walter benjamin - origem do drama barroco alemão [pags 49-79]

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 Walter Benjamin  Filosofia e a Visão Comum do Mundo — Bento Prado e outros O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira — Teatro — José ~abai e Mariéng ela Alves de L ima Coleção Primeiros Passos O que é rte — Jorg e Col i O que é Teatro — Fernando Peixoto O que é Semiótica — Lúcia S anta ella Coleção Encanto Radical Friedrich Nietzsche — Um a Filosofia a Marteladas — Scarlett Marton Georg Buch ner — Dramaturgia do Terror — Fernando Peixoto Roland Barthes — O Saber com Sabor — Leyla Perrone Moisés Sócrates — O Sorriso da Razão — Francis Wolf f Walter Benjamin — Os Cacos da História — Jeanne M. Gagnebin Coleção Primeiros Vôos Barroco Suzy de Mell o Introdução à Dramaturgia — Renata Pallottini Coleção Circo de Letras Haxixe — Walt er Benjamin Origem do drama barroco alemão Tradução, apresentação e notas: Sergio Paulo Rouanet COL. ILANA BLAJ NÃO CIRCULA S D FFLCH USP  I P 1984

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Walter Benjamin

• A F i l oso f ia e a V isão Comum do Mundo — Bento Prado eoutros

• O Nacional e o Pop ular na Cul tura Bras i le i ra — Teat ro — José~abai e Mariéngela Alves de Lima

Coleção Primeiros Passos

• O que é A r te — Jorge Col i• O que é Teat ro — Fernando Peixoto• O que é Semiót i ca — Lúcia Santaella

Coleção Encanto Radical

• Fr i ed r i ch N ie t zsch e — Um a F i l oso f i a a Mar te l adas — ScarlettMarton

• Georg Buch ner — A Dramaturg ia do Ter ro r — FernandoPeixoto

• Ro land Ba r t h es — O Sab e r com Sab o r — Leyla Perrone-Moisés

• Sóc ra tes — O Sor r i so da Razão — Francis Wolf f

• Wal te r Ben jam in — Os Cacos da His tór ia — Jeanne M.Gagnebin

Coleção Primeiros Vôos

• Barroco - Suzy de Mello• In t rodução à Dramaturg ia — Renata Pallottini

Coleção Circo de Letras

• Haxixe — Walter Benjamin

Origem do dramabarroco alemão

Tradução, apresentação e notas:

Sergio Paulo Rouanet

COL. ILANA BLAJNÃO CIRCULA

SBD -FFLCH -USP

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IP1984

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Questões introdutóriasde crítica do con hecimento

"Posto que nem no saber nem na reflexão pode-mos chegar ao todo, já que falta ao primeiro a di-mensão interna, e à segunda a dimensão externa,devemos ver na ciência uma arte, se esperamos

dela alguma forma de totalidade. Não devemosprocurar essa totalidade no universal, no excessivo,pois assim como a arte se manifesta sempre, comoum todo, em cada obra individual, assim a ciênciadeveria manifestar-se, sempre, em cada objeto es-tudado."

Johann Wolfgang von Goethe, Materialien zur

Geschichte der Farbenlehre. s

É característico do texto filosófico confrontar-se, semprede novo, com a questão de representação. Em sua forma aca-bada, esse texto converte-se em doutrina, mas o simples pensa-mento não tem o poder de conferir tal forma. A doutrina f i lo-sófica funda-se na codificação histórica. Ela não pode ser invo-cada more geometrico. Quanto mais claramente a matemáticademonstra que a el iminação total do problema da representa-ção reivindicada por qualquer sistema d idático eficaz é o sinaldo conhecimen to genuíno, mais decisivamente ela renunciaàquela esfera da verdade visada pela linguagem. A dimensão

(*) Materiais para a História da Doutrina das Cores.

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50 CONCEITO DE TRATADO

metodológica dos projetos filosóficos não se incorpora à suaestrutura didática. Isto significa, apenas, que um esoterismo éinerente a tais projetos, que eles não podem descartar, queestão proibidos de negar e do qual não podem vangloriar-sesem riscos. O conceito de sistema, do século XIX, ignora aalternativa à forma filosófica, representada pelos conceitos dadoutrina e do ensaio esotérico. Na medida em que a filosofia édeterminada por esse conceito de sistem a, ela corre o perigo de

acomodar-se num sincretismo que tenta capturar a verdadenuma rede estendida entre vários tipos de conhecimento, comose a verdade voasse de fora para dentro. Mas o universalismoassim adquirido por essa filosofia não consegue alcançar aautoridade didática da doutrina. Se a filosofia quiser perma-necer fiel à lei de sua forma, como representação da verdade enão como guia para o conhecimento, deve-se atribuir impor-tância ao exercício dessa forma, e não à sua antecipação, comosistema. Esse exercício impôs-se em todas as é pocas que tive-ram consciência do Ser indefinível da verdade, e assumiu oaspecto de uma propedêutica. Ela pode ser designada pelotermo escolástico do tratado, pois este alude, ainda que de

forma latente, àqueles objetos da teologia sem os quais a ver-dade é impensável. Os tratados podem ser didáticos no tom,mas em sua estrutura interna não têm a validade obrigatória deum ensino, capaz de ser obedecido, como a doutrina, por suaprópria autoridade. Os tratados não recorrem, tampouco, aosinstrumentos coercitivos da demonstração matemática. Emsua forma canônica, só contêm um único elemento de inten-ção didática, mais voltada para a educação qu e para o ensina-mento: a citação autorizada. A quintessência do seu métodoé a representação. Método é caminho indireto, é desvio. A re-presentação como desvio é portanto a característica metodo-lógica do tratado. Sua renúncia à intenção, em seu movimento

contínuo: nisso consiste a natureza básica do tratado. Incan-sável, o pensamento começa sempre de novo, e volta sempre,minuciosamente, às próprias coisas. Esse fôlego infatigável é amais autêntica forma de ser da contemplação. Pois ao consi-derar um mesmo objeto nos vários estratos de sua signifi-cação, ela recebe ao mesmo tempo um estímulo para o reco-meço perpétuo e uma justificação para a intermitência do seuritmo. Ela não teme, nessas interrupções, perder sua energia,assim como o mosaico, na fragmentação caprichosa de suas

CONHECIMENTO E VERDADE 5 1

partículas, não perde sua majestade. Tanto o mosaico comoa contemplação justapõem elementos isolados e heterogêneos,e nada manifesta com mais força o impacto transcendente,quer da imagem sagrada, quer da verdade. O valor dessesfragmentos de pensamento é tanto maior quanto menor suarelação imediata com a concepção básica que lhes corres-ponde, e o brilho da representação depende desse valor damesma forma que o brilho do mosaico depende da qualidade

do esmalte. A relação entre o trabalho microscópico e a gran-deza do todo plástico e intelectual demonstra que o conteúdode verdade só pode ser captado pela mais exata das imersõesnos pormenores do conteúdo material. Em sua forma maisalta, no Ocidente, o mosaico e o tratado pertencem à IdadeMédia. Sua comparação é possível, porque sua afinidade éreal.

A dificuldade intrínseca dessa forma de representaçãomostra que ela é, por natureza, uma forma de prosa. Na fala,

o locutor apóia com sua voz e com sua expressão fisionômicaas sentenças individuais, mesmo quando elas não têm sentidoautônomo, articulando-as numa seqüência de pensamentos,muitas vezes vaga e vacilante, como quem esboça, com um sótraço, um desenho tosco. Pelo contrário, na escrita é preciso,com cada sentença, parar e recomeçar. A representação con-templativa é semelhante à escrita. Seu objetivo não é nemarrebatar o leitor, nem entusiasmá-lo. Ela só está segura de simesma quando o força a deter-se, periodicamente, para con-sagrar-se à reflexão. Quanto m aior o objeto, mais distanciadadeve ser a reflexão. Su a sobriedade prosaica, desvinculada dopreceito doutrinário imperativo, é o único estilo de escrever

digno da investigação filosófica. As idéias são o objeto dessainvestigação. Se a representação quiser afirmar-se como o ver-dadeiro método do tratado filosófico, não pode deixar de ser arepresentação das idéias. A verdade, presente no bailado dasidéias representadas, .esquiva-se a qualquer tipo de projeçãono reino do saber. O saber é posse. A especificidade do-objetodo saber é que se trata de um objeto que precisa ser apro-priado na consciência, ainda que seja uma consciência trans-cendental. Seu caráter de posse lhe é imanente. A represen-

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52 O BELO FILOSÓFICO

tação, para essa posse, é secundária. O objeto não preexiste,como algo que se auto-represente. O contrário ocorre com averdade. O método, que para o saber é uma via para a aqui-sição do objeto (mesm o que através da sua produção na cons-ciência) é para a verdade representação de s i mesma e por-tanto, como forma, dado juntamente com ela. Essa forma nãoé inerente a uma estrutura da consciência, como é o caso dametodologia do saber, mas a um Ser. A tese de que o objeto do

saber não coincide com a verdade revela-se, sempre de n ovo,uma das mais profundas intuições da filosofia original, a dou-trina platônica das idéias. O saber pode ser questionado , masnão a verdade. O saber visa o particular, mas não a u nidadedesse particular. A unidade d o saber, se é que ela existe, con-siste apenas num a coerência mediata, produzida pelos conhe-cimentos parciais e de certa forma po r seu equilíbrio, ao passoque na essência da verdade a unidade é um a determinação di-reta e imediata. O próprio dessa determinação direta é nãopoder ser questionada. Pois se a unidade integral na essênciada verdade pu desse ser questionada, a interrogação teria deser: em que medida a resposta a essa interrogação já está con-

t ida em cada resposta concebível dada pela verdade a qual-quer pergunta? A resposta a essa pergunta provocaria de novoa mesm a interrogação, e assim a un idade da verdade escapa-r ia a qualquer questionamento. Como unidade no Ser, e nãocomo unidade no Conceito, a verdade resiste a qualquer inter-rogação. Enquanto o conceito emerge da espontaneidade doentendimen to, as idéias se oferecem à contemplação. As idéiassão preexistentes. A distinção entre a verdade e a coerência dosaber define a idéia como Se r. É este o alcance da doutrinadas idéias para o conceito da verdade. Como Ser , a verdade ea idéia assumem o supremo significado metafísico que lhes éatribuído expressamente pelo sistema de Platão.

