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RESUMO - O Rio Paraíba do Sul é um dos mais importantes rios federais do Brasil. Da sua nascente no Estado de São Paulo, percorre 1.120 km, até o seu delta no Oceano Atlântico. Sua bacia abrange parte dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, com uma área de drenagem de cerca de 55.500 km². Em 1952, com a inauguração da barragem de Santa Cecília, possibilitou-se a derivação de até 160 m³/s, cerca de 2/3 da vazão média, para o Complexo de Lajes, e, desse, para a bacia hidrográfica do rio Guandu, na qual se localiza a Estação de Tratamento de Águas (ETA) Guandu, que trata cerca de 45 m³/s de água e propicia o abastecimento de mais de 8,5 milhões de pessoas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O Sistema Guandu representa aproximadamente 85% do abastecimento total da Cidade do Rio de Janeiro e 70% do abastecimento da Baixada Fluminense. Entretanto, o elevado valor estratégico e econômico desse rio continua a ser subavaliado, com a degradação acelerada de suas margens e a dos seus contribuintes. Dentre os fatores indutores da degradação incluem-se a falta de demarcação da Faixa Marginal de Proteção (FMP) e da Linha Média das Enchentes Ordinárias (LMEO), instrumentos necessários para a atuação das fiscalizações federais e estaduais. Este trabalho vem colaborar, lançando luz sobre a legislação e sua interação com a geomorfologia, propondo o uso de procedimento técnico mais preciso, apoiado em modelo matemático, para a determinação de manchas de inundação representativas da LMEO e FMP. Para tanto, foi utilizado o MODCEL, um modelo matemático de células de escoamento, desenvolvido na UFRJ.

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Page 1: UTILIZAÇÃO DE UM MODELO MATEMÁTICO DE CÉLULAS DE ESCOAMENTO COMO INSTRUMENTO DE APOIO À PRESERVAÇÃO DE RECURSOS HÍDRICOS FUNDAMENTAIS AO ABASTECIMENTO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

UTILIZAÇÃO DE UM MODELO MATEMÁTICO DE

CÉLULAS DE ESCOAMENTO COMO INSTRUMENTO DE

APOIO À PRESERVAÇÃO DE RECURSOS HÍDRICOS

FUNDAMENTAIS AO ABASTECIMENTO DA CIDADE DO

RIO DE JANEIRO

Ricardo Castro Nunes de Oliveira1

e Marcelo Gomes Miguez1

1PEA/POLI – Universidade Federal do Rio de Janeiro

Email para contato: [email protected]; [email protected]

RESUMO - O Rio Paraíba do Sul é um dos mais importantes rios federais do

Brasil. Da sua nascente no Estado de São Paulo, percorre 1.120 km, até o seu

delta no Oceano Atlântico. Sua bacia abrange parte dos Estados de São Paulo, Rio

de Janeiro e Minas Gerais, com uma área de drenagem de cerca de 55.500 km².

Em 1952, com a inauguração da barragem de Santa Cecília, possibilitou-se a

derivação de até 160 m³/s, cerca de 2/3 da vazão média, para o Complexo de

Lajes, e, desse, para a bacia hidrográfica do rio Guandu, na qual se localiza a

Estação de Tratamento de Águas (ETA) Guandu, que trata cerca de 45 m³/s de

água e propicia o abastecimento de mais de 8,5 milhões de pessoas da Região

Metropolitana do Rio de Janeiro. O Sistema Guandu representa aproximadamente

85% do abastecimento total da Cidade do Rio de Janeiro e 70% do abastecimento

da Baixada Fluminense. Entretanto, o elevado valor estratégico e econômico desse

rio continua a ser subavaliado, com a degradação acelerada de suas margens e a

dos seus contribuintes. Dentre os fatores indutores da degradação incluem-se a

falta de demarcação da Faixa Marginal de Proteção (FMP) e da Linha Média das

Enchentes Ordinárias (LMEO), instrumentos necessários para a atuação das

fiscalizações federais e estaduais. Este trabalho vem colaborar, lançando luz sobre

a legislação e sua interação com a geomorfologia, propondo o uso de

procedimento técnico mais preciso, apoiado em modelo matemático, para a

determinação de manchas de inundação representativas da LMEO e FMP. Para

tanto, foi utilizado o MODCEL, um modelo matemático de células de

escoamento, desenvolvido na UFRJ.

