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1 Memórias da saga comunista Vidas, veredas: paixão MEMÓRIAS DA SAGA COMUNISTA

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MEMÓRIAS DA SAGA COMUNISTA

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Ficha catalográfica

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Vidas, veredas: paixão

MEMÓRIAS DA SAGA COMUNISTA

Adalberto Monteiro, Fabiana Costa, Walter Sorrentino (coordenadores) e

Luiz Manfredini (pesquisa, texto e edição)

São Paulo, 2012

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REALIZAÇÃODEPARTAMENTO NACIONAL DE QUADROS JOÃO AMAZONAS

FUNDAÇÃO MAURÍCIO GRABOIS

COORDENAÇÃO-GERALADALBERTO MONTEIRO

FABIANA COSTAWALTER SORRENTINO

PESQUISA, TEXTO E EDIÇÃOLUIZ MANFREDINI

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃOCLÁUDIO GONZALEZ

REVISÃOMARIA LUCÍLIA RUY

COLABORAÇÃOAUGUSTO CÉSAR BUONICORE

FERNANDO GARCIA FARIAOSVALDO BERTOLINO

PAULO SÁ BRITO

FOTOGRAFIASArquivos pessoais e Fundação Maurício Grabois

IMPRESSÃOProl Gráfica

TIRAGEM3.000

Editora e Livraria Anita Ltda.Rua Amaral Gurgel, 447, 3º andar, cj. 31 – Vila Buarque

São Paulo – SP – CEP 01221-001Tel.: (11) 3129-3438

[email protected]

Fundação Maurício GraboisRua Rego Freitas, 192 - Sobreloja – Centro

São Paulo – SP – CEP 01220-010 Tel.: (11) 3337-1578 www.grabois.org.brfmg@ grabois.org.br

Departamento Nacional de Quadros João Amazonas

Rua Rego Freitas, 192 - CentroSão Paulo – SP – CEP 01220-010

Tel.: (11) 3054-1800 www.pcdob.org.br

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Apresentação: Sonhos, paixão e lutasO topete do presidente da UNE No cerrado, entre a lama e o pó de BrasíliaO cardeal foi educado, mas a conversa, dura“Vou botar a farda e enquadrar muita gente”O longo e acidentado caminho do OrienteOs 15 dias que abalaram a APDe volta aos bancos da escolaRatazanas em fúria na terra do cacauPor trás do murinho de pedrasAP e PCdoB começam a conversarDe olho nas áreas para a guerrilhaAo invés e cadete, revolucionárioOnde vive o companheiro Miguel?Sem mulher, sem filhos, sem nadaMarcas da vida, marcas da tortura“Ou ficar as putas livres ou morrer pelo Brasil”Sangue na tribuna da Assembleia LegislativaOs sete irmãos, em fila, para deporDa mistura de judeus, índios e luta“Incorporemo-nos ao PCdoB”Parecia festa, mas preparavam congressoO quartel para domar o menino insubmisso

ÍNDICE

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Tristeza na primavera de PequimLua de mel no aparelho clandestinoTrinta expulsos por ideias subversivas“Aqui, Rádio Tirana”“Jornalista ou jornaleiro?”“É bom entrarem em contato com esse Lula”Abraçando a imensidão do BrasilLivres da prisão e do exílio“O presente e o futuro dos trabalhadores”A opção pelos pobres do campoAfinal, onde estão os guerrilheiros?“Povo brasileiro, voltamos!”Na arena da Assembleia ConstituinteEm defesa do PartidoOs misteriosos papéis dentro da bolsaBaianos de consciência e luta“Não estava fadado a me acomodar”Os gaúchos estão de voltaFincando o pé no centro-oesteO Partido para fora das sombrasRespeito vãos que sonham com nova sociedadeNo fio na navalha“Tenho orgulho de minha geração de lutadores”

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APRESENTAÇÃO

ESonhos, paixão e lutas

stas são histórias de pessoas comuns, que amam e sofrem, gozam e penam a vida, têm paixões futebolísticas e pendores intelectuais diversos. Brasileiros típicos, em geral das classes populares, que vencem desafios e sofrem reveses.Por que contar suas histórias?Porque algo as tornou incomuns. Elas se entrecruzaram numa determinada quadra da vida nacional animadas por uma fagulha que as fez superar a perspectiva de uma

vida rotineira. Foi paixão por liberdade e justiça social, sem qualquer uso artificial dessas mo-numentais palavras.

A agulha e a linha que lhes alinhavou os destinos foram a de uma organização política em prol de democracia e progresso social. De vários pontos de partida, com grande força desde a vida estudantil, elas ousaram. Arrostaram rupturas de vida precoces, romperam barreiras cultu-rais, sociais e profissionais, em detrimento de um futuro individual imediato, com a audácia de almejar a revolução do estado de coisas existente.

A tessitura se deu em diferentes circunstâncias e muitas vezes tormentosas. Forjou-se o tecido maleável e resistente que persiste até hoje e projeta uma perspectiva que permite a elas dizer: “vencemos, afinal, parte importante da luta a que nos propusemos”.

Sim, venceram e encarnam o papel da quarta geração política que dirige o PCdoB, aos 90 anos de fundação. Todas se mantiveram ativas ininterruptamente na luta política nos últimos 30 ou 35 anos nessa condição de líderes sociais e políticos e dirigentes partidários, ingressados no Partido desde os anos 1960 até o final dos 70.

A década de 1960 foi marcada por profundo revolvimento e desassombro do mundo – épo-ca de guerras de agressão imperialistas, mas também de grandes esperanças revolucionárias das lutas anti-imperialistas. Para os brasileiros, foram ao mesmo tempo anos de chumbo, sob uma dita-dura feroz que se prolongou por 21 anos, quando o povo foi declarado inimigo interno.

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Foi forte a carga de sacrifício demandada na trajetória das pessoas aqui retratadas. O combate foi muito desigual, enfrentado ombro a ombro com outras correntes políticas da esquerda brasileira.

Em 1962, o velho Partido Comunista do Brasil foi reorganizado para manter o sentido revolucionário, e se intitulou PCdoB – desde então, a expressão vem sendo um atestado de autenticidade e de raízes genuínas entre os brasileiros. Teve lugar a Guerrilha do Araguaia, duramen-te derrotada. Nessa circunstância extrema, em 1972 a ele se incorporava a Ação Popular Marxista-Leninista – a maior da época na esquerda –, um grande gesto revolucionário numa hora de embates de vida e morte. Em 1975-6, mais uma reorganização ceifada afinal com a Chacina da Lapa; outra mais deu um giro para a luta democrática a partir de 1978, tendo à frente o líder da terceira geração dirigente do PC do Brasil, João Amazonas que, afinal, influenciou a todos os aqui retratados.

Manter os compromissos e sonhos de cada uma des-sas pessoas, em meio a tantas e tão variadas vicissitudes, é fato marcante. Entraram para a luta política já sabendo que, se necessário, pagariam com a própria vida. Relações fami-liares e afetivas foram recalcadas para um segundo plano devido à rigorosa clandestinidade.

Perseguidos sempre, muitos foram exilados, tortura-dos. Enfrentaram a derrota estratégica do socialismo desde o final dos anos 1980 e, entre nós brasileiros, a ofensiva neoli-beral mundial desde a década de 1990. Legaram ao país um futuro novo, participando da eleição do primeiro presidente operário do Brasil, a quem apoiaram desde a primeira jor-nada em 1989. Ocuparam posto de primeira linha na eleição da primeira mulher presidenta, Dilma Rousseff, de quem têm respeito e admiração pública. Levaram o pequeno PC do Brasil a ser o lídimo representante da corrente comunista no Brasil, em expansão e afirmação crescentes. Renovaram junto à nação, um legado de realizações em prol do povo brasileiro, ao lado de outras forças progressistas.

O papel dos indivíduos, ao

contrário de certo mito constituído

na história do movimento

comunista, é determinante; não à moda de

“homens de aço”, mas de gente de

carne e osso.

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É uma legião de mulheres e homens que aceitaram realizar-se pessoalmente não apenas pelos méritos individuais e em busca de prestígio pessoal, mas principalmente e acima de si próprios, na trajetória da perspectiva e organização política que abraçaram. Nas circunstâncias dadas, o “eu” sempre cedeu em função do “nós”.

Com a liberdade conquistada, suas vidas e papéis se expandiram e auferiram nível de responsabilidade política e social elevado perante a nação. No presente, as relações familiares e afetivas vicejaram sem peias: filhos se orgulham deles; netos os amam.

A história é irrepetível. Os condicionamentos próprios da época em que fizeram opções ra-dicais e sua formação são outros hoje. Da história contada pelas estórias pessoais retemos as lições, com a certeza de que “velhas coisas” sempre precisam ser repetidas para novas gerações que vão fazendo experiência política própria, para a mesma radicalidade cultivada por outros caminhos.

O que fez delas o que são foi a consciência de que é pela luta política que se revoluciona a sociedade, somada a um marcante sentimento de justiça social. Não chegariam a uma fração des-sa trajetória sem essa consciência cultivada nos calabouços e florestas, nas reuniões de aparelho e grupos de estudo, nos movimentos populares, mas principalmente pelo autoesforço, pois sabe-dores de que sem base teórica não há a lucidez que guia o ímpeto revolucionário. Foi necessário coragem, não só física, contra forças imensamente mais poderosas – e covardes –, mas também a do arrojo pessoal, talvez a mais difícil. E compromisso – essa a outra lição indelével que deixam. Em primeiro lugar, com sua consciência, de onde derivaram a dedicação, disciplina e lealdade com a organização política. É a soma desses fatores que lhes permitiu a coerência que demons-tram. Não haja ilusões: quantas indagações, quantas vacilações, quantos impasses psicológicos para persistir tanto e tão prolongadamente. Munidos de uma franca concepção materialista do mundo, foram movidos a paixões, mas lúcidas.

O papel dos indivíduos, ao contrário de certo mito constituído na história do movimento comunista, é determinante; não à moda de “homens de aço”, mas de gente de carne e osso. A individualidade é soma e não subtração quando se fala de solidariedade entre os seres humanos. Estender a concepção materialista do mundo à esfera da concepção da natureza humana, do grandioso enredo da vida e da personalidade de cada um, é um aporte enriquecedor. O partido não é um pensamento abstrato, e sim materializado em homens e mulheres determinados, suas estórias pessoais, idiossincrasias, sua humanidade, enfim.

Então, falar desses seres humanos foi gratificante, pelo que os editores se sentem felizes com a obra e pela pluma leve do redator em capturar a aventura humana que foi a luta dessas personagens. Para essa pretensão, melhor que o ensaio histórico, optou-se por um misto de lite-ratura e jornalismo, numa narrativa cuja lógica não é linear nem estritamente cronológica, mas simplesmente a da vida real, sem prejuízo do rigor histórico-político.

Seriam muitos os que precisávamos retratar. O recorte possível foi o de captar um punha-do deles, ingressados no PCdoB até ao final da década de 1970 e presentes em funções de res-

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ponsabilidade nacional desde então, ininterruptamente. Por impossível, não alcançamos incluir a todos e todas que participaram da jornada. Não obstante, muitos outros e outras foram “carrei-ras” da mesma tessitura: de diferentes postos passados e atuais também mantiveram a coerên-cia, guardaram para sempre o humanismo radical e compromisso com as causas progressistas que cultivaram no percurso. Que todos se sintam integrantes destas homenagens. Outros livros, outras penas, quem sabe da futura geração dirigente da luta dos comunistas, saberão escrever novas obras, destes tantos outros.

“Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos”, dizia Próspero, de Shakes-peare, em A Tempestade. É possível cavalgar os sonhos, com as rédeas da consciência, e buscar transformá-los em realidade. A luta prossegue, porquanto tal realidade está sempre em fluxo. Mas pode-se dizer: a consciência desta gente venceu e deu a eles uma resistência e resiliência que muito aproveitam todos que se dispõem caminhar no mesmo rumo. Como se sabe, serão muitos e muitos, sempre. Este livro é para eles.

O Departamento Nacional de Quadros, da Secretaria Nacional de Organização do PCdoB, e a Fundação Maurício Grabois se comprazem de oferecer aos leitores esta obra, sobre quadros políticos que orgulham o PCdoB e o Brasil.

Agradecimento especial ao jornalista e escritor Luiz Manfredini, ele próprio militante his-tórico desde os tempos da velha AP, em meados dos anos 1960, dirigente partidário e primeiro presidente do então Instituto Maurício Grabois. Agradecimento pelo rigor, empenho, carinho e esforço, comprovando uma vez mais sua sensibilidade literária e o sentimento necessário a uma obra engajada, sem perder o rigor de repórter e a capacidade de dialogar com um público am-plo. Homenageamo-lo com a feliz escolha de tê-lo como redator da obra. A ele só não podem ser atribuídas as falhas que possam existir.

As escusas antecipadas por elas, em nome dos responsáveis editoriais; escusas por vencer pelo cansaço os entrevistados e pelos muitos que não pudemos alcançar. Todos se sintam parte integrante das homenagens que este livro representa.

ADALBERTO MONTEIROFABIANA COSTA

WALTER SORRENTINO

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“Deixa que a tua certeza se faça do povo a cançãoPra que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão...”

[de Geraldo Vandré e Fernando Lona, in Porta estandarte, 1966]

Detalhe da obra M

etamorfose/G

ershon Knispel

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Aldo Arantes

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O topete do presidente da UNE

O rapaz empertigado que cruzou, guiado por vistoso topete à James Dean, as antessalas da Presidência da República, vestia um terno emprestado, curto nos ombros e na altura. A jovem que o seguia saltitava de quando em quando para acompanhar as passadas largas e rápidas do moço que não se deteve nem mesmo ao distinguir a presença de três oficiais idosos – e, por su-posto, graduados – à espera de audiência.

Estudante da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Aldo Silva Arantes contava apenas 22 anos de idade e estava no Palácio do Planalto, naquele aziago mês de agosto de 1961, para comunicar ao chefe da Nação sua posse, semanas antes, na Presidência da poderosa União Nacional dos Estudantes (UNE). Nada a estranhar. Numa época em que não havia centrais sindicais (o Comando Geral dos Trabalhadores só seria criado no ano seguinte, ainda assim não como central), a UNE liderava o movimento social brasileiro, sendo o seu dirigente autoridade nacional com acesso irrestrito aos mais eminentes gabinetes do poder.

Não por menos Aldo Arantes obteve precedência na agenda presidencial. Em marcha ao gabinete, observou apenas de soslaio os militares que aguardavam sentados, nada menos que os ministros com os quais se defrontaria alguns dias depois, em defesa da legalidade: marechal Odylo Denis, da Guerra (como então se chamava o já extinto Ministério do Exército); brigadeiro Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica; e o almirante Sylvio Heck, da Marinha.

Já no interior do gabinete, parado, em pé, mãos cruzadas na frente do corpo, aguardou que o presidente se desvencilhasse do enorme e barulhento aparelho de telex no fundo da sala, cujo teclado martelava ardorosamente.

Ao cabo de alguns minutos, Jânio Quadros voltou-se para o visitante, afastou a mecha de cabelo que pousava sobre os óculos de espesso aro preto e disse:

– Bom di-a, se-nhor pre-si-den-te!Era assim que falava, escandindo as sílabas e acentuando as últimas, misturando caretas

e gestos.Aldo Arantes varreu o gabinete com o olhar, buscando aquele a quem Jânio saudara com

desmedido entusiasmo. Não havia ninguém, o presidente era mesmo ele.– Pre-si-den-te, quei-ra se as-sen-tar!Aldo estava acompanhado por Liana Maria Aureliano, presidente do Diretório Central

dos Estudantes (DCE) da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janei-ro). Sentaram-se ambos à vetusta mesa, onde repousavam um busto de Abraham Lincoln e um porta-retratos do líder iugoslavo Josip Broz Tito.

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Como de hábito no expediente interno do Planalto, Jânio vestia o tradicional safári caqui copiado dos ingleses colonizadores da Índia, que o povo logo apelidou de pijânio.

– Presidente, acabei de ser eleito para a Presidência da UNE e trouxe ao senhor a comu-nicação da posse da nova diretoria...

– Se-nhor pre-si-den-te – interrompeu Jânio, fixando o jovem com o olhar vesgo e pene-trante – nos Estados Unidos, na França, em todos os países do mundo trata-se o presidente da República por excelência!

Aldo assentiu e logo passou à sua excelência o ofício comunicando a posse da recém--eleita diretoria da UNE. Era um papel mimeografado. Jânio não perdoou:

– Se-nhor pre-si-den-te, os senhores necessitam de um chefe de cerimonial. Imagine, mandam para o presidente da República um ofício mimeografado!

Aldo mais uma vez desculpou-se e a audiência propriamente dita começou, com me-nores teores de histrionismo e esquisitices. O jovem apresentou extensa pauta de reivindi-cações. Jânio, no ato, ligou ao ministro Brígido Tinoco, da Educação e Cultura, pedindo que recebesse o presidente da UNE e atendesse a todos os seus pleitos, incluindo uma sede em Brasília e recursos para o Centro Popular de Cultura (CPC), iniciativa que a entidade reali-zava em todo o país.

A audiência longa e proveitosa deixou Aldo satisfeito. Iniciava sua gestão com pé direi-to. Deixou o Planalto e seguiu para Goiânia, onde morava sua família.

***Ano e meio antes de encontrar-se com Jânio Quadros, Aldo Arantes ainda cursava o

secundário no Liceu de Goiânia. Nascido em Anápolis em dezembro de 1938, chegara à capital com 12 anos de idade junto com os pais e os quatro irmãos, primos pobres de uma abastada família de proprietários rurais. Galileu Batista Arantes, o pai, modesto fiscal de rendas do Es-tado, e Maria de Lourdes Silva Arantes, a mãe, professora primária.

A vocação política no jovem Aldo logo o fez, por três vezes consecutivas, orador do Grêmio Literário Félix de Bulhões, e o conduziu celeremente à Juventude Estudantil Católica (JEC), organização da Igreja para o meio secundarista. No ano seguinte, já cursando Direito no Rio de Janeiro, trocou a JEC pela Juventude Estudantil Católica (JUC), voltada aos universitá-rios. E foi com apoio da ala esquerda da JUC, já predominando no movimento estudantil, que Aldo cumpriu vertiginosa progressão: no espaço de ano e meio ingressou no diretório acadê-mico, elegeu-se presidente do DCE e, em julho de 1961, chegou à Presidência da UNE.

***

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Na tarde morna de 25 de agosto de 1961, numa loja de confecções no centro de Goiânia, Aldo e o pai escolhiam um terno para substituir o que fora emprestado para a posse e a audi-ência, dois dias antes, com o presidente Jânio Quadros. Foi quando soube da renúncia, pela estridente edição extraordinária de uma rádio local. O homem que desprezara os partidos e o jogo político-parlamentar, e se afastara da ortodoxia conservadora que pavimentou seu cami-nho rumo à Presidência, deixara o cargo sob a alegação de que “forças terríveis” levantavam-se contra ele e o impediam de governar.

A bordo do terno novo, que lhe cabia melhor, Aldo voltou no mesmo dia ao Rio, onde confirmou suas suspeitas: os ministros militares, aqueles aos quais precedera dias antes, na au-diência com Jânio Quadros, armavam o impedimento da posse do vice-presidente João Gou-lart, em viagem à China, sob a alegação de que estava ligado aos comunistas.

Entidade então com maior capacidade de mobilização no país, a UNE reagiu. Após decretar greve geral universitária, a diretoria espalhou-se pelas principais capitais do Brasil. Aldo, seguido por seu assessor Herbert José de Souza, o Betinho, viajou para Porto Alegre, onde o governador Leonel Brizola erguera resistência armada ao golpe.

A capital gaúcha era uma praça de guerra. O Palácio Piratini estava cercado por sacos de areia, automóveis, jipes, bancos da Praça da Matriz, trincheira defendida por civis armados e milicianos da Brigada Militar. No topo, ninhos de metralhadoras. Para além das barricadas, o povo. Milhares de estudantes e trabalhadores aglomeravam-se em torno do palácio. A at-mosfera, em todo o Rio Grande do Sul, era mesmo de luta. No interior, os centros de tradições gaúchas arregimentavam o povo e o armavam com revólveres, espingardas e mesmo lanças e facões. Muitos desses gaúchos, com suas botas, bombachas e lenços no pescoço afluíam para Porto Alegre, preparados para a luta. Comitês de mobilização formaram-se entre estudantes e trabalhadores, intelectuais e artistas. Irreconciliáveis nos campos de futebol, Grêmio e Interna-cional se uniram em favor da luta.

Um posto de recrutamento de populares para a resistência foi instalado na Avenida Borges de Medeiros, num prédio em formato de mata-borrão, por isso assim apelidado. Em apenas cinco dias, 45 mil pessoas se inscreveram no Mata-borrão e entraram em filas para rece-ber armas e treinamento. Um dos líderes dessa mobilização popular era João Amazonas, então dirigente principal do Partido Comunista do Brasil (na época ainda sob a sigla PCB) no estado. A resistência gaúcha sensibilizou as ruas do Brasil e, ao cabo, encurralou os militares golpistas.

O comandante do III Exército, general José Machado Lopes, aderiu ao movimento legalista.Aldo Arantes passava os dias no Piratini, articulado com o comando legalista. Dividia-se

entre ajudar na mobilização dos estudantes gaúchos, dirigidos pela Federação dos Estudantes

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Gaúchos embarcados no Trem da Legalidade comemoram posse de Jango, setembro 1961

Arquivo Fundação Maurício Grabois

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Universitários do Rio Grande do Sul (FEURGS), e falar na Cadeia da Legalidade, transmitida dos porões do Palácio Piratini para o Brasil – uma rede de 14 emissoras de rádio que espalhou a resistência a todas as ruas do país. Brizola e Aldo Arantes eram a atração principal. Em nome da UNE, Aldo relatava aos estudantes brasileiros a evolução dos acontecimentos, apresentava dire-tivas de ação, conclamando à mobilização. Em várias capitais os estudantes eram convocados a ouvir, nas praças públicas, a palavra do presidente da UNE.

Aldo estava no Piratini quando Jango chegou, em 1o de setembro à noite, após um retor-no intencionalmente demorado ao Brasil. Ele já havia aceitado, contra a opinião de Brizola, o acordo parlamentarista que transferia ao Congresso e ao chefe do Conselho de Ministros boa parte das prerrogativas presidenciais. No dia cinco, um Viscount e um Curtis Commander da Va-rig decolaram de Porto Alegre. No primeiro, Jango e parte de sua comitiva; no outro, o restante da comitiva oficial e Aldo e Betinho, que ficaram em Campinas.

João Goulart foi empossado presidente da República no dia sete.Aldo Arantes e Leonel Brizola desenvolveram, na breve, porém intensa luta democrática de

agosto de 1961, profundos laços de afeto. Findo o movimento e ao se despedir do governador gaú-cho, dele recebeu um revólver Rossi 38 “como símbolo da resistência”. Do presente, ficou apenas a lembrança. A arma, durante a ditadura militar, foi doada a um militante da luta armada”.

Dias depois da posse, Aldo Arantes receberia, na sede da UNE, no Rio de Janeiro, uma visita inusitada: o presidente João Goulart, acompanhado por todo o seu Ministério, lá esteve para agradecer pela participação dos estudantes na luta por sua posse. Somente 40 anos depois outro presidente estaria por lá: Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2002.

***Logo após o batismo de fogo na Campanha da Legalidade, Aldo Arantes dedicou-se a

construir a que até hoje é considerada das melhores – senão a melhor – gestões da UNE.A UNE Volante, a expansão dos centros populares de cultura (CPCs) e uma vigorosa

greve geral pela representação estudantil de ⅓ nos colegiados universitários marcaram a gestão.Durante meses aviões DC-3 da Varig conduziram (com passagens cedidas a pedido do

governador Leonel Brizola) caravanas de 30 pessoas (20 membros do CPC e cinco diretores da UNE), para quase todas as capitais brasileiras (menos São Paulo, Niterói e Cuiabá). Era a UNE Volante, que permanecia de três a cinco dias em cada cidade, difundindo a luta pela reforma universitária (contra o modelo elitista, autoritário e desvinculado das aspirações nacionais que vigia até então). Foram cerca de 200 assembleias, das quais Aldo Arantes, que liderava esse processo, participou.

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Já o CPC buscava novas formas e novos métodos de mobilização e conscientização da ju-ventude, utilizando a cultura e a arte como elementos de comunicação e também propugnava por uma cultura mais voltada para a realidade brasileira e seus dilemas. O CPC incluiu nomes que, logo em seguida, ganhariam notoriedade: Ferreira Gullar, Oduvaldo Viana Filho, Cecil Thiré, Carlos Vereza e Francisco Milani, no teatro; Leo Hirzman e Cacá Diegues, no cinema; Carlos Lyra, na música, entre outros.

A gestão encerrou-se com a Greve do ⅓, resultado da UNE Volante, em junho de 1962. Atingiu a maioria das 40 universidades brasileiras durante mais de três meses. A mais longa gre-ve estudantil já ocorrida até então.

O jovem Aldo Silva Arantes estava dando apenas o primeiro passo de uma longa e tortu-osa vida política que, cinquenta anos depois, no início da segunda década do século XXI, ainda não havia terminado.

Aldo Arantes discursa no XXIV Congresso Nacional dos Estudantes, realizado em julho de 1961, em Niterói

Agência Globo

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No cerrado, entre a lama e o pó de Brasília

Um ano antes de Aldo Arantes assumir a Presidência da UNE, outro jovem, Dynéas Fer-nandes de Aguiar, aos 28 anos de idade, chegava a Brasília. Tendo atuado como secretário exe-cutivo no Conselho Sindical do Estado de São Paulo (criado pelas federações de trabalhadores, com participação do Partido), recebera a missão de ajudar na estruturação do Sindicato da Cons-trução Civil da nova capital, também criando partido, mas reunindo trabalhadores nordestinos que nunca tinham ouvido falar em sindicato.

Dynéas deixou São Paulo no final de 1960, logo após as eleições de outubro que deram estrondosa vitória a Jânio Quadros sobre o candidato apoiado pelos comunistas, o nacionalista marechal Henrique Teixeira Lott. Após uma viagem de 24 horas, desembarcou em Brasília entre a lama e o pó da cidade que se espalhava, ainda em construção, sobre a planura verde amarron-zada do cerrado.

Dois meses antes, na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, o Partido havia realizado seu rumoroso V Congresso. A luta interna que se desenvolvia desde 1956 fizera dos quatro meses anteriores palco de debates acirrados. Dynéas, apesar de jovem, to-mara posição no confronto. E não estava com a maioria prestista. Corajoso, ao chegar a Brasília, antes mesmo de assumir a Secretaria Executiva do Sindicato, apresentou-se ao Partido levando consigo a incisiva intervenção por escrito feita na conferência estadual de São Paulo, preparatória ao congresso. Décadas mais tarde, nas vésperas de completar 80 anos, Dynéas lembraria com humor: “O pessoal disse que ali não tinha problema, podia ser contra ou a favor, tanto fazia”.

Meses depois seria incorporado ao Comitê Regional.

***Paulistano do bairro de Água Branca, onde nasceu em janeiro de 1932, um dos três

filhos do segundo casamento de Antônio Aguiar, com Esmylla Gonçalves Aguiar, Dynéas só conheceria a política e o Partido Comunista aos 18 anos, quando se meteu numa pancadaria na Escola Caetano de Campos, em protesto contra a visita eleitoral de Lucas Nogueira Gar-cez, que concorria ao governo paulista. A banda da Força Pública (atual Polícia Militar) que acompanhava o candidato perturbou a turma de Dynéas, que fazia provas. Perturbou a tal ponto que os alunos, em protesto, enfrentaram a comitiva eleitoral com palavrões, giz, apa-gadores, cadernos e livros. A repressão da polícia fermentou o movimento, que se espalhou pela Praça da República.

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Na greve que se seguiu, contra a tentativa da di-retoria da escola de fechar o grêmio, Dynéas se aproxi-mou da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (UPES) por intermédio das colegas Horieta e Florita. Eram as filhas da militante comunista Elisa Branco, notabilizada, à época, por desfraldar, diante do palan-que oficial do desfile de Sete de Setembro, no Vale do Anhangabaú, a atrevida faixa: Os soldados nossos filhos não irão para a Coreia. Eram os últimos meses de 1950. Pouco depois Dynéas já ingressava na União da Juven-tude Comunista, onde permaneceria até 1957, quando a organização foi extinta pelo Partido. Nesse meio tem-po, mergulhou no movimento estudantil secundarista: foi secretário-geral e em seguida presidente da UPES e presidente da União Brasileira dos Estudantes Secun-daristas (UBES), em duas gestões (1953-54 e 1954-55).

Nas eleições de outubro de 1950, Getúlio Vargas obteve vitória arrasadora em seu retorno – “nos braços no povo”, como previra – à Presidência da República. A festa popular que se seguiu pelo país afora de certo modo mitigou a dor nacional pela derrota da seleção brasileira de futebol para a esquadra uruguaia, em ple-no Maracanã, na final da Copa do Mundo. Mas o PCB não participou da euforia, opondo-se desde o início ao novo governo com a mesma contundência com que se opusera ao anterior, do general Eurico Gaspar Du-tra, conservador, americanófilo e anticomunista. Para o Partido, ambos eram “governos de traição nacional, instrumentos servis nas mãos do imperialismo norte--americano”. Reconheceria a estreiteza dessa posição em seu IV Congresso, realizado em novembro de 1954, três meses após o suicídio de Vargas. O trágico fim do presidente espalhou pelo Brasil uma onda de revolta popular que não poupou nem mesmo a imprensa co-munista que tanto o denunciara.

Arquivo Fundação Maurício Grabois

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“Tropa de choque do Partido”, como então se definia, a UJC combatia cotidianamente nas ruas. Fez história em São Paulo a manifestação promovida no amplo saguão da sede dos Diários Associados, na Rua Sete de Abril. O velho Assis Chateaubriand, chefão dos Diários, que incluía a nascente televisão brasileira e uma extensa cadeia de rádios e jornais, criara um vo-luntariado para a Guerra da Coreia. A campanha de alistamento começou a repercutir, jovens se inscreviam, tinham suas fotos publicadas em meio a elogios. Então a UJC decidiu agir. Um contingente de jovens comunistas invadiu o saguão, Dynéas discursou sobre um banquinho, diante de porteiros e funcionários atônitos e de populares curiosos que já se aglomeravam. Tudo muito rápido. Antes de saírem, os manifestantes lançaram mão de suas armas mais le-tais: lâmpadas domésticas cheias de piche que, lançadas nas paredes, borravam-nas com a re-sina escura e pegajosa. E correram em direção à Praça da República. Resultado: Chateaubriand desistiu do voluntariado.

O Brasil já havia assinado com os Estados Unidos um acordo militar quando navios de uma esquadra norte-americana atracaram no porto de Santos. Novamente a “tropa de choque do Parti-do” entrou em ação. Os marinheiros, em suas folgas, costumavam subir para São Paulo. Os rapa-gões de pele rosada e cabelo de palha divertiam-se em bares, estádios de futebol, principalmente em boates. Nas saídas, os esperavam grupos da UJC. Recebiam alguns tapas e empurrões, mas o que os jovens comunistas queriam mesmo, para marcar sua posição e desmoralizar os ianques, era furtar-lhes os gorros. E os classificavam em pontos: gorro de sargento valia mais que de simples ma-rinheiro. De oficiais, então, eram troféu de ouro. E concorriam entre si na insólita coleção de gorros.

Como as UJC de São Paulo e Rio costumavam disputar em audácia, os paulistas resolve-ram homenagear Joseph Stálin com algo arrojado que marcasse a memória da cidade, fazendo a competição pender inelutavelmente a seu favor. Então montaram o nome do líder soviético com enormes pedaços de bambu, atados com arames na beirada do viaduto de Santa Efigênia. Aplica-ram sobre as letras os ingredientes das buchas de balões: estopa, breu e querosene. Era um final de tarde e a ação dos jovens foi relâmpago. Quando atearam fogo no bambu, o flamejante nome de Stálin pendeu do viaduto, balançando sobre a multidão que, na hora crepuscular, amontoava--se nos terminais de ônibus da antiga Praça do Correio. E ali pontificou por mais de duas horas, até que os bombeiros, após labor insano, conseguissem removê-lo.

Mas nem com tamanho arrojo a UJC paulista conseguiu superar a carioca que, dois anos antes, havia atingido marca insuperável. Na antiga capital da República, pelas mãos da jovem militante (e montanhista) Elza Monnerat, que décadas depois se notabilizaria como guerrilheira no Araguaia, o nome de Stálin foi pichado com letras garrafais nas pedras do morro Dois Irmãos, na Gávea, cartão-postal do Rio de Janeiro. E ali, ostensivamente à vista, permaneceu até que o tempo o apagasse, muito tempo depois.

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Até sua extinção, em 1957, a UJC, sempre como a “tropa de choque do Partido”, sempre atenta e audaciosa, participou das principais lutas que agitaram o Brasil. Duas delas foram emblemáticas: o grande movimento pela paz mundial, liderado pela União Soviética e pelos partidos comunistas, e a campanha O petróleo é nosso, que resultou no monopólio estatal e na criação da Petrobras em julho de 1953.

Breves, porém intensos anos de militância, suficientes para que o jovem Dynéas Aguiar abandonasse de vez o sonho de se tornar engenheiro, substituindo-o pela vida de revolucioná-rio em tempo integral.

E foi assim desde então. E nas quase quatro décadas seguintes galgaria os mais elevados postos no Partido a bordo do carinhoso apelido, fruto da calvície prematura: Careca.

