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LIVRO: O DIÁRIO DE PESQUISA - O ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO E SEU PROCESSO FORMATIVO AUTORES: JOAQUIM GONÇALVES BARBOSA E REMI HESS ISBN: 978-85-7963-009-3 EDITORA: LIBER LIVRO ANO: 2010 PREFÁCIO Pág. 8: [...] Uma questão fundamental ainda para a fenomenologia é a impossibilidade de se pleitear o conhecimento fora dos âmbitos existenciais; assim a pensar se estabelece sobre o ser, evidenciando-o. É preciso também dizer de uma fenomenologia que, ao conceber o real como perspectival, não passa a pregar um vazio em termos de um a priori perceptivo. Ao perceber o fenômeno, tem-se que há um correlato e que a percepção não se dá num vazio, mas em um estar-com-o-percebido. Ir-às-coisas-mesmas é a experiência fundante do pensar fenomenológico, faz parte de seu rigor. Págs. 8/9: É significativo que seja destacado que a percepção do fenômeno é sempre um processo de copercepção, há uma região de copercebidos. Sujeitos e fenômenos estão no mundo-vida com outros sujeitos, copresenças que percebem fenômenos. Nesses termos, a coparticipação de sujeitos em experiências vividas permite partilhar compreensões, interpretações, comunicações, conflitos et.

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Page 1: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

LIVRO: O DIÁRIO DE PESQUISA - O ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO E SEU PROCESSO FORMATIVO

AUTORES: JOAQUIM GONÇALVES BARBOSA E REMI HESS

ISBN: 978-85-7963-009-3

EDITORA: LIBER LIVRO

ANO: 2010

PREFÁCIO

Pág. 8:

[...] Uma questão fundamental ainda para a fenomenologia é a impossibilidade de se pleitear o conhecimento fora dos âmbitos existenciais; assim a pensar se estabelece sobre o ser, evidenciando-o.

É preciso também dizer de uma fenomenologia que, ao conceber o real como perspectival, não passa a pregar um vazio em termos de um a priori perceptivo. Ao perceber o fenômeno, tem-se que há um correlato e que a percepção não se dá num vazio, mas em um estar-com-o-percebido. Ir-às-coisas-mesmas é a experiência fundante do pensar fenomenológico, faz parte de seu rigor.

Págs. 8/9:

É significativo que seja destacado que a percepção do fenômeno é sempre um processo de copercepção, há uma região de copercebidos. Sujeitos e fenômenos estão no mundo-vida com outros sujeitos, copresenças que percebem fenômenos. Nesses termos, a coparticipação de sujeitos em experiências vividas permite partilhar compreensões, interpretações, comunicações, conflitos et.

Pág.9:

Habita nesse processo incessante de interação simbólica a esfera da intersubletividade, a instituição intersubjetiva das realidades humanas. Nesse sentido, a verdade é uma desocultação que se dá na esfera da construção intersubjetiva do que é real.

Page 2: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

Quanto à essência do fenômeno, jamais pode ser entendida como pureza última e definitivamente dada, até porque isso não existe, mas, como queria Husserl, o alcance do autenticamente vivido, das raízes daquilo que é vivenciado. A essência (eidos) de que trata a fenomenologia não é idealidade abstrata dada a priori, separada da práxis; ela se mostra no próprio fazer reflexivo.

[...] Para Merleau-Ponty, a descrição ou o discurso, como expressividade do sujeito, é a prova da existência do sujeito, é o modo de o sujeito expressar sua experiência; ela é dotada de significados da totalidade da experiência vivida, nem sempre totalmente explicitadas na linguagem como discurso. A propósito, Paul Ricoeur nos fala de um infindável excesso de sentido em todo discurso; daí a impossibilidade de abarcá-lo em sua totalidade.

Pág.12:

[...] Nesses termos, formação jamais seria dádiva ou doação, mas construção conquistada por seres que se responsabilizam, se autorizam, se autonomizam, nos seus coletivos sociais, a falarem sobre o que precisam como alimento da alma e da carne, como forma de se alterarem-com-o-outro e com-o-mundo.

Pág.13:

[...] Compreender/viver na sua radicalidade a formação do conhecimento e o conhecimento da formação significa instrumentalizar-se com uma condição ímpar para definir situações e decidir sobre a vida em qualificações.