O que foi di to acima pode ser documen tado, principal-mente, pelo Symposion, que contém dua s afi rmações deci-sivas no presente contexto. Nele, a verdade é apresentadacomo o conteúdo essencial do Belo, o reino das idéias, e averdade é considerada bela. A com preensão dessas teses pla-tônicas sobre a relação entre a verdade e a beleza tem impor-

O BELO FILOSÓFICO3tância capital não somente para qualquer filosofia da arte,como para a própria determinação do conceito da verdade.Um a interpretação puramen te lógica e sistemática dessas duasfrases, que visse nelás apenas um panegírico tradicional dafilosofia, afastaria o intérprete, inevitavelmente, da esfera dadoutrina das idéias. Pois nas passagens citadas o modo de serdas idéias aparece mais claramente que em qualquer outro

lugar. No entanto, a segunda afirmação, em particular, me-rece alguns comentários. A tese de que a verdade é bela deveser compreendida no contexto do Symposion, que descreve osvários estágios do desejo erótico. Eros (assim devemos enten-der o argum ento) não atraiçoa seu impulso original quandodirige sua paixão para a verdade, porque também a verdade ébela. E o é não tanto em si mesma como para Eros. O mesm ovale para o amor humano: o hom em é belo para o amante, enão em si mesmo, porque seu corpo se inscreve numa ordemmais alta do que a do belo. Assim a verdade, que é bela, nãotanto em si mesm a, quanto para aquele que a busca. Se há emtudo isso um laivo de relativismo, nem por isso a beleza ima-

nente à verdade transformou-se em simples metáfora. A es-sência da verdade como a auto-representação do reino dasidéias garante, ao contrário, que a tese da beleza da verdadenão poderá nun ca perder sua val idade. Esse elemento repre-sentativo da verdade é o refúgio da beleza. A beleza em geralpermanecerá fulgurante e palpável enquanto adm itir f ranca-mente ser uma simples fulguração. Seu brilho, que seduz,desde que não queira ser mais que bri lho, provoca a inteli -gência, que a persegue, e só quando se refugia no altar daverdade revela sua inocência. Amante, e não perseguidor,Eros a segue em sua fuga, que não terá fim, porque a beleza,para manter sua fulguração, foge da inteligência por terror, e

por medo, do amante. E somente este pode testemunhar que averdade não é desnudamento, que aniquila o segredo, masrevelação, que lhe faz justiça. Mas pode a verdade fazer jus-tiça à beleza? Essa é a questão mais profunda do Symposion.

A resposta de Platão é que compete à verdade garantir o Serda beleza. É nesse sentido que ele descreve a verdade co mo oconteúdo do belo. Mas ele não se m anifesta no desvendamentoe s im num processo que pode ser caracterizado metaforica-mente como um incêndio, no qual o invólucro do objeto, aopenetrar na esfera das idéias, consome-se em chamas, uma

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DIVISÃO E DISPERSÃO NO CONCEITO 5 5

54 O BELO FILOSÓFICO

destruição, pelo fogo, da obra, durante a qual sua forma at in-ge o ponto m ais alto de sua intensidade luminosa. Essa re la-ção entre a verdade e a beleza, que mostra mais claramenteque qualqu er outra a di ferença entre a verdade e o objeto dosaber, habitualm ente ident i f icados, expl ica o fato impopu larde que certos sistemas filosóficos que há m uito perderam qual-quer relação com a ciência conservam, não obstante, sua atua-

l idade. Nas grandes f i losofias o mun do é representado na or-dem das idéias. O universo conceituai em que isso ocorreudeixou, há mu ito, de ter qualquer sol idez. Não obstante, comoesboços de uma descrição do mundo, tal como a empreendidapor Platão com sua dou trina das idéias, por Leibniz com suamonadologia e por Hegel com sua dialética, esses s istemas seman têm vál idos. É peculiar, com efe ito , a todas essas tenta-t ivas, a circunstância de que preservam seu sentido, e mesmoo desdobram plenamente, quando se enraízam no m undo dasidéias, em vez de se enraizarem no mundo empírico. Pois essasconstruções do espirito se orig inaram como um a descrição daordem das idéias. Quanto m ais intensamente tais pensadores

tentaram esboçar a imagem do real dentro dessa ordem, maisr ico se tornou o aparelho conceituai correspondente, que pas-sou a ser visto, pelo intérprete poster ior , como plenamenteadequado para a representação or iginal do mu ndo das idé ias,objet ivo básico por eles pretend ido. Se a tarefa do f i lósofo éprat icar um a descrição do mundo d as idéias, de tal modo queo mun do empír ico nele penetre e nele se dissolva, então o f i ló-sofo assume um a posição mediadora entre a do investigador ea do art ista, e mais e levada que amba s. O art ista produz ima-gens em m iniatura do mundo da s idéias, que se tornam def i-nit ivas , porque e le as concebe como cóp ias . O invest igadororganiza o m undo visando à su a dispersão no reino das idé ias,

dividindo esse mun do, de dentro, em conceitos. Ele tem emcomum com o f i lósofo o interesse na ext inção da m era

sido habitualmente subordinado ao investigador, e mu itas ve-zes ao investigador de importância secundária. Segundo essaconcepção, não existe lugar para a representação na tarefa dof i lósofo . O conceito do est i lo f i losófico é isento d e pa radoxos.Ele tem seus p ostulados, que são: a arte da interrupção, emcontraste com a cadeia das deduçõ es, a tenacidade do ensaio,em contraste com o gesto único do fragmento, a repet ição dos

mot ivos , em con traste com o universalismo vazio, e a pleni-tude da posit iv idade concentrada, em contraste com a polê-mica negadora.

Para que a verdade seja representada em sua unidade eem su a singularidade, a coerência dedutiva da ciência, exaus-

t iva e sem lacunas, não é de nenhum m odo necessária. E noentanto essa exaust ividade sem lacunas é a única forma pelaqual a lóg ica do s istema se re lac iona com o conceito de ver-dade. Essa sistematicidade fechada não tem mais a ver com averdade que qualquer ou tra forma de representação, que pro-cura assegurar-se da verdade através de meros conhecimentose conjuntos de conhecimentos. Quanto mais minuciosamente ateoria do conhecimento científico investiga as várias discipli-nas, mais claramente transparece a incoerência m etodológicadessas discipl inas. Em cada um a delas introduzem-se pressu-postos sem fundamento dedutivo, e em cada uma delas os pro-blemas daí decorrentes são considerados resolvidos, ao mesmo

tempo qu e se af irma, com igual ênfase, a impossibi l idade desua solução em qualquer outro contexto ' Uma das caracterís-t icas menos f i losó f icas daque la teor ia da c iênc ia que tom acomo ponto de partida para suas investigações, não as disci-plinas individuais, mas pretensos postulados filosóficos, é con-siderar tais incoerências como acidentais. E no entanto essadescontinuidade do método científico está tão longe de corres-ponder a u m estág io in ferior e p rov isório do saber , que e lapoder ia, pelo contrár io, est imular o progresso da teor ia doconhecimento, se não fosse a am bição de capturar a verdade,unitária e indivisível por natureza, através de uma compilaçãoencic lopédica dos conhecimentos. O sistema só tem val idade

quando se inspira, em sua concepção de base, na consti tuiçãodo m undo das idé ias. As grandes articulações que determinamnão somen te a estrutura dos sistemas mas a terminologia f i lo-só f ica — como a lógica, a ética e a estética, para mencionar

apenas as de m a io r genera l idade — não são s i gn i f i ca t i vas ape-nas com o nom es de d is c ip l inas e spec ia l izadas , mas como mo-numentos de um a es t ru tura descont ínua do mundo das idé ia s .Mas os fenômenos não entram integralmente no reino das

idé ias em sua ex is t ênc ia b ruta , em p ír ica , e parc ia lmen te i lu-

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56 A IDEIA COMO CONFIGURAÇÃO

sória, mas apenas em seus elementos, que se salvam. Eles sãodepurados de sua falsa unidade, para que possam participar,divididos, da unidade autêntica da verdade. Nessa divisão, osfenômenos se subordinam aos conceitos. São eles que dissol-vem as coisas em seus elementos constitutivos. As distinçõesconceituais só podem escapar à suspeita de serem uma sofis-tica destrutiva se visarem à salvação dos fenômenos nas idéias:o rà (pacvópeva aí, eLv* de Platão. Graças .a seu papel media-

dor, os conceitos permitem aos fenômenos participarem doSer das idéias. Esse mesmo papel mediador torna-os aptospara a outra tarefa da filosofia, igualmente primordial: a re-presentação das idéias. A redenção dos fenômenos por meiodas idéias se efetua ao mesmo tempo que a representação dasidéias por meio da empina. Pois elas não se representam emsi mesmas, mas unicamente através de um ordenamento deelementos materiais no conceito, de uma configuração desseselementos.

