopes.Resolução 03/2016 do STJ e o fim das reclamações para o STJ oriundas dos Juizados Especiais Estaduais. Dizer o Direito, 2016. Disponível em <http://www.dizerodireito.com.br/2016/04/resolucao-032016-do-stj-e-o-fim-das.html>. Acesso em 26 jul. 2016.

[18] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Op Cit. p. 555.

[19] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Op Cit. cap. 56.1.

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PERCEPÇÃO CUMULATIVA DOS ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E DE PERICULOSIDADE À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO TST

LUCAS ALBUQUERQUE DIAS: Advogado. Formado pela ASCES - Faculdade Associação Caruaruense de Ensino Superior.

RESUMO: O presente trabalho visa expor o histórico jurisprudencial do Superior Tribunal do Trabalho em relação à possibilidade de percepção cumulativa dos adicionais de insalubridade e de periculosidade, revelando o atual posicionamento da Corte Trabalhista. Será demonstrado as três fases que subsidiaram o entendimento do TST acerca do tema.

PALAVRAS CHAVES: Direito do Trabalho. Adicional de insalubridade. Adicional de Periculosidade. Evolução Jurisprudencial. Impossibilidade de cumulação.

1. INTRODUÇÃO

O adicional de insalubridade e de periculosidade mostram-se como direito social dos trabalhadores urbanos e rurais, de índole constitucional, que visa melhores condições de trabalho e de meio ambiente de trabalho, buscando evitar condições gravosas à saúde e à segurança do trabalhador.

O ponto de interrogação é saber se os referidos adicionais podem ser recebidos de forma cumulativa. O TST possui três fases de entendimento acerca dessa possibilidade. Vejamos cada uma delas.

2. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE E DE PERICULOSIDADE

Primeiramente, é importante destacar que o adicional de insalubridade e de periculosidade possuem previsão tanto na Constituição como na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O art. 7°, inciso XXIII, estabelece o adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei.

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Os doutrinadores classificam esse dispositivo constitucional como sendo uma norma de eficácia limitada. De acordo com Pedro Lenza, as normas de eficácia limitada são aquelas normas que, de imediato, no momento que a Constituição é promulgada, ou entra em vigor, não têm o condão de produzir todos os seus efeitos, precisando de uma lei integrativa infraconstitucional, ou até mesmo de integração por meio de emenda constitucional, possuindo aplicabilidade indireta, mediata e reduzida.

Nesse contexto, a legislação infraconstitucional disciplinou o adicional de insalubridade e de periculosidade no capítulo V, seção XIII. O art. 189 da CLT conceitua o adicional de insalubridade, vejamos:

Art. 189 - Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos. (Redação dada pela Lei nº 6.514, de 22.12.1977).

De acordo com Henrique Correia, as atividades insalubres são aquelas que expõem o empregado a agentes nocivos à sua saúde e que ultrapassam o seu limite de tolerância. Exemplos: agente químicos; biológicos; físicos.

Ainda segundo o autor, via de regra, para a obtenção do adicional de insalubridade, há necessidade de preencher dois requisitos: a) atividade nociva deverá ser constatada via perícia por profissional habilitado, médico ou engenheiro do trabalho; b) é necessário que o agente nocivo à saúde esteja incluído na relação oficial do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE. Se a atividade desenvolvida pelo empregado não estiver prevista nesta listagem, há entendimento majoritário de que o empregado não terá direito ao adicional.

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Nesse sentido, destaca-se a Orientação Jurisprudencial n° 165 da SDI-I do TST: “O art. 195 da CLT não faz qualquer distinção entre o médico e o engenheiro para efeito de caracterização e classificação da insalubridade e periculosidade, bastando para a elaboração do laudo seja o profissional devidamente qualificado”; e a súmula 448 do TST: “I - Não basta a constatação da insalubridade por meio de laudo pericial para que o empregado tenha direito ao respectivo adicional, sendo necessária a classificação da atividade insalubre na relação oficial elaborada pelo Ministério do Trabalho. II – A higienização de instalações sanitárias de uso público ou coletivo de grande circulação, e a respectiva coleta de lixo, por não se equiparar à limpeza em residências e escritórios, enseja o pagamento de adicional de insalubridade em grau máximo, incidindo o disposto no Anexo 14 da NR-15 da Portaria do MTE nº 3.214/78 quanto à coleta e industrialização de lixo urbano”.

Por sua vez, o adicional de periculosidade está previsto no art. 193 da CLT, vejamos:

Art. 193. São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem risco acentuado em virtude de exposição permanente do trabalhador a: (Redação dada pela Lei nº 12.740, de 2012)

I - inflamáveis, explosivos ou energia elétrica; (Incluído pela Lei nº 12.740, de 2012)

II - roubos ou outras espécies de violência física nas atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial. (Incluído pela Lei nº 12.740, de 2012)

Henrique Correia conceitua atividade perigosa como aquela em que há contato permanente com explosivos, inflamáveis ou energia elétrica em condições de risco acentuado. Recentemente,

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a CLT foi alterada duas vezes para incluir, como atividades perigosas, aquela desenvolvida por trabalhador em motocicleta (“motoboy”).

Os mesmos apontamentos que foram feitos acerca dos requisitos do adicional de insalubridade são também utilizados para a obtenção do adicional de periculosidade.

2. CUMULAÇÃO DO ADICIONAL DE INSALUBRIDADE COM O DE PERICULOSIDADE. EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL.

2.1 PRIMEIRA FASE

O Tribunal Superior do Trabalho, até meados de 2014, possuía o entendimento de que o adicional de insalubridade e o adicional de periculosidade não podiam ser cumulados. Isso porque o artigo 193, §2°, da CLT, possui o seguinte texto: “o empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido”.

O referido parágrafo está inserido no art. 193 da CLT, que trata sobre o adicional de periculosidade. Baseado nesse dispositivo, o TST afirmava que os adicionais não podiam ser recebidos de forma cumulativa, devendo o empregado decidir qual é o mais vantajoso, acaso exerça simultaneamente atividade insalubre e perigosa.

2.2 SEGUNDA FASE

No julgamento do RR - 1072-72.2011.5.02.0384, de relatoria do Min. Cláudio Mascarenhas Brandão, a Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho afastou a argumentação de que o art. 193, parágrafo 2°, da CLT prevê a opção pelo adicional mais favorável ao trabalhador e negou provimento ao recurso da empresa. Será exposto os principais fundamentos utilizados pelos ministros no referido julgamento.

De acordo com o relator do recurso, a Constituição da República, no artigo 7º, inciso XXIII, garantiu de forma plena o direito ao recebimento dos adicionais de penosidade, insalubridade

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e periculosidade, sem qualquer ressalva quanto à cumulação, não recepcionando assim o art. 193, §2°, da CLT. Em sua avaliação, a acumulação se justifica em virtude de os fatos geradores dos direitos serem diversos e não se confundirem.

Segundo o ministro, a cumulação dos adicionais não implica pagamento em dobro, pois a insalubridade diz respeito à saúde do empregado quanto às condições nocivas do ambiente de trabalho, enquanto a periculosidade "traduz situação de perigo iminente que, uma vez ocorrida, pode ceifar a vida do trabalhador, sendo este o bem a que se visa proteger".

Ainda segundo o eminente ministro, O direito à cumulação é de uma lógica irrespondível: se a situação de desconforto pessoal tem correspondência numa indenização, o valor desta deve abranger tantos percentuais quantas sejam as circunstâncias causadoras do desconforto, que traz um dano efetivo ao trabalhador, ou do risco a que ele é exposto. Por isso mesmo, causa profunda espécie que o artigo 193, § 2º, da CLT, herdando restrição levantada desde a Lei nº 2.573/55, que instituiu o adicional de periculosidade, tenha aberto ao empregado submetido às duas condições mais severas de serviço, simultaneamente, o dilema de 'optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido' quando comprovado pericialmente que também trabalhou em condição perigosa.

Desse modo, apesar da necessidade de regulamentação da norma constitucional, não poderia a legislação infraconstitucional ultrapassar o limite por ela imposto e instituir norma menos benéfica ao trabalhador em detrimento da garantia insculpida no artigo 7º, caput, da Constituição Federal, de estipulação de outros direitos que visem à melhoria de sua condição social e, especialmente, em desrespeito ao princípio de proteção da dignidade da pessoa humana do obreiro.

O relator explicou que a opção prevista na CLT é inaplicável também devido à introdução no sistema jurídico brasileiro das Convenções 148 e 155 da Organização Internacional do

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Trabalho (OIT), que têm status de norma materialmente constitucional ou, pelo menos, supralegal, como foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal. A Convenção 148 "consagra a necessidade de atualização constante da legislação sobre as condições nocivas de trabalho", e a 155 determina que sejam levados em conta os "riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes".

O Estado brasileiro se comprometeu, ao ratificar a Convenção 155 da OIT, a implementar o que recomenda o seu art. 11, b: 'deverão ser levados em consideração os riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes'. Portanto, a orientação jurisprudencial que predomina, no sentido de que são inacumuláveis os adicionais de insalubridade e de periculosidade, frustra, a nosso ver, o desígnio constitucional e também o compromisso assumido pelo Brasil quando ratificou as convenções 148 e 155 da OIT; em rigor, essa orientação relativiza o direito fundamental à compensação monetária pela exposição a agentes nocivos à saúde ou à integridade física do trabalhador.

Tais convenções, afirmou o relator, superaram a regra prevista na CLT e na Norma Regulamentadora 16 do Ministério do Trabalho e Emprego, no que se refere à percepção de apenas um adicional quando o trabalhador estiver sujeito a condições insalubres e perigosas no trabalho. "Não há mais espaço para a aplicação do artigo 193, parágrafo 2º, da CLT", assinalou.

2.3 TERCEIRA FASE

Finalmente, em 28.4.2016, chega-se a última fase, sendo essa a posição atual do TST. A terceira fase adota a conclusão da primeira fase, qual seja, a de vedar a percepção cumulativa dos adicionais de insalubridade e de periculosidade, entretanto suas razões são inéditas. Será exposto os principais argumentos dos ministros no processo n° TST -E-ARR-1081-60.2012.5.03.0064, SBDI-I.

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De início, o referido acórdão que a questão que se põe ao debate no presente processo consiste em definir, à luz do Direito brasileiro, a possibilidade de percepção cumulativa, pelo empregado, dos adicionais de insalubridade e de periculosidade.

Cediço que a proteção do trabalhador face ao labor executado em condições adversas à saúde e à segurança alçou patamar constitucional a partir de 1988. O art. 7º da Constituição Federal, como se recorda, ao enumerar os direitos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais, garantiu a "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança" (inciso XXII) e, também, o pagamento de "adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei" (inciso XXIII).

Cediço também que a norma do art. 193, § 2º, da CLT, ao dispor sobre o direito à percepção de adicional de periculosidade, assegura ao empregado a opção pelo adicional de insalubridade porventura devido.

Antes de perquirir sobre o real alcance da norma em apreço, cumpre indagar se foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988.

A opção a que alude o art. 193, § 2º, da CLT não conflita com a norma do art. 7º, XXII, da Constituição Federal. Os preceitos da CLT e da Constituição, nesse ponto, disciplinam aspectos distintos do labor prestado em condições mais gravosas: enquanto o art. 193, § 2º, da CLT regula o adicional de salário devido ao empregado em decorrência de exposição a agente nocivo, o inciso XXII do art. 7º impõe ao empregador a redução dos agentes nocivos no meio ambiente de trabalho.

O inciso XXIII do mesmo preceito constitucional, a seu turno, cinge-se a enunciar o direito a adicional "de remuneração" para as atividades penosas, insalubres e perigosas e atribui ao legislador ordinário a competência para fixar os requisitos que geram direito ao respectivo adicional.

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De sorte que, não houve revogação tácita do art. 193, § 2º, da CLT pela Constituição Federal de 1988. Objetivamente, o legislador ordinário, no uso de suas atribuições, conferidas pela própria Constituição Federal, cuidou em regulamentar o direito do empregado à percepção do adicional de periculosidade, no exercício de atividades ou operações perigosas, assegurando-lhe optar pelo adicional de insalubridade acaso devido.

Igualmente não há descompasso entre a legislação brasileira e as normas internacionais de proteção ao trabalho. As Convenções nºs 148 e 155 da OIT não contêm qualquer norma explícita em que se assegure a percepção cumulativa dos adicionais de periculosidade e de insalubridade em decorrência da exposição do empregado a uma pluralidade de agentes de risco distintos.

A Convenção nº 148 da OIT trata da "proteção dos trabalhadores contra os riscos profissionais devidos à contaminação do ar, ao ruído e às vibrações no local de trabalho".

Ao versar sobre "medidas de prevenção e de proteção", o art. 8º, item 3, da Convenção nº 148 da OIT dispõe o seguinte:

"3. Os critérios e limites de exposição deverão ser fixados, completados e revisados a intervalos regulares, de conformidade com os novos conhecimentos e dados nacionais e internacionais, e tendo em conta, na medida do possível, qualquer aumento dos riscos profissionais resultante da exposição simultânea a vários fatores nocivos no local de trabalho."

Vê-se que o art. 8º, item 3, da Convenção nº 148 da OIT dispõe tão somente que os critérios e limites de exposição dos trabalhadores à contaminação do ar, ao ruído e às vibrações no local de trabalho devem considerar, na medida do possível, o aumento dos riscos decorrentes da exposição simultânea a mais de um fator nocivo.

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Em nenhum momento a Convenção nº 148 da OIT preconiza ou recomenda ao Estado-membro a adoção de conduta que imponha aos empregadores a obrigação de pagamento cumulativo de adicionais decorrentes de condições de trabalho mais gravosas.

A Convenção da OIT nº 155, por sua vez, versa sobre "segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho". Reza o art. 11, alínea "b", da referida Convenção da OIT:

"Artigo 11

Com a finalidade de tornar efetiva a política referida no artigo 4 da presente Convenção, a autoridade ou as autoridades competentes deverão garantir a realização progressiva das seguintes tarefas:

(...)

b) a determinação das operações e processos que serão proibidos, limitados ou sujeitos à autorização ou ao controle da autoridade ou autoridades competentes, assim como a determinação das substâncias e agentes aos quais estará proibida a exposição no trabalho, ou bem limitada ou sujeita à autorização ou ao controle da autoridade ou autoridades competentes; deverão ser levados em consideração os riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes; (...)."

A Convenção da OIT nº 155 busca, antes de mais nada, desestimular, no meio ambiente de trabalho, o exercício de atividades profissionais que exijam o contato dos empregados com vários agentes nocivos a sua saúde ou segurança. Daí não deflui, no entanto, que referida Convenção imponha a adoção, pelo Estado-membro, de medidas que visem à remuneração cumulativa

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de adicionais em decorrência da exposição do empregado a uma pluralidade de agentes de risco.

Por todo o exposto, pode-se concluir que é vedada a percepção cumulativa dos adicionais de insalubridade e de periculosidade ante a expressa dicção do art. 193, § 2º, da CLT. Ademais, não obstante as Convenções nºs 148 e 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) tenham sido incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro, elas não se sobrepõem à norma interna que consagra entendimento diametralmente oposto e elas também não disciplinam a possibilidade de tal cumulação.

3. CONCLUSÃO

Foi exposta a evolução jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho acerca do tema “cumulação de adicional de insalubridade com o de periculosidade”.

Como visto, a jurisprudência do TST passou por três momentos distintos: o primeiro de negar a possibilidade de cumulação dos referidos adicionais; o segundo de permitir; e o terceiro de negar tal possibilidade de cumulação, sendo este o atual posicionamento do TST.

REFERÊNCIAS

CORREIA, Henrique. Direito do Trabalho. 6.ª ed. Bahia: editora Juspodivm, 2014.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 19ª ed. São Paulo: editora saraiva, 2015.

RECURSO DE REVISTA 776-12.2011.5.04.0411, disponível em: http://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/TST/attachments/TST_RR_7761220115040411_bd08c.pdf?Signature=e4f5Y7vCrbqCGOYWTswcB2FNFrQ%3D&Expires=1469573688&AWSAccessKeyId=AKIAIPM2XEMZACAXCMBA&response-content-

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RECURSO DE REVISTA 1081-60.2012.5.03.0064, SBDI-I, disponível em:http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=1081&digitoTst=60&anoTst=2012&orgaoTst=5&tribunalTst=03&varaTst=0064. Acesso em: 20 de julho de 2016.

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A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO ÂMBITO DAS LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

LUCAS PEPEU GALINDO: Advogado. Graduado em Direito pela Faculdade Asces.

Resumo: O presente artigo objetiva analisar a possibilidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do Direito Administrativo, demonstrando-se a possibilidade de sua utilização pela Administração Pública, ainda que diante da ausência de norma expressa autorizativa.

Palavras-chave: desconsideração da personalidade; administração pública; licitações; contratos administrativos.

Sumário: 1. Introdução 2. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro 3. O regime jurídico administrativo e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica 4. Conclusão 5. Referências bibliográficas.

1. Introdução

A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, também denominada disregard doctrine, já não mais pode ser tida como novidade em nosso ordenamento jurídico, havendo diversos estudos e inúmeras decisões judiciais em que é amplamente discutida e utilizada como embasamento para, no caso concreto, afastarem-se os regulares efeitos da personificação, atingindo-se o patrimônio dos sócios ou de sociedades integrantes de grupo econômico, que, de outra forma, não responderiam pela obrigação.

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Contudo, ainda são incipientes os estudos acerca de sua utilização no Direito Administrativo.

O presente estudo objetiva, assim, contribuir, ainda que modestamente, para o suprimento dessa lacuna, tendo-se em mente que, impedir que haja o desvio de função da pessoa jurídica em licitações e em contratos administrativos, implica evitar que o patrimônio público suporte prejuízos que, por certo, atingem toda a coletividade e não uma pessoa ou um grupo de pessoas, o que demonstra a importância da disseminação de seu uso no Direito Administrativo.

2. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica consiste em instrumento eficaz de combate em face de situações que configuram manifesto abuso de direito. A necessidade de aplicação da disregard doctrine decorre, portanto, de um desvio de função do instituto da pessoa jurídica, consistente na falta de correspondência entre o fim perseguido pelas partes e o conteúdo que, segundo o ordenamento jurídico, é próprio da forma utilizada, podendo-se afirmar que é o critério básico para operar a desconsideração.[i]

No ordenamento jurídico pátrio, a desconsideração só foi prevista legalmente, de forma direta, pela Lei 8.078 de 1990 (Código do Consumidor), em seu artigo 28; pela Lei 8.884 de 1994, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, em seu artigo 18; pela Lei 9.605 de 1998.que disciplina a responsabilidade por lesões ao meio ambiente. Igualmente, o Código Civil de 2002, consagrou a desconsideração em seu artigo 50, proporcionando avanço considerável em relação ao tema, constituindo o dispositivo verdadeira disciplina geral acerca da desconsideração.

Mais recentemente, a Lei 12.846 de 2013, comumente denominada Lei Anticorrupção, também previu expressamente o

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instituto ao dispor sobre a responsabilização objetiva, administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

De acordo com a referida Lei, a personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos nela previstos ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.

Por seu turno, necessário destacar que a Lei 8.666 de 1993 não contempla regra específica de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em relação a licitações e contratos administrativos. Contudo, a inexistência de regra expressa em lei não constitui óbice à aplicação da teoria, pois, em se tratando da desconsideração da personalidade jurídica, como acima exposto, a simples constatação do desvio de função ou do abuso de direito autoriza, no caso concreto, que seja a personalidade desconsiderada, atingindo-se a pessoa do sócio ou de outras sociedades integrantes do grupo econômico, com fundamento nos princípios gerais do Direito e nos que regem o Direito Administrativo, que, como veremos, fornecem-lhe embasamento.

3. O regime jurídico administrativo e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica

No âmbito do presente trabalho, refoge a seu objetivo discutir acerca da natureza dos princípios constitucionais ou sobre as teorias que os fundamentam. Partiremos do pressuposto, amplamente difundido e aceito pela doutrina, de que os princípios constitucionais, e em especial aqueles que fundamentam o regime jurídico administrativo, possuem normatividade incontestável, sendo conformadores de todo o ordenamento jurídico.[ii]

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Fixadas tais premissas quanto à interpretação dos princípios constitucionais, passemos à análise de alguns dos princípios que regem a Administração Pública, inscritos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, que servem de embasamento à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

Acerca do princípio da legalidade, apropriadamente denominado por Carmen Lúcia Antunes Rocha como da juridicidade, afirma-se:

“Sendo a lei, entretanto, não a única, mas a principal fonte do Direito absorveu o princípio da legalidade administrativa toda a grandeza do Direito em sua mais vasta expressão, não se limitando à lei formal, mas à inteireza do arcabouço jurídico vigente no Estado. Por isso este não se bastou como Estado de Lei, ou Estado de Legalidade. Fez-se Estado de Direito, num alcance muito maior do que num primeiro momento se vislumbrava no conteúdo do princípio da legalidade, donde a maior justeza de sua nomeação como ‘princípio da juridicidade’”.[iii]

Nesse sentido, a desconsideração da personalidade jurídica visa exatamente garantir que não haja desvio de função da pessoa jurídica, impedindo que, ainda que por vias transversas, o ordenamento jurídico deixe de ser observado.

Do mesmo modo, o princípio da moralidade embasa a aplicação da teoria da desconsideração, sendo de destacar que, apesar de ter-se formado a partir do princípio da legalidade, para que se chegasse ao conceito de moralidade foi necessário acrescer-se a ideia de legitimidade do Direito, podendo-se afirmar que a Administração Pública deve ser ética para que seus atos sejam juridicamente válidos.

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A respaldar as considerações acima elencadas, o Superior Tribunal de Justiça já aplicou a desconsideração da personalidade com embasamento nos princípios da legalidade, da moralidade, da indisponibilidade e da supremacia do interesse público, como se verifica da ementa transcrita:

“ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANCA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA, POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.

- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar a aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações, Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.

- A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que

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facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.”(STJ – RMS 15166 / BA – Relator: Ministro CASTRO MEIRA – SEGUNDA TURMA – DJ 08.09.2003 p. 262.)

Ainda em relação ao precedente citado, cabe salientar que o Relator do caso, Ministro Castro Meira, enfrentou expressamente a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica na esfera administrativa, sem que houvesse norma autorizadora, para concluir ser ela possível, aplicando os princípios que regem a Administração Pública, como se depreende do trecho a seguir transcrito, que pela clareza, merece transcrição:

“se, por um lado, existe o dogma da legalidade, como garantia do administrado no controle da atuação administrativa, por outro, existem Princípios com o da Moralidade Administrativa, o da Supremacia do Interesse Público e o da Indisponibilidade dos Interesses Tutelados pelo Poder Público, que também precisam ser preservados pela Administração. Se qualquer deles estiver em conflito, exige-se do hermeneuta e do aplicador do direito a solução que melhor resultado traga à harmonia do sistema normativo.

A ausência de norma específica não pode impor à Administração um atuar em desconformidade com o Princípio da Moralidade Administrativa, muito menos exigir-lhe o sacrifício dos interesses públicos que estão sob sua guarda. Em obediência ao Princípio da Legalidade, não pode o aplicador do direito negar eficácia aos muitos princípios que devem modelar a atuação do Poder Público.

Assim, permitir-se que uma empresa constituída com desvio de finalidade, com abuso de forma e nítida fraude à lei, venha a participar

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de processos licitatórios, abrindo-se a possibilidade de que a mesma tome parte em um contrato firmado com o Poder Público, afronta os mais comezinhos princípios do direito administrativo, em especial, ao da Moralidade Administrativa e ao da Indisponibilidade dos Interesses Tutelados pelo Poder Público.” [iv]

Igualmente, o Tribunal de Contas da União tem aplicado a desconsideração da personalidade jurídica com base não só no disposto no artigo 46 de sua Lei Orgânica (Lei 8.443 de 1992), como também com apoio do princípio da equidade, a chamada “justiça do caso concreto”. É o que se depreende de trecho do Acórdão n. 189/2001 (Processo n. 675.295/1994-7, Tribunal Pleno), relatado pelo Ministro Guilherme Palmeira:

“Concluindo, não é de justiça e conforme o direito contemporâneo esquecer os fatos insertos nos autos para não aplicar ao verdadeiro culpado as penalidades cabíveis, principalmente porque, se não aplicada a regra da desconsideração da personalidade jurídica, poder-se-á estar inviabilizando a execução, não punindo o verdadeiro infrator, impossibilitando a aplicação de sanções outras que não o débito (multa, por exemplo) àqueles que praticaram os ilícitos, usufruíram pessoalmente das verbas ilicitamente auferidas (já que não contabilizaram na empresa e sacaram diretamente no banco) e que não figurarão nos autos, dificultando a apuração da responsabilidade dos mesmos e consequente encaminhamento dos fatos ao Ministério Público Federal para as ações de direito, enfim, uma séria de consequências jurídicas capazes de tornar este processo inefetivo e injusto.”

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Desta forma, os princípios constitucionais da juridicidade, da moralidade, da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, bem como o da equidade, que orientam o ordenamento jurídico como um todo, são suficientes para fundamentar a aplicação da teoria da desconsideração no Direito Administrativo, ainda que não haja previsão normativa específica disciplinando o tema.[v]

4. Conclusão

A desconsideração da personalidade jurídica constitui solução eficaz para coibir os desvios de função da pessoa jurídica, bem como para resolver as hipóteses em que a aplicação dos efeitos da personificação produziria resultados diversos das valorações que inspiram o ordenamento jurídico.

Não obstante a inexistência de regra expressa em lei, não há impeditivo para a aplicação da teoria da desconsideração no âmbito do Direito Administrativo, eis que a simples constatação do desvio de função ou do abuso da regra de que a pessoa jurídica tem personalidade distinta da de seus sócios, autoriza, no caso concreto, seja ela ignorada, atingindo-se a pessoa do sócio ou outras sociedades integrantes do grupo econômico, com fundamento nos princípios gerais do Direito e nos que regem a Administração Pública.

Igualmente, a desconsideração da personalidade coaduna-se com os princípios reitores da atuação da Administração Pública, havendo ampla possibilidade de sua aplicação no Direito Administrativo, sem que importe violação ao devido processo legal ou à ampla defesa, desde que configurado o desvio de função da pessoa jurídica, objetivamente comprovado por meio de processo administrativo.

5. Referências bibliográficas

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010.

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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2013.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial – Volume II. 11ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14ª Edição. São Paulo: Dialética, 2010.

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

WATANABE, Ricardo. Desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das licitações.http://www.direitonet.com.br/artigod/exibir/2746. Acesso em 17 de abril de 2016.

NOTAS:

[i] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial – Volume II. 11ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

[ii] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010.

[iii] ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

[iv] Superior Tribunal de Justiça – RMS 15166 / BA – Relator: Ministro CASTRO MEIRA – SEGUNDA TURMA – DJ 08.09.2003 p. 262.

[v] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14ª Edição. São Paulo: Dialética, 2010.

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ARBITRAGEM: NATUREZA JURÍDICA E EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

JÚLIO CÉSAR ALVES FIGUEIRÔA: Advogado. Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

RESUMO: O presente estudo visa analisar a evolução legislativa do instituto da arbitragem no ordenamento jurídico brasileiro, bem como a natureza jurídica da atividade exercida pelo árbitro, tanto sob o prisma doutrinário, quanto jurisprudencial.

Palavras-chave: Arbitragem. Jurisdição. Equivalentes jurisdicionais.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO – FORMAS EXTRAJUDICIAIS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS (EQUIVALENTES JURISDICIONAIS) - ARBITRAGEM COMO FORMA DE HETEROCOMPOSIÇÃO DE CONFLITOS (JURISDIÇÃO) - ANÁLISE DA LEI 9307, DE 23 DE SETEMBRO DE 1996 – DISPÕE SOBRE A ARBITRAGEM - MODIFICAÇÕES DA LEI 13.129/2015 – CONCLUSÃO – REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

A arbitragem, como forma de solução de conflitos, vem tomando importante papel no ordenamento jurídico mundial. É inegável sua importância, tanto para a solução da demanda junto ao judiciário, quanto na análise técnica sobre assuntos que demandam conhecimentos específicos em determinadas áreas e não apenas no direito.

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No presente artigo teceremos comentários sobre as formas extrajudiciais de solução de conflitos, a evolução legislativa da arbitragem e sua natureza jurídica, tanto sob o ponto de vista doutrinário e quanto jurisprudencial.

FORMAS EXTRAJUDICIAIS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS

(EQUIVALENTES JURISDICIONAIS)

A jurisdição é a maneira em que um terceiro imparcial decide, reconhece ou efetiva situações jurídicas, em decisão sobre a qual não cabe controle externo, apta a tornar-se imutável.[1] A atividade jurisdicional representa a atividade de um dos Poderes que compõe o tripé do poder estatal e, como tal, sua relação com as partes é de sujeição.[2]

Como decorrência da sujeição, fala-se em princípio da inafastabilidade da jurisdição. Referido princípio encontra-se expressamente previsto na Constituição Federal de 1988 que dispõe que: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV da CF/88).

A atividade jurisdicional representa, portanto, o principal instrumento de pacificação social, sendo atividade típica do Poder Judiciário, não podendo a lei limitar ou instituir embaraços desarrazoados para que as pessoas possam apresentar seus conflitos para solução. Nesse sentido, cite-se, a título de exemplo, a Súmula Vinculante número 28, editada pelo Supremo Tribunal Federal que dispõe: “É inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário.”

Com o crescimento demográfico e, consequentemente, com o crescente número de demandas judiciais, o Poder Judiciário enfrenta uma inegável crise. A morosidade na solução das lides e a constante ausência de efetividade de suas decisões começam a desafiar novas posturas.

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O fortalecimento das formas extrajudiciais de solução de conflitos, também denominadas equivalentes jurisdicionais[3] é uma saída bastante promissora e que precisa ser estimulada.

Ressalte-se, contudo, que os equivalentes jurisdicionais não buscam fundamento de existência apenas morosidade do Judiciário, pelo contrário, eles possuem sua própria importância como técnica de tutela de direitos. Ademais, a autorização para a utilização dos referidos métodos, não pode servir para excluir do Poder Judiciário à lide eventualmente resolvida, ou até mesmo a que venha a surgir durante a aplicação do equivalente. Em outras palavras, essas formas de solução de conflito não possuem o requisito da coisa julgada próprio da atividade do Poder Judiciário, podendo ser submetida ao controle judicial.

Os principais exemplos de equivalentes jurisdicionais trazidos pela doutrina são: a autotutela, a autocomposição, a decisão de tribunais administrativos e a arbitragem. Ressalte-se que, com relação à arbitragem, existe decisão do Superior Tribunal de Justiça que entende não se tratar de equivalente jurisdicional, mas sim de atividade jurisdicional exercida por autoridade não-estatal, entendimento adotado também por Fredie Didier Jr.

Começando pela autotutela, tem-se que esse tipo de solução é a mais primitiva de todas. Com efeito, esse forma de resolução de conflito consiste no “sacrifício integral do interesse de uma das partes envolvida no conflito em razão do exercício da força pela parte vencedora”.[4]

Sua eficiência depende da efetividade da força aplicada na medida em que somente terá ocorrido quando o interesse de um tenha se sobreposto ao do outro. Em razão disso, constata a imensa possibilidade de injustiças, é que a autotutela é proibida nos países civilizados.

No Brasil, por exemplo, o Código Penal estabelece que: “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora

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legítima, salvo quando a lei o permite”, constitui o crime de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, Decreto-Lei 2848/40).

O próprio tipo penal estabelece uma ressalva de que não será crime quando a lei permitir. Assim, tem-se que a autotutela não é algo vedado, senão uma medida excepcional. Alguns exemplos de seu exercício podem ser facilmente encontrados no ordenamento jurídico, senão vejamos:

A legítima defesa prevista no art. 188 do Código Civil é um deles, quando em seu inciso II está previsto que não constitui ato ilícito: “os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido”; a previsão para a apreensão de bem como penhor legal, nos termos do art. 1.467, I do Código Civil que dispõe que são credores pignoratícios, independentemente de convenção: “os hospedeiros, ou fornecedores de pousada ou alimento, sobre as bagagens, móveis, jóias ou dinheiro que os seus consumidores ou fregueses tiverem consigo nas respectivas casas ou estabelecimentos, pelas despesas ou consumo que aí tiverem feito”; e, como exemplo mais conhecido, o desforço imediato no esbulho, previsto no art. 1.210, §1º, do Código Civil, quando dispõe que: “o possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”.