[...] Sérgio Borba, um diarista também entusiasmado, companheiro do Grupo de Pesquisa de Estudos e Pesquisas Multirreferenciais (Grime), nos diz que o jornal de pesquisa objetiva o descrever, o contar: uma espécie de apreensão que se globaliza. Na inspiração de Borba, o jornal é um re-olhar sobre si mesmo no ato de andar, fazer, estar, ser. Belo exemplo de trabalhar com as referências, até porque a palavra “referência” tem em sua composição semântica a narrativa, o contar.

Page 3: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

APRESENTAÇÃO

Pág. 15:

[...] o diário de pesquisa (DP) como recurso processual capaz de auxiliá-lo em sua autoformação, entendida aqui a partir de tríplice perspectiva: formação para a pesquisa; para a escrita e, principalmente, formação de si como autor de sua atuação no social da vida cotidiana.

Tais cirscunstâncias do dia a dia podem também ser observadas a partir de três perspectivas, ou seja, considerando sua espacialidade, portanto, sua geografia; sua temporalidade ou historicidade e sua subjetividade ou, se quisermos, uma outra geografia, a do desejo. Enfim, é preciso termos presente que é em um contexto determinado que exercitamos cotidianamente a aprendizagem principal de nos tornarmos sujeitos capazes de uma interpretação da própria interioridade subjetiva e da exterioridade social com a qual contracenamos.

Págs. 15/16:

Destaco a possibilidade de várias perspectivas para uma mesma questão como forma de ressaltar que somente a partir de uma postura plural e multirreferencial podemos exercitar nossa inclusão como sujeitos que interrogam, interpretam e imprimem sentido ao que fazem.

Pág. 16:

[...] Ao me referir aqui à necessidade de formação para a pesquisa e de nossa formação mediante a pesquisa, não estou me referindo aos procedimentos técnicos de sua aplicação, considerando os modelos acadêmicos ditos específicos, mas sim, o dialogo com as atitudes presentes em todo e qualquer pesquisador, tais como: interrogar e apresentar perguntas; buscar informação e possíveis respostas para questões apresentadas; propor questões significativas e relevantes para si e para o grupo social ao qual pertence e, ainda, aprender novas perspectivas e formular novas concepções. Enfim, ousar interrogar o contexto social que lhe cerca, a si próprio, e propor hipóteses de interpretação e de sentido.

Pág. 17:

Page 4: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

[...] o que se busca é a instituição de um sujeito capaz de atuar no árduo processo de elaboração de si, da própria subjetividade, de apreensão do movimento interno em sua relação dialética com a dinâmica externa e social.

Pág. 18:

[...] A prática do diário de pesquisa tem me auxiliado no esforço de criar condições para oportunizar o que podemos denominar de aprendizagem existencial, aquela voltada para o aprendizado não somente de fórmulas ou pensamentos prontos, mas do processo de elaboração de si.

Págs. 18/19:

[...] Para Hemi Ress, é interessante adotarmos diferentes diários de escrita para facilitar a volta a eles e a seu uso posteriormente. Assim, podemos adotar um diário para nossa vida escolar, outro para nossa vida pessoal e social, outro para registrarmos a experiência da relação com nossos pais, ou ainda com nossa companheira ou namorada; enfim, é mais conveniente adotarmos a prática de vários diários de pesquisa, e não apenas de um só no qual todos esses temas viriam agrupados.

Pág. 19:

[...] a palavra “jornal” nos remete: preservar a intenção de ir além de uma escrita que se esgota nos limites de um diário íntimo e pessoal. Há que se buscar o outro lado, a outra perspectiva, a do movimento que a socialização da escrita promove ao nos fazer decolar de uma produção íntima para uma comunicação pública, externa. O que se busca nesse processo é assumir a intimidade da criação e da autocriação, ao mesmo tempo que se assume o publicizar na forma de troca de escritos ou de leituras em grupos, ou na forma de trabalho escolar ou de texto científico, de modo que o autor se aperceba do movimento que o envolve quando se transita de uma escrita pessoal para uma escrita socializada e pública.

Pág. 20:

Page 5: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

[...] o diário de pesquisa permite nos apropriarmos do conhecimento já produzido pela humanidade para nos tornarmos mais sábios e autores de nós mesmos numa relação educativa que nos impõe, o tempo todo, interpretação e solução desenvolvidas pelo outro. Trata-se de caminhar na perspectiva de abrir espaço para a autoformação como meio de pluralizar tal relação em que tão importante quanto as demandas e determinações do educador são as demandas, o desejo e o sentido por parte de quem se aprende. Trata-se de um profundo, contínuo e sofisticado processo de negociação de sentido que o professor e aprendiz desenvolvem no decorrer de um tempo não linear e não cronológico, mas vivido, e num espaço determinado como a escola, com o único objetivo de se tornarem mais sujeitos.