O conjunto de conceitos utilizados para representar umaidéia atualiza essa idéia como configuração daqueles concei-tos. Pois os fenômenos não se incorporam nas idéias, não estãocontidos nelas. As idéias são o seu ordenamento objetivo vir-tual, sua interpretação objetiva. Se elas nem contêm em si osfenômenos, por incorporação, nem se evaporam nas funções,na lei dos fenômenos, na "hipótese", cabe a pergunta: comopodem elas alcançar os fenômenos? A resposta é: na repre-sentação desses fenômenos. Como tal, a idéia pertence a umaesfera fundamentalmente distinta daquela em que estão osobjetos que ela apreende. Por isso não podemos dizer, comocritério para definir sua forma de existência, que ela inclui

esses objetos, do mesmo modo qu e o gênero inclui as espécies.Porque não é essa a sua tarefa. Sua significação pode ser ilus-trada por uma analogia. As idéias se relacionam com as coisascomo as constelações com as estrelas. O que quer dizer, antesde mais nada, que as idéias não são nem os conceitos dessascoisas, nem as suas leis. Elas não servem para o conhecimento

(1 Salvar os fenômenos.

A PALAVRA COMO IDEIA 5 7

dos fenômenos, e estes não podem, de nenhum modo, servircomo critérios para a existência das idéias. Para as idéias, asignificação dos fenômenos se esgota em seus elementos con-ceituais. Enquanto os fenômenos, por sua existência, por suasafinidades e por suas diferenças, determinam o escopo e oconteúdo dos conceitos que os circunscrevem, sua relação comas idéias é inversa, na medida em que são elas, como interpre-tação objetiva dos fenômenos, ou antes, dos seus elementos,

que determinam as relações de afinidade mútua entre tais fe-nômenos. As idéias são constelações intemporais, e na medidaem que os elementos são apreendidos como pontos nessasconstelações, os fenômenos são ao mesmo tempo divididos esalvos. Os elementos que o conceito, segundo sua tarefa pró-pria, extrai dos fenômenos, se tornam especialmente visíveisnos extremos. A idéia pode ser descrita como a configuraçãoem que o extremo se encontra com o extremo. Por isso é falsocompreender com o conceitos as referências mais gerais da lin-guagem, em vez de reconhecê-las como idéias. É absurdo verno universal uma simples média. O universal é a idéia. O empí-rico, pelo contrário, pode ser tanto mais profundamente com-preendido quanto mais claramente puder ser visto como umextremo. O conceito parte do extremo. Do m esmo modo que amãe só começa a viver com todas as suas forças quando seusfilhos, sentindo-a próxima, se agrupam em círculo em tornodela, assim também as idéias só adquirem vida quando os ex-tremos se reúnem à sua volta. As idéias — ou ideais, na termi-nologia de Goethe — são a mãe fáustica. Elas permanecemescuras, até que os fenômenos as reconheçam e circundem. Éfunção dos conceitos agrupar os fenômenos, e a divisão queneles se opera graças à inteligência, com sua capacidade deestabelecer distinções, é tanto mais significativa quanto tal di-visão consegue de um golpe dois resultados: salvar os fenô-

menos e representar as idéias.

As idéias não são dadas no m undo dos fenômenos. Pode-se perguntar, portanto, de que forma elas são dadas, e se éinevitável transferir a uma "intuição intelectual", tantas vezesinvocada, a responsabilidade de descrever a estrutura domundo das idéias. Em nenhum ponto a debilidade que a filo-

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58 A PALAVRA COMO IDÉIA

sofia deriva do seu contato com o esoterismo se torna maissufocantemente clara que no conceito de "visão" prescrita aosadeptos de todas as doutrinas neoplatônicas do paganismocomo o procedimen to filosófico por excelência. A essência dasidéias não pode ser pensada como objeto de nenhum tipo deintuição, nem mesmo da intelectual. Pois nem sequer em suaversão mais paradoxal, a do intellectus archetypus, pode aintuição aceder à forma específica de existência da verdade,

que é desprovida de toda intenção, e é incapaz, a fortiori, deaparecer como intenção. A verdade não entra nunca em ne-nhuma relação, e mu ito menos em um a relação intencional. Oobjeto do saber, enquanto determinado pela intencionalidadedo conceito, não é a verdade. A verdade é uma essência não-intencional, formada por idéias. O procedimento próprio àverdade não é portanto uma intenção voltada para o saber,mas uma ab sorção total nela, e uma dissolução. A verdade é amorte da intenção. Pode ser esse o sentido da fábula da está-tua velada, em Sais, que uma vez desvelada destruía aqueleque com esse gesto julgava descobrir a verdade. Isso não de-corre de uma crueldade enigmática das circunstâncias, e sim

da própria natureza da verdade, confrontada com a qual achama de qualquer busca, mesmo a mais pura, se apaga,como extinta pela água. Como algo de ideal, o Ser da verdadeé distinto do modo de ser das aparências. A estrutura da ver-dade requer uma essência que pela ausência de intenção seassemelha à das coisas, mas lhes é superior pela permanência.A verdade não é uma intenção, que encontrasse sua determi-nação através da empiria, e sim a força q ue determina a essên-cia dessa empiria. O ser livre de qualquer fenomenalidade, noqual reside exclusivamente essa força, é a do Nome. É esse serque determina o m odo pelo qual são dadas as idéias. Mas elassão dadas menos em uma linguagem primordial que em uma

percepção primordial, em que as palavras não perderam, embenefício da dimensão cognitiva, sua dignidade nomeadora."Num certo sentido, podemos duvidar que a doutrina platô-nica das idéias tivesse sido possível, se o próprio sentido dapalavra não tivesse sugerido ao filósofo, que só conhecia sualíngua nativa, uma deificação do conceito dessa palavra, umadeificação das palavras. As idéias de Platão, no fundo, se forlícita essa perspectiva unilateral, nada mais são que palavras econceitos verbais divinizados." 2 A idéia é algo de lingüístico, é

A PALAVRA COMO IDÉIA9o elemento simbólico presente na essência da palavra. Na per-cepção empírica, em que as palavras se fragmentaram, elaspossuem, ao lado de sua dimensão simbólica mais ou menosoculta, uma significação profana evidente. A tarefa do filósofoé restaurar em sua primazia, pela representação, o carátersimbólico da palavra, no qual a idéia chega à consciência desi, o que é o oposto de qualquer comunicação dirigida para oexterior. Como a filosofia não pode ter a arrogância de falar

no tom da revelação, essa tarefa só pode cumprir-se pela remi-niscência, voltada, -etrospectivamente, para a percepção ori-ginal. A anamnesis platônica talvez não esteja longe desse gê-nero de reminiscência. Somente, não se trata de uma atuali-zação visual das imagens, mas de um p rocesso em que na con-templação filosófica a idéia se libera, enquanto palavra, doâmago da realidade, reivindicando de novo seus direitos denomeação. Em última análise, contudo, na origem dessa ati-tude não está Platão, e sim Adão, pai dos homens e pai dafilosofia. A nomeação adamítica está tão longe de ser jogo earbítrio, que somente nela se confirma a condição parad isíaca,que não precisava ainda lutar contra a dimensão significativa

das palavras. As idéias se dão, de forma não-intencional, noato nomeador, e têm de ser renovadas pela contemplação filo-sófica. Nessa renovação, a percepção original das palavras érestaurada. E por isso, no curso de sua história, tantas vezesobjeto de zombaria, a filosofia tem sido, com toda razão, umaluta pela representação de algumas poucas palavras, sempreas mesmas — as idéias. A introdução de novas terminologias,na medida em que não se limitam rigorosamente à esfera con-ceituai, mas visam os objetos últimos da contemplação, é, poresse motivo, filosoficamente discutível. Essas terminologias —tentativas mal sucedidas de nomeação, em qu e a intenção temmaior peso que a linguagem — não têm a objetividade que a

história conferiu às principais correntes da reflexão filosófica.Tais correntes se mantêm íntegras, em sua perfeição solitária,o que é impossível às meras palavras. E assim as idéias confir-mam a lei segundo a qual todas as essências existem em es-tado de perfeita auto-suficiência, intocadas não só pelos fenô-menos, como umas pelas outras. Assim como a harm onia dasesferas depende das órbitas de astros que não se tocam, a ex is-tência do mundus intelligibilis depende da distância intrans-ponível entre as essências puras. Cada idéia é um sol, e se

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60 O CARÁTER NÃO CLASSIFICATÓRIO DA IDEIA

relaciona com outras idéias como os sóis se relacionam entresi. A verdade é o equilíbrio tonal dessas essências. A multipli-cidade que lhe é atribuída é finita. Pois a descontinuidade é acaracteristica das "essências... que vivem uma vida toto caelodiferente da que é vivida pelos objetos e suas propriedades,cuja existência não podemos modificar dialeticamente acres-centando ou retirando certas propriedades que encontramosnos objetos: Xat ' aúrà,* mas cujo número é limitado, e cada

uma das quais deve ser procurada laboriosamente no lugarque lhe corresponde em seu próprio mundo, até que a encon-tremos, como um rocher de bronze, ou até que a esperança emsua existência se revele ilusória". 3 Não raro, a ignorânciaquanto a essa finitude descontínua frustrou certas tentativasenérgicas de renovar a doutrina das idéias, como a dos pri-meiros românticos. Em suas especulações, a verdade assumiao caráter de uma consciência reflexiva, e não o de uma reali-dade lingüística.

