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1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE DIREITO MARCOS PAULO FALCONE PATULLO A IGUALDADE NO PENSAMENTO DE RONALD DWORKIN SÃO PAULO 2009

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

FACULDADE DE DIREITO

MARCOS PAULO FALCONE PATULLO

A IGUALDADE NO PENSAMENTO DE RONALD DWORKIN

SÃO PAULO

2009

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

FACULDADE DE DIREITO

A IGUALDADE NO PENSAMENTO DE RONALD DWORKIN

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie como exigência para a obtenção do grau de Mestre em Direito Político e Econômico.

ORIENTADOR: Professor Doutor Hélcio Ribeiro

SÃO PAULO 2009

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P322i Patullo, Marcos Paulo Falcone.

A igualdade no pensamento de Ronald Dworkin / Marcos Paulo

Falcone Patullo – 2009.

210 f. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) –

Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010.

Bibliografia: f. 203-210.

1. Igualdade de recursos. 2. Liberdade. 3. Comunidade liberal.

4. Direito. 5. Moralidade. I. Título.

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“a guerra é o tema lancinante da filosofia política, e a

paz, o da filosofia do direito”.

Paul Ricoeur

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, pelo exemplo de vida, amor e carinho.

Ao Professor Hélcio Ribeiro, pelo incentivo em fazer o mestrado pela Faculdade

de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e por toda a sua dedicação

no decorrer da orientação.

Aos meus amigos e familiares, pelo fundamental apoio nos momentos difíceis, e

por compartilharem minhas alegrias.

A toda a equipe do Vilhena Silva Advogados Associados, que na luta pela

concretização do direito à saúde, contribui para a aplicação prática dos

conhecimentos adquiridos durante o curso de mestrado.

À CAPES, pelo apoio e incentivo financeiro, essenciais para o desenvolvimento

do presente trabalho.

À Luiza, amor da minha vida, companheira de mais de 10 anos, por completar

minha existência.

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RESUMO

O estudo da filosofia política de Dworkin, especialmente a sua concepção de

“igualdade de recursos”, é essencial para a apreensão de seu pensamento

jurídico. Sem dúvida, a teoria “Direito como Integridade” utiliza alguns

conceitos, tais como a personificação da comunidade, interpretativismo e

construtivismo, que pressupõem conceitos políticos basilares do liberalismo

dworkiniano. Quando Dworkin sustenta que o intérprete deve perquirir a

interpretação que mostre a lei “sob a sua melhor luz”, ele tenciona que os

juristas têm o dever de fazê-la a melhor em termos igualitários. Assim, é muito

importante compreender como a igualdade de recursos é desenvolvida como a

concretização do direito que todo cidadão possui em uma democracia liberal de

ser tratado com igual respeito e consideração, bem como a concepção

dworkiniana de liberdade e comunidade, para após proceder à análise de sua

filosofia do direito. Finalmente, após conectar o liberalismo igualitário

dworkiniano e sua teoria jurídica, mister verificar como a filosofia de Dworkin

pode ser aplicada à sociedade brasileira, que é marcada pela pobreza e exclusão

social.

Palavras-Chave: Igualdade de Recursos – Liberdade – Comunidade liberal –

Direito – Moralidade

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ABSTRACT

The study of Dworkin’s political philosophy, specially his conception of

“equality of resources”, is essential for the apprehension of his legal thought.

Indeed, his “Law as Integrity” theory uses some concepts, like the

personification of the community, interpretativism and constructivism, which

presupposes some background political concepts of dworkinian liberalism. In

fact, when Dworkin defends that the interpret must pursue the interpretation that

shows law “in its best light”, he means that jurists’ duty is to make it the best in

terms of equality. Thus, it is very important to understand how equality of

resources is developed as the concretization of the right every citizen has in a

liberal democracy of being treated with equal concern and respect, as well as

Dworkin’s conception of liberty and liberal community, for then proceeding to

his jurisprudence. Finally, after connecting dworkinian egalitarian liberalism

and his legal theory, it’s imperative to see how Dworkin’s philosophy can be

applied to the Brazilian society, which is marked by poverty and social

exclusion.

Key-Words – Equality of Resources – Liberty – Liberal Community – Law -

Morality

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SUMÁRIO

Introdução 11

Capítulo I – O Conteúdo Normativo do Princípio Igualitário Abstrato 18

1.1. A evolução da idéia de igualdade no pensamento dworkinano 19

1.2. A igualdade de bem-estar e a crítica de DWORKIN 22

1.2.1. A igualdade de bem-estar como tentativa de fundamentação do 23

princípio da igualdade

1.2.1.1. As teorias da igualdade de bem-estar relacionadas com o sucesso 24

1.2.1.1.1. Igualdade de sucesso e as preferências humanas (políticas, 25

impessoais e pessoais)

1.2.1.1.2. A igualdade de satisfação (equality of enjoyment) e as 32

teorias objetivas da igualdade de bem-estar

1.3. O equalisandum dworkiniano: a igualdade de recursos 34

1.3.1. Igualdade na propriedade privada de recursos 37

1.3.2. A construção do mercado igualitário a partir do exemplo contractual 40

1.3.2.1. O leilão igualitário fictício como modelo avaliativo das 43

Instituições reais

1.3.2.2. O leilão sensível à ambição e insensível às circunstâncias: 45

sorte, deficiências e seguro hipotético

1.3.2.3. O leilão insensível à dotação: o problema das deficiências 48

1.3.2.4.. O leilão insensível à dotação II: a questão da sorte genética 53

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1.4. A concretização do seguro hipotético: o sistema tributário redistributivo 56

Capítulo II – Igualdade de Recursos e Liberdade 65

2.1. Direito à Liberdade ou Direito a Liberdades? 66

2.2. Como (re)conciliar a igualdade e a liberdade? 68

2.2.1. A estratégia dos interesses 68

2.2.2. A estratégia constitutiva: a liberdade como pressuposto da igualdade 70

2.2.2.1. O princípios e subprincípios que regem os direitos de liberdade 72

2.3. A questão do deficit de recursos e de liberdade 76

2.4. A crítica de Amartya Sem ao Liberalismo Dworkiniano 78

2.4.1. A resposta de Dworkin 83

Capítulo III – Comunidade e Ética no pensamento dworkiniano 87

3.1. Os argumentos pelo perfeccionismo moral 89

3.1.1. O argumento majoritário 90

3.1.2. O argumento paternalista 91

3.1.3. O argumento do interesse pessoal 93

3.1.4. O argumento do Comunistarismo Republicano Cívico 95

3.2. O republicanismo cívico liberal de DWORKIN: a comunidade liberal 97

3.3. Comunidade e boa-vida 99

3.3.1. O conceito de boa-vida (The Good Life) 100

3.3.1.1. O “Modelo do Impacto” e a Ética Utilitarista 100

3.3.1.2. Igualdade de recursos e boa-vida: o “Modelo do Desafio” 102

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3.3.1.2.1.Descartes e o surgimento do conceito de subjetividade humana 102

3.3.1.2.2. O Modelo do Desafio: a justiça como métrica do viver bem 104

3.4. As dimensões da dignidade humana 107

Capítulo IV – A Filosofia do Direito Dworkiniana 111

4.1. O positivismo jurídico 112

4.1.1. HART e o Conceito de Direito 112

4.1.2. A interpretação do direito nas doutrinas positivistas: um paralelo 118

entre HART e KELSEN

4.2. O Direito como Integridade 125

4.2.1. A limitação estrutural da teoria de Herbert Hart 125

4.2.2. A integridade como ideal político e a sua manifestação no Direito 131

4.2.3. A interpretação construtivista dworkiniana 133

4.2.3.1. Razão Prática e o Construtivismo Político 134

4.2.3.2. A atitude interpretativa e a definição do Direito como 137

objeto interpretativo

4.3. Ceticismo, Coerência e a Tese da Resposta Certa 145

4.3.1. O predomínio e declínio do Ceticismo na teoria política normativa 146

4.3.2. O Ceticismo no Direito e a crítica dworkiniana 151

4.3.3. Integridade e Coerência 154

4.3.3.1. A crítica de HABERMAS ao “princípio monológico” 157

de DWORKIN

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4.3.3.2. A crítica de RICOEUR: a falta de uma teoria da argumentação 160

no pensamento dworkiniano

4.3.4. Uma leitura da “tese da resposta certa”: o dever buscar 162

a melhor solução

Capítulo V – O Pensamento Dworkiniano e a Interpretação da 169

Constituição Federal de 1988

5.1. A Colocação do Problema Prático 170

5.2. Uma questão interpretativa 174

5.3. A Crise do Estado Social e o Direito à Saúde 180

5.3.1. O problema da governabilidade 182

5.4. A importância de se recorrer à Teoria Política Normativa 185

5.4.1. O liberalismo igualitário e o Estado brasileiro 187

5.4.2. A solução divergente 190

Conclusão 196

Referências Bibliográficas 203

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INTRODUÇÃO

Qual é a importância da teoria política1 para o Direito? Esse é, sem dúvida

alguma, um dos temas mais instigantes da filosofia do direito, e que permeia

todo o pensamento jusfilosófico de DWORKIN.

Por muitos anos, por conta da preocupação cientificista do positivismo

jurídico, houve certo distanciamento da filosofia jurídica e da teoria política

normativa. Com efeito, o dogma positivista segundo o qual “a validade de uma

norma do direito positivo é independente da validade de uma norma de justiça2”

é tido como uma verdade axiomática no ensino do direito, notadamente nas

universidades brasileiras. Por essa razão, inclusive, o estudo da filosofia do

direito muitas vezes se limita à análise da crítica positivista às doutrinas

jusnaturalistas, sem, no entanto, abordar a tradição jusfilosófica que ora se

pretende expor.

Na presente dissertação, assim, analisar o pensamento dworkiniano, com

enfoque em sua teoria liberal-igualitária. Ao fazê-lo, no entanto, tem-se como

meta ressaltar o papel e a relevância dos principais valores constitutivos da

teoria política liberal3, nomeadamente, a igualdade, a liberdade e a fraternidade,

para a interpretação e justificação racional do Direito.

1 Utiliza-se, aqui, o termo “teoria política”, “teoria política normativa” ou mesmo filosofia política como “um ramo da filosofia moral que parte da descoberta, ou aplicação, de noções morais na esfera das relações políticas”, in BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 228. Não se pretende, nesse sentido, contrapor Política e Moral, mas sim conferir àquele termo o significado que lhe foi atribuído pelos filósofos, como RAWLS e HABERMAS, que compõem o que ABBAGNANO denomina de “renascimento da filosofia prática”, posto que “voltaram a empenhar o discurso filosófico nos grandes temas da liberdade e da justiça. E isso segundo um modelo criativo-normativo de filosofia P., voltando a responsabilizar os filósofos em relação às instituições fundamentais de uma sociedade organizada, ou seja, a engajar-se na “construção de mundos habitáveis, por via de razões”, cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Edição revista e ampliada. 5.ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 906. 2 KELSEN, Hans. O problema da Justiça. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 11. 3 O termo “Liberalismo” não é de fácil conceituação. Tradicionalmente, em termos políticos, a partir da exposição de filósofos como MILL, o liberalismo é tido como uma doutrina individualista, e que prima pela prevalência da liberdade sobre a igualdade. Trata-se, portanto, de uma visão extremamente conservadora e que predomina, mormente, na Europa e no Brasil. Já na tradição norte-americana, especialmente a partir da década de 1970, com a publicação de “A Theory of Justice”, houve o desenvolvimento da teoria liberal com uma

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Mas qual a razão da escolha, entre esses três ideais fundadores do

liberalismo, da igualdade? A igualdade é, sem dúvida, um valor político muito

caro para a República Federativa do Brasil, e integra o conteúdo normativo dos

princípios constitucionais fundamentais previstos no artigo 1.º da Constituição

Federal. Outrossim, a igualdade está prevista, como direito fundamental, no

artigo 5.º, caput, da Lei Maior, o que apenas corrobora a sua importância para a

ordem jurídica pátria. Em que pese a relevância política e jurídica desse ideal,

não foi conferido ao mesmo o destaque teórico que lhe é devido.

De fato, quase a totalidade dos publicistas pátrios que se debruçaram

sobre o tema, limitaram à análise do conteúdo “jurídico” do princípio da

isonomia. Talvez a melhor obra sobre a igualdade que foi produzida no direito

brasileiro foi escrita por Celso Antônio Bandeira de MELLO4, na qual, define-se

o “conteúdo político-ideológico” da igualdade com a seguinte definição: “a Lei

não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da

vida social5”. Embora louvável a preocupação de MELLO com a igualdade,

verifica-se que a mencionada definição nada mais faz do que uma definição

“formal” da igualdade, sendo certo que nada de “político-ideológico” se extrai

da definição supra senão a repetição a idéia, expressa no artigo 5.º, caput, da

Constituição6, de que a lei não pode estabelecer discriminações ilógicas e deve

buscar a proteção dos direitos necessários à ordenação da vida social.

O erro cometido por MELLO, qual seja, o de buscar na própria lei a

definição da igualdade, é cometido pela imensa maioria dos constitucionalistas,

preocupação igualitária. Em contraposição ao conservadorismo de outrora, o liberalismo passa a ser concebido, por RAWLS, como “a resposta mais funcional à exigência atual de uma “sociedade bem organizada”, baseada na justiça e no pluralismo”. É nesse contexto que se insere o pensamento dworkiniano e, por conseguinte, é com esse conteúdo semântico que se utilizará o termo “Liberalismo” na presente dissertação. 4 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3.ª ed. 14. ª Tiragem. São Paulo: Malheiros. 5 Idem. Ibidem. p.10. 6 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade(...)”

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e tem a sua origem na tradição juspositivista que domina o ensino do direito no

Brasil.

A definição do conteúdo valorativo do princípio igualitário não é

apreendido mediante análise do texto constitucional. Para tanto, há a

necessidade de se recorrer à teoria política normativa. Aliás, esse ramo do

conhecimento é de fundamental importância para a análise do direito

constitucional de uma forma geral, o que levou, inclusive, DWORKIN a

afirmar, expressamente, que nenhum constitucionalista, atualmente, pode

ignorar a leitura de “A Theory of Justice” de JOHN RAWLS 7.

A igualdade, substancialmente compreendida, deve ser perquirida na

teoria política normativa. A esse respeito, todavia, a justiça rawlsiana representa

um corte teórico extremamente relevante, eis que, conforme dito, representa

uma releitura dos pressupostos da teoria liberal, a partir de uma visão igualitária.