***Dynéas ainda estava na UJC quando, em fevereiro de 1956, Nikita Kruschev apresentou

ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), um “relatório secreto” ata-cando duramente J. Stálin, morto três anos antes, e denunciando o culto à sua personalidade. O documento foi publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo e logo desacreditado pelo PCB como intriga da CIA. Mas, em agosto, a confirmação de sua autenticidade desabaria sobre o Partido com a força de incalculáveis megatons.

Dynéas recebeu o “relatório Kruschev” surpreso, mas não abalado em suas convicções. Afinal, como diria mais tarde, ao refletir sobre o papel de Stálin na construção do socialismo na URSS, “nunca aceitei aquela história de paizinho, herança do czarismo”. Para ele, a própria letra da Internacional era inconfundível: nem deuses, nem chefes supremos.

A rigor, as críticas ao “autoritarismo stalinista” que, a partir do “relatório Kruschev”, passaram a alimentar controvérsias entre os comunistas, apenas reacenderam o conflito que vinha opondo, cada vez mais abertamente e com crescente contundência, duas linhas políticas distintas: a reformista e a revolucionária. Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral, adotou a linha reformista, tendo como opositor um grupo minoritário – mas aguerrido – liderado, entre outros, por João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar.

Dynéas Aguiar, que em 1956 contava apenas 24 anos, tomou partido dos que defendiam o caminho revolucionário. Ou seja, marchou contra a corrente. Já em 1957 lutou, sem suces-so, para evitar a extinção da União da Juventude Comunista (UJC), que o Partido, sob nova orientação, afinal tratara de liquidar, junto com as demais frentes de massa que havia criado.

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Indisposto com a maioria prestista na conferência de São Paulo, preparatória ao V Con-gresso (razão pela qual não foi eleito delegado), Dynéas aceitou mudar-se para Brasília, onde logo foi integrado ao Comitê Regional.

***Além de trabalhar como assessor do Sindicato da Construção Civil, em março de 1962

Dynéas dava assistência a uma base do partido da qual participava o arquiteto Oscar Nie-meyer e parte de sua equipe.

Naquele março em que Brasília já se refrescava na antevéspera do outono – embora a temperatura política caminhasse para a fervura – Dynéas viu surgir em sua sala um cinquen-tão alto, entroncado e calvo, que falava e sorria ao mesmo tempo. Não o conhecia. O estranho apresentou-se como Lincoln Oest. Era – Dynéas viria a saber depois – um veterano dirigente comunista, remanescente da insurreição de 1935 e deputado estadual no Rio de Janeiro eleito em 1946 e cassado no ano seguinte, quando o PCB e seus parlamentares foram mandados de volta à clandestinidade.

Lincoln estava ali para comunicar a realização da conferência extraordinária de reorgani-zação do Partido ocorrida em São Paulo, no mês anterior. Nenhum espanto para quem, como Dynéas, acompanhara as controvérsias internas que vinham cindindo o Partido desde o Relatório Kruschev. Controvérsias que já transitavam da luta de ideias para a ação. Em meados do ano anterior, Dynéas havia impedido a circulação, em Brasília, da edição do jornal Novos Rumos que trazia a notícia estapafúrdia: a mudança do nome de Partido Comunista do Brasil para Partido Comunista Brasileiro, com novo programa e novos estatutos, tudo à margem de um congresso.

As comunicações, precárias na época, impediram Dynéas de comparecer à conferência que reuniu pouco mais de 80 comunistas no bairro paulista do Ipiranga. Mas ele concordou com Lincoln: os prestistas haviam criado outro partido, indispensável reorganizar o antigo, o nascido em 1922. Surpresa mesmo foi saber de sua eleição para membro suplente do novo Comitê Central.

Nos dez anos seguintes Dynéas conviveria com aquele sorriso largo e espírito brincalhão nas reuniões do Comitê Central, aprendendo muito com sua larga experiência revolucionária. Logo no início de 1973, já cumprindo longa missão no exterior, ele receberia a notícia: em 20 de dezembro do ano anterior Lincoln Cordeiro Oest havia sido preso e, dias depois, assassinado sob torturas no Doi-Codi do Rio de Janeiro.

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***Nos pouco mais de três em que permaneceu em Brasília, Dynéas dividiu-se entre a mi-

litância no PCB – foi membro do Comitê Regional, de 1960 a 1962 – e, em seguida, no Partido reorganizado, agora com a sigla PCdoB, para o qual conseguiu a adesão da maioria das bases operárias e estudantis da capital. Além de membro suplente do Comitê Central, Dynéas tornou--se o dirigente principal do Partido em Brasília.

Nem bem esquentara a cadeira de secretário executivo do Sindicato da Construção Civil, nas últimas semanas do governo Juscelino Kubitschek, e lá estava ele à frente de dois grandes movimentos: um, ainda no governo Juscelino, que praticamente dobrou o salário dos candangos, os operários construtores de Brasília; e outro, já na Presidência de Jânio Quadros, que evitou o desemprego de cerca de cinco mil trabalhadores.

Nos últimos dias de agosto de 1961, consumada a renúncia do presidente Jânio Quadros, os tanques do Exército faziam Brasília trepidar na preparação do golpe que tentava impedir a posse do vice-presidente João Goulart. O Partido ligou-se ao governador Mauro Borges, de Goi-ás, que se opunha aos militares ao lado do gaúcho Leonel Brizola. A resistência incluía transferir de Brasília para Goiás os parlamentares que, certamente, seriam presos pelos golpistas. Como as saídas de Brasília estavam tomadas por tropas, coube a Dynéas, à frente de camaradas do Partido, sobretudo dos camponeses que conheciam a região como a palma da mão, esquadri-nhar caminhos alternativos pelo cerrado. E por aquelas veredas que só os da terra conheciam, viajaram diversos parlamentares. Um deles, Almino Afonso, deputado federal pelo PTB de São Paulo, seria ministro do Trabalho e Previdência Social do governo João Goulart e, em abril de 1964, cassado pelos militares e exilado por 12 anos.

***No período de dois anos e meio que antecedeu o golpe militar de 1964, ou seja, durante o

governo João Goulart, o Brasil ferveu sob um movimento de massas que só fazia crescer.A burguesia nacional brasileira estava com a faca e o queijo na mão para levar adiante seu

projeto nacional desenvolvimentista. Detinha os principais postos do Estado e liderava poderosa frente de classes. Mas lhe faltava coragem, suas limitações históricas não lhe permitiam ir além do que tinha avançado.

O movimento social, no entanto, expandia-se acelerado em busca da maior participação econômica, social e política das amplas maiorias até então apartadas. Quando o governo curvou-se ao FMI, lançando a conta do combate à inflação nas costas dos trabalhadores, estes reagiram, entre 1961 e 1963, com um número de greves superior ao ocorrido em toda a década anterior. O movi-

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mento estudantil, desde sempre ativo, agia em torno de lutas específicas, mas também em apoio às reivindicações dos trabalhadores. No campo, proliferaram ligas camponesas e o sindicalismo rural. A luta pela reforma agrária “na lei ou na marra”, espalhava-se como fogo em pradaria.

Efervescentes também os quartéis. O ponto de fervura chegou na madrugada de 12 de se-tembro de 1963, em Brasília, quando cabos, sargentos e suboficiais da Aeronáutica, seguidos por colegas fuzileiros navais, rebelaram-se contra a decisão recém-tomada pelo Supremo Tribunal Federal de reafirmar a inelegibilidade dos praças para os órgãos do Poder Legislativo. Da revolta – desde sua preparação – participou ativamente o PCdoB, a começar por seu dirigente principal em Brasília, Dynéas Aguiar, a postos na Base Aérea (chegando, inclusive, a sair com a tropa para tentar render um relutante quartel do Exército).

O movimento durou pouco. Mas radicalizou. Cerca de 600 homens das duas forças toma-ram as instalações do Departamento Federal de Segurança Pública (futura Polícia Federal), do Ministério da Marinha, da Rádio Nacional, da Estação Central de Rádio-Patrulha e do Departa-mento de Telefones Urbanos e Interurbanos. Toda a comunicação da capital com o resto do Brasil foi cortada. Oficiais foram levados para as bases aéreas de Brasília, onde ficou retido também o então ministro do Superior Tribunal Federal, Vitor Nunes Leal.

Mas, 12 horas depois tropas do Exército sufocaram a rebelião. Líderes foram indiciados num inquérito policial-militar, e condenados a quatro anos de prisão. Embora derrotado, o mo-vimento sinalizou a que ponto as turbulências políticas construíam cenários de enfrentamento.

O clima de exacerbação ideológica avizinhava-se do paroxismo, permeando a sociedade brasileira de alto a baixo. À esquerda e à direita armava-se o confronto. Partidárias das reformas, entidades do movimento popular (UNE, CGT, Pacto de Unidade e Ação, ligas camponesas, entre outras) encaravam a hostilidade crescente de representações da direita: como o Instituto de Pes-quisas e Estudos Sociais (IPES), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), a Campanha da Mulher pela Democracia, entre outras. No Rio de Janeiro, o famigerado Movimento Anticomunista (MAC) pichava muros com a indagação: “Já matou seu comunista hoje?”. E, em seguida, indicava os “comunistas” a serem mortos: “Brizola, Arraes e Aldo Arantes”. Já o CCC encarregou-se de metralhar a sede da UNE.

Em janeiro de 1963 um plebiscito ressuscitou o presidencialismo. Jango viu restaurados seus poderes e começou a governar de fato. Meses depois, enviou ao Congresso seu projeto das reformas de base (agrária, tributária, bancária, administrativa e educacional) avalizado pela Frente Parlamentar Nacionalista, que reunia deputados progressistas.

Diante da histeria da direita, Jango radicalizou o discurso nacionalista. Em 13 de março de 1964, reuniu mais de 250 mil pessoas no Comício das Reformas, ao lado da Central do Brasil,

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no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, na zona sul carioca, as janelas da classe média expunham as velas acessas do medo. Em São Paulo, na semana seguinte, milhares realizam a Marcha da Fa-mília, com Deus pela Liberdade, gritando, com um terço nas mãos, bordões anticomunistas. No dia 30, Jango discursou na festa do Clube dos Sargentos, no Automóvel Clube. O cenário estava armado para o confronto.

***Era para durar dois ou três dias, aproveitando o feriado de Finados de 1963. Durou dez,

ao cabo dos quais Dynéas Aguiar voltou a Brasília com alguns ossos da mão direita quebrados e um Inquérito Policial-Militar (IPM) nas costas.

Logo após a revolta dos sargentos, um grupo de militantes das Ligas Camponesas seguiu para o Norte goiano para estabelecer um foco guerrilheiro. Com a imediata repressão da Polícia Militar – teriam sido delatados por um desertor –, seis deles se esconderam na região do Vão dos Anjicos e, por intrincada rede de contatos, fizeram chegar a Dynéas, a quem já conheciam, a vontade de se colocar à disposição do PCdoB. Sem poder sair da região, caçados que estavam, Dynéas e mais dois companheiros decidiram ir até eles.

Viagem tormentosa. De jipe até Mato Seco, pelo areal do cerrado. Dali, quase um dia a cavalo até as margens do rio Maranhão e mais um tanto de barco a remo, e ainda a subida de um morro em cujo topo escondiam-se os insurgentes. Era noite alta. O cansaço, extremo. A conversa ficaria para o dia seguinte. Mas não houve conversa, pois a Polícia Militar atacou de madrugada. No tiroteio, um guerrilheiro foi ferido na cabeça, de raspão, enquanto um soldado levou um tiro no estômago. Na correria sob o breu da noite Dynéas despencou morro abaixo, quebrou alguns ossos da mão direita e colecionou escoriações. Com um ferido, a polícia resolveu retirar-se, do que se aproveitaram os guerrilheiros para se dispersar. Dynéas e um companheiro (o que levara um tiro de raspão na cabeça) iniciaram marcha de três dias a pé até Mato Seco, boa parte pelas margens do rio Maranhão. Depois, de carona, chegaram a Brasília, onde Dynéas retornou à che-fia do serviço de geografia e estatística da Prefeitura, não sem antes pedir que lhe descontassem os dias de ausência.

O IPM que lhe valeu a jornada ao Vão dos Angicos somou-se ao que já respondia por sua participação na revolta dos sargentos. Por essa época – meados de dezembro de 1963 – Dynéas leu no jornal Novos Rumos, do PCB, que havia sido expulso do Partido Comunista Brasileiro ao qual, no fim das contas, jamais pertencera.

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O cardeal foi educado, mas a conversa, dura

O sexagenário cardeal do Rio de Janeiro, Dom Jayme de Barros Câmara, foi educado. Houve quem percebesse até mesmo suavidade no modo como recebeu, rodeado por um séqui-to de auxiliares, aquele grupo de 15 ou 20 estudantes liderado pelo presidente da UNE e aluno da PUC Aldo Arantes. Educada, mas dura, aquela conversa no arcebispado. Afinal, o hierarca católico comunicava que, por determinação do Vaticano, seria obrigado a afastar Aldo da JUC. Por comedimento, não usou a palavra “expulsão”. Mas era disso que se tratava. Motivo: o re-conhecimento, pela UNE, em seu recém-realizado XXIV Congresso, da União Internacional dos Estudantes (UIE), sediada em Praga, na Tchecoslováquia, tida pela alta hierarquia católica como “entidade comunista”.

Ninguém perdeu a civilidade, mas Aldo foi contundente diante do cardeal. Em resumo, garantiu que, com aquele ato discricionário, a Igreja Católica cometia grave erro, afastando-se ain-da mais da juventude. Esta foi a gota d’água que azedou de vez as já deterioradas relações entre o setor mais à esquerda da JUC e a hierarquia católica. E a semente que dali em diante prosperou: a de criar uma organização independente que viria a ser, dois anos depois, a Ação Popular (AP).

Vinha de tempos o contencioso entre a chamada esquerda da JUC e a hierarquia católica. O pensamento católico progressista – estimulado, sobretudo, pelo papado renovador de João XXIII – e o impacto da Revolução Cubana em todo o continente despertaram um setor da JUC para o papel dos cristãos naquilo que eles próprios denominaram de “revolução brasileira”. No congresso que comemorou seu décimo aniversário, em 1960, no Rio de Janeiro, a JUC definiu o conteúdo dessa revolução: um ainda nebuloso “socialismo democrático”. A partir daí se forta-leceu um setor à esquerda que, já em 1960, surgia como força política estruturada no XXIII Con-gresso da UNE, em aliança com o PCB, ainda forte entre os estudantes, embora dominado pela corrente reformista. A JUC tornou-se particularmente atuante no Rio de Janeiro, sob a liderança de Aldo Arantes; em Minas Gerais, com Herbert José de Souza, o Betinho; e na Bahia, onde emer-gia a liderança de um jovem estudante de Engenharia Elétrica na Escola Politécnica e de nome algo pomposo: Haroldo Borges Rodrigues Lima.

A esquerda da JUC seguia, de fato, caminhos inaceitáveis para a conservadora hierarquia católica do Brasil. Aliava-se preferencialmente com os comunistas, defendia a Revolução Cuba-na, forçava amplo debate político em instituições até então dominadas pela férrea hegemonia católica e, talvez o pior dos delitos, defendia a escola pública. O desgaste acumulado convergiu para a tensa audiência mantida com o cardeal Jayme Barros Câmara. Tensa e definitiva. Aldo

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Arantes deixou a conversa convencido de que a experiência da JUC havia se esgotado e agora tocava criar uma organização à margem da Igreja. Começava a nascer a Ação Popular.

E foi, de fato, o que ocorreu. No último semestre de 1961, Betinho e Aldo aproveitaram as caravanas da UNE Volante, que percorreram todo o Brasil, para criar núcleos embrionários da AP. Dessa articulação resultaram três grandes encontros: em São Paulo, Minas Gerais e Bahia.

Em fevereiro de 1963, encerrados na Escola de Veteri-nária da Universidade Federal da Bahia, no bairro de Ondi-na, alheios aos trios elétricos que trepidavam as ruas da ve-lha Salvador e ao povo que os seguia na monumental festa do carnaval, algumas dezenas de jovens estudantes realizaram o congresso que formalizou a fundação da AP.

No Documento Base aprovado, a nova organização de-finia-se por um impreciso “socialismo como humanismo”, mas ainda distante da teoria – o marxismo-leninismo –, capaz de lhe conferir natureza científica e efetividade histórica. Era organização revolucionária democrático-reformista. A traje-tória – em vários aspectos conflituosa – em direção a essa te-oria marcaria os dez primeiros anos da principal organização revolucionária do Brasil na década de 1960. Ao encontrá-la, perdeu razão de ser, pois já havia no país um partido marxis-ta-leninista, o Partido Comunista do Brasil, ao qual se incor-porou entre 1972 e 1973.

Essa rica, intensa e contraditória experiência seria exa-minada vinte anos mais tarde por Aldo Arantes e Haroldo Lima no livro História da Ação Popular – da JUC ao PCdoB, escrito na penitenciária do Barro Branco, em São Paulo, onde cumpriam pena, e contrabandeado para fora dentro de um vaso de flores.

No congresso de Salvador, onde estavam presentes, entre outros, Aldo Arantes, Haroldo Lima, Duarte Pereira, Pé-ricles Souza e Betinho, surgiu a primeira coordenação nacio-nal da AP, liderada por Betinho e com a participação de Aldo Arantes, Duarte Pereira e Haroldo Lima.

Reprodução

Herbert de Souza, o Betinho

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“Vou botar a farda e enquadrar muita gente”

Seguiu a pequena, porém resoluta, comitiva rumo a Feira de Santana. Pouco mais de 100 quilômetros, a partir de Salvador, na modesta frota de um jipe, uma Kombi e um ou dois carros. Ao todo, não mais que 20 jovens dispostos a fazer de Feira de Santana um elo na resistência ao golpe militar que, nas últimas horas, lançara os tanques nas ruas para depor o presidente João Goulart.

O engenheiro eletricista Haroldo Lima recebeu a notícia no início da noite de 31 de março, ao chegar a uma assembleia da Federação dos Trabalhadores na Indústria da Bahia, nas proxi-midades da Praça da Sé. “O golpe está em curso”, disse-lhe o vice-presidente da UNE, Duarte Pereira, que acabara de chegar do Rio de Janeiro. Não houve tempo para muitos discursos. Avi-sado da aproximação de tropas do exército, que já percorriam a Rua Chile, fechando as portas do comércio e prendendo suspeitos, Haroldo saltou para o velho jipe de seu pai, e com ele uma pequena multidão. Como o jipe recusou partida, foi necessário fazê-lo pegar no tranco. Já se ou-via o rugir dos pesados caminhões militares.

Na casa de Jorge Leal Gonçalves Pereira (dirigente da AP que, seis anos depois, seria sequestrado, torturado e morto pela ditadura) articularam a resistência: retirar-se para Feira de Santana, onde o progressista prefeito Chico Pinto estaria certamente contra o golpe, e ali prepa-rar uma frente de resistência complementar às que certamente ocorreriam no Rio Grande do Sul, com a liderança do ex-governador e então deputado federal Leonel Brizola e, em Pernambuco, sob o comando do governador Miguel Arraes.

Na bagagem feita às pressas, algumas cargas de dinamite e meia dúzia de fardas daqueles que haviam recém-cursado o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), do exército. Haroldo Lima, à frente do grupo, pensou: “Vou botar essa farda e enquadrar muita gente lá pelo interior”.

Em Feira de Santana os jovens resistentes encontram um Chico Pinto disposto à luta. Reuniram-se na casa do prefeito, discursaram e fizeram planos.

***Haroldo Lima costuma dizer, não sem orgulho, que tem um pé fincado na Inconfidên-

cia Mineira e outro no movimento abolicionista. E é fato. O comendador Domingos Gomes de Azevedo, seu ancestral, perseguido após a derrota da conjuração, deixou com a família (e pes-soas próximas) a localidade de Tijuco, atual Diamantina, em Minas Gerais, e tomou o rumo do

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Norte. O clima ameno e a água boa e farta de Caetité, no vale do São Francisco, sudoeste baiano, atraíram os Gomes de Azevedo, que ali fincaram raízes. Na pequena vila, meio século depois, nasceria o neto do comendador, José Antônio Gomes Neto, futuro Barão de Caetité. Estudante de Direito no Recife, contemporâneo de Castro Alves e Rui Barbosa, ao voltar a Caetité funda o Partido Liberal, contra o Conservador. A despeito do título que lhe concedeu o Império, Gomes Neto faz-se republicano.

Trineto do barão, Haroldo Lima nasceu em outubro de 1939 na casa da família, que ainda hoje existe em Caetité. Dos Rodrigues Lima, Haroldo também descende de personalidades. Seu bisavô, Joaquim Manoel Rodrigues Lima, foi o primeiro governador eleito da Bahia, logo após a Proclamação da República. Também é Teixeira, sobrinho-neto de Anísio Teixeira.

Apesar da larga tradição das famílias, Haroldo não se envolveu com política durante seus estudos (primário e secundário) em Brumado (vizinha de Caetité), Jequié e Salvador, onde cursou o científico como interno no Colégio Marista. Somente ao ingressar no curso de Engenharia Elétri-ca, na Escola Politécnica da UFBA, em 1959, é que a política o capturou. E já no dia do trote. Ainda pintado e esbaforido pela algazarra, foi chamado por um veterano para uma conversa no dia se-guinte. O veterano era Jorge Leal Gonçalves Pereira, a quem Haroldo fora recomendado como um jovem inteligente e vivaz. Da conversa à JUC a passagem foi instantânea. E assim o trineto do Barão de Caetité, rapaz de fato curioso e perspicaz, mergulhou no movimento estudantil e na política, de onde nunca mais sairia. Logo estava na diretoria do centro acadêmico e, em seguida, na da União dos Estudantes da Bahia (UEB). Na JUC, em pouco tempo participava da coordenação estadual, onde pontificava a estudante de Solange Silvany, com quem viria a se casar.

Em 1961 Haroldo já consolidara sua liderança na universidade. No fatídico agosto daque-le ano, quando Jânio Quadros deixou a Presidência, Haroldo atuou fortemente na resistência ao golpe tentado pelos ministros militares contra a posse do vice-presidente João Goulart. Diaria-mente convocava os estudantes e o povo baiano para o Terreiro de Jesus, no centro de Salvador, onde alto-falantes ecoavam, sempre às cinco da tarde, da Cadeia da Legalidade, com a palavra de resistência e luta do governador gaúcho Leonel Brizola e do presidente da UNE, Aldo Arantes.

***Seguia a pequena, porém resoluta, comitiva no caminho de Feira de Santana. Na hora e

meia de viagem, ouvidos pregados no rádio portátil de Péricles de Souza. Nenhuma notícia de resistência no Rio Grande do Sul, tampouco em Pernambuco. O golpe, ao que parecia, marchava célere e, aparentemente, sem obstáculos. A tropa do general Olympio Mourão Filho já havia dei-xado Juiz de Fora, marchava em direção ao Rio de Janeiro. Mas a comitiva não recuou, embora

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Golpe militar de 1964, tanques nas ruas do Rio de Janeiro

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tenha desistido da primeira ação, prevista ainda para a estrada: sabotar o sistema elétrico mediante um cur-to circuito que deixaria Salvador e Feira de Santana às escuras.

Na casa do prefeito Chico Pinto o encontro que reuniu os resistentes de Salvador com dezenas de ou-tros de Feira de Santana começou com discursos infla-mados contra o golpe militar. Mas durou pouco mais de uma hora. O exército já havia tomado o quartel da Polícia Militar, de modo que as fardas do CPOR reve-laram-se inócuas para a luta.

O espaço da resistência reduzia-se dramatica-mente. E as armas? Reuniram ali a artilharia disponí-vel: uma espingarda de caça de Chico Pinto, um revól-ver calibre 22 de Péricles de Souza e um calibre 32 do motorista da Kombi. Com tão magro poder de fogo, sem notícias da reação gaúcha e pernambucana e per-cebendo o golpe avançar a passos largos, a comitiva resolveu bater em retirada. Ainda assim, buscou a der-radeira cartada: encarregou Péricles de Souza de tentar a resistência através de assembleias sindicais na região.

Na Kombi que havia sido expropriada do Mo-vimento de Educação de Base (MEB), onde Péricles atuava, embarcaram quatro dos últimos resistentes em direção a Cachoeira, município a 100 quilômetros de Feira de Santana. Dormiram as poucas horas que restavam da noite num hotel e, na manhã seguinte, 1o

de abril, partiram para a ação. Nos sindicatos rurais, intensamente criados nos quase três anos do governo João Goulart, as derradeiras esperanças de resistência

Na manhã de 24 de agosto de 1954, uma profes-sora entrou na sala da Escola Getúlio Vargas, em Vi-tória da Conquista, Sudoeste da Bahia, onde Péricles cursava o terceiro ano do primário, e pediu que os alu-

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Haroldo Lima

Péricles de Souza

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nos voltassem para casa. Estava em lágrimas. Em casa, o menino Péricles, então com 11 anos de idade, encontrou o pai colado ao rádio. Também em lágrimas, o comerciante Agenor de Souza contou ao filho que o presidente Getúlio Vargas havia se suicidado.

Três anos mais tarde já a praticava no movimento estudantil. E nunca mais a abandonou, tornando-a preocupação e atividade centrais de sua vida, levadas à extrema radicalidade.

Nascido em Vitória da Conquista em fevereiro de 1943, Péricles chegou a Salvador, com a família, aos seis anos de idade. No Ginásio Baiano de Ensino, em 1957, participou da fundação do grêmio e foi eleito seu primeiro presidente. Nesse mesmo ano estava entre os jovens que fun-daram a JEC na Bahia, da qual logo se tornou um dos dirigentes. Mas quando iniciou o científico no Colégio Central, o gosto pela política o fez se aproximar da JUC e, em seguida, da AP. É quan-do se encontra com Haroldo Lima, com quem compartilhará a militância política nas décadas seguintes. Na organização passou a ser o dirigente do setor secundarista e, como tal, membro da coordenação estadual.

Péricles contava apenas 19 anos e cursava o terceiro ano do científico. Mas não prestou vestibular. Seus horizontes já ultrapassavam as lutas meramente estudantis. Pensava agora em transformações mais radicais da sociedade e pertencia a uma organização que avançava nesse sentido. Assim, assumiu tarefas junto aos trabalhadores rurais, o que lhe exigiu dedicação inte-gral. Ingressou no Movimento de Educação de Base (MEB), iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em convênio com o então Ministério da Educação e Cultura (MEC). O MEB visava, primordialmente, à alfabetização de adultos. Mas como a Igreja Católica preten-dia disputar com os comunistas a hegemonia no movimento camponês, atuou fortemente na criação de sindicatos rurais, algo que se tornou fácil sob o governo João Goulart.

A AP valeu-se do MEB. Péricles tornou-se o responsável pela chamada Coordenação do Sindicalismo Rural. Numerosos sindicatos e federações foram criados.

Péricles já estava no MEB quando ali chegou um estudante que conhecera na JUC e com o qual selaria uma unidade política que ultrapassaria as cinco décadas seguintes: Ronald Caval-canti Freitas.

***Em sua peregrinação de quase uma semana pela região de Feira de Santana, em busca

da resistência dos sindicatos rurais ao golpe em marcha, Péricles e seus três companheiros só foram colhendo desilusões. O clima era mesmo de derrota. Uma parte dos sindicalistas já estava presa, outra havia fugido e havia ainda os que, amedrontados, não concordavam sequer em con-versar sobre o assunto. No município de Amargosa, o bispo local, antigo aliado dos resistentes,

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recebeu-os trêmulo, rogando que fossem logo embora, pois as forças militares já estavam pró-ximas. Ofereceu-lhes algum dinheiro para agilizar a saída. Cruzaram a rodovia Rio-Bahia, logo após deixar Amargosa, e já avistaram tropas em marcha. O movimento de resistência foi, então, se tornando uma viagem de fuga que terminou em duas fazendas da região, nos municípios de Itaberaba e Rui Barbosa. Ali os valentes permaneceram alguns dias, observando a evolução dos acontecimentos. Em seguida voltaram para Salvador.

***A dispersão dos que permaneceram em Feira de Santana foi mais rápida. No final da noite

de 1o de abril, Haroldo Lima e seus companheiros concluíram que, sem a reação legalista do Rio Grande do Sul e de Pernambuco, não haveria como abrir um elo de resistência na Bahia. Então a decisão dramática foi pelo recuo. Alguns retornaram para Salvador. Haroldo refugiou-se numa fazenda de conhecidos nas proximidades de Feira de Santana. Dias depois também ele voltava para a capital, carregando no velho jipe a farda de 2o tenente da reserva do exército, com a qual imaginou enquadrar os reacionários golpistas no interior da Bahia.

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O longo e acidentado caminho do Oriente

Quando Dynéas Aguiar chegou ao Rio de Janeiro, para a reunião do Comitê Central mar-cada para 28 de março de 1964, em Niterói, o golpe contra o presidente João Goulart já estava em marcha. Apenas o exército ainda não havia saído às ruas, o que viria a ocorrer dias depois, quando o general Olympio Mourão Filho desceu com suas tropas de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro.

Desde o início do ano a expectativa de golpe já estava mais ou menos generalizada. Para a direita, seria desferido por Jango, em conluio com os comunistas, para instalar no país uma repú-blica sindicalista. Para a esquerda, o golpe estava sendo urdido pela direita, contra as conquistas democráticas e os avanços sociais do governo.

Reorganizado havia apenas dois anos, o PCdoB via-se tangido a demarcar fortemente sua ação com relação ao reformismo do PCB, modo de vincar, sem deixar dúvidas, sua natureza revolucionária. Assim, enquanto o PCB alimentava ilusões quanto ao governo Jango (incluindo a expectativa da legalidade), o PCdoB partiu para a oposição total. Chegou a pregar abstenção no plebiscito de janeiro de 1963, que decidiu entre parlamentarismo e presidencialismo, e criticou o Comício da Central do Brasil, realizado em 13 de março de 1964, ponto alto da luta pelas refor-mas de base de João Goulart. Quando, diante da quase certeza do golpe, resolveu flexibilizar essa postura para apoiar o governo em questões específicas, já era tarde. A deposição do presidente se consumaria, inelutavelmente, três dias depois.

***No dia 2 de abril João Goulart ainda era presidente, embora já cumprisse rota de exílio. De

Porto Alegre, voava para sua fazenda Rancho Grande, em São Borja, onde o esperavam a mulher, Maria Thereza, e os dois filhos pequenos. Mas a direita lacerdista já comemorava, com o estrépito de sempre, o sucesso do golpe. A Marcha da Vitória, abençoada pelo cardeal Jayme Câmara, serpente-ava pelo centro do Rio de Janeiro. No meio da multidão, eufórica e ridente, dois estranhos no ninho golpista marchavam alheios à folia, visivelmente apressados e divididos entre a revolta e a vergo-nha: Dynéas Aguiar e Daniel Callado, o jovem camarada de Niterói, jogador de futebol varzeano e brincalhão que, dez anos depois, tombaria no Araguaia. Em busca de uma condução para o aero-porto do Galeão, não tiveram alternativa senão cruzar a marcha e acompanhá-la por algum tempo. Submetidos ao ritmo lento da caminhada, ainda assim chegaram a tempo de embarcar, pouco antes de os militares interditarem o aeroporto. Seguiram para Zurique, mas o destino final era Pequim.

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Por medida de segurança, foram aten-tamente observados por um camarada à dis-tância: o jovem André Grabois que, nove anos depois, em outubro de 1973, também tombaria no Araguaia, antecedendo em dois meses a morte do pai, Maurício Grabois, o comandante da guerrilha.

Na madrugada do dia 4, quando Dy-néas e Daniel já se encontravam em Berna, Suí-ça, à espera das passagens para Pequim, Jango desembarcava em Montevidéu com a família, para um longo e pesaroso exílio que só termi-naria 12 anos depois, com sua morte.

***Desde a reorganização de fevereiro de

1962, o PCdoB vinha construindo lentamente suas relações internacionais. Contou com o apoio dos cubanos. Convidados para o 1o de maio de 1963 em Havana, João Amazonas e Maurício Grabois fizeram contato com repre-sentantes do movimento comunista interna-cional, principalmente com o Partido Comu-nista da China (PCCh) e o Partido do Trabalho da Albânia (PTA).

Tanto o PCdoB quanto o PCCh necessi-tavam recompor suas relações internacionais, abaladas com o rompimento de ambos os par-tidos com a nova orientação – reformista – da União Soviética e da ampla maioria dos 87 par-tidos comunistas então existentes no mundo. Mais tarde, o PCdoB estreitava relações com o PTA, que cumulou o partido com forte solida-riedade militante, inclusive abrindo na rádio

Arquivo Fundação Maurício Grabois

Amazonas e Lincoln Oest com Mao-Tse-Tung em Pequim, 1963

Folha de S. Paulo

Jornal Folha de S. Paulo noticia a ida de militantes do PCdoB para treinamentos de guerrilha na China

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Tirana um espaço para programas em português, produzidos e transmitidos por um total de dez casais de comunistas brasileiros que lá se revezaram entre 1968 e 1990.

Dirigentes do PCdoB realizaram diversas visitas a Pequim. Ainda em 1963 lá estiveram João Amazonas e Lincoln Oest, recebidos por Mao Tsetung. Entre 1964 e 1966, o Partido enviou três turmas – cerca de 30 militantes, ao todo – para cursos de formação política na China. A pri-meira delas foi a chefiada por Dynéas Aguiar, em abril de 1964.