No sentido em q ue é tratado na filosofia da arte, o dramabarroco é uma idéia. Esse tratamento difere do que caracte-riza a história da literatura, antes de mais nada, pela circuns-tância de que o primeiro pressupõe a unidade, e o segundoestá obrigado a demonstrar a existência da multiplicidade. Asdiferenças e extremos, que na análise histórico-literária se in-terpenetram e que ela relativiza, numa perspectiva evolucio-nista, recebem no tratamento conceituai o estatuto de ener-gias complementares, fazendo a história aparecer somentecomo a margem colorida de uma simultaneidade cristalina.Na filosofia da arte, os extremos são necessários, e o processohistórico é virtual. O extremo de uma forma ou gênero é a

idéia, que como tal não ingressa na história da literatura. Odrama barroco, como conceito, poderia sem problemas en-quadrar-se na série das classificações estéticas. Mas a idéia serelaciona de outra forma com as classificações. Ela não deter-mina nenhuma classe, e não contém em si aquela universali-dade na qual se baseia, no sistema das classificações, o res-

O CARÁTER NÃO CLASSIFICATÓRIO DA IDEIA 6 1

pectivo nível conceituai: o da média. Não é mais possível es-conder o estado precário em que se encontra, em conseqüên-cia disso, o conceito de indução nas pesquisas dedicadas àteoria da arte. Reina a perplexidade entre os investigadoresrecentes. Em seu ensaio Zum Phãnomen des Tragischen,* dizScheler: "Como proceder? Devemos reunir todos os exem-plos do trágico, isto é, todos os acontecimentos e ocorrênciasque transmitem aos homens a impressão do trágico, para em

seguida perguntar, indutivamente, o que eles têm de com um?Seria um método indutivo, capaz de sustentação experimen-tal. Mas isso seria ainda menos fecundo que a observação donosso Eu, quando o trágico nos afeta. Pois com que direitopodemos dar crédito à afirmação das pessoas que dizem que otrágico é aquilo qu e elas assim denominam?".' Não pode levara nada a tentativa de chegar às idéias indutivamente, segundoa sua extensão, derivando-as da linguagem usual, para a se-guir investigar a essência do que foi assim fixado. Porque essalinguagem é sem dúvida inestimável para o filósofo, quandoela alude às idéias, mas insidiosa quando é aceita, através deuma interpretação baseada em palavras e pensamentos pouco

rigorosos, como o fundamento literal de um conceito. Essefato nos autoriza a dizer que somente com a máxima cautelapode o filósofo seguir a tendência habitual de fazer das pala-vras conceitos abrangentes, para melhor assegurar-se delas.Justamente a filosofia da arte deixou-se sugestionar, com fre-qüência, por essa tendência. Pois quando, para usar umexemplo extremo, a Asthetik des Tragischen,** de Volkelt, co-loca no mesmo plano peças de H olz e Halbe, por um lado, e deEsquilo e Eurípedes, por outro, sem perguntar se o trágicoconstitui urna forma capaz de receber um conteúdo contem-porâneo, ou se é uma forma historicamente situada, temos deadmitir que no que diz respeito ao trágico essa justaposição de

materiais tão distintos não significa tensão, mas heterogenei-dade morta. Amontoados esses materiais, numa pilha em queos fatos originais, menos acessíveis, são logo recobertos peloscaos dos fatos modernos, mais atraentes, só resta nas mãos doinvestigador, que se subm eteu a essa acumulação para desco-

(*) (Subsistindo) por si mesmas. (* ) Sobre o Fenômeno do Trágico.(") Estética do Trágico.

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62 O N OMINALISMO DE BURDACH

brir o que tais fatos tinham de comum, a pobreza de uma rea-ção psicológica, pela qual, na subjetividade do pesquisador oudo contemporâneo médio, esses objetos distintos são perce-bidos como idênticos. Nos conceitos da psicologia pode estarreproduzida uma m ultiplicidade de impressões, tenham ou nãosido evocadas por uma obra de arte, mas não a essência de umcampo artístico. Isto só pode acontecer por uma exposiçãocompleta do conceito de sua forma, cujo conteúdo metafísico

não se encontra no interior, mas deve aparecer em ação, comoo sangue circulando no corpo.

A fascinação pelo múltiplo, por um lado, e a indiferençaquanto ao pensamento rigoroso, por outro, sempre foram ascausas determinantes da indução acrítica. Encontramos sem-pre a mesma aversão às idéias constitutivas — os universaliain re — a qual foi em certas ocasiões formulada por Burdach,com uma clareza especial. "Prometi falar sobre a origem doHumanismo, como se ele fosse um ser vivo, que veio ao mundo

como um todo, em algum lugar e em algum momento, e comoum todo se desenvolveu... Assim procedendo, estamos agindocomo os chamados realistas, da escolástica medieval, que atri-buíam realidade aos conceitos gerais, aos universais. Da

mesma forma, hipostasiamos, como nas mitologias arcaicas,um ser de substância unitária e plenamente real, e o denomi-namos Humanismo, como se fosse um ser vivo. Mas aqui,como em inúmeros outros casos, devemos estar conscientes deque estamos apenas inventando um conceito auxiliar abstrato,para podermos lidar com uma série infinita de fenômenosintelectuais e de personalidades totalmente distintas entre si.Só podemos fazê-lo, segundo as leis do conhecimento e da

percepção humana, e em conseqüência da nossa necessidadeinata de sistematização, se selecionarmos certas propriedadesque nessa série heterogênea nos parecem semelhantes ou coin-cidentes, e se acentuarmos essas semelhanças mais que as di-ferenças... Esses rótulos, como o de Humanismo ou de Renas-cença, são arbitrários, e mesmo errôneos, porque atribuem aessa vida, com sua variedade de fontes, sua multiplicidade deformas, e seu pluralismo espiritual, a aparência ilusória deuma essência real. Da mesma forma, o conceito de Homem de

O NOMINALISMO DE BURDACH3Renascença, tão popular desde Burckhardt e N ietzsche, é um asimples máscara, tão arbitrária como equivocadas."5 Nessapassagem, o autor acrescenta uma nota: "A deplorável con-trapartida desse indestrutível Homem de Renascença é o Ho-

mem Gótico, que desempenha hoje um papel perturbador eque prega suas peças fantasmagóricas até mesmo no universointelectual de historiadores respeitáveis como E. Troeltsch.Como se não bastasse, foi-nos impingido o conceito de Ho-

mem Barroco, que, segundo dizem, caracteriza a obra de Sha-kespeare" 6 Essa posição é obviamente correta, na medida emque se dirige contra a tendência a hipostasiar conceitos ge-rais, embora eles não incluam os universais em todas as suasformas. Mas fracassa totalmente diante da questão de umateoria da ciência voltada, platonicamente, para a representa-ção das essências, pois não se dá conta de sua necessidade.Somente essa teoria pode salvar a linguagem da exposiçãocientífica, como ela funciona fora da esfera matemática, doceticismo generalizado, que arrasta em seu abismo, no final,mesmo as metodologias indutivas mais sutis, e as formulaçõesde Burdach são impotentes contra esse ceticismo. Porque elasconstituem uma reservatio mentalis privada, e não uma ga-rantia metodológica. Sem dúvida, no que diz respeito a tipos eépocas históricas, não podemos aceitar que idéias como a Re-nascença e o Barroco sejam capazes de apreender conceitual-mente o seu objeto. Supor que poderíamos chegar a uma com-preensão moderna dos vários períodos históricos através deconfrontações polêmicas em que, como nas guinadas históri-cas decisivas, as épocas se enfrentam, por assim dizer, com aviseira aberta, seria desconhecer a natureza das nossas fontes,que são determinadas por interesses atuais, e não por idéiashistoriográficas. Mas o que esses nomes não conseguem fazercomo conceitos, conseguem fazer com o idéias. Pois nelas, não

é o semelhante que é absorvido, e sim o extremo que chega àsua síntese. Não obstante, é preciso reconhecer que a própriaanálise conceitua) nem sempre se depara com fenômenos in-teiramente heteróclitos, e ocasionalmente pode tor nar visível oesboço de uma síntese, mesmo quando não pode legitimá-la.Assim, Strich observou com justiça do Barroco literário, doqual surgiu o drama alemão, que "seus princípios de organi-zação permaneceram os mesmos durante todo o século". 7

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64 VERISMO, SINCRETISMO, INDUÇÃO O S GÊNERO S DE ART E E M CRO CE 65