A justificativa nos casos acima tratados é a impossibilidade de o Estado estar presente sempre que algum direito estiver sendo violado. De fato, em muitos casos, a morosidade da atuação estatal poderá impedir ou tornar irreversível alguma situação. Nesses casos, a lei autoriza o particular a utilizar a força para a solução do conflito.

Ressalte-se, ainda, que a autotutela é forma de solução de conflitos que poderá sofrer o mais amplo controle judicial. Com efeito, veremos que situações resolvidas no âmbito da arbitragem

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ou da conciliação possuem um limite para o controle judicial, algo que não existe na autotutela.

Já a autocomposição é caracterizada pelo sacrifício integral ou parcial do direito discutido, sempre em razão da vontade das partes. Pressupõe-se que esse tipo de composição representa a maneira mais eficaz de solução de litígios. Isso porque, diferentemente dos outros casos, as duas partes abdicarão de parcelas de seu direito para pôr fim ao litígio.

Tanto é verdade que a transação vem sendo constantemente estimulada. Cite-se, por exemplo, a “semana nacional de conciliação” organizada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, bem como a importância dada à conciliação na Justiça do Trabalho, oportunizando-se dois atos solenes para a possibilidade de conciliação.

A grande diferença entre a autocomposição e a autotutela, diferença esta que serve também para entender os institutos, é que na primeira, ainda que ocorra a renúncia do direito e a preponderância de um direito sobre o outro, decorreu da vontade das partes, já na autotutela, a superioridade decorreu do exercício da força e contra a vontade de uma das partes.

A autocomposição é gênero do qual são espécies a transação, a renúncia e a submissão.[5] A transação consiste em sacrifícios recíprocos das partes para que atinjam a solução do conflito, a renúncia a parte abre mão do direito que teria como pretensão, desistindo de prosseguir com seu intento, enquanto que na submissão a parte aceita a pretensão do outro e abre mão da resistência.

Sabemos que a autocomposição também poderá ser utilizada com a lide de processos judiciais em curso. Tal constatação não afasta a sua natureza de equivalente jurisdicional já que além de ser também utilizada para lides extrajudiciais, a atividade jurisdicional restringe-se à homologação do acordo.

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Ainda sobre a autocomposição, dois instrumentos para o seu exercício ganharam força nos últimos anos, quais sejam, a conciliação e a mediação. A diferença primordial entre essas duas é o grau de participação do terceiro que participa da solenidade, sendo o mediador mais propositivo que o conciliador.

Fredie Didir Jr. menciona, ainda, como equivalente jurisdicional, o julgamento de conflitos por tribunal administrativo. De fato, a atividade desses tribunais serve como solução de conflitos de interesses. A grande diferença entre referidos órgãos e a atividade jurisdicional é a possibilidade de operar ou não o efeito da coisa julgada e o controle externo da referida atividade.

Os exemplos desse tipo de tribunal são muitos. Citaremos alguns, brevemente:

A Lei 2.180 de 5 de fevereiro de 1954, dispõe sobre o Tribunal Marítimo. Dispõe o seu art. 1º:

O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, órgão, autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Ministério da Marinha no que se refere ao provimento de pessoal militar e de recursos orçamentários para pessoal e material destinados ao seu funcionamento, tem como atribuições julgar os acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e as questões relacionadas com tal atividade, especificadas nesta Lei.

Nota-se, portanto, que, embora funcione como órgão auxiliar do Poder Judiciário, possui jurisdição em todo o território nacional. Possui duas principais funções, segundo a doutrina, a de constituir elemento de prova em ação judicial, já que possui a competência para manifestar-se tecnicamente quanto à responsabilidade por acidentes de navegação[6], o que se extrai da leitura do art. 18 da Lei 2.180/54, com a redação dada pela Lei 9.578/97: “As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos

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acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém sucetíveis de reexame pelo Poder Judiciário”; além de funcionar, também, como Juízo arbitral e, portanto, possuir função jurisdicional, nos termos do art. 16, “f”, da Lei aqui tratada, que dispõe: “Compete ainda ao Tribunal Marítimo (...)funcionar, quando nomeado pelos interessados, como juízo arbitral nos litígios patrimoniais consequentes a acidentes ou fatos da navegação”.

Os Tribunais de Contas também funcionam com essa perspectiva. Com efeito, especialmente quanto ao Tribunal de Contas da União, tem-se que ele exerce jurisdição em todo o território nacional (art. 73 da CF/88). Ressalte-se que o termo “jurisdição” a ser exercida pelo Tribunal de Contas não é aceito por parte da doutrina, tendo o Ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Brito, em manifestação nos autos da ADI 4.190, substituído tal termo pela expressão “judicatura de contas”.

O fato é que, dentre as atribuições do Tribunal de Contas da União, destacam-se a de fiscalização, controle e julgamento. O art. 71, II da Constituição Federal de 1988, estabelece, portanto, que compete ao Tribunal de Contas da União, dentre outras competências:

Julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.

Tal atividade, embora mencione a atividade jurisdicional, a esta somente se assemelha quanto à forma de decisão, qual seja, pela heterocomposição. Nos demais atributos, as suas decisões são

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eminentemente administrativas, especialmente pela ausência de definitividade de suas decisões.

Esse tipo de controle é comum na Administração Pública, especialmente quando se trata de Agências Reguladoras. Essas agências, que são constituídas como autarquias em regime especial, possuem a função primordial de regulamentar determinados setores, bem como compor conflitos de natureza econômica. E é sobre essa última função que importa ao presente trabalho.

As leis que regulam algumas das principais Agências Reguladoras estabelecem certas competências que comprovam o exercício da atividade regulatória judicante. Por exemplo, a Lei 9.478/1997 que criou a Agência Nacional de Petróleo estabelece no §1º do art. 58, com a redação dada pela Lei 11.909 de 2009, que: “a ANP fixará o valor e a forma de pagamento da remuneração adequada com base em critérios previamente estabelecidos, caso não haja acordo entre as partes, cabendo-lhe também verificar se o valor acordado é compatível com o mercado”,percebe-se dessa previsão que a ANP atuará nos casos em que as partes não chegarem a nenhum acordo, substituindo a vontade delas, em uma típica atividade jurisdicional no sentido etimológico da palavra; por sua vez, a Lei 9.427/1996, que criou a Agência Nacional de Energia Elétrica, estabelece em seu art. 3º, dentre suas competências, a de dirimir conflitos entre concessionárias, bem como entre as concessionárias e os consumidores.

Da mesma forma que acontece com as decisões dos demais entes tratados anteriormente, a atividade desempenhada pelas Agências Reguladoras não possui a “definitividade jurisdicional”. Ademais, tais decisões podem sofrer controle pelo próprio Poder Judiciário. Sobre o controle judicial existe ainda a chamada discricionariedade técnica das Agências Reguladoras, assunto que escapa do objetivo do presente trabalho.

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O Conselho Administrativo de Defesa Econômica, componente do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, é entidade judicante com jurisdição em todo o território nacional, que se constitui em autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede e foro no Distrito Federal.

Dentre as funções dos órgãos que compõe o CADE, destacam-se a de decidir sobre existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei; decidir os processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica instaurados pela Superintendência-Geral, ordenar as providências que conduzam à cessação da atividade que estiver infringindo a ordem econômica e apreciar em grau de recurso as medidas preventivas adotadas.

Esse é o atual cenário da heterocomposição dos conflitos por entes que não fazem parte do Poder Judiciário. No próximo tópico, teceremos maios considerações sobre a arbitragem, um dos principais e mais discutidos métodos atuais de solução de conflitos.

ARBITRAGEM COMO FORMA DE HETEROCOMPOSIÇÃO

DE CONFLITOS (JURISDIÇÃO)

A lei da arbitragem, que será tratada no tópico seguinte, demonstra que essa atividade não pode ser confundida com os equivalentes jurisdicionais. De fato, ela representa uma atividade tipicamente jurisdicional com a única diferença de ser exercida por autoridade não-estatal.

Ela é um meio de solução de conflitos pela qual as partes convocam um terceiro de confiança para que decida a lide de forma imparcial, é, portanto, uma heterocomposição.[7] Essa atividade, em tempos remotos, era confiada aos sacerdotes, que garantiam o acerto de suas decisões em razão de sua ligação com as divindades, bem como pelos anciãos que tinham o respeito do grupo que ocupavam.[8]

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É uma atividade jurisdicional e, como tal, não viola o dispositivo constitucional da inafastabilidade da jurisdição previsto no art. 5º, XXXV da CF/88 (A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), uma vez que a arbitragem não é compulsória, ela depende da vontade das partes que devem ser capazes para dispor sobre isso, não se admitindo, por exemplo, arbitragem em causas penais, conforme veremos no próximo tópico.

Ademais, a Emenda Constitucional 45 de 2004 consagrou a arbitragem em âmbito constitucional na seara trabalhista, conforme dispõe o art. 114, § 1º, no âmbito da negociação coletiva, dispondo que: “frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros”.

O Supremo Tribunal Federal, inclusive, ainda queincidenter tantum, no julgamento da homologação de sentença estrangeira, ainda em 2001, de número SE 5.206-7, alguns dispositivos da lei de arbitragem, dentre eles o art. 6º, §7º e de outros diplomas que mencionam o instituto.

O Superior Tribunal de Justiça, em decisão mais recente, disponível no informativo de sua jurisprudência de nº 522, no conflito de competência de número 111230, afirmou que é possível a existência de conflito de competência entre câmara arbitral e justiça estadual, deixando claro que tal possibilidade decorre da natureza jurisdicional das funções exercidas pelo arbitro.

No voto do Ministro Aldir Passarinho Junior, ele deixa claro que a competência do Superior Tribunal de justiça para decidir conflito de competência, estabelecido pelo art. 105, I, “d” da Constituição Federal, não tem como requisito que os órgãos conflitantes pertençam, necessariamente, ao Poder Judiciário.

Aduz, ainda, que reconhece o procedimento arbitral como uma atividade jurisdicional que, assim como a atividade do Poder Judiciário, encontra limites, só que diferentemente deste, os limites são impostos pelas partes.

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Reconhece ainda que o escopo da Lei de arbitragem estaria esvaziado se as partes pudessem, sob qualquer justificativa, provocar o judiciário para lides apresentadas em procedimento arbitral. Assim, não sendo reconhecida sua natureza jurisdicional também para fins de conflito de competência, a sociedade estaria obrigada a conviver com decisões conflitantes de órgãos diferentes.

Não são raras as decisões que reconhecem a natureza jurisdicional da arbitragem, cite-se a titulo de exemplo a seguinte ementa do Superior Tribunal de Justiça:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. ARBITRAGEM. ACORDO OPTANDO PELAARBITRAGEM HOMOLOGADO EM JUÍZO. PRETENSÃO ANULATÓRIA. COMPETÊNCIADO JUÍZO ARBITRAL. INADMISSIBILIDADE DA JUDICIALIZAÇÃO PREMATURA. 1.- Nos termos do artigo 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem a alegação de nulidade da cláusula arbitral instituída em Acordo Judicial homologado e, bem assim, do contrato que a contém, deve ser submetida, em primeiro lugar, à decisão do próprio árbitro, inadmissível a judicialização prematura pela via oblíqua do retorno ao Juízo.

2.- Mesmo no caso de o acordo de vontades no qual estabelecida a cláusula arbitral no caso de haver sido homologado judicialmente, não se admite prematura ação anulatória diretamente perante o Poder Judiciário, devendo ser preservada a solução arbitral, sob pena de se abrir caminho para a frustração do instrumento alternativo de solução da controvérsia. 3.- Extingue-se, sem julgamento do mérito (CPC, art. 267, VII), ação que visa anular acordo de

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solução de controvérsias via arbitragem, preservando-se a jurisdição arbitral consensual para o julgamento das controvérsias entre as partes, ante a opção das partes pela forma alternativa de jurisdição. 4.- Recurso Especial a que se nega provimento.[9]

Há, contudo, posicionamento doutrinário contrário à natureza jurisdicional da arbitragem. Pela importância dos argumentos, trago-os para apreciação. São as seguintes razões trazidas pelo festejado Luiz Guilherme Marinoni[10]: ao escolher a arbitragem o sujeito realizou uma manifestação de vontade e, consequentemente, renunciou à jurisdição, o que retiraria o caráter jurisdicional da arbitragem.

Em outro sentido, Fredie Didier[11] afirma que a jurisdição é sim monopólio do Estado, mas que essa característica não corresponde à exclusividade do seu exercício. Com efeito, o Estado brasileiro autoriza o exercício da jurisdição por juízes privados, não apenas por meio da Lei 9.307/96, como também pela própria Constituição Federal de 1988 (art. 114, §§1º e 2º).

Outro argumento contrário ao caráter jurisdicional da arbitragem afirma que a jurisdição somente pode ser exercida por juiz devidamente investido, após a aprovação em concurso público, sendo esse poder indelegável (art. 93, I da CF/88). De logo, percebe-se que tal justificativa não deve prosperar. A investidura em cargos de juiz não ocorre exclusivamente por meio de concurso público, basta pensarmos nas nomeações para os Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais e os tribunais superiores, por exemplo.

A impossibilidade da delegação da jurisdição também não pode ser utilizada como argumento. A atividade judicante não é exclusiva do Poder Judiciário, basta lembrar das funções atípicas exercidas pelos demais poderes, como ocorre com o julgamento do Presidente da República pelo Senado Federal (art. 51, I da CF/88).

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E, “não há que se falar em delegação de poderes, pois os árbitros não tomam do Estado o exercício da jurisdição pública, mas, sim, exercem um tipo especial de jurisdição privada, autorizada pelo Estado.”[12]

De fato, estaríamos falando em delegação se o juiz, uma vez provocado, transferisse sua função para algum árbitro. Ora, tal delegação é vedada e viola não só os princípios da jurisdição, como a indelegabilidade, como também o princípio do juiz natural. Mas não é isso que ocorre, a escolha pela utilização do método da arbitragem é realizada pelos próprios envolvidos no litígio, não havendo nenhuma imposição da lei nesse sentido.

O princípio do juiz natural também não é violado pela suposta ausência de imparcialidade do árbitro. Nos contratos comuns, onde as partes estabelecem quem será o responsável pela decisão, presume-se que houve a escolha por alguém imparcial e independente, diferentemente poderá ocorrer nos contratos com a administração pública, conforme veremos adiante.

Fala-se ainda na violação do juiz natural por ausência de competência previamente estabelecida. Ora, na arbitragem os limites da competência do árbitro são fixados previamente ou após o surgimento do litígio, tendo a decisão arbitral que se restringir aos limites impostos sob pena de nulidade. Assim, tal argumento não merece prosperar.

A impossibilidade do árbitro de executar suas decisões também não pode ser argumento para afastar a natureza jurisdicional da arbitragem. Com efeito, tal requisito não é indispensável para atestar a natureza da atividade, cite-se, a título de exemplo, a possibilidade do Juiz de uma Vara Criminal atestar a existência de um valor mínimo de indenização a ser pago pelo condenado. Nesse caso, a execução do valor mínimo deverá ocorrer no juízo civil, não podendo ser realizado pelo juiz criminal. É a mesma situação do juízo arbitral. A lei estabeleceu sua competência apenas para certificar direitos, não para efetivá-los e

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isso não retira a natureza jurisdicional, apenas ausência de competência funcional.

A tese contrária diz ainda que a arbitragem é um instrumento bastante restrito, uma vez que apenas direitos disponíveis e pessoas que podem pagar pelos seus custos podem ser objeto de arbitragem, ademais, é utilizado, usualmente, para causas muito específicas do mundo empresarial, sobre assuntos que são desconhecidos pelos juízes. Ora, tal fato atesta uma realidade, mas não serve para retirar o caráter jurisdicional da arbitragem, apenas demonstra como a arbitragem vem sendo utilizada, o que, não proíbe a sua utilização para outras causa, inclusive gratuitas, sendo que, inclusive, há a possibilidade de sua instituição na Lei de Juizados Especiais (art. 24, Lei. 9.099/95).

Há, contudo, um argumento bastante coerente sobre a impossibilidade de caracterizar a arbitragem como uma atividade jurisdicional. Trata-se da possibilidade de controle judicial sobre suas decisões. De fato, em que pese as hipóteses de controle serem bastante restritas, essa característica estabelece, grosso modo, uma característica extrajudicial da decisão do arbitro.

Sobre o assunto, Fredie Didier Jr afirma que:

O argumento só é valido se se partir da premissa de que o arbitro não é juiz e pois a decisão do juiz estatal pertence a “outra estrutura”; ou seja, para que a conclusão seja correta ela mesma precisa ser a sua própria premissa. Quando a conclusão é igual à premissa (como árbitro não é juiz, e a sua decisão pode ser controlada por um juiz, então ele não é juiz), há tautologia. Se se partir de outra premissa, a de que o árbitro exerce jurisdição, a possibilidade de controle da validade de suas decisões pelo juiz estatal seria uma questão de distribuição de competência funcional: um órgão

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decide, outro controla a validade da decisão, como já acontece com a competência recursal e a competência para processar e julgar ação rescisória de sentença, atribuídas a órgãos distintos daquele que proferiu a decisão que se busca desconstituir. [13]

Afirma-se que não há hierarquia ou controle entre órgãos jurisdicionais, o que haveria seria uma repartição de competências funcionais onde o juiz de primeiro grau estaria sujeito ao julgamento dos recursos sobre suas decisões que, por sua vez, é de competência dos juízes de segundo grau e assim sucessivamente. Essa seria a justificativa para o controle exercido pelos juízes sobre as decisões dos árbitros não configurar controle externo judicial. De fato, o referido controle em muito se assemelha com o rito da ação rescisória, assim, para que se configure controle externo dependerá da natureza que se entenda possuir a decisão rescindida.

Assim, tendo a arbitragem natureza jurisdicional, passaremos a tratar sobre seus aspectos procedimentais trazidos pela lei que a criou.

ANÁLISE DA LEI 9307, DE 23 DE SETEMBRO DE 1996 –

DISPÕE SOBRE A ARBITRAGEM

A referida lei admite expressamente que as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para solucionar os seus conflitos, cabendo, a elas, inclusive, escolher entre julgamentos de equidade ou de direito e, escolhendo julgamentos de direito, poderão, inclusive, escolher as regras a serem aplicadas, desde que não violem os bons costumes ou normas de ordem pública. (art. 2º, §§1º e 2º).

Percebe-se, de pronto, a liberdade atribuída aos contratantes, uma vez que podem escolher não só o afastamento do litígio do meio judicial - forma de resolução de conflitos por excelência – como

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escolher a maneira com que o árbitro julgará, afastando inclusive a aplicação de leis.

Ressalte-se que com a Lei 13.129/15 a administração pública passou a poder utilizar a arbitragem expressamente, algo já reconhecido pela doutrina e por algumas legislações específicas. Para tanto, não poderá escolher a forma de julgamento, que sempre será de direito (art. 1º, §2º e §3º).

A lei ainda institui a diferença entre compromisso arbitral e cláusula compromissória. A grande diferença entre ambas é o momento em que são acordadas, já que a cláusula arbitral é colocada no contrato antes do surgimento do conflito, é condicionada a conflitos futuros, enquanto que o compromisso arbitral é previsto após o surgimento do conflito.

É possível que haja cláusula arbitral, mas que no momento de sua instituição uma das partes não tenha mais interesse, legitimando a outra para ingressar em juízo e requerer sua instituição (art. 7º). Após o ajuizamento da ação, o juiz tentará conciliar as partes, primeiramente sobre o objeto do litígio e depois sobre a realização do compromisso arbitral (art. 7º, §2º), não havendo acordo o juiz decidirá e acolhendo o pedido poderá desde logo nomear um árbitro, valendo sua sentença como cláusula arbitral.

A cláusula arbitral deve ser prevista por escrito, ainda que o contrato seja verbal, e, em contratos de adesão, somente poderá ser oposta se a parte aderente for aquele que tiver requerido a arbitragem ou que essa cláusula esteja em destaque e com assinatura especialmente sobre ela.

Essa formalidade, ainda que em contratos estritamente particulares, decorre do fato de que a arbitragem representa uma inegável renúncia à atividade jurisdicional. De fato, conforme vimos nos tópicos anteriores, a arbitragem não é somente uma forma extrajudicial de solução de conflitos, mas sim uma forma de substituição da própria jurisdição estatal por uma espécie de

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jurisdição particular. Como se sabe, ele representa uma renúncia à jurisdição e não pode ser compulsório já que lei não poderá excluir da apreciação do poder judiciário lesão a direito. É por isso que em cláusulas arbitrais previstas em contrato de adesão, quando uma das partes encontra-se em situação inferior à outra e não em condições de igualdade, instituídas como condição para a celebração do negócio, são consideradas abusivas e, portanto, podem ser invalidadas. Em razão disso, o art. 57, VII, do Código de Defesa do Consumidor, estabelece que: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) VII – determinem a utilização compulsória de arbitragem.”

Após a instituição válida de uma cláusula arbitral, o judiciário somente será chamado a intervir, nos termos da lei, na hipótese de uma das partes, após a notificação da instituição do juízo arbitral, não comparecer para firmar compromisso (art. 7º). Com efeito, o juiz será provocado apenas para que o compromisso arbitral seja iniciado, independentemente da concordância do réu (art. 7º, §7º).

A cláusula arbitral é autônoma em relação ao contrato que está inserida, isso faz com que a nulidade do contrato não afete necessariamente a cláusula arbitral. Por sua vez, caberá ao árbitro decidir acerca da existência ou validade do contrato e da cláusula arbitral (art. 8, paragrafo único).

Sobre essa supremacia da atividade do árbitro já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que caberá ao árbitro tanto decidir em relação às cláusulas arbitrais instituídas em contrato, como naquelas apostas em acordos judiciais, nos termos do §1º do art. 9 da lei.[14] Essa decisão somente demonstra o quão forte é a atividade arbitral e seu poder perante as partes que o instituiu.

Para o exercício da função de árbitro, a lei prevê dois requisitos específicos, quais sejam, ser ele pessoa física e ser capaz. Toda pessoa capaz poderá ser árbitro, desde que, obviamente, seja escolhida pelas partes. Aplica-se, contudo, as

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mesmas causas de impedimento e suspeição do juiz ao árbitro. (art. 14). Percebe-se que, mesmo que as partes concordem, a lei proíbe tal nomeação. Ademais, o árbitro será considerado funcionário público para fins penais, devendo atuar com imparcialidade, independência, competência, diligência e descrição (art. 13, §6º). Enfim, todas essas previsões servem para demonstrar a característica ímpar da atividade arbitral, algo que é corroborado com a previsão de que suas decisões não estão passiveis de recurso ou de homologação pelo judiciário.

Os honorários do árbitro serão fixados pelas partes, no compromisso arbitral, e constituirá título executivo extrajudicial, caso as partes não fixem os honorários, o árbitro poderá requerer que o Poder Judiciário o fixe por sentença (art. 11, parágrafo único).

A cláusula arbitral possui o mesmo atributo do contrato, qual seja, a de fazer lei entre as partes. Por isso que a lei não permite que uma parte que tenha originalmente aceitado a instituição de árbitro, desista posteriormente, existindo a possibilidade de suprir essa vontade por meio de decisão judicial, como já exposto acima. No entanto, a lei prevê razões para a extinção do compromisso arbitral, são elas: a recusa do árbitro indicado em aceitar a nomeação, desde que as partes tenham declarado, expressamente, não aceitar substituto; falecendo ou ficando impossibilitado de dar seu voto algum dos árbitros, desde que as partes declarem, expressamente, não aceitar substituto; e, por fim, se o prazo para apresentar a sentença arbitral fixado no compromisso não tenha sido cumprido pelo árbitro, desde que tenha tido notificação para a prolação da sentença. (art. 12).

Admite-se a revisão judicial da sentença arbitral apenas nos casos previstos no art. 32 da lei de arbitragem, que prevê causas em que é nula a sentença arbitral, são elas: se for nula a convenção de arbitragem (Lei 13.129/15); se decorreu de alguém que não poderia ser árbitro; não contiver os requisitos formas previstos em lei; proferida fora dos limites da convenção de arbitragem; proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva; proferida fora

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do prazo estipulado em lei e desrespeitados os princípios que a lei estabelece. Essas são as hipóteses taxativas de nulidade da sentença arbitral.

Esses aspectos gerais traçados da lei que regula a arbitragem no país servirá para ter uma noção de suas peculiaridades no momento em que ela for aplicada nos contratos com a administração pública.

MODIFICAÇÕES DA LEI 13.129/2015

O projeto de Lei 406 de 2013 de origem do Senado que altera a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, e a Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, para ampliar o âmbito de aplicação da arbitragem e dispor sobre a escolha dos árbitros quando as partes recorrem a órgão arbitral, a interrupção da prescrição pela instituição da arbitragem, a concessão de tutelas cautelares e de urgência nos casos de arbitragem, a carta arbitral, a sentença arbitral e o incentivo ao estudo do instituto da arbitragem.

Da leitura dos artigos do projeto, percebe-se uma clara intenção do legislador em atualizar o instituto às nuanças da sociedade moderna, tratando, dentre outros temas, da aplicação do instituto aos contratos com a administração pública.

Na justificação para a reforma, os parlamentares reconhecem a importância da arbitragem, afirmando que com o processo de crescimento, o Brasil vem sendo palco de inúmeros negócios internacionais que, dada a possibilidade de especialização dos árbitros, a arbitragem surge como um instrumento capaz de solucionar os conflitos técnicos surgidos nessa seara.

Aduz, ainda, que decorridos mais de 17 anos da edição da Lei de arbitragem, o avanço tecnológico e social, acarretou profundas alterações nas leis processuais e na jurisprudência em torno do instituto, o que justifica sua modernização. Ademais, com o resultado positivo advindo da utilização da arbitragem nos últimos

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anos, torna-se necessário adaptá-la para que possa ser utilizada em outros tipos de demandas, contribuindo, assim, para o descongestionamento do Poder Judiciário.

Reconhece que a estrutura do procedimento em si continuará mantida, tendo sido proposta apenas alterações pontuais visando a sua modernização. Para tanto, consultas foram realizadas às leis e diretrizes da comunidade internacional que já utilizam da arbitragem há mais tempo, a exemplo da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Lei modelo de arbitragem internacional elaborada pela United Nations Comission on International Law (UNCITRAL), além da Convenção para o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras firmada em 1958 na cidade de Nova York, e a Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial firmada no Panamá.

A grande inovação deste projeto de Lei, em nossa opinião, é a previsão expressa da possibilidade de utilização da arbitragem para dirimir conflitos decorrentes de contratos firmados por empresas com a Administração Pública, como forma de transmitir confiança ao investidor estrangeiro, notadamente quando se tem em mente grandes obras e eventos de nível mundial. Realidade essa que já era possível na atualidade, mas que não possuia regras bem definidas, o que tornava sua aplicação, ainda, bastante controvertida.

Tal projeto restou convertido na Lei 13.129/15 que trouxe uma série de novidades ao instituto. Começando pela previsão de que: “A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”; completando, ainda, com a determinação de que a autoridade ou órgão responsável pela celebração de convenção de arbitragem será a mesma autorizada a realizar acordos ou transações.

A arbitragem envolvendo a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade. Tal

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previsão é importantíssima em razão do princípio da legalidade aplicável à administração.

Previa, ainda, a necessidade de previsão de cláusula arbitral em contratos de adesão ser regida em negrito ou em documento apartado, mantendo a proteção pela proibição da cláusula compulsória.

Tal regra restou vetada pela Presidenta da República pelas seguintes razões:

Da forma prevista, os dispositivos alterariam as regras para arbitragem em contrato de adesão. Com isso, autorizariam, de forma ampla, a arbitragem nas relações de consumo, sem deixar claro que a manifestação de vontade do consumidor deva se dar também no momento posterior ao surgimento de eventual controvérsia e não apenas no momento inicial da assinatura do contrato. Em decorrência das garantias próprias do direito do consumidor, tal ampliação do espaço da arbitragem, sem os devidos recortes, poderia significar um retrocesso e ofensa ao princípio norteador de proteção do consumidor. (MENSAGEM Nº 162, DE 26 DE MAIO DE 2015.)

Dispõe ainda sobre a interrupção da prescrição em razão da instituição da arbitragem, afirmando que a contagem da mesma retroage à data do requerimento da instauração, ainda que a arbitragem seja extinta por ausência de jurisdição.

Atualizou a necessidade de homologação da Sentença estrangeira pelo Superior Tribunal de Justiça e não mais pelo Supremo Tribunal Federal, após a modificação da referida competência imposta pela Emenda Constitucional 45 de 2004.

CONCLUSÃO

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Cada vez mais a arbitragem vem se tornando um importante mecanismo de solução de conflitos. Por essa razão, a doutrina, leis e jurisprudência estabeleceram importantes marcos que solucionaram, ao menos inicialmente, algumas questões controvertidas do instituto. Isso não quer dizer que a evolução social não demande novas alterações.

Com efeito, alguns pontos continuam em discussão na doutrina e jurisprudência, como a aplicação do instituto em contratos de consumo e em algumas relações com a administração pública.

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NOTAS:

[1] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 15 ed. Salvador-Bahia: Juspodivn. 2013, p.107

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[2] GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido e CINTRA, Antônio Carlos Araújo. Teoria Geral do Processo. 29 ed. Malheiros, 2013. p.139.

[3]DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 15 ed. Salvador-Bahia: Juspodivn. 2013, p.115.

[4]NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Método, 2009, p. 5.

[5]NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Método, 2009, p. 6.

[6] NERY JR, Nelson; NERY, Rosa. Código de Processo Civil Comentado. 9ª ed. São Paulo: RT, 2006, p. 279.

[7] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 15 ed. Salvador-Bahia: Juspodivn. 2013, p.120.

[8] GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido e CINTRA, Antônio Carlos Araújo. Teoria Geral do Processo. 29 ed. Malheiros, 2013

[9] STJ - RECURSO ESPECIAL : REsp 1288251 MG 2011/0250287-8

[10] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2006, p. 147 e ss.

[11] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 15 ed. Salvador-Bahia: Juspodivn. 2013, p.122.

[12] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 15 ed. Salvador-Bahia: Juspodivn. 2013, p.123.

[13] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 15 ed. Salvador-Bahia: Juspodivn. 2013, p.124.

[14] REsp 1.302.900-MG, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 9/10/2012.

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A POSSIBILIDADE DE CONFIGURAÇÃO DA MULTIPARENTALIDADE E SEUS REFLEXOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

THIAGO AUGUSTO BARBOSA FERREIRA: Advogado, formado pelo Centro Universitário de Patos de Minas/MG - UEMG, professor, ex- Procurador do Município de Araras-SP. Pós Graduado em Direito Tributário.

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo a analise acerca da possibilidade de configuração da multiparentalidade quando da coexistência de múltiplos vínculos de filiação, abordando seus reflexos jurídicos no atual ordenamento brasileiro. Neste passo, buscou-se apresentar as novas interpretações do direito de família com um viés eminentemente constitucional, pautado, sobretudo, nos princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade. Tratou-se da evolução estrutural do conceito de família, o que também refletiu nas relações de filiação, surgindo diversos conflitos, principalmente no que concerne aos seus diferentes critérios de fixação (biológico, registral e socioafetivo). Diante desses impasses, trouxe à baila os elementos específicos de caracterização da multiparentalidade e seus relevantes efeitos. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, aliado a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, analisando, ainda, casos concretos em que houve a utilização do famigerado instituto.

PALAVRAS-CHAVE: Parentalidade Socioafetiva. Multiparentalidade. Direito de Família. Filiação.

SUMÁRIO: 1 Considerações Iniciais; 2 Definição de Família: Aspecto Clássico e Contemporâneo; 3Princípios do Direito de Família; 3.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; 3.2 Princípio da Solidariedade Familiar; 4 Afetividade; 5 Filiação; 5.1 Filiação Legal e Registral; 5.2 Filiação Biológica; 5.3

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Filiação Socioafetiva; 6 Multiparentalidade; 6.1Caracterização; 6.2 Efeitos; 6.3 Decisões Recentes de Aplicação da Multiparentalidade; 7 Considerações Finais; Referências.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 226 que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Neste ponto, o legislador constituinte positivou a proteção do instituto essencial para a evolução da sociedade.