***Viagem acidentada de Zurique a Berna, onde a dupla aguardou pacientemente que che-

gasse a passagem para Pequim. Mas o que receberam foi um bilhete para Praga, onde quase foram presos por desembarcarem sem visto de entrada e sem poderem se comunicar. Afinal embarcados, ainda tiveram que trocar de avião numa Moscou congelada antes de seguir para o destino final.

Em Pequim Dynéas conheceu o restante da delegação que, como membro do Comitê Cen-tral, iria chefiar. Eram nove. Entre os poucos que conhecia estava um negro de quase dois metros de altura que conhecera nos tempos da UJC: Oswaldo Orlando da Costa, o mítico Oswaldão que, três anos depois se transferiria para o Araguaia, onde se tornou lenda entre a população local. Da delegação também participava o economista gaúcho Paulo Mendes Rodrigues, que anos depois desapareceria no mesmo Araguaia.

Os chineses colocaram à disposição dos brasileiros um intérprete que falava espanhol e que passou a morar com eles, acompanhando-os onde quer que fossem. Nos seis meses seguin-tes dividiram-se entre aulas, estudo, filmes, debates e visitas aos locais históricos da revolução. A parte teórica consistia em examinar a experiência da revolução chinesa com base no pensamento de Mao Tsetung. Esta era, aliás, a base teórica quase exclusiva para tudo o que se fazia por lá. Tan-to que Dynéas, certa ocasião, surpreendeu-se ao não encontrar na biblioteca da escola nenhuma obra de Marx, Engels, Lênin e Stálin.

A longa estadia na China terminou em meados de setembro de 1964, mas três dos nove cursistas ainda permaneceram em Pequim. Dynéas, Diniz Cabral Filho e Paulo Mendes Domin-gues estavam sendo procurados no Brasil e deveriam aguardar instruções sobre como voltar em segurança ao país. A demora em partir permitiu que o trio participasse das comemorações pelos 15 anos da revolução de 1949, no grande palanque de autoridades erguido na Praça da Paz Ce-lestial, com direito a dividi-lo, embora à considerável distância, com a trinca dos mais notáveis: Mao Tsetung, Lin Piao e Chu En-lai. Por fim, ao cabo da temporada, um inesperado, longo e farto almoço com Deng Xiaoping, o secretário do Comitê Central do PCCh, que logo cairia em desgra-

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ça, com a Revolução Cultural, para ressurgir no final dos anos 1970 como o principal arquiteto da gigantesca China socialista no século XXI.

Quando, enfim, voltou ao Brasil, depois de passar por Paquistão, Itália e Argentina, Dy-néas cruzou a fronteira em Passo de Los Libres e ingressou em Uruguaiana, no sudoeste gaúcho, portando os mesmos documentos legais usados quando embarcou no aeroporto do Galeão, seis meses antes. Era um homem perseguido. Cassado pelo primeiro ato institucional da ditadura, nos primeiros dias de abril, estava respondendo a dois IPMs: um pelo levante dos sargentos de Brasília, outro pelo enfrentamento armado na região do Vão dos Angicos, em Goiás, ambos no final de 1963.

Do Partido recebeu documentos falsos e nova missão: instalar-se no interior de Goiás.Coincidência ou não, quando cessou o envio de turmas do PCdoB para cursos na China,

em 1966 começaram as da AP, acertadas pelo dirigente principal da organização, Aldo Arantes, que lá esteve numa primeira visita oficial, nesse mesmo ano.

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Os 15 dias que abalaram a AP

Os 15 dias que Aldo Arantes passou na China, no segundo semestre de 1966, trariam con-sequências dramáticas para o futuro da AP. A organização nem era marxista, mas influente no movimento social brasileiro, e os chineses vislumbraram a possibilidade de conquistá-la para o pensamento Mao Tsetung, algo que não obtiveram com o PCdoB. O Partido mantinha-se fiel ao leninismo como a segunda e ainda não superada etapa do marxismo.

Quando terminou o mandato de presidente da UNE, em julho de 1962, Aldo Arantes par-ticipou do congresso da União Internacional dos Estudantes (UIE), em Leningrado, na União So-viética. Em seguida, visitou Tchecoslováquia, Polônia, Bulgária e Iugoslávia. Absorvia, curioso, as experiências socialistas. Mas somente alguns anos mais tarde é que a AP sentiria a premente necessidade de encontrar um instrumento teórico capaz de melhor situá-la na luta revolucioná-ria brasileira. O convite feito pelos chineses caiu, então, como uma luva.

***As primeiras notícias do golpe em marcha contra o presidente João Goulart, em 31 de

março de 1964, colheram Aldo em Belo Horizonte, em uma reunião da AP. Seguiu imediatamen-te para Brasília, aonde chegou a tempo de comparecer à sessão extraordinária do Congresso Na-cional convocada para examinar a crise. Quando assistiu ao senador Auro de Moura Andrade, presidente do Senado Federal, comunicar que o chefe da Nação havia deixado a capital – por-tanto declarando vago o cargo –, Aldo se destacou no tumulto que tomou conta das galerias, ao berrar: “Fascista! Fascista!”. Foi salvo da prisão por um grupo de parlamentares capitaneado por Plínio de Arruda Sampaio e Rogê Ferreira.

Em assembleias na Universidade de Brasília e reuniões no Teatro Nacional e ainda em articulações de bastidores, Aldo tentou, obstinadamente, organizar a resistência. Mas os tanques que já faziam trepidar as largas avenidas da cidade impunham a força categórica do golpe re-cém-perpetrado. A casa que Aldo já havia abandonado fora invadida pela polícia, que o buscara também na Superintendência de Política Agrária (Supra), onde passara a trabalhar logo após dei-xar a Presidência da UNE. Dadas as circunstâncias, resistir passou então a ser sinônimo de fuga.

Após esconder-se por um mês na fazenda de um tio em Goiás, Aldo deixou o país junto com Betinho e a psicóloga e também militante Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, a Dodora, com quem estava casado – trilhando uma intrincada rota que passava por Campo Gran-de, Pedro Juan Caballero, Assunção, Buenos Aires e terminava em Montevidéu. Na capital uru-

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guaia, articulou-se com Leonel Brizola que, por sua vez, estudava com setores da Brigada Militar gaúcha um modo de enfrentar os militares golpistas. No segundo semestre Aldo recebeu a visita de Dynéas Aguiar que, em nome do Comitê Central do PCdoB, lhe entregou o documento O gol-pe de 1964 e seus ensinamentos. Ainda naquele ano Aldo estivera quatro ou cinco vezes no Brasil, clandestino, procurando reagrupar a AP. Essas viagens resultaram na constituição do Comando Nacional, composto por Aldo, Betinho e Duarte Pereira, núcleo a partir do qual a organização seria recomposta, e ao qual se agregariam, nos anos seguintes, Haroldo Lima, Renato Rabelo, Paulo Wright e Jair Ferreira de Sá.

Acompanhado por Betinho, Dodora e o filho André, nascido em Montevidéu, Aldo voltou definitivamente ao Brasil um ano depois do golpe, em 1965. Haviam recebido de Brizola, como presente pessoal, cinco mil dólares, que utilizaram para a reorganização da AP.

***Mineira de Belo Horizonte, terceira de uma família de 13 filhos, Dodora formou-se em

Psicologia na Universidade Católica de Minas Gerais. Como dirigente da ala feminina da Juven-tude Estudantil Católica (JEC), transferiu-se para o Rio de Janeiro, em 1961. Acolhida pela PUC carioca, ali conheceu o estudante de Direito Aldo Arantes, com quem se casaria em dezembro de 1963, dias depois de formar-se, já de volta a Belo Horizonte. Da JEC, Dodora seguiu diretamente para a AP, de cujo processo de formação participou.

Em São Paulo, em 1966, um ano após retornar ao Brasil, nasceu a filha Priscila. Enquanto Aldo, profissionalizado pela AP, tratava de recompor a organização no país, Dodora dividia-se entre a militância, o trabalho em escolas de primeiro e segundo graus de amigos e simpatizantes e a criação dos filhos.

***Da série de debates travados em Pequim, e das anotações copiosamente registradas

por Aldo, resultou um documento de não mais de 15 páginas sob o título Teoria da Revolução Chinesa – logo abreviado para TRC. Mas a designação que o consagrou foi “documento ama-relo”, em razão da cor da capa sob a qual foi apresentado. Mimeografado, o texto circulou por toda a organização. As questões que abordava (marxismo-leninismo, movimento operário e camponês, linha de massas, partido de vanguarda, guerra popular e frente única) incendiaram ainda mais o debate no interior da AP. Tanto que, meses depois de sua publicação, já em 1967, a direção nacional decidiu desencadear o chamado Debate Teórico e Ideológico (DTI). A AP acelerava o passo em direção ao marxismo, ainda que pelas mãos do pensamento de Mao Tse-tung, fundando as bases para sua incorporação do PCdoB, cinco anos mais tarde.

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De volta aos bancos da escola

Chovia copiosamente em Salvador na noite de 12 de abril de 2010. Mas o auditório da Reitoria da UFBA estava lotado. Companheiros, amigos, familiares, ex-colegas de José Rena-to Rabelo ali estavam para prestigiar a solenidade de sua reintegração ao curso de Medicina que ele abandonara no quarto ano, em meados de 1966, acossado pelas baionetas da ditadura. Quarenta e quatro anos separando os extremos dessa história que, nas palavras de Conchita, a companheira desde sempre, foi costurada com “renúncias, ausências, encontros e desencon-tros”, com os quais, ao cabo de tanto tempo, aprenderam a conviver.

O quase meio século dessa trajetória começara ali mesmo, diante do prédio da Reitoria, no bairro de Canela, em Salvador. Em seu discurso, Renato o recordou.

Junho de 1966. Presidente da União dos Estudantes da Bahia (UEB), Renato decidiu bancar a encenação, no espaço do restaurante universitário, da peça Aventuras e desventuras de um estudante, libelo contra o autoritarismo vigente no Colégio Central de Salvador que um gru-po de teatro amador formado por estudantes secundaristas tentara, sem sucesso, representar, impedidos pela direção do colégio. Mas a apresentação no território universitário, que reuniu mais de três mil pessoas, também não ocorreu, dissolvida a cacetadas pela Polícia Militar.

O ato de protesto contra a repressão, marcado para o dia seguinte, diante da Reitoria, até que ia bem, com a polícia à distância, quando então apareceu o ministro Juracy Maga-lhães, das Relações Exteriores. Identificado no automóvel em que seguia com seu ajudante--de-ordem e fortemente apupado, ele desceu do carro e afrontou a multidão. A cena, que ocorria nas bordas da passeata, logo chamou a atenção. Ânimos exaltados, uma pedra atin-giu o ajudante-de-ordem no rosto. Ensanguentado, ele voltou ao carro com Juracy e saíram cantando pneus. As vaias ensurdecedoras só cessaram quando a PM, de imediato, passou a agir, atacando a manifestação.

Na dispersão que se seguiu Renato, talvez o mais visado entre os líderes, meteu-se pelo labirinto do hospital universitário, atrás da Reitoria, que conhecia bem, e dali seguiu para esconder-se na casa de amigos. A situação se agravara. Responsabilizado pelas manifestações, foi indiciado num IPM da Polícia Militar, com foto publicada nos jornais. Nas casas de familia-res e amigos, a polícia realizava batidas à sua procura. Assim, viu-se tangido a mergulhar na clandestinidade. Despediu-se da cidade, do curso de Medicina e da vida legal, não sem antes encontrar-se com o pai, inconformado com o destino do filho, mas solidário. Encontro clandes-tino dentro de um automóvel circulando por vielas de Salvador.

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Renato não viveu muito mais que dois anos na pequena Areias (atual Ubaíra), no grande Recôncavo baiano, cerca de 100 quilômetros de Salvador, onde nasceu em 1942. Logo a família – pais e quatro irmãos – transferiu-se para Santa Inês, onde o pai chefiou o escritório local da Cor-reia Ribeiro, empresa que comercializava o café produzido na região. Mantinha a empresa, uma fazenda modelo para a produção de um café nobre destinado à exportação. Foi para essa fazenda que a família se transferiu, após uma temporada de quatro anos em Santa Inês.

Por alguns anos o menino viveu vida mansa num bangalô com calefação e água quente para o banho, mordomia interditada às famílias mais humildes. Para cursar o ginásio, seguiu para Santo Antônio de Jesus, cidade próxima, vivendo com uma tia. Concluído o curso, mudou-se para Salva-dor, para onde o pai, Renato Rabelo Sampaio, transferiu a família, desejoso que os filhos cursassem a universidade. Ali nasceu o irmão caçula e morreu a mãe, Maria de Brotas Rabelo.

A política alcançou Renato ainda cedo, quando cursava o ginásio no Colégio Santo Antô-nio de Jesus. Ali, presidiu o grêmio e ingressou na JEC, cujas atividades de estudos, debates, en-contros, esporte e recreação alimentavam o cotidiano geralmente modorrento e sem perspectivas da juventude interiorana. Para a mãe, uma benção. Quem sabe o pequeno Renato, entrosado na JEC, viesse a ser o filho que gostaria de ver padre.

Mas a JEC não o levaria nem à Igreja, nem à política. Foi o contato com os universitários da JUC, a partir da campanha da legalidade, em agosto de 1961, que o inspirou para a participa-ção política. Ainda secundarista, ele foi assíduo nos grandes encontros estudantis realizados no Terreiro de Jesus, centro de Salvador, nos tormentosos dias do final de agosto de 1961, quando a multidão de estudantes ali se reunia para ouvir, dos alto-falantes, as transmissões da Cadeia da Legalidade através da qual o governador gaúcho Leonel Brizola mobilizava o país contra o gol-pe militar que tentava impedir a posse de João Goulart. Ali Renato também ouvia, atentamente, a palavra inflamada de um estudante da Escola Politécnica com quem viria a conviver – como amigo e camarada – pelas décadas seguintes: Haroldo Lima. E, pelo chiado dos alto-falantes, captava a voz trovejante de outro companheiro para toda a vida: o jovem presidente da UNE Aldo Arantes. Alguns anos depois, poucos, seriam três dos principais dirigentes da AP e os que lideraram sua incorporação ao PCdoB, em 1972.

Vida dura. Morava no Bonfim, estudava e trabalhava ao mesmo tempo. Já aos 14 anos, em Salvador, gramava nas Águas Minerais Itaparica pelas manhãs, como escriturário. À tarde, cursava o científico e, à noite, contabilidade. Com casa frente ao mar, no fundo da baía de Todos os Santos, a recreação possível era nadar aos domingos, único dia de folga.

Trabalhava, estudava e se relacionava com os universitários. Afinal, descortinara na atu-ação política um sentido para a vida que tanto buscara; um sentido para além do que vivia coti-dianamente.

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Na JUC ingressou quando entrou na Faculdade de Medicina, em 1963. E ali progrediu fa-cilmente, indo logo para a equipe de direção estadual. Em 1965 foi eleito presidente da poderosa UEB por indicação de Haroldo Lima, que já era da AP. Da JUC à AP, um pulo.

***Semanas após ter deixado Salvador com a repressão política nos calcanhares, Renato es-

tava em Belo Horizonte. No porão da Igreja de São Francisco de Assis, sob os rigores da clan-destinidade, realizou-se o 28o Congresso da UNE. Renato foi eleito vice-presidente na chapa encabeçada pelo mineiro José Luiz Moreira Guedes.

Terminado o congresso, encontrou-se, nas cercanias da capital mineira, com a estudante Conceição Leiro, a Conchita, liderança da Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Sal-vador que, apesar de delegada ao congresso, dele não participou uma vez que a polícia já o havia cercado. Namorados havia alguns meses, Renato e Conchita se casariam no início de outubro, no Rio de Janeiro, numa cerimônia semiclandestina na igreja Nossa Senhora de Copacabana, assistida por uns poucos amigos e familiares. Convidados por Nair e José Luiz Guedes, passaram a dividir com o casal de companheiros o quarto e sala no mesmo bairro que eles já ocupavam, cujo aluguel era bancado pelo pai do recém-eleito presidente da UNE. Espaço exíguo que, entretanto, os quatro dividiam com outros diretores da entidade, em frequente passagem pelo Rio.

Renato percorria o país. Conchita militava junto aos companheiros do Rio e fazia bicos para sobreviver. Mas o dinheiro era curto – havia dias em que não tinham o que comer – e a inse-gurança, muita (a ditadura colocara a UNE na ilegalidade). Mas todos eram jovens demais e em-penhados demais em seus sonhos para recuar diante da vida difícil e arriscada. Estavam todos com vinte e poucos anos, resistir à ditadura e sonhar com o socialismo era imperativo de vida.

Em apenas uma viagem Conchita, já avançada na gravidez, acompanhou Renato. Percor-reram as capitais do Nordeste – menos, obviamente, Salvador. Em Olinda, um intervalo român-tico, embora pobre, quebrou a aspereza do corre-corre militante: a noite quente e silenciosa que passaram juntos numa casinha diante do mar, sobre a única coisa que lá existia: uma rede.

No segundo semestre de 1967, já tendo deixado a UNE, Renato seguiu para um curso de seis meses na China. A pequena delegação brasileira – quatro ou cinco militantes – viajou sepa-rada, reencontrando-se apenas em Pequim. Dela fazia parte um piauiense que morara e estudara em Salvador, compartilhando com Renato as experiências da JUC e da recente Ação Popular: Ronald Cavalcanti Freitas.

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Em Teresina, cursando o colegial no Liceu Piauiense Za-carias de Góes, o jovem Ronald, bom em matemática e física, so-nhava ingressar no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA). A vida, no entanto, lhe reservaria trajetória diversa, acidentada, muito além da calmaria e exatidão dos números. Renunciou a alguns sonhos, assumiu outros e, ao cabo, amargaria 15 anos nas sombras, emergindo da clandestinidade política somente após a lei da anistia, promulgada em agosto de 1979.

Ronald viveu até os 12 anos em Piripiri, a cidade piauiense onde nasceu, em outubro de 1941, filho de um agricultor e peque-no produtor de cera de carnaúba e de uma funcionária pública. Família pequena: Ronald, a irmã Carmem e os pais. Ao mudar-se para Teresina, para seguir nos estudos, deixou para trás a gela-deira a querosene e a luz baça, bruxuleante das lamparinas que havia iluminado sua infância e os primeiros anos da adolescên-cia. Novos tempos, novos sonhos. O primeiro deles: formar-se engenheiro no ITA. O caminho mais curto: a escola preparatória de cadetes da Aeronáutica, um curso secundário que, ao final, poderia levá-lo diretamente ao ITA sem a tortura das rigorosas seleções. Ronald prestou os exames na Base Aérea de Fortaleza e passou, mas foi reprovado por daltonismo. Contentou-se em prosseguir no Liceu. No segundo grau, dividia-se entre os estu-dos e as aulas de matemática e física que ministrava no Colégio Arquidiocesano de Teresina, sob a direção dos jesuítas.

Mas Ronald queria mais. Então se mudou para Salvador, onde iniciou o curso de matemática na Universidade Católica e prosseguiu, na UFBA, o de Filosofia, que iniciara em Teresi-na. Ao mesmo tempo, dava aulas – também de matemática e física – no Colégio Antônio Vieira e trabalhava no Movimento de Educação de Base (MEB), onde participava da coordenação estadual. O jovem Ronald via-se às portas da política, que logo o engolfaria – algo também facilitado por seu ingresso na JUC, caminho mais ou menos natural dos jovens universitários com ideias progressistas.

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Corria o ano de 1962, o movimento social agigantava-se e estendiam-se e se radicalizavam os confrontos políticos. A UNE percorria o país implantando seus centros populares de cultura.

O MEB havia sido criado nessa época pela Igreja Católica, visando a aproximá-la do mo-vimento camponês, então sob a influência predominante do PCB. Consistia na alfabetização de adultos a partir do método audiovisual de Paulo Freire e da experiência das escolas radiofônicas criadas no Rio Grande do Norte. Havia forte acento na conscientização social e política incluindo, complementarmente, a formação de sindicatos rurais. As comunidades mais longínquas recebiam rádios de pilha especialmente produzidos pela Philips e calibrados para sintonizar apenas a Rádio Sociedade de Feira de Santana, pertencente aos franciscanos, que transmitia diariamente as aulas.

A atuação de Ronald na JUC baiana foi intensa, chegando à direção estadual. Já no movi-mento estudantil, foi breve e pouco significativa. Concentrou-se no MEB. É que o movimento o colocara junto aos camponeses, segmento social amplo, injustiçado e sob dura exploração, num trabalho – o da alfabetização – que em muito os ajudaria em sua emancipação. O MEB oferecia outra vantagem: um salário módico, mas indispensável para a sobrevivência.

No período em que Ronald ingressou na JUC, o setor de esquerda dessa organização, ao qual se ligara, já se apartava da hierarquia católica e realizava reuniões às quais ele compareceu e que desembocariam na criação da AP no ano seguinte. Ali conheceu, entre outros, o militante político Péricles de Souza, o engenheiro eletricista recém-formado Haroldo Lima e, mais adiante, o estudante de medicina Renato Rabelo. Com eles compartilharia as vicissitudes da luta revolu-cionária nas décadas seguintes, primeiro na AP, depois no PCdoB.

Em meados de 1964 o MEB foi fechado. A ditadura avançava sobre os remanescentes do regime democrático deposto. A repressão fustigava atos e intenções, encurralava aquela geração que vinha participando muito intensamente de um amplo e avançado movimento político e so-ciocultural no início dos anos 1960 e se propunha mudar o Brasil e o mundo. Aos 23 anos, indig-nado e subitamente ceifado em suas perspectivas, Ronald Cavalvanti Freitas resolveu enfrentar a ditadura. E a radicalidade militante com que estava disposto a fazê-lo o levaria, fatalmente, à clandestinidade. Esta, no entanto, se antecipou, e de modo algo fortuito, quando cedeu seu passaporte para um companheiro e, de alguma forma, o documento caiu nas mãos da polícia. Previdente como sempre, Ronald não vacilou. Conversou com os pais, explicou-lhes suas opções políticas, despediu-se e mergulhou nas sombras da clandestinidade.

***No segundo semestre de 1967 a AP fervia em meio ao debate teórico-ideológico e caminhava

para o marxismo, pela via do maoísmo, quando enviou uma primeira turma para curso na China.

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Ronald, desde que submergira na clandestinidade, integrava a Comissão Nacional Cam-ponesa, dedicando-se a escolher áreas prioritárias para o trabalho político da AP junto aos cam-poneses, concentrando sua ação nos estados da Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará. Ali tam-bém se ocupava em localizar as chamadas “áreas estratégicas” ou “áreas especiais”, potencial-mente aptas para o futuro desenvolvimento da luta armada.

Estava nessa lida quando lhe chegou a convocação para a viagem à China. Partiu para São Paulo, onde recebeu orientações. Em seguida, viajou para o Rio Grande do Sul. Em Jaguarão, atravessou a fronteira uruguaia e, em Montevidéu, seguiu para Paris. Seus documentos eram falsos, mas na capital francesa, por precaução, recebeu outros dos militantes da AP lá exilados. Passou uma noite em Islamabad, no Paquistão, e desembarcou em Pequim em plena Revolução Cultural. Em Nanquim, em cuja academia militar passaria os próximos seis meses, conheceu os demais membros da miúda delegação de apenas cinco pessoas, que incluía um velho conhecido: Renato Rabelo.

Foram três meses de estudos e três meses de viagens pelos cenários da revolução chinesa. Hospedados num sobrado da Academia Militar de Nanquim e compenetrados na missão que os levara à China – preparar a luta revolucionária no Brasil – mergulharam na teoria da revolução chinesa, em particular no que se relacionava à guerra popular. Ao cabo da parte teórica, sustenta-da basicamente no pensamento de Mao Tsetung, cumpriram estágio de uma semana no Exército Popular de Libertação, onde trocaram os livros por fuzis e treinaram tiro, movimentos de tática e estratégia militares, guerra de guerrilhas e marchas.

Durante os últimos três meses da temporada viajaram pelo grande país. Era o auge da Revolução Cultural. Assim, volta e meia defrontavam-se com a agitação da época. No sul da China presenciaram uma confusão, um bate-boca entre guardas vermelhos, o que foi explicado pelo intérprete como uma simples contradição do seio do povo, como os chineses se referiam aos seus conflitos internos. O grupo de brasileiros passou incólume pelo tumulto. Ronald e seus companheiros vestiam um fardão azul, com gola estreita fechada no pescoço, o mesmo traje com que os chineses se apresentavam na época. Nos braços, um bracelete indicava tratar-se de uma brigada revolucionária. E, pelas fisionomias, de uma brigada de estrangeiros, o que de certo modo o protegia.

Em outra ocasião, presenciaram, embora à distância, um dos mais típicos movimentos da Guarda Vermelha: o desfile com personagens tidos por contrarrevolucionários. Por mais que achassem a Revolução Cultural um movimento instigante de afirmação da ideologia proletária (mais tarde relativizariam essa avaliação), os brasileiros não deixaram de se penalizar com o sujeito montado num burrico, em cuja cabeça os jovens exaltados meteram um chapéu de papel

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ridículo, e que carregava pendurados sobre o peito e as costas, cartazes em que acusava a si pró-prio com as ofensas ideológicas mais desmoralizantes para a época. E sempre que presenciavam cenas assim, os brasileiros não deixavam de sentir-se condoídos.

Voltariam a defrontar-se com a Guarda Vermelha em situações menos agressivas, como no grande desfile de 1o de outubro de 1967, comemorando os 18 anos da revolução. Estavam no enor-me palanque armado na Praça da Paz Celestial, onde também se encontravam, embora distantes, os notáveis da China socialista, a começar por Mao Tsetung, Lin Piao e Chu-En-lai. Mas no ban-quete que se seguiu, no Palácio do Povo, a surpresa que fez tremer os 25 anos de Renato e Ronald: apertar a mão de Mao Tsetung, o gigante da luta socialista, o supremo pensador da revolução.

Os brasileiros retornaram obedecendo às normas habituais de segurança: cada qual por uma rota, saltando de um país a outro, entre os que ainda não haviam sucumbido às ditaduras na América Latina, até atingir a fronteira uruguaia e reingressar no Brasil.

***Ronald Freitas, revigorado pela temporada chinesa, retomou seu trabalho junto ao mo-

vimento camponês, com ênfase ainda maior na definição das “áreas estratégicas”, objeto de cir-cunstanciado trabalho da Comissão Militar da AP, da qual participava com Renato Rabelo, Ha-roldo Lima e Dilermando Toni, entre outros.

***Quando Renato Rabelo reencontrou os companheiros em São Paulo, em maio de 1968,

após seis meses sem qualquer notícia da organização e da família, soube que Conchita havia dado à luz uma menina.

Grávida, ela vivera de casa em casa, à mercê da solidariedade de amigos e simpatizantes, até que a própria AP alugou um sobrado no bairro do Ipiranga, ali abrigando Conchita, Nair e José Luiz Guedes (que já havia deixado a Presidência da UNE), Rogério Lustosa e sua mulher e ainda um secundarista gaúcho que, com Guedes e Rogério, compunha a Comissão Nacional Estudantil da organização.

Vida áspera. Comum passarem semanas comendo só mortadela, a fome também en-frentada com balas de açúcar com côco. Na feira livre, trocavam jornais velhos por legumes e verduras. Fora um ou outro trabalho eventual (sempre a longos intervalos), sobreviviam com minguados recursos repassados pela AP e com a rarefeita ajuda que as famílias conseguiam re-meter. Além disso, os sentidos permanentemente atentos à segurança. A tal intranquilidade se somavam as incertezas sobre quando Renato retornaria da China. Ainda assim, Conchita pros-

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seguia a atuação política: estudos, reuniões, panfle-tagens, pichações, comícios relâmpago na periferia, contatos com simpatizantes. Ela estava entre os tra-balhadores que, no histórico 1o de maio de 1968, na Praça da Sé, invadiram o palanque e de lá enxota-ram as autoridades da ditadura. Deixara Nina, de pouco mais de quatro meses, com uma vizinha. E se fosse presa?

Nina nasceu em dezembro de 1967. Médicos simpatizantes da AP se encarregaram do pré-natal. O parto, Conchita sofreu-o num hospital público, aguardando a hora num corredor, sobre maca ge-lada, só com sua inexperiência e suas dores. Mais tarde, a cotidiana solidariedade dos amigos e dos militantes foi decisiva para ela iniciar-se enquanto mãe, procurando compensar a ausência de Renato.

Cinco meses depois Renato apareceu diante do sobrado do Ipiranga. Não pregara os olhos na noi-te anterior, passada num hotel, à espera de que lhe fornecessem o endereço onde a mulher e a filha se encontravam. Ainda na calçada, Conchita o abraçou sem atentar para as conveniências da segurança. Ao aproximar-se, entre tenso, saudoso e emocionado, e vislumbrar pela janela o bebê de pouco mais de cinco meses sereno num bercinho, Renato não se conteve: pulou a janela e atirou-se em direção à filha.

Poucos meses depois, quando o país começa-va a ferver com o ascenso do movimento estudantil contra a ditadura, sobretudo após o assassinato do secundarista Edson Luiz de Lima Souto, em fins de março de 1968, no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, Renato, Conchita e a pequena Nina toma-ram o caminho de Goiás. Nova missão o esperava. Deste feita, entre os camponeses.

Arquivo pessoal

Renato Rabelo e Conchita (dir.) com a filha Nina

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Ratazanas em fúria na terra do cacau

Na palhoça de um cômodo a zoada acordou o rapaz em plena madrugada. Ele buscou a lamparina – o fifó – ao lado da esteira de palha sobre a qual dormia e a acendeu. A chama clareou a escuridão com sua luz baça e bruxuleante. O rapaz a dirigiu ao barulho que não cessava. Então viu as ratazanas quase ao pé da esteira, afoitas, aos saltos e guinchos tentando alcançar os pe-daços de jabá sobre a mesa. Ele apanhou o facão do qual não se afastava nem mesmo ao dormir e com ele cortou o ar seguidas vezes, de um lado para outro. As ratazanas fustigavam-no com seus olhinhos selvagens e cobiçosos. E o rapaz lhes devolvia seu olhar de medo. Golpeava com o facão o chão de terra batida da palhoça e as ratazanas recuavam. Mas logo estavam de volta, aos saltos e guinchos em direção ao jabá que não conseguiam alcançar. E o moço vibrava o facão do ar, elas se afastavam, depois voltavam e assim a madrugada se consumiu na luta empatada entre homem e ratazanas que, ao amanhecer, bateram em retirada.

O rapaz chegara havia pouco na fazenda do “seu França”, nas redondezas de Buerare-ma, mas já percorrera outras paragens da vasta região cacaueira de Itabuna e Ilhéus, no sul da Bahia. De fazenda em fazenda, como diarista. Fazendo pouco da magreza, exigia o mais pesado, colher cacau no topo do morro, suportar nos ombros toras de madeira morro abaixo, carregar e descarregar caminhões com cascalho sob chuvas torrenciais. O magricela se esfalfava, as mãos chegavam a sangrar, ele as cobria de terra para ninguém perceber. Mas dava conta do recado. Desejava o duro, não o fácil. Entre os que davam duro estavam potenciais revolucionários, e essa gente é que lhe interessava. E assim mourejava o dia inteiro, derrubando à noite o corpo exausto sobre o chão batido do casebre de pau a pique e telhado de palha que ocupava.

Quando chegou à fazenda teve logo que explicar o uso do relógio, prerrogativa de patrão. Teria roubado? Não, presente de aniversário de um parente bem ajeitado na vida. História aceita de pronto, até porque todos dele se beneficiaram. Hora do almoço e o rapaz adiantava um pouco o relógio, para depois atrasá-lo. Queria mais tempo de prosa. O pessoal, mais tempo de folga.

Outra explicação ele deveu aos diaristas quando correu que sabia ler. Trabalhara com gente que sabia ler e o ensinou, disse. E passou a ler para os diaristas, à luz de lamparinas, das páginas de um livro sobre a Revolução Praieira que carregava consigo. Lia e traduzia para o rude entendimento dos atentos ouvintes, romanceando fatos e circunstâncias. Tinha vez que a lingua-gem do livro fugia à compreensão do próprio rapaz, que então fingia ler, mas na verdade apenas criava enredos para contar. O livro não fora escrito para trabalhador.

Um dia o capataz o chamou para uma conversa em particular.

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– Nós já descobrimos o que você está fazendo aqui.O moço engoliu seco, coração trepidando na garganta.– Nós já soubemos – continuou o capataz – que você matou sua mulher e está aqui es-

condido.O rapaz suspirou, aliviado. Sua verdadeira história mantinha-se oculta.E o capataz:– Queremos dizer o seguinte: tome cuidado porque volta e meia a polícia bate por aqui.

Tem um monte de fugitivo por estas bandas.O jovem, então, elaborou sua história: havia matado a mulher e estava acoitado ali, nas

terras do cacau. A história se espalhou, virou verdade e ele se emparelhou com os demais.Havia um negrão grande e forte que morava nas vizinhanças. Grande, forte, tosco e ino-

fensivo. A ele eram atribuídos os trabalhos mais pesados. E ele não reclamava. Nunca reclamava de nada. Quando as ratazanas invadiram o casebre do rapaz, o negrão lhe ensinou:

– Pendure o jabá na beira do telhado, do lado de fora. Assim as ratazanas ficam ali tentan-do pegar o jabá e não conseguem. E não entram em casa.

Foi o negrão que o ensinou a usar uma telha goiva, coberta com um pano, como travessei-ro e a acender o fogo, à noite. Foi o primeiro a saber que o rapaz sabia ler. E o rapaz começou a ler uns materiais para ele com a fundada suspeita de que o negrão não estava entendendo nada.