A reflexão crítica de Burdach foi m otivada não tanto pelodesejo de uma revolução metodológica positiva, como pelotemor de erros factuais de pormenor. Mas em última análise,a metodologia não pode ser apresentar, negativamente, mera-mente inspirada pelo receio de insuficiências factuais, comouma simples advertência. Ela deve partir de uma perspectiva

mais elevada que a oferecida pelo ponto de vista de um ve-rismo científico. Esse ponto de vista acaba se confrontando,em questões individuais, com aqueles problemas verdadeira-mente metodológicos, que ele ignora, em seu credo científico.Geralmente, a solução desses problemas leva a uma revisão detoda a problemática, que se exprime do seguinte modo: a per-gunta "como de fato aconteceu?" não só não é cientificamenterespondível, como não pode sequer ser colocada. Somentecom essa ponderação, preparada pelo que antes foi dito e quese concluirá no que vem a seguir, será possível decidir se aidéia é uma abreviação indesejável ou o fundamento do verda-deiro conteúdo científico, em sua expressão lingüística. Uma

ciência que protesta contra a linguagem de suas investigaçõesé absurda. Juntamente com os signos da matemática, as pala-vras são os ú nicos instrumentos de representação da ciência, eelas próprias não são signos. Pois no conceito, ao qual obvia-mente corresponderia o signo, a própria palavra que realizasua essência como idéia se despotencializa. O verismo, a cujoserviço se põe o método indutivo da teoria da arte, não setorna mais aceitável pela circunstância de que no final as pers-pectivas discursivas e indutivas se fundem numa "visão", 8 ca-paz de assumir a forma de um sincretismo dos métodos maisdiversos, conforme imaginam R. M. Meyer e muitos outros.Isso nos traz de volta ao ponto de partida, como ocorre com

todas as formulações da questão do método, baseadas no rea-lismo ingênuo. Porque é exatamente a "visão" que precisa serinterpretada. Também aq ui a pesquisa estética indutiva revelasuas insuficiências: essa visão não é a do objeto, dissolvido naidéia, mas a subjetiva, projetada na obra pelo recipiente, nissoconsistindo, em última análise, a empatia, que R. M. Meyerconsidera o elemento decisivo do seu método. Esse método —o oposto do adotado neste trabalho — "vê a forma artística dodrama, a da tragédia, a da comédia, a do jogo de situações e

de personagens, como dadas, e é delas que parte. Ele procura,pela comparação de grandes representantes de cada gênero,formular regras e leis, que por sua vez permitirão julgar asproduções individuais. Enfim, pela comparação dos gêneros,esse método tenta chegar a leis artísticas gerais, válidas paratodas as obras".9 Nessa filosofia da arte, a "dedução" resultade uma combinação da indução e da abstração, na qual setrata menos de obter, por dedução, uma série de gêneros e

espécies, que de introduzi-los no esquema da deduçã o.

Enquanto a indução degrada as idéias em conceitos, namedida em que se abstém de ordená-las e hierarquizá-las, adedução atinge o mesmo resultado, na medida em q ue as pro-jeta num continuum pseudológico. O universo do pensamentofilosófico não se desenvolve pela seqüência ininterrupta de de-duções conceituais, mas pela descrição do mundo das idéias.Essa descrição começa sempre de novo com cada idéia, comose ela fosse primordial. Porque as idéias formam uma multi-

plicidade irredutível. Elas se oferecem à contemplação comouma multiplicidade que podemos enumerar, ou antes, deno-minar. Daí a crítica veemente de Benedetto Croce ao conceitodedutivo de gênero, adotado pela filosofia da arte. Com razão,ele vê na classificação, enquanto fundamento das deduçõesespeculativas, a origem de uma crítica superficialmente esque-matizadora. O nominalismo com que Burdach aborda o con-ceito de época histórica, e sua resistência à mínima perda decontato com os fatos, explicável pelo temor de afastar-se daverdade factual, é exatamente comparável ao nominalismocom que Croce aborda o conceito estético do gênero, e suapreocupação idêntica com o particular, explicável pelo temorde perder o essencial, uma vez abandonado esse particular.Esse interesse pelo essencial ajuda-nos a colocar em sua verda-deira perspectiva o sentido dos gêneros estéticos. O Grundriss

der Asthetik * denuncia o preconceito segundo o qual "é possí-vel distinguir várias formas de arte particulares, cada umacom seu próprio co nceito, seus próprios limites e suas próprias

(*) Fundamentos da Estética.

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66 OS GÉNEROS DE ARTE EM CROCE

leis. Muitos autores continuam escrevendo sobre a estética dotrágico, do cômico, da lírica, do humor, da pintura, da mú-

sica ou da poesia... Pior ainda, os críticos não perderam aindade todo o hábito de avaliar as obras de arte julgando-as se-gundo o gênero, ou a arte particular, a que elas supostamentepertencem". 1 0 "Nenhuma teoria da divisão das artes se justi-fica. Nesse caso só existe um único gênero ou classe, a própriaarte, ou a intuição, enquanto as obras de arte particulares são

inumeráveis... Entre o universal e o particular não há, numaperspectiva filosófica, elos intermediários, nenhuma série degêneros ou espécies, de generalia."" Esse texto tem plenavalidade no que diz respeito aos gêneros estéticos. Mas não vaisuficientemente longe. Pois do mesmo modo que juntar umasérie de obras de arte, visando o qu e elas têm de comum, é umempreendimento visivelmente ocioso, quando não se trata deacumular exemplos históricos ou estilísticos, e sim de deter-minar a essência dessas obras, é inconcebível que a filosofiada arte renuncie a algumas de suas idéias mais ricas, como ado trágico ou a do cômico. Porque elas não são agregados deregras, e sim estruturas pelo menos iguais em densidade e rea-lidade a qualquer drama, e com ele não-comensuráveis. Elasnão têm nenhuma pretensão de subsumir um certo número deobras literárias, com base em afinidades de qualquer natu-reza. Pois ainda que não existissem a tragédia pura ou a co-média pura, que pudessem ser nomeadas à luz dessas idéias,elas poderiam sobreviver. Nisso, elas podem ser ajudadas poruma investigação que não procure, desde seu ponto de par-tida, identificar tudo aquilo que pode ser caracterizado comotrágico ou cômico, mas que vise o que é exemplar, ainda quesó consiga encontrá-lo num simples fragmento. Essa investi-gação não fornece "critérios" para o autor de resenhas. Nem acrítica nem os critérios de uma terminologia — o teste de uma

teoria filosófica das idéias, na arte — podem constituir-se se-gundo o critério externo da comparação, mas de forma ima-nente, pelo desenvolvimento da linguagem formal da própriaobra, que exterioriza o seu conteúdo, ao preço de sua eficácia.Além disso, justamente as obras significativas se colocam alémdos limites do gênero, a menos que nelas o gênero se revelepela primeira vez, como ideal. Uma obra de arte significativaou funda o gênero ou o transcende, e numa obra de arte per-feita as duas coisas se fundem numa só.

ORIGEM7A impossibilidade de um desenvolvimento dedutivo das

formas artísticas, e a conseqüente desqualificação da regracomo instância crítica — ela permanecerá sempre uma instân-cia do ensinamento artístico — oferecem fundamentos para

um ceticismo fecundo. Essa impossibilidade é comparável àprofunda respiração durante a qual o pensamento se perde noobjeto mais minúsculo, com total concentração e sem o menortraço de inibição. Pois é o minúsculo que a reflexão encon-trará à sua frente, sempre que mergulhar na obra e na formade arte, para avaliar seu conteúdo. Apropriar-se delas apres-sadamente, como um ladrão se apropria de bens alheios, épróprio dos astutos, e não é mais defensável que a bonomiados fariseus. Na verdadeira contemplação, pelo contrário, oabandono dos processos dedutivos se associa com um perma-nente retorno aos fenômenos, cada vez mais abrangente e m aisintenso, graças ao qual eles em nenhum momento correm o

risco de permanecer meros objetos de um assombro difuso,contanto que sua representação seja ao mesmo tempo a dasidéias, pois com isso eles se salvam em sua particularidade.Sem dúvida, um radicalismo que privasse a terminologia esté-tica de algumas de suas melhores expressões e reduzisse aosilêncio a filosofia da arte não é, também para Croce, a últimapalavra. Ao contrário, segundo ele, "negar o valor teórico daclassificação abstrata não significa negar o valor teórico deuma classificação genética e concreta, que de resto não é clas-sificação, e sim história". 1 2 Nessa frase obscura, o autor tan-gencia o cerne da doutrina das idéias, ainda que de formainfelizmente superficial. Seu psicologismo, que o leva a substi-

tuir a definição da arte como expressão pela de arte comointuição, impede-o de perceber isso. Ele deixa de ver como acontemplação que ele caracteriza como classificação genética

coincide, no problema da origem, com uma teoria das obrasde arte, na perspectiva da doutrina das idéias. A origem, ape-sar de ser uma categoria totalmente histórica, não tem nadaque ver com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-serdaquilo que se origina, e sim algo que eme rge do vir-a-ser e daextinção. A origem se localiza no fluxo do vir-a-ser como umtorvelinho, e arrasta em sua corrente o material produzido