Tem-se por família um grupo de pessoas formadas por um vínculo biológico/afetivo, em busca da realização plena e felicidade de seus componentes.

Contudo, a família, como estrutura social, sofreu diversas mudanças ao longo do tempo. Na Roma antiga, por exemplo, o conceito de família tinha um caráter econômico, abrangendo não só aqueles ligados por laços biológicos e civis, bem como os bens, escravos e produtos do pater (aquele que possuía o poder).

Modernamente, apesar do conceito de família no Brasil descender do direito romano, qual seja, o de família monogâmica, patriarcal, hierárquica, com fins reprodutivos e preocupação acerca da preservação patrimonial, com o advento do Estado Social, ao longo do século XX, houve o surgimento de novos valores, culminando na constitucionalização do Direito das Familias.

Neste cenário, observa-se que a Constituição Federal deu especial atenção à filiação, inclusive dando absoluta prioridade na proteção de seus direitos, evidenciando uma preocupação em garantir o pleno desenvolvimento físico, psíquico e moral de todos os filhos.

Partindo destas premissas, e tendo em vista as conceituações e direitos presentes na legislação infraconstitucional,

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especialmente no Código Civil de 2002, surgem novas demandas a serem dirimidas pelo judiciário, como é o caso da multiparentalidade.

O objetivo do presente artigo é analisar a possibilidade da configuração da multiparentalidade e seus reflexos jurídicos, tendo como base a posição doutrinária e jurisprudencial.

Trata-se de uma discussão nova no ordenamento jurídico, pois, até então, tinha-se que um critério de fixação de filiação excluiria o outro. Contudo, em determinadas situações, tem-se que poderá haver uma complementação de um critério pelo outro, proporcionando uma multiplicidade de parentalidades, ou seja, a multiparentalidade.

Para a elaboração do presente artigo, dividiu-se o estudo em três capítulos. No primeiro capítulo, buscou-se analisar os atuais contornos e princípios do Direito das Famílias, especialmente à luz da Constituição Federal. No segundo capítulo, identificou-se os critérios de fixação da filiação, abordando-se, em especial, o critério da parentalidade socioafetiva. E por fim, no terceiro capítulo, abordou-se a configuração da multiparentalidade, destacando seus requisitos, efeitos e características.

Para tanto, utilizou-se do método dedutivo, aliado a pesquisa bibliográfica, documental, doutrinária, analisando casos concretos em que houve a aplicação da multiparentalidade em decisões por diversos tribunais do território brasileiro.

2 DEFINIÇÃO DE FAMÍLIA: ASPECTO CLÁSSICO E CONTEMPORÂNEO

A família é alicerce fundamental da sociedade. Por ela, entende-se como relação jurídica/afetiva formada por indivíduos que se ligam por laços biológicos ou afetivos, visando a evolução de todos seus membros dentro de uma sociedade livre e igual.

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Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 02) família – estrutura básica social – é onde se inicia a moldagem da potencialidade do ser humano, com proposito da convivência em sociedade e da busca de sua realização social.

No entanto, para a melhor compreensão do instituto, faz-se necessário a abordagem de sua evolução histórica, abordando, principalmente, as conceituações do Código Civil de 1916 e as alterações realizadas com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, pelo Código Civil de 2002.

O CC/16 tinha uma visão extremamente tipificada do conceito de família. Por família entendia-se apenas aquela matrimonializada, ou seja, só se considerava família aquela advinda do casamento. Ainda, detinha-se da figura do homem o chefe da família, hierarquicamente superior a todos os outros indivíduos. Não se admitia por família qualquer outra espécie se não a heteroparental (aquela formada por pessoas de sexo diferentes). Ressalta-se, em relação à filiação, que a adoção não estabelecia vínculo definitivo de parentesco, aliás, a morte do adotante restabelecia o vínculo biológico. Por fim, a família era uma instituição indissolúvel, um fim em si mesmo.

Com o advento do Estado Social (pós-modernidade), acima de tudo, com a promulgação da CF/88, houve uma evolução conceitual no instituto familiar.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 06) lecionam que a transição da família como unidade econômica para uma compreensão igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma nova feição, agora fundada no afeto. Afirmam ainda, que a evolução conceitual permitiu entender família como uma organização subjetiva fundamental para a construção individual de felicidade.

Nesse passo, temos na CF/88 e no CC/02, com fundamento no afeto, que a família passou a ser uma instituição pluralizada, ou seja, deixa de existir um único meio de constituir a

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família. O casamento deixa de ser o único meio de constituir família (a exemplificar: possibilidade de configuração da família monoparental e união estável). Ainda, passa ser uma instituição democrática, onde o homem, mulher e os filhos passam a ser iguais perante a lei, inexistindo hierarquia familiar. Ressalta-se que esta igualdade é uma igualdade substancial, admitindo-se tratamento desigual onde houver desigualdade. A sua configuração deixa de ser necessariamente heteroparental, surgindo a possibilidade de famílias homoparentais ou monoparentais. Seus laços de constituição deixam de ser obrigatoriamente biológicos, admitindo-se constituição socioafetiva. Desta forma, o conceito familiar deixa de ser um fim em si mesmo, passando a ter um conceito gravitacional no mundo jurídico, onde a sua constituição visa proteger os seus integrantes.

Consagrando esse entendimento, Maria Berenice Dias (2011, p. 55) afirma que a busca da felicidade, a supremacia do amor, a vitória da solidariedade ensejam o reconhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e de preservação da vida. Esse, dos novos vértices sociais, é o mais inovador.

3 PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Com o advento da Constituição Federal de 1988, houve a consagração de diversos princípios norteadores das interpretações jurídicas no Brasil. Trata-se de uma evolução conceitual, característica do Estado Social em que nos encontramos, onde o legislador busca intervir em setores da vida privada como forma de proteger o cidadão.

Conforme preleciona a doutrinadora Maria Berenice Dias (2011, p. 36-37), o direito civil, como não poderia deixar de ser, afastou-se da concepção individualista, tradicional e conservadora da época das codificações do século passado. Agora, qualquer norma jurídica de direito das famílias exige a presença do fundamento de validade constitucional.

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Neste sentido, a CF/88 trouxe significativas mudanças ao Direito das Famílias, ao promover a igualdade plena entre os filhos havidos ou não da constância do casamento ou adoção (art. 227, §6º); ao estabelecer o planejamento familiar em observância ao princípio da dignidade da pessoa humana e paternidade responsável (art. 226, §5º); ao reconhecer a união estável e a família monoparental (art. 226, §§ 3º e 4º); e ao estabelecer o dever do estado, da sociedade e da família de garantir a criança e ao adolescente os direitos inerentes a sua personalidade (art. 227, §§ 1º a 5º e 7º).

Na CF/88 há uma enormidade de princípios implícitos e explícitos do Direito das Famílias. Na presente pesquisa serão abordados os que são importantes para a compreensão do tema em questão.

O Direito das Famílias atual rege-se, principalmente, pelos princípios do respeito à dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da afetividade. A seguir será analisado cada um desses princípios.

3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Expressamente positivado pela CF/88, em seu artigo 1º, inciso III, o princípio da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Dada sua generalidade, a conceituação tende a ser a mais abrangente possível, pois trata-se de princípio nuclear da ordem constitucional.

Maria Berenice Dias (2011, p. 62) explica que o princípio da dignidade da pessoa humana é o mais universal de todos os princípios. É um macroprincípio do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade, uma coligação de princípios éticos.

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Os doutrinadores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2009, p. 124), ensinam que a dignidade da pessoa humana é um postulado fundamental da Constituição, por elevar o ser humano ao centro do sistema jurídico, reunindo todos os valores e direitos reconhecidos à pessoa, tanto à integridade física quanto a psíquica. Além disso, garante a autonomia e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa, sendo, portanto, o mais precioso valor da ordem jurídica.

Nesse mesmo sentido, Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 7) aduz que o princípio da dignidade forma a base da comunidade familiar, já que garante o pleno desenvolvimento de todos os seus membros, especificamente da criança e do adolescente.

Diante de tais explanações, observa-se houve que houve uma personificação dos institutos jurídicos, de modo que a pessoa humana é o centro da proteção do direito.

Assim, no tocante ao Direito das Famílias, a repercussão deste princípio se dá substancialmente na concepção de aceitação das mais variadas formas de família. Pontua com absoluta propriedade Maria Berenice Dias (2011, p. 63) ao afirmar que a dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem. A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum –, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas.

Pelo exposto, observa-se que o princípio, ao abranger e proteger toda e qualquer tipo de entidade familiar, protegeu também os filhos, repudiando qualquer tipo de diferenciação entre eles, principalmente quando se tratar de suas origens.

3.2 PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR

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O princípio da Solidariedade Familiar, previsto na CF/88 em seu artigo 3º, inciso I, é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Trata-se de princípio abalizadamente advindo dos vínculos afetivos entre os membros de uma entidade familiar. Por ele, membros de uma família devem prestar auxílio mútuo, convivendo em um meio de fraternidade e reciprocidade.

Conforme explica Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 27), a solidariedade repercute nas relações familiares, já que é tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros. O disposto no artigo 229 da CF prova tal afirmação, ao revelar o dever dos pais de dar assistência aos filhos e no dever da família, da sociedade e do Estado em dar proteção à criança e ao adolescente.

A título de exemplo, observa-se que a obrigação de alimentos decorre deste princípio, onde não só os ascendentes devem prestar assistência aos seus descentes, bem como o seu inverso. Deste caso, extrai-se o viés de reciprocidade da solidariedade.

Urge salientar que a solidariedade não é só patrimonial, é também afetiva e psicológica. Neste vértice, o princípio deve ser compreendido de uma maneira mais abrangente, abordando tanto o aspecto material, como é o caso dos alimentos, como também na acepção fraternal, viabilizando o pleno desenvolvimento dos membros de uma família, aliado ao conceito de aceitação das mais variadas formas de configuração de unidades familiares.

Neste ponto, o princípio da solidariedade familiar se faz imprescindível na aplicação ao instituto da multiparentalidade, objeto de estudo em capítulo posterior.

4 AFETIVIDADE

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A CF/88, nossa Carta Política, trouxe diversos princípios, implícitos ou explícitos em seu texto. Dentre os princípios implícitos na norma constitucional, encontra-se o princípio da Afetividade, decorrente da interpretação sistêmica do ordenamento jurídico pátrio.

Trata-se de verdadeira divergência doutrinária. Da interpretação da obra de Canotilho, extrai-se que o princípio da afetividade, em verdade, não se trata de um princípio, pois princípios tem força normativa. Cuida-se de um valor jurídico, paradigmas referenciais, almejados pelo direito de família.

Contudo, Tartuce e Simão (2010, p. 47) afirmam que o afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto do texto maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade da pessoa humana.

Desta forma, inicialmente, observa-se que este princípio decorre do macroprincípio da dignidade da pessoa humana e está diretamente ligado aos princípios da convivência familiar e solidariedade familiar.

Por ele, observa-se que o afeto é a relação de sentimento e solidariedade, com o objetivo de garantir a felicidade, existente entre os membros de uma instituição familiar, garantindo-lhes plena igualdade. Trata-se de princípio norteador do direito das famílias.

Maria Berenice Dias (2012, p. 71) aponta ainda que, na esteira da evolução do princípio do afeto, o direito das famílias instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico ao afeto.

Tendo o princípio da afetividade como base, extrai-se um importante instituto para, posteriormente, conceituarmos a filiação socioafetiva: a posse do estado de filho.

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A posse do estado de filho nada mais é do que uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação diante de terceiro como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai.

Mesmo não previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro, a aplicação do referido instituto extrai-se do artigo 1.605, inciso II, do Código Civil, que determina:

Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá prova-se a filiação por qualquer modo admissível em direito:

[...]

II – quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.

Reforçaremos a conceituação do instituto ao tratar da filiação socioafetiva.

5 FILIAÇÃO

Trata-se de instituto jurídico que vincula a figura dos sujeitos de uma instituição familiar. Maria Berenice Dias (2012, p. 357) exalta que a absoluta impossibilidade do ser humano sobreviver de modo autônomo – eis que necessita de cuidados especiais por longo período – faz surgir um elo de dependência a uma estrutura que lhe assegure o crescimento e pleno desenvolvimento.

Cumpre salientar que, historicamente, a filiação era caracterizada de forma discriminatória, diferenciando os filhos de acordo com sua origem: em filhos legítimos (advindos da relação matrimonial) ou ilegítimos (havidos fora do casamento). Tal classificação tinha o viés de preservar o patrimônio familiar.

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Ressalta-se que, na esteira deste entendimento, o Código Civil de 1916 trazia um repudiado dispositivo (artigo 16) afirmando que os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos.

Com o advento do Estado Social, mormente com a promulgação da CF/88, houve a proibição do tratamento discriminatório quanto à filiação, independente da origem dos filhos ou da espécie de filiação, conforme positivado pelo artigo 227, §6º, da CF, e reproduzido pelo artigo 1.596 do CC/02.

Passemos, então, a explanação sobre os diferentes critérios de constituição dos vínculos de parentalidade, ressaltando que não existe qualquer espécie de graduação entre eles.

5.1 FILIAÇÃO LEGAL E REGISTRAL

Por filiação legal entende-se hipóteses em que a parentalidade é presumida, de forma relativa, aos casos expressamente previstos em lei, aplicando-se, contudo, também aos casos equiparados, como por exemplo à União Estável.

Noutro vértice, a filiação registral é meio de reconhecimento de parentalidade. Nos termos do artigo 1.609 do CC/02, faz-se por meio de escritura pública, escrito particular, testamento ou declaração manifestada perante o juiz.

Salienta-se que, por ser obtido através de ato voluntário, é irrevogável, podendo, contudo, ser invalidado por erro ou falsidade.

Maria Berenice Dias (2011, p. 365) leciona, ainda, que o impedimento à busca de estado contrário ao que consta do registro não obstaculiza o direito fundamental do filho de vindicar a origem genética, pois trata-se de direito imprescritível. Assim, mesmo quem é registrado como filho de alguém não está inibido de intentar ação declaratória de paternidade para conhecer sua ascendência biológica.

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Por fim, em relação a este critério de constituição da filiação, importante ressaltar o instituto conhecido como “adoção à brasileira”. Trata-se de prática comumente perpetrada nas pequenas cidades brasileiras onde, um sujeito, ciente de que não possui qualquer vínculo biológico com a criança, a registra como se seu filho fosse, de modo livre e voluntário, movido por sentimentos de afeto e generosidade, não cabendo, posteriormente, qualquer tipo de alegação quanto a erro ou falsidade para a desconstituição do vínculo. Contudo, tal atitude configura-se crime (artigo 242 do Código Penal), além de não ser estimulado pela doutrina. Por outro lado, não se pode ignorar o fato de que este ato gera efeitos decisivos na vida da criança adotada, como a futura formação da parentalidade socioafetiva.

5.2 FILIAÇÃO BIOLÓGICA

Trata-se de critério objetivo de fixação da parentalidade, onde a relação se estabelece por laços de sangue, gerando uma herança genética do genitor ao seu filho.

Julga-se como critério objetivo, pois, com os avanços científicos na área da medicina genética, os exames de DNA são plenamente constituídos de certeza jurídica e biológica.

Abordando tal certeza dos exames de DNA, STJ firmou entendimento, inclusive editando a súmula 301, de que em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA, induz a presunção juris tantum de paternidade.

Contudo, em que pese a certeza deste critério de fixação da filiação, o juiz tem liberdade de apreciação dos meios de prova, em sendo o caso de que mesmo se conhecendo o verdadeiro genitor biológico (seja pela realização do exame de DNA ou pela negação do suposto pai à realiza-lo), a decisão pode pautar-se no próximo critério a ser estudado, qual seja, o da parentalidade afetiva.

5.3 FILIAÇÃO AFETIVA

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Inicialmente, temos que a previsão legal que possibilita a configuração desta espécie de filiação está no artigo 1.593 do Código Civil, ao passo de que esclarece que o parentesco pode resultar da consanguinidade ou de outra origem:

Art. 1.593: O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.

Desta forma, a doutrina tem identificado elementos para que a jurisprudência possa interpretá-lo de forma mais ampla, abrangendo, também, as relações de parentesco socioafetivas.

Por permitir outra origem de parentesco, caso galgada substancialmente no afeto, o art. 1.593 autoriza que se reconheça a parentalidade socioafetiva como forma de parentesco, consoante o que se pode observar no enunciado 256 do CJF:

Enunciado 256 do CJF – Art. 1.593: a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.

Assim, extrai-se que a filiação sociafetiva pode ser definida como o vínculo de parentesco que não possuem entre si um vínculo biológico, mas que vivem como se fossem, em decorrência do forte vínculo afetivo existente entre elas. Este forte vínculo afetivos de que trata a conceituação é o que chamamos de posse do estado de filho e deve perdurar por razoável duração de tempo.

Como requisitos para a caracterização da parentalidade socioafetiva, a doutrina ressalta os seguintes: a nominatio, a tractatus e a reputatio. Assim sendo, a nominatio corresponde ao nome; a tractatus é ser tratado como filho, e nessa qualidade lhe seja dado educação, meios de subsistência, etc.; já a reputatio é que o público o tenha sempre como tal. Observa-se que o requisito da nominatio é dispensado pelo entendimento de certos autores.

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Em razão disso, e tendo em vista as vedações constitucionais à diferenciação das diversas formas de filiação, temos que os filhos socioafetivos devam possuir os mesmos direitos dos demais.

Por oportuno, ressalta-se um caso importante de configuração da parentalidade socioafetiva: as relações com padrastos e madrastas.

Modernamente, após a evolução das famílias e superação de sua configuração eminentemente patriarcal, além do advento da Lei do Divórcio, a sociedade passou a aceitar o divorciado como se solteiro fosse, ou seja, sem excluí-lo do grupo em que vive. Dessa forma, quando um casamento não dá certo, as pessoas se divorciam e se casam novamente, levando filho de outros relacionamentos, que acabam sendo criados pelo outro cônjuge. Existindo laços de afetividade entre o padrasto/madrasta com seu enteado, nada impede a constituição da parentalidade socioafetiva, devendo, nesta hipótese, ser incluída a paternidade ou maternidade no assento de nascimento, sem a retirada do pai ou mãe biológico, consignando-se verdadeiro caso de multiparentalidade, objeto de estudo do próximo capítulo.

6 MULTIPARENTALIDADE

Preliminarmente, necessário se faz conceituar o instituto da multiparentalidade. Trata-se da possibilidade de coexistência de múltiplos vínculos de filiação, sem que um exclua o outro, especialmente no caso da parentalidade socioafetiva e biológica.

Como já explicitado em outros tópicos, a multiparentalidade é resultado de uma mudança conceitual que se deu no conceito de família. Atualmente, a instituição familiar está pautada fundamentalmente na afetividade, reciprocidade e igualdade entre seus membros.

Porém, a aplicação do instituto da multiparentalidade ainda é polêmica, sendo certo que as primeiras decisões nos

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tribunais brasileiros sobre o tema foram no sentido de que seria impossível sua aplicação, ante a impossibilidade de que ninguém poderia ser filho de dois pais ou duas mães, dada a ausência de previsão legal.

Tal entendimento foi o aplicado neste acórdão de TJRS:

“APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO ADESIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. ADOÇÃO À BRASILEIRA E PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. ALIMENTOS A SEREM PAGOS PELO PAI BIOLÓGICO. IMPOSSIBILIDADE. Caracterizadas a adoção à brasileira e a paternidade socioafetiva, o que impede a anulação do registro de nascimento do autor, descabe a fixação de pensão alimentícia a ser paga pelo pai biológico, uma vez que, ao prevalecer a paternidade socioafetiva, ela apaga a paternidade biológica, não podendo coexistir duas paternidade para a mesma pessoa. Agravo retido provido à unanimidade. Apelação provida, por maioria. Recurso adesivo desprovido à unanimidade. (TJRS; Apelação Cível 70017530965; 8ª Câmara; Rel. Des. José S. Trindade; julgado em 28/06/2007; publicado em 05/07/2007).”

Por certo, os posicionamentos jurisprudenciais estão se alterando, pois é possível encontrar mais decisões que aplicam o instituto do que decisões que o negam validade jurídica. Decisões favoráveis serão explicitadas em capítulo próprio.

Diante do exposto, se faz necessário delinear com clareza os contornos da multiparentalidade, para ao final concluir se é possível ou não a aplicação do instituto, bem como aferir quais são seus efeitos.

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6.1 CARACTERIZAÇÃO

Para o melhor entendimento do instituto, devemos partir da premissa, já abordada, de que uma parentalidade não deve prevalecer sobre a outra. Contudo, necessário deixar consignado que, em havendo conflito entre a parentalidade socioafetiva e a biológica, por aquela envolver o aspecto sentimental criado entre parentes não biológicos, temos que os atos de convivência, vontade e amor devam prevalecer em relação à biológica.

Ressalta-se que o ideal para o pleno desenvolvimento do filho seria a concentração de todas as espécies de fixação da filiação em uma única pessoa. Ou seja, busca-se que o pai biológico seja também o registral e afetivo. No entanto, não é sempre desta forma que acontece. Excluindo-se as hipóteses onde o litígio prevalecerá na decisão da fixação da parentalidade, tem-se que pode haver a simultaneidade dos critérios.

Por conseguinte, em havendo uma pacífica aceitação entre as diversas formas de fixação da filiação, tendo em vista o melhor interesse da criança e a atual sistemática de proteção constitucional, as parentalidade são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas. Desta forma, a coexistência se faz necessária para melhor atender a conveniência da criança.

Ora, imaginemos o caso em que uma criança, desde a sua criação, tenha no pai afetivo a sua principal referência, tendo ele exercido todos os deveres de assistência moral, afetiva e patrimonial. Posteriormente, com o crescimento da criança e a evolução gradativa de sua personalidade, suponhamos que o pai biológico tome ciência deste seu filho e empenhe-se em se aproximar e criar laços afetivos. Após uma convivência harmoniosa com o pai afetivo e com o pai biológico, teria o filho que escolher entre qual dos dois deveria constar em seu assento de nascimento? Deveria o filho promover uma ação de destituição da paternidade registral daquele que sempre lhe ofertou afeto e assistência? Por óbvio, não seria razoável obrigar o filho a realizar tal escolha,

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devendo ser reconhecido o instituto da multiparentalidade, garantindo-lhe todos direitos de filiação em relação a ambos os pais (pai afetivo e pai biológico).

Póvoas (2012, p.78) esclarece ainda que não há como negar que fere a dignidade do pai afetivo e viola o princípio da afetividade simplesmente extirpar a relação parental entre ele e aquela pessoa que sempre teve como filho, por não haver entre eles liame biológico. Conclui ainda, Póvoas (2012, p. 79), aduzindo que não se pode negar que ao pai biológico foi sonegada a possibilidade de tentar ter relação afetiva com seu filho, pois se omitiu dele a informação de eu havia tido um filho. Essa relação afetiva, não há dúvida, pode ser estabelecida posteriormente.

Ex positis, extrai-se de todo já explanado neste artigo que não existe, atualmente no ordenamento jurídico, qualquer vedação legal para a configuração da multiparentalidade, sendo imprescindível a possibilidade de sua constituição para melhor atender os interesses da criança ou adolescente, além de preservar o princípio da dignidade da pessoa humana de cada indivíduo envolvido.

No próximo tópico serão analisados os principais efeitos causados pela declaração da multiparentalidade.

6.2 EFEITOS

Temos que, para a declaração da multiparentalidade, forçoso se faz que seja através de decisão judicial devidamente fundamentada, determinando que seja adicionado ao registro de nascimento o nome do novo pai ou mãe, dando-se publicidade para produzirem, de forma mais efetiva, todos os regulares efeitos de filiação. Além do mais, nos temos do art. 1.603, facilitará a prova da filiação, já que a certidão expedida pelo cartório fará prova plena do que já ocorreu no processo judicial.

Desta forma, os efeitos gerados serão os mesmos de qualquer espécie de filiação, produzindo reflexos em relação a

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todos os pais. Ressalta-se que, como toda e qualquer modalidade de filiação, os efeitos produzidos serão ex tunc, ou seja, retroagem à data do nascimento ou concepção do filho, a depender do caso.

Avançando, de modo a individualizar alguns efeitos, quanto aos direitos/deveres de direção, temos que todos os pais possuirão o exercício do poder familiar, inclusive é assegurado a cada um deles recorrer ao juiz para a solução de desacordo, por força do parágrafo único do art. 1.631 do Código Civil, que estabelece:

1.631. [...].

Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo.

Observa-se que deve se aplicar a aludida previsão legal ainda que pelo desacordo instaurado haja a decisão da maioria dos pais em algum dos sentidos, sendo certo que o juiz verificará o que é melhor para o filho.

Devemos ressaltar, ainda, que vários artigos do Código Civil estabelecem previsões fixando no “pai e mãe” a decisão de questões relacionadas aos filhos. Nesta hipótese, a interpretação deduzida seria a de que este conceito, no caso da multiparentalidade, deve englobar todos os pais declarados pela decisão.

No tocante aos direitos patrimoniais, notadamente relacionados a alimentos e herança, temos que serão os mesmos critérios já previstos na legislação pátria, ressaltando que, em relação aos alimentos, deve-se observar o binômio necessidade-possibilidade.

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Configurada a multiparentalidade e estabelecido seus principais efeitos, passemos então à casos práticos onde houve a aplicação do instituto.

6.3 DECISÕES RECENTES DE APLICAÇÃO DA MULTIPARENTALIDADE

Por derradeiro, oferta-se, neste tópico, decisões judiciais onde há a aplicação prática do instituto da multiparentalidade pelos diversos estados brasileiros.

Como primeiro exemplo, temos uma das inovadoras decisões de configuração da multiparentalidade. Trata-se de sentença proferida em sede de primeiro grau pela juíza de direito da 1ª Vara Cível da Comarca de Ariquemes/Rondônia Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz.

Neste caso, temos que a filha, representada por sua genitora, ingressou com ação de investigação de paternidade cumulada com anulação de registro civil em desfavor de seu pai biológico e de seu pai registral (afetivo). A autora alegou que sua genitora tornou-se companheira do seu pai biológico ainda na adolescência, cuja união perdurou por 04 anos, tempo de sua concepção. Sustentou que antes de tomar conhecimento de sua gestação, sua genitora separou-se do seu pai biológico e passou a conviver com seu pai registral (afetivo), que ciente da situação, decidiu reconhecer juridicamente sua paternidade, convivendo juntos até seus 04 meses de vida. Ao tomar conhecimento da possibilidade de alterar seu registro de nascimento, sua genitora decidiu ajuizar a demanda para lançar o nome do pai biológico em seu assento de nascimento em substituição do pai registral (afetivo). Realizado estudos no caso, constatou-se que a filha mantém relações de estreita afetividade com seu pai biológico e seu pai registral (afetivo). Extrai-se também que não houve qualquer erro ou coação ao pai registral (afetivo) reconhecer a paternidade da autora, mormente porque tinha ciência e era sabedor que não se trava de sua filha biológica. Com o nascimento da autora, o pai

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registral (afetivo) efetuou o registro como se sua filha fosse e com ela estabeleceu forte vínculo afetivo, desde sempre se considerando como pai dela. E a recíproca é verdadeira. O estudo realizado revelou que a autora nutre fortes laços de amor pelo pai registral (afetivo).

Noutro giro, a autora conheceu seu pai biológico somente na audiência de coleta do material para exame de DNA, e com seus 11 anos de idade, mostrou-se feliz em contatar seu possível pai biológico. Com o resultado positivo da paternidade, o pai biológico se aproximou da autora, presenteando-a e levando-a para conhecer a família paterna.

Neste contexto, dessume-se que restou evidente o amor e carinho que a autora mantem com seu pai registral (afetivo) e com seu pai biológico.

Desta forma, a pretendida declaração de inexistência do vínculo parental entre a autora e o pai registral (afetivo) fatalmente prejudicará seu interesse, que diga-se, tem prioridade absoluta, e assim também afronta a dignidade da pessoa humana. Não há motivo para ignorar o liame socioafetivo estabelecido durante anos de vida de uma criança que cresceu e manteve o estado de filha com outra pessoa que não seu pai biológico, sem atentar para a evolução do conceito jurídico de filiação.

Diante de todo o exposto e a singularidade da causa, ponderou a juíza de direito por considerar a manifestação de vontade da autora no sentido de que possui dois pais, aliado ao fato de que o pai registral (afetivo) não deseja negar a paternidade afetiva e o pai biológico pretende reconhecer seu critério de paternidade, e acolhendo a proposta do Ministério Público, reconheceu a dupla paternidade (multiparentalidade) da autora, decretando que seja registrado em seu assento de nascimento, também o nome do pai biológico na condição de genitor, sem prejuízo da paternidade já reconhecida pelo pai registral (afetivo).

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Outro caso importante a se destacar, trata-se do que reconheceu a necessidade de coexistência das parentalidades biológica e afetiva em respeito à memória da mãe falecida.

O caso em tela foi julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em sede de Apelação Cível, interposta contra sentença proferida pelo juiz Cássio Henrique Dolce de Faria, da 2ª Vara Cível da Comarca de Itu/SP.

Trata-se de ação declaratória de maternidade socioafetiva, cumulada com retificação de assento de nascimento, que foi julgada parcialmente procedente, apenas para incluir no assento de nascimento do requerente o patronímico da coautora, porém, foi afastado o reconhecimento da filiação socioafetiva. Consta da inicial que o autor, nascido em 26.06.1993, perdeu sua mãe biológica três dias depois do parto, em decorrência de um acidente vascular cerebral. Meses após, seu pai conheceu a apelante e se casaram quando a criança tinha dois anos, e foi por ela criada como filho, com quem convive até o presente.

A autora poderia simplesmente adotar o enteado, mas por respeito à memória da mãe, vítima de infortúnio, que comoveu toda a comunidade, que a homenageou, atribuindo seu nome a uma rua e a um Consultório Odontológico Municipal, e por carinho à família dela, com quem mantém estreito relacionamento, optou pela ação declaratória para que não fosse retirado da criança esse vínculo de parentesco.

O desembargador relator, Dr. Alcides Leopoldo e Silva Júnior, cita em seu voto que a filiação não decorre unicamente do parentesco consanguíneo, pois o art. 1.593 do Código Civil e expresso no sentido de que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”, motivo pelo qual a expressão de “outra origem”, sem dúvida alguma, pode ser a filiação socioafetiva, que decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações

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mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes.

No caso dos autos, o magistrado afirma que as fotografias anexadas mostram a autora, durante muitos anos, participando efetivamente de fatos e momentos importantes na formação da criança, nos seus aniversários, nas reuniões da escola, nos passeios, viagens, festas, mas também na reclusa do lar, sobressaindo em todas as imagens, desde aquelas em que ainda está seguro no colo, até as mais recentes, já adulto e estudante de Direito, mesma profissão da requerente, a expressão de felicidade.

Justifica o ilustre julgador que a formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade, haja vista o reconhecimento da união estável como entidade familiar (art. 226, §3º, CF), a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (art. 227, §6º, CF), e o fato de as relações familiares deitarem raízes na Constituição da República, que tem como um dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), além da formação de uma sociedade solidária (art. 3º). O recurso foi provido.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o explanado no presente artigo, o conceito

atual de família é resultado das transformações sociais que ocorreram ao longo dos anos, que passaram a impor um modelo familiar descentralizado, democrático e igualitário, fundado precipuamente no melhor interesse da criança e do adolescente.

A Constituição Federal de 1988 também contribuiu para as evoluções ocorridas no instituto familiar, trazendo importantes princípios de interpretação das normas, como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana, afetividade e solidariedade.

Ficou evidenciado nas mudanças ocorridas na sociedade e consequentemente nas normas jurídicas, que a parentalidade socioafetiva ganhou força nos últimos anos, sendo, inclusive, patamar para desconsideração da filiação biológica.

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Neste vértice, com a valorização do afeto e da parentalidade socioafetiva, a possibilidade de configuração de múltiplas paternidade ou maternidades é aceita e reconhecida por vários doutrinadores e julgados.

Não foi sempre assim, as decisões iniciais a respeito do tema detinham o entendimento de que não havia a possibilidade de coexistência de múltiplos vínculos de parentalidade.

Contudo, tendo como base os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e do afeto, temos que a aplicação da multiparentalidade se faz necessária, tendo em vista o melhor interesse do filho.