Pode-se afirmar, com toda certeza, que RAWLS foi um dos pensadores que mais

influenciou o pensamento dworkiniano. Em um de seus mais recentes livros,

DWORKIN “confessa” que existem muitos pontos comuns entre a sua teoria

filosófica e o pensamento rawlsiano. Mais do que isso: DWORKIN considera

tamanha a importância de John RAWLS para a filosofia moderna que chega a

compará-lo com a importância que o próprio KANT possui para a Filosofia8.

Essa característica do pensamento dworkiniano, qual seja, a sua “raiz

rawlsiana”, não foi devidamente explorada pelos juristas. Com efeito,

DWORKIN é sempre apresentado pelos estudiosos do direito como um

jusfilósofo anti-positivista. No entanto, o alicerce político-normativo de seu

7 “Professor Rawls of Harvard, for example, has published an abstract and complex book about justice which no constitutional lawyer will be able to ignore (A Theory of Justice, 1972) There is no need for lawyers to play a passive role in the development of a theory of moral rights against the state, however, any more than they have passive in the development of legal sociology and legal economics. They must recognize that law is no more independent from philosophy than it is from other disciplines. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 149. 8 DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006, p. 261.

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pensamento jurídico é deixado de lado. E, nesse sentido, a melhor forma de

analisar a contribuição do liberalismo igualitário dworkiniano para seu

pensamento jurídico é através da análise da igualdade.

Assim, a escolha pela “igualdade no pensamento de Ronald Dworkin” foi

motivada tanto pela possibilidade de aprofundamento no estudo desse ideal

político, quanto pela apreensão da essência do pensamento dworkiniano, que é,

hodiernamente, um dos mais relevantes no meio acadêmico.

Ronald DWORKIN nasceu em 1931, em Worcester, Massachusetts, e

graduou-se direito na Faculdade de Direito de Havard, na década de 1950. Foi

assessor, entre 1957-58, do Juiz Learned Hand na United States Court of

Appeals. Após, tornou-se membro do New York bar e associado do escritório de

advocacia Sullivan and Cromwell entre 1958-62. Academicamente, sua carreira

iniciou-se em 1962, na Faculdade de Direito de Yale. Posteriormente, em 1969,

foi indicado para a cadeira de Filosofia do Direito de Oxford, como sucessor de

HERBERT HART, onde permaneceu até 1998. Além de Oxford, DWORKIN

também lecionou nas faculdades de direito de Harvard, Cornell e Princeton,

além de ser professor convidado da University College London desde 1984.

Atualmente, DWORKIN leciona Filosofia do Direito na New York University

School of Law 9.

Seu primeiro artigo foi publicado no Journal of Philosophy em 1963 e

versava a respeito da discricionariedade judicial. Em seguida, outros artigos

foram escritos, sendo neles identificável uma tese anti-utilitarista (que emergia

na filosofia política norte-americana) e uma forte influência do pensamento de

JOHN RAWLS. Foi, no entanto, com a publicação, no University of Chicago Law

Review do artigo “Is Law a System of Rules?”, em 1968, na qual critica o

9 GUEST, Stephen. Profiles in legal theory: Ronal Dworkin. California: Stanford University Press, 1991, p.

01-02.

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pensamento de HART, que o autor norte-americano ficou conhecido no mundo

jurídico.

DWORKIN tem, outrossim grande influência das escolas Britânica e

norte-americana. Com efeito, no ano de 1952, quando o Professor HERBERT

HART tornou-se titular da cadeira de filosofia do direito na Universidade de

Oxford, o estudo e desenvolvimento da filosofia do direito, bem como a teoria

política, estavam em crise na Inglaterra. Na década de 1950 foram publicadas de

algumas obras10 cujo principal foco era o rigor metodológico, e que motivaram o

surgimento de grandes discussões a respeito da filosofia jurídica. Todavia, foi

em 1961, com a publicação de “O Conceito de Direito” (The Concept of Law),

de HERBERT L.A.HART, que a Jurisprudência britânica ganhou a claridade e rigor

lingüístico e metodológico necessários para o seu pleno desenvolvimento.

Já nos Estados Unidos, o desenvolvimento da argumentação jurídica se

dava a partir da prática dos tribunais, o que é, até hoje, uma marcante

característica da Jurisprudência norte-americana. DWORKIN, como dito,

iniciou a sua produção científica na década de 1960, em plena ocorrência da

Guerra do Vietnã e do Movimento pelos Direitos Civis. Duas questões, portanto,

emergiam desses fatos históricos: a questão da legitimidade da atuação estatal, e,

relacionado a esta, a da inviolabilidade dos direitos individuais. Ambos os temas

têm presença marcante na filosofia dworkiniana, uma vez que tratar a todos os

cidadãos com “igual respeito e consideração” é a condição sine qua non para a

legitimidade substantiva do governo democrático, o que exige o reconhecimento

de certos direitos fundamentais que são invioláveis pela atuação estatal.

A presente dissertação visa examinar, a partir da igualdade, o pensamento

dworkiniano, tanto no seu aspecto político-normativo, quanto a sua filosofia do

10 Dentre elas, Stephen Guest cita The Vocabulary of Politics (1953), de T.D. Weldon; The Province and Function of Law(1946), de Julius Stone; Law and Social Change in Contermporary Britain (1951) e Legal Theory (1967), de Wolfgang Friedman; e, finalmente, Introduction to Jurisprudence (1959), de Dennis Lloyd. Cf. GUEST, op cit., p.03.

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Ddireito. Nesse sentido, o Capítulo 01 será dedicado à exposição pormenorizada

da “igualdade de recursos” dworkiniana, conceito essencial para o entendimento

dos demais temas que serão abordados nos Capítulos subseqüentes. Após, no

Capítulo 02, enfocar-se-á a principal característica do liberalismo igualitário

dworkinano: a compreensão da igualdade e da liberdade como ideais políticos

complementares, e não conflitivos. Conforme será visto, DWORKIN sustenta

que esses valores políticos interagem de uma forma peculiar e que não entram

genuinamente em conflito. Nesse Capítulo, ainda, será analisada a crítica que

SEN tece a DWORKIN e a importância da mesma para a compreensão do

presente objeto de estudo.

Por sua vez, o Capítulo 03 será reservado ao estudo do conceito

dworkiniano de comunidade liberal e de boa-vida. O entendimento da teoria

“Direito como Integridade” deve começar pela idéia de Republicanismo Cívico

Liberal que DWORKIN expõe no Capítulo 05 de “Sovereign Virtue”, sendo

certo que a concepção de “comunidade personificada” é de importância impar

para a doutrina dworkiniana. O fechamento da teoria política de DWORKIN se

dará com o estudo da questão do viver bem, e, finalmente, com as dimensões da

dignidade da pessoa humana, composta pelos princípios da responsabilidade

individual e do valor intrínseco da pessoa humana.

A partir do Capítulo 04, o foco da dissertação passa a ser a teoria do

direito dworkiniana, a qual tentar-se-á analisar com vistas ao que foi exposto nos

três primeiros Capítulos. Pretende-se, na verdade, mostrar a importância da

compreensão do pensamento ético-político de DWORKIN para a correta

apreensão de sua teoria do direito. De fato, a filosofia política exerce um papel

decisivo no desenvolvimento do pensamento jurídico de DWORKIN, tanto na

definição dos conceitos interpretativos, como, especialmente, no entendimento

da one right answer thesis.

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Passa-se, no Capítulo 05, da abstração para a concretude, visto que, a

partir da análise de um problema concreto, qual seja, a questão do fornecimento

gratuito, pelo Estado, de medicamentos de alto custo, far-se-á uma leitura do

artigo 196 da Constituição Federal à luz do pensamento dworkiniano. Objetiva-

se, com isso, demonstrar como as filosofias política e jurídica de DWORKIN

podem contribuir para a interpretação do direito brasileiro, desde que a mesma

seja usada com critério, mediante a feitura das mitigações necessárias à

adaptação do pensamento dworkiniano para o caso brasileiro.

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CAPÍTULO I

O CONTEÚDO NORMATIVO DO

PRINCÍPIO IGUALITÁRIO ABSTRATO

A igualdade é um valor fundamental na teoria de dworkiniana. Sem

dúvida, o autor norte-americano dedica boa parte de sua obra a defender uma

interpretação extensiva da cláusula de igual proteção contida na Constituição

Americana, a qual representa, para ele, o texto legal que insere o princípio

igualitário abstrato na vida política norte-americana. Nesse sentido, visando

definir o conteúdo normativo desse princípio, DWORKIN constrói uma teoria

geral da igualdade, em especial na obra “Sovereign Virtue”. Se no âmbito da

teoria do direito DWORKIN pode ser considerado um “pós-positivista”,

politicamente, seu pensamento se insere na mesma linha da filosofia rawlsiana,

ou seja, como um liberal igualitário, visto que defende a conciliação (e não o

conflito) entre a igualdade e a liberdade.

No aludido livro, DWORKIN ressalta a importância que a igualdade tem

para legitimar um governo democrático, defendendo que o Estado tem o dever

de demonstrar igual consideração (equal concern) para com todos os cidadãos

que estão sob o seu domínio, aos quais invoca lealdade11. Considerando a

importância legitimadora da igualdade, DWORKIN pretende oferecer uma

concepção igualitária que fortaleça esse ideal, que perdeu importância nas

doutrinas liberais a partir do século XIX.

Mas o que pode fazer da igualdade um ideal político atraente? Em

primeiro lugar, cumpre salientar que DWORKIN não é defensor de uma

igualdade indiscriminada. Pelo contrário, ele se preocupa em rechaçar, logo na

Introdução de “Sovereign Virtue”, a concepção da igualdade indiscriminada

11 DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue: the theory and practice of equality. Massachusetts: Harvard University Press, 2000, p. 1.

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defendida pela “velha esquerda12”, a qual sequer pode ser considerada, segundo

ele, como um ideal político genuíno13. Embora DWORKIN não mencione

expressamente, a crítica ao que denomina “velha esquerda” é dirigida à teoria

marxista. É deveras controverso se o marxismo pode ser propriamente

considerado uma teoria da justiça. Com efeito, o problema da Justiça não era

uma preocupação de MARX, eis que a idéia que permeia a sua filosofia é a de

que “com a chegada do comunismo iriam desaparecer (...) as ‘circunstâncias da

justiça’. A escassez e os conflitos seriam reduzidos, ao ponto de tornar

desnecessária qualquer apelação à justiça14”.

Por essa razão, DWORKIN desconsidera o marxismo como fonte de um

ideal igualitário, eis que, para o filósofo norte-americano, o princípio da

igualdade deve ser complexo e dotado de diversos critérios definidores das

situações em que se deve prezar pela igualdade, e daquelas em que o próprio

tratamento igualitário pode ser injusto. A “igualdade de recursos” dworkiniana

(equality of resources), visa elaborar um ideal igualitário dotado da

complexidade que falta à “igualdade indiscriminada marxista”, e parte de uma

crítica das teorias da igualdade de bem estar

1.1. A EVOLUÇÃO DA IDÉIA DE IGUALDADE NO PENSAMENTO

DWORKINANO

A igualdade é mencionada por DWORKIN em diversos de seus escritos,

mas ganhou relevância teoria em “Taking Rights Seriously”, onde DWORKIN,

12 Ressalte-se, desde já, que DWORKIN não prima pela precisão técnica do vocabulário que utiliza, o que representa, inclusive, uma dificuldade que o seu leitor deve superar, já que não são incomuns as inovações terminológicas no decorrer de sua obra. 13 DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 02. 14 “Marx simplemente se desentendía de las cuestiones de la justicia, porque pensaba que con la llegada del comunismo iban a desaparecer (lo que Hume o Rawls llamaron) las “circunstancias de la justitcia”. La escasez y los conflictos se iban a ver reducidos, hasta el punto de tornar innecesaria cualquier apelación a la justicia”. GARGARELLA, Roberto. Las teorias de la justicia después de Rawls: un breve manual de filosofia política. Barcelona: Paidós, 1999, p. 106. Gargarella menciona, ainda, autores como Richard Miller, que sustentam que Marx tinha uma verdadeira aversão à justiça, e outros como Zayid Husami, que entendem que o filósofo alemão possuía, implicitamente, uma teoria da justiça.

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20

no capítulo 12, define o conceito de “equal concern and respect”. Argumenta

que quando se afirma que um governo tem o dever de tratar a todos com “equal

concern and respect”, pode-se ter em mente duas interpretações possíveis. A

primeira é no sentido de que o conteúdo abstrato do direito a “igual respeito e

consideração” manifesta-se como um direito a “equal treatment” (tratamento

igualitário), ou seja, “(direito) à mesma distribuição de bens e oportunidades que

foi ou é dada a qualquer outra pessoa15” . Outra interpretação possível é que

“equal concern” acarreta o direito a “treatment as an equal” (tratamento como

um igual), que diz respeito ao direito a “igual respeito e consideração nas

decisões políticas acerca da forma como esses bens e oportunidades deverão ser

distribuídos 16”. Essa distinção entre equal treatment e treatment as an equal é

sutil, mas de vital importância.

Equal treatment, segundo a definição proposta por DWORKIN, diz

respeito a uma igualdade à mesma parcela de recursos a que foi dada aos demais

indivíduos, o que dá margens à “igualdade indiscriminada” defendida pela

“velha esquerda” e, conforme visto acima, é tão criticada por DWORKIN. Por

sua vez, o direito a tratamento “como um igual” (treatment as an equal) deve

ser visto como um direito de fundamental importância para a concepção liberal

de igualdade, eis que atribui ao governo o dever de considerar as circunstâncias

pessoais de cada indivíduo quando da tomada da decisão política que

determinará a distribuição de recursos na sociedade, o que significa, por

exemplo, que o governo tem que levar em consideração as deficiências (físicas,

mentais, etc) que determinados indivíduos têm para definir a política tributária

que será adotada17.

15 “(right) to the same distribution of goods and opportunities as anyone else has or is given”. DWORKIN. Taking…, op. cit., pp. 272-273. 16“equal concern and respect in the political decision about how these goods and opportunities are to be distributed”. Idem. Ibidem. p. 273. 17 Essa é, inclusive, uma preocupação que já se encontra na teoria liberalismo igualitário de JOHN RAWLS e que será colocada em evidência por DWORKIN. Nesse sentido, cf. RAWLS, John. A Theory of Justice. Revised Edition. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Havard University Press, 1999, pp. 86 e ss. e

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DWORKIN foi criticado pela demasiada abstração com a qual definiu o

direito à igualdade, conforme podemos observar nos comentários que PAUL

GAFFNEY tece à teoria do direito de dworkiniana, no sentido de que é muito

difícil se extrair um programa político da definição formal que DWORKIN faz

da igualdade, mostrando-se surpreso com o fato de que o autor norte-americano

não se esforçou em dar contornos mais concretos à sua concepção de igualdade:

“Inacreditavelmente, Dworkin não dedica muita energia para essa questão,

apesar de sua centralidade 18”.