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68 ORIGEM A MONADOLOGIA 69

pela gênese. O originário não se encontra nunca no mundodos fatos brutos e manifestos, e seu ritmo só se revela a umavisão dupla, que o reconhece, por um lado, como restauraçãoe reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo, como in-completo e inacabado. Em cada fenômeno de origem se deter-mina a forma com a qual uma idéia se confronta com o mu ndohistórico, até que ela atinja a plenitude na totalidade de suahistória. A origem, portanto, não se destaca dos fatos, mas se

relaciona com sua pré e pós-história. As diretrizes da contem-plação filosófica estão contidas na dialética imanente à ori-gem. Essa dialética mostra como em toda essência o único e orecorrente se condicionam mutuamente. A categoria da ori-gem não é pois, como supõe Cohen, puramente lógica, mashistórica." Conhecemos o "tanto pior para os fatos", de Hegel.No fundo, a frase significa que a percepção das relações entreas essências cabe ao filósofo, e que essas relações ficam inal-teradas, mesmo quando não se manifestam, em sua formapura, no mundo dos fatos. Essa atitude genuinamente idea-lista paga por sua segurança o preço de abandonar o cerne daidéia de origem. Pois cada prova de origem deve estar prepa-rada para a questão da autenticidade do que ela tem a ofere-cer. Se ela não consegue provar essa autenticidade, não temdireito de se apresentar como prova. Com essa reflexão, pa-rece superada, para os objetos mais elevados da filosofia, adistinção entre a quaestio juri e a quaestio facti. Isto é incon-testável e inevitável. Mas não se deve concluir daí que qual-quer "fato" primitivo possa ser imediatamente consideradoum determinante essencial. A tarefa do pesquisador, pelocontrário, se inicia aqui, pois ele não pode c onsiderar esse fatoassegurado, antes que sua estrutura interna apareça com tantaessencialidade, que se revele como origem. O autêntico — oselo da origem nos fenômenos — é objeto de descoberta, umadescoberta que se relaciona, singularmente, com o reconhe-cimento. A descoberta pode encontrar o autêntico nos fenô-menos mais estranhos e excêntricos, nas tentativas mais frá-geis e toscas, assim como nas manifestações mais sofisticadasde um período de decadência. A idéia absorve a série dasmanifestações históricas, mas não para construir um a unidadea partir delas, nem muito menos para delas derivar algo decomum. Não há nenhuma analogia entre a relação do parti-cular com o conceito e a relação do particular com a idéia. No

primeiro caso, ele é incluído sob o conceito, e permanece oque era antes — um particular. No segundo, ele é incluído soba idéia, e passa a ser o que não era — totalidade. Nisso con-siste sua redenção platônica.

A história filosófica, enquanto ciência da origem, é aforma que permite a emergência, a partir dos extremos maisdistantes e dos aparentes excessos do processo de desenvolvi-mento, da configuração da idéia, enquanto Todo caracteri-zado pela possibilidade de uma coexistência significativa des-ses contrastes. A representação de u ma idéia não pode de ma-neira alguma ser vista como bem-sucedida, enquanto o ciclodos extremos nela possíveis não for virtualmente percorrido.Virtualmente, porque o que está abrangido pela idéia da ori-gem tem na história apenas um conteúdo, e não mais umacontecer que pudesse afetá-lo. Sua história é interna, e nãodeve ser entendida como algo de infinito, e sim como algorelacionado com o essencial, cuja pré e pós-história ela per-mite conhecer. A pré e a pós-história de tais essências, teste-munhando que elas foram salvas ou reunidas no recinto dasidéias, não são história pura, e sim história natural. A vidadas obras e formas, que somente com essa proteção pode des-dobrar-se com clareza, não-contaminada pela vida dos ho-mens, é uma vida natural" Uma vez observado esse Ser redi-mido na idéia, a presença da história natural inautêntica —pré e pós-história — permanece virtual. Ela não é mais prag-maticamente eficaz, mas precisa ser lida, como história natu-ral, em sua condição perfeita e estática, na essência. Com isso,redefine-se, no antigo sentido, a tendência de toda conceptua-lização filosófica: observar o vir-a-ser dos fenômenos em seuSer. Porque o conceito de Ser da ciência filosófica não se sa-tisfaz com o fenômeno, mas some nte com a absorção de toda asua história. O aprofundamento das perspectivas históricasem investigações desse tipo, seja tomando com o objeto o pas-sado, seja o futuro, em princípio não conhece limites. Ele for-nece à idéia a visão da totalidade. E a estrutura dessa idéia,resultante do contraste entre seu isolamento inalienável e atotalidade, é monadológica. A idéia é mônada. O S er que nelapenetra com sua pré e pós-história traz em si, oculta, a figura

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A TRAGÉDIA BARROCA: NEGLIGENCIA E ERROS...

do restante do mundo das idéias, da mesma forma que se-gundo Leibniz, em seu Discurso sobre a Metafísica, de 1686,em cada m ônada estão indist intamente presentes todas as de-mais. A idéia é mônada — nela reside, preestabelecida, a re-presentação dos fenômenos, como sua interpretação objetiva.Quanto m ais a lta a ordem das idéias, mais completa a repre-sentação nelas contida. Assim o mundo real poderia constituiruma tarefa, no sentido de que ele nos impõe a exigência demergulhar tã o fundo em todo o real, que ele possa revelar-nosuma interpretação objetiva do mundo. Na perspectiva dessatarefa, não surpreende que o autor da Monadologia tenha sidotambém o cr iador do cálculo infinitesimal. A idéia é mônada— isto significa, em suma, que cada idéia contém a imagemdo mundo. A representação da idéia impõe como tarefa, por-tanto, nada menos que a descrição dessa imagem abreviadado mundo.

O histórico das investigações relativas ao Barroco literárioalemão dá um aspecto paradoxal à análise de uma de suasformas principais, na medida em que essa análise se preo-cupa, não com a fixação de regras e tendências, mas com ametafísica dessa forma, apreendida concretamente, e em suaplenitude. É incontestável que entre os muitos obstáculos quedificultam nossa compreensão da literatura dessa época, umdos mais graves é a forma canhestra, ainda que significativa,que caracteriza o seu drama. Mais que qualquer outra, aforma dramática requer uma ressonância histórica. Essa res-sonância foi negada ao drama desse período. A renovação dopatrimônio literário alemão, que se iniciou com o romantismo,até hoje mal afetou a literatura barroca. Foi sobretudo odrama de Shakespeare, com sua riqueza e sua liberdade, queofuscou, entre os escritores românticos, as tentativas alemãsda mesma época, cuja seriedade, além disso, era alheia aoespírito do teatro destinado à representação. Para a filologiagermânica nascente, por outro lado, essas produções muitopouco "populares" de uma burocracia culta eram um tantosuspeitas. Apesar da importância desses dramaturgos para aformação de uma linguagem e de uma cultura nacional, e doseu papel na constituição de uma literatura alemã, a máxima

A TRAGÉDIA BARROCA: NEGLIGENCIA E ERROS... 7 1

absolutista "tudo para o povo, nada pelo povo" impregnavademasiadamente suas obras para que elas pudessem interes-sar os filólogos da escola de Grimm e de Lachmann. U m certoespírito, que os levava a desdenhar os temas da cultura popu-lar alemã, no mesmo momento em que trabalhavam na cons-trução do dram a alemão, foi um dos fatores responsáveis pelaviolência torturante do seu estilo. Nem as sagas alemãs nem ahistória alemã desempenham qualquer papel no drama da era

barroca. Também a vulgarização e a banalização historici-zante dos estudos germanísticos no último terço do século nãoforam muito favoráveis às pesquisas sobre o drama barroco.Sua forma rude permaneceu inacessível a uma ciência para aqual a crítica estilística e a análise formal eram disciplinasauxiliares de importância ínfima, e as fisionomias obscurasdos autores, mal transparecendo através de obras incompreen-didas, não eram de m olde a estimular a elaboração de ensaioshistórico-biográficos. De qualquer modo, está excluído, nes-ses dramas, qualquer desdobramento livre ou lúdico do gê nioliterário. Os dramaturgos da época se consagraram inteira-mente à tarefa de produzir a forma em geral de um drama

secular. E por mais que tivessem trabalhado nessa tarefa, deGryphius a H allmann, muitas vezes recorrendo a repetições elugares-comuns, o drama alemão da Contra-Reforma não en-controu jamais aquela forma flexível, dócil a qualquer virtuo-sismo, que Calderón soube dar ao drama espanhol. Ele se for-mou, exatamente por ter sido um produto necessário do seutempo, através de um esforço violento, e só isso já demonstraque essa forma não foi moldada por nenhum gênio soberano.E, no entanto, é nessa forma qu e reside o centro de gravidadede todo drama barroco. O que o poeta individual pôde realizardentro dessa forma, deve-o a ela, e suas limitações pessoaisnão afetam a profundidade de tal forma. A compreensão desse

fato é um pressuposto de qualquer investigação. Mas é indis-pensável ainda um enfoque capaz de elevar a análise, paraque ela possa aceder à compreensão de uma form a, em geral,a um plano em que ela veja nessa forma algo mais que umaabstração efetuada a partir do corpo de uma literatura. Aidéia de uma forma — é preciso repetir o que já foi dito — nãoé menos viva que uma obra literária concreta. A forma dodrama é mesmo decididamente mais rica que as tentativas iso-ladas do Barroco. E assim como cada idéia de uma forma