Assim, os efeitos gerados pela decisão serão semelhantes aos da parentalidade normal, sendo apenas necessária a interpretação para o caso da multiparentalidade. Logo, a legislação pátria deve adaptar-se à situação em tela, como é o caso do Código Civil e Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73).

Pelo exposto, conclui-se que, diante da ausência da hipótese ideal onde os vínculos de filiação se concentram em uma só pessoa, temos que, com base nos princípios e ditames constitucionais, a configuração da multiparentalidade é a melhor medida possível para compatibilizar a coexistência dos múltiplos vínculos parentais.

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A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR CONDUTAS OMISSIVAS DE SEUS AGENTES

ANDRÉ ROMERO CALVET PINTO FERREIRA: Procurador do Município e Goiânia; advogado desde 2012; pós-graduado em direito administrativo.

RESUMO: Estudo sobre a responsabilidade civil do Estado por condutas omissivas de seus agentes. A pesquisa concentrou-se em um primeiro momento em abordar os casos de responsabilidade do Estado por condutas omissivas sob a ótica subjetiva. Posteriormente, foi feita uma análise acerca da responsabilidade estatal sob o enfoque objetivo. Por fim, analisou-se a interpretação dada pela doutrina ao artigo 37, §6º, da Constituição Federal. O presente artigo científico inclina-se no sentido de aceitar a responsabilização objetiva do Estado, por se entender que o legislador constituinte não fez a diferenciação entre condutas omissivas e comissivas.

Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Estado. Condutas Omissivas. Art. 37, §6º, CF.

Sumário: Introdução; 1 A perspectiva subjetiva da responsabilidade por omissão; 2 A perspectiva objetiva da responsabilidade por omissão; 3 A Interpretação do parágrafo 6º do art. 37 da Constituição Federal: a omissão do Estado enseja responsabilidade objetiva ou subjetiva?

INTRODUÇÃO

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A conduta do agente administrativo que deu causa ao dano é um dos três pressupostos indispensáveis para a configuração da responsabilidade estatal. Tal conduta pode-se apresentar na forma comissiva ou omissiva. A ação retrata um comportamento positivo do autor, enquanto que a omissão traduz-se numa atitude negativa, numa abstenção.

Seguindo a tendência evolucionária da responsabilidade civil do Estado, não há dúvidas de que esta assumiu para si a modalidade objetiva, principalmente por força do §6º do art. 37 da Constituição Federal. Todavia, por conta do citado dispositivo constitucional silenciar quanto à conduta omissiva do agente público, resta controvérsia no que respeita a saber se esta última seria modalidade objetiva ou subjetiva de responsabilidade.

Assim é que o presente artigo científico tem o objetivo de ajudar a esclarecer a controvérsia que existe a respeito da modalidade de responsabilidade civil nos casos de condutas omissivas dos agentes estatais.

1 A perspectiva subjetiva da responsabilidade por omissão

Entre os defensores da tese subjetiva da responsabilidade estatal por condutas omissivas, destaca-se Celso Antônio Bandeira de Mello (2006), para quem deve haver uma distinção preliminar entre causa e condição do dano. O autor acredita que as condutas omissivas do Estado não são capazes de dar causa aos danos, mas tão somente de ser uma condição deles.

Bandeira de Mello (2006, p. 968) explica que:

“De fato, na hipótese cogitada o Estado não é o autor do dano. Em rigor, não se pode dizer que o causou. Sua omissão ou deficiência haveria sido condição do dano, e não causa. Causa é o fato que positivamente gera um resultado. Condição é o evento que não ocorreu,

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mas que, se houvera ocorrido, teria impedido o resultado.”

Também concorda com a diferença entre causa e condição Maria Helena Diniz (2007, p. 621):

Na distinção entre causa e condição decorrem fundamentais consequências para o correto entendimento do referido dispositivo. Causa é o evento que produz um efeito, e condição, o acontecimento cuja ausência permite a produção do efeito, não gera o efeito, mas sua presença é impedinte dele. Donde: sua ausência permite a produção do efeito. Em suma, condição é o evento que não ocorre, mas, se tivesse ocorrido, teria obstado o resultado.

A causa da lesão estaria relacionada a uma conduta positiva do agente, enquanto que a condição teria relação com uma atitude negativa, que se tivesse ocorrido teria evitado o prejuízo. Com base neste pensamento, não poderia recair sobre o Estado a responsabilidade objetiva por condutas omissas, uma vez que tal modalidade só é aplicada às situações em que o Estado der “causa” ao evento danoso, e não quando der apenas condição a ele.

Só poderia, então, ser responsabilizado por comportamentos omissivos, quando teria o dever legal de agir, isto é, quando os prejuízos causados ao particular poderiam ser evitados pela sua atuação administrativa. (MELLO, 2006)

Neste ponto, Sergio Cavalieri Filho concorda com a lição de Bandeira de Mello, atribuindo relevância jurídica à omissão apenas quando o responsável tem o “dever jurídico de agir, de praticar um ato para impedir o resultado, dever, esse, que pode advir da lei, do negócio jurídico ou de uma conduta anterior do próprio omitente, criando o risco da ocorrência do resultado” (2007, p. 24).

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Nesta linha de raciocínio, se o Estado se omitir de tomar determinada atitude, tendo o dever legal de agir, automaticamente estaria descumprindo a lei e, portanto, cometendo ato ilícito. Assim é que a responsabilidade por omissão será sempre advinda de ato ilícito e, “sendo responsabilidade por ilícito, é necessariamente subjetiva, pois não há conduta ilícita do Estado que não seja proveniente de negligência, imprudência ou imperícia (culpa) ou, então, deliberado propósito de violar a norma que o constituía em dada obrigação (dolo)” (MELLO, 2006, p. 967).

Em outras palavras, Bandeira de Mello (2006) acredita que a única hipótese de haver omissão estatal passível de responsabilidade é quando ela advier de uma ilicitude, ou seja, de uma conduta negativa contrária às normas jurídicas. Quer dizer, se o Estado cumprir rigorosamente sua função administrativa, prestando o serviço de maneira adequada, não será obrigado a indenizar.

Em idêntico sentido, Maria Helena Diniz (2007), também adepta da teoria subjetiva, acredita não ser possível a omissão, por si própria, produzir o efeito danoso, se mostrando apenas uma condição para que outra conduta desse causa à lesão. Para Diniz (2007, p. 622), o Estado só responderá por omissão quando “devendo agir, não o fez, incorrendo no ilícito de deixar obstar aquilo que podia impedir e estava obrigado a fazê-lo”.

Com mais cautela, Cavalieri Filho (2007) defende a distinção que deve ser feita entre omissão genérica e omissão específica. Genérica seria a omissão proveniente de uma obrigação abstrata e indireta do Estado, onde não restaria evidente o dever jurídico de agir. Neste caso, para ser ressarcido, o lesado deveria comprovar que o serviço público, culposamente, não foi prestado de maneira satisfatória. De outro lado, a omissão será específica quando o Estado, tendo o dever específico e jurídico de agir, se omite, criando uma situação propícia para a ocorrência do dano.

A título elucidativo, o autor exemplifica:

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“veículo muito velho, sem condições normais de trânsito, causa um acidente por defeito de freio ou falta de luz traseira. A Administração não pode ser responsabilizada pelo fato de esse veículo ainda está circulando. Isso seria responsabilidade pela omissão genérica. Mas se esse veículo foi liberado numa vistoria, ou passou pelo posto de fiscalização sem problemas, aí já teremos omissão específica.” (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 231)

Segundo Cavalieri Filho (2007), somente nos casos de omissão genérica é que a responsabilidade estatal deve ser considerada subjetiva, uma vez que a vítima, em regra, terá o ônus de demonstrar que o serviço público não foi prestado de maneira adequada e de acordo com os ditames legais, isto é, que o Estado, ao se omitir, agiu de maneira culposa. De modo diverso, quando a omissão for específica, deve ser atribuída responsabilidade objetiva ao Estado, simplesmente porque o mesmo tinha o poder-dever de evitar o dano, e não o fez, ou seja, aqui é prescindível o elemento culpa.

De toda sorte, a maioria dos defensores da teoria subjetiva da responsabilidade por condutas omissivas, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Mello (2006) e Maria Helena Diniz (2007), não fazem diferença entre omissão genérica e específica. Em ambos os casos, exigem um comportamento ilícito do Estado, tomando como fundamento a culpa anônima ou baseada na falta do serviço. (DINIZ, 2007)

Destarte, os referidos doutrinadores, acreditam ser aplicada aos casos de omissão estatal apenas a teoria da falta do serviço (culpa administrativa, ou faute du service), e não a teoria do risco administrativo que, segundo os mesmos, somente seria fundamento da responsabilidade objetiva. A tese do risco, pois, só poderia servir como fundamento para as condutas comissivas do Estado, enquanto que a omissão deveria sempre advir da culpa

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anônima da administração, isto é, fundamentada na teoria da faute du service. (MELLO, 2006)

Quanto à tese da faute du service, esta inaugurou nova modalidade de responsabilidade, baseada não apenas no dolo ou na culpa tradicional – negligência, imprudência ou imperícia –, mas também na “falta do serviço”, “culpa do serviço”, ou “demora no serviço”, verificados quando o serviço não funciona, funciona mal ou funciona atrasado. (MELLO, 2006)

Hely Lopes Meirelles (2006, p. 649) ensina que a responsabilidade do Estado se baseia aqui numa modalidade de culpa especial, distinta, portanto, da tradicional, que se convencionou a chamar de culpa administrativa:

A teoria da culpa administrativa representa o primeiro estágio da transição entre a doutrina subjetiva da culpa civil e a tese objetiva do risco administrativo que a sucedeu, pois leva em conta a falta do serviçopara dela inferir a responsabilidade da Administração. É o estabelecimento do binômio falta do serviço/culpa da Administração. Já aqui não se indaga da culpa subjetiva do agente administrativo, mas perquiri-se a falta objetiva do serviço em si mesmo, como fato gerador da obrigação de indenizar o dano causado a terceiro. Exige-se também, uma culpa, mas uma especial da Administração, a que se convencionou chamar de culpa administrativa.

Então, essa nova concepção de responsabilidade está fortemente ligada à ideia da omissão do Poder Público, compreendido em sua universalidade. Ou seja, não é preciso identificar a omissão de um agente determinado, “bastando que fique constatado um mau agenciador geral, anônimo, impessoal, na defeituosa condução do serviço, à qual o dano possa ser imputado”

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(CAVALIERI FILHO, 2007, p. 221). É o que se convencionou chamar de culpa anônima.

Assim, a partir do surgimento da teoria da culpa administrativa, ou anônima, passou-se a atribuir ao Estado responsabilidade civil quando o mesmo tinha o dever de prestar um serviço de maneira eficaz e não o prestou, ou o prestou de maneira defeituosa ou tardia. Consequência disso é que a Administração passou a ser obrigada a indenizar em um número muito maior de situações, que antes não estaria sujeita.

Em melhores palavras, para ter direito à reparação indenizatória, antes o particular que sofrera a lesão teria que comprovar, além do dano injusto, o dolo, a negligência, a imperícia, ou imprudência de determinado agente público. Agora, basta que a vítima comprove a “falta do serviço” para obter a indenização junto ao Estado. (MEIRELLES, 2006)

No que tange a esse tema, é conveniente ainda esclarecer o que se entende como errada a comparação que é feita entre culpa administrativa e responsabilidade objetiva, como se ambas tivessem igual significado. Elucidar referido mal entendido é de fundamental importância porque ajuda a compreender a responsabilidade atribuída ao Estado nos casos em que a conduta danosa de seu representante for omissiva.

Neste ponto, concorda-se com a opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p. 957), para quem:

É mister acentuar que a responsabilidade por “falta de serviço”, falha do serviço ou culpa do serviço (faute du servic, seja qual for a tradução que se lhe dê) não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, ao contrário do que nós e alhures, às vezes, tem-se inadvertidamente suposto. É responsabilidade subjetiva porque baseada na culpa (ou dolo),

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como sempre advertiu o Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello.

A responsabilidade por culpa administrativa, então, é modalidade de responsabilidade subjetiva, não se confundindo, pois, com a responsabilidade objetiva. Diferença primordial entre as duas é que, na culpa administrativa é necessário que o lesado comprove o dano, a falta do serviço (conduta culposa do Estado) e o nexo de causalidade entre as duas coisas, para que seja indenizado. Na responsabilidade objetiva, basta que a vítima comprove o dano e o nexo de causalidade que o liga à Administração Pública.

Cumpre salientar que, segundo opinião de Sergio Cavalieri Filho (2007), será admitida a presunção de culpa da Administração Pública, nos casos em que for extremamente difícil ou impossível demonstrar que houve falha, falta ou má prestação do serviço público. Nesta situação, será transferida ao Estado “o ônus de provar que o serviço funcionou regularmente, de forma normal e correta, sem o que não conseguirá elidir a presunção e afastar a sua responsabilidade”. (CAVALIERI FILHO, p. 221 – 222)

A esse respeito, Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p. 971) explica que:

Sem embargo do quanto se disse, entendemos que – reitere-se e enfatize-se – nos casos de responsabilidade por omissão, isto é, em que a responsabilidade é subjetiva, deve-se considerar que vigora uma “presunção de culpa” do Poder Público. Dessarte, o lesado não necessita fazer a prova de que existiu culpa ou dolo. Sem embargo, se a entidade pública provar que sua omissão – propiciatória do dano – não decorreu de negligencia, imprudência ou imperícia (hipótese de culpa) ou de dolo, ficará excluída a responsabilidade.

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De todo modo, com dito anteriormente, a presunção de culpa não transforma a responsabilidade do Estado em objetiva. Pelo contrário, nos casos mencionados, a culpa ainda é pressuposto fundamental para a responsabilização estatal. O que muda é ônus da prova, que deixa de ser da vítima de passa a ser do Estado. Ou seja, o Poder Público poderá se eximir da obrigação de indenizar caso comprove, além das excludentes do nexo causal, que o serviço foi prestado de maneira adequada.

No que diz respeito ao fundamento legal que justificaria a perspectiva subjetiva da responsabilidade por omissão, destaca-se o art. 15 do antigo Código Civil Brasileiro de 1916. Basicamente, tal artigo rezava que as pessoas jurídicas de direito público deveriam ser responsabilizadas sempre que seus representantes, “procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever previsto em lei”, causassem danos a terceiros.

Não há dúvidas, portanto, que o referido dispositivo legal abraçou a modalidade subjetiva de responsabilidade estatal, incluindo-se aqui tanto as ações, quanto as omissões. Ao analisar-se o trecho “faltando a dever previsto em lei”, controvérsia não há também quanto à teoria utilizada como fundamento para a responsabilidade por omissão, qual seja, a culpa administrativa.

Sob o argumento de que não teria sido revogado em sua totalidade, o art. 15 do Código Civil de 1916 ainda é utilizado como embasamento legal para os defensores da tese subjetiva da responsabilidade quanto às omissões do Estado. Para os mesmos, o art. 37 §6º da Constituição Federal se refere apenas às condutas comissivas, aplicando-se às omissas o referido art. 15. (DINIZ, 2007)

2 A perspectiva objetiva da responsabilidade por omissão

Ao contrário do que afirmara Celso Antônio Bandeira de Mello (2006), para João Agnaldo Gandini e Diana Paola Salomão (2003) não há razão para acreditar na distinção entre causa e condição, como se a primeira remetesse apenas às condutas

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comissivas e segunda apenas às omissivas. Os autores acreditam que a omissão, sendo capaz de produzir o dano, pode sim ser considerada causa do mesmo.

Neste sentido, causa seria toda conduta capaz de produzir determinado resultado jurídico, e por consequência, determinada obrigação advinda da relação de causalidade que se criou. Se a omissão estatal for determinante para a ocorrência do evento danoso, então ela será causa dele, haja vista que se não houvesse a ação, o dano não teria ocorrido. Em outras palavras, se “tanto a conduta comissiva, quanto a omissiva, se eliminada, afastaria o dano, por que, então, tratá-las de modo diverso? Não existe argumento de ordem filosófica para tanto. Nem o há de ordem jurídica.” (GANDINI; SALOMÃO, 2003)

Sendo ação e omissão postas em pé de igualdade, isto é, ambas com o poder de dar causa ao evento danoso, conclui-se logicamente que as duas devem ter o mesmo tratamento, aplicando-se, portanto, a tese objetiva também às condutas omissivas. (TELLES, 2003)

Sem embargo, a responsabilidade civil objetiva para as omissões estatais tem como fundamento a teoria do risco, ao contrário da corrente subjetivista que se baseia na teoria da falta do serviço. Entre os representantes da tese objetiva está Hely Lopes Meirelles (2006), para quem o poder público deve cobrir os riscos tanto de sua ação, quando de sua omissão.

A teoria do risco, que tem seus alicerces no princípio da equidade de ônus e encargos sociais, representa verdadeira evolução no que concerne à responsabilização do Estado perante seus administrados. Para referida teoria, tem importância não apenas a relação de causa e efeito que deve existir entre a atividade administrativa e o dano sofrido pelo particular, como também a noção básica de igualdade e justiça que deve reger a relações sociais num Estado democrático.

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Neste sentido é que a referida teoria serve de fundamento para a responsabilidade civil objetiva, que também é pautada na garantia de uma equilibrada repartição de ônus que advêm de condutas danosas, com o principal objetivo de evitar que poucos suportem sozinhos os prejuízos ocasionados quando da realização de atividades administrativas que são de interesse comum. (MELLO, 2006)

Assim, não tem relevância para a teoria do risco e, por consequência para a responsabilidade objetiva, saber se o agente se omitiu, agiu com culpa, dolo, ou ainda, se houve a falta, má prestação ou demora do serviço. Invariavelmente o Estado responderá pelo injusto prejuízo que deu causa, simplesmente porque haverá relação de causalidade entre a atividade administrativa e a lesão experimentada pelo particular. (CAVALIERI FILHO, 2007)

Sergio Cavalieri Filho (2007, p.222 – 223), lembra que a teoria do risco, depois de adaptada à atividade pública, se transformou em teoria do risco administrativo, podendo ser definida da seguinte maneira:

A Administração Pública gera risco para os administrados, entendendo-se como tal a possibilidade de dano que os membros da comunidade podem sofrer em decorrência da normal ou anormal atividade do Estado. Tendo em vista que essa atividade é exercida em favor de todos, seus ônus devem ser também suportados por todos, e não apenas por alguns. Consequentemente, deve o Estado, que a todos representa, suportar os ônus da sua atividade, independente de culpa dos seus agentes.

Destarte, a teoria do risco administrativo nada mais é do que a responsabilização do Estado pelo risco que determinadas atividades administrativas representam para a sociedade. Ou seja, o Estado assume o risco de causar eventuais danos ao particular e,

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por isso, deve ser responsabilizado quando eventual prejuízo se concretizar, independentemente de culpa. É a pura materialização do princípio da igualdade dos administrados perante os encargos públicos.

Não obstante, como adverte Hely Lopes Meirelles (2006, p. 620), “a teoria do risco administrativo, embora dispense a comprovação de culpa da Administração, permite que o Poder Público demonstre a culpa da vítima para excluir ou atenuar a indenização”. Significa dizer que o Estado só deve ser responsabilizado pelos prejuízos decorrentes de sua atividade administrativa, direta ou indiretamente, isto é, quando o dano decorrer de atividade estranha à Administração Pública, o Estado não deve ser responsabilizado.

Neste ponto é que surgem divergências doutrinárias acerca da existência da distinção entre a teoria do risco administrativo a teoria do risco integral. A discussão perpassa por saber se a teoria do risco integral também admite, a exemplo da teoria do risco administrativo, as causas excludentes da responsabilidade do Estado, a saber, as causas que interrompem o nexo de causal: culpa exclusiva da vítima, culpa exclusiva de terceiro, caso fortuito e força maior.

Para Meirelles (2006, p. 620), a teoria do risco administrativo não se confunde com a do risco integral:

O risco administrativo não se confunde com o risco integral. O risco administrativo não significa que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular; significa, apenas e tão somente, que a vítima fica dispensada da prova da culpa da Administração, mas esta poderá demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, caso em que a Fazenda Pública se eximirá integral ou parcialmente da indenização.

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Certo é que, apesar do autor falar apenas em exclusão da responsabilidade do Estado nos casos de culpa total ou parcial do lesado, é pacífico hoje o entendimento[1] de que o Poder Público ficará isento de indenizar também quando verificada a culpa exclusiva de terceiro, caso fortuito e força maior (excludentes do nexo causal).

Sergio Cavalieri Filho (2007, p. 223), também defensor da distinção entre as duas teorias, esclarece:

O risco administrativo, repita-se, torna o Estado responsável pelos riscos da sua atividade administrativa, e não pela atividade de terceiros ou da própria vítima, e nem, ainda, por fenômenos da natureza, estranhos à sua atividade. Não significa, portanto, que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular. Se o Estado, por seus agentes, não deu causa a esse dano, se inexiste relação de causa e efeito entre a atividade administrativa e a lesão, não terá lugar a aplicação da teoria do risco administrativo e, por via de consequência, o Poder Público não poderá ser responsabilizado.

Com efeito, a teoria do risco administrativo não deve ser confundida com a teoria do risco integral. Embora alguns doutrinadores, a exemplo de Yussef Cahali (apud Maria Sylvia Zanella Di Pietro, 2002, p.528) não vejam diferença entre elas, fato é que a própria terminologia “integral” remete a ideia de responsabilidade absoluta, isto é, a responsabilidade que não admite atenuantes ou excludentes.

O principal argumento utilizado para justificar a igualdade entre as teorias é a de que, na prática, qualquer que seja a qualificação atribuída ao risco, os tribunais permitem exclusão ou atenuação da responsabilidade estatal quando outros fatores tiverem prevalecido ou concorrido para a verificação do evento

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danoso. Ademais, afirma-se que a diferença entre uma e outra teoria estaria apenas no campo conceitual, e não no campo jurídico como alguns tentam demonstrar. (DI PIETRO, 2002)

Muito embora tal argumentação tenha plausibilidade, entende-se que a aplicação prática dada à teoria do risco é uma coisa, e o seu sentido teórico é outra distinta. Afinal, pode até ser que a distinção entre as teorias não tenha importância prática – e não tem, já que esta teoria não foi acolhida no Brasil, mas tem importância teórica porquanto que representam ideias diferentes.

O risco integral, portanto, é modalidade extremada da teoria do risco, que obrigaria a Administração a indenizar todo e qualquer dano suportado por particulares, ainda que resultante de culpa da vítima, terceiros ou da natureza. Por outro lado, a teoria do risco administrativo repousa em ideias mais moderadas e sensatas, atribuindo responsabilidade ao Estado somente quando o dano tiver sido causado por sua atividade administrativa, ou seja, quando houver o liame de causalidade. (MEIRELES, 2002)

Assim é que a teoria do risco administrativo justifica a perspectiva objetiva da responsabilidade estatal por omissão, atribuindo ao Estado o ônus de demonstrar que não deu causa à lesão. Segundo Odete Medauar (2007), a tese objetiva por condutas omissivas é mais benéfica às pretensões da vítima, haja vista a dificuldade de se identificar o funcionário causador do dano e, mais ainda, verificar se o mesmo teria agido de maneira culposa.

Para Medauar (2007), considerar objetiva a responsabilidade por omissão estatal é o mesmo que proporcionar ao lesado maior chance de receber do Estado a indenização compensatória. Isto porque o particular não terá a obrigação de demonstrar a falta, má prestação ou demora no serviço público como condição de ressarcimento. A autora claramente se vale da teoria do risco para privilegiar o particular frente à omissão lesiva do Estado.

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A partir de uma perspectiva similar, considera-se a simples verificação do resultado lesivo e o nexo de causalidade que o liga ao Estado, como pressupostos da responsabilidade objetiva, suficientes para comprovar a falta do serviço administrativo. Nesta situação, restaria ao Estado apenas comprovar alguma das hipóteses de rompimento do nexo causal para se eximir da obrigação de indenizar. (TELLES, 2003)

Diante do vasto alcance da tese objetiva para os casos de omissão, vislumbrou-se a possibilidade de que o Estado pudesse se tornar um segurador ilimitado, sendo responsabilizado por quaisquer prejuízos experimentados pelo particular. Entretanto a utilização da teoria objetiva não transforma o Poder Público em segurador universal, uma vez que as excludentes do nexo causal continuam por afastar sua responsabilidade patrimonial. (HOLLERBACH, 2008)

De todo modo, os defensores[2] da tese objetiva da responsabilidade por omissão, além de entenderem pela aplicabilidade da teoria do risco administrativo, compartilham da opinião de que o ordenamento jurídico brasileiro, em especial o §6º do art. 37 da Constituição Federal de 1988, ao atribuir responsabilidade objetiva ao Estado, não teria feito distinção entre condutas omissivas e comissivas. (GANDINI; SALOMÃO, 2003)

Destarte, o mencionado parágrafo 6º representa o pilar legal da visão objetiva da responsabilidade patrimonial do Estado por condutas omissivas, porquanto que, na opinião dos citados autores representantes da corrente objetivista, estaria relacionado à todas as condutas estatais com potencial de gerar prejuízos aos particulares.

3 A Interpretação do parágrafo 6º do art. 37 da Constituição Federal: a omissão do Estado enseja responsabilidade objetiva ou subjetiva?

Na esteira da evolução histórica da responsabilidade civil estatal, pôde-se perceber que foi na Constituição de 1946 que o

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modelo objetivo de responsabilidade criou raízes, tendo como fruto o atual parágrafo 6º do art. 37 da Constituição de 1988, que tem a seguinte redação: “As pessoas jurídicas de direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Ratifica-se que o texto constitucional em destaque revela claramente a opção que o Constituinte fez pela responsabilidade objetiva do Estado, porquanto que estabeleceu para todas as entidades estatais e seus membros administrativos a obrigação de indenizar o prejuízo causado aos particulares, independentemente de ser verificada a culpa ou dolo na conduta danosa. (MEIRELLES, 2006)

Cumpri ressaltar, todavia, que apesar de ter seguido a mesma linha teórica das Constituições anteriores, o referido texto normativo trouxe algumas inovações. A primeira relacionada à abrangência da responsabilidade objetiva também aos entes privados prestadores de serviços públicos, e a segunda relativa à inclusão do vocábulo “agente” na literalidade da norma, que veio a substituir o vocábulo “funcionário”.

De fato, as Constituições de 1946, 1967 e 1969, somente estabeleciam a responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas de direito público, ou seja, aos Municípios, Estados, Distrito Federal, União e suas respectivas autarquias. Significa dizer que as empresas públicas e de economia mista, bem como as concessionárias, permissionárias e autorizatárias de serviços públicos, ainda respondiam de forma subjetiva, por serem pessoas jurídicas de direito privado. (CAVALIERI FILHO, 2007)

Tal tratamento diferenciado já vinha sendo criticado por doutrinadores como Hely Lopes Meirelles (2006) e Celso Antônio Bandeira de Mello (2006), haja vista os entes privados prestadores de serviços públicos gozarem de todos os bônus e benefícios da

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atividade pública, sem, contudo, suportar os ônus e riscos. Havia, portanto, um desequilíbrio entre bônus e ônus. (CAVALIERI FILHO, 2007)

Com base neste pensamento foi que a Constituição de 1988 evoluiu, ao igualar para fins de responsabilidade as pessoas jurídicas de direito público e privado, desde que as últimas fossem prestadoras de serviços públicos. Cabe salientar que a responsabilidade objetiva somente recairá sobre os entes sujeitos ao regime jurídico de empresas públicas, e não aos entes com regime jurídico de empresas privadas que executem atividades econômicas, sob os quais recairá a responsabilidade subjetiva, a exemplo da Caixa Econômica Federal, Petrobrás, Banco do Brasil, BNDES entre outras. (LIMA, 1999)

Outra inovação trazida pela atual Constituição brasileira foi a substituição do termo “funcionário”, que se mostrava bastante restritivo, pelo vocábulo “agente”, que possui maior abrangência. Só pode ser considerado funcionário público aquele que tem vínculo empregatício com o Estado. Já o agente público é todo aquele indivíduo incumbido de realizar determinada função administrativa, em caráter permanente ou provisório. (MEIRELLES, 2006)

Para que o Estado seja responsabilizado, basta que o agente público, nesta qualidade, haja praticado a conduta causadora do prejuízo experimentado pelo particular, ainda que não tenha agido no exercício de suas funções ou com abuso. Hely Lopes Meirelles (2006, p. 654) explica que:

Não se exige, pois, que tenha agido no exercício de suas funções, mas simplesmente na qualidade de agente público. Para a vítima é indiferente o título pelo qual o causador direto do dano esteja vinculado à Administração; o necessário é que se encontre a serviço do Poder Público, embora atue fora ou além de sua competência administrativa. O abuso no

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exercício das funções do servidor não exclui a responsabilidade objetiva do Estado.

Quanto à teoria de responsabilidade adotada pela norma constitucional em exame, não há controvérsia que o legislador optou pela tese do risco administrativo. A escolha se mostra evidente no trecho “seus agentes, nessa qualidade”. Ora, por conta desta expressão, o Estado só responderá objetivamente pelo dano decorrente de sua própria atividade administrativa, isto é, quando houver relação de causalidade (característica do risco administrativo) entre a conduta do agente público, no exercício de sua função ou em razão dela, e a lesão sofrida pelo particular. (CAVALIERI FILHO, 2007)

Afora a notável evolução, embora a redação do §6º do art. 37 da Constituição Federal de 1988 seja clara e concisa em relação à modalidade de responsabilidade e sua abrangência, saber se a atividade administrativa a que alude o referido dispositivo refere-se somente à conduta comissiva ou também à omissiva, é tema que ainda gera controvérsias e discussões tanto em âmbito doutrinário, quanto jurisprudencial.

Com fundamento na distinção entre causa e condição, a primeira corrente, encabeçada por Celso Antônio Bandeira de Mello (2006) e Maria Helena Diniz (2007), defende que o multicitado parágrafo 6º, em seu trecho “causarem”, se refere apenas às condutas comissas.

Desta forma, entendendo-se como causa as ações e como condição as omissões, a regra da responsabilidade objetiva não caberia aos casos de condutas omissivas estatais, sendo aplicada a esta última a tese da responsabilidade subjetiva, sob o fundamento legal do art. 15 do Código Civil de 1916, e sob a fundamento teórico da teoria da falta do serviço, ou culpa administrativa.

De outro lado, a segunda corrente doutrinária, que tem como principais representantes Hely Lopes Meirelles (2006) e

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Odete Medauar (2007), acredita não haver a apontada distinção entre causa e condição, bem como creem que a referida norma constitucional não faz diferença entre ação e omissão. Entendem, pois, que a responsabilidade objetiva é aplicada tanto as condutas comissivas quanto às condutas omissas, ambas com fundamento no §6º do art. 37 da CF/88, e na teoria do risco administrativo.

Um terceiro posicionamento, identificado entre a primeira e a segunda corrente, é o defendido por Sergio Cavalieri Filho (2007), para quem o referido texto legal abrange tanto as ações como as omissões, existindo, no entanto, duas espécies distintas de omissão, a específica e genérica. Para o autor, às omissões específicas deve-se atribuir responsabilidade objetiva, enquanto que a responsabilidade subjetiva deve ser a regra geral nas omissões genéricas.

Tal posicionamento tem embasamento na ideia de que a moderna concepção de ato ilícito não teria mais relação apenas com a culpa ou dolo, características da responsabilidade subjetiva. A conduta ilícita deveria, portanto, ser tomada em sentido lato, “que se traduz na mera contrariedade entre conduta e o dever jurídico imposto pela norma, sem qualquer referência ao elemento subjetivo ou psicológico, e que serve como fundamento para toda responsabilidade objetiva” (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 231).

Levando-se em conta a evolução histórica da responsabilidade civil do Estado no Brasil, a corrente que se mostra mais adequada à realidade brasileira é a defendida por Sergio Cavalieri Filho.

Primeiro porque há de se presumir que o legislador constitucional, ao redigir o §6º do art. 37, teria sido influenciado pela evolução que o instituto da responsabilidade estatal vivia à época, atribuindo responsabilidade objetiva a todos as condutas, sejam comissivas ou omissivas, que causassem danos aos particulares.