1 – INTRODUÇÃO

Recentemente, o Rio de Janeiro foi escolhido para sediar dois grandes eventos

internacionais: a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e as Olimpíadas em 2016. Estará

garantido o abastecimento de água, vital para os habitantes e visitantes da cidade, até lá? A

resposta será dada pela disponibilidade hídrica do rio Paraíba do Sul. Sabe-se que muitos

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estudos já foram realizados quanto às disponibilidades hídricas, potencial hidroenergético,

possibilidades de barramentos, aproveitamento de várzeas e derivações na bacia hidrográfica

do rio Paraíba do Sul. Apesar desses muitos estudos, pouco se avançou quanto à preservação

das matas ciliares e das áreas de preservação dos rios e, em particular, do rio Paraíba do Sul.

A degradação dos rios é um fator limitante da própria disponibilidade de água. Quantidade e

qualidade da água são temas correlatos.

Até hoje, o rio Paraíba do Sul não tem a faixa marginal de proteção – FMP e a Linha

Média das Enchentes Ordinárias – LMEO demarcadas, propiciando a caracterização com os

devidos registros cartoriais das áreas de domínio da União Federal e das de preservação

permanente. Embora muito discutidas, notadamente a FMP, em função da discussão do novo

Código Florestal, a demarcação efetiva da LMEO e FMP tem esbarrado na falta de definições

técnicas claras, na falta de precisões científicas em procedimentos demarcatórios que possam

ser defendidos, inclusive em juízo, e na inexistência de integração entre as entidades públicas.

Estas atuam, cada uma a seu modo, direcionadas apenas para a sua competência restrita ou

mais imediata. Muitas dessas atuações apresentam-se por vezes incompletas, por falta de

conhecimento do corpo técnico ou por uma visão parcial de gestores, que não conseguem

observar que a preservação do rio, “área de uso comum do povo”, é obrigação de todos, como

determina a Constituição Brasileira.

Como indicação de uso de procedimento técnico mais preciso, propõe-se a adoção de

modelo matemático, como ferramenta de determinação das manchas de inundação, que dão

suporte à demarcação da LMEO e FMP. Para a avaliação da pertinência do modelo

matemático, foram utilizados dados da dissertação de mestrado do autor, em Engenharia

Ambiental da UFRJ, defendida em 2011 e denominada “CARACTERIZAÇÃO DAS ÁREAS

DE DOMÍNIO DA UNIÃO E DA FAIXA MARGINAL DE PROTEÇÃO EM RIOS

FEDERAIS APOIADO POR MODELAÇÃO MATEMÁTICA - Estudo de Caso: Médio Rio

Paraíba do Sul”.

Assim, o trecho do rio Paraíba do Sul considerado neste estudo, compreende desde a

barragem de Funil até a região à montante da barragem de Santa Cecília, distantes 106,6 km

entre si. Como suporte às simulações matemáticas, será utilizado o MODCEL (Miguez,

2001), um modelo matemático de células de escoamento, do tipo hidráulico-hidrológico

distribuído, desenvolvido na UFRJ. Com o MODCEL é possível simular o escoamento

segundo uma perspectiva bidimensional, considerando as planícies de alagamento também de

forma hidrodinâmica e integradas ao curso principal do rio. O modelo foi calibrado com

sucesso para vazões e cotas medidas nos postos fluviométricos de Itatiaia, Resende, Barra

Mansa e Volta Redonda, para o evento de cheia de janeiro de 1966, uma das mais

significativas do registro disponível. Na sequência, essa calibração foi validada para a cheia

de março de 1967.