Um dia perguntou ao negrão:– E você, me diga uma coisa: você está aqui por quê?– Porque matei um cabra safado que quis se meter a besta, meu patrão.

***O Ato Institucional número 5, flexão ainda mais autoritária – desta feita francamente

despótica – da ditadura, decretado em 13 de dezembro de 1968, apanhou o engenheiro ele-tricista e dirigente nacional da Ação Popular Haroldo Lima misturado aos trabalhadores na zona do cacau, vivendo numa palhoça tosca, dormindo sobre uma esteira de palha e tendo uma telha goiva como travesseiro e se esfalfando em trabalhos diários inconciliáveis com sua magreza quase extrema.

***Quando voltou a Salvador, dias após a fracassada tentativa de resistir ao golpe militar na

região de Feira de Santana, Haroldo estava desempregado e com as perspectivas profissionais dramaticamente reduzidas pelos acontecimentos de 31 de março. Continuou morando na casa do pai (a mãe morrera pouco antes do golpe). Depois de trabalhar ano e meio na General Eletric,

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transferiu-se para a Coelba, a estatal baiana de energia. Trabalhava de dia e, à noite e nos finais de semana, fazia política. Aldo Arantes, que havia se exilado no Uruguai, junto com Betinho, voltara ao Brasil em meados de 1965 e iniciara a rearticulação da AP.

Quando a AP desencadeou o debate teórico-ideológico, em 1966, Haroldo e seus com-panheiros eram socialistas, mas não marxistas. Ao longo do debate, que se irradiou por toda a organização, ele estudou com afinco, individualmente e em grupo. Leu às escondidas – como convinha à época – o que havia de disponível da literatura marxista. O clássico Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, de Friedrich Engels, foi decisivo para sua conversão definitiva ao marxismo.

Pelo início de 1968, Haroldo recebeu a informação de que a repressão estava de olho nele e poderia ser preso a qualquer momento. Resolveu cair fora. E iniciou seu longo mergulho na clandestinidade. Mas outro motivo o levara à zona do cacau, no sul da Bahia.

***

Arquivo Fundação Maurício Grabois

Quando a AP desencadeou o debate teórico-ideológico, em 1966, Haroldo e seus companheiros eram socialistas, mas não marxistas

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A partir de 1967 – e até meados de 1970 – a AP realizou um amplo e radical movimento de integração de quadros e militantes na produção. Pensavam com isso, seus ideólogos, transformá--la de organização pequeno-burguesa em proletária, qualificando-a a ser o núcleo ou um dos núcleos do “partido de tipo inteiramente novo” no Brasil, segundo a cartilha chinesa. A AP se propunha a reconstruir tal partido junto com o PCdoB.

Ao longo de quase quatro anos, a organização deslocou centenas de quadros e militantes para as fábricas e para o campo, principalmente para o campo, até porque aceitava a ideia chine-sa do cerco das cidades pelo campo, mediante a guerra popular prolongada.

Dirigente da organização e, por conseguinte, defensor e articulador do movimento de integração na produção, Haroldo sentiu-se no dever de dar o exemplo. E aproveitou o recrudes-cimento da repressão em Salvador para integrar-se com os diaristas do cacau. Estava casado com Solange Silvany, que tinha ficado em Salvador. A situação de ambos, veriam mais tarde. Pouco depois ela foi presa e condenada. Estava panfletando na porta de uma fábrica.

***Formada em História e Geografia pela Universidade Católica de Salvador em 1960, Solange

conheceu Haroldo em 1958, num curso de formação da JUC. Ela integrava a direção regional da organização católica, à qual se subordinava a equipe política, onde Haroldo atuava. Em fevereiro de 1963, em pleno carnaval baiano, estavam ambos no congresso de fundação da AP, ela como se-cretária executiva. Casaram-se em 1965, ano que em nasceu a primeira filha, Julieta. As duas outras, Valéria e Lene em 1968 e 1971, quando o casal já vivia em São Paulo, sob rigorosa clandestinidade.

Haroldo foi católico praticante (havia sido coroinha na infância) até que se deparou com o Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, de Friedrich Engels, e se tornou materialista filosófico e marxista. Solange seguiu católica, razão pela qual não ingressou no PCdoB em 1973, como o fez a maioria da AP, embora tenha acompanhado Haroldo pelas décadas seguintes. Em 2009, no livro De pouso em pouso em busca do repouso prometido, Solange relata sua trajetória de cristã católica e reflete sobre o diálogo possível entre sua fé e o marxismo com o qual vem convivendo.

***Haroldo estava disposto a uma integração de longo prazo na zona do cacau. Mas oito

meses após ter chegado à região, foi instado a deixá-la e seguir para São Paulo para uma reunião da direção executiva da AP, ali chegando com o nome que o consagraria na clandestinidade: Zé Antônio. Iniciava-se nova fase em sua atividade revolucionária.

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Por trás do murinho de pedras

Não era de se estranhar que a dupla de rapazes construísse, vagarosamente, um murinho de pedras em torno de sua pequena propriedade no alto da Serra do Pajeú, nas cercanias de Pariconhas, distrito do município alagoano de Águas Brancas. Afinal, era costume local erguer essas muretas de pedras, tarefa difícil e prolongada. Assim, Roberto e Juarez, muito jovens, mui-to magros, mas abnegados em sua missão, percorriam a pé, quase diariamente, os cerca de cinco quilômetros entre o vilarejo e o alto da serra. E ali trabalhavam duro no murinho, e por vezes pernoitavam na casinha ali existente e não raro passavam alguns dias naquelas alturas solitárias porque também iniciavam o plantio de pequena horta.

O bucólico vaivém daqueles moços afáveis e solícitos ocultava, no entanto, a verdadeira missão que lhes fora confiada: implantar na região uma escola de formação de quadros campo-neses para futuras ações da luta armada prevista pela AP, ou seja, a guerra popular prolongada, com o cerco das cidades a partir do campo. Roberto Ferreira, ou melhor, Aldo Arantes, ali chega-ra em julho de 1968, com a responsabilidade de montar e dirigir a escola. Contaria com a ajuda de Juarez, ou seja, Gilberto Franco Teixeira, que a AP deslocara para a região pouco tempo antes.

***Aldo apresentava-se como amigo de Gilberto, contador da cooperativa agrícola local,

sendo ambos amigos do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pariconhas, José Novais, um dirigente da AP. A equipe estava formada. Aldo sobrevivia com uns parcos recur-sos mandados pela organização. Sua mulher, Dodora, que ali usava o nome de Joana Maria da Silva – complementava a renda familiar alfabetizando trabalhadores, num projeto vinculado ao sindicato. O casal e os filhos – André, de quatro anos, e Priscila, de três – dividiam a casa com Gilberto, Rosa e filha de seis anos.

O único curso ministrado no alto da Serra do Pajeú reuniu cerca de 20 militantes campone-ses, praticamente todos da região de Pariconhas. Durante alguns dias, receberam aulas de política, aprenderam sobre a guerra de guerrilhas e treinavam tiro com os poucos – e toscos – revólveres e espingardas disponíveis. Estavam destinados a atuar, quando chegasse o momento, nas áreas es-tratégicas para a luta armada que a AP vinha escolhendo no centro-oeste, norte e nordeste do país.

A experiência, no entanto, durou pouco. Foi abortada logo após a edição do AI-5. Emba-lada pelos rigores conferidos pelo ato, e desconfiada da existência de “subversivos” na região de Pariconhas, a polícia por lá baixou e, sem dificuldade, chegou aos militantes da AP. Todos foram presos, incluindo os filhos. Aldo foi o último, logo que chegou de uma viagem ao Maranhão.

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Dodora, o casal de filhos, Rosa e sua filha de seis anos foram presas em casa. Durante qua-tro meses e meio ficaram trancafiadas no DOPS, na Cadeia Pública, na Escola de Aprendizes de Marinheiros e no Hospital da Polícia Militar, em quartos destinados aos portadores de doenças infectocontagiosas.

Submetidas às condições carcerárias, as crianças só saíam dos quartos por uma hora, para o banho de sol com as mães. Embora atacadas por furunculose e diarreias (a pequena Priscila chegou a ficar com a boca tomada por aftas, alimentando-se apenas por conta-gotas), nenhuma delas recebeu tratamento. Enquanto isso os pais – Aldo e Gilberto –, e alguns camponeses, aguar-davam julgamento ao lado de presos comuns no presídio de Maceió.

Para Dodora, a prisão teve um amargor adicional. Foi quando um capitão da marinha lhe pediu para criar o menino André.

– Não tenho filhos e já falei com a minha mulher. Nós podemos dar um futuro a esse me-nino que você não pode dar.

A proposta foi, obviamente, rechaçada. E Dodora – e, mais tarde o próprio Aldo, quando soube do fato – carregariam por muito tempo a sombria visão do filho sendo arrebatado pelo militar, perdendo-se da identidade e das raízes.

***A pena a que Aldo e Gilberto foram condenados – seis meses de detenção – era breve

para os padrões da época e em pouco tempo estaria concluída. Ainda assim, decidiram fugir. Sobretudo para Aldo a fuga parecia cada vez mais urgente. Condenado como o desconhecido Roberto Ferreira, ele temia complicar-se com a eventual revelação de sua identidade real. O se-gredo ameaçava romper-se a qualquer momento. Certa feita foi atendido por um médico que, ao vê-lo, assustou-se.

– Aldo, o que você está fazendo aqui? – disse.E Aldo, o coração na garganta:– Não, o senhor deve estar me confundindo. Não sou Aldo, sou Roberto. Roberto Ferreira.O médico refletiu por um instante e, em seguida, aceitou a informação. Dias depois, foi

em seu automóvel que Aldo e Juarez embarcaram, esbaforidos, logo após deixarem, às carreiras, a delegacia em que estavam detidos, guardada por apenas um sonolento soldado raso que, atro-pelado pelos dois, e tendo Aldo tropeçado e caído a poucos metros de distância, ainda assim não atirou. E foi no porta-malas do mesmo carro, dirigido pelo mesmo médico, que Aldo e Gilberto viajaram para o Recife. O doutor era militante do PCB que, consultado, desaprovou a fuga por considerá-la aventura.

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Do Recife Aldo seguiu para São Paulo, onde, nos próximos anos, seria Roberto Guimarães Silva, assumindo diversas funções na direção nacional da AP e, posteriormente, do PCdoB. Ali permaneceria até a reunião do Comitê Central do Partido, realizada nos dias 14 e 15 de dezembro de 1976, numa casa alugada na Rua Pio XII, no bairro da Lapa, quando a cabeça do Partido foi atingida por devastadora ação policial que ficou conhecida como a Chacina da Lapa. Dos nove participantes, Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Drummond foram assassinados, en-quanto Haroldo Lima, Aldo Arantes, Wladimir Pomar e Elza Monnerat foram presos.

***A partir da matança, com Aldo preso e condenado, Dodora incorporou-se à luta pela

anistia e pelos direitos humanos, sendo uma das fundadoras do Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo, em 1977. A experiência de dez anos de clandestinidade motivou-a a ocupar-se do assunto em sua trajetória na academia. Em 1983, sua dissertação de mestrado em Psicologia Clínica (Pacto Re-velado: psicanálise e clandestinidade política), construída com base na ideia do so-frimento psíquico, procurou investigar por que as pessoas não enlouqueceram, vergadas pela vida subterrânea que as desenraizou e fragilizou. No doutorado, concluído em 2011 também na PUC, Dodora voltou ao tema, abordando a crueldade (substrato da tortura) como traço inerente ao comportamento humano, ainda que, no geral, de modo latente.

Casa da Rua Pio XII: cenário da Chacina da Lapa

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Página de documento da AP com diretrizes sobre a incorporação ao PCdoB

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AP e PCdoB começam a conversar

Por volta de maio de 1969 a AP e o PCdoB começaram a conversar. Pela organização, os dirigentes Jair Ferreira de Sá e Duarte Pereira; pelo Partido, Pedro Pomar e Carlos Danielli.

Havia tempo as duas organizações se observavam. No ano anterior haviam concertado alianças, sobretudo nas lutas estudantis que varreram o país. E vinham percebendo que, entre ambas, se alargavam importantes zonas de identidade política e de princípios. Na conta das concordâncias estavam: a forte oposição às ideias revisionistas do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), a análise sobre o caráter da sociedade brasileira e, por conseguinte, o caráter da revolução, além da crítica ao foquismo, linha inspirada na Revolução Cubana.

Mas havia um senão. Sob forte influência do maoísmo, a AP insistia na tese da construção de um partido operário unificado a partir da fusão entre ela e o PCdoB. Este, por sua vez, julgava que o partido marxista-leninista, proletário já existia no país, era ele próprio, criado sob a sigla PCB em 1922 e reorganizado como PCdoB em 1962. E que a AP, se desejasse, poderia incorporar-se a ele.

A AP ainda consumiria os próximos quatro anos para desistir da ideia de “partido de tipo inteiramente novo” de matiz maoísta e, por fim, aderir ao PCdoB entre 1972 e 1973.

Influência maoísta na AP gerou longo debate teórico-ideológico

antes da incorporação ao PCdoB

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Moradores da região do Araguaia

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De olho nas áreas para a guerrilha

Depois de voltar da China, no início de 1968, e acompanhado por Conchita e a pequena Nina, Renato tomou o rumo de Goiás. Aclimataram-se por um ano em Goiânia. Após desastrosa experiência numa creche, Nina foi enviada aos cuidados de um casal de companheiros em Brasí-lia. Só retornou aos pais quatro meses depois, quando eles seguiram para Anápolis, parada obri-gatória para a definitiva caracterização como camponeses. O fim da linha foi uma posse na região de Trombas e Formoso, aonde chegaram após longa viagem realizada parte de automóvel, parte a cavalo e, por fim, a pé. Renato, Conchita já grávida, e a pequena Nina, seguindo pelo poeirão do cerrado até aportarem no casebre de pau a pique, telhado de palha e chão batido perdido no meio do mato, a eles destinado.

Por oito meses viveram como posseiros, vizinhos de Nair e José Luiz Guedes. O sustento dos dois casais de revolucionários provinha das diárias ganhas com o plantio e a colheita de arroz em pequenas propriedades da região. Vida áspera. Dormiam num jirau, com exceção de Nina, premiada com uma rede. De dia, enfrentavam exércitos de mosquitos que, inexplicavel-mente, poupavam a pequena Nina. No fogão de barro cozinhavam o prato de todos os dias: arroz na banha de porco, abóbora verde, muito ocasionalmente fiapos de carne seca, banana as-sada na brasa e café. Se surgisse uma galinha, festa. Único luxo eram as latas de leite em pó que não podiam faltar para alimentar a filha. Quando em alguma festa na região, tiravam o atraso da fome. Ali Renato era, pelo documento falso que portava, José Osmar Ribeiro. Na organização, continuava usando o nome adotado logo que saiu da Bahia e que usaria nos anos seguintes, até a anistia de 1979: Raul.

***Por essa época a AP começou a apressar a escolha de áreas para a luta armada, as cha-

madas “áreas estratégicas”. A circular Preparar ativamente a guerra popular, de outubro de 1969, indicava a necessidade de intensificar a pesquisa sobre essas áreas, considerando que o mero desenvolvimento das lutas camponesas não conduziria, necessariamente, à luta armada. Urgia, portanto, uma preparação específica.

Haroldo Lima coordenou a Pesquisa de Áreas Estratégicas (PAE) – trabalho de fôlego, co-brindo as mais diversas regiões do país. No norte de Goiás, militantes percorriam a pé areais a perder de vista. Renato, que participava dessas pesquisas, chegou a ver um companheiro com a pele dos pés descolada, tão longas e tão permanentes as andanças. A Comissão Militar trabalhou meticulosamente sobre as informações recebidas, era comum passar dias e dias debruçada sobre

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os mapeamentos que se sucediam. Ao cabo, exatas 78 áreas foram selecionadas, das quais 50 trabalhadas por militantes para lá deslocados.

A AP não suspeitava de que, ao mesmo tempo em que se lançava num trabalho ingente para definir suas “áreas estratégicas” e apressar seu caminho à luta armada, o PCdoB já atuava havia alguns anos no Bico do Papagaio, para onde deslocava quadros e militantes na preparação da futura guerrilha.

***As pesquisas das “áreas estratégicas” levaram Ronald Freitas a uma longa estada na

Chapada Diamantina. Morava em Seabra, parte alta da chapada, vivendo como mascate. A bordo de um velho jipe Willys remanescente da Segunda Guerra Mundial, que apelidou de Corisco, corria de feira em feira oferecendo os retalhos de pano e bugigangas adquiridos no comércio da Rua 25 de Março, em São Paulo. Foi também a bordo do Corisco que, junto com Haroldo Lima e Jair Ferreira de Sá, vasculhara toda a chapada em busca das possíveis futuras bases da luta armada – pesquisa que, de certo modo, fizera alguns anos antes.

Essa foi a primeira temporada de Ronald na chapada, que terminou em meados de 1971 quando, voltando para Seabra de uma feira, deparou-se com uma barreira policial. O guarda local, que o conhecia, deixou-o passar. Mas a luz vermelha acendeu. Bebendo cerveja e jogando sinuca nos botecos da região, também frequentados pelos policiais e militares ali acantonados, soube do cerco em marcha ao capitão Carlos Lamarca. De fato, logo em seguida, helicópteros começaram a sobrevoar e aumentaram os veículos transportando tropas. Integrado na região, conhecido de muitos pelo ofício de mascate, Ronald não despertava suspeitas. Mas logo que o cerco amainou foi a Salvador relatar o ocorrido à direção da AP. Em seguida, retirou-se da área. Reapareceria, mais tarde, ao sul dessa mesma região, em torno da cidade de Livramen-to de Nossa Senhora. Ali, junto com sua companheira Mará, e os casais Tom e Ana Martins e Neco e Izabel Panzera, trabalhou na implantação de núcleos de resistência à ditadura, particu-larmente entre os camponeses.

Ronald conheceu Maria Luisa Barros de Carvalho, desde sempre conhecida como Mará, quando ambos militavam em São Paulo, no final dos anos 1960. Nascida em São José do Rio Preto, em 1947, ela havia se formado em Serviço Social pela PUC de Campinas e militava na área de serviços da AP. Ronald tratava das áreas estratégicas para a futura luta armada. Casaram-se em 1972 e, pelas décadas seguintes, sobretudo como militantes revolucionários, percorreram juntos sua trajetória de lutas clandestinas e legais. Tiveram dois filhos: Cassiano, nascido em 1975, em São Paulo, e Ângela, em 1977, em Rio Branco (AC).

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Entre 1972 e 1973, a AP finalizava sua incorporação ao PCdoB. Junto com os demais membros da direção nacional da organização, Ronald integrou-se ao Comitê Central do Par-tido. A nova situação não alterou, substancialmente, o tipo de trabalho que vinha fazendo na AP. Seguiu em suas prospecções pela Amazônia, fixando-se, por fim, a partir de 1975, no inte-rior do Acre, tendo em vista estruturar áreas que pudessem servir de retaguarda ao Araguaia, onde a luta já se desenvolvia.

Na pequena posse na Vila Extrema, cujos fundos dava para a fronteira com a Bolívia, aprendeu a sobreviver da selva, caçando e pescando, colhendo frutos, arrancando raízes. Depois, plantou roça pequena, criou galinhas e tornou-se fotógrafo popular na “colônia”. Assim tocava a vida junto com Mará e o filho Cassiano. Como vizinhos e companheiros da empreitada revolu-cionária, o casal Euler Ivo e Isaura. Os quatro ali plantados na solidão amazônica, vasculhando a área, secretos em suas intenções.

Uma vez por ano enfrentava a tormentosa viagem a São Paulo, só até Corumbá de três a quatro dias em estradas de terra, intransitáveis caso chovesse. Ia para a reunião do Comitê Central que lhe cabia comparecer. Na época, por questão de segurança, o comitê reunia-se duas vezes por ano, cada uma com apenas metade dos membros. Havia ocasiões em que Ronald ia a São Paulo para outros encontros com a direção central. Na volta de um deles, em dezembro de 1976, ao chegar a Porto Velho, deparou-se com a notícia da Chacina da Lapa nas páginas de um exemplar da revista Veja que, ocasionalmente, comprava. Viu lá a foto dramática do velho comunista Pedro Pomar crivado de balas no chão ensanguentado da casa, e ao lado a de Ângelo Arroyo que morrera antes mesmo de poder cerrar os olhos. Dez dias antes Ronald estivera com ambos.

As pesquisas das “áreas estratégicas” levaram Ronald Freitas a uma longa

estada na Chapada Diamantina

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Com as mortes e as prisões na casa da Lapa, e com João Amazonas, Renato Rabelo, Dy-néas Aguiar e Diógenes Arruda no exterior, Ronald ficou sem contato com o Partido. Decidiram os quatro da Vila Extrema que, enquanto Euler e Isaura permanecessem na posse, Ronald, Mará e o pequeno Cassiano se mudariam para Rio Branco, estruturariam a vida e aguardariam con-tato. Ali Ronald retomou um ofício que já praticava à larga: a fotografia. Montou laboratório e trabalhou intensamente. Chegou a prestar serviços ao governo local, quando de uma ampla campanha de documentação de camponeses que chegavam ao estado em programas de assen-tamento agrário. Tal foi o sucesso, que Ronald começou a ganhar dinheiro, inclusive para bancar a viagem de avião a Porto Alegre para retomar contato com o Partido, segundo orientações que, no Acre, chegaram ao seu conhecimento pelas insondáveis veredas da clandestinidade.

Maria Dolores Bahia, a dirigente do Partido no Rio Grande do Sul com quem se encontrou, queria mandá-lo ainda para mais longe – Buenos Aires – e para uma estada fora do Brasil que poderia demorar dois ou três meses. Ele não aceitou, a não ser que voltasse ao Acre, organizasse uma história para a ausência e, dentro de um mês, retornasse a Porto Alegre. Foi o que aconteceu. E acabou em Buenos Aires, onde recebeu a notícia de que estava convocado para a 7a Conferência Nacional do Partido, em Tirana, Albânia. E que deveria aguardar novos documentos.

Durante os três meses seguintes Ronald palmilhou a capital argentina bairro a bairro. A ditadura estava no auge, veículos militares zarpavam pelas ruas, policiais e militares armados abordavam e prendiam pessoas. Quando, enfim, chegou o passaporte, verificou que havia uma pequena diferença – uma inversão – entre o nome indicado no passaporte e o registrado no visto. Desistiu da viagem. Como fazer a escala indicada no Paraguai de Alfredo Stroessner com docu-mentos precários? Mandou saudações aos delegados e voltou para o Acre, de onde só sairia em meados do ano seguinte, com a decretação da anistia.

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Ao invés de cadete, revolucionário

Ali estava com a mulher, Noélia, morando com um casal de militantes operários numa região onde vários outros militantes, distantes entre si e sem saber um da existência dos outros, compunham uma rede clandestina do PCdoB, coordenada pelo dirigente nacional Carlos Da-nielli. Missão: montar uma retaguarda para as frequentes lutas camponesas na zona do cacau e os movimentos de posseiros que volta e meia incendiavam o sul da Bahia e norte de Minas Ge-rais e Espírito Santo. E preparar as condições para ali construir um novo cenário de luta armada, caso fosse necessário abrir outra frente além do Araguaia, onde havia anos o Partido instalara quadros e militantes e preparava a guerrilha.

No início de 1971, Carlos Augusto Diógenes instalou-se em Macarani, região de Vitória da Conquista, pequena localidade fronteiriça com Minas Gerais, no vale do Jequitinhonha. Na vida legal já de algum tempo era conhecido como Patinhas. Mas ali, clandestino, se apresentou apenas como Luiz. Dividia-se entre a lida no modesto lote de dois hectares adquiridos em sociedade com o casal operário com quem morava e o ofício de mascate de roupas. Na pequena escola que os militantes montaram, Noélia ensinava as primeiras letras aos filhos dos camponeses.

O ofício de mascate era, obviamente, conveniência que permitiu a Patinhas percorrer toda a Chapada Diamantina sem despertar suspeitas, trilhando, mesmo sem sabê-lo, caminhos que havia anos vinham sendo explorados pela AP. Haroldo Lima, Jair Ferreira de Sá e Ronald Freitas esquadrinhavam a região desde 1966 em busca de áreas potencialmente favoráveis à luta arma-da, as chamadas “áreas estratégicas”. Ronald Freitas ainda se encontrava em Seabra, no alto da chapada, quando Patinhas chegou em Macarani. Mas nunca se encontraram.

No início de 1973, no hábito militante de ouvir, todas as noites, as transmissões para o Brasil da rádio Tirana, Patinhas soube do assassinato, sob tortura, de Carlos Danielli. Nada po-deria entristecê-lo mais. Afeiçoara-se àquele dirigente muito ativo e corajoso, que cativava os demais, sobretudo pelo afeto e pela generosidade. Além disso, um quadro de primeira grandeza na constelação do Partido, diligente e altamente capaz.

Aquele seria um ano dramático. A descoberta da Guerrilha do Araguaia, em abril de 1972, colocara o PCdoB na alça de mira da ditadura. E a perseguição foi implacável. Entre dezembro de 1972 e março de 1973 quatro importantes dirigentes nacionais do PCdoB seriam presos e assas-sinados sob tortura: Luiz Guilhardini, Lincoln Cordeiro Oest, Carlos Danielli e Lincoln Bicalho Roque. Em dezembro de 1973 Maurício Grabois, o comandante da guerrilha do Araguaia, mor-reria na selva. Apesar das rígidas normas de segurança – o Partido adotava a tática de se fingir

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de morto –, prisões ocorriam pelo país. E aproximaram--se perigosamente da região de Macarani com a queda de militantes em Vitória da Conquista. A situação tornara-se insustentável. No final do miserável ano de 1973, Patinhas e Noélia já estavam em São Paulo.

***Seguisse a tradição da família, seria militar, meio

de ascensão social. Chegou a concluir a Escola Preparató-ria de Cadetes do Exército, em Campinas, mas preferiu o curso de Engenharia à Academia Militar de Agulhas Ne-gras (AMAN). Nascido em Jaguaribe, em 1944, filho de pe-quenos proprietários rurais, Patinhas ainda era chamado de Carlos – Cacá entre familiares e, mais formalmente, de Carlos Augusto – quando ingressou na Universidade Fe-deral do Ceará (UFCE), em 1964. O governo João Goulart vinha sendo carcomido pelo golpismo de direita e logo em final de março seria, por fim, deposto. Para o jovem calou-ro, algo ainda incompreensível.

Anos antes, na escola de cadetes, ouvira que os co-munistas estavam por trás de uma greve de fome realizada contra a péssima qualidade da comida servida no rancho. Como a comida era mesmo intragável, Patinhas concluiu que os comunistas defendiam uma causa justa, por isso não deviam ser tão maus como se dizia. Mas foi na univer-sidade que se deparou mesmo com comunistas de carne e osso. Ali o movimento estudantil estava sob a hegemonia do PCB. Ainda assim, influenciado por companheiros de república, ligou-se a um pequeno grupo que organizava o PCdoB. E ingressou no Partido em 1966, numa base que, dois anos depois, já contava com cerca de 80 militantes.

A crescente força partidária levou Patinhas, em 1967 e 1968, à presidência do Diretório Acadêmico Wal-ter Bezerra de Sá e ao Conselho Universitário. No Partido

Arquivo Fundação Maurício Grabois

Patinhas na escola de cadetes, em atividade do PCdoB Ceará e ao lado de Inácio Arruda durante manifestação em Fortaleza

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também ascendia: por essa época já participava do Secretariado do Comitê Estadual. E a situação política radicalizava-se em todo o país. No final do ano, o AI-5 daria início à fase mais ostensi-vamente terrorista da ditadura. Perseguições, prisões, torturas à larga como política de Estado. Mesmo assim, Patinhas, que já estava fora de casa por conta do ato, deixou seu esconderijo para fazer uma prova final do curso. Mas o professor o mandou embora. Disse apenas: “Se manda, rapaz, e se proteja”. E o jovem revolucionário foi para a Bahia, aceitando uma oferta que pouco antes lhe havia sido feita para trabalhar num projeto de irrigação da Companhia do Desenvolvi-mento do Vale do São Francisco em Barreiras, no sertão baiano. Mas oito meses depois abando-nou o emprego, mudando-se para Salvador.

Notícias de prisões que, por essa época, ocorriam no Ceará levaram Patinhas à clandes-tinidade. Como secretário de organização do Partido na Bahia, viu muitos militantes do movi-mento estudantil deixando o estado para assumir o que se chamava de “tarefa especial”, ou seja, seguindo para o Araguaia. Foram, ao todo, 11, entre os quais sua cunhada Luzia Reis Ribeiro. Presa em 1973, sobreviveu aos suplícios normalmente impostos pelos militares aos guerrilheiros. Devolvida à família em 1975, estava fora de si. Passou um ano trancada num quarto. Recuperou--se aos poucos. Empregou-se no Banco do Estado da Bahia, onde se aposentou. Mas nunca tirou o Araguaia da cabeça, participando sempre de iniciativas e movimentos que levavam a guerrilha como tema.

Em 1971, Patinhas recebeu nova missão, desta feita em Macarani, no sul do estado, onde permaneceria por dois anos. Para lá seguiu em companhia de Noélia, também militante do Par-tido que, aos 20 anos de idade, abandonou o curso de enfermagem para cumprir a nova tarefa, acompanhando o engenheiro cearense por quem se apaixonara.

***À temporada em Macarani sucedeu um período de dois anos em São Paulo, onde Pati-

nhas era João Ferreira dos Santos e trabalhava como auxiliar de topógrafo. Noélia, que passou a ser Maria da Graça, era atendente de enfermagem num hospital da Vila Maria. Em 1975 o casal mudou-se para Rondônia. Deveriam pesquisar áreas alternativas ao Araguaia, tarefa coordena-da pelo próprio Ângelo Arroyo, um dos comandantes da guerrilha que, àquela altura, já havia furado o cerco dos militares e deixado a região do Bico do Papagaio.

Com as prisões em Vitória da Conquista, que obrigaram Patinhas a deixar Macarani em 1973, a ditadura reunira elementos para processá-lo e condená-lo a quatro anos de detenção sob a acusação de preparar a guerrilha na região. Como foragido, chegou a Porto Velho após um período de seis meses de aclimatação e caracterização em Cuiabá. Trabalhou como topógrafo de

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empresas que prestavam serviços ao Incra, enquanto Noélia empregou-se como balconista em farmácia. Segundo Ângelo Arroyo, as matas de Rondônia, particularmente as fronteiriças com a Bolívia, poderiam dar continuidade ao Araguaia que, àquela altura, naufragava frente às pode-rosas ofensivas militares.

O trabalho de Patinhas favorecia sua tarefa. Topógrafo, mudou-se para Ji-Paraná. Passava meses internado na selva, vasculhando a região da fronteira, topografando áreas, reunindo in-formações, conhecendo o terreno. Só anos mais tarde viria a saber que a 100 quilômetros de onde estava, já no Acre, outro militante – Ronald Freitas – entregava-se a uma missão semelhante a partir de sua posse na remota Vila Extrema.

Ângelo Arroyo esteve com Patinhas, em Rondônia, em novembro de 1976. Orientou-o a ocupar uma terra para além de Ji-Paraná, embrenhar-se ainda mais no inescrutável da Amazô-nia. Próximo ao Incra (que então desenvolvia grandes projetos de colonização no estado), Pati-nhas não teria dificuldade em obter o lote. Antes, porém, deveria se casar legalmente com Noélia, usando ambos os documentos frios. Casaram-se, mas a mudança para um lote na floresta não passou da intenção, ceifada por mais uma nova tragédia: a Chacina da Lapa, onde Arroyo pe-receu junto com Pedro Pomar e João Batista Drummond. Patinhas e Noélia receberam a notícia pelas ondas da rádio Tirana, cujas transmissões para o Brasil ouviam todas as noites. E pensar que Ângelo Arroyo estivera com eles no mês anterior. Prometera voltar em três ou quatro meses, animado com as perspectivas de nova guerrilha.

Isolados (o contato com o Partido era feito por intermédio de Ângelo Arroyo), Patinhas e Noélia permaneceram em Ji-Paraná. Com o bom dinheiro que ganhava como topógrafo com-prou uma pequena farmácia, tocada pela mulher. Somente no Natal de 1979, quatro meses após a decretação da anistia, o casal deixou Rondônia, quando as famílias já os pensavam mortos. As cartas que de vez em quando Patinhas enviava haviam sido interrompidas em 1975, quando che-garam em Rondônia. De volta ao Ceará no início de 1980, depois de uma estada na Bahia, terra de Noélia, ele foi integrado à direção estadual como secretário de Organização, que exerceu por mais de dez anos, assumindo depois a Presidência.

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Onde vive o companheiro Miguel?

No início dos anos 1970 o Brasil vivia sob o tacão de um vasto e perverso terrorismo de Estado, à frente do qual imperava o soturno general Emílio Garrastazu Médici. A ditadura ocu-pava-se em liquidar as organizações revolucionárias que a enfrentavam nas cidades, de armas em punho, e avançava para exterminar quem mais lhe opusesse resistência. Sob tais circunstân-cias, organizações como a AP e o PCdoB se recolheram à mais rigorosa clandestinidade. Vigia a orientação de “fingir-se de morto”.

Nada estranhável, portanto, que a própria direção nacional da AP ignorasse a identidade do companheiro Miguel, seu dirigente em cinco estados do Nordeste, nem soubesse onde e como vivia. Sabia-se apenas que vivia em algum dos cinco estados – de Alagoas ao Ceará. Nem mesmo os companheiros que dividiam com Miguel a tarefa de direção, como Ruy Frazão e Alanir Car-doso, sabiam onde ele vivia, tampouco sua identidade.