O DIÁRIO DE PESQUISA – ENTENDIMENTO E PRÁTICA

Introdução

Pág. 23:

[...] “instituição” refere-se a tudo que é instituído pelo homem e que carrega consigo também seu outro lado, o instituinte, ou seja, a dimensão criadora, na qual estão presentes os ruídos, o conflito, o que desestabiliza. A instituição comporta em si o instituído e o instituinte; portanto, referir-se a ela é referir-se à historicidade, ao simbólico e ao imaginário. Considerando essa maneira de pensar, o JP pode ser visto como uma instituição capaz de trabalhar – no sentido de elaborar, organizar, possibilitar- as potencialidades “instituintes” de quem se encontra na condição de aprendiz, o que significa reconhecer o caráter pedagógico ao qual me refiro no título deste texto.

Pág. 24:

[...] Como disse Jacques Ardoino, a complexidade é mais uma propriedade do olhar de quem vê do que uma propriedade dos objetos pesquisados.

[...] Sobre a questão da produção de sentido, não podemos deixar de destacar a reflexividade presente nesse processo, pois, se por um lado somos nós, sujeitos humanos, que significamos o que fazemos e produzimos, por outro, não nascemos prontos, dispondo de todos os sentidos e significados possíveis de serem vivenciados no decorrer da vida. Aprendemos a significar, significando.

Page 6: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

Pág. 26:

[...] Nossa proposta de formação para “autoria-cidadania”, tendo como suporte o JP, objetiva desvelar caminhos pedagógicos e formativos que nos auxiliem a trabalhar respostas para preocupações como a que obriga nós, educadores e educandos, candidatos a autores-cidadãos numa sociedade como a nossa, estruturada em um modelo de relação fundada na troca e não no sentido, instituirmos caminhos novos e interpretativos para uma aprendizagem implicada, uma forma de ser e de expressar com sentido e significado. É a esse analfabetismo e a essa necessidade de interpretar os códigos da sociedade contemporânea em um contexto decididamente hipercomplexo, como o atual, que estamos nos referindo.

Diário de Pesquisa: o nome

Págs. 26/27:

[...] A palavra francesa journal dispõe de dois significados em nosso idioma: pode significar tanto “diário”, registro pessoal do dia a dia, amoroso ou de outra ordem, muito comum entre adolescentes, quanto “jornal” no sentido de uma publicação também diária e pública como Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, etc.

Pág. 30:

Na perspectiva do “diário”

a) “Não objetiva a priori ser instrumento epistemológico, por exemplo, instrumento de análise das implicações do observador”;

b) “Não se refere a uma pesquisa definida, mas à diversidade do cotidiano de um escritor”;

c) “Objetiva o descrever, o contar, numa espécie de apreensão global”;d) “Nada além do descrever caótico, sem objetivos além do prazer estético do

escrever e da tentativa de compreende-se”.

Na perspectiva do “jornal”

a) “Busca entender o conexo social e psíquico da pesquisa”;b) “É instrumento teórico e prático de análise”;c) “Traz para as ciências naturais a complexidade das humanas”;

Pág. 31:

Page 7: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

d) “Permite ao pesquisador perceber a complexidade como parte integrante do seu ser existencial e profissional”.

Sobre a perspectiva do diário, basta ressaltar a idéia de que este serve para registrar um tanto aleatoriamente o dia a dia, sem objetivo maior que não seja o próprio registro e certa tentativa de compreensão de si por parte de quem escreve. Já a perspectiva do JP apresenta várias diferenças que podem ser reunidas em uma formulação maior: para compreender de modo mais apropriado a importância do JP na formação do aluno-reflexivo ou do futuro pesquisador, e para desenvolver neste uma postura interrogativa sobre a vida que o rodeia e sobre si mesmo, é preciso entender o JP a partir dos questionamentos que a ciência faz sobre si mesma, referentes a seus fundamentos, processos e métodos.