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72TRAGÉDIA BARROCA: NEGLIGENCIA E ERROS...VALORIZAÇÃO"3consegue aprender a forma lingüística individual, não só comotestemunho daquele que a modelou mas como documento davida de uma língua e das possibilidades que ela oferece, assimtambém, e mais autenticamente que qualquer obra isolada,cada forma de arte contém o índice de um a estruturação artís-tica, objetivamente necessária. A compreensão desse fato foivedada às investigações mais antigas, não somente porque elasnão dispunham dos instrumentos da análise formal e da his-

tória das formas, como porque elas se prenderam, sem ne-nhum espírito critico, à teoria barroca do dram a. Essa teoria éa aristotélica, adaptada às tendências da época. Na maioriados casos, essa adaptação foi grosseira. Sem maiores indaga-ções quanto às causas profundas dessa variação, os comenta-dores falaram imediatamente numa distorção, fundada nummal-entendido, e daí só havia um passo para concluir que osdramaturgos da época nada mais tinham feito que aplicar,sem compreendê-los, preceitos veneráveis. O drama barrocoalemão passou a ser visto como o reflexo deformado da tra-gédia antiga. Esse esquema permitiria explicar o que para ogosto refinado da época parecia, naquelas obras, estranho e

mesmo bárbaro. O enredo de suas "ações principais e de Es-tado"* era uma distorção do antigo drama dos Reis, o exageroretórico uma distorção do nobre pathos helênico, o f inal san-grento uma distorção da catástrofe trágica. O dram a barrocoaparecia assim como uma renascença tosca da tragédia. Ecom isso surgia uma classificação que obscurecia de todo acompreensão dessa forma: visto como drama da Renascença,o drama barroco estava viciado, em seus traços mais caracte-rísticos, por numerosos defeitos estilísticos. Graças à autori-dade dos catalogadores de deficiências, esse diagnóstico per-maneceu muito tempo inalterado, sem ser corrigido. Em con-seqüência, a obra de Stachel, em si altamente meritória, e que

fundou a l iteratura nessa área — Seneca und das DeutscheRenaissancedrama ** — não oferece qualquer contribu ição es-

(*) No original, Haupt und Staatsaktionen. Peças representadas poratores ambulantes, em fins do século XVII e começo do século XVIII. Haupt,principal, era usado em oposição às peças acessórias, como as representadasdepois do espetáculo (Nachspiel). Staat, ou Estado, descrevia o conteúdo his-tórico-político desse teatro. A palavra também pode s ignificar pompa, o quecorresponde, igualmente, às características estruturais do gênero.

(**) Sêneca e o Drama Alemão da Renascença.

sencial, à qual, de resto, ela não aspira. Strich chamou aten-ção para esse equívoco, que paralisou longamente a pesquisa,em seu trabalho sobre o estilo lírico do século XVII. "Os au-tores costumam caracterizar como renascentista o estilo daliteratura alemã do século XVII. Mas esse termo, se designaalgo mais que a imitação mecânica da cultura antiga, é fala-cioso e demonstra a falta de uma orientação histórico-estilís-tica na ciência literária, porque esse século nada tem em co-

mum com o espírito da Renascença. O estilo de sua produçãoé barroco, mesmo quando não se tem em mente apenas sua di-mensão bombástica e excessiva, mas se levam em conta, igual-mente, seus princípios estruturadores mais fundamentais.""Outro erro, que continua dominando a história desse períodocom surpreendente tenacidade, está associado ao preconceitoda crítica estilística. Essa dramaturgia é supostamente poucoadaptada ao palco. Não é esta, certamente, a primeira vez quea perplexidade diante de uma cena insólita alimenta a impres-são de que tal cena não poderia ser representada, de que obrasdesse tipo não poderiam funcionar, de que o palco as teriarejeitado. Na interpretação de Sêneca, por exemplo, ocorrem

controvérsias desse gênero, semelhantes às discussões iniciaissobre o drama barroco. Como quer que seja, no que se refereao Barroco, o mito centenário, transmitido de A. W.

leitura, já está hoje refutado. Nas cenas violentas, que provo-cam o prazer visual, o elemento teatral se manifesta com forçasingular. A própria teoria, ocasionalmente, enfatiza os efeitoscênicos. A frase de Horácio — etprodesse volunt et delectare

poetae* — coloca a poética de Buchner diante da questão decomo o drama barroco pode deleitar, e sua resposta é que senão pode fazê-lo por seu conteúdo, pode fazê-lo por sua ex-p r e s s ã o t e a t r a l . 1 8

Sobrecarregada com tantos preconceitos, a teoria literá-ria, ao tentar uma avaliação objetiva do drama barroco —condenada, desde o início, a permanecer alheia a seu objeto

(*) "Os poetas desejam, ao mesmo tempo, ser úteis e deleitar." A ci-tação exata é Aut prodesse volunt aut delectare poetae, "O s poetas desejamou ser úteis, ou deleitar" (De Arte Poetica).

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74 "VALORIZAÇÃO" "VALORIZAÇÃO" 75

—só fez aumentar a confusão, e qu alquer outra reflexão sobreo assunto parece estar fadada ao mesmo destino. É quase ina-creditável que se tenha afirmado que o drama barroco é umaverdadeira tragédia, pelo simples fato de que ele evoca os sen-timentos de piedade e terror, que Aristóteles considerava tí-picos da tragédia — sem levar em conta que Aristóteles jamaisdisse que somente a tragédia podia evocar essas emoções. Umautor mais antigo não hesitou diante do comentário grotesco

de que "através dos seus estudos, Lohenstein mergulhou tãoprofundamente numa época passada, que esqueceu a sua pró-pria, e teria sido m ais inteligível, em expressões, pensamentose sentimentos, a um público antigo que ao que lhe era contem-porâneo. 1 9 Mais urgente que refutar essas extravagâncias édeixar claro que uma forma de arte não pode ser determinadapelos seus efeitos. "A perfeição da obra de arte é a eterna eindispensável exigência. Como poderia Aristóteles, que tinhadiante de si as obras mais perfeitas, ter pensado em seus efei-tos? Que absurdo!" 2 0 São palavras de Goethe. Pouco importase Aristóteles pode ser totalmente absolvido da acusação deque Goethe o defende; o certo é que excluir completamente os

efeitos psicológicos por ele definidos do debate estético filosó-fico sobre o drama constitui uma imperiosa exigência meto-dológica desse debate. Nesse sentido diz Wilamowitz-Moellen-dorff: "é preciso compreender que a XáOapa 'c* não pode serdeterminante para o drama, e mesmo que aceitássemos que osafetos por ele evocados são constitutivos do gênero, teríamosde reconhecer que a infortunada dicotomia piedade e terror éinteiramente insuficiente" 2' Ainda mais infortunada, e bemmais freqüente, que a tentativa de salvar o drama através deAristóteles, é a sua "valorização", através de aperçus triviais,

invocando a "necessidade" desse drama. É difícil dizer se astentativas desse tipo comprovam o valor positivo do drama, ou

a fragilidade de qualquer avaliação. A questão da necessidadedas manifestações históricas é sempre claramente apriorística.O falso adorno da necessidade, com que os com entadores fre-qüentemente decoram o drama barroco, brilha com coresmuito variadas. Esse predicado não significa apenas a necessi-dade histórica, em contraste com o mero acaso, mas tambéma necessidade subjetiva de uma bona fides do dramaturgo, em

(1Catarse.

contraste com o simples virtuosismo. Mas é evidente que nã oestamos dizendo nada quando dizemos qu e a obra emerge ne-cessariamente das disposições subjetivas do seu autor. O mes-mo ocorre com a "necessidade" que compreende as obras ouformas como estágios preliminares de desenvolvimento subse-qüente, num processo evolutivo problemático. "Os conceitosde natureza e de arte, próprios ao século XVII, podem estarextintos para sempre, mas suas descobertas de conteúdo e,

mais ainda, suas invenções técnicas, permanecerão novas, in-corruptíveis e indestrutíveis. 2 2 Assim os autores mais recentessalvam a literatura desse tempo: ela é vista como um simplesconjunto de meios. A "necessidade" 2 3 dessas avaliações move-senuma esfera de equívocos, e deriva sua plausibilidade de umcerto conceito de necessidade, que é o único esteticamenterelevante. É nesse conceito que pensa Novalis, quando fala docaráter a priori das obras de arte, e que consiste numa neces-sidade de estar ali, que lhes é imanente. E claro que essa ne-cessidade só é acessível a uma análise capaz de penetrar até asua substância metafísica. Ela escapa de todo a uma "valori-zação" trivial. E o que acontece, em última instância, com a

mais recente tentativa de Cysarz. Se os primeiros ensaios so-bre o tema eram incapazes de perceber os contornos de umaperspectiva completamente nova, é surpreendente que os atuaiscontenham pensamentos valiosos e observações precisas, masenfeudados como estão, conscientemente, ao sistema da poé-tica classicista, deixem de chegar a resultados produtivos. Emúltima análise, o tom não é o da "salvação" clássica, maso da justificação irrelevante. Nas obras mais antigas, a g uerrados trinta anos é geralmente citada, com essa intenção. Ela évista como responsável por todos os deslizes encontrados nessaforma. Ce sont, a-t-on dit bien des bois, des pièces écrites par

des bourreaux et pour des bourreaux. Mais c'est ce qu ïl fal-

lait aux Bens de ce temps-là. Vivant dans une atmosphère deguerres, de luttes sanglantes, ils trouvaient ces scènes natu-

relles; c était le tableau de leurs moeurs qu on leur offrait.