Ressalte-se que o ano de 2012 gera grande expectativa quanto à atenção que será dada à

preservação dos recursos hídricos, destacando-se, entre outros fatos relevantes, o Novo

Código Florestal, a Rio +20 e o Fórum Mundial da Água. Nesse momento, já não é mais

possível que essas grandes discussões, que na realidade são fruto do anseio e demandas da

sociedade, não sejam consideradas. A elas, juntam-se as expectativas daqueles mais

familiarizados com a preservação de rios e sua importância para as futuras gerações.

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Pesquisadores defendem a necessidade de preservação das APPs, das faixas marginais e a

introdução no planejamento brasileiro de diretrizes semelhantes às existentes na Diretiva

Quadro Água da Comunidade Europeia (DIRECTIVA 2000/60/CE DO PARLAMENTO

EUROPEU E DO CONSELHO de 23 de Outubro de 2000). Contudo, por representarem

novos conceitos, que realçam a necessidade da Requalificação Fluvial e procuram considerar

conjuntamente a quantidade e qualidade da água, o equilíbrio morfológico do rio e aspectos

ecossistêmicos, ainda não absorvidos pelos técnicos e gestores, formados dentro de técnicas

mais tradicionais da engenharia, essas expectativas são muitas vezes frustradas. As ações

executadas para a Requalificação de Rios, já implementadas em diversos países da Europa e

nos estados Unidos, ainda não são efetivamente reproduzidas no Brasil.

A experiência adquirida ao longo dos anos pelos autores no estudo de rios e as recentes

visitas na área específica deste estudo, permitiram a observação de que a manutenção do

estado atual de gestão do rio e de suas faixas marginais e a falta de adoção de critérios

técnicos apropriados, levam ao caminho da degradação e da escassez dos recursos hídricos.

Esse retrato é corroborado pela atuação do Ministério Público Federal, que implementa

uma crescente demanda de Inquéritos Civis Públicos. Embora extremamente importante para

o chamamento de responsabilidades, essa ação, por si só, não conseguirá garantir a

preservação do rio para as futuras gerações sem que se alterem procedimentos de gestão e

qualificação técnica. Observa-se que a pouca disponibilidade de recursos materiais e em

especial, de técnicos especializados e treinados, é uma realidade, sendo a insuficiência desses

meios, constantemente, colocada pelas entidades junto ao MPF, como um impedimento de

ações mais efetivas.

Contudo, observa-se que essa protelação já não é mais possível. Sendo assim, devem ser

buscados novos instrumentos que possibilitem uma forte sinergia e otimização de recursos na

gestão e preservação do rio Paraíba do Sul. Esse trabalho propõe a indicação de novos

caminhos, através da adoção da proposição de um conjunto de técnicas e procedimentos que

permitam contribuir para os estudos de definição e a preservação da Faixa Marginal de

Proteção e da Faixa Marginal de Domínio da União Federal, no rio Paraíba do Sul, como

garantia das disponibilidades hídricas, utilizando-se como estudo de caso o trecho entre a

Barragem do Funil e a Barragem de Santa Cecília. Este trabalho foi alicerçado pela revisão da

legislação, por uma revisão conceitual e pela busca de procedimentos técnicos mais

adequados para a caracterização da LMEO e FMP, adotando-se novos conceitos apoiados em

modelos matemáticos, que permitam a sua extrapolação para todos os rios federais.

2 – METODOLOGIA

A metodologia utilizada buscou aproveitar a experiência do autor, adquirida no

Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), e a atuação na Secretaria do

Patrimônio da União no Estado do Rio de Janeiro (SPURJ), no atendimento de dezenas de

Procedimentos Administrativos instaurados na Procuradoria da República em Volta Redonda e

pela Procuradoria da República em Resende, que buscavam a identificação de ocupações

irregulares no Médio Rio Paraíba do Sul. Observa-se que muitas dessas identificações estavam

ligadas à necessidade da correta determinação da FMP e da LMEO, e que estas não se