Pág. 32:

[...] A prática do JP se insere numa outra perspectiva de entender e de fazer ciência, que se caracteriza por apresentar posições opostas em relação à linguagem matemática e ao isolamento do sujeito. Nessa outra perspectiva, entram em cena a pesquisa qualitativa, a postura hermenêutica e interpretativa e a incorporação da presença do observador com todas suas implicações, apresentando como resultado um conhecimento não objetivo no sentido matemático, mas híbrido, mestiço, resultante da mistura de razão e subjetividade do observador.

Assim, quando Sérgio Borba se refere ao JP, destacando que este permite “entender o conexo social e psíquico da pesquisa”, que “traz para as ciências naturais a complexidade das humanas”, uma complexidade que se apresenta “como parte integrante do seu ser existencial e profissional”, não faz outra coisa senão assumir uma ruptura no parâmetro de entender e produzir conhecimento. Nessa perspectiva, é possível afirmar que se pode estudar com rigor tantos os fenômenos distantes e fora de nós quanto aqueles que estão próximos.

Pág. 33:

[...] ao observá-la atentamente, interrogá-la e escutá-la de modo clínico e perspicaz, é possível caminhar em direção aos possíveis significados que emergem do objeto observado, lembrando que nas ciências humanas o objeto de pesquisa se constitui de sujeitos, o que torna o processo mais complexo quanto ao uso das metodologias e das possibilidades interpretativas.

Page 8: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

Págs. 33/34:

[...] Penso que a melhor argumentação sobre o uso da expressão “jornal de pesquisa” e não “diário de pesquisa” tem a ver com a necessidade de uma expressão que mantenha as duas dimensões da palavra original, ou seja, a idéia de diário como escrita íntima, pessoal e a dimensão pública, presente no jornal como instrumento de comunicação com o público.

Pág. 36:

[...] Sérgio Borba afirma que “implicar-se é estar dobrado, voltado para dentro” (2001, p.103-113). Portanto, considerar nossos “andaimes” é lidar com nossas “dobras”. É através delas, de nossas implicações “psicoafetivas, estrutural-profissional e histórico-existenciais” (Barbier, 1975, p.105) que iremos produzir o que produziremos com nossas “marcas”. Talvez seja interessante incorporar nesta conversa o que nos diz Jaccques Ardoino sobre o coonceito de implicação:

[...] a implicação está igualmente ligada à autorização enquanto capacidade de autorizar-se, de fazer-se a si mesmo, ao menos, co-autor do que será produzido socialmente. Se o ato é sempre, mais ou menos, explicitamente, portador de sentido, o autor é fonte e produtor de sentido. (Ardoino, 1993, p.122)

Nossa idéia de JP não é usá-lo como instrumento para aprender a esconder nossas implicações, aquilo que não queremos que os outros vejam, aquelas manifestações psíquicas que se vulcanizam dentro de nós por conta daquilo que estamos interessados. Muito pelo contrário: a questão é, mediante ele, aprender a lidar, a expor, a desdobrar, a jogar com nossas implicações, para que aquilo que produzimos seja uma extensão nossa e vice-versa. Para que tenha sentido.

Pág. 37:

[...] Dito de outro modo, aprender sobre este jogo maravilhoso de lidar com o impacto do que nos é externo, social, em relação ao que nos é interno, de dentro- a exteriorização de nossa subjetividade através do que produzimos e a subjetivação de nossa exterioridade, daquilo que nos é externo.

[...] o JP pode não se referir somente à pesquisa como a entendemos na academia, mas tratar-se de desenvolver e aprimorar um olhar mais inquieto e interrogativo sobre

Page 9: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

qualquer assunto, também sobre aqueles que nos são próximos e íntimos. É preciso não perder de vista a dimensão do diário e podemos nos decidir pelo registro de qualquer temática, como, por exemplo, uma pesquisa em andamento, mas também podermos anotar sobre nossa docência, sobre a nossa vida pessoal ou, ainda, sobre nossa condição de pais ou de filhos, nossa vida escolar de aluno.

Pág. 40:

[...] O segredo da pesquisa em educação, portanto, é o desenvolvimento deste duplo olhar ou olhar plural, na perspectiva do proposto pela abordagem multirreferencial: um olhar direcionado para o “objeto” de interesse de nossa reflexão e outro olhar voltado para nós que olhamos nossos objetos de interesse. Isso significa dizer olhar para dentro de nós, para nossos medos de dar conta ou não daquilo que nos propomos, olhar nossas angústias sobre aquilo que não sabemos e nos propomos conhecer, olhar nossas implicações.