Realmente, tendo em vista apenas a forma como DWORKIN define a

igualdade em “Taking Rights Seriously”, que é seu livro de maior destaque, a

crítica feita por GAFFNEY é pertinente. Todavia, em escritos posteriores à

aludida obra, DWORKIN refinou a sua concepção de igualdade, dando à mesma

contorno mais concreto. Sem embargos, no artigo “Why Liberals Should Care

about Equality?”, que atualmente encontra-se publicado em “A Matter of

Principle” , DWORKIN refere-se a uma concepção de “igualdade de recursos”,

introduzindo a idéia de que uma teoria da igualdade, enquanto ideal genuíno do

Estado Liberal, deve respeitar as “escolhas autênticas” dos indivíduos e

neutralizar as circunstâncias naturais19.

No entanto, foram nos artigos “What is equality? Part I: equality of

welfare” e “What is equality? Part II: equality of resources”, publicados

originalmente na revista “Philosophy and public affairs” em 1981, e que hoje

compõem o livro “Sovereign Virtue”, que DWORKIN desenvolveu por

completo a sua defesa da igualdade de recursos.

VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp.114 e ss. 18 “Incredibly, Dworkin does not devote too much energy to this question, despite its centrality”. GAFFNEY, Paul. Ronald Dworkin on law as integrity: rights and principles of adjudication. New York: Mellen University Press, 1996, p. 108. 19 DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985, pp. 205 e ss.

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Outrossim, em seu livro mais recente, denominado “Is democracy

possible here?”, DWORKIN faz menção a dois princípios éticos que

fundamentam a sua teoria liberal, que comporiam as dimensões da dignidade da

pessoa humana20, demonstrando que esses princípios devem constituir uma base

comum (common ground) para a discussão dos assuntos políticos de maior

relevância na sociedade americana. Esse assunto será abordado no Capítulo III.

Por ora, cumpre analisar a forma como DWORKIN elabora a defesa da

igualdade de recursos a partir de uma crítica de uma concepção igualitária que

coloca o bem-estar como parâmetro igualitário.

1.2. A IGUALDADE DE BEM-ESTAR E A CRÍTICA DE DWORKI N

Existem várias concepções políticas igualitárias, sendo este termo

“igualdade” utilizado por diversos autores para defender modelos distributivos

divergentes. Visando esclarecer esse problema, SEN defende que as doutrinas

igualitárias devem buscar a resposta à pergunta “igualdade de quê” (equality of

what?), visto que em cada uma das teorias igualitaristas “a igualdade é buscada

em algum espaço – um espaço que considera como tendo um papel central nessa

teoria”21. Assim, todas as doutrinas que defendem uma espécie de igualdade que

considera relevante acabam por aceitar uma desigualdade em algum

determinado espaço, considerado de somenos importância. Nesse sentido,

defender a igualdade significa definir alguma espécie de igualdade que deva

prevalecer sobre as demais, de modo que “proponentes do igualitarismo não

podem portanto simplesmente se dizer igualitários, devem apontar em que

20 DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? Principles for a new political debate. Oxford: Princeton University Press, 2006, p. 09 e ss. 21 SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. 2.ª Ed. Tradução: Ricardo Doninelli Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 44.

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dimensão (isto é, espaço) uma sociedade de iguais busca a igualdade entre as

pessoas”22.

A resposta à pergunta “igualdade de quê” pode ser considerada um marco

teórico na doutrina dworkiniana, visto que é a partir da separação entre

“doutrinas da igualdade de bem-estar” e “igualdade de recursos” que ele

constrói o conteúdo normativo do princípio igualitário. Nesse diapasão,

DWORKIN reserva um capítulo inteiro de “Sovereign Virtue” para analisar (e

desconstruir) a igualdade de bem-estar (equality of welfare), para posteriormente

expor a sua teoria da igualdade de recursos.

1.2.1. A IGUALDADE DE BEM -ESTAR COMO TENTATIVA DE FUNDAMENTAÇÃO DO

PRINCÍPIO DA IGUALDADE

As doutrinas da igualdade de bem-estar concebem o princípio igualitário a

partir de uma racionalidade econômica, contemplando os recursos sociais de

acordo com sua capacidade de produção de bem-estar para os indivíduos23.

Nesse contexto, a igualdade de bem-estar está relacionada com a forma de

distribuição desses bens para que as pessoas tenham igual bem-estar em sua vida

social considerada como um todo. Tendo isso em vista, a questão que

DWORKIN coloca é se a igualdade em bem-estar deve ser um objetivo a ser

alcançado por um governo comprometido com o princípio abstrato da

igualdade24.

No entanto, preliminarmente à discussão da igualdade de bem-estar,

DWORKIN propõe uma classificação da mesma a partir de três grandes grupos.

22 FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Justiça distributiva para formigas e cigarras. Novos estud. - CEBRAP [online]. 2007, n.77 [cited 2009-12-16], pp. 243-253.Disponível em : <http://www.scielo.br /scielo. php? script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000100013&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0101-3300. doi: 10.1590/S0101-33002007000100013. Acesso em 17.12.2009. 23 Para Dworkin, a produção de bem estar era vista, pelos economistas, como a principal característica dos recursos sociais, cf.DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 14. 24 Idem. Ibidem. p. 15.

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24

O primeiro grupo ele denomina de “teorias do sucesso” (success theories)25” do

bem-estar, às quais estariam relacionadas com o êxito dos indivíduos na

comunidade26. Já o segundo grupo da classificação proposta por DWORKIN

contém as denominadas “teorias do estado de consciência”, segundo as quais “a

distribuição deve tentar objetivar igualar as pessoas, na medida do possível, em

algum aspecto ou qualidade de sua vida consciente27” . Dessa modo, as teorias do

estado de consciência estão relacionadas com a quantidade de prazer e de

desprazer (igualdade de satisfação) que um indivíduo sentirá em sua existência.

Por fim, DWORKIN menciona as teorias objetivas do bem-estar, que requerem

a construção de parâmetros objetivos para a mensuração do bem-estar na

sociedade.

1.2.1.1. As teorias da igualdade de bem-estar relacionadas com o sucesso

A igualdade de bem-estar, na modalidade ora em exame, relaciona-se com

o sucesso ou êxito que uma pessoa atinge na sociedade no decorrer de sua vida.

DWORKIN inicia a discussão acerca das “teorias do sucesso” do bem-estar para

verificar se o “sucesso” deve ser um parâmetro na elaboração de uma teoria

geral da igualdade, ou seja, se a igualdade, em sua substância, exige que o

Estado atue de forma a igualar os indivíduos quanto ao êxito, considerado este

em suas mais diversas formas. Nesse contexto, DWORKIN questiona: “se (...)

nós podemos alcançar a igualdade de bem-estar em alguma dessas concepções,

25 Jussara Simões, na edição brasileira do livro Virtude Soberana, publicada pela editora Martins Fontes, sugere a tradução dessa expressão como “teorias bem sucedidas do bem-estar”, mas eu preferi por não adotar essa tradução e manter a expressão consoante se encontra no original em inglês. 26 Cumpre salientar que DWORKIN relaciona o êxito de uma pessoa a três fatores, a saber, às preferências políticas, pessoas e impessoais do indivíduo. Assim, para aqueles que defendem irrestritamente que a igualdade de bem-estar é uma questão de êxito, os bens sociais devem ser distribuídos de forma a que as pessoas consigam ter sucesso de forma equânime em suas mais diversas preferências (políticas, pessoais ou impessoais). Já outras teorias mais restritas podem limitar a igualdade de bem-estar na modalidade êxito a cada uma dessas preferenciais. Cada um desses fatores será oportunamente conceituado e relacionado com a igualdade de bem-estar, de modo a que esta distinção fique mais clara. 27“distribution should attempt to leave people as equal as possible in some aspect or quality of their conscious life” (tradução do autor). DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 18.

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25

seria desejável, em nome da igualdade, que isso realmente seja feito?28”.

Visando responder a essa pergunta, DWORKIN faz uma análise das teorias do

sucesso da igualdade de bem-estar em suas mais diversas facetas,

nomeadamente, considerando as preferências políticas, impessoais e pessoais

dos indivíduos e relacionando-as com uma possível teoria geral da igualdade.

1.2.1.1.1. Igualdade de sucesso e as preferências humanas (políticas,

impessoais e pessoais)

Uma das formas que DWORKIN considera relevante para ser tratada

como igualdade de sucesso diz respeito às preferências políticas dos cidadãos.

A pergunta que se faz é se o ideal da igualdade, em seu grau mais abstrato, exige

que as pessoas sejam niveladas com relação ao sucesso obtido em suas

preferências políticas. Mas o que DWORKIN quer dizer por “preferência

política”? Para o filósofo norte-americano, o termo preferência política (political

preference) pode ser utilizado com um sentido mais amplo e um mais restrito,

mas sempre estará relacionada com preferências a respeito de “como, na

comunidade, os bens, recursos e oportunidades devem ser distribuídos para os

outros29” , ou seja, diz respeito às diversas formas de distribuição dos bens

sociais e oportunidades no seio social, em decorrência das decisões políticas

tomadas na comunidade.

Não se pode ignorar, todavia, que toda decisão política é contestável e

desagradará, via de regra, algum grupo social. Assim, caso o ideal da igualdade

abranja uma cláusula de igual sucesso em preferências políticas, cada grupo que

se sentir afetado negativamente por uma decisão política teria o direito a uma

compensação recursal por isto. Todavia, para DWORKIN, a igualdade não

28 “If (…) we could achieve equality of welfare in some of these conceptions, would it be desirable, in the name of equality, to do so?”. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 21. 29“how the goods, resources, and opportunities of the community should be distributed to others.”. Idem. Ibidem. p. 17.

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26

acarreta o direito a uma compensação àqueles prejudicados por uma decisão

tomada coletivamente, pois considera que a questão da distribuição dos bens

sociais não pode ser vinculada ao existo em uma decisão política, por tratar-se

de uma questão de justiça. Com efeito, DWORKIN reconhece que existem

divergências políticas em uma sociedade e que sempre alguém será prejudicado

pela escolha de uma política pública em detrimento de outra, mas conclui que a

igualdade, abstratamente, não exigem uma compensação para tanto, posto que a

distribuição dos recursos sociais deve ser feita de acordo com parâmetros de

justiça distributiva. Nesse sentido, pode-se concluir que DWORKIN não trata a

igualdade como uma questão preferência política, mas como uma questão de

justiça:

(...) uma boa sociedade é aquela que trata a concepção de igualdade que a sociedade endossa não apenas como preferências que algumas pessoas possam ter, e, assim, como uma fonte de realização que possa ser negada a alguns e que deva ser, posteriormente, compensada de outras formas, mas como uma questão de justiça que deve ser aceita por todos porque está certa. Uma sociedade desse tipo não compensará pessoas por terem preferências que suas instituições políticas fundamentais declararem que é errado que elas as tenham30.

O sucesso ou insucesso em uma preferência política, nesse contexto,

relaciona-se com o bem-estar individual, e não com a igualdade propriamente

dita. A igualdade não determina, por conseguinte, que as pessoas sejam

igualadas em sucesso em preferência política.

Mas o bem-estar de uma pessoa na sociedade não diz respeito apenas às

suas preferências políticas, já que existem outras duas espécies de preferências

que podem ser levadas em conta para quantificar o mesmo. A primeira delas são

as preferências impessoais, quer dizer, aquelas relacionadas com fatos

30 “(...) a good society is one that treats the conception of equality that society endorses, not simply as a preference some people might have, and therefore as a source of fulfillment others might be denied who should then be compensated in other ways, but as a matter of justice that should be accepted by everyone because it is right. Such a society will not compensate people for having preferences that its fundamental political institutions declare it is wrong for them to have.” DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 23.

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27

exteriores ao indivíduo e ao seu meio relacional31, como por exemplo, o apreço

pelo avanço científico, ou pelo desenvolvimento do esporte, etc. São todas

preferências que não estão diretamente relacionadas com a vida de quem as têm.

Seria compensável, assim, um eventual insucesso em uma preferência

impessoal?

No entendimento de DWORKIN, uma eventual compensação financeira

em virtude da frustração de uma preferência impessoal não só não se justifica à

luz da igualdade como, também, a frustra32. Sem embargo, as o insucesso em

uma preferência impessoal, embora seja um fato externo ao indivíduo, apenas

gera uma perda de bem-estar, afetada pela subjetividade inerente à mesma, que

não pode ser quantificada objetivamente para uma compensação recursal.

Assim, a igualdade de sucesso, compreendida como sucesso nas

preferências políticas dos indivíduos, ou como sucesso em atingir as

preferências impessoais não constitui argumento suficiente para, invocando o

ideal da igualdade, se pleitear uma compensação por eventual frustração.

DWORKIN analisa, então, se a igualdade de bem-estar entendida como

obtenção de sucesso nas preferências pessoais dos indivíduos pode ser

considerado um ideal político forte, no sentido de fundamentar o dever do

Estado de tratar a todos como iguais em bem-estar e constituir uma circunstância

pessoal que possa, em nome da igualdade, justificar que uma reparação

(financeira ou de alguma outra ordem) por parte do Estado em caso de

desigualdade.

A igualdade de sucesso nas preferências pessoais significa que o Estado

tem o dever de promover uma política distributiva de modo que os indivíduos

obtenham igual êxito em suas circunstâncias pessoais, consideradas em seu

próprio ponto de vista, ou seja, de acordo com o seu próprio ponto de vista.

31 DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 17. 32 Idem. Ibidem.p. 27.

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28

Nesse diapasão, essa forma de igualdade exige que o indivíduo faça um juízo

valorativo sobre a sua própria vida sob dois enfoques diferentes: o êxito seu

relativo e êxito total33. Por êxito relativo de um indivíduo DWORKIN considera

o sucesso na realização das metas que ele fixou para a sua vida, de modo a fazê-

la uma vida que tenha valor aos seus próprios olhos. O importante, no êxito

relativo, é o sucesso em atingir os objetivos pessoais que uma pessoa escolheu

com a ambição de fazer algo relevante na sua existência enquanto ser humano34.