Neste contexto, a evolução histórica da responsabilidade estatal teve como objetivo equilibrar a relação entre Estado e seus

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administrados, fazendo com que o particular pudesse ser ressarcido com mais facilidade, sem a necessidade de comprovar a culpa do agente público, tarefa que se mostra bastante difícil.

Não havia, assim, motivos políticos ou legais para crer que o legislador retroagiria no tempo para estabelecer responsabilidade subjetiva às omissões, remetendo-se às antigas teorias da culpa civilista. Até mesmo porque as Constituições, desde 1946, já abraçavam a modalidade objetiva de responsabilidade, demonstrando que o ordenamento jurídico brasileiro abandonará a muito a tese subjetiva. (GANDINI; SALOMÃO, 2003)

Por essas razões é que se deve interpretar o parágrafo 6º do art. 37 da CF/88 sem distinções ou acréscimos, de maneira a considerar o termo “causarem” como “causarem por ação ou omissão”. Assim é que se toma como acertado o entendimento defendido pela doutrina objetivista e por Cavalieri Filho (2007), para quem a responsabilidade objetiva abrange também as omissões estatais.

De posse da conclusão anterior, considera-se sensata e pertinente a distinção entre omissão genérica e específica. Reforça-se que tal diferença atribui responsabilidade objetiva ao Poder Público somente quando o mesmo criara a situação propiciatória para a ocorrência do resultado danoso. De outro lado, a responsabilidade será subjetiva quando a omissão for decorrente de um dever abstrato e de distante relação com o evento danoso.

Com efeito, a responsabilidade civil do Estado por condutas omissivas deve ser considerada objetiva, independendo, portanto, da comprovação de culpa do serviço para sua configuração. Basta, então, que o particular demonstre a lesão sofrida e o nexo de causalidade que a liga à omissão estatal para ser ressarcido. Todavia, o Estado não pode ser responsabilizado objetivamente por omissões genéricas, isto é, quando não tinha o dever específico de agir.

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A conduta do agente administrativo que deu causa ao dano é um dos três pressupostos indispensáveis para a configuração da responsabilidade estatal. Tal conduta pode-se apresentar na forma comissiva ou omissiva. A ação retrata um comportamento positivo do autor, enquanto que a omissão traduz-se numa atitude negativa, numa abstenção.

Seguindo a tendência evolucionária da responsabilidade civil do Estado, não há dúvidas de que esta assumiu para si a modalidade objetiva, principalmente por força do §6º do art. 37 da Constituição Federal. Todavia, por conta do citado dispositivo constitucional silenciar quanto à conduta omissiva do agente público, resta controvérsia no que respeita a saber se esta última seria modalidade objetiva ou subjetiva de responsabilidade.

CONCLUSÃO

A responsabilidade civil do Estado é objetiva com fundamento no artigo 37, §6º, da Constituição Federal. Neste ponto, não dúvidas de que são abarcadas pelo legislador constituinte as condutas comissivas dos agentes estatais. Todavia, ainda há controvérsia doutrinaria e jurisprudencial acerca da modalidade de responsabilidade para os casos de condutas omissivas.

O presente artigo científico, então, buscando aclarar tal celeuma, sem a pretensão de esgotá-la, se debruçou sobre o contexto doutrinário e histórico da responsabilidade civil do Estado. Primeiramente, viu-se que parte da doutrina entende trata-se de responsabilidade subjetiva. Em um segundo momento, observou-se que alguns doutrinadores a entendem como sendo espécie de responsabilidade objetiva.

Em conclusão, entende-se, com fundamento na doutrina de Hely Lopes Meireles e em recentes julgados do Supremo Tribunal Federal, que a responsabilidade civil do Estado por condutas omissivas deve ser classificada como objetiva, haja vista que o legislador constituinte não fez diferenciação entre ação e omissão. Portanto, naqueles casos de omissão especifica por parte

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da Administração Pública, não há que se verificar os elementos subjetivos da culpa para fins de responsabilidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.

DINIZ, Maria Helena. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. v. 7. São Paulo: Saraiva, 2007.

GANDINI, João Agnaldo Donizeti; SALOMÃO, Diana Paola da Silva. A responsabilidade civil do Estado por conduta omissiva. R. CEJ, Brasília, n. 23, p. 45-59, out./dez. 2003. Disponível em <www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/download/577/757>. Acesso em: 05 abril 2012.

HOLLERBACH, Amanda Torres. A responsabilidade civil do Estado por condutas omissivas. Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do Grau de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da PUC-RS, 2008. Disponível em <www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/...1/amanda_torres.pdf>. Acesso em 20 jan. 2012.

LIMA, Arnaldo Esteves. Aspectos da responsabilidade objetiva. Brasília, DF, 1999. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/117>. Acesso em: 4 out. 2011

MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.

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Odete Medauar (2007), Hely Lopes Meirelles (2006), Sergio Cavalieri Filho (2007), e José Cretella Junior (2002).

 

   

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CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO DAS ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS. AVALIAÇÃO DAS CORRENTES DICOTÔMICA, TRICOTÔMICA E PENTAPARTITE .À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

JULIO CESAR ARAUJO MONTE: Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

Resumo: No presente trabalho iremos avaliar os critérios de classificação e as correntes utilizadas para classificar e determinar as espécies tributárias, apresentando ao final a que mais aproxima da corrente adotada majoritariamente. A especificidade do regime jurídico que detém cada espécie é de fundamental relevância para determinação e classificação das espécies de tributos, em especial quando temos a influência dos princípios e normas constitucionais. Avaliar os critérios e conhecer as correntes são essenciais para garantir a utilização adequada do direito tributário em respeito às normas constitucionais.

Palavras Chaves: Tributo. Conceito. Corrente dicotômica. Corrente tricotômica. Corrente quimpartite.

1. Introdução.

Classificar é escolher critérios, que permitam diferenciar entre as diversas espécies o que nelas preponderam e as fazem ser diferente de outras. No âmbito do Direito Tributário a classificação das espécies tributárias possui grande relevância especialmente quando se verifica a necessidade de se estabelecer e individualizar o regramento constitucional e legal a cada espécie. A doutrina diverge bastante quanto a classificação das espécies tributárias. Parte desta adota a teoria dicotômica das espécies tributárias, para os quais apenas existe 2 espécies tributárias. Outra corrente, utiliza a teoria tricotômica, entendendo serem, na verdade, 3 as espécies

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de tributos. Por último, há corrente que entende serem 5 as espécies tributárias, posição aliás adotada também pelo Supremo Tribunal Federal. Definirmos os critérios a serem utilizados que de forma o mais universal possível abarque todas as espécies é de fundamental importância para epistemologia da ciência tributária.

2. Conceito de Tributo.

A definição da natureza jurídica dos tributos, com uma consequente classificação de suas espécies, deve ser estabelecida por meio de premissa que alcance o universo das diversidades dos vários modelos formais de tributo.

Antes mesmo de sua conceituação, percebe o professor Paulo Barros de Carvalho, que próprio vocábulo tributo experimenta nada menos do que seis significações diversas quando utilizados no direito positivo: “tributo”, como quantia em dinheiro; “ tributo”, como prestação correspondente ao dever jurídico do sujeito passivo; “tributo” como direito subjetivo de que é titular o sujeito ativo; “tributo” como sinônimo de relação jurídica tributária; “tributo” como norma, fato e relação jurídica[1].

Em uma explanação resumida, entende o professor titular de direito tributário da PUC-SP que [2]:

“Tributo é a prestação pecuniária não sancionatória de ato ilícito, instituída em lei e devida ao Estado ou entidades não estatais de fins de interesse público”.

No aspecto legal, o conceito de tributo é previsto no artigo 3º do Código Tributário Nacional,verbis:

“Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

Esmiuçando o conceito legal, tem-se, primeiro, que tributo é prestação pecuniária compulsória, ou seja, comportamento

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obrigatório de uma prestação em dinheiro. Refere-se à obrigação jurídica que independe da vontade do sujeito passivo, que a efetiva independentemente querer tanto.

Em segundo, tributo representa prestação pecuniária em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, entendido estes últimos como o preço decorrente de estampilhas, adesivos, utilizados para cobrança de tributos em especialmente nos produtos industrializados.

Em terceiro, não constitui sanção de ato ilícito. Tributo não é sanção é obrigação pecuniária decorrente do dever legal, não se esquecendo, todavia, que embora não constituía sanção de ato ilícito, o tributo pode ser cobrado de condutas ilícitas que sejam fatos geradores do dever de pagar o tributo, por força do princípio da isonomia.

Em quarto lugar, instituído em lei. O Tributo observa o princípio da legalidade, o qual prescreve que ninguém será obrigado a fazer algo ou deixa de fazê-lo, senão em virtude de lei. Nasce da lei, com força de lei e independe da vontade das partes.

Por fim, cobrado mediante atividade administrativa plenamente vinculada, ou seja, há um dever legal de se realizar sua cobrança e instituição.

3. Classificação das Espécies Tributárias.

Discute-se bastante na doutrina acerca da classificação das espécies tributárias, especialmente à luz da Constituição Federal de 1988 que introduziu a figura do Empréstimo Compulsório e as contribuições, em contraposição ao previsto no artigo 5º do Código Tributário Nacional, o qual apenas prever como tributos os impostos, as taxas e a contribuição de melhoria.

Um dos fatos relevantes acerca da classificação e enquadramento das respectivas espécies tributárias se dá pela avaliação, primeiro, do fato de se tratar de novas hipóteses aquelas

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previstas apenas na Constituição ou se estas pertencerem àquelas já mencionadas no CTN.

A referida discussão é importante especialmente quando verificamos que o artigo 4º do CTN afirma que a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevante para qualificá-la: I – a denominação e demais características formais adotas pela lei; II- a destinação legal do produto de sua arrecadação, tendo em vista que apenas seria possível verificar a existência independente para determinadas espécie tributária, a exemplo do empréstimo compulsório acaso se verificasse a destinação legal do produto de sua arrecadação, pois a tudo se assemelha o referido tributo ao imposto, menos quanto à destinação.

Nessa toada, divide-se a doutrina quanto a classificação das espécies tributárias, em dicotômica, tricotômica e pentapartite ou quimpartite.

4. Corrente Dicotômica. Esta corrente tem como expoente o Professor Geraldo

Ataliba[3], bem como Alfredo Augusto Becker[4]. Para a referida corrente, existe apenas duas espécies tributárias: imposto e taxa.

O professor Alfredo Augusto Becker, partidário da corrente dicotômica, entende apenas existente no ordenamento jurídico Brasileiro a figura da taxa e do imposto, os quais teriam distinções apenas no que se refere a sua base de cálculo. Para o referido professor, enquanto as taxas têm sua base de cálculo representada por um serviço estatal ou coisa estatal, os impostos encontram a respectiva base de cálculo num fato lícito qualquer, não consistente em serviço estatal ou coisa estatal[5].

No mesmo sentido é a doutrina do professor Geraldo Ataliba, para quem a divisão das espécies tributárias é apenas duas: impostos e taxas. Ataliba os diferencia pelo critério da vinculação ou não vinculação das referidas espécies a uma contraprestação estatal.

Segundo sua doutrina, sempre que não se houve vinculação da prestação pecuniária à uma prestação estatal determinada

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teríamos a figura do imposto. Diferentemente, quando houvesse contraprestação ou vinculação do pagamento do tributo em razão da prestação de um benefício ao contribuinte teríamos a figura da taxa[6].

5. Corrente Tricotômica. A corrente tricotômica tem como expoente o professor Paulo

Barros de Carvalho, bem como o Constitucionalista Roque Carrazza.

Para a referida corrente, apenas existem três espécies tributárias, as quais são previstas no artigo 5º do CTN, quais sejam: impostos, taxas e contribuição de melhoria.

Segundo o professor Paulo Barros de Carvalho a classificação das espécies tributárias deve ser feita à luz das regras constitucionais. Todavia, entende que apenas existem como espécies de tributos: o imposto, taxa e a contribuição de melhoria, olvidando de uma classe própria para os empréstimos compulsórios e contribuições.

Ao professor os empréstimos compulsórios e as contribuições seriam espécies do gênero impostos, taxas e contribuição de melhoria, a depender da análise do correspondente fato gerador[7].

Tal visão fundamenta-se, especialmente, na ideia de que, como afirma o artigo 4, I e II do CTN, a denominação e a destinação do produto da arrecadação não importa para definir a natureza jurídica do tributo.

Ocorre, todavia, que a aceitação desta forma de classificação de tributo, em apenas três espécies: imposto, taxa e contribuição de melhoria, sendo o empréstimo compulsório e as contribuições subespécies daquele, não nos permite a individualização do regime jurídico próprio aplicado a cada tipo de tributo.

6. Corrente quimpartite ou pentapartite e a destinação do produto da arrecadação.

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A corrente quimpartite considera tributo os impostos, as taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios e as contribuições especiais.

É a corrente adotada pela doutrina majoritária, a exemplo do professo Hugo de Brito Machado, bem como também é adotada pelo Supremo Tribunal Federal.

A referida classificação parte do pressuposto que a individualização das espécies tributárias deve partir da norma ápice do ordenamento jurídico, a Constituição. Esta norma é fundamento de validade para toda e qualquer norma a ela derivada, e, nesse sentido, são aplicadas, também, às normas tributárias.

O fundamento da norma jurídica tributária encontra respaldo constitucional a partir de desenhos esquemáticos básicos que estabelecem o deve ser da lei tributária. A constituição é o recanto das regras matrizes de incidência tributária em seu aspecto material, as legislações retiram seus fundamentos da constituição.

Desta forma, uma classificação válida e abrangente do fenômeno das espécies tributárias, apenas seria efetiva a todo ordenamento a partir do estabelecimento de critérios de diferenciação das regras de imposição de competência tributária à luz da regra constitucional.

7. Critérios para diferenciação das espécies tributárias.

À luz da regra constitucional, deve-se avaliar três critérios essenciais para a classificação das espécies tributárias.

De proêmio, conforme as lições de Geraldo Ataliba, devemos entender como primeiro critério da diferenciação das espécies tributárias, a vinculação entre a materialidade da hipótese de incidência da norma tributária e uma contraprestação do Estado. Antecedentes que vinculam uma contraprestação estatal e antecedentes que independe disto. Essa seria um primeiro critério de diferenciação, pois é perceptível que determinados tributos

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possuem vinculação a uma atividade estatal, outros não se importam, a exemplo das taxas e impostos.

O segundo critério em cotejo com as normas constitucionais de imposição de competência tributária, parece contraditória, mas é a destinação do produto da arrecadação do tributo a uma atividade específica vinculada ao Estado ou não.

Inobstante, o artigo 4º, II do CTN prevê que a destinação da arrecadação do tributo não importa para definir sua natureza, parece que com o advento da Constituição tal norma não pode ter sido recepcionada, especialmente porque é possível existir tributos, cujo o fato gerador pode ser o mesmo de outro, de mesma base de cálculo e o que apenas lhe diferencia é a destinação de seu proveito econômico. Cite-se por exemplo as contribuições que podem ter como base de cálculo o faturamento, que seria um critério aplicado para o Imposto de Renda, bem como ter fato gerador ligado a importação de produtos que é própria dos impostos, mas que neste caso, o que efetivamente lhe diferenciaria, portanto, de outra espécie tributária, seria a destinação de sua arrecadação, que é vinculada, conforme estabelece as normas constitucionais.

Como último critério, e este serve apenas, para os empréstimos compulsórios, é a devolução em um certo lapso de tempo dos valores arrecadados com referido tributo. Observa-se que este critério é diferenciador de outros e individual a esta espécie de tributo, especialmente porque se não fosse esse critério o empréstimo compulsório seria igualado a contribuições, pois estas não são vinculadas a uma contraprestação do Estado, mas tem sua destinação econômica vinculada igual ao empréstimo. O plus existente nesta espécie é a informação de devolução dos valores aos contribuintes constante na norma instituidora, ainda que esse valores não sejam efetivamente devolvidos.

Adotando, assim, os critério criamos dois grupos: a) vinculados a uma atividade contra prestação do Estado (taxas e contribuição de melhoria) b) não vinculados a uma atividade

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(imposto, empréstimo compulsório e contribuição de melhoria). Adotando o segundo critério teríamos tributos cuja destinação econômica é vinculada (taxas, contribuições e empréstimos compulsórios) e não vinculadas (impostos, contribuição de melhoria) e o terceiro critério diferenciador, qual seja a obrigação de devolver em determinado período os valores recebidos como empréstimo (empréstimo compulsório)

Desta forma consegue se alcança uma classificação mais coerente das espécies tributárias previstas na Constituição.

8. Conclusão.

A classificação das espécies tributárias deve perpassar pela análise constitucional dos regramentos de cada espécie tributária. Classificar a espécies de tributos, sem avaliar os fundamentos constitucionais aos quais estão vinculadas não nos permite ter uma noção ampla do sistema tributário constitucional. Deve-se observar, com isso, que pela força constitucional é destinação do produto da arrecadação instrumento a fornecer elementos essenciais a diferenciação entre as espécies de tributos, bem como os critérios acima definidos são básicos para termos de forma clara definidos os conceitos e diferenciações entre as espécies previstas na constituição e no Código Tributário Nacional.

Referencias

ATALIBA, Geral. Hipótese de incidência tributária. 6º Edição. 15º Tiragem. Editora Malheiros.

CARVALHO, Paulo Barros de. Curso de Direito Tributário. Editora Saraiva

NOTAS:

[1] CARVALHO, Paulo Barros de. Curso de Direito Tributário. Editora Saraiva. 46

[2] CARVALHO, Paulo Barros de. Curso de Direito Tributário. Editora Saraiva Pag. 41

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[3] ATALIBA, Geral. Hipótese de incidência tributária. 6º Edição. 15º Tiragem. Editora Malheiros.

[4] CARVALHO, Paulo Barros de Curso de Direito Tributário. Editora Saraiva. Pag.75

[5] CARVALHO, Paulo Barros de . Curso de Direito Tributário. Editora Saraiva pag 76

[6] CARVALHO, Paulo Barros de. Curso de Direito Tributário. Editora Saraiva Pag. 76

[7] Idem.

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CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS ACERCA DO DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA NO BRASIL E NO MUNDO

HIGO ARAÚJO BEZERRA: Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará.

RESUMO: Este trabalho busca analisar os principais aspectos do direito fundamental à moradia. O tema desenvolve-se a partir do estudo dos pontos mais elementares dos direitos fundamentais, por meio de sua evolução histórica. Discute-se ainda o reconhecimento do direito à moradia como direito fundamental na ordem jurídica interna brasileira e internacional. Além disso, examina-se qual o conteúdo que faz parte da essência desse direito, o qual se mostra imprescindível para sua eficaz concretização.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direito à moradia. Moradia adequada e dignidade da pessoa humana.

1 INTRODUÇÃO

A casa, asilo inviolável do indivíduo, não é privilégio de todos no Brasil. Milhares de famílias vivem nas ruas, praças e debaixo de viadutos nas mais diversas cidades de todas as regiões de nosso imenso país, apesar de nossa Constituição Federal assegurar o direito à moradia como direito social fundamental a ser protegido e promovido pelo Estado.

Somado a isso, os noticiários jornalísticos brasileiros cada vez mais noticiam situações de despejos de grupos de pessoas que ocupavam terrenos alheios de forma irregular. A maioria das

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famílias que os integram alega que construíram suas moradias nesses locais pelo motivo de não terem onde morar.

Apesar de nos últimos anos ter ocorrido uma intensa mobilização política para concretizar o direito à moradia no Brasil, ainda há muitas pessoas que não possuem esse direito básico consagrado em sua vida e na de sua família. De fato, os diversos programas de governo existentes estão conseguindo melhorar a condição de existência de muitos, contudo isso ainda se mostra insuficiente.

No presente trabalho, longe do intuito de esgotar o tema, serão traçados alguns aspectos do direito fundamental à moradia, cuja concretização é essencial para uma vida digna.

2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: BREVES NOÇÕES

O reconhecimento e consolidação dos direitos fundamentais do homem como normas imprescindíveis e obrigatórias para todo e qualquer ordenamento jurídico se deu através de uma longa evolução e por meio de uma permanente luta histórica pela conquista desses direitos básicos.

O cristianismo teve influência marcante na gênese dos direitos fundamentais, sendo uma de suas principais fontes de inspiração. Com sua doutrina pregando que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus e que este já teria, inclusive, assumido a condição humana para salvá-la, houve a atribuição de um alto valor intrínseco à natureza humana, contribuindo ainda mais para o acolhimento da ideia de que há uma dignidade única no homem, o que exige uma proteção especial.[1]

Juntamente com o cristianismo, o jusnaturalismo também se mostrou como corrente de concepção filosófica importantíssima no processo de reconhecimento de direitos essenciais à condição humana, por meio de sua visão abstrata do Homem com direitos inerentes àquela sua condição. Entretanto, atribuir o surgimento dessa nova e revolucionária perspectiva de direitos simplesmente a essas e mais alguma outra corrente filosófica não se apresenta como algo muito satisfatório.

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De fato, embora essas correntes de pensamento tenham bastante relevância no caminho para a formação e reconhecimento dos diversos direitos fundamentais, as condições históricas objetivas em que se deu o desenvolvimento dessa concepção de direito é que constituem a fonte primária de fundamentação e inspiração deles, servindo aquelas filosofias como instrumento indispensável no processo de ordenação dessas condições, para que haja uma compreensão ideológica coerente da realidade que se mostra.[2]

Destarte, concepções filosóficas somadas a determinadas condições históricas ou reais, fundamentam a evolução social, que, no caso em enfoque, constitui a gênese de direitos inerentes à condição humana. Com efeito, tendo em vista a origem histórica dos direitos fundamentais, as condições reais ou objetivas que propiciaram aquela evolução no sentido do surgimento desses direitos manifestaram-se em meados do século XVIII com a forte e insustentável contradição entre “o regime da monarquia absoluta, estagnadora, petrificada e degenerada, e entre uma sociedade nova tendente à expansão comercial e cultural”, aparecendo, de outro lado, a filosofia do Iluminismo como importante fonte impulsionadora: exaltação às liberdades e valores individuais do homem.[3]

Contudo, é de se ressaltar que, não sendo todos os direitos fundamentais fruto de um momento único, mas, pelo contrário, de momentos históricos distintos ao longo da História, mostra-se sem razoabilidade buscar extrair um substrato único e absoluto para todas as espécies de direito que integram aquele conjunto, sendo mais plausível perquirir como justificá-los em todos os períodos que se apresenta.

E o que seriam os direitos fundamentais? Como conceituá-los?

Uadi Lammêgo Bulos[4] os conceitua da seguinte forma:

Os direitos fundamentais são o conjunto de normas, princípios, prerrogativas, deveres e

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institutos inerentes à soberania popular, que garantem a convivência pacífica, digna, livre e igualitária, independentemente de credo, raça, origem, cor, condição econômica ou status social.

Destacando a relação com o Estado, a definição de Perez Luño permite ter uma ideia satisfatória do que são os direitos fundamentais:

Os direitos fundamentais constituem a principal garantia com que contam os cidadãos de um Estado de Direito de que o sistema jurídico e político em seu conjunto se orientará para o respeito e a promoção da pessoa humana; em sua estrita dimensão individual (Estado liberal de Direito), ou conjugando esta com a exigência de solidariedade corolário do componente social e coletivo da vida humana (Estado social de direito).[5]

Apesar disso, muitos defendem que estabelecer um conceito único e preciso não se mostra tarefa fácil, na medida em que os direitos fundamentais são conhecidos por meio de diversas expressões: direitos públicos subjetivos, direitos naturais, direitos humanos, direitos individuais, liberdades fundamentais, enfim, dentre outras.

O fato é que, “direitos fundamentais do homem” talvez seja a expressão que mais se adeque à realidade deles: “fundamentais”, indicando situações jurídicas sem as quais o ser humano não se completa, e “do homem”, no sentido de que se volta ao homem no sentido de condição humana. Independente da perspectiva que se veja, são prerrogativas “sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive”, essenciais para a concretização de uma vida livre, digna e igual para todos.[6]

Caracterizar de forma geral esses direitos também não é algo tão simples, pois eles não se apresentam de maneira uniforme

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em todos os Estados. Konrad Hesse deixa isso claro ao afirmar que “o conteúdo concreto e a significação dos direitos fundamentais para um Estado dependem de inúmeros fatores extrajurídicos, especialmente das peculiaridades, da cultura e da história dos povos”.[7]

Não obstante isso, há determinadas características que lhes atribuem com uma maior frequência: historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade.

A historicidade consiste em informar que eles são fruto de uma evolução histórica, surgindo, modificando-se e, até mesmo, desaparecendo. Essa característica afasta de vez a concepção de que toda a fonte que fundamenta a existência deles adviria do direito natural ou da essência humana, constituindo-se, pelo contrário, notadamente, em fruto das necessidades humanas.

E, é com base nessa perspectiva da evolução histórica que muitos dividem os direitos fundamentais em gerações: primeira, segunda, terceira e até uma quarta e quinta geração de direitos fundamentais, mostrando que eles nem sempre foram os mesmos em todas as épocas.

A primeira geração de direitos fundamentais, com gênese no final do século XVII, seria composta pelos direitos civis e políticos, direitos individuais que configuram as liberdades negativas, ou seja, que prestigiam uma conduta negativa (não fazer) por parte do Estado. Da segunda, com período de surgimento logo após a Primeira Guerra Mundial, fariam parte os direitos sociais, econômicos e culturais, consubstanciando as liberdades positivas, as quais exigem do Estado não mais abstenções, mas sim uma conduta positiva, prestacional, no sentido de assegurar-se bem estar e igualdade substancial dentro da sociedade.[8]

Já os direitos fundamentais de terceira geração seriam compostos pelos direitos difusos e coletivos, que consubstanciam a solidariedade ou fraternidade que deve existir no meio social. O direito a um meio ambiente equilibrado faz parte dessa geração. Além desses, há ainda os que defendem existir uma quarta geração

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de direitos fundamentais, a qual englobaria os relacionados à informática, eutanásia, clonagens e outros acontecimentos ligados à engenharia genética, e uma quinta geração, que seria sede do direito à paz.[9]

Apesar dessa divisão que se costuma atribuir aos direitos fundamentais, deve ser esclarecido que o surgimento de uma geração de direitos não suplanta a anterior. Elas passam a coexistir de forma harmônica e a influenciar-se mutuamente, fazendo com que haja uma evolução na perspectiva que se tem do conjunto dos direitos que integram cada uma delas. E, é justamente por isso que muitos doutrinadores criticam essa classificação em “gerações” de direitos, preferindo a terminologia “dimensões” de direitos, com o fim de evitar a ideia de que houve uma gradativa substituição de uma geração por outra.

Voltando para as características das quais tratávamos, da inalienabilidade deriva sua condição de direitos com um caráter não patrimonial, indisponíveis e intransferíveis. Enquanto isso, o caráter de imprescritibilidade denota que eles nunca deixam de ser exigíveis em razão do passar do tempo, sempre podendo ser exercidos. Por último, a irrenunciabilidade marca que eles não podem ser renunciados. Alguns podem até ser não exercidos, mas nunca renunciados.

Impende ainda destacar que já se atribuiu o caráter de serem absolutos os direitos fundamentais, no sentido de que estariam no patamar máximo da hierarquia jurídica, não podendo sofrer restrições. Não obstante isso, atualmente se encontra pacificado o entendimento de que essa espécie de direitos pode sofrer restrições e limitações, quando em determinadas situações entrem em choque com outros valores de ordem constitucional e, até mesmo, outros direitos fundamentais. O mais basilar dos direitos, que é o direito à vida, pode sofrer restrição, como previsto, inclusive, no ordenamento jurídico brasileiro: a pena de morte é admitida em caso de guerra formalmente declarada.[10]

Ademais, também se atribui a característica de os direitos fundamentais estarem consubstanciados em preceitos de uma

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ordem jurídica determinada, sendo esse caráter o fator que justamente diferenciaria as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos”.

A expressão “direitos fundamentais” estaria voltada para aqueles direitos reconhecidos e positivados na ordem jurídica de um Estado determinado, por meio de seu texto constitucional, enquanto a expressão “direitos humanos” referir-se-ia àquelas situações jurídicas de respeito à pessoa humana, independentemente de sua vinculação à uma ordem constitucional determinada, previstas, notadamente, em documentos de direito internacional, com vocação à uma validade universal e com caráter supranacional.

Assim, os direitos fundamentais constituir-se-iam “nos direitos que vigem numa ordem jurídica concreta, sendo, por isso, garantidos e limitados no espaço e no tempo, pois são assegurados na medida em que cada Estado os consagra”.[11] Dessa forma, além de aspectos éticos (base axiológica), ligados à limitação do poder e à proteção da dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais têm aspectos normativos (formais), segundo os quais aqueles estão previstos na norma ápice do ordenamento jurídico: a Constituição.[12]

Não obstante essa diferenciação, não há falar em incompatibilidade entre ambos. Tanto a expressão “direitos fundamentais” quanto “direitos humanos” referem-se a posições jurídicas essenciais à condição humana. Visto por esse aspecto substancial, os direitos humanos gozam da característica da fundamentalidade, ou seja, “da importância e essencialidade das posições jurídicas para a pessoa humana, fundamento de sua especial proteção pela ordem jurídica internacional e/ou interna.”[13]

Além disso, também não há falar que ambos se encontram em esferas estanques, sem comunicabilidade alguma. Há uma constante interação entre eles, servindo os direitos humanos, muitas vezes, como matriz para a consagração de muitos direitos fundamentais consubstanciados numa ordem jurídica específica. Ressalte-se a importância, por exemplo, da Declaração Universal

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dos Direitos Humanos (1948) para a elaboração das constituições de diversos Estados. E, por outro lado, não raro os direitos fundamentais positivados em determinado Estado servirem de espelho para a consagração de direitos humanos internacionais.[14]

Após esses breves comentários acerca dos direitos fundamentais, passam-se, então, a traçar alguns aspectos do direito à moradia, o qual, mais que um direito fundamental reconhecido pelo Estado brasileiro, encontra-se no rol dos direitos humanos reconhecidos pela comunidade internacional.

3 O RECONHECIMENTO DO DIREITO FUNDAMETAL À MORADIA NO BRASIL E NO MUNDO

Por meio da emenda constitucional n. 26, promulgada no ano de 2000, o ordenamento jurídico brasileiro passou a reconhecer expressamente o direito à moradia como um direito fundamental. O artigo 6°[15]da Constituição Federal brasileira, onde estão delineados os direitos sociais fundamentais, foi alterado, passando a constar o referido direito.

Apesar disso, muitos defendem que, ainda que o direito à moradia não estivesse previsto de forma expressa em nossa Lei Maior, esse direito já faria parte do rol de direitos fundamentais integrantes do ordenamento do Brasil de forma implícita.

Como primeira justificativa, alega-se que esse reconhecimento decorreria simplesmente do princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos de nosso Estado.

Esse princípio teria uma dimensão negativa e outra positiva. Da dimensão negativa do princípio da dignidade da pessoa humana decorreria o dever do Estado de garantir a integridade física e psíquica do indivíduo. Enquanto isso, a positiva reclamaria a “satisfação das necessidades existenciais básicas para uma vida com dignidade, podendo servir até mesmo como fundamento direto e autônomo para o reconhecimento de direitos fundamentais não expressamente positivados (...)”.[16]

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Destarte, como, indubitavelmente, o direito à moradia visa à concretização e realização do princípio da dignidade da pessoa humana, o reconhecimento desse direito fundamental como integrante do ordenamento do País, mesmo antes de ser inserido via emenda reformadora, resultaria numa clara decorrência lógica.

Além desse argumento justificador, alega-se também que o direito fundamental à moradia já estaria reconhecido apenas com base no que estabelece o parágrafo 2° do art. 5° de nossa Carta Maior.

“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Com estas palavras, esse dispositivo supracitado prevê, em suma, que o rol dos direitos fundamentais brasileiros é aberto, não taxativo. Ele não se resume, portanto, àqueles expressamente previstos no texto constitucional. E, essa expansão dos direitos fundamentais para além do texto da Carta tem sido denominada de “bloco de constitucionalidade”.

Diante desse fato, não haveria como negar que aquele direito já não fizesse parte de nosso ordenamento sob dois fortes fundamentos: o primeiro é que o Brasil é signatário dos grandes tratados internacionais de direitos humanos, os quais preveem o direito à moradia como direito humano básico; o segundo é que não há como questionar o caráter materialmente fundamental do direito à moradia.