Quando nos encontramos diante de algo novo, nosso primeiro movimento é resolver o que nos incomoda o mais rápido possível para aliviar nossas angústias. Mas precisamos exercitar o caminho contrário, o de aprendermos a lidar com nossas angústias, com tudo que é acionado dentro de nós por “não saber”. O que nos incomoda pode ser de valor muito grande para nos conhecermos por dentro. Somos o resultado desse jogo dentro/fora; dessa interioridade, subjetiva e psíquica; e dessa exterioridade que é nossa imersão no social.

Diário de Pesquisa: o sentido

Pág. 41:

[...] do significado de JP em nossa vida de aprendizes, ressaltando a necessidade de, primeiramente, instituir esse “lugar de aprendiz”, ou seja, nos permitir ser aprendizes, pois, para nós, freqüentadores da escola brasileira, em todo nosso percurso de aprendizagem, “o ser aprendiz” parece se constituir em tarefa árdua, já que todo o tempo nos é exigido “saber”. Desde nossa mais tenra idade não nos é permitido “não saber”.

Pág. 45:

Page 10: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

[...] quero defender enfaticamente a importância, o sentido mais profundo, para nós brasileiros, da prática do JP, pois, já que a escrita não tem sido uma prática socialmente enfatizada, facilitada, sendo arduamente buscada, somente o exercício cotidiano dela poderá nos inserir no interior de uma cultura e de uma forma de pensar em que essa escrita se apresente naturalmente. No dia em que a escrita se tornar familiar para nós; no dia em que escrevermos com certa tranqüilidade, naturalidade, prazer, e nos comunicarmos da mesma forma por meio dela, teremos conseguido dar aquele salto de qualidade dentro da própria cultura ao qual me referi.

Págs. 45/46:

Há uma aprendizagem a ser reescrita em nosso inconsciente. A aprendizagem da própria escrita. E tal aprendizagem somente se dará se houver a dedicação, a insistência, a descoberta do lúdico, do prazer da escrita. Enfim, um exercício que se inicia na escrita pela escrita, cotidiana, que nos seja significativa, com a qual nos sintamos autores daquilo que expressamos, embora no dia seguinte possamos deixar de lado muito do que foi escrito por não vermos sentido algum, mas, pelo menos, escrevemos, sentimo-nos donos do nosso texto e, como tais, podemos nos autorizar a reescrevê-lo, se julgarmos interessante fazê-lo ou, então, simplesmente desprezá-lo.

Pág. 46:

[...] a escrita tem seu lugar: o de organizar nossas sensações e nossos pensamentos e de organizar nosso mundo inconsciente.

Pág. 47:

[...] “autonomia do indivíduo consiste no seguinte: outra relação é estabelecida entre a instância reflexiva e as outras instâncias psíquicas”, ou seja, “o Eu altera-se ao receber e admitir os conteúdos do inconsciente, ao refleti-los e ao tornar-se capaz de escolher lucidamente os instintos e as idéias que tentará atualizar. Em outras palavras, o Eu tem que vir a ser uma subjetividade capaz de refletir, capaz de deliberação e de vontade” (Castoriadis, 1987-1992, p.154).

Pág. 48:

Page 11: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

[...] autor-cidadão é um processo que ocorre numa geografia, numa história pessoal e social, em grupo e numa sociedade determinada, numa organização, e que, para tanto, exige politizar não só as dimensões econômica e política, entendidas na perspectiva partidária e de gestão do Estado, relacionadas à nossa vida individual e social, mas colocar em questão a politização da vida em suas múltiplas faces e filigranas, englobando a própria forma de ser e de se expressar (Barbosa, 1998, p. 8-13).

Com o termo autor-cidadão, penso estar ampliando a idéia de cidadania. Essa idéia nos remete a uma atuação no social, e a idéia de autoria nos remete a uma atuação no interior do indivíduo.

Págs. 48/49:

[...] Ardoino (1998, p.25) quando fala sobre a “capacidade de fazer de si mesmo próprio autor, de tornar-se a si mesmo o autor de si mesmo”, ou “coautor”, no sentido de que sempre temos que considerar a presença do outro em nosso caminho, como nossos pais, nossos primeiros professores e outras pessoas. Ardoino nos apresenta a idéia de autor como aquele que produz sentido.