Ora, a igualdade de sucesso relativo em preferências pessoais está

claramente fundamentada no direito que cada um tem de escolher o melhor para

sua vida e no dever de fazê-lo da melhor maneira possível, utilizando os bens de

forma instrumental para atingir ao sucesso em suas preferências pessoais e,

conseqüentemente, produzir bem-estar. Mas, sob o prisma da igualdade, decorre

daí, novamente, uma dificuldade: o subjetivismo. De fato, as pessoas valoram o

seu sucesso (ou fracasso) pessoal de formas diferentes, utilizando critérios

diferentes. Por exemplo, imagine-se dois escritores que não se conhecem e que

têm como objetivo escrever uma obra de sucesso. Ocorre, então, que cada um

escreveu um romance, os quais venderam um milhão de cópias cada. É possível

afirmar positivamente que os escritores atingiram seus objetivos? Será que os

dois escritores imaginários considerarão que seus livros são um sucesso a ponto

de satisfazer uma preferência pessoal? Não necessariamente.

Pode ocorrer que um escritor fique extremamente feliz e satisfeito com

relação à vendagem de seu livro, mas que o outro escritor ache que sua obra foi

um fracasso, pois, exigente que é, acha merecia ter vendido mais cópias. Agora

a pergunta fundamental: será possível, invocando-se a igualdade, sustentar que o

33 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 28. 34 Idem. Ibidem. p. 30-31.

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29

escritor que considerou sua obra um fracasso mereça receber mais recursos do

que o escritor que se considerou bem sucedido? Evidente que não35.

Outra dificuldade concernente ao sucesso pessoal relativo (ou seja, aquele

relacionado com os objetivos que cada um traçou para si) é que esse critério de

igualdade determinaria uma distribuição de recursos de uma pessoa para outra

por razões que ambas valoram de forma diferente, ou melhor, nas palavras de

DWORKIN:

dinheiro é dado para uma pessoa e não para outra, ou tirado de uma e dado para outra, com o objetivo de se alcançar a igualdade em relação a algum valor que alguns valoram mais do que outros e que alguns valoram muito pouco, ao custo da desigualdade em algo que outros atribuem um maior valor36.

Dessa forma, DWORKIN considera injusta a distribuição de recurso sob

um critério que seja meramente subjetivo, ou seja, que considera apenas o que

cada pessoa escolhe para si, já que cada indivíduo pode valorar de forma diversa

o que é importante para sua vida. Assim, o sucesso relativo não pode ser

utilizado como critério para uma teoria geral da igualdade. Mas com relação às

preferências pessoais, deve ser considerado ainda o êxito absoluto, ou seja, o

êxito considerando não com relação às escolhas pessoais do indivíduo, mas a

sua vida como um todo.

Qual o critério para se avaliar o sucesso (ou insucesso) da vida de um

indivíduo? Da mesma forma como no sucesso relativo, o critério deverá ser o

próprio indivíduo, pois, conforme explica DWORKIN, é ele quem, avaliando a

sua vida como um todo, dirá se conseguiu fazer algo de valioso de sua

35 Em “Sovereign Virtue”, DWORKIN utiliza um exemplo parecido e expressa a mesma opinião. Cf. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 31 e ss. 36“money is given to one rather than another, or taken from one for another, in order to achieve equality in a respect some value more than others and some value very little indeed, at the cost of inequality in what some value more” Idem. Ibidem. p. 31.

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30

existência37. Assim, o indivíduo é o parâmetro se as suas preferências pessoais

foram atingidas ou não. Aqui ocorre o mesmo problema de subjetividade

observado com relação à igualdade de êxito relativo. DWORKIN demonstra,

através de exemplos utilizando pessoas fictícias, denominadas “Jack” e “Jill”,

que as concepções políticas, o humor, ou mesmo as convicções filosóficas

podem influenciar na avaliação que uma pessoa tem de sua própria vida38.

DWORKIN pressupõe uma situação hipotética em que “Jack” e “Jill”, embora

tenham vidas parecidas, avaliam de maneira oposta os valores que conseguiram

agregar na sua existência, não pelo fato objetivo de suas vidas serem diferentes,

mas porque possuem concepções de vida diversas39. Nesse contexto, conclui o

DWORKIN:

As diferenças nos julgamentos pessoais acerca do quão bem suas vidas vão, consideradas no geral, são antes diferenças em suas vidas, do que apenas diferenças em suas crenças, apenas quando constituem diferenças em realização, e não em fantasia ou convicção, o que é, acredito, uma questão de mensuração pessoal do sucesso ou fracasso em face de algum padrão que estabeleça o que deveria ter sido, e não apenas o que poderia ter sido. A comparação importante e pertinente aqui me parece que é essa. Quanto mais as pessoas possam razoavelmente se lamentar de não ter feito alguma coisa de suas vidas, menos sucesso terão tido em suas vidas consideradas no todo40.

DWORKIN, portanto, sustenta que a igualdade não comporta, para fins de

redistribuição de bens na sociedade, argumentos puramente subjetivos acerca do

sucesso/insucesso total do indivíduo. Portanto, a idéia que percorre a crítica de

DWORKIN para as teorias da igualdade de bem-estar é a de que “nós não

37 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 32. 38 DWORKIN coloca diversas hipóteses envolvendo esses personagens, e conclui que a subjetividade que envolve as diferentes avaliações do sucesso/insucesso da vida de pessoas com recursos semelhantes não pode servir de argumento para que a transferência de recursos de uma para outra. Cf. Idem. Ibidem. p. 36. 39 Idem. Ibidem. p. 38. 40 “Differences in people’s judgments about how well their lives are going overall are differences in their lives, rather than simply differences in their beliefs, only when they are differences not in fantasy or conviction but in fulfillment, which is, I take it, a matter of measuring personal success or failure against some standard of what should have been, not merely of what conceivably might have been. The important and presently pertinent, comparison seems to me this. The more people can reasonably regret not having done something with their lives, the less overall success their lives have had (grifei)”. Idem. Ibidem. p. 38.

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31

podemos igualar as pessoas apenas segundo os seus próprios critérios sobre o

que é o sucesso geral de uma vida41”. Mas como, então, se pode avaliar

objetivamente a vida de um indivíduo?

Com essa finalidade, DWORKIN introduz a noção de lamentação

razoável (reasonable regret), sustentando que uma pessoa somente pode

fundamentar o insucesso de sua vida como um todo se não possuir o que

razoavelmente ela teria direito a ter em uma sociedade comprometida com o

princípio igualitário. Com isso, DWORKIN afasta, por exemplo, a hipótese de

um indivíduo sustentar que sua vida é um insucesso (e que por isso merece uma

compensação de recursos) porque ele não conseguiu ser o melhor jogador de

futebol do mundo, porque ninguém pode, razoavelmente, pretender tanto. A

pessoa pode até ter a ambição de ser o melhor jogador, mas não pode dizer que é

um fracasso somente por não ter conseguido esse objetivo42. Portanto,

DWORKIN sustenta que, para que a igualdade de êxito absoluto tenha algum

atrativo enquanto ideal político, deve ser compreendida a partir do conceito de

lamentação razoável. Todavia, o que pode ser considerada uma lamentação

razoável?

O conceito de lamentação razoável tem a função de inserir um critério

objetivo para a avaliação da igualdade de êxito. No entanto, assevera

DWORKIN que dizer que uma pessoa somente pode se lamentar daquilo que ela

razoavelmente poderia ter durante sua vida não está vinculado com o seu bem-

estar, mas com a distribuição de recursos na sociedade. Nesse sentido, conclui

que “a métrica da lamentação razoável para determinar o sucesso geral faz

suposições acerca de qual distribuição é justa, sobre a distribuição que cada

41 “we cannot make people equal on the criterion of their own judgment of overall success alone”. GUEST, op. cit., p. 261. 42 DWORKIN desenvolve esse mesmo raciocínio, mas com exemplos diferentes, em Sovereign..., op. cit, p. 39 e ss.

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pessoa tem direito43”. Nesse diapasão, a inserção da idéia de lamentação

razoável é vista por DWORKIN como possível somente “com o uso de algum

esquema de distribuição justa dos recursos, no qual o julgamento acerca do

sucesso geral não está incluído44”.

Seguindo essa linha de raciocínio, a lamentação razoável conexiona-se

com a justiça distributiva entendida enquanto igualdade nos recursos, e não com

a igualdade de bem-estar, de modo que a igualdade de êxito não pode ser visto

como um ideal atrativo de forma independente, já que, para que ganhe contornos

objetivos, depende de um conceito que está relacionado com a igualdade de

recursos. Portanto, DWORKIN deriva a igualdade de recursos exatamente da

impossibilidade de se construir uma concepção da igualdade de bem-estar

independente, o que leva à conclusão de que a essência da igualdade não está no

bem-estar, mas em uma teoria da distribuição de igualitária de recursos.

1.2.1.1.2. A igualdade de satisfação (equality of enjoyment) e as teorias

objetivas da igualdade de bem-estar

Existem, no entanto, duas tentativas de vincular a igualdade ao bem-estar

sem utilizar a idéia de igualdade de êxito. A primeira delas diz que a produção

de bem-estar na sociedade não está relacionada com o êxito, mas com a

quantidade de prazer e desprazer que o indivíduo sente no decorrer de sua vida.

Assim, retira-se o êxito do centro da teoria da igualdade e coloca-se a satisfação,

que é um estado de consciência e, assim, relaciona-se com as preferências

humanas (assim como a igualdade de êxito). Da mesma forma que na igualdade

de êxito, a igualdade de satisfação também depende das preferências (políticas,

impessoais, pessoais relativas e pessoais absolutas). DWORKIN atenta, todavia,

43 “ the reasonable-regret metric for determining overall success makes assumptions about what distribution is fair, about the distribution to which people are entitled” (grifei). DWORKIN. Sovereign, op. cit., p. 41. 44 GUEST, op. cit., p. 262.

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que com relação às preferências políticas, às preferências impessoais, e às

preferências pessoais relativas, as objeções são as mesmas que foram feitas à

igualdade de êxito45. No entanto, o argumento muda de figura quanto às

preferências pessoais absolutas, ou seja, quanto à avaliação que o indivíduo faz

do prazer que sentiu na sua vida como um todo. A argumentação dworkiniana

contra a igualdade de satisfação proveniente das preferências pessoais absolutas

dos indivíduos leva em conta a própria essência desse ideal: DWORKIN

considera que a satisfação não pode servir de critério para a distribuição de

recursos, e nem a vincula, para tanto, à idéia de lamentação razoável, ou seja, o

próprio binômio prazer/desprazer, que é algo inerentemente subjetivo

(sentimental, portanto) não pode ser inserido no conteúdo abstrato do princípio

igualitário46.

Por fim, DWORKIN desconstrói as teorias “objetivas” da igualdade de

bem-estar, que pretendem vincular a análise do que as pessoas podem

razoavelmente lamentar em suas vidas a fatores objetivos, ou seja, externos ao

indivíduo, sustentando que o Estado deve atuar de modo a igualar a quantidade

de lamentação que as pessoas têm durante a vida. Há, com relação a essa teoria,

a mesma dificuldade enfrentada pelas teorias “subjetivas” anteriormente

analisadas, vez que uma pessoa somente pode se lamentar do que ela teria

direito a ter recebido e, logo, se o Estado deve atuar de modo a igualar os

indivíduos nesse sentido, ele deverá basear-se em uma teoria independente de

distribuição de recursos, pois somente dessa forma pode ser feita uma avaliação

do que cada um tem direito a receber47.

Cumpre, derradeiramente, salientar que DWORKIN pretende afastar

qualquer possibilidade de a igualdade de bem-estar seja considerada em uma

teoria geral da igualdade, e, para tanto, rejeita até a possibilidade de uma

45 Vide, acima, os argumentos utilizados por DWORKIN para objetar as preferências políticas e impessoais. 46 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 44-45. 47 Idem. Ibidem. p. 46.

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eventual junção das teorias anteriormente analisadas no que elas têm de melhor.

Para o filósofo igualitário, a sua crítica às teorias da igualdade de bem-estar tem

um caráter mais amplo, de modo a rejeitar qualquer possibilidade de utilização

do bem-estar para fins de distribuição. Nesse sentido DWORKIN conclui:

Nós não achamos qualquer razão para sustentar a idéia de que a comunidade deva aceitar o objetivo de fazer as pessoas mais iguais em qualquer dessas diferentes formas, mesmo quando isso poderia ser feito sem prejudicar nenhuma outra pessoa. Se isto é assim, então é implausível que ela deva aceitar o objetivo de fazer as pessoas mais iguais de alguma forma composta ou compromissada entre essas diferentes formas. Combinações e permutas são apropriadas quando um conjunto de objetivos ou princípios concorrentes, cada um dos quais com uma atração independente, não podem ser satisfeitos de uma vez só. Elas não são apropriadas quando nenhum objetivo ou princípio demonstrou que tenha um atrativo independente, nem como uma teoria da igualdade48.

DWORKIN não identifica, portanto, o ideal da igualdade com a

quantidade de bem-estar que o indivíduo sente no decorrer de sua vida,

rejeitando qualquer possibilidade de fundamentação desse princípio em

qualquer das teorias da igualdade de bem-estar, ou mesmo de algum teoria que

resulte da fusão de todas as teorias citadas.

1.3. O EQUALISANDUM DWORKINIANO: A IGUALDADE DE

RECURSOS

DWORKIN, consoante o exposto, nega peremptoriamente as teorias da

igualdade de bem-estar, sustentando que elas não oferecem um argumento

normativo robusto para o ideal igualitário. Mas qual seria a alternativa teórica

48 “We found no reason to support the idea that a community should accept the goal of making people more equal in any of these different ways even when it could do so without damage to any of the others. If that is so then it is unlikely that it should accept the goal of making people more equal in some way that is composite or compromise among these different ways. Combinations and trade-offs are appropriate when a set of competing goals or principles, each of which has independent appeal, cannot all be satisfied at once. They are not appropriate when no goal or principle has been shown to have independent appeal, at least as a theory of equality, at all”. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 48.

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para as concepções igualitária do bem-estar? A concepção política rival da

igualdade de bem-estar, e que DWORKIN pretende defender, é a igualdade de

recursos (equality of resources), que, segundo o autor norte-americano, é a

teoria da igualdade que está na base do liberalismo norte-americano49.

Para fins introdutórios, cumpre observar o liberalismo dworkiniano é, por

excelência, uma teoria que preza pela tolerância liberal e, portanto, defende que

“o Estado deve ser neutro perante as diferentes concepções de boa vida esposada

pelos indivíduos50”. A análise da filosofia política de DWORKIN exige que

tenhamos em mente que ele possui a mesma preocupação normativa que JOHN

RAWLS: construir uma teoria normativa que apresente uma justificativa para a

ação individual, mas que preserve o pluralismo moral na sociedade liberal. Com

efeito, ao afirmar que “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais51”,

RAWLS direciona a virtude da justiça que, para os antigos era uma disposição

de caráter, para as instituições sociais, ou melhor, para a estrutura básica da

sociedade. Nesse sentido, a teoria política passa a ter a função de construir

valores políticos que servirão de base para a disposição da estrutura básica da

sociedade, com a finalidade de fazer com que o Estado concretize o ideal

abstrato da igualdade, que para DWORKIN é a virtude do soberano: tratar os

membros da comunidade com igual respeito e consideração (equal concern and

respect).