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encontravam demarcadas na região, impedindo que fossem adotadas ações efetivas para a

preservação do rio. Nesse contexto, buscou-se ampliar os conhecimentos de campo,

bibliográficos e técnicos que pudessem permitir a elaboração de uma proposta que viesse a

simplificar a caracterização e demarcação das faixas marginais de proteção (FMP) e da linha

média das enchentes ordinárias (LMEO), e identificar os principais problemas de gestão,

partindo destas referências como elementos iniciais para a preservação do rio. Hoje, A FMP e a

LMEO partem de definições de difícil determinação e sem referencial fixo. A LMEO, associada

à faixa de domínio da União, depende da definição de como considerar a enchente ordinária.

Por sua vez, a FMP, segundo definição legal original, depende da maior cheia histórica, que,

por sua vez, depende da existência de registros e fica sujeita a indefinições, pela possibilidade

de eventos futuros maiores. Mesmo quando se considera a cheia sazonal, de 10 anos de

recorrência, conforme recomendação em vigor no Rio de Janeiro, essa definição gera dúvidas e

não é fácil transpor essa linha para o campo, por não haver marcas físicas específicas.

Assim, foi possível através da adoção de uma metodologia exploratória, com

levantamentos bibliográficos, entrevistas com pessoas, e levantamentos documentais e de

campo, encontrar uma proposta de alternativa e uma sustentação teórica para o trabalho. Essa

metodologia partiu da caracterização da área do estudo e do levantamento do arcabouço legal,

associado ao tema. Como motivação, a situação atual da área de estudo foi então comparada

com casos de Requalificação Fluvial desenvolvidos na Comunidade Europeia, em especial na

Itália, através de experiências do Centro Italiano de Requalificação Fluvial (CIRF), trazidas

ao Brasil na realização da Primeira Missão SERELAREFA (Semillas REd LAtina

Recuperación Ecosistemas Fluviales Y Acuáticos), em fevereiro de 2011, associada a um

projeto de pesquisa e intercâmbio entre Brasil, através da Universidade Federal do rio de

Janeiro, e Comunidade Europeia. Posteriormente, com o conhecimento da área de estudo e

com base em informações pluviométricas e fluviométricas, foi possível utilizar o modelo

matemático MODCEL (Miguez, 2001).

3 - CONCEITUAÇÃO DE ENCHENTES ORDINÁRIAS E BANKFULL

Segundo Vieira da Silva & Wilson-Jr. G.(2005), pode-se definir um rio como um

sistema dinâmico formado pela combinação de duas fases: uma fase líquida representada, por

um escoamento básico com superfície livre, turbulento, regido pelas leis da Hidráulica e

Mecânica dos Fluidos, e cujo comportamento determina a forma e a geometria da calha

fluvial; uma fase sólida, representada por um fluxo de partículas sólidas de várias dimensões e

diferentes propriedades físico-químicas e mecânicas, denominadas genericamente de

sedimentos, cujo comportamento pode, por sua vez, modificar as propriedades da corrente

líquida. Estabelece-se assim, um processo de retroalimentação, em que o escoamento

modifica a geometria da calha fluvial e a nova configuração desta calha provoca uma

mudança em algumas características do escoamento. Deste processo, resulta toda a

complexidade dos escoamentos com fundo móvel e cujo conhecimento é um dos objetivos

básicos da Hidráulica Fluvial.

Em condições de equilíbrio natural, o funcionamento deste sistema dinâmico é

responsável pela geometria e morfologia dos rios, determinando suas profundidades, larguras,

declividades, sinuosidade do curso d'água e tipos de configurações do leito. Estas

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propriedades apresentam flutuações contínuas no tempo, cujos valores médios em um período

suficientemente longo, são constantes ou variam numa escala muito pequena. Neste caso, diz-

se que o rio encontra-se “em regime”. Os problemas de desequilíbrio surgem quando uma

interferência altera os fatores condicionantes do equilíbrio fluvial, especialmente as vazões

líquidas e sólidas, a partir de modificações na bacia e/ou introdução de obras de engenharia.