Pág. 51:

[...] Trata-se, a partir dessa relação “interno/externo”, de dar conta da elaboração do próprio jeito de ser, “de sentir, de amar, de imaginar, de propor sonhos, objetivos, estratégias..., de desejar”. Enfim, do próprio jeito de se expressar e até da própria capacidade ou incapacidade de expressar os sentimentos. Autor-cidadão é essa complexa apreensão de si e de sua afirmação, englobando tanto a dimensão interna quanto a externa como sujeito.

Pág. 52:

[...] Para uma compreensão didática do que denomina de “escuta sensível”, Barbier divide a escuta em três tipos: a escuta científica/clínica; a espiritual/filosófica/existencial. Embora se refira a três tipos de escuta, todas compõem uma escuta única, a qual denomina de “transversal”. Enquanto a primeira se refere à dimensão científica, ao que pode ser comprovado, observado e dialeticamente apresentado, a segunda se põe na escuta daquilo que funda o sentido da vida para o sujeito. Diz o autor tratar-se da escuta dos valores que dão sentido à vida do sujeito, e para os quais este é capaz de arriscar alguma coisa que lhe diz intimamente respeito, que é, geralmente, sua própria vida. Por fim, a escuta

Page 12: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

poética/existencial, por ser da ordem do instituinte, da possibilidade criadora do sujeito humano, permite sacudir a estrutura estabelecida, engendrando um sentido profético no qual o pesquisador se apresenta como criador poético e provocador de desarranjo na consciência instituída do grupo.

Diário de Pesquisa: a prática

Págs. 53/54:

[...] Sérgio Borba apresenta as características do JP do seguinte modo:

Consiste em escrever no dia a dia, como num diário, os pequenos fatos organizados em torno de um vivido, dentro de uma instituição: seu trabalho, sua conjugalidade, sua relação com uma criança, com uma pesquisa e consigo mesmo, etc. Não menos que três ou quatro dias por semana, anotar um fato marcante, um encontro, uma reflexão, uma leitura, um conflito, um estudo, etc... Ele é mais do que um diário íntimo, pois nele você expressa, conta sua relação com uma instituição ou várias. É aconselhável batê-lo à máquina (ou digitá-lo). E, também, fazê-lo circular nu círculo restrito de pessoas, amigos, etc. Nesta técnica nós temos a dimensão pedagógica. Pode haver também uma troca interindividual desses escritos, e isso cria relações extremamente fortes. É um dispositivo e um processo. Se formar não é instruir... É primeiro refletir, é pensar uma experiência vivida (Borba, 2001, p.28).

Pág. 61:

[...]

A realização do trabalho encaminhada dessa forma apresenta alguns ganhos.

Primeiro: Não está presente o problema do trabalho de última hora ou da cópia, pois ele vai sendo elaborado desde o primeiro dia de aula, quando se iniciam as anotações no próprio JP.

Segundo: Como a ênfase da avaliação não está no controle e na imposição do que o aluno deve fazer, em que tempo fazer ou, ainda, de que modo, mesmo se tratanto de três ou quatro páginas, mas produzidas por ele, o processo é de uma riqueza ímpar, e o aluno, principalmente aquele do ensino noturno, que apresenta sérias dificuldades para o resultado, pois dificilmente algum professor lhe deu oportunidade semelhante

Page 13: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

a essa e auxílio igual para se apropriar dos recursos da produção escrita. Seus olhos brilham ao se ver naquele produto de três ou quatro páginas.

Pág. 62:

Terceiro: Há a necessidade da prática do JP por parte do professor. A arte de ensinar, a docência, hoje, impõe exigências outras daquelas vividas por ele em tempos anteriores quando se formou. Para tanto, a necessidade de “aprender a ensinar” enquanto atua como docente é uma necessidade e uma aprendizagem a ser construída diariamente mediante a busca, a pesquisa. Tanto o aluno quanto o professor, hoje, têm de se tornar pesquisadores. E o JP se apresenta como instrumento extremamente adequado para tal fim!

Pág. 63:

(Exemplo de um JP sobre a docência na graduação de Pedagogia de Joaquim Gonçalves Barbosa)

Estou profundamente abatido, triste e impotente diante de minha profissão. Estive avaliando a turma do terceiro semestre da Pedagogia. Eu esperava mais. Foi triste constatar que dos 32 trabalhos, só 9 conseguiram apresentar a bibliografia correta. Os demais, 23, correspondem a mais de 40 alunos. Eu esperava mais, até porque achava que se tratava de algo simples. Mas parece que não é (18/6/2004).