Em 1970 Miguel, ou melhor, Roberto Luís Pereira, morava em Campina Grande, na Para-íba, com Ana Lúcia, sua mulher. No ano seguinte, instalava-se em Maceió, onde permaneceria nos quatro anos seguintes. Preso em 1974, a polícia custou para identificar no magrelo alourado que havia prendido na cidade cearense do Crato o ex-estudante de medicina Luciano Roberto Rosas de Siqueira, expulso da Universidade Federal de Per-nambuco pelo Decreto 477 e clandestino desde o final de 1969.

***Talvez tenha sido aquele quebra-quebra contra o au-

mento das tarifas de ônibus em Natal, Rio Grande do Norte, o início de tudo – algo que o marcaria definitivamente. Um dia inteiro apedrejando os ônibus esverdeados da empresa São Domingos e fugindo da polícia. Ao menino de apenas 11 anos restaram, do reboliço, duas revelações: a de que na ação coleti-va esvaía-se a colossal timidez que o mantinha prisioneiro do silêncio e do retraimento, e de que a mentira tem mesmo per-na curta. Porque Luciano mentira à mãe ao voltar para casa, naquele dia de alvoroço, cinco horas depois do habitual. Fora jogar futebol com os primos, explicou-se. Mas no dia seguinte, a foto na primeira página do jornal o denunciava: lá estava ele,

Foto: Alcino Martins

Luciano Siqueira

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pedras em punho, o menino que perdera a timidez. A decisão de jamais voltar a mentir só seria quebrada mais de 15 anos depois, diante dos torturadores, quando então mentir era dever.

Eram tempos de formação. Em 1961, um ano após ter se mudado para o Recife com a fa-mília, Luciano acompanhou pela rádio Mayrink Veiga, do Rio de Janeiro, a Cadeia da Legalidade liderada pelo governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul. Estava para completar 15 anos e não entendia bem o que estava acontecendo, embora soubesse que algo de grave ocorria, pois eram inflamados, quase incendiários os discursos de Brizola. Mas o que realmente espantou o rapazola foi aquele estudante que se ombreava com o governador gaúcho nas transmissões. Era o presidente da UNE, Aldo Arantes, autor também de discursos ardentes diante do golpe que os ministros militares intentavam contra a posse do vice-presidente João Goulart. Luciano o conhe-ceria pessoalmente 11 anos depois, quando dividiu com ele, em Campina Grande, a preparação da última reunião do Comitê Central da AP, aquela que decidiu incorporar a organização ao PCdoB. E com quem militaria nas décadas seguintes.

Tempos de formação e tempos de sacrifício. Nascido em Natal, em 1946, aos 11 anos Luciano perdeu o pai, Renato Batista de Siqueira, um pequeno comerciante aposentado da alfân-dega. E para ajudar Oneide, a mãe viúva, a sustentar a família de quatro filhos, dividia-se entre os estudos no Ateneu Rio-grandense e a mercearia da família. E continuou trabalhando quando mãe e filhos se transferiram para o Recife, em 1960, desta feita em outra circunstância que o mar-caria em definitivo: foi contratado para cuidar da vasta e diversificada biblioteca do tio, Paulo Rosas, intelectual de envergadura da esquerda cristã, psicólogo e professor universitário, que até sua morte, em 2004, o sobrinho tomaria como interlocutor privilegiado. Passava os dias entre a montanha de livros e, à noite, cursava o científico no Colégio Estadual Dom Vital, no bairro de Casa Amarela, ao lado de um batalhão de estudantes pobres e sacrificados. Nos finais de semana, participava das atividades do Movimento de Cultura Popular (MCP).

Aos 20 anos, convivendo no MCP com Paulo Freire e uma intelectualidade inquieta e per-quiridora na qual pontificavam os comunistas, sob o estímulo transformador do governo Miguel Arraes, Luciano já se considerava de esquerda. Com o golpe militar assistiu, desacorçoado, às prisões e perseguições que se sucederam. Três anos depois ingressava na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco, onde desde logo mergulhou no movimento estudantil, assumindo liderança e granjeando respeito. Em pouco tempo ingressava na AP, hegemônica en-tre os estudantes. Mas logo o braço da ditadura nas universidades – o Decreto 477, de fevereiro de 1969 – atingiu Luciano e mais dois colegas, interditando-lhes o acesso a curso superior em qualquer escola pública ou privada do país “por suas atividades julgadas incompatíveis com a ordem pública e o bom funcionamento da vida universitária”.

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***A repressão, ao mesmo tempo, apertava o cerco. O nome de Luciano –soube-se – já frequen-

tava listas de prisões iminentes. Não restou outro caminho senão o da clandestinidade. Antes se casou com Josefa Lúcia de Andrade, desde sempre conhecida como Luci, em cerimônia clandesti-na. Haviam se conhecido anos antes, no Colégio Dom Vital, quando ela, nascida no Recife, em 1949 não tinha mais que 15 anos e já militava na Juventude Operária Católica (JOC). Ambos ingressa-riam na AP, no final dos anos 1960, depois no PCdoB, cobrindo juntos, nas décadas seguintes, um percurso de marido e mulher e companheiros de luta.

Em Campina Grande, para onde se deslocaram no início de 1970, obtiveram documentos falsos e, com eles, casaram-se novamente em Maceió. Depois de curta experiência de vendedor de equipamentos para exames psicotécnicos, Luciano passou, junto com Luci, a vender confecções de casa em casa. Compravam bordados no Ceará e também no Brás, em São Paulo, sempre que ele vinha para reuniões com a direção nacional da AP.

No ano seguinte, suspeitando que a polícia os localizara, mudaram-se para Maceió, Lucia-no como o dirigente principal da AP na vasta região que cobria de Alagoas a Ceará. Do núcleo de direção participavam Alanir Cardoso, de Pernambuco, João Bosco Rolemberg Cortes, de Sergipe e Raimundo Oswaldo e Ruy Frazão, do Ceará. Eram todos estudantes. Exceto Ruy, contavam com vinte e poucos anos, haviam deixado a universidade para internar-se na luta contra a ditadura e, no início dos anos 1970, se transferido da AP ao PCdoB, onde compunham a chamada estrutura dois, que reunia os militantes oriundos da organização. Durante alguns anos essa estrutura coexistiu, embora rigorosamente separada, com a outra, dos militantes tradicionais do PCdoB, mantendo contato com a direção nacional unificada através de Haroldo Lima.

Sob o momento de terror mais acentuado da ditadura, as medidas de segurança eram ex-tremas. A direção regional, por exemplo, não tinha localização fixa. Cada um dos seus membros morava numa cidade do vasto território, desconhecida pelos demais. Nem mesmo a direção nacio-nal sabia onde localizá-los. As reuniões e os contatos obedeciam a um complexo e rígido sistema de encontros, chamados de pontos, e as conversas bilaterais eram raríssimas. Luciano seguia na mesma, vendendo roupa por toda a região, articulando o Partido como podia. E aproveitava as circunstâncias, que lhe deixavam tempo de sobra, para estudar. Tornou-se dos poucos comunistas a ler e estudar integralmente o volumoso e complexo O Capital.

Quando o Partido orientou seus quadros dirigentes a se aproximarem do Araguaia, com vistas a formar um cinturão de apoio à guerrilha, caso isso fosse necessário, Luciano e Luci se mudaram para Santana do Ipanema, fronteira com a Bahia. Ali não exerciam atividade política, de modo a não produzir suspeitas. Luciano continuava circulando de Alagoas a Ceará, dirigia o

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Partido e vendia roupas. Frequentemente chegava num lugar sem um tostão, tendo que desovar confecções para a comida e a passagem de volta.

***Naquele início de tarde, na praça central do Crato, Luciano caminhava para encontrar um

companheiro. Encontrou um bando de policiais disfarçados que caiu sobre ele aos gritos e empur-rões. Seguiu apanhando na sala sem mobília em que foi jogado, e depois na delegacia da Polícia Federal em Fortaleza, aonde chegou após viajar pela noite toda, amarrado e estirado no chão da viatura. “Você vai se lascar, está na fronteira com o Chile”, berrou o policial. Luciano riu, onde o Brasil tem fronteira com o Chile? Apanhou pelo atrevimento e seguiu apanhando no quartel do Exército próximo da lagoa de Parangaba, onde se iniciaram as sessões de pau-de-arara, choque elétrico, espancamento. Três noites de suplício. Depois, o Doi-Codi do Recife. É quando viu pas-sar Luci pelo corredor e pouco depois chegaram-lhe seus gritos sob tortura e foi levado para vê-la estrebuchando-se sob o choque elétrico. Então resolveu admitir o nome e a condição de estudante de Medicina perseguido pela ditadura que morava isolado em Santana de Ipanema, sem contato com ninguém, nem com a família. Imaginava, com tal concessão, poupá-la de mais sofrimento. Luci o fitava e baixou a cabeça. Luciano foi devolvido à cela e chorou até amanhecer. Ao cabo de 28 dias, desde que fora preso no Crato, a tortura cessou e ele foi transferido para a Polícia Federal de Alagoas, onde instauraram inquérito. Mas não dissera uma palavra sequer sobre o Partido.

***Ano e meio depois, ao deixar o presídio Barreto Campelo, na ilha de Itamaracá, no Recife

(não fora condenado, pois contra si não pesava nem confissão nem qualquer outra prova), Luciano voltou à militância. Assumiu a tarefa de reorganizar o Partido em Pernambuco, retomou o curso de Medicina interrompido à força em fins de 1969 e passou a fabricar e vender artesanato em couro na orla e nas feiras da cidade. Sobreviveu assim até que dois anos depois, assumiu a sucursal local do jornal Movimento. Quando se formou, em 1978, passou a exercer a medicina até metade do manda-to de deputado estadual conquistado em 1982, pela legenda do PMDB (o PCdoB ainda era ilegal). Presidiu o PCdoB de Pernambuco de 1983 a 2000, quando foi eleito vice-prefeito do Recife na cha-pa liderada por João Paulo, do PT. Foi reeleito em 2004 e, em 2008, tornou-se vereador. Dois anos depois, deputado estadual. Membro do Comitê Central desde o VI Congresso, em 1983, no início de 2012, à beira dos 66 anos, Luciano presidia o Diretório Municipal do Recife, acumulando essa função com a de secretário de Juventude. Seguia casado com Luci, com quem possui duas filhas, a arquiteta Lucia e a cineasta Luciana, conhecidas como Neguinha e Tuca Siqueira. Nos intervalos da atividade política, o que encanta Luciano são os netos Miguel e Pedro.

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Sem mulher, sem filhos, sem nada

– Meu nome é Luís Soares Lima. Sou baiano de Barreiras.E os torturadores, aos berros:– Você é Alanir Cardoso, dirigente do PCdoB no Nordeste!Encapuzado e preso ao pau-de-arara, o corpo se contorcendo a cada descarga de eletricidade.– Onde você mora? Com quem vai se encontrar?– Sou Luís Soares Lima, não vou me encontrar com ninguém e não moro.Gritos, xingamentos e correrias na sala de tortura.Dois dias se passaram. Pau-de-arara, choques elétricos, afogamentos e pancadas. Até que

trouxeram Fred Morris, o pastor metodista norte-americano, simpatizante do Partido. Acareados sob tortura, queriam de Fred o nome real e o endereço de quem se apresentava como Luís Soares Lima. E ele, de fato, não sabia. O outro queria aliviar a situação do pastor.

– Você me conhece como Luís, Fred. Mas sou Alanir Cardoso, estudante perseguido.Um enxame de torturadores caiu sobre Alanir.– Onde você mora? Onde você mora? – berravam todos ao mesmo tempo.– Não moro. Não tenho mulher, não tenho filho, não tenho nada!O torturador ergueu o capuz, olhou nos olhos de Alanir e disse, voz de decisão e ódio:– Sou torturador e vou matar você!Recebeu do prisioneiro o olhar severo e áspero do sertanejo de há muito curtido pelo so-

frimento.Dias depois, a notícia: solto, Fred Morris fora expulso do Brasil. Nos Estados Unidos, di-

fundia a violência da ditadura brasileira. Alanir pensou: “Agora a situação mudou, minha prisão vai para o mundo”.

Quando o policial trouxe-lhe a roupa e mandou que se vestisse, ele retrucou:– Vestir para quê? Eu vou para onde?Não vestiu. Vestiram-no à força.O policial veio com a prancheta na mão.– É para você assinar.– Assinar o quê?–- A relação das suas coisas.– Que coisas? Eu vou para onde?Na prancheta, o nome de Luís Soares Lima.

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– Primeiro não sou essa pessoa, sou Alanir Cardoso. Depois, não vou assinar nada!E o policial, perplexo.– Quem são vocês? Eu estou onde? Eu vou para onde?Em Brasília, ao recebê-lo, o cabo lhe indaga sobre o nome falso.– Não tenho nome falso.– O nome de guerra.– Que guerra? Guerra é o que vocês estão fazendo comigo, sendo torturado esse tempo

todo. E o seu nome, qual é?E o cabo, perplexo.Dias depois:– Veste a roupa.– Para quê? Eu vou para onde? Quem são vocês? Não vou vestir.Vestiram-no à força.Ainda em Brasília, mandam-no tomar banho e vestir a roupa que lhe entregam.– Banho para quê? Para ser torturado mais uma vez? Não vou tomar.Não tomou.Quando, no dia seguinte, lhe trouxeram a bandeja com feijoada, disse: – Não vou comer.Preparava-se a visita do comandante do quartel. Um coronel e sua comitiva.E Alanir, agarrado às grades:– Eu quero saber por que estou a 55 dias sendo torturado. Onde é que estou? Quem são

vocês?E o coronel, perplexo.– Mas aqui você não foi torturado – gaguejou.No campo de treinamento militar nos arredores de Brasília, deitado em cruz ao lado de

um buraco. E um torturador, erguendo-lhe o capuz:– Olhe a cova onde você vai ser enterrado.Em seguida, no quarto com cavaletes de ferro, correntes dependuradas no teto e a peque-

na máquina do choque elétrico, cinco jovens de não mais de 30 anos, de manga de camisa e calças jeans sentados em tamboretes diante de Alanir.

– Nós somos do Movimento Anticomunista, o MAC, somos quadros tanto quanto você, só que do lado de cá. Não temos nada contra você, pessoalmente. Nossa tarefa aqui é arrancar as informações que você tem.

– Os jornais de hoje, no Recife – disse um deles – dizem que você se evadiu. Você sabe o que significa isso?

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Alanir os mirava, um a um, olhos calejados de sertanejo.– Sou Alanir Cardoso. Não moro. Não tenho mulher, não tenho filho, não tenho nada!Pau-de-arara, choque, afogamento, chutes, murros.– Vamos trazer seu pai para cá!Setenta e quatro dias de suplício.

***Arraias é a cidade mais antiga do antigo estado de Goiás, na região que viria a ser o sul

do atual Tocantins. No século XVI, fartou-se da imensidão de ouro arrancada do solo por mãos escravas. Nos anos 20 do século passado, por inescrutáveis razões, recebeu com festa – e direito à banda de música – a coluna comandada por Luiz Carlos Prestes. E a cidade passou a cultivar a honra de ter sido o local onde a coluna permaneceu por mais tempo: 13 dias seguidos. Fo-tografias, depoimentos, notas em jornais, edifícios preservados somam-se na comprovação do feito que, a partir dali, vincaria na história do povoado o nome emblemático do Cavaleiro da Esperança e suas andanças e suas lutas.

O comerciante e proprietário rural Agripino Cardoso, descendente do Brigadeiro Felipe Antônio Cardoso, comandante da bandeira que descobriu o farto ouro de Arraias, estava na banda que tocou, frenética, para receber os homens da coluna. Seu filho Alanir criou-se sorven-do essa tradição. Um dos nove rebentos do segundo casamento de Agripino, o menino nasceu em 1943, na vizinha Campos Belos, onde cursou o primário e, aos sete anos, mudou-se com a família para Arraias. No início de 1964 estava na capital para prosseguir os estudos, primeiro no Liceu de Goiânia, depois no Colégio Rui Barbosa. Ali as vagas impressões de movimentos e lutas do imaginário infantil ganharam forma, contornos que as empurraram da fantasia à realidade.

Os três primeiros meses de Alanir em Goiânia, que coincidiram com os três meses finais do governo João Goulart, de extrema turbulência política, representaram para o jovem de Ar-raias verdadeira universidade em política. Embora secundarista, circulava entre universitários e seus movimentos e frequentava as manifestações que se sucediam, principalmente os gran-des e agitados comícios pela reforma agrária onde ouvia, siderado, a palavra inflamada de Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas.

Alanir não era um militante organizado quando se destacou, mesmo sob os rigores do golpe militar desfechado em 31 de março contra o presidente João Goulart, no movimento secundarista goiano, primeiro liderando a organização do grêmio do Colégio Rui Barbosa, de-pois da entidade estadual e, por fim, quando foi eleito vice-presidente da União Brasileira dos

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Estudantes Secundaristas (UBES), num congresso realizado em Belo Horizonte. Eleito como independente, um mês depois ingressava na AP, hegemônica no movimento estudantil.

Em setembro de 1968, a liderança de uma manifestação durante o desfile de Sete de Se-tembro, em Goiânia, lhe valeu um mês de prisão, sua primeira experiência com a perversa mão repressiva da ditadura. Após deixar a UBES, no início de 1970, Alanir passou a dedicar-se a algo que não mais o abandonaria: a organização revolucionária, primeiro na AP, depois no PCdoB. Passou por Minas Gerais, onde se ligou ao movimento operário, por São Paulo e, finalmente, instalou-se no Recife em março de 1972. Ao chegar à cidade, já se apresentou ao PCdoB, ao qual a AP estava se incorporando.

Em Brasília, logo após deixar Minas, encontrou-se clandestinamente com o pai, que não via havia pelo menos três anos. Conversaram por quase quatro horas, só os dois, frente a frente. Agripino chegou a lhe oferecer um refúgio no interior de Mato Grosso, onde possuía amigos, ou recursos para sair do país. Alanir recusou, seguiria lutando dentro do Brasil. O pai compreendeu a opção do filho e lhe deu algum dinheiro. Perguntou para onde ele iria, mas Alanir não podia revelar. “Mais dia, menos dia o senhor vai receber notícias minhas”, disse. Recebeu-as por meio de cartas que percorriam os complexos e lentos labirintos da clandestinidade. Mas pai e filho nunca mais se encontrariam.

***Em fevereiro de 1974 Alanir chegou a Juazeiro, Ceará, já casado com Maria das Neves

Santos, a Nevinha. Paraibana de Princesa Izabel, onde nasceu em 1935, e formada em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, ela já militava no PCdoB quando conheceu Alanir, logo que este chegou ao Recife, transitando da AP ao Partido, em 1972. Casaram-se em junho de 1973 e, poucos meses depois, Nevinha demitiu-se da Sudene e seguiu para Juazeiro. Alanir dividia a direção regional com quatro outros: Luciano Siqueira, o dirigente principal, João Bosco Rolemberg Cortes, de Sergipe, Raimundo Oswaldo e Ruy Frazão, ambos do Ceará, jovens que haviam deixado a universidade para internar-se na luta contra a ditadura.

Três meses depois, no entanto, Alanir deixou Juazeiro. Nevinha fora identificada por um militante, o que feria as rigorosas regras de segurança da época. Além do mais, já circulavam notícias sobre prisões. Resolveram se transferir para Petrolina. Mas ali a estada foi ainda mais curta. Nem haviam trazido a mudança de Juazeiro quando, casualmente, souberam de uma pri-são na feira da cidade. Mais tarde viriam a saber que a prisão fora de Ruy Frazão, desaparecido desde então. Resolveram se fixar em Feira de Santana. O vaivém era ditado, sobretudo, pelas dramáticas circunstâncias da clandestinidade. O dirigente percebia a situação e tomava decisões,

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levando sempre em conta, ao lado das injunções políticas, sua segurança pessoal e a do Partido. Antes de aportar em Feira de Santana, Alanir e Maria das Neves passaram em Campina Grande, onde souberam da extensão das prisões, inclusive a de Luciano Siqueira. Ao todo, cerca de 30, entre fevereiro e maio de 1974.

A partir de Feira de Santana Alanir dedicou-se a reorganizar os que não haviam sido presos. Viajava por toda a região, de Alagoas ao Ceará, vendendo confecções e organizando o Partido. Mas ele próprio seria alcançado, no último dia de setembro do mesmo ano de 1974. Foi preso pela manhã, quando deixava a casa do pastor da igreja metodista norte-americana Fred Morris, simpatizante do Partido.

***De volta ao Recife, após a macabra temporada em Brasília, e lançado numa cela do

Doi-Codi, Alanir concluiu que, àquela altura, não seria mais assassinado. A situação, no entanto, arrastava-se sem solução aparente. Tentando conduzi-la a um desfecho, iniciou greve de fome. Não a declarou, apenas deixou de comer. Uma semana depois – 13 de dezembro de 1974 – o re-sultado: foi transferido para o presídio Barreto Campelo, na ilha de Itamaracá. Na primeira cela da galeria dos presos políticos viu Luciano Siqueira. Mas não acusou o reconhecimento. Nas ou-tras celas, muita gente, entre conhecidos e desconhecidos. Não se dirigiu a ninguém. O silêncio era geral.

– Está vindo de onde? – alguém perguntou, os demais aguçando os ouvidos.– Sou Alanir Cardoso, estou vindo das torturas – anunciou com a voz cavernosa de quem

passara mais de dois meses praticamente sem falar.A greve de fome, encerrou-a naquele momento. Perdera o sentido.Só mais tarde, ao receber a visita de seus irmãos, soube da morte do pai no ano anterior.

Recordou o último encontro, aquela longa conversa de horas frente a frente, só os dois, em Bra-sília, alguns anos antes. O pai lhe oferecendo ajuda, compreensivo com a luta do filho. Esquadri-nhou a memória. “Mais dia, menos dia o senhor vai receber notícias minhas”. Sem confessá-lo, ambos suspeitavam ser aquela despedida a derradeira.

Julgado e condenado como incurso na Lei de Segurança Nacional, Alanir só deixaria a prisão mais de quatro anos depois, em abril de 1979. Foi morar em Maceió, onde Nevinha, que conseguira driblar a perseguição policial, vivia e trabalhava. Um ano depois, em maio de 1980, o casal transferiu-se em definitivo para o Recife. Desde então, Alanir participa da direção do Parti-do em Pernambuco, sendo seu dirigente principal de 2000 em diante. Em 1980 passou a integrar o Comitê Central.

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Alanir Cardoso ao deixar a prisão em 1979

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Marcas da vida, marcas da tortura

Em sua pequena sala de secretário de Finanças do Comitê Central do PCdoB, Vital Nolas-co ergue a camisa e mostra as cicatrizes de sua estada de 40 dias no Doi-Codi paulista, em 1974. Lanhos que descem, em paralelas, pelas costas, resistentes ao tempo. No cardápio das torturas, além das chicotadas que o marcaram para sempre, o trivial das salas de suplício da ditadura: pau-de-arara, choque elétrico, afogamento, tapas na orelha, bofetões, chutes. Em dez dias nas mãos dos torturadores, ele perdeu os sentidos por duas vezes e foi reanimado por um médico de plantão. Maria, a irmã, e o cunhado Luiz Tenderine, ex-padre italiano, foram levados à delegacia e torturados em sua frente. Mas da boca de Vital, os policiais não ouviram nada.

Com sua prisão denunciada na Europa pela congregação a que pertencia Tenderine, a re-pressão recuou. Antes de soltá-lo, porém, vieram as propostas. Primeiro, um exílio na Itália. Em seguida, um emprego na Petrobras. Por fim, uma casa em Belo Horizonte. Todas recusadas, até porque, em troca, Vital deveria assinar declaração de que não havia sido torturado. E não assinou. Como resposta, obteve um desabafo do delegado: “Vocês ainda vão ser vitoriosos porque são uns loucos!”. Solto, foi para Belo Horizonte encontrar a mulher, mas logo voltou para São Paulo, em-pregou-se numa indústria química e retomou a atividade política interrompida pela prisão.

***Eustáquio Vital Nolasco foi um trabalhador precoce. Segundo dos dez filhos do padei-

ro Orlando e da lavadeira Diva, estava com dez anos de idade quando começou a buscar leite para os vizinhos do Jardim América, vila operária isolada nas cercanias de Belo Horizonte, onde morava com a família. Todas as manhãs caminhava dez quilômetros até a Gameleira e voltava com o pequeno tambor de cinco litros sobre os ombros. Aos 12 anos vendia no bairro legumes e verduras, comprados no mercado central, e também o esterco que apanhava nas redondezas curtia e secava. À noite, estudava. Um tio o iniciou nas artes da serralheria e, logo após concluir o curso comercial e servir o exército, empregou-se numa metalúrgica e ingressou na Juventude Operária Católica (JOC).

A JOC reunia jovens trabalhadores a partir de núcleos em bairros, educando-os numa perspectiva de luta contra a ditadura e pela justiça social. Interessado e sagaz, Vital progrediu na organização e, em 1968, já integrava a direção nacional. Nesse ano iniciou seus contatos com a AP, ficando na condição de ampliação, ou seja, num estágio anterior ao de militância propria-mente dita. E, assim, participou do comando das greves de abril daquele ano, que mobilizaram

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16 mil dos 21 mil operários de Belo Horizonte e Contagem, incluindo a ocupação da Mannes-mann, e as de outubro, ainda mais extensas.

A forte repressão que se seguiu às greves de outubro, quando o país já se encaminhava para o recrudescimento da ditadura (o AI-5 seria decretado em dezembro), obrigou Vital a es-conder-se. Dezenas de lideranças presas, centenas de operários demitidos. Clandestino em Belo Horizonte, vivendo da ajuda de companheiros, em junho de 1969 se transferiu para São Paulo. A vida só melhorou um pouco quando começou a trabalhar numa fábrica de sola de sapato no Jabaquara. Passou, depois, por várias outras empresas, sempre ativo nos movimentos reivindica-tórios. No Senai, tornou-se eletricista instalador. Instalava motores. Em 1972 ainda era ampliação da AP, mas já mantinha contato com o PCdoB. Casado com Ester desde 1971, sua casa no Rio Pequeno foi muitas vezes palco de reuniões de dirigentes da AP. Por ali passaram, entre outros, Haroldo Lima, Aldo Arantes e Renato Rabelo.

A essa altura Vital já participava do Movimento Contra a Carestia, que ainda se chamava Movimento do Custo de Vida, liderado por Aurélio Peres, que conheceu quando morou numa paróquia da Vila Leonor. No início de 1974 ambos foram presos.

***Uma das lideranças mais expressivas do movimento era a ex-metalúrgica Ana Maria Mar-

tins Soares, que em 1968 se formou em Serviço Social pela PUC paulista. Ainda jovem, filiou-se à AP. Em 1970, já sob perseguição da ditadura militar, mudou-se para a Bahia com o marido An-tônio Almeida Soares, o Tom. Foram trabalhar entre os camponeses. Dois anos depois, seguindo a maioria da AP, o casal se filiou ao PCdoB.

Arquivo Fundação Maurício Grabois

Vital Nolasco, Ana Martins e Aurélio Peres, lideranças do Movimento contra a Carestia

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De volta a São Paulo, Ana participou da organização e da liderança do Movimento Contra a Carestia, que começou com a criação de mais de 500 clubes de mães nas zonas leste e sul da capital paulista. Sua intensa participação em defesa das comunidades excluídas a levou à Presi-dência da Federação Estadual das Associações Comunitárias, à Câmara Municipal de São Paulo por dois mandatos (1992 e 1996) e à Assembleia Legislativa em 2000.

***Ao deixar a prisão Vital já militava no PCdoB, mas precisou de tempo para refazer o con-

tato. Respondendo a processo, desenvolveu atividade sindical cuidadosa na categoria dos quí-micos, à qual passou a pertencer. Acabou absolvido, mas pouco tempo depois – no dia em que completava 30 anos, 16 de dezembro de 1976 – a Chacina da Lapa desfez as ligações partidárias que havia costurado após deixar a prisão. Tudo voltou à estaca zero. Sem deixar o movimento sindical, mas já no ramo metalúrgico, somente dois anos depois ele reencontrou o Partido. Em 1980 estava numa empresa de componentes eletrônicos em Itapecerica da Serra, ligada ao Sin-dicato dos Metalúrgicos de Osasco. Ali passou a atuar. Foi então que ocorreu a batalha de São Bernardo do Campo.

No dia 1º de maio de 1980, em meio à greve dos metalúrgicos do ABC, Vital estava à frente da caravana de cinco ônibus de trabalhadores de Osasco que partiu para São Bernardo, onde as forças de oposição à ditadura e solidárias com os metalúrgicos parados realizariam manifestação unitária pelo Dia do Trabalho. Como militante do Movimento Contra a Carestia, Vital conhecia bem os sindicatos da região, participara de várias de suas assembleias. Reunida no Paço Muni-cipal, a multidão de trabalhadores foi logo cercada pela polícia, extravagante em homens, armas e veículos. Logo a pancadaria começou: paus e pedras dos trabalhadores contra as bombas de gás e cacetadas da repressão. Mas a correlação de forças mudou quando levas de operários de São Paulo e cidades vizinhas, driblando as barreiras, começaram a chegar. Os policiais militares ficaram espremidos entre os que já estavam no Paço e os que vieram em seguida. E foram dis-persados a pauladas e pedradas, a socos e pontapés por uma massa de espoliados que, naquele momento, vingava-se dos que habitualmente a espancavam em qualquer manifestação. Depois, em passeata, dirigiram-se para o estádio da Vila Euclides.

No início dos anos 1980, Vital mergulhou no Movimento Contra a Carestia, do qual saiu a vitoriosa candidatura de Aurélio Peres para deputado federal pelo PMDB, da qual ele parti-cipou intensamente. Presidiu, por essa época, o Centro de Cultura Operária, entidade criada para vocalizar o pensamento do Partido ainda ilegal. De 1984 a 1987 foi segundo secretário do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, na diretoria liderada por Joaquim dos Santos Andrade,

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o Joaquinzão. A intensa participação de Vital nas lutas operárias e populares o levou à Câmara Municipal de São Paulo nas eleições de 1988, onde permaneceu até 1996. Ao deixar a Câmara, tentou voltar à fábrica, mas não foi aceito. Tornou-se então profissional do partido. Já era mem-bro da direção regional de São Paulo e do Comitê Central, eleito pelo VIII Congresso, em 1992. Em 2001 tornou-se secretário nacional de Finanças.

Arquivo Fundação Maurício Grabois

O vereador Vital Nolasco com a então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina

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“Ou ficar as putas livres ou morrer pelo Brasil”

No amanhecer frio e garoento de 12 de outubro de 1968, um sábado, os mais de 900 estu-dantes que participavam do clandestino 30o Congresso da UNE, num sítio nas cercanias de Ibiúna, São Paulo, despertaram diante dos fuzis e dos focinhos arreganhados de cães de uma tropa de 135 soldados da Força Pública – como então se chamava a Polícia Militar paulista – e 80 do DOPS.

A queda do congresso marcava importante vitória da ditadura na queda-de-braço que travava com o movimento popular desde o início do ano, particularmente após o assassinato do estudante secundarista Edson Luiz de Lima Souto, no Rio de Janeiro, nos últimos dias de março. Após o golpe militar, quatro anos antes, era a primeira vez que massas tomavam ruas e praças do país clamando por liberdade, exigindo reformas, o fim do arrocho salarial e dos acordos MEC--USAID, pontapé inicial para a privatização da universidade brasileira. Em junho, o inusitado: 100 mil manifestantes ocuparam o centro do Rio de Janeiro. A música Para não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, proibida pela censura, tornou-se o hino da rebelião. A resposta final dos militares viria em dezembro, com a decretação do Ato Institucional número 5, que mer-gulhou o país nas trevas de uma ditadura ainda mais sanguinária.

Presos, os delegados ao congresso viajaram os 70 quilômetros entre Ibiúna e São Paulo ensardinhados em dez ônibus, cinco caminhões, duas kombis e uma Rural Willys. Os líderes – en-tre os quais Luiz Travassos, presidente da UNE, e José Dirceu, da poderosa União Estadual dos Estudantes de São Paulo, e, 34 anos depois, ministro-chefe da Casa Civil do primeiro governo Lula – foram conduzidos ao DOPS. Muitos deles já estavam condenados em processos anteriores com base na Lei de Segurança Nacional. Os demais seguiram para o presídio Tiradentes.

Num dos ônibus, viajaram as 80 delegadas presentes ao congresso, entre as quais duas nordestinas miúdas e divididas entre o medo, a angústia e a excitação: Maria Liège Santos Rocha, 23 anos, da Bahia, e Maria do Socorro Moraes Fragoso, 22, da Paraíba. Medo do que a repressão poderia lhes impingir, angústia pela reação dos pais, e excitação pelo momento vivido (afinal, a prisão de mais de 900 delegados do congresso era notícia internacional). Liège possuía motiva-ção adicional: passaria no presídio, em 13 de outubro, seu vigésimo quarto aniversário. Sobre tais sentimentos díspares pairava, no entanto, uma espécie de fervor cívico, o que as levou a canto-rias e palavras de ordem mesmo no interior do presídio.

Cantavam “ou ficar a Pátria livre, ou morrer pelo Brasil”, ao que presas comuns, com as quais dividiam o espaço e não entendiam a presença ali de tantas “moças de família”, parodia-vam com um ainda mais sonoro “ou ficar as putas livres ou morrer pelo Brasil”.