Neste caso, um dos problemas fundamentais da Hidráulica Fluvial é a determinação do novo

estado de equilíbrio do sistema. Assim, pode-se afirmar que a determinação de uma enchente

ordinária ou do bankfull de um rio, só pode ser entendida dentro do conceito de variabilidade

ao longo do tempo, ou seja, a caracterização de uma enchente ordinária só pode ser realizada

quando o rio se encontra em regime. Quando surgem os problemas de desequilíbrio, ou de

mudança de equilíbrio, tais como os resultantes da construção de barragens e urbanização da

bacia, alteram-se as condições da fase líquida e da fase sólida originais e produz-se um novo

regime, diferente do anterior. É necessário que os dados hidrológicos disponíveis sejam

representativos do período histórico em que se necessita determinar a enchente ordinária e que

ao longo do período histórico em consideração, o rio não tenha mudado de regime.

Outra definição interessante do conceito de enchentes ordinárias e sua delimitação pode

ser encontrada na Regulatory Guidance Letter, no. 05-05, de 7 de dezembro de 2005, do US

Army Corps of Engineers. Esta determina a observação das marcas de enchentes nas margens,

usando a falta de vegetação como referência. A Figura 1 mostra as definições apresentadas.

Pelo desenho, observa-se que as enchentes ordinárias são aquelas que atingem a cota do

bankfull, pois enchentes maiores já não ocorrerão dentro da calha fluvial, mas sim ocuparão

terrenos marginais, caracterizados como várzeas ou planície de inundação. A esse respeito,

Christofoletti (1980) esclarece: o estágio de margens plenas assinala a descontinuidade entre o

sistema canal fluvial e o sistema planície de inundação. Até atingir o estágio de margens

plenas, o escoamento das águas se processa no interior do canal e origina diversas formas

topográficas. Ultrapassado o estágio de margens plenas, considerado como igual a 1,58 anos

de intervalo de recorrência, as águas espraiam-se e há relacionamento diferente entre as

variáveis da geometria hidráulica.

Assim, a definição de que as enchentes ordinárias são aquelas com baixo tempo de

recorrência é fato comum na literatura técnica. O que por vezes não é entendimento comum é a

caracterização do leito, que varia conforme se procure explicitar com maior ou menor detalhe o

seu desenho. Se Christofoletti, como vimos anteriormente, faz quatro definições para o leito de

um rio e define o leito maior, periódico ou sazonal, como o que é regularmente ocupado pelas

cheias, pelo menos uma vez cada ano e que o estágio das margens plenas é caracterizado por

um intervalo de recorrência de 1,58 anos, Tucci (2007) entende que os rios geralmente possuem

dois leitos. Um deles, o leito menor, é aquele onde a água escoa na maioria do tempo é limitado

pela recorrência de 1,5 a 2 anos. Nos estudos para os rios do Alto Paraguai, Tucci e Gens (1994)

obtiveram um valor médio de 1,87 anos para a ocupação do leito menor.

A correlação das enchentes ordinárias, com tempos de recorrência próximos a 2 anos, e

a sua associação com a linha do bankfull, pode também ser encontrada em estudos elaborados

em rios da América do Norte pelo US Forest Service, que determinaram que a linha do

bankfull fica em média associada a um tempo de retorno de 1,5 anos. Pode-se considerar,

então, que a linha do bankfull, o estágio das margens plenas e a Linha Média das Enchentes

Ordinárias tratam, na realidade, da mesma caracterização de margem do rio. Não é

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recomendável que se assumam valores, para caracterização dessa margem, discrepantes dos

indicados. Para efeito dos cálculos a serem realizados na modelação matemática, e por

considerar-se como mais apropriado a adoção de um número inteiro, a caracterização da linha

do bankfull, do estágio das margens plenas e da LMEO será indicada por enchentes com

período de recorrência igual a dois anos. Essa definição é fundamental, para a caracterização

das faixas marginais e marco indicativo de ocupação das calhas e várzeas, propiciando a

adoção de um referencial, para futuros trabalhos de Requalificação Fluvial. Reforça-se,

porém, que esta definição, bem como a demarcação das diversas faixas pertinentes, só pode

ser entendida em rios em equilíbrio, pois rios em movimento lateral (erodindo/sedimentando)

irão modificar sua posição em planta e as das respectivas faixas.