Para explicarmos esse segundo ponto referido no parágrafo anterior, insta salientar a diferença entre aquilo que é material e formalmente constitucional. Materialmente constitucional seria tudo aquilo que imprescindivelmente deve ser tratado no seio de uma Constituição. Paulo Bonavides[17] nos premia com seu elucidativo conceito:

Do ponto de vista material, a Constituição é o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao

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exercício da autoridade, à forma de governo,aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Tudo quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem política exprime o aspecto material da Constituição. (Grifo Nosso)

Já em seu aspecto formal, a Constituição seria tudo aquilo que está consagrado ou positivado em seu texto, ainda que não faça referência a nenhum daqueles assuntos que o mestre Bonavides referiu-se.

Da análise do parágrafo 2° do art. 5° em questão, vê-se que o constituinte admite que não somente os direitos fundamentais formalmente constitucionais fazem parte de nosso ordenamento, mas também aqueles que o são apenas materialmente. Logo, tendo em vista que o direito à moradia é um direito humano básico e que decorre direta e inquestionavelmente, pelo menos, do princípio da dignidade da pessoa humana, esse direito integraria nosso ordenamento mesmo antes da alteração do artigo 6° da Constituição de 1988.

Já com relação ao primeiro ponto, referente à decorrência do direito à moradia dos tratados internacionais de que o Brasil seja parte, isso também se mostra inquestionável.

Primeiramente, a moradia foi expressamente reconhecida como direito humano básico na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. No artigo XXV.1 dessa Carta internacional, está disposto que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos ...” (Grifo Nosso).

A partir daí, diversos outros documentos internacionais relacionados a direitos humanos que foram surgindo passaram também a fazer referência ao direito à moradia como direito humano básico. Destaque-se o Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais (1966), ao qual o Brasil se obriga desde

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janeiro de 1992, quando o ratificou, que estabelece no §1° do seu artigo 11 a determinação que “os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas...”.

Assim, sendo o Brasil signatário de ambos os documentos, o direito fundamental à moradia já faria parte do ordenamento do País desde, pelo menos, a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Mas, e que espécie de moradia o ordenamento jurídico brasileiro assegura? Qual o conteúdo desse direito fundamental? É acerca disso que se discutirá logo a seguir.

4 DIREITO À MORADIA: O CONTEÚDO NECESSÁRIO PARA UMAVIDA COM DIGNIDADE

Quando se fala em direito à moradia, não se está referindo a qualquer moradia, tida como um teto qualquer sob o qual determinada pessoa e sua família simplesmente ficarão debaixo. Pelo contrário, quer-se referir a um local onde as condições mínimas de higiene, conforto, segurança e privacidade possam estar asseguradas para que a pessoa, juntamente com seus familiares, possam desenvolver suas personalidades.

Nas palavras de Sarlet[18],

Com efeito, sem um lugar adequado para proteger-se a si próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria existência física, e, portanto, o seu direito à vida. [Grifo Nosso]

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A grande questão está em saber definir quais os contornos dessa moradia adequada. De fato, o legislador constituinte reformador brasileiro ao assegurar expressamente o direito à moradia dentre os direito sociais fundamentais o fez sem qualquer adjetivação, somente de forma genérica.

Apesar disso, como foi dito, não é por essa razão que se admitirá interpretações desproporcionais e desarrazoáveis com relação ao conteúdo daquele direito fundamental. Tendo como fundamento primário o princípio da dignidade da pessoa humana, não se pode admitir qualquer interpretação que leve à incompatibilidade com ele. Assim, como no ordenamento interno não houve o estabelecimento preciso dos contornos do direito social ora tratado, deve-se buscá-los no âmbito internacional.

Mesmo sabendo que o conceito de moradia adequada é, de certa forma, variável entre os diversos Estados, sendo também determinado por outros fatores, como elementos econômicos, culturais, sociais, climáticos, dentre outros, a Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, entendendo que é possível estabelecer certos aspectos mínimos a serem observados independentes das peculiaridades dos contextos particulares, estabeleceu uma série de medidas que compõem o conceito de moradia adequada contidas no § 8° de seu Comentário Geral n. 4:

a) Segurança legal de posse. A posse toma uma variedade de formas, incluindo locação (pública e privada) acomodação, habitação cooperativa, arrendamento, uso pelo próprio proprietário, habitação de emergência e assentamentos informais, incluindo ocupação de terreno ou propriedade.

b) Disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura. Uma casa adequada deve conter certas facilidades essenciais para saúde, segurança, conforto e nutrição.

c) Custo acessível. Os custos financeiros de um domicílio associados à habitação deveriam ser a um nível tal que a

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obtenção e satisfação de outras necessidades básicas não sejam ameaçadas ou comprometidas.

d) Habitabilidade. A habitação adequada deve ser habitável, em termos de prover os habitantes com espaço adequado e protegê-los do frio, umidade, calor, chuva, vento ou outras ameaças à saúde, riscos estruturais e riscos de doença.

e) Acessibilidade. Habitações adequadas devem ser acessíveis àqueles com titularidade a elas. A grupos desfavorecidos deve ser concedido acesso total e sustentável para recursos de habitação adequada.

f) Localização. A habitação adequada deve estar em uma localização que permita acesso a opções de trabalho, serviços de saúde, escolas, creches e outras facilidades sociais.

g) Adequação cultural. A maneira como a habitação é construída, os materiais de construção usados e as políticas em que se baseiam devem possibilitar apropriadamente a expressão da identidade e diversidade cultural da habitação.

Destarte, tendo isso em vista, cabe ao legislador brasileiro estabelecer os contornos do direito fundamental à moradia no Brasil, sempre observando o que as normas internacionais estabelecem sobre o tema e o que reclama uma vida com dignidade no contexto brasileiro.

Entretanto, mais do que simples medidas legislativas, o respeito à dignidade humana em face do direito à moradia exige mais que a indispensável atuação do legislador. Não cabe mais ao Poder Público apenas isso. É necessário por em prática políticas públicas voltadas à proteção e promoção desse direito fundamental. Integrando o rol dos direitos sociais, para que a moradia tenha eficácia jurídica e social, faz-se imprescindível uma atuação positiva por parte do Estado, mediante a execução de políticas urbanas e habitacionais.[19]

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Firmados esses e outros caracteres acerca de todos os pontos acima tratados, que, sem pretensão de esgotar, buscou-se traçar um panorama geral, tratar-se-á, no capítulo seguinte, de alguns aspectos da responsabilidade estatal em face de sua conduta omissiva no tange tanto à observância do direito fundamental à moradia, quanto também ao respeito às normas que organizam e ordenam o espaço urbano, sob o enfoque do problema da construção de habitações em áreas de risco.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz de tudo o que foi dito, percebe-se que os direitos fundamentais tiveram sua gênese informada por diversos fatores tanto de ordem ideológica quanto fática. Da evolução social decorreu a necessidade de reconhecimento de determinados valores como sendo caros à sociedade e cuja defesa e concretização de mostrava essencial para todos. E, o reconhecimento do direito à moradia adveio dessa evolução, sendo enquadrado como um relevante direito social.

Em que pese divergência existente, não há como atribuir o reconhecimento desse direito fundamental no ordenamento brasileiro apenas após a emenda constitucional n. 26. A Constituição Federal, desde sua gênese, é clara ao estabelecer que os direitos fundamentais nela explicitados não consubstanciam rol exaustivo, decorrendo o direito humano a uma moradia digna de diversos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais reconhecidos pelo Estado brasileiro.

Percebe-se, ainda, a relevante importância do direito fundamental à moradia na concretização do sobreprincípio da dignidade humana. Não há como o ser humano desenvolver de forma satisfatória todos os aspectos de sua personalidade sem uma moradia adequada e digna, cujo conteúdo deve observar os diversos aspectos apontados na ordem internacional: disponibilidade de serviços e boa infraestrutura, custo acessível, habitabilidade, acessibilidade, boa localidade, dentre outros. E, o Estado tem papel fundamental em sua consolidação na realidade

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fática, devendo adotar medidas voltadas a realiza-lo da forma mais ampla possível no seio social.

REFERÊNCIAS

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12a Ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. 4a Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2a Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

LUÑO, Antonio E. Perez. Los derechos fundamentales. 3 ed. Madri: Tecnos, 1988.

NOLASCO, Loreci Gottschalk. Direito Fundamental à Moradia. 1ª ed. São Paulo: Pillares, 2008.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

________, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. Revista de Ciências Jurídicas. Rio Grande do Sul, v. 4, n. 2, p. 327-383, segundo semestre de 2003. Disponível emhttp://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77). Acesso em 05 de dez. 2011.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27a Ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

NOTAS:

[1]BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. 4a Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 266.

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[2]SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27a Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 172

[3]Idem Ibidem, p. 173

[4]BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2a Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 404

[5]LUÑO, Antonio E. Perez. Los derechos fundamentales. 3 ed. Madri: Tecnos, 1988, p. 20.

[6]SILVA, José Afonso. op. cit., p. 178

[7]HESSE, Konrad. Significado de los derechos fundamentales, in Benda e outros, Manual de derecho constitucional. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 84/85Apud BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. op. cit.,p. 273.

[8]BULOS, Uadi Lammêgo. op. cit., p., 406

[9]Idem Ibidem, p. 406/407.

[10]BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. op. cit.,p., 274.

[11]Idem Ibidem, p. 278.

[12]SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 91.

[13]SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia.Revista de Ciências Jurídicas, Rio Grande do Sul, v. 4, n. 2, p. 327-383, segundo semestre de 2003. Disponível em http://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77). Acesso em 05 de dez. 2011.

[14]BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. op. cit.,p. 278.

[15]Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a

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previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

[16]SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., Disponível emhttp://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77). Acesso em 05 de dez. 2011.

[17]BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12a Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 63

[18]SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., Disponível emhttp://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77). Acesso em 05 de dez. 2011.

[19]NOLASCO, Loreci Gottschalk. Direito Fundamental à Moradia. São Paulo: Pillares, 2008, p. 92.

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OS CONFLITOS CARCERÁRIOS E OS REFLEXOS NO DISCURSO MIDIÁTICO

BRUNA DARONCH: Advogada. Bacharel em Direito na Universidade Federal de Santa Maria.

RESUMO: Este trabalho deduz a influência da mídia na opinião pública no que tange aos conflitos carcerários e a figura dos apenados, partindo da [não] aplicação correta da lei e da legitimação de tais revoltas. Primeiramente, temos a comparação entre o ordenamento jurídico brasileiro e a realidade do cárcere no país, acompanhada dos motivos que levam ao acontecimento de rebeliões e motins. Ainda, demonstra-se a maneira como a mídia informa essas revoltas prisionais, utilizando o discurso do medo e construindo um estereótipo para a população sobre aqueles que estão cumprindo pena privativa de liberdade.

Palavras-chave: Sistema prisional; Conflitos carcerários; Discurso midiático.

-Meu irmão, meu irmão, que coisas estás dizendo? Ora, tu derramaste sangue! – gritou Dúnia em desespero.

- Que não param de derramar – emendou quase caindo em fúria -, que continuam derramando e sempre derramaram no mundo como uma cascata, que derramam como champanhe, pelo qual coroam no capitólio e depois chamam o coroado de benfeitor da humanidade. (Crime e Castigo).

E tu, juiz vermelho, se dissesses em voz alta o que já fizestes em pensamentos, todos gritariam: Fora com esse imundo,

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com esse verme venenoso!... (Assim falou Zaratustra).

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa construir uma crítica em relação à maneira como a mídia aborda, em suas manchetes jornalísticas e demais meios de comunicação, os conflitos carcerários no Brasil, bem como de que modo o discurso por ela utilizado influencia a opinião pública, criando preconceitos que envolvem a figura dos apenados.

Em um primeiro momento, será abordada a realidade carcerária, de forma a explicitar que a pena privativa de liberdade não é cumprida da forma como a Constituição Federal e a legislação penal esparsa garantem, tendo em vista que essas asseguram todos os direitos que não foram atingidos pela sentença ou pela lei. Isso significa que, excetuando a liberdade, os direitos políticos e outros correlatos, as demais garantias constitucionais deveriam ser mantidas para aquele que cumpre pena. Todavia, os estabelecimentos prisionais brasileiros demonstram que muitos apenados são submetidos a condições sub-humanas de vida, sequer sendo respeitados os direitos fundamentais estampados na nossa Carta Magna. Em razão disso, surgem as rebeliões e os motins (dentre outros conflitos carcerários), como uma forma de reivindicar essas garantias mínimas previstas no ordenamento jurídico.

Após, será demonstrada como a mídia, normalmente, trata as questões dos conflitos carcerários, visivelmente despreocupada em informar para a sociedade quais motivos levaram à ocorrência destes, difundindo na sociedade um discurso de medo.

Por fim, será refletivo como o discurso midiático faz com que a sociedade se afaste cada vez mais da realidade penal, criando preconceitos com os aprisionados e com as pessoas que terminam de cumprir sua pena privativa de liberdade, deixando-lhes em uma

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condição equiparada a dos “apátridas”, como definiu Lafer, e dificultando a inserção do ex-apenado na sociedade.

1. REALIDADE PENAL E CONFLITOS CARCERÁRIOS

No século XVIII, os contratualistas, com destaque a Jean-Jacques Rousseau, explicaram a tese de que, para que a sociedade não viva em um conflito generalizado, é necessário o estabelecimento de um contrato social – a lei. Beccaria (2009, p. 18/19) segue o mesmo caminho, afirmando que “somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda em por no depósito comum a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o que era necessário para empenhar os outros e mantê-lo na posse do restante”. Nesse sentido, o direito de punir seria a reunião de todas as pequenas parcelas de liberdade cedidas, sendo que todo o exercício de poder que dele se afasta (desvirtuando suas finalidades, portanto) constitui abuso, e não justiça.

Explicando as funções da pena, o desembargador Nassif (2002, p. 197/198) informa que ela tem como objetivo à recuperação do agente, tratando-se, em tese, de aplicar medidas orientadas para ressocialização do delinquente. Nas suas palavras, o“cumprimento da sanção, para realizar o seu conteúdo teleológico, deveria, por exemplo, resultar em preparação profissional, ensinar a fazer uso do ócio de uma forma construtiva, educar, melhorar as relações pessoais e despertar a consciência socioaxiológica”. Todavia, sabe-se que a pena carcerária não atinge essas funções. Carvalho (2008, p. 214) orienta que “com a crise do Estado providência, desde a gradual predominância da razão mercadológica em detrimento das garantias sociais, o discurso (oficial) sobre a segurança pública, e nele o carcerário, é novamente alterado”. Assim, as possibilidades de arcar com compromissos do Estado-lei ideologizado no século XVIII seriam irreais. A realidade prisional brasileira não busca a ressocialização dos condenados, mas sim, isola em muros onde as garantias

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legais, mesmo os mais simples direitos fundamentais, não são observadas.

A exposição de motivos da Lei de Execuções Penais (LEP) justifica que suas disposições objetivam duas ordens de finalidades: a correta efetivação dos mandamentos existentes nas sentenças ou outras decisões, destinados a reprimir e a prevenir os delitos, e a oferta de meios pelos quais os apenados e os submetidos às medidas de segurança venham a ter participação construtiva na comunhão social, destacando que as penas e medidas de segurança devem realizar a proteção dos bens jurídicos e a re-incorporação do autor à comunidade.

Respeitando essa finalidade, o artigo 3º da LEP apregoa que ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pena lei – ou seja, excetuando a liberdade, os direitos políticos e outros correlatos, as demais garantias constitucionais deveriam ser mantidas para aquele que cumpre pena privativa de liberdade.

Em 1988, a execução penal adquiriu feição constitucional, rompendo com a lógica que tornava o preso mero objeto nas mãos da administração pública. O artigo 5º disciplinou que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (III), que não haverá penas cruéis (XLII, alínea e), que as penas serão cumpridas em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (XLVIII), que serão assegurados aos presos o respeito à integridade física e moral (XLIX), bem como que às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (L).

Entretanto, essa parte da Carta Maior dificilmente é aplicada. Carvalho compara a situação dos apenados com a categoria de apátridas definida por Celso Lafer. Esse último doutrinador ensinou:

[...] à medida em que os refugiados e apátridas se viram destituídos, com a perda da cidadania, dos benefícios do princípio da legalidade, não

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puderam se valer dos direitos humanos, e não encontrando lugar – qualquer lugar – num mundo como o do século XX, inteiramente organizado e ocupado politicamente, tornaram-se efetivamente desnecessários, porque indesejáveis erga omnes, e acabaram encontrando o seu destino e lugar natural nos campos de concentração (LAFER, 1997, p. 58).

A partir disso, Carvalho (2008) explica que a condição de apátrida para Lafer não estaria apenas vinculada à tradicional distinção entre nacionais e estrangeiros, mas provocaria a perda dos elementos mínimos de conexão com a ordem jurídica interna dos Estados, retirando dessas pessoas seu status de cidadania, considerando isso, inclusive, algo como uma “morte civil”.

Os apenados, ao ingressarem no sistema prisional, passam à condição de esquecidos pelo Estado e pela sociedade. A massa e alguns profissionais do Direito ignoram o que ocorre ali dentro, olvidando-se, inclusive, que, após o cumprimento da pena, eles retornarão para o convívio social, sendo poucos os que se preocupam com ilegalidades que podem estar ocorrendo naquele local.

Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini (2002, p. 155) expõem que o Brasil é um dos países de maior taxa de crescimento penitenciário. De 1992 a 1999, esse crescimento foi de 70%, de 1990 a 2000, o crescimento foi de mais ou menos de 160%, enquanto a população brasileira, no mesmo período, só cresceu cerca de 40%. O índice de superlotação carcerária chega a quase 100%, isso significa que o número de vagas não comporta a atual população carcerária. Dessa realidade, só se pode concluir que a situação carcerária é extremamente caótica, e que ao contrário do que prevê a constituição, o cumprimento de pena revela-se cruel e sem respeito à integridade física ou moral dos apenados. Dessa realidade, Carvalho (2008) conclui que a normatividade e o cotidiano acabam por gerar situação indescritível: a brutalização genocida da execução da pena.

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Trancados na instituição total, sem apoio social ou oficial e vivendo em condições extremamente precárias, restam poucas alternativas aos presos para fazerem efetivar seus direitos. Diante disso, a única maneira eficaz de romper com o silêncio totalitário dos muros prisionais é através dos conflitos carcerários, visualizados principalmente nas fugas, rebeliões e motins.

Carvalho (2008, p. 221) diferencia esses conflitos, explicando que a fuga é a saída do preso sem consentimento, é a evasão da pessoa presa de forma pacífica ou mediante uso de violência contra a pessoa ou coisa, ou sob ameaça. Já os motins e as rebeliões são atos de resistência no interior da instituição total, sendo o motim a sublevação de internos contra a administração prisional, implicando atitudes de desordem e tumulto, e a rebelião o ato ou efeito da revolta. A principal diferença entre os dois últimos é o estágio de aquisição do controle da instituição – a rebelião seria o estado anterior ao motim, uma desordem com incapacitação parcial das atividades normais do presídio, enquanto o que pelo motim, é tomado conta e inviabilizada totalmente a administração da unidade prisional.

Todos são movimentos coletivos de rebeldia, e normalmente, tem como causa a revolta com o sistema. Bitencourt (1993, p. 205) afirma que “os motins carcerários são os fatos que mais dramaticamente evidenciam as deficiências da pena privativa de liberdade. É o acontecimento que causa maior impacto e o que permite à sociedade tomar consciência, infelizmente por pouco tempo, das condições desumanas em que a vida carcerária se desenvolve... O motim rompe o muro de silêncio que a sociedade levanta ao redor do cárcere”.

Como causas principais dessa revolta, vislumbram-se a demora do Judiciário na apreciação dos direitos do preso; a deficiência da assistência judiciária; a violência e injustiças praticadas nos estabelecimentos; problemas ligados aos entorpecentes; superlotação carcerária; má-qualidade da alimentação; assistência médica e odontológica; problemas ligados

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à corrupção; e falta de capacitação dos funcionários das penitenciárias, principalmente os diretores.

Diante do exposto, conclui-se que, na maioria dos casos, os conflitos carcerários só ocorrem quando os apenados estão insatisfeitos com o tratamento a eles dirigido, ou com a atuação judicial e da administração da penitenciária. Nesse sentido, Carvalho (2008, p. 223/224) cita conclusão do jornalista Marcos Rolim “ao invés de tratarmos os motins, simplesmente, como graves atentados à ordem disciplinar, seria mais correto concebê-los como sintomas, mais ou menos violentos, dessa mesma ‘ordem’ fundada no seqüestro institucional da cidadania dos encarcerados”.

2. DISCURSO MIDIÁTICO E SEUS REFLEXOS PARA A SOCIEDADE

Sabe-se que a mídia é grande formadora de opinião. Entretanto, geralmente, a informação é transmitida de acordo com o seu interesse, utilizando recursos psicológicos para atrair a atenção do público. Rolim (2009, p. 189) afirma que “toda e qualquer matéria, por mais ‘objetiva’ e circunscrita àquilo que se entende como a ‘realidade fática’ estará sempre estruturada em uma idéia moral. Antes mesmo da matéria, aquilo que aparece como ‘o fato’ já é o resultado de uma escolha subjetiva que aparece naturalmente, como se fosse uma evidência, apenas na medida em que nossos valores morais são, para nós mesmos, ‘evidentes’”.

Nessa lógica, é criado na sociedade um senso comum, que variará de acordo com os interesses perpassados pelos meios de comunicação. Por exemplo, quando um crime é noticiado, são formados estereótipos, gerando comoção e medo no meio em que o fato ocorreu. A simples manchete da notícia já é carregada de ideologias e pré-conceitos tendenciosos, que persuadirão a opinião pública.

Rolim (2009, p. 193) explica que o “sensacionalismo é um termo que denota a tentativa de submeter a percepção do público às ‘sensações’, à realidade sensível, garantindo-se, assim, o

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excitamento funcional à venda da notícia. (...) O público, saturado com notícias sobre atos mórbidos que vitimam inocentes, sente-se muito concretamente ameaçado. (...) Esse efeito terá repercussões importantes quanto à sensação de insegurança”.

Dessa forma, a mídia difunde o medo, justificando políticas públicas muitas vezes repressivas – como a tomadas das favelas pelas unidades de polícia pacificadoras, por exemplo -, criando na população uma necessidade de criminalização de condutas, bem como punições mais rigorosas.

Gomes e Bianchini (2002, p. 159) doutrinam: “Políticos e comunicadores sociais nefastos e inescrupulosos, que banalizam diuturnamente a violência, na medida em que já não necessitam vangloriar a pena de morte (...), louvam-na, particularmente em tempos eleitorais, com a estelionatária tese de sua perpetuidade (...) Agora o que se pretende é a eternização do espetáculo de fabricação de um tipo específico de deliqüencia (e delinqüente)”.

A imparcialidade é ainda maior quando da retratação da população carcerária. Cristina Rauter, em artigo publicado no periódico Veredas do Direito, refere imagens exibidas no Jornal Nacional no dia 27 de maio de 2006:

[...] o texto da matéria pretendia mostrar que mesmo num presídio de segurança máxima os presos ainda contestavam os agentes penitenciários, e isso era inadmissível (...) Servidos como um dos pratos principais do jantar do brasileiro, no sábado à noite, estava essa obscura matéria jornalística. Obscura porque não se sabem quais são os seus verdadeiros interesses (...) Mostrar que os presos resistem à prisão, às suas rotinas, à revista ostensiva realizada pelos agentes penitenciários durante o conturbado período “pós-maio de 2006”, essa foi a tônica do noticiário. A resistência de presos mostrada como algo fora do comum, que não deveria

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acontecer, é um fato preocupante, por aponta para o extermínio (RAUTER 2006, p. 86/87).

As notícias sobre conflitos carcerários dificilmente saem do comum. São repassadas, em regra, de forma descompromissada com as suas causas, ressaltando as consequências e vitimizando os agentes penitenciários.

Esse interesse de sempre mostrar os apenados como “vilões” pode ser visualizado em manchetes como as publicadas no jornal “Folha de S. Paulo” em 12/09/2011: Rebelião em penitenciária faz agente refém em Maringá (PR), também em 19/06/2011:Presos agridem agentes em tentativa de rebelião em Cuiabá (MT) e, ainda, em 26/06/2011: Rebelião deixa cinco feridos em Goiás. Consta na matéria dessa última manchete: “A PM não soube informar o motivo da rebelião, que teve início por volta das 17h30 e terminou às 21h30”.

Ainda, manchete do jornal O Globo, em 24/04/2009, trouxe o seguinte texto: Rebelião danifica estrutura do presídio e causa tumulto no sul de Minas Gerais, ressaltando o descaso com a dignidade da população carcerária e com os motivos os quais fizeram com que os apenados se rebelassem, ressaltando as possíveis consequências negativas do conflito para a sociedade.

No jornal Zero Hora, destacam-se as seguintes manchetes sobre rebeliões: dia 03/03/2011: Presos fazem rebelião no Presídio de Lajeado e três são baleados pela BM; 03/06/2010: Presos queimam colchões e fazem rebelião no Presídio Estadual de Alegrete.

Ressalte-se que as manchetes supracitadas só ilustram a maioria das informações passadas pelos aludidos jornais. Poucas foram as notícias que trataram das causas ou da legitimidade das reivindicações, como se vislumbra em matéria publicada no dia 09/11/2010 no jornal O Globo: “Após 27 horas, termina rebelião em presídios do Maranhão: ‘Os rebelados reclamavam de maus-tratos e da superlotação no presídio Reivindicavam ainda agilidade nos processos pela Justiça e água no presídio’”.

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A mídia sensacionalista expõe matérias desse tipo em que é divulgada a violência e revelam os apenados como constantes criminosos. Em troca disso, chamam a atenção do público alvo e ganham audiência, sem levar em consideração o impacto cultural causado na sociedade, pois muitas vezes se tratam de fatos distorcidos ou, pelo menos, mal explicados.

Em consequência, a sociedade estabelece opinião fixa a respeito daqueles que saem da prisão. Em 1932, Mira y López (2005, p. 297/298) já doutrinava que é claro e evidente que a organização social em que se vive “priva o delinqüente sinceramente arrependido dos recursos necessários para voltar a reintegrar-se normalmente nela; por toda a parte é recebido com apreensão, desconfiança ou repulsa (...) Esses fatores se unem (...) para formar o tipo denominado ‘delinquente habitual’, que constitui uma endemia nas grandes cidades e um mau exemplo nas pequenas”.

Isso significa que, com seu discurso estimulador do medo e dos preconceitos, a mídia, que deveria repassar a informação imparcialmente para que cada indivíduo construísse uma opinião própria; perpetua um círculo vicioso injustificável – em que aquele que delinqüiu, além de passar anos no silêncio dos muros prisionais, isolado dos direitos garantidos a qualquer pessoa que viva sobre o território pátrio, vai sair do sistema (que deveria ser ressocializador) sem possibilidade de se integrar novamente à sociedade e com mínimas chances de buscar melhores condições de vida – o que pode fazer com que um indivíduo o qual, em circunstâncias normais, não voltaria a cometer crimes, transforme-se em um criminoso pela perversa influência do meio (Nassif, 2002).

Por fim, conforme conclui Rauter:

[...] os presos resistem e sempre resistiram, de forma mais ou menos organizada, ao sistema prisional. O funcionamento atual desse sistema no Brasil possui características que o tornam campeão em violações de direitos humanos. O

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clima gerado no país, de clamor pelo encarceramento de bandidos e por prisões mais duras, tem como efeito que se incrementem ações policiais que, quando não resultam em mortes, geram mais e mais encarcerados. [...] Trabalha-se a opinião pública no sentido de considerar que a tortura de bandidos é válida [...]. Ao pensarmos essas difíceis questões a partir de do que é semelhante, ficaremos necessariamente sem compreender a singularidade do fenômeno da violência brasileira [...]. Essa parece ser a consequência mais evidente desse discurso: justificar o poderoso aparelho policial e penal montado contra os mais pobres no Brasil [...] (RAUTER, 2006, P. 92/94).

Diante disso, imperioso concluir que a mídia brasileira, por repassar as informações que ela entende adequadas, em regra, só agrava a situação do condenado ainda preso e do que já cumpriu sua pena e tenta se ressocializar.

CONCLUSÃO Os contratualistas justificavam a lei como uma forma da

sociedade viver em harmonia. Dessa forma, a repressão penal seria um consenso entre todos, para que a paz imperasse nas cidades. Desde então, aqueles que cometem crimes são isolados da vida civil e encarcerados em prédios que deveriam possuir uma estrutura adequada para não só penalizar, mas reeducar e “ressocializar” o criminoso que, um dia, sairia das grades prisionais.

Mas a idealização de um sistema carcerário se mostra muito mais simples que

a sua concretização. No Brasil, a Lei de Execuções Penais foi criada por dois motivos primordiais: garantir a efetiva execução da sentença penal condenatória, bem como garantir os direitos do

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preso que não são atingidos pela pena, para sua participação na comunhão social e re-incorporação no meio de onde foi retirado.

Corroborando o segundo objetivo da LEP, a Constituição Federal estabeleceu

garantias básicas para os encarcerados, como a não aplicação de penas cruéis ou perpétuas, e o respeito à integridade física e moral desses.

Entretanto, o prédio carcerário e seus “moradores” são esquecidos pela sociedade. Assim como os “apátridas” definidos por Lafer, dos apenados é retirado seu status de cidadania, ficando quase como imunes à aplicação das garantias legais. Visando romper o silêncio dos muros prisionais, os apenados utilizam-se de meios para chamar a atenção dos aplicadores da lei e da sociedade, mediante, por exemplo, rebeliões e motins. Tais condutas não são uma opção dentre os meios de reivindicação que lhes é possível, pois apenas mediante a realização de conflitos carcerários é que o prédio da referida instituição volta a ser alvo de atenção e preocupação.

Ocorre que, na maioria das vezes, o objetivo pretendido é refletido de maneira oposta. Isso porque as notícias veiculadas sobre o acontecimento, normalmente, só possuem um objetivo: atrair o público difundindo um discurso do medo. Dificilmente serão noticiadas as causas que deram origem ao conflito, o que se transmite são as consequências do ato – número de mortos, principalmente se eles forem policiais, os resultados físicos no prédio, os reflexos para a população civil – não encarcerada – que vive nos redores do local do evento.

A consequência diretamente vislumbrada será a formação de preconceitos contra a população carcerária. Os apenados – que já são vistos como delinquentes por estarem na cadeia – ganham um estereótipo de constantes violadores da lei, que não devem merecer respeito ou confiança.

Tudo isso gera um círculo vicioso, em que aquele que sai da cadeia é visto com desconfiança e medo, o que só agrava a

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dificuldade de reinserção na sociedade daquele que um dia passou pelos muros prisionais. Dessa forma, aquilo que era para ser como uma das finalidades da pena transfigura-se numa utopia – que certamente, só auxiliará para o aumento da criminalidade e possibilidades de reincidência.

Portanto, conclui-se que a mídia, mediante o seu discurso do medo, impõe um comportamento geral na sociedade, que passa a ver com preconceito e desconfiança os apenados e ex-apenados. Dessa forma, ao mesmo tempo em que ela gera na sociedade um sentimento de insegurança e necessidade de mais rigor penal, contribui indiretamente para o aumento da criminalidade, na medida em que dificulta a reinserção dos condenados que já cumpriram sua pena e criam opiniões desvirtuadas acerca da realidade carcerária brasileira.

REFERÊNCIAS

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REBELIÃO deixa cinco feridos em Goiás: “A PM não soube informar o motivo da rebelião, que teve início por volta das 17h30 e terminou às 21h30.”. A Folha, São Paulo, 23 jun. 2011. Disponível em:

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO

ARTHUR CRISTÓVÃO PRADO: formado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com estágio na Universidade Livre de Berlim. Já fez pesquisa nas áreas de teoria geral do direito privado e filosofia do direito. Atualmente é escrevente técnico judiciário em gabinete de desembargador na Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Resumo: o presente artigo se presta a traçar considerações sobre o que se deve entender por interpretação do negócio jurídico, a que fazem referência, por exemplo, os arts. 112 e 113 do Código Civil vigente, empregando, principalmente, conceitos da doutrina italiana, bem como aqueles capitaneados pelos mais relevantes doutrinadores nacionais.