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Maria Liège e Maria do Socorro, ambas militantes da AP, não se conheciam nem se conhe-ceram no congresso. Ambas foram devolvidas, presas junto com suas delegações, aos estados de origem, em ônibus providenciados pela Polícia Federal. Só viriam a se conhecer 15 anos depois, já integrantes do PCdoB, quando arregimentadas pelo dirigente principal João Amazonas para a construção coletiva de uma política do Partido para as mulheres, o movimento emancipacionista que, de lá para cá, tem sido marca dos comunistas.

***Folha Imagem

Policiais conduzem os mais de 900 estudantes presos durante o 30º Congresso da UNE em Ibiúna (SP), 1968

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A ditadura já completava sete ou oito meses, em fins de 1964, quando jovens da paró-quia de Santana, em Salvador, do qual Liège participava, criou o grupo Berimbau, dividido entre atividades de esporte e lazer e palestras que procuravam ajudá-los a compreender o que se passava no Brasil. O centro nervoso do grupo era a ampla casa em que viviam Liège e seus nove irmãos (sete meninas e dois meninos), sob o manto protetor e complacente do pai, Hercí-lio Sapiência, funcionário do Banco do Brasil. Viúvo recente, resolvera não mais se casar para criar o bando de filhos.

Até que o Berimbau começasse a agitar certas ideias críticas, Liège transitara longe da política. Nascida em Teresina, não havia completado dois anos quando a família transferiu-se para Picos. Aos sete, uma escoliose grave obrigou-a a tratar-se no Rio de Janeiro, onde perma-neceu por três anos na casa de uma tia. Morava, estudava e tratava-se no Rio e passava as férias em Picos, nas fazendas do avô materno, o coronel Chico Santos, criador de gado, explorador de carnaúba e plantador de algodão. Farras com as dezenas de primos, pois os oito filhos do coronel lhe deram 53 netos.

A família já havia se transferido para Salvador quando Liège encerrava sua primeira tem-porada carioca (houve uma segunda, em 1963, quando foi operada). Resolveu, em definitivo, o desvio na coluna, mas atrasou-se nos estudos. Somente em 1967, com 23 anos, ingressaria na Escola de Biblioteconomia e Documentação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Integrou--se num círculo de estudos ali existente, que lia Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré, entre outros autores marxistas. O grupo, viria a saber logo em seguida, já era um organismo da AP. No ano seguinte, 1968, elegeu-se presidente do diretório acadêmico da escola e, como tal, passou a compor o conselho da União dos Estudantes da Bahia (UEB). Nessa condição, integrou a delega-ção baiana ao 30o Congresso da UNE.

***Foram muitos nomes, mas o primeiro e verdadeiro foi Maria do Socorro Moraes Fragoso.

Ao se casar com o operário metalúrgico José Vieira, no final dos anos 70, em Belo Horizonte, tor-nou-se Maria do Socorro Moraes Vieira. A esses se agregaram muitos outros, todos falsos, escudos a protegê-la na áspera luta contra a ditadura. Entre todos, algo em comum: as letras “j” e “o”, lidas com o som de jô, quem sabe um simbolismo para representar o fio condutor a unir tantos nomes numa só trajetória. Então ficou Maria do Socorro Jô Moraes Vieira, ou apenas Jô Moraes.

Dos 11 filhos de Agripino José de Moraes, que deixara o interior de Pernambuco para ser estivador no porto de Cabedelo, na Paraíba, e da professora primária Felicidade das Neves Cos-ta, paraibana do sertão, apenas cinco vingaram. Nascida em agosto de 1946, já na adolescência

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Jô conviveu, inclusive na própria família, com os efeitos da derrocada do porto sob a política econômica da ditadura. Mas foi em João Pessoa, frequentando, mediante bolsa, um colégio da elite paraibana, o Nossa Senhora de Lourdes, que ela se ligou à Juventude Estudantil Católica (JEC) e à política. O pontapé inicial foi as muitas manifestações das quais participou, reivindicando o meio passe escolar.

Bastou ingressar na Escola de Serviço Social para aderir à Juventude Universitária Católica (JUC) e, muito ra-pidamente, à Ação Popular, que havia seis anos já tinha se desvencilhado da entidade católica para, em 1968, se cons-tituir em organização revolucionária às portas do marxis-mo-leninismo e hegemônica no movimento estudantil. Jô, a essa altura, já havia assumido a presidência do Diretório Acadêmico de Serviço Social e mobilizava os estudantes pela federalização da escola. Mas não só isso. A escola saiu na frente – com uma greve – nos protestos pelo assassinato do secundarista Edson Luiz, no Rio de Janeiro. E foi nessa

condição e nessas circunstâncias que, no início de outubro de 1968, ela partiu para o 30o Congres-so da UNE em Ibiúna, São Paulo.

***Liège, cassada pelo Decreto 477, no início de 1969, ainda assim comparecia à faculdade,

onde um movimento de alunos pretendia mantê-la no curso. Ao mesmo tempo intensificava sua atividade política. A ampla casa dos Rocha era acolhida para estudantes que iam a Salvador em missão política. Por lá passaram, por exemplo, Alanir Cardoso e Luciano Siqueira. Ali a militan-te Liège usava a máquina alemã do pai para datilografar – trancada no quarto – textos da UNE. Seguiam-se manifestações, pichações e panfletagens, mesmo sob o duro tacão do AI-5, decretado em dezembro do ano anterior. Num certo dia, a caminho de um ato na Faculdade de Engenharia contra a visita do magnata Nelson Rockfeller ao Brasil, foi presa. Apenas cinco dias no presídio feminino da Piedade. Mas, demasiadamente visada, a AP lhe recomendou que deixasse Salvador.

Antes de seguir para o Recife, Liège conversou com o pai. O apoio que nesta, e em outras ocasiões, dele recebeu tornou-a sempre grata. Hercílio seria igualmente compreensivo com suas outras filhas que se insurgiram contra a ditadura – Maria Lúcia e, mais tarde, Ana Maria –, assim

Luiz Carlos Alves

Jô Moraes

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como entendia e recebia, solidariamente, aquela juventude cheia de sonhos e arroubos que vivia pela ampla casa do Desterro. Her-cílio ainda viveria mais 18 anos, morrendo em 1987, aos 76 anos, fulminado por um derrame.

Recife foi uma escala muito breve rumo ao destino final – Fortaleza –, onde Liège atuou no setor de serviços da AP. Era a companheira Glória que cobria pontos, estabelecia contatos, da-tilografava documentos (entre os quais o jornal Libertação). Após breve passagem pelo grande magazine Romcy, como vendedora do setor de brinquedos, passou dois anos como secretária do di-retor da Companhia Vesil Industrial de Roupas.

Em 1972, de volta ao Recife, casou-se com o também mi-litante Artur de Paula, revolucionário de primeira hora. Logo em seguida, ambos se incorporaram ao PCdoB. A primeira filha, Hele-nira, nasceu em fevereiro de 1974. Em abril, Liège resolveu visitar a família, em Salvador. Estava lá quando soube da prisão de Artur, no Recife, mas só mais tarde conheceria os suplícios a que o mari-do fora submetido. Fugiu para o Rio de Janeiro, onde se asilou até julho do ano seguinte na casa de parentes. De volta a Salvador, a pequena Helenira, com um ano e meio de idade, morreu vítima de difteria (embora tivesse sido vacinada). Artur voltou a Salvador em dezembro, em liberdade condicional, somando-se a Liège no luto pela morte da filha.

Estabelecida na capital baiana, ela conseguiu concluir, em 1976, o curso de bibliotecono-mia interrompido sete anos antes pelo Decreto 477. Em novembro, nasceu sua segunda filha, Lia. No mês seguinte, janeiro de 1977, Artur foi preso novamente.

***Perseguida após uma panfletagem contra a decretação do AI-5, em dezembro de 1968, Jô

escondeu-se e, logo em seguida, sob risco de prisão iminente, viu-se obrigada a deixar João Pes-soa. Desembarcou no Recife em fevereiro de 1969, véspera de Carnaval. A primeira tentativa de seguir a militância – uma panfletagem na porta de uma tecelagem do bairro Torre – acabou mal. Jô e seus companheiros foram presos. No DOPS, uma explicação que funcionou: chegara no dia anterior, viera fazer vida enquanto não arranjava emprego. Moça simples, firme, expondo nos interrogatórios a indignação dos inocentes, convenceu.

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Liège Rocha, presa no Congresso da Ibiúna

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O alívio por ser solta, na manhã da Quarta-Feira de Cinzas, durou pouco. Seu noivo, também preso, revelou sua identidade e a polícia, em seguida, identificou Jô. A perseguição que se seguiu a obrigou a deixar o Recife. Em plena política de integração na produção, na época praticada pela AP, a estudante de serviço social foi trabalhar nos canaviais do Cabo, região me-tropolitana do Recife. Dividia-se entre os trabalhos domésticos na casa do camponês militante da organização em que se hospedara, e que a apresentava como sobrinha, e a lida na roça carpindo no entorno dos pés de cana, sob a canícula ardente do verão. Ainda assim, trabalhava com maca-cões fechados nos pulsos e nos tornozelos, modo de proteger-se contra as folhas afiadas da cana. Na primeira vez em que manuseou a foice, atingiu seu joelho.

A condição de mulher lhe pesava. O dentista a quem recorreu para estancar uma tormen-tosa dor de dente assediou-a descaradamente. Fugiu do consultório e aplicou em si própria uma dose do analgésico Sossegon. Também lhe pesava testemunhar a cultura primitiva e supersticio-sa que assolava os camponeses. A forte diarreia de uma criança, diziam, resultava de um racho de Sol, ou de Lua, passado por cima dela enquanto dormia. A cura? Lançar sobre a criança, sem que ela esperasse, a água mantida sob o sereno, a água serenada. Era o banho de susto, tiro e queda para diarreias e outros males, diziam.

Zona de tradição de luta, logo o movimento dos camponeses incendiou os canaviais do Cabo. Explodiram greves. No meio da plantação, reuniões noturnas. De uma delas participou um dirigente da AP, o ex-presidente da UNE José Luiz Guedes. E como voltar para sob o breu da noite sem luar? “É só seguir o giro da venta”, disse um camponês. O rumo do nariz, o faro, fitar o rumo e seguir. Décadas mais tarde, Jô reconheceria na indicação simplória do trabalhador um forte ensinamento teórico que a acompanhou desde então.

Panfletava nos sítios vizinhos, atividade perigosa, a começar pela alcaguetagem dos ca-chorros com seus latidos insanos.

– Cachorro só é amigo em tempo de paz – disse alguém.Ao movimento, a polícia respondeu com a repressão. Mais uma vez anunciava-se para

Jô o risco de prisão. Mais uma vez deveria fugir. Depois de esconder-se em dois conventos do Recife por alguns meses, seguiu para São Paulo. Mas quem viajava com dinheiro suficiente para duas refeições e diária num hotel vagabundo não era mais Maria do Socorro Moraes Fragoso, mas Josydeméia Santiago, nordestina com o cabelo louro oxigenado.

O casal de sociólogos recém-chegados de Paris certamente não imaginava o conforto que sua acolhida provocou na jovem que aportara em São Paulo fugitiva da repressão.

Jô fazia em São Paulo o que Liège fizera por dois anos em Fortaleza: o trabalho de serviços da AP. Para sobreviver, trabalhou no Bondinho, jornal da rede Pão de Açúcar de supermercados,

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junto com Carlos Azevedo e Elifas Andreato. Nas horas livres – raras – lia Mao Tsetung. Pouco Marx, pouco Lênin, muito Mao Tsetung.

Mas a vida clandestina era asfixiante. Certo dia Jô leu nos jornais um decálogo contra o terrorismo. Chamou-lhe a atenção o mandamento que orientava cada morador de prédios a prestar atenção nas descargas dos vizinhos e comunicar à autoridade policial mais próxima caso a quantidade das descargas fosse exagerada em relação ao número dos que ali moravam. Nas ruas, topava com frequentes barreiras policiais que paravam ônibus e transeuntes para verifica-ção de identidade. À menor suspeita – um documento mal conservado, uma voz nervosa, uma palidez no rosto, um gesto trêmulo – a pessoa era recolhida para averiguação. A clandestinidade impunha ao militante severa e permanente vigilância, de modo a escapar dessas armadilhas que poderiam lhe custar a liberdade e a vida.

Em 1972, ao chegar a Belo Horizonte, a jovem nordestina abandonara a oxigenação dos cabelos e não era mais Josydeméia Santiago – nome descoberto pela polícia –, mas Maria José das Neves Costa. Na capital mineira, como ocorria na época com a maioria dos militantes da AP, ingressou no PCdoB. No Parque Industrial, em Contagem, onde foi morar, tornou-se secretária da Associação de Moradores e da creche Criança Feliz. Mas três anos depois já estava no Rio de Janeiro, trabalhando com Haroldo Lima na reconstrução do Partido, que havia se desestrutu-rado. No início de 1977, de novo em Belo Horizonte, de onde não mais sairá. Ali nascerão seus filhos – Ana e Luís – e ela iniciará, em breves anos, a vida pública que a tornará das figuras mais populares do vasto estado mineiro.

***No início dos anos 1980 o PCdoB ainda era ilegal. Mas seus dirigentes, anistiados em agos-

to de 1979, haviam retornado à vida política aberta. Em 1981 João Amazonas passou a estimular a realização de encontros nacionais – os chamados ativos – para tratar da política do Partido para as mulheres, quando então Jô Moraes e Liège Rocha se conheceram e, ao lado de Líliam Martins, Olívia Rangel, Lúcia Rincon, Eline Jonas, entre outras, criaram as bases da política emancipacio-nista que viria a ser institucionalizada pelo PCdoB em seu VI Congresso, realizado em 1983.

A partir dessas interlocuções capitaneadas por João Amazonas, surgiram diversas inicia-tivas, entre as quais a criação de uniões de mulheres em vários estados.

Em Minas, Jô Moraes presidiu o Movimento Popular da Mulher, em 1983. Na Bahia, Liège Rocha, que havia participado ativamente dos movimentos pela anistia e pelos direitos humanos, foi a primeira presidente da União de Mulheres de Salvador, criada em 1985. Em 1988, surge a União Brasi-leira de Mulheres (UBM), sob a presidência de Jô Moraes. Liège presidiu a entidade entre 1996 e 2003.

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***A ativa participação na luta política e nos movimentos sociais – com destaque para a luta

emancipacionista – rendeu a Jô Moraes, integrante do Comitê Central do PCdoB desde o con-gresso de 1983, uma trajetória parlamentar iniciada em 1996, quando eleita vereadora em Belo Horizonte, reeleita em 2000. Em 2002 elegeu-se deputada estadual. Em 2006 foi para a Câmara Federal, reelegendo-se em 2010.

***A vida acidentada de Liège ainda teria um capítulo dramático. Em 1982, por conta do

lançamento da revista que historiava a guerrilha do Araguaia, foi presa junto com dez compa-nheiros. Vinte e dois dias atrás das grades, os primeiros dez incomunicável.

Em 1986 seria transferida para São Paulo e, de lá para cá, ocupou numerosas posições, no Partido e no estado, sempre no campo da luta emancipacionista. Entre 1989 e 1992, foi uma das dirigentes da Coordenadoria Especial da Mulher, na gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo. Ao deixar a presidência da UBM, em 2003, integrou-se à Secretaria Especial de Política para as Mulheres do primeiro governo Lula. No PCdoB, de cujo Comitê Central participa, as-sumiu a secretaria de Mulheres em 2007 e, como tal, foi integrada à Comissão Política Nacional.

Do Fórum Nacional Permanente sobre a Questão da Mulher, criado pelo PCdoB em seu XI Congresso, realizado em 2005, e coordenado por Liège, também participa Jô Moraes.

Arquivo Fundação Maurício Grabois

Congresso de Fundação da UBM

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Sangue na tribuna da Assembleia Legislativa

Na tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo, a cena não é apenas incomum, mas dramática. O parlamentar ensanguentado – o sangue já ressequido cobre-lhe parte dos cabelos e do pescoço e espalha-se pela camisa e pelo paletó – denuncia a agressão sofrida havia pouco por parte de soldados da Polícia Militar. Ao chegar à Assembleia, logo após um confronto entre manifestan-tes contrários às privatizações do governo FHC e milicianos diante da Bolsa de Valores, bem que o aconselharam a lavar-se e trocar de roupa. Mas ele insistiu em se pronunciar assim como chegara, denunciando a repressão policial com a contundência dos ferimentos e do sangue provocados em seu próprio corpo por golpes de cassetete. “Esta é uma situação indecente”, proclamou.

Cena dramática, incomum para os padrões da Assembleia Legislativa, mas nada estra-nhável em se tratando do deputado Jamil Murad, o denunciante ensanguentado. Afinal, em sua longa trajetória de militante político trazia a marca de estar sempre à frente do movimento social, política e fisicamente, para o que desse e viesse. Como deputado, impunha-se mediar soluções entre manifestantes e policiais, evitando confrontos. Numa greve de portuários em Santos, em despejos do sem-tetos de São Paulo ou sem-terras no Pontal do Paranapanema, nos movimentos reivindicatórios ou nos protestos políticos, lá estava ele intercedendo em favor dos que lutavam por seus direitos.

Nem sempre essas mediações resultaram pacíficas. Em uma rebelião ocorrida no presídio do Carandiru – o mesmo que, mais tarde, seria palco da chacina de 111 detentos pela Polícia Militar – Jamil foi espancado violentamente por agentes penitenciários, agressão capturada pela reportagem da Rede Globo, que transmitiu o episódio ao vivo para todo o país.

Desde cedo fora assim, um Jamil cordial e solidário, o que lhe valia amizades e cari-nhos. Em José Bonifácio, o minúsculo município na região de São José do Rio Preto, onde nas-cera em 1943, o percurso cotidiano de seis quilômetros até a escola ia serpenteando pelos sítios, madrugada ainda, arregimentando meninos e meninas, semelhava passeata, entre cantorias e brincadeiras. À frente da alegre marcha que reunia, ao cabo, mais de 30 crianças, o menino Jamil, um dos quatro filhos dos pequenos agricultores Hadige e Emídio Murad, que aos outros encan-tava por seu afeto e bondade.

Aos 15 anos, recém-concluído o ginásio, a notícia da revolução cubana, estampada em manchetes garrafais da Última Hora, quebrou a modorra interiorana. Jamil e um grupinho de amigos, mesmo sem saber muito por que, torciam pelos barbudos de Fidel Castro. Mais tarde, dividindo com universitários uma república em São José do Rio Preto, onde cursava o científico,

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foi saber mais das coisas, pois ouvia atentamente os debates sobre filosofia e política daquela rapaziada esperta da faculdade. Cimentou assim uma visão política, o que não era tão difícil de ocorrer naqueles insubmissos e efervescentes primeiros anos da década de 1960.

Mas foi em Ribeirão Preto, onde iniciou seu curso de medicina na Universidade de São Paulo (USP), em 1963, que Jamil se abriu definitivamente para a consciência e a ação políti-cas. Apoiava o governo Jango e suas reformas de base e, como integrante da Liga Brasileira de Combate à Moléstia de Chagas, ligou-se ao centro acadêmico liderado pela esquerda. Nas férias, montava num jipe com alguns colegas e ia tratar do povo na prevenção de Chagas. Mantinha a cordialidade de sempre e a consequente capacidade de granjear amizades de diferentes campos ideológicos. Era comum colegas – filhos de gente abonada – convidarem-no para padrinho de casamento, quando o pobretão Jamil muitas vezes não tinha dinheiro para o terno e o presente.

Em 1968 ele já estava na linha de frente das mobilizações, enfrentando os cavalos da polí-cia nas ruas com bolinhas de gude, realizando comícios relâmpagos, pichando muros, liderando passeatas. Foi quando um colega lhe passou, muito reservadamente, um documento do PCdoB que defendia a radicalização da luta contra a ditadura. Depois de o ler atentamente, Jamil procu-rou o colega e foi lacônico: “Estou dentro”.

Arquivo

Trajetória de Jamil Murad é marcada pela defesa de manifestantes contra a truculência da polícia

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Já em São Paulo, em 1971, concursado no Hospital do Servidor Público e especializando--se em nefrologia no Hospital das Clínicas, Jamil seguia a máxima de estar sempre com a mo-chila, pronto para qualquer tarefa, sobretudo a ligada à luta armada. Mas não sabia que então a guerrilha gestava-se no Araguaia. Submerso na atividade partidária, participava de reuniões, viajava para contatos e articulações no interior, levando documentos, distribuindo orientações. Movimentações rigorosamente clandestinas, circunstância imposta pela ditadura que, sob o ta-cão do general Garrastazu Médici, vivia o ápice do terror. Naqueles primeiros anos da década de 1970 o Partido fingia-se de morto.

Em 1975 a mulher, Ana Consuelo, com quem Jamil se casara em 1969, ainda em Ribeirão Preto, morreu aos 29 anos por complicações decorrentes de um transplante de rim, deixando uma filha. Orientado pelo Partido a se manter informado, comprou um aparelho de rádio Transglobe para seguir as transmissões da rádio Tirana e passou a ler, diariamente, a Folha de São Paulo. E foi nas páginas do diário paulista que, na manhã de 17 de dezembro de 1976, se deparou com a notícia da queda da Lapa, as fotos do massacre, os camaradas trespassados por balas – episódio que, mes-mo com a rolagem do tempo, nunca deixou de lhe arrancar lágrimas quando mencionado.

Oito meses após a chacina, Jamil foi recontatado pelo Partido, ingressou no Comitê Esta-dual e, junto com seus camaradas Aurélio Peres, Pedro de Oliveira, Ana Martins, Vital Nolasco e Walter Sorrentino, entre outros, entregou-se à tarefa de reconstruir a organização partidária e buscar ligações com o movimento social. A missão começou em bairros da periferia, com Jamil e um grupo de médicos recém-formados atendendo ao povo desassistido, fazendo palestras e reunindo lideranças. Estavam plantadas as sementes do que viria a ser, logo em seguida, o forte movimento contra a carestia, propulsor de uma nova reação popular à ditadura.

Em 1978 Jamil passou a integrar a diretoria do Sindicato dos Médicos de São Paulo, ao qual se filiara dois anos antes, pelas mãos de Júlia Roland, com quem mais tarde se casaria.

***Formada em Medicina pela Universidade Federal de Goiás (UFGO), em 1973, filiada

ao PCdoB desde o início de 1979, a maranhense Júlia Maria Santos Roland sempre articulou o exercício da profissão com a militância política. No ambulatório médico da fábrica da Phil-co, no Tatuapé, por exemplo, atendia às operárias e as convidava para a luta sindical e para o Partido. A Tribuna da Luta Operária, que vendia em portas de fábricas e no próprio HSPE, foi instrumento valioso.

Com o direito à sindicalização do servidor público, assegurado pela Constituição de 1988, ela ajudou a criar o Sindicato dos Trabalhadores Públicos de Saúde do Estado de São Paulo (Sin-

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saude), passando a atuar nesse segmento. Presidiu por duas gestões a Associação dos Funcio-nários do Instituto de Assistência Médica do Servidor Público Estadual (Afiamspe), participou da direção da Confederação Nacional da Seguridade Social (CNTSS) e representou a CUT no Conselho Nacional de Saúde, de 1998 a 2004.

Desde 1988 integra a direção do PCdoB de São Paulo e também a da capital, que presidiu de 2002 a 2009. Em 2001 foi eleita para o Comitê Central. No início de 2012, atuava no Ministério da Saúde, como Diretora do Departamento de Gestão Participativa.

***No Sindicato dos Médicos, Jamil inaugurou uma atuação no movimento sindical que o

acompanharia pelos próximos 12 anos. Como sindicalista estabeleceu contato com os sindicatos operários, em particular o dos metalúrgicos, onde prosperava a liderança de um torneiro esper-to, capaz e carismático: Luiz Inácio da Silva, o Lula. Jamil seguiu avante. Estava na organização do I Conclat, na formação da Corrente Sindical Classista, que atuou primeiro na CGT, depois na CUT e, por fim, alimentou a constituição, em 2007, da Central dos Trabalhadores e Trabalhado-ras do Brasil (CTB).

Em novembro de 1979, coube-lhe hospedar o dirigente comunista João Amazonas, recém--chegado do exílio. Por três meses Jamil pode testemunhar, como aprendizado e com admiração, o cotidiano do velho revolucionário, o acordar cedo, o trabalhar metódico, a disciplina de horá-rios, a inteira compenetração na liderança do Partido e na lida revolucionária. Acompanharia Amazonas até seus últimos dias, em maio de 2002.

Nas eleições de 1990 a longa trajetória de lutas de Jamil converteu-se em votos. Foi eleito deputado estadual e reeleito em 1994 e 1998. Em 2002 foi conduzido à Câmara Federal. Em 2008 tornou-se vereador. Próximo dos 70 anos de idade, não dá mostras de se aposentar. Orgulha-se, em 44 anos de medicina, de jamais ter cobrado consulta, pois sempre ligado ao siste-ma público de saúde. E de peripécias que fortaleceram seu currículo de militante exemplar. Era comum ir às portas de fábricas, madrugada ainda, desafiando a ditadura, para levar a palavra do Partido através da Tribuna da Luta Operária. Toda semana percorria os 15 andares do Hospital do Servidor, em São Paulo, sobraçando 200 exemplares do jornal. Vendia todos.

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Os sete irmãos, em fila, para depor

E o delegado resolveu chamá-los todos ao mesmo tempo para depor. Corria o segundo semestre de 1974 e o Brasil vivia os primeiros meses de um novo governo da ditadura, chefiado pelo general Ernesto Geisel. Dez dos 11 filhos da professora primária Margarida e do posseiro Nelson Coelho lotaram a sala de interrogatórios do DOPS de Goiânia. De todos, o delegado só desejava saber sobre Maria do Socorro, a irmã do meio, e Nelma, a mais velha: em que parte do Nordeste viveram nos últimos anos, com quem conviveram, o que fizeram. Como Maria do Socorro encontrava-se na cidade, aguardando o nascimento de sua terceira filha, esperado para dezembro, e sem resistência a depor, nunca se entendeu a razão de o delegado convocar a todos.

Dos 11 irmãos, pelo menos sete haviam cometido (pior: continuavam cometendo) um mesmo “crime”: lutar frontalmente contra a ditadura militar. Manoel Pedro, que militava na Aliança Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighela, estivera preso por três me-ses. Nilva Maria e Ana Maria, universitárias, por um ano. Para evitar as prisões, duas outras deixaram Goiânia: Nelma, em 1968, para o Ceará, e Maria do Socorro, em 1969, para Alagoas. José Antonio, o mais novo, havia sido sequestrado anos antes e largado numa estrada de Brasília. Hildebrando era o único a ainda ver-se livre da cadeia. Já advogado, tratara da defesa dos irmãos presos. Fora Manoel Pedro, os demais militavam na AP.

Os irmãos chegaram juntos e saíram juntos do DOPS, pois quem depunha devia aguar-dar os demais. No entanto, a despeito do estardalhaço de reunir os dez durante um dia inteiro de interrogatórios, o delegado saiu frustrado. Nenhum dos irmãos conhecia o destino tomado pelas irmãs Maria do Socorro e Nelma quando de sua fuga de Goiânia, muito menos com quem conviveram e o que fizeram. E Maria do Socorro não disse palavra. No início de 1975, quatro meses depois do interrogatório e dois após ter nascido a filha Fernanda, voltou ao Recife para reassumir suas tarefas na AP.

***As turbulências da luta política nos tempos ásperos da ditadura colheram a jovem Ma-

ria do Socorro feito um vendaval. Às vésperas de completar 15 anos já militava entre os secun-daristas de Goiânia e na AP. Dois anos depois, em 1969, mergulhou na clandestinidade. Nos 15 anos seguintes se casaria, teria filhos, mudaria de lugar com frequência, sempre tangida pelas vicissitudes da luta subterrânea.

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Filha de pais maranhenses, nascida em Cristalândia, no atual Tocantins, em 1952, aos 11 anos Maria do Socorro já estava na capital com a família. Do Liceu de Goiânia, onde iniciou o científico (hoje ensino médio), foi expulsa porque cedo havia se metido no movimento estudan-til. Na Escola Técnica Federal, para onde se transferiu, não chegou a concluir o curso. A clandes-tinidade a colheu antes.

Despojada e corajosa, a jovem Maria do Socorro – logo conhecida apenas por Socorro Go-mes – era militante de frente. Atuava junto à União Goiana de Estudantes Secundaristas (UGES) e à União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES). Em meados de 1968, durante um conselho da UBES em São Paulo, participou de manifestação diante da Universidade Mackenzie, na Rua Maria Antonia, centro da direita estudantil paulista. Na refrega que se seguiu, os manifestantes foram atacados com ácido sulfúrico por alunos da Mackenzie ligados ao Comando de Caça aos Co-munistas (CCC). Com as pernas queimadas, Socorro ficou amparada na casa de Terezinha Zerbini, que poucos anos depois lideraria a constituição do Movimento Feminino pela Anistia.

A iminência de prisão em Goiânia – e provável condenação pela Lei de Segurança Na-cional – empurrou-a para a clandestinidade. Eram meados de 1969 e havia meses vigia o tene-broso AI-5. Ao deixar Goiânia, Socorro levava consigo um complicador: estava grávida. Assim, antes de seguir para o destino indicado pela organização, Alagoas, onde já estava seu marido, Francisco Rodrigues Chaves, também militante da AP, passou no Recife o tempo necessário para o nascimento da filha. Em seguida partiu para a Serra do Pajeú, na localidade de Pariconhas, dis-trito do município alagoano de Água Branca. Dali, no final do ano anterior, Aldo Arantes saíra preso, depois de ter organizado uma escola de formação de quadros camponeses da AP. Quando Socorro lá chegou, a organização vivia o ápice de sua política de integração na produção.

Mas a temporada em Pariconhas – vivendo e trabalhando com os camponeses e organi-zada numa célula da AP com cerca de 15 militantes – durou pouco, não mais que oito meses. A suspeita de subversão – a mesma que havia caído sobre Aldo Arantes e seus companheiros no ano anterior – obrigou uma nova fuga, desta vez para Maceió. Ali trabalhou como empacota-dora na Fábrica de Biscoitos e Macarrão Brandini, ao mesmo tempo em que integrava a direção municipal da AP. Mas foi logo demitida da fábrica por ter participado de uma greve, passando a trabalhar como atendente na Santa Casa de Misericórdia. Era o início dos anos 1970, quando nascia seu segundo filho, Marcos José, e ela ingressava no PCdoB.

Em 1974, vulnerável também em Maceió, muda-se para o Recife, onde uma escalada de prisões, entre os meses de fevereiro e março, alcançara toda a direção do Partido. Socor-ro, com os filhos Enelson e Marcos José e grávida de Fernanda, ajudaria na recomposição da estrutura partidária. Mas também ali a estada foi breve. A casa em que morava, no conjunto popular Chico City, acabou invadida pela polícia. Tendo saído, junto com os filhos, para en-

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contrar companheiros, Socorro livrou-se da prisão. Mas teve que deixar a cidade. Seguiu para Goiânia, onde se surpreendeu com sua convocação – e dos irmãos – para depor, todos juntos, na delegacia do DOPS. Como de nada resultou a extravagância do delegado, logo após o nascimento da filha, voltou ao Recife, rejeitando pro-posta que recebeu para deixar o país. Na capital per-nambucana começou a estudar Direito, mas as duras condições de vida não lhe permitiram completar sequer um mês do curso.

Em 1978 voltou a Goiânia, divorciada, três fi-lhos pequenos. Prestou novo vestibular para Direito e empregou-se num jornal. Mas em meados do ano seguin-te, aceitou convocação do Partido para trabalhar no Pará, junto à Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (Fase), organização não-governamental li-gada à Igreja Católica dedicada à educação popular entre os camponeses. Instalou-se na localidade de Santa Luzia, município de Ourem, a 100 quilômetros da fronteira com Maranhão. Além dos trabalhos na Fase, Socorro tratava da conscientização dos camponeses e sua organização para lutar contra a grilagem e a pistolagem que grassa-vam na região por parte dos grandes latifúndios. Mas cinco anos depois Socorro e seus companheiros foram denunciados como comunistas, perderam seus empre-gos na Fase e sobrevieram ameaças de morte, de modo que se viram forçados a deixar a região.

A transferência para a cidade de Ananindeua, na região metropolitana de Belém, em 1983, iniciou para Socorro fase inteiramente nova na vida. A anistia a livra-ra das incriminações passadas, o Partido, apesar de ain-da ilegal, expunha-se nas comissões por sua legalidade espalhadas pelo país e nas páginas da Tribuna da Luta Operária, enquanto a ditadura seguia o célere caminho da decomposição, a apenas dois anos da derrocada final.

Arquivo Fundação Maurício Grabois

Folheto da primeira campanha de Socorro Gomes, candidata a deputada estadual em 1986

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Em Ananindeua Socorro iniciou o forte movimento comunitário que desaguaria, muito em bre-ve, na Federação do Movimento Comunitário do Pará (Fecampa), da qual ela seria a primeira presidente. Esse mesmo movimento a conduziu à vice-presidência da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam).