Figura 1 – Caracterização da FMP e LMEO

4 – A MODELAÇÃO MATEMÁTICA NA DETERMINAÇÃO DA LMEO

E FMP.

A determinação da LMEO e da FMP depende de um vasto acervo de dados hidrológicos

e da ocupação histórica da bacia, que permitam representar as áreas de inundação atingidas

pela maior enchente ocorrida e a média das enchentes ordinárias a partir de 1807. O registro

de vazões e cotas de enchentes, na maioria dos rios brasileiros, é muito recente, reduzindo-se

há poucas décadas as estatísticas confiáveis. Assim, o uso de processos diretos mostra-se

inadequado e poderia levar a enormes erros de demarcação. A estatística com poucos dados

de medição nos rios também é duvidosa. Em busca de uma proposição mais adequada para a

determinação FMP e LMEO, buscou-se o apoio de modelo matemático hidrodinâmico que

pudesse representar com maior fidelidade as manchas de inundação e utilizar-se de série

históricas de estações pluviométricas com maior disponibilidade e antiguidade do que as

estações fluviométricas, ou ainda, utilizar-se de Estudos de Chuvas Intensas. Uma vantagem

da modelação matemática é a possibilidade de espacializar os dados que, em geral, só estão

disponíveis em alguns poucos pontos, nos postos de medição. Para isso, utilizou-se o

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MODCEL, um modelo já testado para modelagem hidrodinâmica de bacias sujeitas a

enchentes. Esse modelo parte do principio de que a bacia pode ser representada por

compartimentos interligados, formando uma rede bidimensional. Esses compartimentos são

chamados de células de escoamento. Assim, a bacia é subdividida em diferentes células

interligadas entre si e o escoamento entre as células é calculado por equações hidráulicas

unidimensionais, definidas de acordo com o padrão topográfico e de urbanização da região,

\através de relações hidráulicas unidimensionais, id est, destacando-se a equação dinâmica de

Saint-Venant, as equações clássicas de vertedor e de orifício, entre outras (Miguez, 2001). Na

figura 2, é apresentada a Topologia das células e suas características para o trecho do estudo.

Na figura 3 é apresentado o resultado da calibração para a estação fluviométricas de Resende,

e na figura 4 é apresentada a validação dessa estação.

Figura 2 – Topologia da área de estudo

Com a construção da topologia, obtiveram-se as condições para a introdução de dados

no modelo de forma que pudessem ser determinadas, após computação, as vazões e cotas de

inundação características da maior enchente histórica e de enchentes com um tempo de

recorrência igual a dois anos, assumida, como já visto, de caracterização do bankfull e

proposta nesse estudo para o cálculo da LMEO. Através de pesquisas de dados da Agência

Nacional das Águas (ANA) e de dados da Light, foi possível uma análise dos dados de

precipitação e vazões disponíveis, no trecho Funil - Santa Cecília. Dessa forma determinou-se

que a maior enchente histórica ocorreu em janeiro de 1966, antes da entrada em operação da

barragem do Funil (1969), sendo os dados de vazão nos postos fluviométricos de Itatiaia,

Resende, Barra Mansa e Volta Redonda referentes a esse mês utilizados para entrada no

modelo e sua calibração. As medições no posto de Itatiaia foram associadas à condição de

contorno de montante, onde hoje se encontra Funil, pela consideração da proximidade deste

posto fluviométrico em relação ao sítio da barragem. Sobre a bacia modelada, considera-se a

chuva como dado de entrada para cálculo das vazões para as estações de Itatiaia, Resende,

Barra Mansa e Volta Redonda. As vazões determinadas foram comparadas com os registros

hidrológicos, permitindo que se calibrasse o modelo conforme o gráfico da estação de

Resende, apresentado na figura 3. Posteriormente, partiu-se para a validação do modelo,

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utilizando-se o mesmo procedimento para o mês de fevereiro de 1965, quando também

ocorreu uma cheia significativa, e verificou-se a calibração feita, conforme o gráfico da

estação de Resende que apresenta-se na figura 4.