Nesse contexto, em sua artigo “Liberalism” , atualmente publicado em “A

Matter of Principle”, DWORKIN identifica a existência de duas espécies de

liberalismo: uma delas baseada no ceticismo moral e que não tem um

compromisso igualitário, visto que não oferece qualquer argumento contra o

49 DWORKIN é, essencialmente, um autor polêmico e é, por isso, muito criticado. Uma das principais características de seu pensamento é, exatamente, a pretensão de identificá-lo com a prática norte-americana. Dada a inexistência de um consenso na sociedade estadunidense sobre a igualdade, não há como se identificar a igualdade de recursos como amplamente aceita nos Estados Unidos. 50 TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Tradução: Adail Ubirajara Sobral. 1.ª ed. São Paulo: Loyola, 2000, p. 198. 51 “Justice is the first virtue of social institutions (…)” .RAWLS. Theory…, op. cit., p. 03.

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utilitarismo ou contra as desigualdades econômicas, e outra comprometida com

uma moralidade igualitária, no sentido de que o governo tem o dever de tratar as

pessoas com igual respeito e consideração52. Há, de fato, um traço comum entre

as duas formas de liberalismo citadas, que é a rejeição da imposição de uma

moralidade privada por parte do governo, princípio esse que é a base para

qualquer teoria liberal. Todavia, o liberalismo baseado na igualdade tem uma

dimensão econômica que confere ao mercado a função de fazer com que cada

indivíduo, no decorrer de sua vida, utilize uma parcela igualitária dos recursos

sociais53.

Isso não significa, no entanto, que o governo deva perquirir uma

igualdade indiscriminada entre os cidadãos, ou seja, um governo comprometido

com a igualdade não deve fazer com que os indivíduos tenham, em cada

momento de sua vida, parcelas idênticas dos recursos sociais. Pelo contrário, o

fato de pessoas com vidas (e ambições) diferentes ter recursos desiguais é

inerente à igualdade de recursos. Todavia, e aqui já dá para ter uma noção da

essência da teoria igualitária de DWORKIN, as desigualdades toleráveis por

uma sociedade liberal que adota a igualdade de recursos como princípio

fundamental devem ser aquelas resultantes as escolhas individuais, e não das

diferenças circunstanciais naturais (talentos, deficiências, classe social, raça,

etc). Nesse contexto, DWORKIN sustenta que o montante de recursos de cada

pessoa na sociedade deve refletir o custo da vida que o indivíduo escolheu levar

para a sociedade, e esse cálculo deve ser feito por intermédio do mercado54.

DWORKIN reconhece que sua teoria igualitária é extremamente abstrata

e que a identificação prática das desigualdades provenientes das escolhas

individuais e daquelas resultantes das circunstancias é difícil55. Todavia, a

52 DWORKIN. A Matter..., op. cit., p. 205. 53 Idem. Ibidem. p. 206. 54 Idem. Ibidem. p. 207. 55 Idem. Ibidem. p. 208.

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elaboração de uma teoria normativa da igualdade de recursos, bem como a

construção de um mercado igualitário hipotético pode servir de guia

contrafactual para a conformação das instituições reais. É nesse contexto que o

filósofo norte-americano desenvolve a sua teoria igualitária.

1.3.1. IGUALDADE NA PROPRIEDADE PRIVADA DE RECURSOS

O primeiro marco teórico que DWORKIN traça para desenvolver o seu

conceito de igualdade de recursos é limitá-la, inicialmente, à propriedade

privada de recursos, ignorando, por ora, a igualdade de poder político ou a

igualdade de propriedade de recursos públicos56. A idéia central da qual

DWORKIN parte para elaborar o conteúdo substantivo da igualdade de recursos

é do conceito de mercado.

O mercado econômico, sem dúvida, é um conceito que exerce um papel

de destaque na teoria dworkiniana. Aliás, as instituições de mercado guardam

uma relação de estreita afinidade com o “liberalismo de princípios”, em especial

nas teorias de JOHN RAWLS e DWORKIN, muito embora estes autores não

tenham definido expressamente um arranjo institucional econômico da

sociedade democrática57. No entanto, tais instituições não são valoradas pelos

filósofos igualitários em virtude de sua eficiência econômica, mas “por razões

de justiça”, ou seja, por serem “mais consistentes com as liberdades iguais e

com a igualdade eqüitativa de oportunidades58”. Nesse sentido, pode-se

observar que, na teoria de RAWLS, os dois princípios de justiça possuem

prioridade léxica sobre o princípio da eficiência, bem como que o igualitarismo

56DWORKIN entende que a análise do conteúdo do ideal igualitário a partir da propriedade privada de recursos não compromete a compreensão do mesmo, de modo que essa “simplificação” ajuda no estudo da igualdade de recursos. 57 VITA, Álvaro de. Justiça Liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 75. 58 Idem. Ibidem. p.77. Na realidade, a idéia em destaque não é necessariamente o fato de o mercado ser compatível com as liberdades iguais ou com a igualdade eqüitativa de oportunidades, mas a compatibilidade e a importância do mercado para a construção de uma teoria da igualdade, seja ela qual for.

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dworkiniano valoriza, antes da eficiência distributiva, o fato de o mercado ser

um mecanismo de distribuição eqüitativa dos recursos na sociedade59. Dessa

forma:

Tanto para a teoria de Rawls como para a de Dworkin, portanto, o mercado é primariamente valorizado como uma condição necessária (...) à liberdade individual e à igualdade e somente secundariamente como meio para promover a prosperidade, a utilidade e a eficiência. A prosperidade é colocada em seu devido lugar, isto é, no de um objetivo instrumental àquele que o liberalismo vê como o valor humano fundamental, a autonomia individual: a capacidade de os indivíduos escolherem e realizarem em suas vidas os objetivos e fins que julguem valiosos60.

DWORKIN demonstra que o papel do mercado, na teoria política do

século XVIII, que atualmente é denominada de liberalismo clássico, era visto

como um mecanismo a ser utilizado pela sociedade para atingir finalidades

sociais, estando sempre relacionado com as idéias de prosperidade, eficiência e

utilidade. Nesse contexto político, a defesa do mercado se baseava em

argumentos de política (arguments of policy), exatamente por pelos ganhos que

proporciona para a sociedade. No entanto, ao mesmo tempo, o mercado era

visto, sob o ponto de vista valorativo, como um mecanismo de defesa da

liberdade individual, ou seja, como uma garantia ou instrumento de

desenvolvimento do direito de liberdade do indivíduo na sociedade61. Assim,

enquanto que do ponto de vista político o mercado estava relacionado com a

eficiência econômica, sob o prisma princípiológico (ou seja, que diz respeito aos

direitos individuais), o mercado era tido como um protetor da liberdade

individual.

É exatamente pelo modo como DWORKIN desenvolve a idéia de

mercado que a sua doutrina política começa a se desenvolver como liberalismo

59 VITA. Justiça..., op. cit., p. 77 e p. 79. 60 Idem. Ibidem. p. 80. 61 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 66.

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igualitário. Com efeito, ele atenta para o fato de os filósofos liberais clássicos

defendem uma suposta oposição entre a igualdade, e um lado, e a liberdade e

eficiência, de outro, propondo sempre mecanismos de sopesamentos e

concessões entre esses valores62. Trata-se, portanto, de uma visão que opõe a

liberdade e a igualdade, compreendendo esta como um valor antagônico àquela.

DWORKIN faz uma interpretação diferente da relação entre o mercado e os

valores expressos pela igualdade e a liberdade, propondo que a teoria geral da

igualdade de recursos seja construída a partir do mercado econômico, que

passaria a figurar como figura central na igualdade de recursos. Assim as

instituições de mercado , enquanto instrumentos reguladores de preços dos bens

e serviços que serão comercializados na sociedade, são de fundamental

importância para o desenvolvimento da teoria da igualdade63.

Evidentemente, DWORKIN não pretende defender que o mercado exerce,

na realidade fática, um papel igualitário. Pelo contrário, o filósofo norte-

americano reconhece que o mercado, na forma como se desenvolveu

historicamente nas sociedades capitalistas, em especial nos Estados Unidos,

gerou enormes desigualdades. Aliás, DWORKIN afirma diversas vezes que a

sociedade norte-americana é extremamente desigual64. No entanto, o filósofo

igualitário pretende sustentar que, normativamente, o mercado é extremamente

importante, uma vez que “somente o mercado pode medir o que uma pessoa

adquiriu para si mediante a identificação do custo de oportunidade que isso

causa aos demais65”. O grande entrave para que o mercado atue de forma a

produzir justiça, para DWORKIN, diz respeito à distribuição inicial de recursos:

somente com a justeza na distribuição recursal será possível que o mercado,

62 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 66. 63 Idem. Ibidem. p. 66. 64 Vide, por exemplo o Capítulo 08 de Sovereign Virtue, op. cit., pp. 307-319. 65“On my view a market in goods and service is indispensable to justice because only a market can measure what one person has taken for himself by identifying the opportunity cost to others of his having it(…)” BURLEY, Justine [ed]. Dworkin and his critics: with replies by Dworkin. Malden: Blackwell Publishing, 2004, p. 342. O trecho citado refere-se a uma resposta de Dworkin a uma crítica feita por Cohen.

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atuando de forma livre, produza resultados justos. Certamente, na prática, nunca

será possível uma sociedade atingir essa situação ótima, na qual há uma

distribuição igualitária de recursos, mas a construção normativa de tal situação é

extremamente relevante, para que possamos avaliar a instituições reais e

modificá-las para a aproximação de uma situação justa.

Nesse contexto, cumpre salientar que DWORKIN não possui uma visão

idealizada do mercado, mas sim pretende construir uma teoria igualitária

abstrata e complexa, a partir de um mecanismo hipotético de mercado

igualitário, visando à reforma das instituições reais. O enfoque de DWORKIN,

assim, embora normativo, tem uma finalidade prática, característica que permeia

todo o pensamento dworkiniano.

1.3.2. A CONSTRUÇÃO DO MERCADO IGUALITÁRIO A PARTIR DO EXEM PLO

CONTRACTUAL

A idéia de um mercado igualitário, que exerce um papel central na

igualdade de recursos, é desenvolvida por DWORKIN a partir de uma situação

fictícia, contrafactual, na qual náufragos (imigrantes) se encontram em uma ilha

deserta abundante em recursos. A convivência dos indivíduos (imigrantes) nessa

primitiva sociedade que eles agora formam obedece a duas condições essenciais:

i) eles reconhecem que ninguém tem, a priori, direito a qualquer dos recursos

encontrados na ilha deserta; e ii) há ampla aceitação do princípio segundo ao

qual esses recursos deverão ser distribuídos igualitariamente entre eles. Há,

portanto, uma situação em que uma nova sociedade irá começar a partir dessa

distribuição de recursos, na qual todos os indivíduos concorrerão e influenciarão

de forma igualitária66. O problema, agora, é o seguinte: como realizar uma

66 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., pp. 66-67.

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distribuição que não seja feita de forma arbitrária e na qual todos os indivíduos

fiquem satisfeitos com o montante de recursos que receber?

DWORKIN propõe que a satisfação dos imigrantes com o montante de

recursos recebidos seja mensurada pelo teste da inveja (envy test), que determina

que “nenhuma divisão de recursos é uma divisão igualitária se, uma vez

completa, qualquer imigrante preferir o montante de recursos de outro ao seu

próprio montante67”. Assim, tal divisão deve ser feita até que, ao final, cada

imigrante esteja satisfeito com a quantidade e qualidade dos recursos que

recebeu, de tal sorte que, se for proposta uma troca entre os montantes por eles

recebidos, nenhum dos imigrantes aceite. Existem, no entanto, diversas formas

de se alcançar essa distribuição igualitária (como por exemplo o sorteio, ou a

tentativa), mas a maioria desses mecanismos, embora possam resultar em

montantes igualitários de recursos, podem ser manipulados de modo a gerar

injustiças. Imagine, por exemplo, se os imigrantes chegassem a um acordo no

sentido de a distribuição dos recursos deverá ser feita por sorteios, até que se

alcance distribuição igualitária dos mesmos. Todavia, antes de se realizar o

sorteio, os imigrantes descobrem uma ilha vizinha, abundante em um

determinado recurso (e.g., melancia), e lhes propõe a troca de todos os bens da

ilha por melancias, o que é aceito pela maioria. Imagine, agora, que um dos

imigrantes odeie melancia. Chegaremos, com isso, na situação em que o sorteio

resultará em uma distribuição igualitária, mas não justa, vez que o indivíduo que

odeia melancias nunca ficará satisfeito68. E qual poderá ser o seu argumento para

se opor à distribuição feita na ilha? Um argumento consistente poderia ser no

sentido de que os recursos inicialmente encontrados na ilha não fossem trocados

com a outra ilha com a utilização de critérios arbitrários. Com isso, DWORKIN

pretende demonstrar a necessidade de se formular um mecanismo distributivo

67“no division of resources is an equal division if, once the division is complete, any immigrant would prefer someone else’s bundle of resources to his own bundle” Idem. Ibidem. p. 67. 68 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 67-68. DWORKIN utiliza um exemplo muito semelhante.

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que permitisse a partilha dos recursos de forma igualitária e não-arbitrária,

reconhecendo, assim, que o teste da inveja não é satisfeito com qualquer espécie

de distribuição, exigindo algum mecanismo mais complexo para a partilha dos

recursos sociais.

Visando, portanto, encontrar um critério não-arbitrário para a divisão

equitativa dos recursos na sociedade primitiva estabelecida na ilha, DWORKIN

propõe que a mesma seja feita através de um leilão, no qual os habitantes teriam

conchas que serviriam como moeda de troca pelos bens a serem leiloados.

Segundo a descrição feita por DWORKIN, o leilão deveria ser presidido por um

leiloeiro (escolhido entre os habitantes da ilha) e os bens da ilha formariam lotes

com preços fixos. A idéia é que os participantes do leilão façam propostas pelos

lotes de recursos, até que haja apenas um comprador para cada lote, de modo a

satisfazer o teste da inveja. Observa-se, na proposta dworkiniana, que os

participantes do leilão exercem uma influência equitativa sobre os destinos dos

bens a serem leiloados, já que possuem o mesmo poder econômico (ou seja,

número de conchas), e, ainda, podem se opor a qualquer distribuição que

eventualmente os desagrade, visto que o leilão somente se encerra quando

houver um comprador para cada lote de bens69. Há, assim, um mercado

igualitário, no qual os indivíduos exercem influência na forma como os recursos

serão distribuídos de forma equânime e, ademais, não desejam os bens

distribuídos aos outros indivíduos, já que aceitaram a forma como a distribuição

foi feita.