No movimento emancipacionista, do qual participava já desde os tempos maranhenses de Santa Luzia, presidiu a primeira diretoria do Conselho Municipal da Condição Feminina de Belém, pioneiro no estado, em 1985. Na capital a partir de 1986, dois anos depois se elegeu verea-dora com a maior votação da história da cidade: oito mil votos. Em seguida, em 1990, nova fa-çanha: a mais votada deputada federal da história do Pará: 65 mil votos. Reconduzida à Câmara Federal em 1994, ficou na suplência em 1998, mas assumiu um ano e meio depois. Em 2002, nova suplência, e mais uma vez assumiu na metade do mandato. Com a eleição da governadora Ana Júlia Carepa, tornou-se secretária de Justiça e Diretos Humanos, cargo que deixou para assumir a Presidência do Conselho Mundial da Paz, em 2008, posição a que chegou por sua atuação, des-de 2004, na direção do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz). Transferiu-se então para São Paulo.

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Da mistura de judeus, índios e luta

Judeus sefarditas – cujos ascendentes haviam fugido das perseguições inquisitoriais de Portugal e Espanha, muitos deles para o Marrocos –, os Cony espalharam-se por Peru, Argentina e Brasil. Luís Gonzaga Cony chegou ao Rio Grande do Sul e se casou com a descendente guarani Jesuína Garcia. Teve início a saga dos Cony gaúchos, espalhados, em seguida, por todo o estado, um pouco índios, um pouco judeus, como sói acontecer nesse país talhado a misturas. Desse tronco nasceu Jussara Cony, em 1942, em Cacequi, quase às bordas da fronteira argentina.

Da bisavó guarani orgulha-se de ter herdado não apenas traços no rosto – olhos puxados e cabelos lisos – como também, e principalmente, a sabedoria ancestral, os mistérios da flora, das plantas medicinais. Mas a tradição revolucionária provém dos Cony, do avô Carlos, do pai Gre-gório e especialmente de uma tia, mulher forte, vigorosa, enfermeira da saúde pública e militante do Partido Comunista que, batizada com o nome de Jesuína Gabriela, em homenagem às avós, preferia ser chamada apenas de Cony. Dessa vertente de rebeldia nasceu o nome – Jussara – em homenagem à mulher de Sepé Tiaraju, o guerreiro guarani que no século XVIII enfrentou solda-dos espanhóis e portugueses nas reduções jesuíticas do Rio Grande do Sul.

Filha de ferroviário, Jussara e a família deixaram Cacequi, passaram por São Gabriel, Pe-lotas e, finalmente, desembarcaram em Porto Alegre, quando a menina já estava com 12 anos. A essa altura a mãe havia morrido (aos 23 anos, de tuberculose assintomática, mal de família), deixando três filhos sob os cuidados do viúvo, da tia Cony e dos avôs Carlos e Stela. Em Pelotas o pai se casou novamente, com Tereza Abott, mas alguns anos depois estava outra vez viúvo, deixando uma filha de cinco anos, Anna Rita, que Jussara, dez anos mais velha, criou. Como o salário de ferroviário era insuficiente para sustentar toda a família, a avó fazia balas de coco e pastéis para vender. Aos 14 anos Jussara começou a trabalhar como balconista nas lojas Renner.

Concluído o ginásio no Colégio Rui Barbosa, administrado por judeus, onde a avó lhe conseguiu bolsa, Jussara se casou – contava 17 anos – com o primeiro namorado e, em 1962, com o nascimento da primeira filha, interrompeu os estudos. Só os retomaria sete anos depois, em 1969, já mãe de Anna Amélia, Stella Maria, César Augusto e Carlos Augusto, concluindo o segundo grau no Colégio Júlio de Castilhos. Em 1972 iniciava, aos 30 anos de idade, o curso de Farmácia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em cujo setor administrativo já trabalhava desde 1962.

A distância da escola, em função dos filhos, não a tornou distante das lutas políticas. Em agosto de 1961, aos 19 anos, inscreveu seu nome – Jussara Cony Marques dos Santos – entre os

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que se alistaram para lutar pela legalidade no movi-mento liderado pelo então governador Leonel Brizola em defesa da posse do vice-presidente João Goulart. Ela e o marido, César Augusto Marques dos Santos, do qual viuvou mais tarde, apresentaram-se no Mata--borrão, prédio no centro de Porto Alegre que recebia adesões do povo ao movimento. Um dos líderes do recrutamento era João Amazonas, dirigente do PCB no estado. Mas Jussara só viria a conhecê-lo quase 20 anos depois.

Ao ingressar na universidade, Jussara iniciou vertiginosa trajetória que a fez militante dos movimen-tos estudantil, sindical e comunitário e de praticamente todas as lutas que cimentaram a derrocada da ditadura militar e, mais adiante, da penosa e lenta reconstrução democrática. Em 1982 elegeu-se para a Câmara Munici-pal de Porto Alegre e, em 1990, à Assembleia Legislativa.

Já no primeiro ano de faculdade foi presidente da Associação das Turmas dos Estudantes de Farmácia da UFRGS, em seguida diretora do diretório acadêmi-co. Em 1974 era recrutada pelo PCdoB. Viúva aos 35 anos, prosseguiu. Em 1979, quando se tornou distribui-dora do jornal Tribuna da Luta Operária, tudo pareceu acontecer. Já no segundo casamento e com um filho nascido no ano anterior, foi eleita a primeira mulher presidente da Associação dos Farmacêuticos Químicos do Rio Grande do Sul, cumprindo mandatos até 1982. Tendo como pauta a soberania nacional, a saúde como bem social e o combate à ditadura militar, a associação participou fortemente do grande Movimento pela Re-forma Sanitária brasileira que, em 1988, desembocaria na criação do SUS pela nova Constituição.

Em 1979 culmina a luta pela anistia – afinal de-cretada em agosto – da qual Jussara participou desde

Arquivo pessoal

Jussara Cony

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a fundação dos primeiros comitês femininos pela anistia, sob a liderança nacional de Terezi-nha Zerbini e, no Rio Grande do Sul, de Quita Brizola, irmã de Leonel Brizola. Na Federação das Associações Comunitárias de Bairro (Fracab), Jussara lutou contra a carestia, levantando a bandeira dos medicamentos inacessíveis ao povo. Nesse mesmo ano de 1979, junto com outras companheiras, fundou o Movimento Unificado da Mulher Gaúcha (MUMG), que incluía mu-lheres de vários partidos, inclusive do PDT, onde despontava uma economista dentuça e muito afirmativa – às vezes até demais – da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul: Dilma Rousseff. Junto com ela Jussara travaria outras lutas, nos anos seguintes, até a campanha presidencial de 2010, quando a ex-pedetista sucederia o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Foi um ano sem tréguas, aquele 1979. Três filhos adolescentes e João, o mais novo, nascido no ano anterior, preso no canguru enquanto a mãe encarava suas lutas e confrontos, alguns de-les tormentosos embates de rua. Numa manifestação convocada pela Fracab e pelo Movimento Contra a Carestia, por exemplo, enfrentaram-se a Brigada Militar e as manifestantes que pro-testavam contra a carestia. Mulheres com seus filhos contra brigadianos e seus cassetetes e suas bombas de gás e seus cavalos e cachorros.

Com tal trajetória, não foi surpresa quando o nome de Jussara Cony surgiu, inconteste, para atender à necessidade que o Partido, embora ainda ilegal, tinha de apresentar mais ampla-mente sua mensagem. Era um momento em que as lutas, ainda mais desimpedidas pela recente anistia, empurravam a ditadura cada vez mais ladeira abaixo. Inscrita no PMDB, ela se elegeu ve-readora em 1982. A barreira transposta não fora apenas a dos votos. Num dos últimos comícios da campanha, ela e seus companheiros foram para a esquina da Avenida Borges de Medeiros com a Rua da Praia, a Esquina Democrática (como ela própria batizaria anos depois, no movi-mento das Diretas Já), para ensinar o povo a votar. A polícia reprimiu, e na pancadaria Jussara teve rompimento de pleura (a membrana que envolve o pulmão). Foi salva por um médico ami-go, que a levou para o hospital. Dias depois, no comício final da campanha, lá estava ela, toda enfaixada, pedindo votos para derrotar a ditadura. A indignação causada pela repressão somou--se à brava militância para elegê-la.

O mandato, estendido até 1988 (a partir das eleições de 1986, Jussara assumiu a legenda do Partido), tornou-se referência dos movimentos sociais da cidade. Exemplo foi a articulação, em seu gabinete, para a criação da União de Associações de Moradores de Porto Alegre (UAM-PA) que, junto com outras entidades do movimento social, realizariam todas as mais de dez ocu-pações urbanas da grande Porto Alegre.

Em 1988 obteve a maior votação da história de Porto Alegre: dez mil votos. Mas não se reelegeu, traída pelos mecanismos do quociente eleitoral. Em 1990, com 34 mil votos, Jussara

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conquistou uma cadeira na Assembleia Legislativa, que ocupou por quatro mandatos consecu-tivos, o último dos quais com 54 mil votos. Em 2006 foi vice de Olívio Dutra, que passou para o segundo turno, mas perdeu para Yeda Crusius. Entre 2007 e 2010 foi diretora-superintendente do maior complexo público de saúde do sul do país, o Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre. Primeira suplente de deputada estadual, em 2011 tornou-se secretária de Meio Ambiente no governo Tarso Genro, cargo que deixou em 2012 para novamente candidatar-se à Câmara Municipal de Porto Alegre.

À beira dos 70 anos, com cinco filhos, 18 netos e oito bisnetos, a sempre irrequieta Jussara Cony não dá mostras de “sossegar o pito”. Continua escrevendo prosa e poesia (já publicou al-guns livros), amando o teatro (com o primeiro marido participava de grupos de teatro de bairro) e a dança (seu grande sonho era ser bailarina). “Música, poesia e dança, alimento para o corpo e a alma”, como diz. Há 30 anos participa da Escola de Samba Imperatriz Dona Leopoldina, da zona norte de Porto Alegre, que ajudou a fundar.

Raul Carrion (e.), Jussara Cony e Edson Silva na campanha eleitoral de 1990

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“Incorporemo-nos ao PCdoB”

No primeiro intervalo da reunião, Haroldo Lima e Renato Rabelo foram juntos ao banhei-ro e especularam, cochichando. Quem, entre os dois camaradas do PCdoB com quem debatiam a incorporação da AP seria o famoso João Amazonas? Havia ali um sujeito alto, afilado, elegante, muito educado, alguém cujo rosto vagamente lembrava o de Henry Fonda. Era o Amazonas, sem dúvida. Ficariam de olho nele.

Em 1973, Haroldo, Aldo Arantes e Renato Rabelo constituíam o núcleo dirigente da maio-ria da AP disposta a apressar a incorporação de toda a organização ao PCdoB, e haviam sido convidados pela direção do Partido para tratar do assunto. O encontro deveria concluir o pro-cesso que se desenvolvia nos últimos quatro anos, condicionado, sobretudo, pelos altos e baixos do debate interno na organização. Como Aldo encontrava-se na China, apenas Haroldo e Renato compareceram ao encontro realizado numa casa em algum bairro de São Paulo, à qual foram conduzidos vendados. Na sala com portas e janelas fechadas, sem qualquer visão para o exterior, foram recebidos por dois sexagenários, diante dos quais contrastava a juventude dos dirigentes da AP: Haroldo, com 34 anos e Renato com 31.

***Em abril de 1972, a Guerrilha do Araguaia, ainda em fase de preparação, fora atacada

por tropas militares. Entre dezembro desse ano e março de 1973, o PCdoB perdera, nas cida-des, quatro importantes dirigentes: Lincoln Cordeiro Oest, Carlos Danielli, Luiz Guilhardini e Lincoln Bicalho Roque, todos presos e, dias depois, assassinados sob tortura. Até então Da-nielli, junto com Pedro Pomar, representava o PCdoB nas conversações com a AP. Tais fatos apressaram a incorporação. Os dirigentes da maioria – particularmente Zé Antônio, Dias e Raul (ou seja, Haroldo, Aldo e Renato) – não viam mais razão em adiar o ingresso do conjunto da AP no Partido, naquele momento fragilizado pelo ataque à guerrilha e pelas irreparáveis perdas na cidade.

Na reunião com os dois dirigentes do PCdoB, Haroldo e Renato apresentaram um ba-lanço de como ocorrera o debate sobre a incorporação no interior da AP e o estado geral da organização. E comunicaram sua decisão de, diante das graves circunstâncias do momento, substituir a proposta de um processo mais demorado – a culminar num congresso bem mais à frente – pela de integrar-se às fileiras do Partido o mais rápido possível.

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O dirigente que até então mais ouvira do que falara, o baixinho magriço que lembrava um índio amazônico, tomou a palavra. Num tom de voz muito baixo, quase inaudível, mas muito articulado e fitando nos olhos os jovens dirigentes da AP, disse:

– Agora que começou a guerrilha, estamos na alça de mira da repressão. Estamos conde-nados à morte. E se nesse momento dramático vocês batem à nossa porta, pedindo ingresso no Partido, isso é algo de altíssimo mérito. Vocês estão querendo colocar seus nomes na lista dos condenados. Queremos manifestar nossa admiração e nosso reconhecimento pela atitude revo-lucionária que estão tomando.

Os dois dirigentes do PCdoB, velhos combatentes que conheciam muito bem as marchas e contramarchas da história mostravam-se sinceramente satisfeitos. Os jovens dirigentes da AP estavam visivelmente emocionados. Mas a alegria de todos ficou, assim, contida em apertos de mãos, sorrisos esboçados e algumas lágrimas que a juventude não conseguiu evitar. Nada que afetasse a estrita segurança de todos.

A incorporação da AP ao PCdoB dava seus passos finais. De volta da China, Aldo tomou pé da situação e concordou com as iniciativas encaminhadas. Nenhuma condição fora apresen-tada, nenhum cargo reivindicado. Em seguida à reunião que ajustou os derradeiros detalhes, o Birô Político do Comitê Central da Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil emitiu circular in-dicando como cada militante, individualmente, deveria solicitar ingresso no PCdoB. A circular, a última da AP, com a data de 17 de maio de 1973, intitulava-se Incorporemo-nos no PCdoB. Seu autor: Haroldo Lima.

A direção do Partido tomou, em seguida, suas primeiras decisões: Haroldo, Aldo e Renato passariam a integrar a Comissão Executiva Nacional. Os demais membros da direção nacional da AP, já na época Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil (APML), foram cooptados para o Comitê Central.

***Só mais tarde Haroldo e Renato saberiam que o sujeito pequeno, magro, cabelo cortado

rente, feições de índio, calçando um sapato de sola grossa de borracha, pouco glamoroso, que se apresentou como Monteiro, era o João Amazonas de quem todos falavam. O outro, aquele afilado, de porte elegante, cujo rosto vagamente lembrava o de Henry Fonda, que deu o nome de Mário, era outro dirigente legendário, Pedro Pomar. Conviveriam com ambos como discípulos, camaradas e amigos. Com Pomar até seu trágico assassinato na Chacina da Lapa, quatro anos depois. Com Amazonas, pelos 29 que se seguiram, até sua morte, em maio de 2002.

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Parecia festa, mas preparavam congresso

A movimentação começou no final daquela tarde de setembro de 1967 e prosseguiu até o amanhecer. Quase cem jovens aboletados na cozinha, copa e sala da ampla casa do publicitário Augusto Liberato Oliveira, na Rua Dr. Zuquim, 449, em Santana, zona norte de São Paulo. Havia tempos ali se realizavam, com frequência, festas e bailinhos de juventude, reunindo colegas dos cinco filhos de Augusto e Maria Adelaide de Oliveira, a Ada. Mas naquela ocasião os convidados haviam chegado mais cedo que o habitual e a noite transcorrera sem a exultante sonoridade das festas. Havia uma razão: o que ali ocorria não era nenhuma pândega juvenil, mas uma reunião preparatória do clandestino 29o Congresso da UNE, realizado pouco depois em Valinhos, nas cercanias de Campinas.

Havia tempos a casa da Rua Dr. Zuquim havia se tornado um centro de articulação nacio-nal do movimento estudantil e também ponto de passagem e até estadia de dirigentes da UNE. Nada estranhável. Ali a política estava entranhada no cotidiano. Os filhos ecoavam a efervescên-cia das faculdades, em crescente oposição ao regime militar instalado anos antes. Dois irmãos de Ada, que também ali moravam, traziam o contraditório político: um ligado ao PCB, outro sim-patizante do lacerdismo, a expressão do direitismo mais exacerbado das décadas de 1950 e 1960. Na família, para fazer jus à discrepância política, circulavam dois jornais: o conservador Jornal do Brasil e o já oposicionista Correio da Manhã.

Pedro, o mais velho, nascido em 1948, já andava às voltas com a JEC no Colégio Esta-dual Dr. Octávio Mendes, o Cedom, um dos 54 da zona norte. Atuava num movimento de solidariedade a setores excluídos da sociedade, especialmente os favelados. Volta e meia ele e lideranças dessas escolas eram chamados para conversas políticas com o então bispo auxiliar da região, dom Paulo Evaristo Arns, das quais saíam fortemente impressionados pela visão progressista do religioso.

Pedro ingressou no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP na fervura do ano de 1968. No turbilhão da célebre escola da Rua Maria Antônia, não demorou muito para conhecer a AP. E inaugurou vida política que lhe reservou, logo de início, o dissabor de uma prisão, em 1o de maio, na Praça da Sé. Estava lá quando estudantes e traba-lhadores apedrejaram o então governador Abreu Sodré e tomaram e queimaram o palanque que reunia autoridades da ditadura e pelegos. Dali em diante, várias prisões o forçariam a abandonar os cursos que insistia em retomar. Só voltaria aos bancos universitários décadas depois, em 2011, no Centro Universitário de Brasília (CEUB), desta feita no curso de Relações Internacionais.

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A atividade política também envolveria fortemente Ada, sua mãe, a partir de meados de 1969, quando se articulou pela soltura de Pedro, preso em julho pela tenebrosa Operação Bandei-rante (Oban), precursora do Doi-Codi. Ada começou defendendo o filho e logo defendia outros jovens igualmente presos, articulando-se com outras mães. Nascia aí o embrião do Comitê Femi-nino pela Anistia, criado mais tarde sob a liderança de Therezinha Zerbini.

Ada seguiria lutando pela anistia até sua concessão, em agosto de 1979. Com a volta dos exilados e, particularmente, de João Amazonas, ligou-se mais diretamente ao PCdoB, onde o filho já militava desde 1972, quando da incorporação da AP. Militante ativa, prestava diver-sos serviços ao Comitê Central. Integrante da direção do Partido em Campinas, para onde se mudou com a família em 1971, ajudou a fundar a Associação dos Funcionários Públicos Mu-nicipais de Campinas. Ada morreu em 1988, aos 68 anos, quando seguia para um comício de campanha política. Subia os degraus do ônibus quando ele arrancou e ela foi lançada para fora.

Trabalhando desde 1968 na editoria de arte da revista Veja, então dirigida pelo jornalista Mino Carta, Pedro passou a atuar no Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, para cuja diretoria foi eleito em 1978. A influência do PCdoB levou o sindicato a abrir-se ao movimento popular contra a ditadura, apoiando, sobretudo, o Movimento contra a Carestia de Vida (MCV) que, em setembro de 1978, levou a Brasília 1,1 milhão de assinaturas contra a alta do custo de vida. A partir de 1979, quando participou do lançamento da Tribuna da Luta Operá-ria, Pedro ligou-se às atividades de comunicação do Partido, o que viria a lhe render diversos enquadramentos na Lei de Segurança Nacional. Em outubro de 1984, logo após deixar a Veja e tornar-se profissional do Partido, sofreu sua sétima e última – e agora breve – prisão, ao lado de 40 outros militantes e dirigentes. A ditadura, extenuada e às portas de sua liquidação (a essa al-tura a campanha oposicionista de Tancredo Neves à Presidência da República levantava o país), lançara sobre o PCdoB um derradeiro – mas já impotente – ataque.

A morte súbita e precoce de Rogério Lustosa, então secretário nacional de Comunicação, em outubro de 1992, abriu um vácuo nessa importante frente partidária. Pedro, então membro do Comitê Estadual de São Paulo, foi convidado a preenchê-lo, tarefa que aceitou e cumpriu até o 11o Congresso, em 2005, quando a estrutura da direção executiva foi reestruturada.

Desde que integrou a comissão de recepção de João Amazonas, quando de sua volta do exílio, em novembro de 1979, Pedro estabeleceu com o dirigente máximo do Partido relação que só faria estreitar-se até sua morte, 23 anos depois. Sobretudo quando, já próximo dos 90 anos, Amazonas viu sua saúde debilitar-se, Pedro tornou-se amparo indispensável. Era assíduo no apartamento da Rua Rui Barbosa, na Bela Vista, que Amazonas dividia com sua mulher Edíria Carneiro, militante e artista plástica. O Velho (como o chamavam carinhosamente) já não compa-recia, como de costume, às reuniões diárias do Secretariado do Comitê Central, e havia transfe-

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rido para o vice Renato Rabelo quase todas as funções. De Pedro recebia informações do Partido e transmitia opiniões a serem levadas aos demais dirigentes. Quando deixou formalmente a Pre-sidência, em dezembro de 2001, durante o 10o Congresso, sua saúde se deteriorava rapidamente. Já não conseguia se locomover, nem ler e ouvia pouco. Pedro manteve-se junto com Amazonas até sua morte.

Hoje, membro da assessoria da Presidência do Partido em Brasília, Pedro define como “decisiva” sua vivência com João Amazonas. Além do fecundo aprendizado político, as lições de lealdade e generosidade de um homem aberto ao novo, desprovido de visões cristalizadas, e além do mais brincalhão, espirituoso.

Arquivo Fundação Maurício Grabois

Pedro de Oliveira

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Nem o quartel para domar o menino insubmisso

Salvador, Bahia, 1970.Haviam se reunido na praia da Ribeira e seguiam os três para tomar o ônibus. Dalva

Rodrigues, Emiliano José e Dilermando Toni, o núcleo da direção da AP na cidade. Dalva subia no ônibus quando foi reconhecida por um policial que estava no ponto. Ele a agarrou, tentando puxá-la para fora. Logo atrás, Dilermando agarrou o policial, trocaram empurrões e socos. Dalva conseguiu entrar no ônibus, que partiu com ela. Dilermando e Emiliano correram e depois se separaram, pois àquela altura a perseguição já envolvia mais policiais, que também se dividiram. Entrando num beco sem saída, Emiliano foi preso.

Dilermando, mais adiante, pediu carona numa camionete. Queria embarcar na carroceria, mas o motorista insistiu que fosse à frente. Eram dois. Um deles saiu, Dilermando entrou e ficou no meio dos deles.

Vendo a correria, o motorista disse para o outro:– Deve ser coisa de terrorismo.E Dilermando:– Veja só, moço, eu estava pegando o ônibus, fui separar uma briga e agora essa turma está

aí atrás de mim.O motorista e o outro ouviram calados. No Largo do Papagaio, saída da Ribeira, o moto-

rista guinou bruscamente a camionete, parou em frente a uma delegacia e começou a gritar:– Pega! Pega!Dilermando conseguiu saltar para fora, correu, acenou para um ônibus que passava e

embarcou. Pouco adiante foi retirado do ônibus aos murros. Na delegacia do Largo do Papagaio, Diler tirou do bolso o único documento que levava consigo – uma certidão de nascimento, obvia-mente falsa – e a mostrou ao delegado.

– Olha aí, doutor, está aqui, sou um trabalhador. Eu estava passando com minha malinha de confecções, vi uma briga e fui apartar, o cara veio para cima de mim e estou agora aqui, desse jeito.

O delegado ouvia.– A minha mulher deve estar preocupada – prosseguiu Dilermando. Na sala do delegado, aguardava-se o policial que havia detido o rapaz, para a acusação.

O delegado falava com os auxiliares. “Antes era o milagre japonês, agora é a vez do milagre bra-sileiro”, gabava-se.

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O delegado não espichou seu comentário sobre o milagre brasileiro, pois requisi-tado para atender a um incêndio na fábrica defronte a delegacia. Ao voltar, surpreendeu-se com Dilermando na sala.

– Você ainda aqui? Vai-te embora!E Dilermando:– Mas eu gostaria de recuperar minha bolsa.O delegado:– Passa aqui amanhã.E foi comer o almoço frio que chegara na marmita.Meses depois, já nos primeiros meses de 1971, a direção regional da AP caiu nas mãos da

polícia. Dilermando participou de uma direção provisória montada às pressas. Mas a situação era insustentável, a segurança cada vez mais debilitada. Assim, deixou Salvador, para onde foi deslocado João Batista Drummond, um jovem promissor que despontava na direção nacional da organização e que, cinco anos depois, tombaria sob tortura na Chacina da Lapa. Dilermando mudou-se para Maceió, onde escreveria um capítulo a mais na instável vida da clandestinidade.

***Insubmisso desde sempre, o pequeno Diler foi matriculado pela mãe no Colégio Militar

de Belo Horizonte, numa época em que os colégios militares eram escola e quartel ao mesmo tempo, e isso valia para soldados e alunos. Dilermando, o pai, e Maria da Penha, a mãe, julgavam que a severidade da caserna ajudaria a conter a rebeldia do filho.

Mas nem o regime manu militari moldou à ordem e à disciplina o menino talhado ao desacato. O rapaz suportou quatro anos de ginásio e o primeiro do científico, colecionou adver-tências, suspensões e detenções e acabou expulso por mau comportamento. Terminou o curso médio em dois colégios ligados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG): Aplicação e Universitário. Em 1967, ingressou na Faculdade de Economia da UFMG junto com uma jovem de nariz arrebitado e óculos de fundo de garrafa, afável, simpática, embora retraída, com a qual mantinha relação respeitosa, porém distante, pois pertenciam a organizações políticas diferentes: Dilma Rousseff militava na Política Operária (Polop) e Diler na AP, onde ingressara pouco antes do vestibular.

Também na universidade, Diler não esquentou os bancos. Mas desta vez não foi o mau comportamento que o afastou do curso dois anos após o vestibular. No segundo semestre de 1968 a AP já intensificava sua política de transferir quadros estudantis para áreas operárias e camponesas, a política de integração na produção. Assim, ele trocou a universidade por uma

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pequena posse na mata da Jaíba, município de Varzelândia, perto de Montes Claros, região de florestas, serras e recentes lutas camponesas. Ali o posseiro Saluzinho havia resistido a uma ação de despejo. A polícia, que o cercou, matou sua mulher e o prendeu. Diler e os militantes da AP que já viviam na região empenharam-se na luta pela libertação do camponês.

Na posse que ocupou com outro companheiro, onde plantavam feijão, arroz e mandioca, o rapaz da classe média urbana teve que aprender a lidar com enxada, foice e machado. Diler ob-servava atentamente como os outros trabalhavam. E aprendia. Para engrossar a palma das mãos, aproximá-las de como eram as mãos rudes dos campônios, untava-as com sebo de carneiro. O trabalho na roça os consumia durante os dias. À noite, à luz de lamparinas e sem que ninguém percebesse, e também nos finais de semana, reuniam-se para tratar de política, das lutas a serem travadas na região.

Nove meses depois a polícia descobriu o trabalho da AP na mata da Jaíba. Extensas pri-sões em Belo Horizonte, incluindo de militantes que haviam antecedido Diler na Jaíba, tornaram frágeis demais as condições de segurança. E ele deixou a região. Fez breve incursão pelo ABC paulista, onde atuou no Grupo de Trabalho Militar, ligado à direção nacional da AP, coordenado por Haroldo Lima, e do qual participavam Renato Rabelo e Ronald Freitas. Estudava áreas pro-pícias ao desenvolvimento da luta armada. Meses depois desembarcava em Salvador, no início de 1970, trazendo nas costas duas condenações à revelia que somavam três anos e meio de prisão. O cerco se fechava. A repressão o buscava. Meses antes, em Brasília, onde servia o Exército, seu irmão Fernando fora torturado por mais de oito horas no Pelotão de Investigações Criminais (PIC) para revelar o paradeiro de Diler, que desconhecia. Para humilhá-lo, expulsaram-no do Exército faltando apenas 25 dias para a baixa.

Quando desembarcou em Salvador, Diler já estava casado com a assistente social goiana Maria Nelma Gomes Coelho, que conhecera pouco antes em São Paulo, ela militando no movi-mento operário da AP, ele tratando das áreas estratégicas para futuras ações armadas. Nelma era a mais velha dos 11 filhos da professora primária Margarida e do posseiro Nelson Coelho, dos quais sete opunham-se ativamente à ditadura militar. Por essa época sua irmã mais nova – Maria do Socorro – estava clandestina em Alagoas. Nelma e Diler permaneceram casados até 1979 e tiveram dois filhos: Raimundo Eduardo e Carlos Daniel.

***A prisão de Diler, em Salvador, dera-se com nome frio e em circunstâncias que não o

denunciavam para a repressão. Em meados de 1971 passou a integrar o novo núcleo da direção estadual que, às pressas, substituiu o anterior, todo ele preso. Na época, participou de contatos

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mantidos pela AP com o PCdoB e desenvolveu a ideia de que o destino da organização era mes-mo o de incorporar-se ao Partido, tema que se tornara central entre quadros e militantes. Mas nem chegou a desenvolver esse debate, pois as condições de segurança, cada vez mais precárias em Salvador, forçaram-no a deixar a cidade. Mudou-se para Maceió.

As circunstâncias do país eram dramáticas, com o pico da repressão. Carlos Marighela ha-via sido assassinado dois anos antes e, no final de 1971, seria a vez de Carlos Lamarca, no sertão baiano. Sucediam-se prisões, torturas e mortes de opositores, particularmente os que enfrenta-vam a ditadura de armas na mão. Na luta subterrânea, a vida caminhava lentamente, tudo muito cuidadoso, fugidio, driblando o perigo a cada esquina. Assim, por mais de ano Diler aguardou orientações em Maceió. Era sobreviver e aguardar. O cerco da repressão não lhe permitia amplos movimentos. E sobreviveu vendendo tecidos e confecções e complementando a magra ração diária de arroz, feijão, sururu e ovo de pata com os peixinhos – os engasga gato – e camarões pecados todas as noites na lagoa do Mundaú. Pescava em companhia de um vizinho. Ficavam lá os dois, na beira da lagoa, quase sem se falar, à espera dos peixes e camarões. Soltavam a rede, aguardavam. A privação roubou-lhe peso, chegou aos 51 quilos, muito pouco para seu metro e setenta e dois de altura.

Todas as noites, antes de seguir para a pescaria na lagoa, Diler encerrava-se em casa, li-gava o Transglobe, da Philco, que mantinha sob cuidados extremos, para sintonizar, em volume mínimo, orelha colada no auto-falante, a edição para o Brasil da rádio Tirana. De política, fora as solitárias audições, apenas o encontro regular com a organização, por intermédio de Ruy Frazão, que vinha todo mês do Ceará e aproveitava para levar confecções com a venda das quais Di-ler incrementava suas vendas. Conversas intermináveis e inspiradoras, alimento para a solidão alagoana a que Diler se via forçado. Dois anos depois, na feira de Petrolina (PE), Ruy foi preso. Tinha 33 anos e está até hoje na lista dos desaparecidos pelo regime militar.

Quando Diler finalmente deixou Maceió, em fins de 1972, Haroldo Lima, Renato Rabelo, Pedro Pomar e João Amazonas já haviam acertado os detalhes da incorporação da AP ao PCdoB. Assim, ao chegar a Juazeiro do Norte, no Ceará, a terra do Padre Cícero, Diler já integrava o Parti-do e, sob sua orientação, participou do reagrupamento de quadros egressos da AP, então disper-sos por Ceará, Paraíba, Pernambuco e Maranhão. A ideia era transferi-los para o sul maranhense e ali construir alguma base de apoio ao Araguaia. Com essa perspectiva Diler chegou a Santa Luzia, no vale do rio Pindaré, em janeiro de 1974. O projeto da base guerrilheira, no entanto, não prosperou, até porque o próprio Araguaia, sob ataque dos militares, seria derrotado em pouco mais de um ano. Mas Diler permaneceria na região por mais cinco anos.

Em Juazeiro do Norte foi marceneiro. Em Santa Luzia do Pindaré, mecânico de serraria e soldador. Em ambos os lugares, conhecido como João Alagoano. Em Santa Luzia, atuou politi-

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camente junto ao presidente do sindicato local dos trabalhadores rurais, Raimundo Nonato da Silva, o Nonatinho, que se tornou dirigente regional do Partido no Maranhão e, mais tarde, foi assassinado.

Com a anistia Diler pôde emergir para a legalidade. Abandonou o nome de João Francisco Pereira, natural de Águas Belas, Pernambuco, que usara nos últimos anos. Sua primeira iniciativa, antes de se transferir para São Luiz: buscar, em Belo Horizonte, os filhos Raimundo Eduardo, de sete anos, e Carlos Daniel, de quatro, até então criados pelos avôs. E em 1980 recebeu um casal de engenheiros agrônomos vindos de São Paulo, militantes do Partido que deveriam se estabelecer em Santa Luzia: Nádia Campeão e Marcos Kovarick.

Após presidir o Partido no Maranhão por cinco anos, em 1988 Diler retornou afinal a Belo Horizonte, e ali permaneceu, exercendo várias funções na direção do Partido, por apenas três anos. Em 1991 mudou-se para São Paulo, de onde não mais saiu. Até 1992 foi editor de A Classe Operária, jornal oficial do PCdoB e, a partir daí, trabalhou sempre com a direção nacional, sendo eleito para o Comitê Central no IX Congresso, em 1997. Um pouco antes, no primeiro semestre de 1995, viveu no Paraná, onde ajudou na reorganização do Partido no estado.

Em 2012, já havia 17 anos trabalhando com Renato Rabelo, primeiro como subsecretário de organização, depois como membro da comissão auxiliar da Presidência.