Figura 3 – Calibração. Figura 4 - Validação

Calibrado e validado o modelo, a mancha de alagamento da maior enchente estava

determinada para trecho pelo próprio procedimento de calibração. Com essa mancha,

calculou-se FMP associada. Na figura 5, apresenta-se a posição da FMP em Resende

considerando-se o evento máximo simulado. Partiu-se então para a determinação das cotas da

enchente caracterizadora da LMEO, com TR de 2 anos. Para a determinação do valor de

entrada no modelo, foi executada uma série de análises. Considerou-se dados como os

disponibilizados pelo Operador do Nacional do Sistema Elétrico (ONS), para a vazão natural

em Itatiaia de 467m³/s. Este valor foi comparado com a vazão correspondente a um TR de 2

anos, tomando-se por base os dados hidrológicos existentes e que indicou um valor de

473m³/s, para o mesmo local que foi adotado como contorno do modelo a montante. A

determinação da chuva correspondente a um TR de 2 anos, foi determinada através de

consulta ao estudo Chuvas Intensas do Brasil, do Engº Otto Pfafstetter (1957), determinando-

se a TR(2) = 88mm/dia. Inseridos esses dados no modelo, foram obtidas as cotas de inundação

referentes a uma TR de dois anos. Essas cotas forneceram os dados para o desenho da mancha

de inundação que caracteriza as enchentes ordinárias, e a LMEO. Na figura 6, apresenta-se a

posição da LMEO em Resende.

Figura 5 – FMP Resende Figura 6 – LMEO Resende

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5 - DISCUSSÕES DE RESULTADOS E OBSERVAÇÕES A observação dos resultados torna visível que a aplicação do procedimento de

considerar a maior enchente histórica como base para a demarcação da FMP, em áreas de

históricas ocupações urbanas e industriais, é inadequada, inviável e sujeita a inúmeros

questionamentos jurídicos. Seriam inúmeros os conflitos a serem superados. Como exemplo,

podemos citar princípio da proporcionalidade. Embora seja possível regularizar algumas áreas

com base na Lei nº 11.977/09, que estabeleceu requisitos menos exigentes que os da

Resolução Conama nº 369/06, estabelecendo regra menos rígida para a caracterização de área

urbana consolidada, não é possível regularizar área vizinha em idêntica situação, mas

ocupadas por moradias que não se enquadrem no padrão de baixa renda. O maior

questionamento, porém, é o da modificação do rio e sua artificialização. O rio Paraíba do Sul

está, hoje, muito distante das condições naturais, e tem essas condições cada vez mais

alteradas por barramentos, endicamentos e modificações da cobertura vegetal. O maior evento

histórico, e mesmo o regime de vazões no trecho do estudo, nada mais tem a ver com as

condições de 1965, quando da promulgação do Código Florestal. A inércia e o despreparo das

entidades públicas, na realidade, é o grande flagelo que leva a criação de impasses e fatos

consolidados, de difícil transformação. As entidades públicas, desde 1965 não demarcaram a

FMP, passados quase 50 anos. Como esperar que o cidadão comum saiba a localização da

FMP e seus limites precisos, se a mesma não está fisicamente demarcada e representada?.