Cumpre salientar que, ao contrário do que ocorre com a igualdade de

bem-estar, na qual a métrica da igualdade baseia-se na quantidade de bem-estar

que cada indivíduo teve no decorrer de sua vida, na igualdade de recursos, a

informação relativa à quantidade de recursos existente na sociedade é

fundamental, visto tratar-se de um ideal relacionado com a justiça distributiva.

69 DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 68.

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Pode-se perceber, portanto, uma nítida diferença entre o ideal igualitário

preconizado por DWORKIN e a igualdade de bem-estar. Com efeito, nesta, o

indivíduo estipula a vida que quer ter independentemente de saber o custo que o

seu estilo de vida acarretará para a sociedade, sendo essa avaliação feita apenas

no campo político, e não da escolha individual. Ao contrário, na igualdade de

recursos, o indivíduo escolhe o seu estilo de vida à luz dos recursos sociais

existentes, conforme explica DWORKIN:

Sob a igualdade de recursos, todavia, as pessoas decidem os tipos de vidas que querem seguir com base em um conjunto de informações acerca do real custo que suas escolhas impõem aos demais e, portanto, no montante total de recursos que lhas é justo utilizar. A informação deixada a um nível político independente sob a igualdade de bem-estar é, ademais, trazida para o nível inicial da escolha individual sob a igualdade de recursos70.

É, portanto, no plano da escolha individual que todo e qualquer tipo de

informação acerca dos recursos existentes na sociedade exerce influência, e é

com base nessa informação que o ideal da igualdade de recursos se concretizará,

mediante o leilão igualitário. Observa-se, assim, a conexão existente entre a

igualdade de recursos, que determina que todos os indivíduos devem ter os

mesmos recursos no decorrer de sua vida, e o mercado, que é um mecanismo

institucional de avaliação e distribuição dos recursos na sociedade71.

1.3.2.1. O leilão igualitário fictício como modelo avaliativo das instituições

reais

O exemplo do leilão igualitário realizado entre os imigrantes é uma

situação fictícia, construída por DWORKIN como modelo de sociedade no qual 70“Under equality of resources, however, people decide what sorts of lives to pursue against a background of information about the actual cost their choices impose on other people and hence on the total stock of resources that may fairly be used by them. The information left to an independent political level under equality of welfare is therefore brought to the initial level of individual choice under equality of resources.” DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 69. 71 Idem. Ibidem. p. 70.

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44

a igualdade de recursos é atingida de forma plena. Todavia, ao realizar essa

ficção, DWORKIN tem em mente as instituições reais, atentando para o fato de

que a igualdade de recursos não deve ser apenas um ideal, ou uma utopia, mas

um modelo de avaliação da sociedade existente72.

Sem dúvida, a ficção do leilão igualitário exerce um importante papel

teórico na teoria dworkiniana, vez que fornece um elemento para a mensuração

da coerência e da completude do princípio da igualdade de recursos73, bem como

da forma pela qual a distribuição dos recursos sociais é determinada por esse

ideal, atentando sempre para o fato de não se tratar de um ideal estanque, que

comportaria apenas um modelo de distribuição, mas antes de um ideal flexível,

que abarca uma variedade de modelos distributivos, que também se coadunam

com a igualdade nos moldes propostos por DWORKIN. No entanto, há uma

preocupação prática na construção desse exemplo fictício por DWORKIN, a

saber, fornecer um padrão par a avaliação das instituições e distribuições que

ocorrem no mundo real (real world)74.

Assim, em todo aspecto de sua filosofia, seja política ou jurídica,

DWORKIN demonstra uma preocupação com o aspecto prático, ou seja, com a

aplicabilidade de sua teoria no mundo concreto, destacando que o conteúdo

material do princípio da igualdade pode servir como padrão de julgamento das

instituições, e, ademais, como critério de funcionamento ou mesmo de reforma

das instituições, de modo a aproximá-las ao modelo do leilão igualitário75.

72 Nesse sentido, ÄLVARO DE VITA, ao comentar a teoria rawlsiana, observa que a preocupação liberal-igualitária não deve ser com a efetiva concretização de seus ideais, mas sim “em saber se é possível conceber instituições substancialmente mais igualitárias do que as que conhecemos hoje e que, ainda assim, não façam exigências motivacionais que não é razoável esperar que os indivíduos possam honrar”. VITA, Álvaro. A justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 24. 73 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 71. 74 Idem. Ibidem. p. 72. 75 Idem. Ibidem. p. 72-73.

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1.3.2.2. O leilão sensível à ambição e insensível às circunstâncias: sorte,

deficiências e seguro hipotético

Os princípios básicos que fundamentam a construção da teoria da

igualdade de recursos dworkiniana, consoante DWORKIN expoe na introdução

de “Sovereign Virtue”, são os princípios do valor intrínseco da pessoa humana e

da responsabilidade individual76, que, sinteticamente, determinam que o sucesso

de cada vida humana é de igual importância para o desenvolvimento da

sociedade e, ainda, que cada indivíduo “tem uma decisiva e especial

responsabilidade por esse sucesso77.” A doutrina igualitária dworkiniana é

construída em torno da idéia de responsabilidade, no sentido de que os

indivíduos devem realizar as escolhas a respeito de como deve ser as suas vidas

e, assim, arcar com as conseqüências dessas escolhas, ou seja, para usar as

palavras de DWORKIN, “pagar o real preço pela vida que eles levam”78. Ora,

isso significa que, uma vez distribuídos os recursos no leilão hipotético

igualitário, e satisfeito o teste da inveja, a posterior manutenção da situação

igualitária na sociedade dependerá da ambição de cada indivíduo, ou seja, do

custo da vida que cada um optou por levar.

O leilão hipotético criado por DWORKIN faz com que cada indivíduo

seja tratado com igual respeito e consideração na sociedade, visto que tiveram o

mesmo poder de influência econômica nos lances e, ainda, não desejam o

montante de recursos dos demais, eis que o resultado satisfaz o teste da inveja.

Todavia, esse leilão deve ser “sensível à ambição”, o que significa “sensível às

escolha individuais”, de modo que as posteriores diferenças entre os indivíduos

76 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 05. 77 “has a special and final responsability for that success”. Idem. Ibidem. p. 05. 78 Idem. Ibidem. p. 76.

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“simplesmente refletirão suas diferentes ambições, suas diferentes crenças a

respeito do que da valor à vida”79.

No entanto, embora seja da essência da teoria dworkiniana a sensibilidade

à ambição individual, há a necessidade que a igualdade de recursos independa

das circunstâncias pessoais, ou seja, “parte-se da posição fundamental de que,

ausentes as diferenças imputáveis às escolhas das pessoas, a distribuição de

recursos em uma sociedade deve em princípio ser igual”80, e, em conseqüência

disto, qualquer desigualdade proveniente das circunstâncias individuais deve ser

compensada. Nesse contexto, a teoria da igualdade de recursos dworkiniana é

permeada pelo fator sorte, no sentido de que muitas das escolhas individuais

feitas no decorrer de uma vida são bem (ou mal) sucedidas em virtude de

eventos que ocorrem aleatoriamente, e.g., catástrofes, doenças, deficiência, etc.

Assim, DWORKIN utiliza do termo gamble (aposta) para se referir às escolhas

individuais, justamente para destacar a imprevisibilidade contida nas mesmas.

Há de se diferenciar, todavia, duas espécies de sorte. Com efeito, existem

eventos ou fatos naturais que independem da vontade individual, sendo, assim,

não-deliberados, o que os dota de total imprevisão. Fatos há, no entanto, que são

deliberados ou calculados, de modo que os riscos decorrentes dos mesmos são

calculados (ou ao menos calculáveis). DWORKIN faz, portanto, uma

diferenciação entre os eventos totalmente imprevisíveis (sorte bruta) e os fatos

deliberados e previsíveis (sorte opcional)81. Mas qual a razão de tal

diversificação? Certamente a sorte opcional, conforme o próprio nome sugere,

está relacionada com a ambição individual de uma forma mais íntima do que a

sorte bruta, que, por sua vez, liga-se ao fator circunstancial, e isso trará

conseqüências no que concerne à necessidade de compensação por eventos que

79 KIMLICKA, Will. Filosofia Política Contemporânea. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 99. 80 FERRAZ. Justiça distributiva..., op. cit., p. 248. 81 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 73.

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decorrem de uma, ou outra espécie de sorte. Quando um indivíduo opta por um

estilo de vida ele estará, conseqüentemente, sujeito aos riscos inerentes à escolha

feita, e.g, se duas pessoas tem montantes iguais de recursos, mas uma resolve

fazer um investimento de risco, e outra aplicar os seus recursos em algo mais

conservador, será tanto verdade que o primeiro indivíduo fará jus aos ganhos de

seu investimento quanto que, se perder tudo, deverá arcar com o prejuízo, visto

que tanto este evento (a perda), quanto aquele (o ganho), decorrem de sorte por

opção, ou seja, da ambição, da escolha individual.

Não há dúvida que, após a feitura do leilão igualitário, indivíduos que

optam por formas de vida diametralmente opostas acabarão com parcelas de

recursos diferentes, mas, conforme salienta DWORKIN, a igualdade de

recursos, informada pelo princípio básico de que as pessoas devem pagar o

preço justo pela vida que escolheram levar, “não condena, mas antes assegura

essas diferenças82”. Aliás, DWORKIN sustenta que não somente há fundamento

igualitário para as diferenças provenientes das escolhas individuais, mas também

que uma redistribuição de recursos, nesse caso, ofende a igualdade83.

A mesma conclusão não decorre, todavia, quando o risco ou a má-sorte

decorre de um fato circunstancial, ou seja, de um evento relacionado, antes, com

fatos da natureza do que com a escolha individual. Reside aqui o exemplo dos

indivíduos que possuem parcelas de recursos idênticas, mas um deles fica cego,

e, em virtude disso, possui menos recursos. Não há, certamente, fundamentos

igualitários para sustentar a desigualdade nessas circunstâncias.

Nesse diapasão, pode-se afirmar que a maior contribuição de DWORKIN

para a teoria da igualdade tenha sido colocar em relevo a necessidade de

compensação dos indivíduos que ficam com deficit recursal em virtude de um

82 “warrants rather than condemns these diferences.” DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 76. 83 Idem. Ibidem. p. 77-78.

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evento de sorte bruta, como por exemplo os deficientes físicos e os doentes,

consoante conclui VITA:

Dworkin argumentou que a forma de igualdade com a qual deveríamos nos preocupar em uma sociedade liberal justa deveria ser “sensível à dotação”, mas não “sensível à ambição”. Uma sociedade assim deveria ter por objetivo reduzir tanto quanto possível a desigualdade distributiva entre seus cidadãos que resulta de dotação de talentos naturais e recursos externos, mas aceitar como legítima a desigualdade que resulta de ambição e esforço individuais84.

Nesse contexto, o papel da responsabilidade individual é colocado em

destaque, uma vez que as circunstâncias moralmente arbitrárias (às quais o

indivíduo não tem qualquer controle) devem ser neutralizadas, e a liberdade para

o indivíduo decidir a vida que quer levar é colocada na essência do liberalismo

igualitário85.

1.3.2.3. O leilão insensível às circunstâncias: o problema das deficiências

As deficiências físicas, sob a ótica da igualdade de recursos, podem ser

consideradas como fatores circunstanciais que ensejam compensação. Consoante

observa COHEN, as deficiências, por acarretarem diminuição de recursos, são

valoradas pela igualdade de recurso independentemente de suas conseqüências

práticas, ou seja, não importa, para fins de compensação, se o indivíduo que

sofra de uma deficiência tem uma diminuição de seu bem-estar, mas apenas que

ele está em uma posição desprivilegiada em termos recursais86. Assim, cumpre

observar que as habilidades físicas e mentais (ou a falta delas) devem ser

levadas em consideração para fins de cálculo da quantidade de recursos que um

indivíduo possui. Com efeito, “uma concepção atraente de igualdade de recursos

84 VITA. O liberalismo..., op. cit., p. 43. 85 A relação entre liberdade e igualdade será discutida no Capítulo 02. 86 COHEN, G. A. On the Currency of Egalitarian Justice. Ethics, Vol. 99, n.º 4, 1989, pp. 906-944. Disponível em: http://www.mit.edu/~shaslang/mprg/GACohenCEJ.pdf. Acesso em 12 de maio de 2009, pp.917-918.

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deve ter por objetivo central igualar os complexos de recursos em seu conjunto –

o que abrange recursos externos e internos – entre as pessoas87”. Mas o que

seriam recursos internos e recursos externos? A idéia de recursos internos e

externos é intuitiva, podendo-se definir aqueles como recursos que dizem

respeitos à capacidade do indivíduo (física e/ou mental), e estes como bens

materiais. Mas essa definição intuitiva é ainda insuficiente, pois não abrange

uma diferenciação feita por DWORKIN que é de fundamental importância para

sua teoria.

De fato, a originalidade da igualdade de recursos consiste em combinar a

preocupação igualitária do socialismo, com a defesa do mercado feita pelos

liberais, uma vez que os recursos são uma importante fonte de liberdade. Nesse

diapasão, “a forte defesa da igualdade feita por Dworkin é, ao mesmo tempo,

uma forte defesa da liberdade88”. Sem embargo, a idéia central da igualdade de

recursos é a de que os indivíduos devem possuir, no decorrer de toda a sua vida,

uma parcela igualitária de recursos à sua disposição, de modo que, sendo os

recursos fonte de liberdade, a defesa da igualdade de recursos significa sustentar

que os indivíduos devem ter a mesma liberdade, considerada a sua vida como

um todo. Ser livre, nesse contexto, significa ter liberdade para desenvolver e

moldar a sua vida de acordo com as sua convicções e ambições, e os recursos

desempenham um papel fundamental para tanto.

Dessa maneira, uma vez entendidos os recursos como fonte de liberdade,

e esta como o desenvolvimento da vida de acordo com as escolhas individuais, é

possível diferenciar entre recursos que fazem parte da capacidade para a

formação das convicções que influenciarão na ambição e, conseqüentemente,

nas escolhas feitas pelos indivíduos, e os recursos que efetivamente

possibilitarão que o indivíduo, de fato, viva a vida da forma como ele a

87 VITA. O liberalismo..., op. cit., p. 49. 88 “Dworkin’s strong defence of equality (...) is at the same time a strong defence of liberty” GUEST, op. cit, p. 255.