Aussi gotitèrent-ils naïvement, brutalement le plaisir qui leur

était offert. *20

(•) "Como já se disse muitas vezes, são peças escritas por carrascos epara carrascos. Mas era disso que precisavam os homens desse tempo. V-vendo numa atmosfera de guerras, de lutas sangrentas, eles consideravamessas cenas naturais. O que viam no palco era o quadro dos seus costum es. Por

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76ARROCO E EXPRESSIONISMO BARROCO E EXPRESSIONISMO7Assim, as pesquisas do século passado se afastaram irre-mediavelmente de uma fundamentação crítica da forma dodrama barroco. O sincretismo das abordagens histórico-cul-turais, histórico-literárias e biográficas, com o qual se tentavasuprir a ausência de uma verdadeira reflexão no plano da filo-sofia da arte, tem nas investigações atuais uma contrapartidamenos inofensiva. Como um doente, ardendo em febre, trans-forma em idéias delirantes todas as palavras que ouve, o espí-rito do nosso tempo se apropria de todas as manifestações demundos intelectuais passados ou distantes, arrasta-os para sie, sem nenhum amor, incorpora-as às suas fantasias egocên-tricas. Esse é o sinal dos tempos: não se pode descobrir ne-nhum estilo novo, nenhuma tradição popular desconhecida,que não apele imediatamente, e com total evidência, para asensibilidade dos contemporâneos. Essa fatídica sugestibili-dade psicológica, pela qual o historiador, por um processo desubstituição, 2 5 procura colocar-se no lugar do criador, como seeste, por ter criado a obra, fosse também o seu melhor intér-prete, recebeu o nome de "empatia", que mascara a simplescuriosidade com o disfarce do método. Nessa aventura, a faltade autonomia característica da presente geração sucumbiu aopeso impressionante do Barroco, ao defrontar-se com ele. So-mente em poucos casos a mudança de perspectiva que come-çou com o expressionismo, embora tenha sido afetada pelapoética de Stefan George,2 6 evou a uma intuição capaz dedescobrir novas e verdadeiras conexões, não entre o criticomoderno e seu objeto, mas dentro do próprio objeto. 2 7 Mas osvelhos preconceitos começam a perder sua vigência. Analogiasperceptíveis entre o Barroco e o estado atual da literaturaalemã ocasionaram um interesse, na maioria das vezes senti-mental, mas em todo caso positivo, pela cultura daquelaépoca. Já em 1904 escreveu um h istoriador da literatura: "Te-nho a impressão de que, nos últimos duzentos anos, nenhumasensibilidade artística teve tantas afinidades com a do Bar-roco, em sua bu sca de expressão estilística, como a que carac-

teriza os nossos dias. Interiormente vazios ou profundamenteconvulsionados, exteriormente absorvidos por problemas téc-nicos e formais: assim foram os poetas barrocos, e assim pa-recem ser os poetas do nosso tempo, ou pelo menos aquelesque imprimiram em suas obras a força de sua personali-dade". 2 8 No meio tempo, essa opinião, muito sóbria e reser-vada, foi confirmada num sentido bem mais amplo. Em 1915apareceu a peça de Werfel, Die Troerinnen,* inaugurando o

drama expressionista. Não é por acaso que Opitz abordou omesmo tema no início do drama do período barroco. Nas duasobras, o poetas se preocuparam com o instrumento lingüísticoe com a ressonância das lamentações. Nos dois casos, os au-tores negligenciaram desenvolvimentos complicados e artifi-ciais, concentrando-se numa versificação modelada sobre orecitativo dramático. É na dimensão da linguagem que apa-rece com toda a sua clareza a analogia entre as criações da-quela época e as contemporâneas, ou do passado recente. Oexagero é um a característica comum a todas. Essas produçõesnão brotam no solo de uma existência comunitária estável; aviolência voluntarista do seu estilo procura, pelo contrário,

mascarar, pela literatura, a ausência de produções social-mente válidas. Como o expressionismo, o Barroco é menos aera de um fazer artístico, que de um inflexível querer artístico.É o que sempre ocorre nas chamadas épocas de decadência. Arealidade mais alta da arte é a obra isolada e perfeita. Porvezes, no entanto, a obra acabada só é acessível aos epígonos.São os períodos de "decadência" artística, de "vontade" artís-tica. Por isso Riegl cunhou esse termo exatamente com rela-ção às últimas criações artísticas do império romano. Somentea forma como tal está ao alcance dessa vontade, e não a obraindividual bem construída. É nesse querer que se funda aatualidade do Barroco, depois do colapso da cultura clássica

alemã. A isso se acrescenta a busca de um estilo lingüísticoviolento, que esteja à altura da violência dos acontecimentoshistóricos. A prática de condensar numa só palavra adjetivos,sem nenhum uso adverbial, com substantivos, não é uma in-venção de hoje. Os vocábulos Grosstanz, Grossgedicht** (isto

isso, degustavam ingenuamente, brutalmente, o prazer que lhes era ofere-cido."

(1AsTroianas.

(**) Literalmente, Grande Dança, Grande Poema.

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78ARROCO E EXPRESSIONISMO

é, epopéia) são palavras barrocas. Proliferam os neologismos.Hoje como antes, exprime-se em m uitos deles a procura de umnovo pathos. Os esçritores se esforçavam por apropriar-se pes-soalmente da força imagistica interna, da qual deriva, em suaprecisão e em sua delicadeza, a linguagem da metáfora. Seuponto de honra não era o uso de frases metafóricas, e sim acriação de palavras metafóricas, como se seu objetivo imediatofosse, ao inventar as palavras da poesia, inventar as palavras

da língua. Os tradutores barrocos tinham prazer nas formula-ções mais arbitrárias, que se manifestam hoje em dia sobre-tudo sob a forma de arcaísmos, em que os autores julgam con-trolar as fontes da vida lingüística. Essa arbitrariedade é sem-pre o sinal de uma produção na qual é difícil extrair do con-flito de forças desencadeadas uma expressão acabada na formae verdadeira no conteúdo. Nesse dilaceramento, nossa épocareflete, até os menores detalhes de sua prática artística, certosaspectos do espírito barroco. As obras pacifistas de hoje, comsua ênfase sobre a simple life e a bondade natural do homem,contrapõem-se da mesma forma que o teatro pastoral, na erabarroca, ao romance político, ao qual se dedicaram autores

prestigiosos, tanto no período barroco, como em nossos dias.Os literatos de hoje, que como os de ontem têm uma forma devida dissociada da que caracteriza a parcela ativa da popu-lação, são de novo consumidos por uma ambição que apesarde tudo podia ser mais facilmente satisfeita naquele tempo quehoje em dia. Porque Opitz, Gryphius e Lohenstein tiveram aoportunidade de prestar serviços ao Estado, recebendo, agra-decidos, a remuneração correspondente. E aqui o paralelo en-contra os seus limites. O literato barroco sentia-se totalmentevinculado ao ideal de uma constituição absolutista, apoiadapela Igreja das duas religiões. A atitude dos seus herdeiros,quando não é hostil ao Estado, ou revolucionária, caracteriza-se pela ausência de qualquer idéia de Estado. E . finalmente,não devemos esquecer, apesar de m uitas analogias, uma g ran-de diferença: na Alemanha do século XVII, a literatura de-sempenhou um papel no renascimento da nação, por menosque esta se preocupasse com seus escritores. Pelo contrário, osvinte anos de literatura alemã aqu i mencionados para explicara renovação do interesse no Barroco correspondem a um pe-ríodo de decadência, ainda que decadência produtiva e prepa-ratória de uma nova fase.

PRO DOMO 79

Em conseqüência é tanto maior o impacto que pode serproduzido, agora, pela revelação, no Barroco alemão, de ten-dências semelhantes, expressas na linguagem, artificial e ex-cêntrica, típica daquele período. Confrontados com uma lite-ratura que num certo sentido procurava reduzir ao silêncio oscontemporâneos e os pósteros, pela extravagância de sua téc-nica, pela riqueza uniforme de suas criações e pela veemênciados seus julgamentos de valor, temos de enfatizar a necessi-dade daquela atitude soberana imposta pela representação daidéia de uma forma. O perigo de cair, dos píncaros da ciência,no abismo profundo do espírito barroco, é grande, e não podeser. desprezado. Encontramos freqüentemente, nas tentativasimprovisadas de apreender o sentido dessa época, um a sensa-ção característica de vertigem, produzida pela visão de umuniverso espiritual dominado pelas contradições. "Mesmo asexpressões mais íntimas do Barroco, mesmo os menores deta-lhes — talvez, sobretudo, os detalhes — são antitéticos." »Somente uma perspectiva distanciada, disposta, inicialmente,a abrir mão da visão da totalidade, pode ensinar o espírito,num processo de aprendizagem ascética, a adquirir a forçanecessária para ver o panorama, sem perder o domínio de simesmo. Esta introdução descreve o itinerário dessa aprendi-zagem.