Da mesma forma observou-se que a adoção de critérios mais claros, e menos subjetivos,

para definição das faixas marginais de domínio da União é urgente. É patente que a sociedade

atual, que se mobiliza e interage cada vez mais e com maior rapidez, não aceita imposições e

surpresas, principalmente quando essas aparecem para propor mudanças repentinas nos

domínios dos terrenos e nas possibilidades de sua ocupação. Mudanças que são conflitantes

com antigas ocupações, muitas das quais, foram consolidadas em gerações anteriores e

passaram a ser parte da herança das famílias. É impossível, pelos relatos coletados, pensar em

soluções que não envolvam diretamente a sociedade e ONGs. É nesse contexto que devem ser

redobrados os cuidados na demarcação da LMEO, de modo que a mesma reproduza com

exatidão o espírito inicial da Lei Imperial n0 1.507 de 26/09/1867. O espírito dessa lei era a de

garantir espaços suficientes para a instalação de portos fluviais e de servidão às margens dos

rios. Deve-se ter, portanto, para a demarcação da LMEO, critérios técnicos claros, para a

caracterização das enchentes ordinárias e, preferencialmente, que sejam compreensíveis pelo

cidadão comum, de modo que ele possa perceber fisicamente esse limite. Uma caracterização

clara das enchentes ordinárias, nada mais seria do que, a adoção de um princípio já proposto

para a FMP, com a adoção das enchentes sazonais ordinárias com tempo de recorrência de

dois anos. Ficam claros os ganhos de simplificação de procedimentos e segurança e

participação da sociedade que seriam alcançados.

6 – CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

É necessário, que cada vez mais as ações públicas tornem-se transparentes, participativas e

embasadas em critérios técnicos apropriados que possam ser expostos, entendidos e aprovados

por todos, de forma clara, simples e única. Não se deve estabelecer critérios demarcatórios que

possam acirrar os conflitos no campo e que, por utilizarem um entendimento técnico particular do

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significado de palavras usadas no período imperial, e não respaldadas por seu próprio sentido

etimológico, levam a impasses que acabam, por fim, sendo um vetor da degradação, em virtude

do desconhecimento, da falta de compromisso do proprietário ribeirinho, da inação dos órgãos

públicos e das disputas judiciais. Nesse sentido, a posição da FMP, demarcada pela maior

enchente histórica, mostra-se inadequada. A modificação do critério de demarcação da FMP

existente na proposta do Novo Código Florestal, que associa a FMP as enchentes sazonais é um

avanço no entendimento da localização dessa faixa. Quanto à definição atual do que é uma

enchente ordinária, presente na ON–GEADE–003, observou-se que merece ser reestudada de

forma urgente, pois na sua forma atual apresenta-se com diversas fragilidades. A adoção da

aceitabilidade do uso de cotas de enchentes entre três e vinte anos (exclusive), para a

determinação de uma cota representativa da média das enchentes ordinárias existente na norma

atual é na realidade, uma opção de interpretação particular e equivocada da Lei nº 1.507, de 26 de

setembro de 1807, para a demarcação da LMEO em terras de inundação ou várzea. A referida

norma não se encontra respaldada por critérios técnicos que possam representar com correção a

média das enchentes ordinárias. Assim, propõe-se a adoção de enchentes com TR de 2 anos,

como representativa da marca do bankfull e, portanto, equivalente às enchentes ordinárias,

caracterizando a largura do rio e servindo como ponto de partida para a determinação da LMEO e

FMP, em referência inicial única. Recomenda-se, também, que é necessária uma revisão dos

procedimentos das entidades públicas que participam da gestão, fiscalização e demarcação do rio

Paraíba do Sul. Um bom ponto de partida talvez seja a adoção de procedimentos semelhantes aos

do Projeto Orla Costeira, onde diversas entidades e ONGs já atuam de forma colaborativa e que

poderia servir de modelo para uma proposta de projeto de Orla Fluvial.

7 – BIBLIOGRAFIA

CHRISTOFOLETTI, A. Geomorfologia. São Paulo. Edgard Blücher,2ª edição,1980, p.p 83.

MIGUEZ, M.G. Modelo Matemático de Células de Escoamento para Bacias Urbanas.

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de Proteção em Rios Federais apoiado por Modelação Matemática - Estudo de Caso:

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