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determinou89. No primeiro rol de recursos estão as capacidades física e mental,

que são considerados por DWORKIN como recursos de natureza especial, visto

que “não podem ser transferidos de uma pessoa pra outra90”, sendo que os

recursos materiais incluídos no segundo rol, já que tem por função permitir que

o indivíduo realize as escolhas feitas a partir do uso de suas convicções e

balizada pela sua potencialidade física .

Assim, a partir da constatação que as pessoas portadoras de deficiências

possuem um montante de recursos deficitário com relação às pessoas que não as

têm, seja porque não conseguem decidir com plena liberdade os rumos de sua

vida em virtude de uma deficiência mental, ou então por verem-se limitadas por

deficiências físicas, a solução que se impõe é a compensação dos portadores de

deficiência, por intermédio de bens materiais. Mas, considerando que as

deficiências e os recursos materiais são de espécies diferentes, qual deve ser o

critério para tal compensação? A solução está em um cálculo que leve em

consideração a forma como propriedade de bens materiais é afetada pela

existência de uma deficiência física ou mental91. Todavia, ante a dificuldade

desse cálculo, a solução de DWORKIN para a compensação dos recursos

internos é a elaboração de uma teoria baseada em seguros hipotéticos.

DWORKIN propõe, então, que antes da realização do leilão igualitário

hipotético, fosse oferecida a possibilidade de os indivíduos contratarem um

seguro hipotético contra a possibilidade de adquirir uma deficiência. Embora

reconheça que dificilmente uma compensação financeira possa eliminar

totalmente os deficits recursais gerados pelas deficiências, DWORKIN sugere

que o seguro contra as mesmas deveria ser compulsório e levar em consideração

89GUEST, op. cit.., p. 256. 90 Nesse sentido, Cf. VITA. O Liberalismo..., op. cit., p. 49. 91 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 80.

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o que um indivíduo médio contrataria se não soubesse a probabilidade de ter

uma deficiência, e se essas fossem distribuídas de forma aleatória92.

O esquema do seguro hipotético, segundo DWORKIN, mostra o ideal da

igualdade sob o seu melhor prisma, eis que permite uma solução teórica para o

problema das deficiências. Conforme foi exposto, a concepção a que

DWORKIN contrapõe a igualdade de recursos é a igualdade de bem-estar, que

falha, dentre outras coisas, em virtude da subjetividade inerente à definição de

bem-estar. Tal problema fica claro quando as doutrinas do bem-estar pretendem

solucionar a questão das deficiências físicas. Com efeito, embora a idéia de que

uma pessoa que sofre com uma deficiência possua um bem-estar inferior do que

as pessoas “normais” seja intuitiva e leve à conclusão (correta, diga-se) de que

as deficiências precisam ser compensadas, as doutrinas de bem-estar não

conseguem estabelecer um limite a essa compensação, o que pode gerar

anomalias, conforme DWORKIN observa no seguinte exemplo:

Suponha que o bem-estar (em qualquer interpretação) de uma pessoa inteiramente paralisada mas consciente é vastamente menor que o bem-estar de qualquer outra pessoa na comunidade, e que colocando mais e mais dinheiro à sua disposição constantemente aumente o seu bem-estar, mas não apenas por pequenas quantias, e que se ele tiver à sua disposição todos os recursos além daqueles necessários apenas para manter os demais vivos, ele ainda assim terá muito menos bem-estar que eles. A igualdade de bem-estar recomendaria essa transferência radical até que fosse alcança a última situação. Mas isto não está claro para mim (ou, eu acho, para os outros) que a igualdade, considerada isoladamente, e sem considerar os tipos de consideração que às vezes podem ser pensadas para prevalecer sobre ela, realmente requeira ou até recomende essa transferência radical sob essas circunstâncias93.

92 DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 80-81. 93“Suppose that the welfare (on any interpretation) of an entirely paralyzed but conscious person is vastly less than the welfare of anyone else in the community, that putting more and more money at his disposal steadily increase his welfare but not only by very small amounts, and that if he had at his disposal all the resources beyond those needed simply to keep the others alive he would still have vastly less welfare than they. Equality of welfare would recommend this radical transfer, that is, until the latter situation was reached. But it is not plain to me (or, I think, to others) that equality, considered just on its own, and without regard to the kinds of consideration that sometimes might be thought to override it, really does require or even recommend that radical transfer under these circumstances.”Idem. Ibidem. p. 61.

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Não há, portanto, nas doutrinas da igualdade de bem-estar, um limite para

compensação das deficiências, ou mesmo um parâmetro objetivo para tanto, o

que não se coaduna, segundo DWORKIN, com o ideal igualitário, já que o

raciocínio a partir das doutrinas adeptas da igualdade de bem-estar pode atribuir

uma parcela de recursos a um indivíduo que ultrapasse o que ele efetivamente

teria direito em uma situação distributiva justa94. A seu turno, a igualdade de

recursos oferece um fundamento mais sólido para a compensação das

deficiências, qual seja, a diminuição da liberdade de um indivíduo deficiente em

virtude do deficit recursal que ele sofre em razão de uma incapacidade, seja ela

mental ou física. Outrossim, por argumentar em termos econômicos, bem como

por colocar o mercado em uma posição central na teoria da igualdade, a teoria

dworkiniana permite um limite às transferências recursais para os deficientes,

limite este que deve refletir, conforme o dito, o quanto a deficiência de fato afeta

a posse de recursos materiais, o que deverá ser estipulado pelo próprio mercado

igualitário.

O argumento dworkiniano para a compensação das deficiências é, assim,

que o mercado, no caso o leilão, deve ser insensível às circunstância individuais,

ou seja, conforme explica ROBERTO GARGARELLA, “o liberalismo

igualitário deve distinguir entre a ‘personalidade’ e as ‘circunstâncias’ que

cercam cada um95”. Isso significa que os indivíduos devem ser responsáveis

pelos “resultados de seus gostos e ambições96”, e é com base nessa distinção que

DWORKIN sustenta a necessidade de compensação das deficiências (físicas ou

mental), mas, ao mesmo tempo, defende que uma pessoa com gostos

dispendiosos não devem receber uma parcela maior de recursos em virtude

94 Cf. FERRAZ, op. cit., p. 247. 95 “el liberalismo igualitario debe distinguir entre la ‘personalidad’ y las ‘circunstancias’ que rodean a cada uno.” GARGARELLA, op. cit., p. 70. 96 “resultados de sus gustos y ambiciones”. Idem. Ibidem. p. 71.

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disso, visto que estes relacionam-se com as preferências individuais, sendo um

aspecto da personalidade, ao passo que aquelas com as circunstâncias pessoais97.

1.3.2.4. O leilão insensível à dotação II: a questão da sorte genética

Seguindo a mesma linha de raciocínio acima, a doutrina dworkiniana, que

pretende ser sensível à ambição, mas não à dotação, trata a questão dos talentos

(sorte genética) da mesma forma como fez com as deficiências98. Assim, se um

indivíduo que possui talentos acima do normal tem uma circunstância a seu

favor e, portanto, está numa posição privilegiada com relação aos recursos, ou

seja, argumentando-se em termos de liberdade, uma pessoa que tem mais

talentos possui mais recursos e, assim, tem maior liberdade. Mas será justo que

um indivíduo goze de tal privilégio? As liberdades conseguidas com os recursos

provenientes exclusivamente dos talentos que uma pessoa possui (ou seja,

exclusivamente com a dotação, e não com a ambição) acarretam uma

distribuição não eqüitativa das liberdades e, portanto, ofende a igualdade de

recursos99.

Não há dúvidas que a igualdade de recursos determinará que o talento,

assim como a deficiência, deverá ser neutralizado, por tratar-se de circunstância

sobre a qual o indivíduo não tem controle, ou seja, por ser um fator de sorte

bruta, e não de sorte opcional. DWORKIN propõe, então, a suposição de uma

situação abstrata na qual seria oferecido a indivíduos, sob um véu de

ignorância100, ou seja, sem que eles conheçam os talentos que possuem, a

possibilidade de fazer um seguro contra a falta de talentos. Nessas condições,

qual seria o nível de cobertura que indivíduos racionais contratariam?

97 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 81-82. 98 Idem. Ibidem. p. 93. 99 GUEST, op. cit., p. 257. 100 DWORKIN não utiliza esse termo, mas, conforme observa ÁLVARO DE VITA, o mecanismo teórico utilizado por DWORKIN é muito semelhante ao da posição original de RAWLS, de modo utiliza-se esse termo por expressar de forma fiel a intenção do autor em comento. Cf. VITA. O liberalismo..., op. cit., p. 49.

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O seguro hipotético deverá ser baseado, segundo DWORKIN, na

diferença entre o nível de cobertura escolhido e a renda que o indivíduo, após o

leilão, teve de fato oportunidade de receber, e deverá ser igual ao que qualquer

pessoa que esteja no nível de cobertura escolhido101. Nessas circunstâncias, será

que é vantajosa a escolha de um nível de cobertura muito elevado? Um seguro

hipotético contra a falta de talento que contenha um prêmio (valor a ser pago

para que se tenha direito à cobertura) muito elevado fará com que muitos dos

que optaram por essa cobertura tenham uma probabilidade muito alta de ganhar

muito pouco, e acarretará que alguns indivíduos, que efetivamente ganharem

altos rendimentos, tenham que trabalhar muito para manter o equilíbrio da

cobertura desse seguro. Eles, assim, estarão em uma situação muito pior do que

se não tivessem contratado o seguro e, ainda, serão escravos de seus

rendimentos máximos102. Nas palavras de DWORKIN:

Se o nível de cobertura é alto, então isto irá escravizar o segurado, não apenas pelo prêmio ser alto, mas porque é extremamente improvável que seus talentos irão ultrapassar por muito o nível de cobertura que haverá escolhido, o que significa que ele deverá trabalhar com esforço máximo, e que ele não terá escolha acerca do tipo de trabalho a fazer103.

Nessa situação, haverá a perda de liberdade dos talentosos, e o seguro

deixará de cumprir a sua função de neutralizar a sorte genética de um indivíduo

talentoso e passaria a, efetivamente, “ser o fator determinante de sua vida104”, o

que vai de encontro com os cânones de uma sociedade liberal. A conclusão de

DWORKIN, nesse contexto, é no sentido de que se os indivíduos, em uma

situação de ignorância com relação aos seus dotes naturais, deliberassem a

101 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 94. 102 Idem. Ibidem. p. 96. 103“If the level of coverage is high, then this will enslave the insured, not simply because the premium is high, but because it is extremely unlikely that his talents will much surpass the level that he has chosen, which means that he must work at full stretch, and that he will not have choice about what kind of work to do.” Idem. Ibidem. p. 98. 104 KYMLICKA, op. cit., p. 105.

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respeito de um nível de cobertura racional para um seguro contra a falta de

talento, eles não optariam pelo nível mais alto de cobertura, pois a recompensa

que o mesmo pode trazer é muito menor do que o risco de se ver escravizado

pela necessidade de pagamento de um prêmio muito alto.

Todavia, o seguro contra a falta de talento começa a ser economicamente

interessante quando se consideram níveis mais baixos de cobertura. Com efeito,

DWORKIN atenta que quando o nível de cobertura é mais baixo, os indivíduos

possuem uma gama maior de opções de trabalho, que lhes proporcionarão uma

quantidade e intensidade de trabalho moderada para conseguir pagar o prêmio.

Nesse sentido, observa VITA:

(...) a racionalidade ex ante (sob o véu de ignorância que impede cada um de conhecer seus próprios talentos) de escolha de um dispositivo hipotético de seguro contra não ter determinados talentos se tornaria mais forte conforme diminuísse o nível de cobertura contratado. Conforme esse nível cai, mais do que isso, se aproxima do caso-padrão de seguro (privado), em que as pessoas aceitam um pequeno custo financeiro certo para evitar uma perda que, por mais que improvável que lhes pareça no presente, é grande o suficiente para motivá-las a arcar com o ônus do prêmio. Dworkin supõe que todos escolheriam, se pudessem, se segurar contra não ser capaz de ganhar aquilo que os colocaria no trigésimo centil da distribuição de renda, bastante acima do nível de renda adotado nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha para que uma pessoa faça jus a transferências compensatórias105.

O seguro hipotético, assim, torna-se atraente na medida em que o nível de

cobertura (e conseqüentemente o prêmio) é menor, se aproximando da situação

inerente aos seguros privados, no qual o indivíduo paga um valor baixo pelo

seguro para evitar um grande (e improvável) perda.

105 VITA. O liberalismo..., op. cit., p. 50.

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1.4. A CONCRETIZAÇÃO DO SEGURO HIPOTÉTICO: O SISTEM A

TRIBUTÁRIO REDISTRIBUTIVO

O liberalismo igualitário de DWORKIN defende, conforme visto, a

construção da igualdade através do mercado. Para tanto, DWORKIN imagina

uma situação hipotética na qual descreve o funcionamento de um leilão

igualitário, que seria o motor da igualdade de recursos. A principal característica

do aludido leilão é a insensibilidade à dotação e sensibilidade à ambição. A idéia

central, portanto, é fazer com que, em uma sociedade liberal, os indivíduos

sejam responsáveis pelas suas escolhas genuínas (sorte opcional), mas que não

sejam obrigados a sofrer desigualdades provenientes das circunstâncias naturais

(sorte bruta). Mas quais circunstâncias seriam estas? A doutrina dworkiniana

centraliza a discussão ao problema das deficiências e da sorte genética. À luz do

exposto, a solução apresentada por DWORKIN é no sentido de compensar dos

deficientes, bem como neutralizar a sorte genética através do mecanismo do

seguro hipotético, que abre uma possibilidade de os indivíduos se precaverem de

eventual deficiência ou falta de talentos.

Trata-se, portanto, de um mecanismo que faz com que um evento que

decorreria da sorte bruta (uma deficiência, por exemplo) seja protegido pela

adesão do indivíduo a um mercado de seguros hipotéticos, mecanismo este que

se mostra interessante na medida em que a deficiência ou a falta de talentos são

recursos infungíveis, ou seja, que não podem ser adquiridos no mercado

hipotético, de modo que o seguro provém uma forma de se compensar, ex ante,

um prejuízo que o indivíduo eventualmente possua, e que não pode ser

compensado na mesma por um recurso da mesma espécie.