Pág. 64:

[...]

Quarto: objetivando a prática do exercício da autoria, oriento os alunos para que, em vez de anotarem sofregamente a fala do professor ou de copiarem trechos e mais trechos que lhes interessam dos livros e das apostilas, anotem possíveis relações que eles vão estabelecendo entre uma idéia e outra; entre a idéia deste autor com a daquele outro; entre idéias que se destacaram no desenvolvimento da aula e aquelas que lhes chamaram atenção, seja assistindo a um jornal eletrônico, ou mesmo conversando com alguém da família ou com outro profissional docente, do curso ou não. Acentuo que tais relações podem se apresentar inócuas e inaproveitáveis quando retornarmos a elas, mas poderão, algumas delas, se apresentar interessantes e permitir um desenvolvimento maior. Essa é uma das riquezas do JP. Trata-se do registro das nossas divagações e das relações que estabelecemos entre os pontos de vista de autores e de profissionais das mais variadas fontes e perspectivas, que poderão, amanhã ou depois, se apresentar oportunas para um aprimoramento maior. Caso isso aconteça, o aluno terá a grata satisfação de uma experiência

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asseguradamente nova, que é a de se descobrir capaz de produzir idéias, de sentir-se autor de uma idéia nova, pois tal relação de idéias é de sua autoria, foi ele quem viu daquela maneira e argumentou em sua defesa.

Pág. 65:

[...] O importante é esse exercício de registro sempre a partir de dupla perspectiva: tanto o que se vê externamente, relativo ao campo de interesse (trabalho de conclusão da disciplina, relatório de estágio ou monografia de TCC), quanto o que se passa interiormente no sujeito que se coloca na posição de observador do movimento e da ação que estão em curso, levando em conta imagens, percepções, angústias, compreensões, relações estabelecidas, mesmo que de forma preliminar.

Pág. 67:

[...] Costumo esclarecer também que o texto resultante é semelhante a uma carta. Toda vez que se enviar uma carta e tiver que estar junto do destinatário para esclarecer algumas de suas partes, essa carta é insuficiente. A carta bem escrita comunica o que se propôs a comunicar seu autor. Assim é o texto ou o trabalho dito acadêmico. Ele deverá conter em si as informações necessárias para comunicar a idéia que pretendeu comunicar. Podemos fazer também o mesmo em ao filme. Uma fita cinematográfica é composta por milhares de imagens que se juntam umas às outras para contar uma história. Ou seja, por mais que fiquemos durante cem minutos ou mais vendo imagens, no final podemos resumir em algumas frases a “mensagem” do filme. Pensemos ao contrário. Coloquemo-nos no lugar do diretor. Precisamos ter o que contar. Podemos escrever uma ou cem páginas, mas no final há que ficar clara a idéia que pretendemos comunicar ao leitor. Aliás, sempre escrevemos para um leitor. O leitor imaginado será nosso interlocutor e a ele temos de comunicar algo. Nós não escrevemos por escrever, mesmo quando redigimos nossos diários íntimos. Escrevemos para alguém. Precisamos assumir esse alguém outro como presente em nossa escrita.

Págs. 67/68:

Aliás, a escrita, o JP, é um lugar rico para exercitarmos nossa diferenciação do outro.

Pág. 68:

Page 15: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

Ardoino diz que “a experiência mais extrema, às vezes a mais cruel, mas provavelmente também a mais enriquecedora que podemos ter da heterogeneidade, é a que nos é imposta através do encontro com o outro, enquanto limite de nosso desejo, de nosso poder e de nossa ambição”. (Ardoino, 2002, p. 553)

Uma Palavra a mais

Pág. 73:

[...] Assim, o diário de pesquisa pode assumir diferentes tipos, como diário de formação: quando se propõe a registrar o próprio processo formativo vivenciado no decorrer de um curso seja de graduação, pós-graduação ou outro; diário pessoal: quando o objetivo é registrar tudo o que se refere a sua própria vida ou como rebate dentro de si o vivido, seja da ordem da saúde, das emoções, das questões existenciais e filosóficas; diário de pesquisa: quando o objetivo é registrar o caminho percorrido, ao desenvolver uma pesquisa como TCC, dissertação de mestrado ou tese de doutorado.

Conversando sobre O diário de pesquisa

Entrevista com Remi Hess

Pág. 80:

[...]