Palavras-chave: teoria geral do direito privado; direito civil; negócio jurídico; interpretação.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, faremos uma discussão a respeito da interpretação do negócio jurídico, a que fazem referência os arts. 112 e 113 do Código Civil vigente, baseando-se em conceitos da doutrina italiana e nacional. Levamos em consideração que interpretar o negócio jurídico é, para PONTES DE MIRANDA, "revelar o significado que se deve atribuir à manifestação de vontade, ou às manifestações de vontade de que resultou o negócio jurídico"[1]. Seu objeto é, portanto, a declaração[2]. Para o autor, não importa se essas declarações são expressas ou implícitas. O critério para

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determinar se determinado fato é relevante à interpretação é verificar se ele figura no suporte fático. Lá estando, ele é elemento que deve ser considerado na interpretação[3]. Sua finalidade é entender o que declararam as partes, o que é imprescindível para determinar quais são os "direitos e obrigações" a que tenha dado origem a declaração[4] (conteúdo da regulação objetiva, na terminologia aqui empregada).Para se falar, porém, em interpretação, é necessário assumir um ponto de vista: o negócio, como declaração, é interpretado como deve ser entendido por quem? Estabelecido isso, cumpre saber exatamente o que se está a interpretar. Por fim, busca-se entender a divisão, empreendida por parte da doutrina, entre momentos interpretativos.

DESENVOLVIMENTO

Os pontos de relevância hermenêuticos

A resposta a essa pergunta passa pela explicação dos pontos de relevância hermenêutica, que são as posições abstratamente assumidas pelo intérprete ao realizar a interpretação, e localizados em uma sede. Eles variam conforme o tipo do negócio. No caso de uma declaração receptícia, em primeiro lugar, a exigência de recognoscibilidade objetiva de uma declaração demanda que o intérprete se posicione no lugar do destinatário, seja ele contraparte, seja mero interessado (no caso dos negócios bilaterais e unilaterais, respectivamente). O intérprete deve então tomar a declaração de acordo com os critérios de lealdade e fidelidade impostos pela boa-fé[5]. Em outros termos, ao interpretar esse tipo de declaração, só se pode tomar em consideração aquelas circunstâncias que fossem notórias para a outra parte do negócio[6].

Diversamente ocorre no caso dos negócios jurídicos mortis causa. O escopo desse tipo de negócio não é compor um conflito de interesses, mas resolver um problema de sucessão[7]. A obrigatoriedade da interpretação de acordo com a boa-fé não se aplica, então, a esses negócios[8]. Por conta disso, a sede interpretativa desloca-se, e passa a admitir o recurso à vontade

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interna do de cujus, ainda quando não imediatamente apreensível pelos interessados.

Por fim, no caso dos negócios unilaterais cujo destinatário é indeterminado ou fungível, a sede desloca-se para o interesse que possam suscitar[9]. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de promessa pública de recompensa. Nesse caso, o intérprete deve ter em conta o conhecimento havido por um integrante médio do círculo concreto de pessoas ao qual está destinado o negócio. Só devem ser consideradas as circunstâncias que todo membro desse círculo possa conhecer[10].

Embora não utilize a terminologia empregada porBETTI, LARENZ chega a conclusões parecidas. Ele escreve que, para o declarante que, por ter se expressado defeituosamente, faz com que o destinatário entenda um sentido equivocado, surge o dever de fazer valer a declaração no sentido que foi efetivamente transmitido. Nisso consiste a auto-responsabilidade[11]. É necessário, para isso, que o sentido atribuído pelo destinatário seja imputável ao declarante, tomando por base, na interpretação, um sujeito que faz uso da necessária diligência. Não de deve, porém, necessariamente adotar a interpretação seja do declarante, seja do destinatário da declaração. A interpretação adequada do negócio divergirá delas quando alguma das duas for equivocada[12]. Se a interpretação do declarante fosse sempre a correta, não faria sentido falar-se em erro (arts. 138-144 do Código Civil de 2002). Outrossim, é plenamente possível que a interpretação feita pelo destinatário da declaração seja defeituosa.[13] Os pontos de relevância hermenêutica indicam, na verdade, não a interpretação a ser adotada, mas o posicionamento do intérprete, que lhe permitirá avaliar quais circunstâncias deviam ou podiam ser conhecidas pelos sujeitos relevantes à declaração, e, com base nisso, determinar quais são as circunstâncias relevantes para a interpretação.

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Os diferentes conteúdos do negócio jurídico

É necessário distinguir entre os conceitos de "conteúdo expresso", "conteúdo implícito" e "conteúdo global" do negócio jurídico, de modo a esclarecer qual éo papel da interpretação em determinar cada um deles. Conteúdo expresso é todo aquele, presente na declaração negocial, que constitui a própria declaração negocial. O conteúdo implícito não figura na declaração; antes, é revelado por meio da interpretação. O conteúdo global (ou, simplesmente, conteúdo do negócio jurídico), por sua vez, consiste no conjunto dos dois anteriores. Não é necessário que todo negócio tenha um conteúdo implícito, uma vez que é possível que todo o conteúdo do negócio esteja manifesto em sua declaração, mas esse caso é pouco frequente[14].

Conteúdo da regulação objetiva é entendido como a soma do regramento de interesses estabelecidos pelas partes (subjetivo, portanto) com os efeitos imputados pelo ordenamento jurídico ao negócio. Esses efeitos advêm dos processos de integração, e também da interpretação integrativa (por meio da boa-féobjetiva, por exemplo)[15].

Uma vez que a interpretação difere da atribuição de efeitos ao negócio, ela não é suficiente para determinar o conteúdo completo da regulação objetiva. Para isso, ela teria, por exemplo, que determinar os elementos naturais do negócio, que são imputados por meio do ordenamento jurídico[16].

Momentos interpretativos

O processo de determinação do sentido global do negócio jurídico é, como se viu, sua interpretação. Esse processo, entretanto, pode não alcançar, de início, todo o sentido global. Isto é, pode haver deficiências na declaração negocial que limitem a eficiência da interpretação, limitando o escopo da interpretação psicológica[17]. Podemos categorizar essas deficiências em três grupos: ambiguidades, obscuridades e lacunas. Os pontos que

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apresentam tais deficiências corresponderiam, respectivamente, àqueles dos quais se pode depreender mais de um sentido, àqueles sem sentido aparente e àqueles para os quais não háregulação expressa[18].

Com isso em mente, parece conveniente realizar uma bipartição do processo interpretativo, por motivos didáticos e para possibilitar a distinção entre as necessidades e normas aplicáveis a cada uma das fases, orientando, assim, o esforço do intérprete. Essa divisão tem origens romanas, embora, naquele momento, fosse realizada em três partes, e não duas: a recognitiva, a integrativa e a corretiva[19]. Na doutrina italiana, concebe-se uma cisão similar, que reparte a interpretação em psicológica (aquela que busca a intenção comum das partes) e objetiva (aquela que usa o valor objetivo do contrato para encontrar uma intenção comum). Essa cisão encontra respaldo na própria estrutura do Codice Civile: os arts. 1362-1365 dispõem sobre as regras de interpretação subjetiva; o art. 1366, sobre interpretação de acordo com a boa-fé(por vezes arrolada entre os critérios de interpretação objetiva); os arts. 1367-1369, sobre interpretação objetiva[20].

A primeira fase é aquela que começa simultaneamente ao processo interpretativo e se encerra com a constatação de uma deficiência. Caso não seja identificada deficiência alguma, a interpretação esgota-se nessa primeira fase. A ela, dá-se o nome defase meramente recognitiva. A segunda fase é subsequente e tem por escopo resolver os defeitos encontrados na primeira fase, sem recurso à declaração[21]. Ela denomina-se fase integrativa[22], e pressupõe a falha da primeira fase em elucidar completamente o preceito de autonomia privada[23].

A primeira fase da interpretação do negócio jurídico caracteriza-se por ser subjetiva ou psicológica[24]. Nela, o intérprete deve partir do sentido literal da linguagem e procurar chegar ao sentido atribuído pelas partes àdeclaração. Nesse sentido, é necessário apreender, em certo sentido a "vontade" (mens, intenção) das partes[25]. Faz-se necessário precisar o sentido do termo "vontade"

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aqui empregado. A vontade psicológica ou interna é, na expressão de BETTI, algo de inapreensível, que se esgota na constituição do ato. Por isso, e em razão da necessidade de proteger a confiança dos demais interessados no negócio (por virtude da boa-fé), não faz sentido que o intérprete a leve em consideração. Ao invés dela, é necessário que seja considerada uma vontade dotada de recognoscibilidade social[26],[27]. As circunstâncias devem ser consideradas pelo intérprete na fase meramente recognitiva do negócio jurídico. Convém precisar, em primeiro lugar, quais são as circunstâncias relevantes.

Nem todas as circunstâncias que poderiam servir para elucidar o sentido global do negócio são necessariamente conhecidas de ambas as partes. Em alguns casos, elas são desconhecidas de ambas as partes, ou conhecidas de apenas uma delas. Não basta, porém, esse juízo para determinar quais são as circunstâncias relevantes. Em alguns casos, pode ocorrer que a parte desconhece uma circunstância que deveria conhecer, e cujo conhecimento pode ser pressuposto por uma outra parte com um grau razoável de probabilidade. Antes, então, vale distinguir as circunstâncias que a parte podia e devia conhecer daquelas que não têm esses qualificadores. Estas, sim, devem ser tomadas pelo intérprete[28].

Em síntese:

"Pode-se concluir que vontade da parte ou das partes do negócio jurídico, almejada pelo intérprete na fase hermenêutica meramente recognitiva, corresponde ao sentido que o intérprete conclui tenham a parte ou as partes atribuído à declaração negocial, após o exame da literalidade da linguagem, do contexto verbal e de todas as circunstâncias relevantes, tendo em vista o ponto de relevância hermenêutica peculiar ao negócio jurídico em questão."[29]

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A fase complementar da interpretação assume características muito diferentes sendo ele inter vivos oumortis causa.

No caso dos negócios mortis causa, como exposto, em decorrência da localização do ponto de relevância hermenêutica, cumpre ao intérprete uma interpretação subjetiva. Chega-se a falar, inclusive, nesse caso, na investigação da vontade hipotética do de cujus. O intérprete tem à sua disposição, em suma, uma ampla variedade de circunstâncias que podem ser utilizadas no processo hermenêutico. Elas não têm que ser conhecidas (ou não precisam dever ser conhecidas) por qualquer outro interessado[30].

Nos negócios inter vivos, contrario sensu, a fase complementar da interpretação assume caráter objetivo, também em decorrência dos pontos de relevância hermenêutica. Por conta disso, para BETTI, o momento complementar chega a se confundir, nesse caso, com a interpretação técnica (embora o mesmo não ocorra com os negócios mortis causa)[31], isto é, a fase que repropõe o problema que o negócio procura resolver, e lhe dá uma solução com base na totalidade do ambiente social[32]. Ora, um negócio inter vivos pressupõe conflito de interesses, o que despe de significado a noção de "vontade presumida comum". Em função disso, é necessário encontrar critérios objetivos para a resolução de defeitos[33].

Nos negócios jurídicos inter vivos, como foi visto, é necessário fazer uso de critérios objetivos na fase complementar da interpretação. É necessário determinar, então, quais sejam esses critérios. Os dois critérios principais, positivados, no Código Civil de 2002, por meio do art. 113, são a boa-fé e os usos.

Interpretação integrativa e integração

Parte-se, aqui, da premissa de que não integra o negócio jurídico exclusivamente aquilo que estápresente no conteúdo expresso. Ele abarca também todas as soluções para os problemas que se põem perante a situação que origina o negócio jurídico.

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PONTES DE MIRANDA chega a dizer que "[n]o negócio jurídico, regula-se tudo o que era indispensável que se regulasse"[34]. Com isso em vista, o autor define interpretação integrativa como "o meio para se dar ao conteúdo [do negócio jurídico] toda a extensão que êle deve ter, dentro do que pode ter"[35].

Cumpre distinguir entre os termos, frequentemente confundidos, interpretação integrativa e integração. A distinção decorre da própria natureza do negócio: sendo ele não propriamente um preceito jurídico, mas um preceito com natureza jurídica[36], há uma diferença entre o negócio em si e suas consequências jurídicas[37]. Nessa mesma medida, diferenciam-se interpretação integrativa e integração.

A interpretação integrativa faz parte propriamente do processo de interpretação[38] e se presta à elucidação do conteúdo global do negócio jurídico. Esse conteúdo não basta, entretanto, para determinar todo o conteúdo da regulação objetiva do negócio. Este compõe-se, também, de fontes não-interpretativas, como normas dispositivas. A integração atua na etapa posterior à interpretação[39], de modo a solucionar lacunas do negócio existentes após o término do processo interpretativo (que inclui a interpretação integrativa)[40].

Suas fontes são as normas supletivas, a boa-fé e os usos em função normativa[41]. Todos esses resultados da interpretação atuam sobre os efeitos do negócio jurídico, isto é, eles incidem ainda que não estejam dispostos na declaração negocial, que é determinada pela interpretação. Nesse âmbito, diversamente do que ocorre na interpretação integrativa, a boa-fé (objetiva) tem o escopo de efetivamente criar deveres para as partes[42]. É o que dispõe o art. 422 de nosso Código Civil.

Existem, por óbvio, limites ao conceito de interpretação integrativa, necessários para distingui-la da integração. Mencionam-se pelo menos dois. Em primeiro lugar, seus resultados não podem chocar-se com aquilo que algum dos figurantes expressamente manifestou. Em segundo, essa forma de interpretação não pode

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gerar um resultado correspondente a uma estipulação que, tendo sido oferecida por uma das partes, não foi aceita pela outra[43].

Já a integração tem por escopo o preenchimento de lacunas da declaração negocial[44]. Por isso, não se pode dizer que ela revele o conteúdo negocial, e sim da aplicação de uma disciplina extranegocial[45]. Antes, trata-se de revelar pontos implícitos ou não declarados do negócio jurídico. Diversamente ocorre com a elucidação de ambiguidades e lacunas, cujo esclarecimento também faz parte da fase complementar[46].

A mais precisa explicação para a dificuldade em distinguir entre os dois conceitos parece ser a de EMILIO BETTI. Para o autor, a dificuldade em distinguir entre eles deriva, mais uma vez, dos pressupostos teóricos herdados pelas teorias voluntaristas. Para elas, no momento em que se encerra a possibilidade de aferir uma "vontade hipotética", encerra-se a interpretação, e necessariamente começa a integração. Já para quem se presta a reconhecer o significado objetivo de um ato,é possível estender a interpretação a pontos que não foram objeto de reflexão consciente das partes. A interpretação integrativa, então, procuraria explicitar pontos que ficam implícitos na declaração, ou atémesmo na deliberação consciente de quem realiza o negócio. É irrelevante, de acordo com essa visão, que a parte tenha ou não querido criar preceitos adequados àboa-fé, por exemplo, já que sua vontade interna não entra na interpretação integrativa; basta que tenha havido a possibilidade de que as partes tivessem pensado neles. Já a integração pressupõe a falta de um preceito que possa ser extraído da declaração, e, portanto, uma lacuna na própria ideia do negócio[47]. Esses preceitos implícitos, quando recuperados pela interpretação integrativa, teriam um caráter "virtual"[48], já que fazem parte do negócio independentemente de sua explícita previsão na declaração, ou mesmo da "vontade real" das partes[49].

PONTES DE MIRANDA coloca a questão em outros termos, mas chega, aparentemente, às mesmas conclusões. Para ele, a interpretação integrativa busca, sim, a vontade que os figurantes

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teriam manifestado se tivessem previsto determinado problema, mas isso édiferente da "vontade hipotética". De acordo com essa perspectiva, os figurantes efetivamente tiveram a vontade, ainda que não a tenham manifestado, e éirrelevante que algum deles porventura não tenha querido determinado resultado. Isso, que aparece, aqui, com o nome de "vontade" é o sentido do negócio, conforme aquilo que foi manifesto[50]. É bem diferente, portanto, da "vontade" cuja investigação é criticada, por exemplo, por BETTI

(mas evidencia como o termo éambíguo), mas pode ser explicada se se considerar que, feita uma declaração a partir da qual seja possível inferir determinada vontade, essa vontade deve ser considerada como existente, independentemente de ter existido ou não[51]. MENEZES CORDEIRO vai chamar esse conceito de "vontade hipotética objetiva"[52].

Também o conceito de lacuna pode ser útil à distinção entre integração e interpretação integrativa. Para isso, é necessário precisar o que se entende por "conteúdo" de negócio jurídico.

JUNQUEIRA aborda o tema ao falar de objeto do negócio jurídico. Para ele, há três espécies de conteúdo: o expresso, o implícito e o incompletamenteexpresso. Fazem parte do conteúdo implícito do negócio os elementos categoriais derrogáveis (também chamados, pela doutrina em geral, elementos naturais); tudo aquilo que é referido completamente no negócio compõe o conteúdo explícito; aquilo, por fim, que faz parte do conteúdo incompletamente referido, como qualidades não mencionadas da coisa vendida, compõe o conteúdo incompletamente expresso[53]. A título de simplicidade, e também por ser desnecessária, para esta empreitada, a tripartição proposta, utilizar-se-á o conceito de conteúdo expresso como foi proposto pelo autor, mas as duas outras categorias serão agrupadas sob o nome de conteúdo implícito.

É necessário, ainda, distinguir entre conteúdo expresso e conteúdo total do negócio jurídico. O primeiro consiste naquilo que é efetivamente declarado pelas partes.

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Também é possível chamá-lo de "fórmula". O segundo, por outro lado, abarca tudo aquilo que está compreendido pela "ideia" do negócio jurídico. O conceito inclui todos aqueles pontos que a natureza do negócio sugeriria serem necessários, mas que, possivelmente por equívoco dos declarantes, não aparece no conteúdo expresso. Isto é, são pontos que, situando-se o intérprete na posição que ocupavam as partes no momento da celebração do negócio, éprevisível que viessem a ser necessários. Há uma lacuna, portanto, sanável por meio da interpretação integrativa, quando um ponto é coberto pelo conteúdo total, mas não pelo conteúdo expresso[54]. Pontos não cobertos pelo conteúdo total só são sanáveis por meio da integração[55]. Esse processo não é, portanto, um preenchimento de lacunas, propriamente, mas uma ulterior regulação do negócio, uma vez que o intérprete não deve criar pontos do regramento negocial que não foram premeditados pelas partes[56].

MARINO sintetiza essa diferença, em outra linguagem, de forma simples e eloquente:

"O conteúdo do negócio jurídico, por sua vez, é o conjunto de preceitos ou regras que emanam do negócio jurídico. Tais preceitos trazem, de certa maneira, a 'descrição' dos efeitos jurídicos que a lei liga ao negócio jurídico, mas não se confundem com os efeitos jurídicos em si (sendo o conteúdo, como visto, espécie de 'entidade mediadora entre o ato e os efeitos jurídicos')."[57]

CONCLUSÃO

Em sede doutrinária, especialmente com base nas lições de autores da Europa continental, acredita-se ser possível, como delineado neste artigo, estabelecer as balizas necessárias para que se inicie, no Brasil, um estudo mais profundo sobre o tema. Entretanto, ainterpretação do negócio jurídico carece, ainda,

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de desenvolvimento dogmático que lhe confira segurança na aplicação.

REFERÊNCIAS

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BIANCA, MASSIMO, Diritto civile, vol. 4, 2a ed., Milano, Giuffrè, 2000.

DANZ, ERICH, Die Auslegung der Rechtsgeschäfte, trad. port. F. d. Miranda, A interpretação dos negócios jurídicos, Coimbra, Arménio Amado, 1942.

JUNQUEIRA DE AZEVEDO, ANTONIO, Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, 4a ed., São Paulo, Saraiva, 2002, pp. V-172.

LARENZ, KARL, Allgemeiner Teil des deutschen Bürgerlichen Rechts, trad. esp. M. Izquierdo and Macías-Picavea, Tratado de derecho civil alemán —parte general, Madrid, Revista de derecho privado, 1978.

MARINO, FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO,Interpretação do negócio jurídico, São Paulo, Saraiva, 2011, pp. 7-394.

MENEZES CORDEIRO, ANTÓNIO, Tratado de Direito Civil Português — parte geral, vol. I, 3a ed., Lisboa, Almedina, 2005.

PONTES DE MIRANDA, FRANCISCO CAVALCANTI, Tratado de direito privado, vol. III, Rio de Janeiro, Borsói, 1954.

STOLFI, GIUSEPPE, Teoria del negozio giuridico, trad. esp. J. S. Briz, Teoria del negocio juridico, Madrid, Revista de derecho privado, 1959.

VOCI, PASQUALE, Interpretazione del negozio, inEnciclopedia del diritto, vol. 22, Varese, Giuffrè, ano 1972.

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NOTAS:

[1] F. C. PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, vol. XXXVIII, 3a ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1972, p. 69. O autor chega a falar na determinação dos "limites" e "conteúdo" do negócio jurídico na página seguinte.

[2] K. LARENZ, Allgemeiner Teil des deutschen Bürgerlichen Rechts, trad. esp. M. IZQUIERDO and MACÍAS-PICAVEA, Tratado de derecho civil alemán — parte general, Madrid, Revista de derecho privado, 1978, p. 460.

[3] É possível combinar essa noção com aquelas que entendem que o escopo da interpretação édeterminar o significado juridicamente relevante do negócio (como em M. BIANCA, Diritto civile, vol. 4, 2a ed., Milano, Giuffrè, 2000, p. 17). Assim, parece lícito concluir que fazem parte do suporte fático do negócio todos os elementos do comportamento do sujeito que são juridicamente relevantes.

[4] G. STOLFI, Teoria del negozio giuridico, trad. esp. J. S. BRIZ, Teoria del negocio juridico, Madrid, Revista de derecho privado, 1959, p. 285.

[5] E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, 2a ed., Torino, Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1950, p. 51.

[6] E. DANZ, Die Auslegung der Rechtsgeschäfte, trad. port. F. D. MIRANDA, A interpretação dos negócios jurídicos, Coimbra, Arménio Amado, 1942, pp. 27-28.

[7] E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridicocit., p. 331.

[8] E. DANZ, Die Auslegung der Rechtsgeschäfte cit., pp. 321-323.

[9] E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridicocit., p. 332.

[10] K. LARENZ, Allgemeiner Teil des deutschen Bürgerlichen Rechts cit., p. 467.

[11] M. BIANCA, Diritto civile cit., p. 21.

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[12] Ressalve-se, porém, o caso em que tanto o declarante quanto o destinatário incorrem no mesmo erro interpretativo. Nesse caso, não há motivo para que se atribua ao negócio sentido diferente daquele que ambas as partes atribuíram, pelo menos no caso dos negócios inter vivos. Essa ideia é expressa pelo brocardo "falsa demonstratio non nocet", que se aplica ainda ao caso em que as partes convencionam que adotarão para determinado termo ou expressão significado diverso do usual, o que constitui um caso de interpretação autêntica, isto é, aquela feita pelas próprias partes. Nesse caso, o juiz (ou outro intérprete) deve adotar a significação convencionada. Cf. K. LARENZ, Allgemeiner Teil des deutschen Bürgerlichen Rechts cit., p. 456, G. STOLFI, Teoria del negozio giuridico cit., p. 286 e E. DANZ, Die Auslegung der Rechtsgeschäfte cit., pp. 83, 89-90.

[13] K. LARENZ, Allgemeiner Teil des deutschen Bürgerlichen Rechts cit., pp. 452-455, 459.

[14] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., pp. 45-46.

[15] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 47.

[16] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., pp. 48-50.

[17] E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridicocit., p. 351.

[18] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 159.

[19] A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português — parte geral cit., p. 749.

[20] M. BIANCA, Diritto civile cit., pp. 414-415, 417.

[21] A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português — parte geral cit., p. 750.

[22] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 160.

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[23] E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridicocit., p. 340.

[24] E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridicocit., pp. 337-340.

[25] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 164.

[26] Exatamente a quem ela deve ser recognoscível depende dos pontos de relevância hermenêutica. Em linhas gerais, em negócios inter vivos, a vontade deve ser recognoscível às partes. Em negócios mortis causa, ela pode ser a vontade do de cujus, ainda que aferida apenas por amplos meios interpretativos.

[27] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., pp. 164-165.

[28] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 172.

[29] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 174.

[30] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 178.

[31] E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridicocit., p. 343.

[32] E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridicocit., p. 340.

[33] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 180.

[34] F. C. PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado cit., p. 71.

[35] F. C. PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado cit., p. 73.

[36] E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridicocit., p. 322.

[37] PONTES DE MIRANDA aponta a necessidade de "distinguir da interpretação do negócio jurídico a apreciação de

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sua juridicidade" in F. C. PONTES DEMIRANDA, Tratado de direito privado cit., p. 70.

[38] P. VOCI, Interpretazione del negozio, inEnciclopedia del diritto, vol. 22, Varese, Giuffrè, ano 1972, p. 263. .

[39] "Dopo quanto si è detto si comprenderàfacilmente che le norme sull'interpretazione, e fra esse quelle degli artt. 1366-1371 [incluindo, portanto, o artigo 1366, que dispõe que os negócios sejam interpretados de acordo com a boa-fé] (§43), abbiano la precedenza logica sulle norme suppletive e dispositive" in E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridico cit., p. 345.

[40] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 215.

[41] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 220.

[42] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 222.

[43] F. C. PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado cit., p. 72.

[44] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 216.

[45] M. BIANCA, Diritto civile cit., p. 412.

[46] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 218.

[47] E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridicocit., pp. 344-345.

[48] E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridicocit., p. 515.

[49] A conceituação teórica do instituto pode ser, por vezes, demasiado abstrata, de modo que exemplos podem aclará-la. O mesmo BETTI propõe, na página 443 do já citado Teoria generale del negozio giuridico, o exemplo de um contrato de locação que tem por objeto uma casa que foi parcialmente destruída em um ataque

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aéreo. Acreditando, por erro, que o imóvel tenha sido requisitado por um órgão público que vai desapropriá-lo em favor de uma companhia que assumiria, a custas próprias, seus reparos, as partes acordam em uma resilição amigável do contrato. Uma interpretação integrativa do negócio de resilição convencional permite vislumbrar uma reserva implícita no acordo de que, descobrindo estar em erro as partes, ocorra a repristinação do contrato, em decorrência da boa-fé. Nota-se que, nesse caso, as partes sequer mencionaram a possibilidade dessa condição, e parece bastante plausível que sequer a tenham considerado. Independentemente disso, é inegável que os preceitos objetivos em tela permitem entender ser coerente a interpretação feita.

[50] F. C. PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado cit., p. 71. STOLFI chama isso de "vontade real", mas também faz a ressalva de que não se trata daquela vontade que ainda não foi manifestada, sendo ela incapaz de produzir efeitos jurídicos. Interpreta-se, assim, o brocardo voluntas spectanda est de modo a não atribuir eficácia à vontade interna não manifestada e a tutelar a confiança nas manifestações alheias. Cf. G. STOLFI, Teoria del negozio giuridico cit., pp. 288, 290-291).

[51] É o que ensina E. DANZ, Die Auslegung der Rechtsgeschäfte cit., p. 28.

[52] A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português — parte geral cit., p. 774.

[53] A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negócio jurídico: existência, validade e eficácia cit., pp. 136-137.

[54] Para MENEZES CORDEIRO, apenas esse tipo de lacuna seria "verdadeira" e sanável pela integração. O autor não estabelece diferença entre integração e interpretação integrativa, mas separa ambas da "interpretação comum", que visaria a vontade juridicamente relevante das partes, enquanto a integração visaria a regulação objetiva do contrato. Cf. A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português — parte geral cit., pp. 769-772.

[55] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., pp. 225-226.

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[56] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 229.

[57] F. P. D. C. MARINO, Interpretação do negócio jurídico cit., p. 222.

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A FUNÇÃO SOCIAL DO PROTESTO NOTARIAL DE CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA

RICARDO PINTO DA SILVA: Tabelião substituto. Especialista em Direito Público e Direito Civil e Empresarial.

RESUMO: Busca-se, no presente trabalho, demonstrar a finalidade do

protesto notarial das certidões de dívida ativa, como meio eficaz na

recuperação de créditos, bem como, destacar as vantagens que o resultado

obtido por tal protesto traz a sociedade. Assim como, a utilização desse

instrumento visa proporcionar o bem da coletividade, ou seja, o bem-estar

comum, garantindo desta forma a efetivação dos direitos fundamentais.

Palavras-Chave: Protesto notarial. Dívida Ativa. Função social. Direitos

fundamentais.

ABSTRACT: This paper aims at showing the purpose of notarial protest of

overdue liabilities certificate, as an effective way in recovering credits, as well

as emphasizing the advantages that the result got by such protest brings to

the society. As well as the utilization of this tool aims at providing the good to

the society, that is, the common welfare, ensuring in this way the effectuation

of the fundamental rights.

Keywords: Notarial Protest. Overdue Liabilities Certificate. Social function.

Fundamental Rights.

1 INTRODUÇÃO

Diante da grande divergência encontrada sobre a

necessidade do protesto de certidão de dívida ativa, torna-se imprescindível

analisar o procedimento do protesto notarial de forma com que seja

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apresentado o papel que este instituto representa na recuperação de

créditos.

Nesse contexto a utilização de meios alternativos, como o

protesto notarial que se apresenta como um instrumento célere e eficaz na

recuperação de créditos, passa a ser uma boa opção na busca de reaver

créditos.

Tendo em vista, que o protesto notarial se revela como um

relevante serviço prestado na satisfação do crédito, agindo como

mecanismo auxiliar ao Poder Judiciário na prevenção e solução de possíveis

litígios, uma vez que, permite uma rápida e simples solução do conflito de

interesses estabelecido entre um credor e um devedor.

Igualmente, o protesto de certidão de dívida ativa, tem-se

revelado como um instrumento apto a contribuir na tutela de interesses

coletivos, uma vez que, os créditos recuperados pelos órgãos público serão

aplicados nos programas e políticas públicas que atendem aos cidadãos.

2 BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROTESTO NOTARIAL

Inicialmente, antes de explorar o presente tema, necessário

se faz a abordagem de alguns pontos do instituto do protesto notarial, que

nada mais é que ato destinado a comprovar o descumprimento de obrigação

consubstanciada em títulos e outros documentos de dívida.

A Lei nº 9.492/97 em seu artigo primeiro, fornece o conceito

legal do instituto de protesto nos seguintes parâmetros:

“Art. 1º Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova

a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e

outros documentos de dívida ”.

Desde logo, vale ressaltar que a definição legal não

apresenta um conceito vasto, tendo em vista que não aborda o protesto da

letra de câmbio por falta de aceite, desta maneira, o conceito extraído da Lei

que regulamenta os serviços concernentes ao protesto de título não se

estende a todos os atos alcançado pelo instituto do protesto notarial.

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Emanoel Macabu, traz que o Instituto do protesto tem sua

origem ligada à letra de câmbio, sendo que ele nasceu para anunciar, levar

ao conhecimento geral, provar, testemunhar em público a diligência do

portador em apresentá-lo ao devedor, seguida recusa ao seu aceite ou

pagamento (MORAES, 2014, p.19).

Deste modo, percebe-se que o protesto notarial surge

vinculado a efeitos estritamente cambiais, isto é, nem sempre ofereceu ao

credor a possibilidade de utilizá-lo como meio de recuperação de crédito,

surgindo inicialmente entretanto, com a finalidade de dar publicidade ao

inadimplemento ou recusa de aceite da letra de câmbio, ou seja, comprovar

formalmente a apresentação do título ao sacado e a recusa deste em aceita-

lo, constituindo prova de que determinada ordem de pagamento contida na

letra de câmbio não foi cumprida por quem naturalmente deveria aceitá-la.

Assim, percebe-se que o instituto do protesto, surgiu diante

de uma necessidade social, sendo consolidado pelo movimento da prática

mercantil, tendo sido aperfeiçoado gradativamente, na medida da

intensificação e disseminação de seu uso (SANTOS, 2012, p.04).

Surgindo com a propositura de salvaguardar as obrigações

não cumpridas, o instituto do protesto tem demostrado a sua importância na

solução de conflitos entre credor e devedor, sendo uma ferramenta de

grande celeridade na busca do cumprimento de obrigações, bem como, na

redução da sobrecarga do Judiciário que está abarrotado de processos

(OLIVEIRA, BARBOSA, 2009, p. 19).