Se já não há os padecimentos da clandestinidade, restam, inelutáveis, os padecimentos da vida. Em 1996, um acidente de carro tirou a vida do filho Raimundo Eduardo, estudante de engenharia, então com 24 anos. O outro filho, Carlos Daniel, advogado formado no Largo de São Francisco, lhe deu três netos.

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Ângelo Arroyo (esq.) e Pedro Pomar (dir.): assassinados na casa da Lapa

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Tristeza na primavera de Pequim

Na manhã de final de primavera em Pequim, 17 de dezembro de 1976, um dirigente do Co-mitê Central do Partido Comunista Chinês (PCCh) compareceu inesperadamente à casa em que estavam hospedados três importantes visitantes estrangeiros: João Amazonas, Dynéas Aguiar e Renato Rabelo, dirigentes do Partido Comunista do Brasil. A fisionomia grave com que encarou os camaradas brasileiros superava a habitual formalidade chinesa. Foi direto ao ponto: a agência noticiosa chinesa divulgara havia pouco que a polícia invadira a casa em que se reunia o Comitê Central do PCdoB, num bairro de São Paulo. Havia mortos e presos.

João Amazonas, o único entre os três a conhecer o endereço, o confirmou: Rua Pio XI, 767, no bairro da Lapa, onde habitualmente se reunia a direção nacional do Partido. O número total de baixas e as respectivas identificações ainda estavam confusos no despacho da agência chinesa.

O dirigente chinês, respeitoso e compungido, apresentou aos brasileiros as condolências e a solidariedade do PCCh, retirando-se em seguida. Na sala ficaram os brasileiros com sua dor.

***Aldo Arantes descia as escadarias da estação Paraíso do metrô quando um grupo de poli-

ciais que pareceu surgir do nada lhe caiu em cima, aos berros e trambolhões, sem lhe dar chance de reação. Passava das dez da noite do dia 15 de dezembro de 1976. Encapuzado, lançado no chão de um carro, ali mesmo começou a apanhar.

Menos de uma hora antes Aldo e Haroldo Lima haviam desembarcado nas proximidades do Ibirapuera de um carro do qual a marca, o modelo e a cor não conheciam, porque vendados. Recém terminara a reunião do Comitê Central do PCdoB e ambos compunham uma das duplas que, a intervalos, deixariam a casa onde ocorrera o encontro ultrassecreto. Antes haviam saído João Batista Drummond e Wladimir Pomar. Os próximos, Jover Telles e José Novaes, sairiam na madrugada seguinte, conduzidos pelo motorista Joaquim Lima e por Elza Monnerat, integrante do Comitê Central e participante da Guerrilha do Araguaia, encarregada do transporte dos par-ticipantes da reunião. Na casa restaria o histórico dirigente Pedro Pomar, Ângelo Arroyo, um dos comandantes do Araguaia, e Maria Trindade, que lá morava e ajudava na infraestrutura.

João Batista Drummond e Wladimir Pomar foram presos na região da Avenida Nove de Julho, logo após desembarcarem do mesmo carro em que, horas depois, viajariam Aldo Arantes e Haroldo Lima. Este foi seguido até em casa e preso na manhã do dia seguinte. A dupla Jover Telles e José Novaes saiu ilesa, mas não Elza Monnerat e o motorista Joaquim Celso de Lima, presos após

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deixá-los em algum ponto da cidade. Na manhã seguinte, 16, a casa da Rua Pio XI foi atacada por uma força descomunal de policiais e militares fortemente armados. Cobriram-na de balas, matan-do Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. Maria Trindade, militante que ali morava, foi presa.

As reuniões do Comitê Central, realizadas a cada seis meses, eram cercadas de medi-das extremas de segurança. Contavam sempre com apenas metade dos seus membros, que se revezavam, de modo que ao menos uma parte da direção restasse a salvo de eventual ataque repressivo. Os membros, apanhados sempre à noite em locais da cidade combinados com pouca antecedência, seguiam vendados até o local da reunião e assim permaneciam até que o carro es-tacionasse numa garagem fechada, com entrada direta para a casa. Os procedimentos durante a reunião eram rigorosos. Nenhum vizinho deveria suspeitar do encontro, razão pela qual a regra do silêncio era absoluta na sala com portas e janelas cerradas. Nenhuma voz elevada, nenhum debate veemente, nenhum cumprimento efusivo, nenhum movimento que resultasse em ruídos. Para todos os efeitos ali morava um casal de idosos – João Amazonas e Elza Monnerat – e os em-pregados Joaquim e Maria. Tudo bastante convencional.

Mas nada disso resistiu ao que de pior poderia acontecer: a existência de um traidor entre os dirigentes ali reunidos. Jover Telles, baseado no Rio de Janeiro, havia sido preso três meses antes, sem que ninguém soubesse, e negociado com a polícia. Em troca do bom tratamento, da liberdade e de algumas vantagens, entregaria a reunião do Comitê Central do Partido. Foi o que fez. Levou a repressão ao ponto onde seria apanhado para a reunião. E a polícia armou seu plano de ataque. Durante os dias em que esteve reunido com seus camaradas, Jover portou-se como se nada de anormal houvesse ocorrido.

O único dos participantes da reunião que escapou, fora o próprio Jover, foi José Novaes, que teve a sorte de sair da casa em dupla com o traidor, poupado pela polícia. Jover desapareceu antes mesmo que raiasse o dia 16 de dezembro. Somente tempos depois investigações revelaram sua traição.

As torturas começaram já após as prisões, no Doi-Codi da tristemente famosa Rua Tutóia. João Batista Drummond não resistiu e morreu horas depois. Aldo, Haroldo, Elza Monnerat e Wladimir Pomar (filho de Pedro Pomar) foram transferidos para o Rio, na madrugada doa dia 17 de dezembro, onde as sevícias, sob os mais perversos requintes, se prolongaram por dias a fio no macabro quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Notório centro de torturas da ditadura, lá Aldo Arantes ouviu o que jamais abandonaria sua memória e que lhe vem frequentemente como pesadelo: certa madrugada foi acordado pelos gritos lancinantes de um homem adulto que, massacrado pelo suplício, suplicava pela mãe, não por Deus, não pelo pai, mas pela mãe. Na madrugada de terror, aquele clamor agônico: “Mãe! Mãe! Mãe”.

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De volta a São Paulo, continuaram a ser torturados no DOPS e no Doi-Codi, até serem transferidos para o presídio do Hipódromo e, depois, para o do Barro Branco.

Haroldo e Aldo foram condenados a cinco anos de prisão. À pena de Haroldo somaram--se mais cinco anos de um processo anterior. Mas foram libertados bem antes, no segundo se-mestre de 1979, com a anistia.

***No dia seguinte às prisões, ainda no DOPS paulista, um policial olhou fixamente Ha-

roldo Lima, cara a cara e, com satisfeita gravidade, quase soletrando as palavras, como se as degustasse, disse:

– Comunico-lhe que o seu PCdoB acabou. Era o tom oficial: a liquidação do Partido. Nesse dia, 17 de dezembro, um jornal manche-

teava: “O PCdoB foi destruído” – e foi seguido pelo restante da mídia.Em Pequim, João Amazonas, Dynéas Aguiar e Renato Rabelo sabiam que o Partido não

fora liquidado, mas a ditadura havia atingido – e muito gravemente – sua cabeça. O Comitê Central estava pulverizado, seus membros no Brasil ou se encontravam mortos, ou presos ou desarticulados. Urgia, portanto, recompor a vanguarda partidária, o que implicava, em primeiro lugar, reunir numa direção provisória os dirigentes que se encontravam no exterior. Aos três de Pequim, se somaria Diógenes Arruda, exilado na França, Nelson Levi, que morava em Portugal, e Dynéas Aguiar, que fazia a ponte Buenos Aires/Paris.

A primeira iniciativa foi assegurar a edição mensal da A Classe Operária., cuja matriz era enviada a alguns contatos no Brasil, para reprodução, e também para a rádio Tirana, onde era veiculada no programa diário em língua portuguesa. Este era o único vínculo da direção pro-visória com pelo menos parte das bases partidárias espalhadas pelo país e sem ligação entre si. Em seguida, o desafio era localizar dirigentes no Brasil, na perspectiva de reorganizar o Partido a partir da realização de uma conferência nacional.

Dynéas ocupou-se dessa tarefa. Fora do Brasil desde 1972, para articular na América Lati-na a solidariedade à luta do povo brasileiro e difundir a Guerrilha do Araguaia, voltou a Buenos Aires, onde ainda residia e, a partir de lá, começou a recompor sua rede de contatos. Trabalho difícil e cuidadoso. Não conhecia boa parte dos dirigentes, muitos dos quais vindos ao Partido após a incorporação da AP. Ademais, não se sabia ainda o que havia ocorrido, de fato, na casa da Lapa, nem mesmo quantos estavam presos. Havia especulações, a mais dramática delas sobre possível infiltração. Assim, com extrema cautela, os contatos começaram a ser feitos, primeiro no Rio Grande do Sul, depois em São Paulo e, a partir daí, com Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

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Um contato puxando o outro, tudo vagaroso, arrastado, porque em meio a rigorosas precauções.

***O baiano Péricles de Souza participou ativamente dessa recomposição do Partido após a

queda da Lapa. Mesmo isolado da direção nacional, entre dezembro de 1976 e meados de 1979, data da Anistia, Péricles conseguiu manter contato, a partir de Aracaju, onde se estabelecera, com as direções regionais de vários estados do Nordeste, evitando a dispersão. Orientou-as a replicar, em edições mimeografadas, os textos de A Classe Operária, produzidos em Paris pela direção do Partido no exterior e transmitidos pela rádio Tirana.

Péricles de Souza não estava na reunião da Lapa. Mas deveria. O telefone em Salvador, pelo qual receberia a confirmação da data e de como seria conduzido ao local, ficou alguns dias fora do ar. Sem a informação, voltou para Aracaju. E lá, na noite de 17 de dezembro de 1976, pelo noticiário da TV soube da invasão policial e da morte e prisão de camaradas. Os jornais, nos dias seguintes, revelaram nomes dos que estavam na reunião. O de Péricles constava da lista, o que lhe causou a forte e perturbadora impressão de ter se avizinhado da morte, ainda que em hipótese meramente psicológica. Entre familiares na Bahia, um abalo a custo contido devido aos embaraços da clandestinidade.

***Ao voltar da fracassada resistência ao golpe, na empreitada que em 31 de março de 1964 o

levou a Feira de Santana na caravana sob o comando de Haroldo Lima, Péricles prestou vestibu-lar para o curso de História, na Universidade Federal da Bahia, em 1965, e se casou com Carnilce Carneiro. Mas resguardou-se do movimento estudantil. A AP o desejava voltado para a organi-zação interna e a preparação da luta armada.

Em 1968 foi deslocado para o Pará e integrou-se a uma direção regional que, dirigida a um projeto de base guerrilheira no Bico do Papagaio, também abarcava o norte de Goiás (hoje Tocantins) e o sudoeste do Maranhão. Em seguida, Péricles instalou-se em Imperatriz (MA). Mal sabia a AP que, na mesma região, o PCdoB já preparava sua guerra, deslocando quadros desde o ano anterior.

Péricles compunha um grupo de cerca de 20 militantes que a AP distribuíra na região para se integrarem com a população camponesa. Com a mulher Carnilce e um filho pequeno, instalou-se numa posse, ocupando casa de chão batido e telhado de palha, ao lado de um casal local e plantando roças de arroz, mandioca e feijão. Carnilce alfabetizava crianças e adultos numa escola de pau a pique construída pela comunidade.

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Mas a vida não era feita apenas da lida pela sobrevivên-cia. Os militantes aproveitavam a falta de energia elétrica no pequeno povoado para distribuir, nas noites mais escuras, de porta em porta, panfletos de propaganda da guerra popular, escritos e mimeografados em Belém.

A ousadia maior, no entanto, foi barrar na Câmara Mu-nicipal de Imperatriz, onde a AP contava com o apoio de dois vereadores do MDB, a designação de uma grande praça da cidade com o nome do então presidente, o macabro general Garrastazu Médici. Iniciativa impensável naquele início da dé-cada de 1970, quando a ditadura chegava a um paroxismo de violência contra seus opositores.

Chamado a São Paulo, Péricles assumiu funções na Co-missão de Organização. Havia assumido a identidade falsa de Porfírio Silva Santos. Em 1972 ingressou no PCdoB e, três anos depois, fixou-se em Aracaju, onde permaneceu até o final de 1979. De volta a Salvador, integrou a direção estadual do Par-tido ao lado de Haroldo Lima, Loreta Valadares, Julieta Pal-meira, Olival Freire, entre outros. No início da década de 1980, assumiu a presidência do Partido no estado, função que exer-ceu durante muitos anos. Em 2012, às vésperas de completar 70 anos, Péricles mantinha-se no Comitê Central e no Secretaria-do do Comitê Estadual baiano.

***Renato que, nos primeiros seis meses de exílio, morou

com Arruda num bairro popular na periferia de Paris, passou o segundo semestre de 1977 entre Buenos Aires e Montevidéu. Ajudou Dynéas na retomada dos contatos e aproveitou para passar dois meses com Conchita, acertando como seria a vida da família a partir de sua inesperada (e indesejada) retenção no exílio francês. Nos primeiros meses do ano ela deixara Belém, para onde o casal se mudara logo antes da viagem de Renato à Albânia e à China, transferindo-se com os dois filhos para

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Páginas do jornal A Classe Operária de janeiro de 1977 denunciando o episódio que ficou conhecido como Chacina da Lapa

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Salvador, onde estava a família. Foi o primeiro encontro de ambos em seis meses. Antes, porém, falaram-se algumas vezes por telefone, apesar das dificuldades de comunicação da época. Brasi-leiros exilados na França inventavam sucessivos estratagemas para fazer ligações internacionais a partir de orelhões sem pagar nada. Um desses ardis era moldar no gelo fichas para os telefones.

***A primeira estada de Renato em Goiás, quando se integrou como camponês na região de

Trombas e Formoso, entre 1968 e 1969, durou menos de um ano. A deserção de um companheiro ameaçou a segurança e os que lá estavam tiveram de abandonar a área. Renato voltou para São Paulo e Conchita, grávida do segundo filho, para Salvador, ali permanecendo até o nascimento de André, em junho de 1969.

Primeiro saltaram de casa em casa de simpatizantes. Depois, alugaram uma na Vila For-mosa, bairro operário da Zona Leste paulistana, dividida por vários casais, além de palco de encontro e reuniões clandestinas. Vida dura. Nem sempre com dinheiro para almoçar, nas vezes em que Renato deliciava-se com um prato feito (a regra era o pingado com muito açúcar e pão com manteiga) tinha de voltar a pé para casa. Viviam da magra contribuição da AP e de traba-lhos que Conchita eventualmente arrumava. Ela chegou a empregar-se numa pequena indústria têxtil, na perspectiva de atuar no movimento operário, mas logo passou para o setor de organi-zação da AP, conhecido como serviços. Enquanto as crianças ficavam em parquinhos municipais durante os dias e Renato consumia-se em reuniões e viagens, Conchita corria a cidade (mais a pé, que de ônibus) cobrindo pontos, conduzindo pessoas e materiais, articulando reuniões. Militava, cuidada da casa e dos filhos, uma luta tripla.

Enquanto isso, na AP corria aceso o debate sobre os destinos da organização que antece-deram sua incorporação ao PCdoB, três anos depois.

A segunda estada em Goiás começou em 1973, logo após essa incorporação, quando Renato recebeu sua primeira missão no Partido: tratar de áreas que pudessem apoiar a guerri-lha que se desenvolvia no Araguaia ou mesmo servir de alternativa para a instalação de nova frente de luta.

Dessa vez nada lembrou o sofrimento da primeira estada. Renato, como José Osmar Ri-beiro, empregou-se na Eternit. Era vendedor, como justificativa para percorrer o estado e, assim, conciliar o trabalho político com o profissional, sustentando a família com a ajuda de Conchita, que lidava com pesquisas de mercado. A atuação de Renato voltava-se ao apoio à guerrilha. Era, portanto, altamente secreta, nada podendo, na vida do casal, chamar a atenção da polícia. Assim, mantendo-se em Goiânia com os filhos, Conchita não teve militância nessa época.

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Em fins de 1976, nova missão: mudar-se para Belém, de modo a ficar mais próximo do Araguaia. Renato e a família alugaram uma casinha de fundos, num quintal cheio de ratos e porcos. Mas ele não permaneceu em Belém mais que dez dias, pois já estava escalado para acom-panhar João Amazonas em viagem à Albânia. Conchita ficou só, com as duas crianças, matricula-das em escola pública. Conseguiu trabalho administrativo numa empresa de seguros. Não sabia para onde Renato tinha ido, mas sabia que sua ausência poderia ser longa.

No dia 17 de dezembro, no entanto, deparou-se com as manchetes dos jornais anunciando a queda da Lapa. Renato estaria na reunião? Afinal pertencia ao Comitê Central e à sua Comissão Executiva. E se, com as quedas, a polícia descobrisse seu endereço? Então decidiu deixar as crian-ças sob os cuidados da família, em Salvador. De volta a Belém, sozinha, Conchita não demorou mais que um mês para concluir que deveria entregar a casa e despachar os poucos móveis e ba-gagens sem despertar a atenção e retornar de vez para Salvador, onde viveria por algum tempo apoiada pelas famílias. Só reencontraria o marido meses depois, em Buenos Aires.

***Um ano após a Chacina da Lapa, o Partido estava no fundamental reagrupado, de modo

que, no final de 1978, já se realizava, em Tirana, a primeira etapa da 7a Conferência Nacional do PCdoB. A segunda ocorreria em fevereiro do ano seguinte. A direção nacional estava rearticula-da e institucionalizada. Dias depois, Dynéas voltou para a Argentina e, em seguida, para o Brasil.

Ao retornar à França, em dezembro de 1977, após a temporada de seis meses entre Buenos Aires e Montevidéu, Renato foi preso na estação Montparmasse do metrô parisiense. Carregava cinco passaportes portugueses falsos, para eventual uso futuro. Ia descer uma escada rolante quando vislumbrou, lá em baixo, na outra ponta, uma barreira policial. Deu marcha à ré, mas, ao iniciar o caminho de volta, foi detido por policiais que, mais atrás, observaram seu suspeito recuo. Além dos passaportes, Renato estava com a chave de uma casa.

Interrogado durante três horas numa instalação policial na própria estação, sustentou a inverídica história de que ao chegar a Paris encontrou uma francesa que o levou para sua casa, que ele nem sabia onde era. Ao sair, acabou levando a chave por engano. Quanto aos passa-portes, misturou versões improváveis na tentativa de confundir os interrogadores. Na manhã seguinte, entregue a outro departamento policial, foi duramente interrogado durante dois dias seguidos, ao cabo dos quais considerou que àquela altura, mais valeria dizer a verdade. Porque a verdade que contou, a de que estava na França por ser perseguido político no Brasil, conferia-lhe outro status, deixando para trás – ou justificando – a posse dos passaportes e da chave da casa, relegados à condição de detalhes do cotidiano de um foragido da ditadura brasileira. Só não re-velou suas atividades políticas em Paris e seu vínculo partidário.

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Conduzido para a centenária prisão de La San-tè, dividiu a cela com um espanhol, um italiano e um português. O espanhol era um jovem operário que, não encontrando o trabalho que buscava na França, e já em desespero, revolveu bater uma carteira. Nun-ca havia feito aquilo na vida, foi preso. O italiano, ao contrário, era ladrão profissional: roubava na primei-ra classe de trens. Mas um dia, apesar da destreza, foi pego. E o português era um ex-agente da PID, a temí-vel polícia política da ditadura salazarista, que depois da Revolução dos Cravos dedicou-se à delinquência. Entrara na França com uma Mercedes Benz carrega-da de armas automáticas para preparar um assalto a banco. Foi preso antes do assalto.

Durou um mês a fraternal convivência entre o comunista brasileiro, o azarado espanhol, o ladrão italiano e o assaltante português, porque Renato logo comprovou sua condição de foragido político e pediu asilo. Por seis meses permaneceu num alojamento destinado a exilados. Como havia sido preso e ainda dependia de julgamento, recebeu documentos provi-sórios, mas já desfrutava dos mesmos direitos de um francês. Na França ainda não devastada pelo neolibe-ralismo, o governo oferecia um apoio inicial aos que buscavam refúgio político no país: alimentação, aju-da de custo, três meses de aprendizado da língua na Aliança Francesa e, no caso de Renato, um curso de técnicas agrícolas numa das faculdades da Sorbonne.

Mas com a tradução de seu currículo de quar-to ano de Medicina na UFBA, Renato habilitou-se a trabalhar como enfermeiro, gramando plantões noturnos. Mais tarde é que logrou se matricular na Faculdade de Medicina para concluir o curso inter-rompido no Brasil. Conchita, que chegou à França

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em julho de 1978 (o casal de filhos seguiu quatro me-ses depois) habilitou-se para exercer o Serviço Social, curso no qual se formara na Universidade Católica de Salvador uma década antes.

No que lhe restava de tempo, tratava do Partido, diretamente ligado a João Amazonas. Por essa época preparava-se a 7a Conferência, à qual Renato não pôde comparecer por estar sub judice e, portanto, impedido de deixar Paris. Mas foi quem recebeu todos os delega-dos que chegavam à cidade, a caminho de Tirana.

***João Amazonas não de exilou. Os quase três

anos que passou na França usou visto de turista reno-vado periodicamente. Vivia discreto, com identidade falsa, trabalhando diuturnamente na recomposição do Partido, na companhia da mulher Edíria Carneiro.

Baiana de Salvador, onde nasceu em 1920, mi-litante do Partido desde 1945, quando se mudou para o Rio de Janeiro, a partir de então Edíria viveu as vi-cissitudes da luta revolucionária ao lado de Amazo-nas e dos filhos Zélia, João Carlos e Helena. Mas nada disso impediu-a de exercer, com o talento que lhe era próprio, as artes plásticas, com forte apelo social. No exílio parisiense, frequentou estúdios de gravuristas renomados. Suas obras integram o acervo de impor-tantes museus do Brasil e do exterior. Edíria morreu no dia de Natal de 2011, aos 86 anos, quase 11 depois de João Amazonas.

Arquivo pessoal

Documentos de Renato Rabelo da época em que viveu exilado na França

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Edíria Carneiro: artista plástica e militante

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Lua de mel no aparelho clandestino

Ninguém tinha acesso ao quartinho de porta e janelas permanentemente fechadas no quintal da casa, ao lado do pomar. Nem familiares, nem vizinhos, nem os poucos amigos. O quartinho fora vedado por dentro para sufocar os ruídos do que ali se fazia em muitas madruga-das: a produção e impressão clandestinas do jornal oficial do PCdoB, A Classe Operária. O casal de moradores, responsável pela pequena gráfica, varava noites datilografando os textos que recebia, decalcando letras adesivas para os títulos, diagramando e rodando, na impressora de estêncil ele-trônico, os milhares de exemplares a serem empacotados e entregues para distribuição nacional.

Militantes na madrugada, médicos durante o dia, atendendo a crianças na saúde pública do pequeno município de Caieiras, na Grande São Paulo, Walter Sorrentino e sua mulher, Sara Romera da Silva, haviam se formado havia pouco tempo, em dezembro de 1977, ele na Univer-sidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto, ela na Escola Paulista de Medicina, e logo destacados para a tarefa da gráfica. Nada mais clandestino no proscrito PCdoB, do que sua gráfi-ca. E nada mais estratégico. Tendo perdido boa parte de sua direção central na Chacina da Lapa, em dezembro de 1976 (uns mortos, outros presos) e sendo dirigido do exterior por João Amazo-nas, Dynéas Aguiar, Renato Rabelo e Diógenes Arruda, o Partido necessitava mais do que nunca de um instrumento que ligasse a direção às bases e unificasse e organizasse a militância nas circunstâncias excepcionais que o país vivia no período. A Classe Operária cumpria esse papel.

Para executar a tarefa, além de ocultá-la num cômodo isolado, de portas e janelas tranca-das e à prova de som, operando nas sombras, indispensável que seus operadores mantivessem sua militância oculta nos segredos do quartinho. Ou seja, que não fizessem política. E mais, que aos amigos e conhecidos – vários deles militantes do Partido – dessem a entender que haviam recuado da luta partidária, adotado outras perspectivas. Nos três anos seguintes Walter e Sara suportariam o peso dessa contingência, na calmaria provinciana da pequena Caieiras que con-trastava com a fervura que o país vivia, impulsionada por um movimento popular em ascensão, a caminho da anistia e da derrocada da ditadura.

***Filho dos Sorrentino, emigrados da localidade de Piaggine, região de Salerno, nas cer-

canias de Nápoles, Walter nasceu e criou-se no Bexiga, destino inicial dos imigrantes italianos em São Paulo. Pascoal, o pai, depois de lutar durante quatro anos no exército italiano, durante a Segunda Guerra, e passar seis anos como prisioneiro em campos de concentração em África,

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Canadá e EUA, voltou para a Itália e encontrou a família devastada. No início de 1950 casou-se com Maria Butrico. Veio para o Brasil, trabalhou duro e, meses depois, em setembro, trouxe a mulher e, mais tarde, aos poucos, a mãe viúva, os 13 irmãos e ainda os irmãos da esposa – mais de 20 pessoas.

Primeiro Pascoal foi lanterninha de cinema, depois operário da Martinelli, uma empresa de tratores, e por fim montou uma oficina mecânica. A numerosa família acomodou-a nas con-dições possíveis de uma vida proletária. Foi assim que começou. E ali Walter, o irmão Armando, dois anos mais velho, e os primos iniciaram cedo seu aprendizado de Brasil. Onde moravam havia um cortiço, onde “adotaram” um avô, o nonno Eugênio Montesano, rei do jogo do bicho local, negociante de uísque contrabandeado e bookmaker de corrida de cavalos. Gordo, fazia às vezes de Rei Momo no carnaval de São Paulo promovido pela famosa Loja da China. Todo mês recepcionava a cúpula da polícia com lauta feijoada preparada pela mulher, D. Rosa.

Walter aprendeu português no Colégio Santo Antonio do Pari, dos franciscanos, onde ingressou no jardim de infância e cursou até a primeira série do antigo primário. Até então se virava com o dialeto impenetrável trazido pelos pais de Piaggine, que aos poucos foi se mistu-rando ao português. Mudava de bairro, mudava de colégio. Terminou na Escola Estadual Roldão Lopes de Barros, no Cambuci, então a maior escola pública de São Paulo, com cerca de quatro mil alunos, onde completou o colegial.

Ali o menino introspectivo e dado à reflexão percebeu que algo estranho passara a ocorrer no início do ano letivo de 1964. Uma tensão indefinível, mas real, no ambiente antes descontra-ído, professores bem quistos que, de repente, deixavam a escola. Era como seus parcos 11 anos captavam a atmosfera do golpe militar. Tampouco entendeu – embora estranhasse – quando mais tarde uma professora foi conferir a letra dos alunos, pois surgira um bilhete na biblioteca dizendo que ela era comunista. Comunista? A reflexão do menino não lograva aqueles alcances. Nem mesmo quando uma bomba no banheiro, ali posta por um baderneiro qualquer, levou a Polícia Federal à escola. Terrorismo?

Mas era opiniático, o rapazola, não baixava a cabeça, sobretudo diante da rigidez disci-plinar com que a escola pretendia domar aquela multidão de pequenos insubmissos. A rebeldia quase lhe custou expulsão. Salvaram-no as boas notas. Mas logo as travessuras colegiais per-deram espaço para inquietações mais nobres. Aos 15 anos, o desejo de explicar o mundo e nele situar-se o conduziu ao existencialismo a partir de textos de Jean-Paul Sartre. Considerava-se, a despeito da pouca idade e da compreensão ainda limitada, um humanista existencialista. Tal percepção levou-o ao curso de Medicina, no campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), onde desembarcou no início de 1972.

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Foto: Aguinaldo Zordenoni

Walter Sorrentino: juventude e luta

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***Nos grupos de teatro e música aos quais se ligou e no diretório acadêmico conheceu a es-

querda. E na esquerda encontrou o marxismo. No início de 1973, ele e alguns colegas promove-ram imersão de 90 dias nos clássicos, dissecaram a realidade brasileira e ainda esquadrinharam os programas de várias organizações revolucionárias. Ao cabo da maratona, Walter, já apelidado de Minduim, e alguns outros optaram pelo PCdoB. Não o sabiam na ocasião, mas o setor do Par-tido a que se ligaram vinha do ramo da Ação Popular que se integrara ao PCdoB, constituindo, num primeiro momento, estrutura organizativa paralela.

Partiram para a ação. Construíram o comitê municipal do partido na cidade, mantiveram a direção do Centro Acadêmico Rocha Lima, a representação estudantil no Conselho Univer-sitário da USP e mesmo a Atlética, associação universitária voltada para os esportes. Em 1975 Walter foi eleito presidente, num enfrentamento severo contra a direita e os trotskistas. A chapa da direita era liderada por Sócrates Brasileiro, da turma de Walter, que divida os estudos com o futebol. Os trotskistas vieram a fundar, posteriormente, o PT em Ribeirão Preto.

O vento era mesmo favorável, apesar das circunstâncias excepcionais que o país então vivia, sob o governo do quarto ditador, o general Ernesto Geisel. A militância entusiasmava-se com o Araguaia, unânime o desejo de seguir para lá assim que fosse possível. Os militantes do curso de Medicina costumavam apropriar-se de materiais cirúrgicos para enviá-los à guerrilha. Em 1976 Wal-ter liderou a primeira greve no país que conquistou o direito de residência automática. Porque pre-cisava garantir sua ida para a seleção brasileira, Sócrates não aderiu ao movimento. Na esteira desse renascimento do movimento estudantil na cidade, em cuja liderança Walter se firmava, o PCdoB crescia, ampliava o número de células e se espraiava para fora do movimento estudantil. Nas elei-ções de 1976 o Partido elegeu um vereador, Antônio Calixto, pela legenda do PMDB. Havia já um forte comitê municipal do PCdoB na cidade. Organizaram por lá uma base de apoio ao semanário Movimento, da imprensa democrática. No movimento estudantil, que reorganizava o DCE da USP, Walter integrou o núcleo de redação da famosa tese Caminhando, em confronto com a Refazendo e com a Liberdade e Luta, históricas facções que ensejaram os troncos da esquerda partidária.

Então ocorreu a Chacina da Lapa e a orientação de que Walter deixasse o curso e a cidade, pessoa pública que se tornara, vulnerável, portanto, à repressão que avançava sobre o Partido. Não achou razoável. Decidiu se afastar dos holofotes, mas concluir o último ano do curso e, em 16 de dezembro no ano seguinte, ele se formou. Casou-se sete dias depois, mas a lua de mel foi passada com ele e Sara, trancados num aparelho do Guarujá, servindo de apoio a uma reunião de membros da direção nacional que restaram vivos e soltos no Brasil. Em seguida, mergulhou em Caieiras, na dualidade de médico e militante clandestino encarregado da gráfica do Partido.

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***Os três anos e meio que passou enfurnado em Caieiras, imprimindo A Classe Operária,

foram de um retraimento atroz. Ao cabo desse tempo, Walter já não contava mais com as re-lações de Ribeirão Preto e também se afastara dos amigos de São Paulo. Encontrava-se ilhado na solidão de Caieiras. O veto à atividade política aberta era tal que ele não pôde recepcionar João Amazonas, que em 22 de novembro de 1979 desembarcava em São Paulo, vindo do exílio, nem prantear o histórico dirigente do Partido Diógenes Arruda, fulminado por um infarto na recepção a Amazonas.

Nesse período difícil nasceram os dois filhos (Pedro, em dezembro de 1978, e Isa, em fe-vereiro de 1981). Em fins de 1981, Walter concluiu ter chegado ao limite e propôs – e o Partido aceitou – sua transferência para São Paulo. Foi como um retorno à vida após longa e dolorosa hibernação. O movimento social ganhava corpo, empurrando a ditadura para a derrocada que se consagraria quatro anos depois. E o Partido, embora ainda ilegal, crescia em todo o país. O jornal Tribuna da Luta Operária, lançado em 1979, vocalizava a política do Partido num cenário de lutas crescentes.

Logo ao chegar a São Paulo Walter foi eleito para o Comitê Estadual e designado secre-tário de Agitação e Propaganda (como se chamava, na época, a Secretaria de Comunicação). Ingressara no núcleo central da direção partidária no estado, inaugurando ali, com um ânimo que parecia querer compensar o exílio em Caieiras, uma progressão que o levaria à direção da atividade da juventude, depois sindical, mas sempre dedicado à formação e, enfim, à Secretaria de Organização. Rapidamente seria eleito ao Comitê Central no VII Congresso, em 1988. Nas-ceria nesse ano, em abril, seu terceiro filho, Caio. Walter liderou o movimento pela legalidade do PCdoB e foi detido numa operação da Polícia Federal em 1984, quando chefiava o Centro de Estudos Políticos e Sociais. Numa operação desastrada e afrontosa em vários estados do país, a polícia invadiu diversas residências, entre elas a de João Amazonas e Walter, em São Paulo. Com o fim da ditadura, o processo como incurso na Lei de Segurança Nacional foi arquivado.

Walter assumiu a Presidência do Partido em São Paulo, onde permaneceu por 11 anos, de 1992 a 2001, acumulando por quatro anos com a Secretaria Nacional de Formação, até ser eleito para a de Organização em dezembro de 2001, onde vem liderando um amplo e fecundo movi-mento de atualização do pensamento partidário, político e organizativo. Desde 1994 está casado com Nádia Campeão.

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Militância comunista e amigos do PCdoB no enterro de Diógenes Arruda (São Paulo, 1979)