“JP, em relação a outras formas de jornal é um jornal que tem por finalidade anotar diariamente tudo o que se refere a uma pesquisa: observações, encontros, leituras, reflexões teóricas, etc.”

Pág. 86:

[...]

Page 16: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

“penso que, para transformar um “jornal de campo” em JP, deve-se fazer um índice.”

[...]

“a pessoa, se constrói em vários momentos, e que o jornal pode ajudar a explicitar cada um dos momentos da pessoa. Por exemplo, um professor universitário é, ao mesmo tempo, obrigado a trabalhar no nível da administração, no nível de pedagogia e no nível da pesquisa. Penso, portanto, que se um professor universitário escreve seu jornal, ele pode fazê-lo no nível da gestão, dos seus problemas de engajamento na gestão da universidade; um jornal pedagógico, isto é, seus problemas com seus estudantes; e um outro, JP, ligado aos artigos, aos livros que ele quer escrever, acompanhando seu esforço diário para fazer avançar suas idéias. Penso, então, que um professor universitário pode desenvolver vários jornais paralelamente.”

Pág. 87:

[...]

“O momento é, na verdade, um conceito lógico. Mas há também o momento histórico. Por exemplo, segundo Marx, a sociedade passa por vários momentos. Há o escravismo, a servidão e talvez o comunismo. Portanto, a sociedade é analisável. Pode-se analisá-la em função de seus momentos e, finalmente, pode-se entrar nos detalhes: uma guerra de libertação ou uma involução podem ser momentos históricos, o que significa que depois a sociedade está diferente de antes. Então, o momento é também um conceito histórico.”

[...]

“os momentos históricos são estágios do desenvolvimento da personalidade ou da sociedade.”

Pág. 90:

[...]

“no quadro do jornal de formação, isto é, quando se quer utilizar o jornal como ferramenta para formar-se, a técnica de fazer jornais por momentos, ou seja, em função dos momentos que se quer desenvolver na sua personalidade, me parece algo interessante.”

“O homem, a mulher, são eles mesmos quando conseguem capitalizar sua experiência cotidiana.”

Page 17: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

Pág. 91:

[...]

“Penso que o jornal ajuda a objetivar a subjetividade. Isto é, uma vez que se descrevem emoções no seu jornal, toma-se distância em relação a elas. Portanto, o jornal tem por função objetivar o subjetivo e é verdade que, depois, pode-se trabalhar em grupo e pode-se tentar compreender porque se foi agredido por tal palavra ou por tal discurso na instituição.”

Pág. 96:

[...]

“deve-se encontrar dispositivos com os quais as pessoas se sintam seguras; elas não têm medo de escrever porque sabem que os outros não vão julgá-las. Isso é muito importante porque, na escola, a escrita é sempre julgada. Atribuem-se notas, o que dá uma dor de cabeça..., e muitas pessoas não escrevem porque têm medo de serem julgadas, de serem avaliadas, e é essa a dificuldade profissional do formador de jornal.”

Pág. 97:

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“uma escrita implicada onde podemos dizer a nós mesmos: não seremos julgados. Então, o jornal, para mim, é uma escrita instituidora na qual podemos escrever tudo o que quisermos. O professor não julga o conteúdo. Eu tenho, portanto, uma regra, tenho um conselho: o de jamais deixar alguém que não escreve um jornal leia o seu jornal. Isso é reciprocidade.”

Pág. 101:

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“Não se aprendia a escrever para si mesmo, e isso é o que procuro ensinar e penso que é o que você faz: encorajar as pessoas a se expressarem, a falarem, a se produzirem.”

[...]

Page 18: x Fichamento livro O diário de Pesquisa

“Deve-se aceitar a disciplina do texto. Deve-se aceitar escrever um pouco todos os dias. É verdade, quanto mais se escreve...Quando aceitamos essa disciplina, depois nos tornamos muito fortes. Escrevemos cada vez melhor, cada vez mais e fica cada vez mais fácil escrever.Isso requer cada vez menos trabalho, logo há uma resistência. Deve-se trabalhar essa resistência na escrita, assim como um corredor treina um pouco todos os dias. Há também um prazer da escrita, isto é, o corredor, no início, ele sofre quando corre, é cansativo, ele sente dificuldade, mas depois, há um certo prazer.”

Pág. 102:

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“O jornal, portanto, confere superioridade em relação aos que não o escrevem, faz ganhar tempo na compreensão das coisas, porque é verdade que se encontra a solução dos problemas que se anotou. Isso é formidável.”