Interpretando o atual regime jurídico do protesto dentro de

um contexto histórico e social, verifica-se que este, não é mais vinculado

exclusivamente aos títulos cambiais, caracterizado como um instituto

bifronte que representa, de um lado, instrumento para constituir o devedor

em mora e provar a inadimplência, e, de outro, modalidade alternativa para

cobrança de dívida, assim foi ampliado, desvinculando-se dos títulos

estritamente cambiariformes para abranger todos e quaisquer títulos ou

documentos de dívida.

A utilização do protesto notarial no decorrer do tempo,

sempre teve notória aplicabilidade, exercendo um grande papel na

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recuperação de crédito, tem-se mantido, mercê de sua necessidade para a

segurança das relações de crédito particular e garantia até do crédito público

em geral, em virtude de uma série de fatores econômicos, sociais, culturais

e jurídicos.

No Brasil, o protesto de títulos e documentos está incluído

no âmbito dos serviços notariais e de registro, que são exercidos em caráter

privado, por delegação do Poder Público, conforme, Constituição Federal de

1988, art. 236, sendo que o ingresso nessa atividade depende de aprovação

em concurso público de provas e títulos.

A natureza jurídica do protesto é de ato jurídico em sentido

estrito, ao passo que produz efeitos independentes, ou não vinculados à

vontade das partes, efeitos estes decorrentes da lei. Entende que este ato

pode servi como forma de participação ou comunicação, por exemplo,

alguém participa a outrem intenções ou fatos, contudo, sendo essa

comunicação de fatos admitida, não há erro em pensar que o Tabelião de

Protesto poderia praticar esse ato jurídico com o fim de participar o devedor

de que, sendo o procedimento legal respeitado, sua inércia está sendo

reconhecida ou testificada (BUENO, 2013, p. 26).

O protesto é ato extrajudicial, tendo em vista que não

precisa e nem é cabível nenhuma interferência judicial no seu percorrer

procedimental, sendo o protesto e o procedimento que a ele o conduz

extrajudicial. Também é um ato formal, uma vez que, o ato deve ser lavrado

e registrado com estrito cumprimento das formalidades legais.

O procedimento do protesto foi se aperfeiçoando de forma

gradativa, sendo regulado pelo Decreto nº 2.044/08 e pela Lei nº 6.690/79,

tendo sua completa regulação com a entrada em vigor da Lei nº 9.492, de

10 de dezembro de 1997.

Com efeito, discorrendo sobre o procedimento para protesto

o qual não se confunde com o ato de protesto, este é lavrado e registrado

nos livros de protesto após o encerramento do procedimento e aquele se

inicia com a apresentação do título ou documento de dívida em cartório, que

é o ato da parte que dá início ao procedimento para protesto, o interessado,

ou seja, apresentante, este pode comparecer pessoalmente, ou enviar

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requerimento com firma reconhecida, por intermédio de portador, ou

procurador, o qual apresentará o documento, solicitando que seja iniciado o

procedimento formal, que pode culminar tanto com o pagamento,

desistência, sustação ou com o protesto.

As informações e os dados apresentados são de inteira

responsabilidade do apresentante, cabendo ao Tabelião lhe entregar recibo

com as características essenciais do título ou documento de dívida.

Assim, após a análise formal do título, será expedida

intimação ao devedor que conterá as informações do título ou documento de

dívida, o prazo para cumprimento da obrigação junto ao tabelionato, bem

como o valor a ser pago. O devedor poderá comparecer ao tabelionato para

cumprir a obrigação de pagar ou aceitar o título ou mesmo ingressar com

uma ação judicial para sustar o protesto, a fim de evitar os danos de um

eventual registro indevido.

Decorrido o prazo legal, sem a ocorrência de nenhuma das

hipóteses de desistência, pagamento ou sustação, será lavrado e registrado

o protesto, sendo entregue ao apresentante o instrumento.

Nos termos do art. 12 da Lei nº 9.492/97, incumbe ao

tabelião registrar o protesto dentro de 3 (três) dias úteis, contando da

protocolização do título ou documento de dívida, excluindo-se o dia da

protocolização e incluindo o do vencimento. O protesto será tirado no

primeiro dia útil subsequente, quando a intimação for efetivada no último dia

do prazo ou além dele e nesse período não ocorrer a sustação, desistência

ou pagamento do título.

Deste modo, o procedimento para protesto encontra-se

disciplinado na Lei nº 9.492 de 10 de setembro de 1997, que define

competência, regulamenta os serviços concernentes ao protesto de títulos e

outros documentos de dívida e dá outras providências.

Vale destacar ainda, que a atuação do tabelião depende de

solicitação do interessado, cabendo ao tabelião agir em estrito cumprimento

do dever que lhe é imposto, observando o procedimento definido na

legislação vigente.

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Portanto, o devedor vindo a ser protestado ficará com seu

nome negativado junto aos órgãos de proteção ao crédito.

Um dos efeitos do protesto extrajudicial é afetar o crédito do

devedor protestado no mercado, em razão do provável acesso dos dados

pelos órgãos de proteção ao crédito, como o Serasa e o Serviço de Proteção

ao Crédito. Contudo, o cartório de protesto é o responsável pelo

encaminhamento de informações aos bancos de dados dos serviços de

proteção ao crédito, e não o credor apresentante.

Portanto, o protesto extrajudicial trata-se de um relevante

serviço prestado na satisfação do crédito agindo como mecanismo auxiliar

ao Poder Judiciário na prevenção e solução de possíveis litígios, uma vez

que, permite uma rápida e simples solução do conflito de interesses

estabelecido entre um credor e um devedor, voltado à simplificação em prol

da celeridade que da efetividade ao direito subjetivo.

3 A FUNÇÃO SOCIAL DO PROTESTO DE CERTIDÃO DE DÍVIDA

ATIVA

Considerando que atualmente uma das principais

finalidades do instituto do protesto é a recuperação de créditos, e não mais

somente provar a inadimplência de títulos cambiais, tendo em vista o abalo

no crédito que provoca a publicidade do registro do protesto, fazendo desta

maneira com que o devedor seja levado a cumprir com sua obrigação, quer

para garantir seu prestígio na praça, quer, mesmo sob o aspecto psicológico.

Em continuidade, necessário se faz destacar que os órgãos

públicos vem utilizando os serviços de protesto com notável sucesso,

visando a recuperação de crédito através do encaminhamento das certidões

de dívida ativa para protesto, uma vez que o protesto notarial se revelou um

meio juridicamente adequado de constranger o devedor ao pagamento.

O protesto tem-se revelado como um instrumento apto a

contribuir na tutela de interesses coletivos, visto que, quando há o

pagamento, permite a obtenção de resultados práticos equivalentes aos

obtidos com a execução, ou seja, recuperação de crédito junto aos

contribuintes inadimplentes.

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A Lei Federal nº 12.767, de 27 de dezembro de 2012, trouxe

em seu art. 25 uma importante alteração, tendo em vista que, o dispositivo

legal em questão alterou a redação original do art. 1º da Lei Federal nº 9.492,

de 10 de setembro de 1997, incluindo um parágrafo único no mencionado

artigo, e passando a permitir expressamente o protesto de certidões de

dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das

respectivas autarquias e fundações públicas:

Art. 1º Protesto é o ato formal e solene pelo qual

se prova a inadimplência e o descumprimento de

obrigação originada em títulos e outros documentos de

dívida.

Parágrafo único. Incluem-se entre os títulos

sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da

União, dos Estados, do Distrito Federal, dos

Municípios e das respectivas autarquias e fundações

públicas. (Incluído pela Lei nº 12.767, de 2012).

Estima-se que o protesto das Certidões de Dívida Ativa já

era possível pela simples interpretação do artigo 1º da Lei de protesto,

mesmo antes da publicação da Lei 12.767/2012. Desse modo, a alteração

na lei de protesto reforçou o entendimento da possibilidade do protesto de

CDA, uma vez que afastou qualquer possibilidade de alegação sobre a

legalidade de tal protesto.

Sintetizando, entende-se como dívida ativa os créditos da

Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, inscritos em

registro próprio, após apurada sua liquidez e certeza, decorrente de

procedimento administrativo de controle de legalidade.

A certidão de dívida ativa é um título executivo extrajudicial

que comprova a existência de débito regularmente inscrito na dívida ativa da

Fazenda Pública, depois de terem se esgotados todos os prazos para o seu

pagamento. É fundamental a emissão desse documento para o ajuizamento

da ação de cobrança judicial do crédito ou para o protesto por falta de

pagamento (RITONDO, 2015, p. 74).

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De modo pratico, inscrever em dívida ativa é incluir um

devedor em cadastro pertencente à Fazenda Pública, em que estão aqueles

que não adimpliram suas obrigações no prazo. Na esfera federal, a

“repartição administrativa competente” para a inscrição em dívida ativa é a

Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, órgão do Ministério da Fazenda.

Nos âmbitos estaduais e municipais, a regra é que a competência seja das

respectivas procuradorias judiciais (TAVARES, 2013).

Assim, é aceitável o protesto de certidão da dívida ativa,

mesmo sendo esta constituída de forma unilateral pelo Estado, uma vez que,

a mesma goza de presunção de certeza e liquidez e se apresenta como um

documento representativo de dívida, bem como, existe um dispositivo legal

especifico que autoriza seu protesto, não se visualizando desta maneira

nenhum obstáculo no protesto da referida certidão.

Desta forma, o instituto de protesto, ao ser utilizado pelo

Estado, como meio de reaver seus créditos junto ao contribuinte

inadimplente, se torna uma ferramenta de interesse coletivo, uma vez que

através do mesmo, o órgão público responsável está buscando receber

créditos que serão utilizados para realizar um bem comum. Desta forma, o

Estado ao criar uma CDA e leva-la a protesto, está atuando com o objetivo

de defender o interesse de todos, visando melhorar a vida em sociedade

através da execução de políticas públicas, sendo que para isso precisa de

recursos financeiros.

Cabe lembrar que o protesto da CDA inicialmente enfrentou

uma grande resistência, sendo visto como uma sanção política e um meio

coercitivo para cobrança de débitos, sob a alegação de que os créditos

públicos têm mecanismos próprios de cobrança, faltando assim, interesse

por parte do Ente Público em vivificar tal protesto, entretanto, tendo em vista

que os reflexos da sonegação fiscal por aqueles contribuintes inadimplentes

são extremamente danosos ao Estado, verifica-se uma necessidade social

do protesto das CDA.

Ademais, a possibilidade de tal protesto não implica ofensa

aos princípios do contraditório e do devido processo legal, pois subsiste,

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para todo e qualquer efeito, o controle jurisdicional, mediante provocação da

parte interessada, em relação à higidez do título levado a protesto.

Dessa maneira, não é dado ao Poder Judiciário sobrepor-se

aos entes públicos para escolher, sob o enfoque da necessidade, ou seja,

utilidade ou conveniência, os meios de recuperação, no âmbito extrajudicial,

da dívida ativa da Fazenda Pública.

Buscando o bem estar da coletividade, o Estado tem que

empregar esforços da melhor forma possível para reaver seus créditos junto

ao contribuinte inadimplente, o protesto notarial é um modo eficaz, célere e

eficiente na recuperação de créditos, bem como contribui de forma

significativa para desafogar o Poder Judiciário.

O protesto das certidões de dívida ativa apresenta-se como

um grande benefício para os cidadãos, posto que, o Estado ao recuperar

créditos dos contribuintes inadimplentes, utiliza os mesmos em favor de toda

a população em forma de serviços e obras que melhoram a vida de toda

coletividade.

O Estado tem o papel de garantir a toda a sociedade os

direitos fundamentais, estes representados pelo princípio constitucional da

dignidade da pessoa humana, que consiste num princípio maior, o qual,

engloba os demais direitos fundamentais, tendo em vista que só se pode

pensar em uma vida digna se demais direitos básicos que garantam a

sobrevivência do cidadão forem garantidos, deste modo, o Estado é

responsável por financiar a todos os seus cidadãos o mínimo de recursos

básicos, para que estes tenham uma vida digna.

Com finalidade de atender as demandas da sociedade, o

Estado necessita de receita para custear serviços públicos básicos, deste

modo tem que se utilizar dos meios mais célere e eficaz na busca pela

recuperação de seus créditos.

Nesse contexto a utilização de meios alternativos, como o

protesto notarial que se apresenta como um instrumento célere e eficaz na

recuperação de créditos, passa a ser uma boa opção na busca de reaver

créditos, bem como, está em conformidade com o II Pacto Republicano de

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Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo que tem

como uma de suas metas a Agilidade e efetividade da prestação

jurisdicional através da Revisão da legislação referente à cobrança da dívida

ativa da Fazenda Pública, com vistas à racionalização dos procedimentos

em âmbito judicial e administrativo.

Tendo em vista que cabe ao Estado a proteção aos direitos

fundamentais, bem como a sua concretização e para tanto necessita de

recursos financeiros, os quais são obtidos através de pagamento de tributos,

o protesto de CDA tem-se revelado como um meio alternativo de grande

utilidade na recuperação de crédito, uma vez que, apresenta-se como um

instrumento que possibilita uma rápida recuperação de crédito.

E não pode deixar de considerar que a coletividade precisa

de uma arrecadação eficaz dos créditos públicos, a fim de que suas

necessidades sejam atendidas, bem como sejam alcançadas as prestações

sociais que a ordem constitucional garante aos cidadãos. Desse modo é

relevante ressaltar que interesse público deve buscar de forma rápida o

recebimento de créditos tributários, o que não implica restrição ao direito de

defesa, seja na esfera administrativa, seja na seara judicial, utilizando-se da

modernização e dos meios mais ágil. Ademais, o protesto hoje, é visto, não

apenas como uma forma de comprovar o descumprimento da obrigação,

mas sim, meio eficaz de recuperação de crédito.

O instituto do protesto notarial contribui para a redução do

volume de execuções fiscais, com impactos positivos na redução de

demandas judiciais, contribuindo para desafogar o já tão atribulado Poder

Judiciário.

Tem-se, o protesto como função social prevenir conflitos ou

demandas judiciais, evitando possíveis conflitos entre credor e devedor. O

Serviço de Protesto tem, assim, a função importante e eficaz de agilizar a

solução de créditos pendentes e não pagos no vencimento. O protesto da

Certidão de Dívida Ativa pela Fazenda Pública, decorrente da falta de

pagamento, é uma medida útil aos interesses do Poder Público como um

todo e uma ferramenta capaz de atender a direitos sócias.

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A necessidade do protesto da CDA, portanto, não é jurídica,

mas sim social, analisando o instituto sob o ponto de vista da efetividade na

arrecadação dos créditos fiscais com os quais a União, Estados, Distrito

Federal e Municípios auferem recursos que são aplicados nos programas e

políticas públicas que atendem aos cidadãos.

O protesto da CDA é uma das alternativas para desafogar o

Poder Judiciário de milhares de execuções fiscais que aportam todos os

anos, enquanto o processo executivo atual não é reformulado. Sua

aplicabilidade vai ao encontro do disposto no inciso LXXVIII, do artigo 5º, da

Constituição Federal no que tange a duração razoável e da celeridade do

processo, bem como ao princípio constitucional da eficiência da

administração pública. As mudanças na legislação e no entendimento

jurisprudencial dão ensejo para que o protesto da CDA, aplicado com

critério, seja uma forma de desjudicialização da execução fiscal

(BRESCOVIT, 2015).

Dessa maneira, caminhando para a desjudicialização e

desburocratização do nosso sistema jurídico atual, verifica-se ser viável a

utilização por parte do Ente Público de outros meios, que não o judicial, para

recuperar créditos.

Assim, é evidente que o protesto notarial de certidão de

dívida ativa atende ao interesse público, satisfazendo o interesse de toda a

coletividade, e não apenas o interesse arrecadatório da Fazenda, uma vez

que, os créditos recuperados, através da utilização desta ferramenta, são

utilizados em execução de serviços públicos.

Seguindo os objetivos, princípios e fundamentos da

República Federativa do Brasil, concretiza-se a função social do protesto de

certidão de dívida ativa, quando o Estado converte os créditos recuperados

através desta ferramenta em políticas públicas, implementando desta forma

direitos fundamentais.

O protesto notarial da certidão de dívida ativa, objetiva tornar

mais eficiente a cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública, se colocando

como medida cabível e necessária à recuperação mais célere de créditos

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públicos e à manutenção de receitas que dão concretude às políticas

pública.

Tendo em vista, que o instituo do protesto exerce um

relevante papel na economia do Brasil, pois o mesmo se apresenta como

uma importante ferramenta na recuperação de crédito, verifica-se que o

mesmo, tem-se revelado um meio célere e eficaz para a recuperação de

crédito, deste modo contribuindo para a construção de um ambiente negocial

favorável ao desenvolvimento da atividade econômica.

4 CONCLUSÃO

Em suma, o protesto traz um enorme benefício para o

Estado, que tem à sua disposição uma ferramenta que lhe propicia uma

forma mais ágil e menos onerosa de reaver seu crédito, realçando a

arrecadação num modelo de gestão fiscal eficiente, para o devedor, que

suportará meio menos oneroso e gravoso de cobranças; para o Poder

Judiciário, que terá impacto imediato na redução da demanda de processos,

ampliando a capacidade de julgamento, na mesma medida em que preserva

a apreciação de futuras lesões decorrentes do novo modelo.

Portanto, ficou demonstrado que o protesto de Certidões de

Dívida Ativa é uma ferramenta legal e legítima a serviço do Estado, para que

este possa, de modo menos oneroso e moroso, bem como, ao mesmo

tempo, de modo mais célere e efetivo defender o interesse público

garantindo, portanto, a realização dos direitos fundamentais.

O protesto notarial das certidões de dívida ativa configura,

assim, um meio de realização dos direitos fundamentais. Disso decorre, por

seu turno, vantagens óbvias no que tange à qualidade e eficiência da

prestação do serviço e à celeridade dos procedimentos. Por ser uma função

pública, é revestida de estatalidade, conferindo segurança, eficácia e

publicidade aos atos praticados. Por ser exercida em caráter privado, é

norteada por um modelo privado de gestão, semelhante aos modelos

empresariais, o que contribui para o aprimoramento, celeridade, qualidade e

eficiência da prestação do serviço.

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A utilização do protesto por parte do Estado, com objetivo

de recuperar créditos e aumentar a receitar, se revelar um meio de grande

importância, uma vez que, quanto mais receita o Estado conseguir mais

politicas publicas poderá realizar, efetivando direitos fundamentais previstos

na Carta maior.

No entanto, o protesto de CDA é uma das ferramentas da

atividade notarial que mais oferece vantagens ao Estado, pois proporciona

um aumento extremamente significativo de receita, além da eficiência e

redução de gastos com a máquina administrativa. Ademais, traz reflexos

profundos para o Poder Judiciário, extinguindo inúmeros processos de

execução fiscal que muitas vezes se tornavam mais custosos e trabalhosos

do que realmente era cobrado, além de contribuir com o Estado na execução

de políticas públicas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRESCOVIT, Leandro. Protesto de CDA e desjudicialização da

execução fiscal. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4342, 22 maio

2015. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/33187>. Acesso em: 28 ago.

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2013.

COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de Direito Comercial: Direito de

Empresa. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MORAES. Emanoel Macabu. Protesto Notorial: Títulos de Crédito e

Documentos de Dívida. São Paulo: Saraiva, 2014.

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UNISC, Santa Cruz do Sul. Disponível

em:http://www.unisc.br/portal/images/stories/mestrado/direito/disserta

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Prático do Protesto Extrajudicial. 2. ed. São Paulo: Lemos e Cruz, 2009.

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SANTOS, Reinaldo Velloso dos. Apontamentos sobre o protesto

notarial. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da

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TAVARES, Andréa Vasconcelos Bragato. Da certeza, liquidez e

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itura&artigo_id=14051&revista_caderno=26>. Acesso em set 2015.

 

   

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O SOFRIMENTO QUE ATINGE MILHARES DE MULHERES

ALINE BEZERRA MARQUES: Graduada em Segurança Pública pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL e pós -graduada em Políticas e Gestão em Segurança Pública pelo Instituto Brasileiro de Educação do Distrito Federal-IBEDF

RESUMO: O presente artigo traz definições da violência, no sentido geral, e sobre sua ocorrência na atualidade, no mundo e no nosso país, especificamente sobre a violência doméstica e familiar, pontuando alguns aspectos históricos e observando que ela é consequência da sociedade patriarcal. Observa-se que há muito pouco tempo surge a consciência de que esse tipo de violência cometida contra a mulher não é um problema privado, que deve ser resolvido entre “quatro paredes”, mas que é um problema social e que deve preocupar toda a sociedade.

Palavras-chave: Violência Contra Mulher, Gênero, Direitos Humanos, Brasil.

ABSTRACT: This paper presents definitions of violence in the general sense, and on its occurrence Nowadays , worldwide and in our country, specifically on domestic violence and family, highlighting some historical aspects and noting that it is a consequence of patriarchal society. It is observed that there is very little time consciousness arises that such violence committed against women is not a private matter that should be resolved between the "four walls ", but it is a social problem that should concern all of society.

Keywords: Violence Against Women, gender, Human Rights, Brazil.

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1 INTRODUÇÃO

A violência doméstica é um tema bastante atualizado e instigante que atinge milhares de mulheres e crianças, adolescentes e idosos em todo o mundo, decorrente da desigualdade nas relações de poder entre homens e mulheres, assim como, a discriminação de gênero ainda presente tanto na sociedade como na família. Com a constitucionalização dos direitos humanos, a violência passou a ser estudada com maior profundidade e apontada por diversos setores representativos da sociedade, tornando-se assim, um problema central para a humanidade, bem como, um grande desafio discutido e estudado por várias áreas do conhecimento enfrentado pela sociedade contemporânea.

2 O caso: Maria da Penha

No dia 29 de Maio de 1983, em Fortaleza, o economista e professor universitário M.A.H.V, colombiano de origem e naturalizado brasileiro, marido da farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, simulou um assalto e desferiu um tiro de espingarda contra sua esposa, o qual atingiu sua coluna e a deixou paraplégica. O crime foi premeditado, uma vez que o autor do disparo, dias antes, tentou convencer a esposa a realizar um seguro de vida, do qual ele seria o beneficiário. Além disso, cinco dias antes da agressão, a esposa assinou em branco um recibo de venda de seu veículo, a pedido do marido. Após alguns dias da primeira agressão, houve nova tentativa, na qual o autor buscou eletrocutá-la por meio de uma descarga elétrica enquanto ela tomava banho. As investigações começaram em Junho de 1983, porém a denúncia só foi oferecida em Setembro de 1984. Em 1991 houve a condenação do autor pelo tribunal do Júri a oito anos de prisão. O réu recorreu em liberdade e após um ano da condenação teve o julgamento anulado. Em 1996 foi levado a novo julgamento e condenado a dez anos e seis meses. Recorreu novamente em liberdade e somente 19 anos e 6 meses após o fato, em 2002, M.A.H.V. foi preso. Da condenação imposta, cumpriu apenas dois

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anos de prisão e teve direito a progressão de regime para regime aberto. O caso da Maria da Penha Maia Fernandes foi o responsável pela denominação da Lei Maria da Penha. A partir deste caso os Institutos de Direitos Humanos Internacionais tomaram conhecimento da situação da mulher brasileira diante do problema da violência doméstica e o país foi pressionado a adotar algumas medidas, conforme veremos no item seguinte.

3 Surgimento da Lei 11.340/06

O caso Maria da Penha chegou ao conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), através da denúncia da própria vítima em 20 agosto de 1998. Também denunciaram o caso em questão o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o Comitê Latino – Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM).O Brasil foi indagado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em relação às denúncias e se omitiu. A Comissão solicitou informações em 1998, 1999 e 2000 e não obteve resposta. O relatório foi enviado ao Estado brasileiro em março de 2001 para que, em um mês, fossem cumpridas as recomendações nele lançadas. O Brasil também não cumpriu o determinado e, então, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de acordo com o art. 51, 3 do Pacto de San José, decidiu tornar público o teor do relatório 54/2001. Neste foi realizada profunda análise do fato denunciado e apontadas às falhas cometidas pelo Estado brasileiro que, na qualidade de parte da Convenção Americana e Convenção de Belém do Pará, assumiu o compromisso de implantar e cumprir o disposto nesses tratados.

O Brasil foi condenado internacionalmente em 2001. Informa ainda que o relatório da OEA, além de impor o pagamento de 20 mil dólares a favor de Maria da Penha Maia Fernandes, responsabilizou o Brasil por negligência e omissão em relação à violência doméstica e recomendou a adoção de várias medidas, entre elas “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual”. A partir de então, o Brasil finalmente cumpriu

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as convenções e tratados internacionais do qual é signatário, em razão da pressão sofrida por parte da OEA.

Em 2002, foi elaborado o projeto da Lei Maria da Penha por um consórcio formado por 15 ONGs que trabalhavam com violência doméstica. Em 2004 o projeto foi enviado ao Congresso Nacional e, finalmente, em 07 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei 11.340 pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.

4 Conceitos

O conceito de violência é um fenômeno bastante complexo e composto por diversos fatores, sejam eles, “sociais, culturais, psicológicos, ideológicos, econômicos, etc.” A palavra violência deriva do Latim “violentia”, que significa “veemência, impetuosidade”. Mas na sua origem está relacionada com o termo “violação” (violare). A violência em todas as formas constitui uma violação dos direitos humanos. Ela se manifesta de diversas maneiras, em guerras, torturas, conflitos étnico-religiosos, preconceito, assassinato, fome, etc. Existe também a violência verbal, que causa danos morais, que muitas vezes são mais difíceis de esquecer do que os danos físicos.

A LMP conceitua violência como sendo qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (art. 5°, Lei 11.340/06). Segundo o artigo 7º da Lei nº 11.340/2006 são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: a física, a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral.

5 Previsões da Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha traz em seu bojo as orientações dos tratados internacionais, os quais foram ratificados pelo Brasil, para que sua efetividade seja concreta e seus fins alcançados. Ela prevê que a repressão à violência doméstica e familiar contra a mulher deverá ser feita através de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e também

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de ações não – governamentais , seguindo as diretrizes traçadas pela Lei. A primeira diretriz a ser seguida como medida de prevenção é a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação. Também são diretrizes a realização de campanhas educativas de prevenção à violência doméstica e familiar, a difusão da própria lei e a capacitação dos profissionais que trabalham com o tema. Uma das medidas de prevenção que merece destaque é o atendimento policial especializado, previsto no Art. 8º, IV da LMP. É necessário que se promova treinamento especializado aos policiais que exercerão suas atividades junto a tais unidades. O profissional precisa ter sensibilidade dando-se preferência a policiais do sexo feminino em face ao constrangimento natural que se verifica cotidianamente.

A Lei prevê algumas medidas de proteção a serem tomadas em caso de situação de violência doméstica e familiar. Essas medidas são adotadas já no atendimento pela autoridade policial quando do conhecimento da ocorrência e também pelo juiz que recebe o expediente encaminhado pela delegacia comunicando o fato. É necessário que a mulher submetida à situação de violência doméstica e familiar tenha pronto e eficaz atendimento em sede policial, já que, na maioria das vezes, são as delegacias de polícia que primeiro têm contato com os casos concretos. O Art. 11 da LMP estabelece uma série de providências que deverá tomar a autoridade policial no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, tais como, garantir proteção policial e comunicar o fato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, encaminhar a ofendida ao hospital, posto de saúde ou ao IML, transportar a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro em caso de risco de vida, acompanhar a ofendida para retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar e informar para a mesma seus direitos e os serviços disponíveis. O Art. 12 da LMP estabelece que algumas medidas deverão ser tomadas pela autoridade policial após a confecção do boletim de ocorrência.

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As medidas de natureza judicial, também previstas, são ações que devem ser tomadas pelo juiz, no prazo de 48 horas, após o recebimento do expediente enviado pela delegacia com o pedido da ofendida. Nesse prazo caberá ao juiz conhecer do expediente e do pedido da ofendida para decidir sobre as medidas protetivas de urgência. Também poderá determinar o encaminhamento da vítima ao órgão de assistência judiciária e/ou comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis. As medidas protetivas de urgência somente poderão ser concedidas pelo juiz a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. Na concessão a pedido da ofendida, o MP deverá ser ouvido previamente. O auxílio da força policial poderá ser requisitado pelo juiz, a qualquer momento, para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência.

As medidas protetivas de urgência estão relacionadas à proteção da ofendida e de seu patrimônio. O Art. 23 da LMP prevê as medidas protetivas de urgência que poderão ser adotadas pelo juiz à ofendida, sem prejuízo de outras medidas, como as que obrigam o agressor.

As medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor são ações determináveis pelo juiz, que impõe obrigações e restrições, a fim de que a vítima seja protegida de uma agressão iminente ou que sofra nova agressão. O art. 22 da LMP elenca as medidas protetivas que obrigam o agressor. O inciso I do art. 22, trata de medida que se mostra preocupada com a incolumidade física da mulher. No entanto, a medida em questão exige certa dose de cautela do julgador para que o agressor não seja impedido de se movimentar livremente e seja configurado constrangimento ilegal. O inciso IV do art. 22 refere-se à restrição ou suspensão de visitas. O Inciso V do art. 22 prevê a obrigação alimentar do agressor. Trata-se de determinação que assegura a mantença da entidade familiar. A retirada do lar do agressor, não pode desonerá-lo da obrigação de continuar provendo o sustento da vítima e dos filhos. A vítima pode requerer alimentos para ela e os filhos, ou mesmo só a favor da prole e mesmo que seja indeferida a pretensão em sede de

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medida protetiva de urgência, nada impede que o pedido seja veiculado por meio da ação de alimentos perante o juízo cível.

A norma também prevê serviços especializados de atendimento à mulher vítima de violência doméstica. Esses serviços são necessários para que o enfrentamento da violência se dê de forma efetiva e para que a vítima tenha possibilidade de buscar proteção e apoio nesse momento. Os serviços especializados são de responsabilidade da União, Estados, Distrito Federal e Municípios e estão previstos no art. 35 da LMP. São exemplos de serviços especializados os centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes e as casas-abrigos.

5.1 Juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher

Os Juizados de Violência Doméstica foram criados com o advento da LMP, com objetivo de processar, julgar e executar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar. O art. 14 da LMP prevê a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFMs). A Lei Maria da Penha criou os juizados mas não impôs sua instalação. Enquanto não estruturados os JVDFMs, a competência cível e criminal é atribuída às Varas Criminais, para onde devem migrar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Não havendo JVDFMs, os pedidos de medidas protetivas de urgência e os inquéritos policiais devem ser encaminhados às Varas Criminais. Somente permanecerão na vara as medidas protetivas de caráter penal. Quanto às providências cíveis, após cumprimento das medidas que obrigam o ofensor, o expediente deve ser redistribuído à Vara de Família. Para assegurar a eficácia de qualquer das medidas o juiz (criminal ou de família) pode inclusive decretar prisão preventiva.

6 CONCLUSÃO

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Diante do exposto, conclui-se a necessidade de conferir uma especial proteção às vítimas de violência doméstica, ou seja, as mulheres. Com a evidente discriminação e violência contra as mulheres o Estado interveio através da Lei 11.340/06 – Lei “Maria da Penha” para coibir os diversos tipos de violência, fazendo então, com que as mulheres se sentissem mais seguras, resgatando a cidadania e a dignidade dessas cidadãs que, na maioria das vezes, sofrem caladas. A Lei supracitada produziu uma verdadeira revolução no combate à violência doméstica com a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.A violência, conceituada como abuso da força, é uma realidade que atinge todos os povos, em todas as suas formas. A violência doméstica, praticada contra a mulher deixou de ser considerada um problema “familiar”, ou seja, um problema “privado”, para ser considerada uma situação de violência que prejudica a integridade física e psicológica da mulher, atingindo sua dignidade. Atualmente, também é considerada um problema de saúde pública, um problema social grave, que gera preocupação dos administradores públicos e de toda a sociedade. Proteger a mulher da violência doméstica, da qual sempre foi vítima, conforme abordado, é tornar efetivos os seus direitos humanos da terceira geração, compreendidos como aqueles direitos que se dirigem aos direitos de “gênero”, ou seja, relacionados à dignidade da mulher e à subjetividade feminina.

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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SANTOS, Sidney Francisco Reis dos. Mulher: sujeito ou objeto de sua própria história? Florianópolis: OAB/SC, 2006.