Mas como que esse esquema de seguros hipotético se manifestaria no

mundo real? DWORKIN tem em mente um sistema de impostos que incidiria

basicamente sobre a riqueza produzida exclusivamente em virtude da sorte

genética. Trata-se, portanto, de uma teoria que atribui ao Estado um papel ativo

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para a manifestação da igualdade na prática, o que, no entender de VITA,

permite a conclusão de que o DWORKIN (bem como RAWLS) tem em mente,

ao desenvolver a sua teoria política, um “capitalismo de welfare state106” . Essa

conclusão a que chega VITA ganha contornos mais concretos no livro mais

recente de DWORKIN, no qual ele afirma explicitamente que o Estado do Bem-

Estar Social é o modelo estatal que melhor corresponde aos ideais do liberalismo

igualitário .

Em “Is democracy possible here?”, DWORKIN dedica todo um capítulo

para realizar uma crítica da política tributária adotada pelo governo de George

W. Bush, baseada em cortes de impostos, a qual beneficia apenas as classes mais

privilegiadas da sociedade americana, além de acarretar um deficit orçamentário

sem precedentes, forçando cortes nas políticas sociais. Afirma, assim, que o

governo republicano não goza de legitimidade, visto que a política por ele

adotada não trata todos os cidadãos com igual consideração (equal concern)107.

Mas qual seria, então, a política tributária que um governo deve adotar para que

ele seja legítimo, ou seja, para que demonstre igual consideração para com seus

cidadãos?

Conforme visto, DWORKIN entende que o dever do Estado de tratar a

todos com igual respeito e consideração pressupõe um direito a “tratamento

como igual”, no sentido que a decisão política acerca da distribuição dos

recursos na sociedade deverá levar em consideração as circunstâncias de cada

indivíduo que compõe a comunidade. Já é possível concluir, com tudo o que foi

exposto acerca da igualdade de recursos, que o direito a “treatment as an equal”

corresponde exatamente à concepção dworkiniana de igualdade de recursos108.

Ao construir uma doutrina “insensível à dotação mas sensível à ambição”,

DWORKIN pretende, exatamente, por em destaque o direito que os indivíduos

106 VITA. Justiça..., op. cit., p. 81. 107 DWORKIN. Is Democracy…, op. cit., p. 90-96. 108 Nesse sentido, cf. GUEST, op. cit., p. 255.

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têm, em uma sociedade liberal, a serem tratados como iguais pelo governo, que

está na base do conceito de equal concern. É nesse contexto que DWORKIN

afirma que:

Um governo legítimo deve tratar todos aqueles a quem ele reivindica domínio não apenas com alguma medida de consideração, mas com igual consideração. Eu quero dizer que ele deve agir como se o impacto de suas políticas na vida de qualquer cidadão é igualmente importante 109.

As decisões políticas, portanto, somente serão legítimas se levarem em

consideração, de forma igualitária, todos os indivíduos. Mas será que essa

conclusão leva, necessariamente, à opção por uma política welferista em

detrimento a um governo laissez-faire110? DWORKIN afirma que a distribuição

de bens e oportunidades na sociedade depende, basicamente, de duas variáveis:

uma variável de natureza pessoal, que diz respeito às circunstancias pessoais

(deficiências, habilidades físicas e mentais) e às escolhas individuais, e uma

variável política, relacionada com as leis e as políticas, que constituirão o

arranjo político da sociedade111.

A atuação livre do indivíduo na sociedade, no entanto, inevitavelmente

acarreta desigualdades. Esse é um fato que não pode ser ignorado pelo governo e

constitui um dos principais desafios do Estado Liberal: como preservar a

liberdade individual e manter, concomitantemente, as desigualdades em um

nível tolerável? A esse respeito, interessante é a observação feita por PETER

SCHUCK:

Talvez o mais assombroso desafio para o liberalismo, então, seja reduzir as desigualdades a níveis e espécies que a sociedade, e

109 “A legitimate government must treat all those whom it claims dominion not just with a measure of concern but with equal concern. I mean that it must act as if the impact of its policies on the life of any citizen is equally important.” DWORKIN. Is democracy..., op. cit., p. 97. 110 Ressalte-se, aqui, que o dualismo política welferista/política laissez-faire pode ser compreendida como significando governo democrata/ governo republicano, que por sua vez refletem a cisão azul/vermelho que existe na vida política norte-americana: de um lado os “liberais” (no sentido americano do termo), do outro os conservadores (ou neoliberais). 111 Idem. Ibidem. pp. 98-99.

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especialmente aqueles que sofrem desvantagem relativa, vejam como socialmente aceitáveis e politicamente sustentáveis, senão justo no conjunto – enquanto ao mesmo tempo justificando o compromisso liberal com a proteção das liberdades individuais112.

Cabe, assim, perguntar se o Estado mínimo tem condições de oferecer

uma resposta ao problema da manutenção concomitante da liberdade individual

e de um nível tolerável de desigualdade na sociedade. O arranjo institucional

que DWORKIN pretende defender não descarta, a princípio, o Estado mínimo,

mas, conforme ele mesmo pondera, a escolha por uma política laissez-faire deve

ser acompanhada de uma justificativa no sentido de que esse governo consegue,

de fato, lidar com o problema das desigualdades de forma satisfatória113. No

entanto, DWORKIN não vislumbra uma argumentação que consiga definir uma

a política tributária em coerência com o ideal defendido pelo Estado laissez-

faire, de que o governo não deve tomar uma posição concreta a favor de

qualquer política distributiva. Segundo DWORKIN, qualquer decisão política,

como por exemplo a fixação do orçamento militar, ou a quantidade de verba a

ser destinada à educação, acarretará decisões distributivas, de modo que “o

Estado laissez-faire é um ilusão114”.

DWORKIN, assim, defende que o Estado deve apresentar um arranjo

institucional que vise garantir aos cidadãos a igualdade de recursos, mas que, ao

mesmo tempo, respeite o princípio da responsabilidade individual, a qual

constitui o segundo princípio ético que fundamenta o liberalismo igualitário

dworkiniano. Nesse sentido, DWORKIN entende que tal arranjo político

112“Perhaps the most daunting challenge to liberalism, then, is to reduce inequalities to levels and kinds that the society, and especially those who suffer relatively disadvantage, view as socially acceptable and politically sustainable, if not altogether just – while at the same time vindicating the liberal commitment to the protection of individual liberties.” SCHUCK, Peter. Liberal Citizenship. In ISIN, Engin F. Handbook of citizenship studies. London: Sage, 2002, p. 140. 113 Vide DWORKIN. Is democracy..., op. cit., p. 100. 114 “So the laissez-faire state is an illusion”. Idem. Ibidem. p.100.

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somente é possível mediante a construção de uma teoria tributária que seja

comprometida com a igualdade e com a responsabilidade individual115.

Cumpre ressaltar, todavia, que uma conseqüência importante que decorre

do princípio da responsabilidade pessoal é o de que o indivíduo deve sentir os

reflexos econômicos de suas escolhas, o que somente é possível, para

DWORKIN, em uma economia de livre mercado, de forma que é a atuação

individual que deve determinar os elementos estruturais do mercado. No

entanto, a economia de livre mercado gera grandes desigualdades, tendo em

vista a diferença que há de talentos e de sorte entre os indivíduos conforme a

economia se desenvolve. Assim, no entendimento do filósofo norte-americano,

muito embora o princípio da responsabilidade pessoal exija que os indivíduos

arquem com os custos econômicos de suas escolhas, existem certas

desigualdades que não devem ser toleradas, as quais deverão ser amenizadas por

uma política tributária redistributiva116.

Mas qual o fundamento para a defesa dessa política redistributiva? Aqui

podemos ver uma aplicação prática do mecanismo do seguro hipotético proposto

por DWORKIN. Segundo o filósofo igualitário, uma política redistributiva pode

ser defendida com duas posições filosóficas distintas: a contratualista e a da

metáfora do seguro. Existe um traço comum entre essas teorias liberais, qual

seja, a raiz kantiana. Com efeito, a sociedade liberal pode ser defendida sob dois

pontos de vistas diferentes. Um deles, de natureza hobbesiana, sustenta que “a

motivação para a obediência às regras de justiça e à ordem política que as impõe

é exclusivamente o interesse e os desejos próprios117”. Em contraposição ao

liberalismo hobbesiano encontra-se o liberalismo de natureza kantiana ou

“liberalismo de princípios”, que se preocupa, antes de justificar os arranjos e

instituições políticas e fundamentar a natureza da sociedade no egoísmo, em

115 DWORKIN. Is Democracy..., op. cit., p. 102-103. 116 Idem. Ibidem. p. 107-108. 117 VITA. Justiça Liberal..., op. cit., p. 21.

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estabelecer princípios de justiça que constituem “fins últimos compartilhados

pelos membros de uma sociedade democrática118”. Tratam-se, portanto, de

teorias que justificam a natureza das instituições comuns da sociedade de forma

diversa: o liberalismo hobbesiano fundamenta-se basicamente em argumentos de

natureza prudencial, ao passo que o kantiano em argumentos morais.

Todavia, DWORKIN faz ainda uma distinção entre duas teorias liberais

de raízes kantianas. A primeira delas, cujo principal expoente é RAWLS, é de

natureza contratualista, e tem como principal característica a de que os termos

de cooperação social são obtidos a partir de uma situação de equidade em que há

um mútuo respeito entre os indivíduos. Na teoria da “ justice as fairness”

rawlsiana, os princípios de justiça que fundamentarão o arranjo das instituições

básicas da sociedade são construídos a partir de uma situação hipotética em que

indivíduos, sob um véu de ignorância (ou seja, sem saber as suas condições

pessoais) deliberam acerca de quais princípios de justiça devem ser adotados

pela sociedade. Essa teoria, portanto, pressupõe a formação de um consenso

entre os indivíduos, que acabará por desenvolver dois princípios de justiça, um

deles determinando que todos têm direito ao igual acesso às liberdades básicas, e

o princípio da diferença, que estabelece um compromisso no sentido de que as

desigualdades econômicas somente serão toleradas se: a. beneficiarem a todos

na sociedade; e b. forem relacionadas a posições e ofícios abertos a todos, em

igualdade de oportunidades 119.

Trata-se, portanto, de uma teoria comprometida com a compensação das

desigualdades provenientes de uma situação em que os princípios de justiça

mencionados foram ofendidos. No entanto, atenta DWORKIN para o fato de

que, na teoria de RAWLS, a compensação das injustiças produzidas na

sociedade ocorre ex post, ou seja, depois de ocorrido o dano, e se justifica por

118 VITA. Justiça Liberal…, op. cit., p. 23. 119 Cf. DWORKIN. Is democracy..., op. cit., p. 112 e RAWLS. A Theory…, op. cit., p. 53.

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um acordo hipotético realizado entre os indivíduos120. Em contraposição ao

contratualismo rawlsiano, DWORKIN propõe uma teoria baseada em seguros,

comprometida com uma igualdade ex ante, concretizada mediante programas

redistributivos financiados pelo pagamento de tributos. A idéia central é a de

que os tributos devem ser compreendidos como prêmio de um seguro que os

indivíduos pagam no decorrer de suas vidas, e os programas sociais como

benefícios oferecidos pelo seguro financiado pela política tributária121.

A metáfora do seguro hipotético destaca duas características importantes

na teoria de DWORKIN. A primeira delas diz respeito à concepção de

comunidade liberal dworkiniana, vez que o seguro sugere uma solidariedade

social, no sentido de que a identidade coletiva da comunidade é reafirmada pelo

fato de os indivíduos fazem um esforço comum (pooling) para compartilhar os

riscos que enfrentam em suas vidas, ressaltando, ao mesmo tempo, uma “aura de

prudências e responsabilidade individual122”. A segunda característica é a

importância que DWORKIN confere aos direitos em uma comunidade política:

a compensação derivada do seguro hipotético é um direito do cidadão,

decorrente do pagamento dos tributos para o financiamento do seguro. Nesse

sentido afirma DWORKIN que o seguro hipotético:

Delineia os programas políticos redistributivos não como caridades, entregando os benefícios como atos de graça mas como questão de direito; as pessoas possuem direitos aos benefícios decorrentes da apólice de seguro porque eles pagaram adiantadamente para essa proteção123.

120 DWORKIN. Is democracy..., op. cit., p. 112-113. 121 Idem. Ibidem. p. 112 e ss. 122 Idem. Ibidem. 112-113. 123“It paints redistributive political programs nota as charities bestowing their benefits as acts of grace but rather as matters of entitlement; people are entitled to collect on insurance policies because they have paid for such protection in advance.” Idem. Ibidem. p. 113.

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DWORKIN sustenta, assim, que a metáfora do seguro hipotético,

materializada por um sistema de taxação redistributiva124, é a melhor forma de

se alcançar a igualdade de recursos. Identifica-se, nesse sentido, três argumentos

que levam a essa conclusão. Em primeiro lugar o fato de os benefícios dos

programas redistributivos resultantes do esquema de taxação proposto por

DWORKIN concretizarem direitos aos beneficiários, o que confere, por

exemplo, legitimidade ativa aos segurados para exigirem judicialmente que o

governo indenize àqueles que sofrerem percalços no decorrer de suas vidas.

Entendo que esse aspecto da teoria igualitária de DWORKIN é importante traz

fundamentos para a interpretação da Constituição Federal de 1988,

especialmente no tocante à força normativa positiva dos princípios

constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana e da cidadania.

Com efeito, uma vez entendida a igualdade de recursos como um ideal a ser

perquirido pela comunidade política, por ser um valor essencial para a

efetivação da auto-determinação individual e a valorização da vida humana, o

que, diga-se, relaciona-se com o princípio da dignidade da pessoa humana (CF,

artigo 1.º , inciso III), e, ainda, que a melhor forma de concretizar o conteúdo

valorativo desse ideal é mediante um programa de tributação para o

financiamento de programas redistributivos, o que conexiona-se com os direitos

de cidadania (CF, artigo 1.º, inciso II), confere-se aos cidadãos um fundamentos

(jurídicos e políticos) para pleitear judicialmente que o governo atue de modo a

efetivar políticas públicas que concretizem esses ideais.

124 A defesa da tributação redistributiva, em Is Democracy Possible Here?, insere-se dentre a crítica que DWORKIN dirige constantemente às políticas tributárias adotadas pelos governos Republicanos. Especificamente na obra citada, DWORKIN critica ferrenhamente os cortes fiscais promovidos pelo governo George W. Bush, que, segundo ele, apenas beneficiaram os indivíduos mais ricos da sociedade norte-americana, e prejudicou a concretização de programas sociais. Cf. DWORKIN, op. cit., pp. 90 e ss. A esse respeito, assevera ROLF KUNTZ que a crise financeira do Estado Providência, nos anos 80 e 90, levou à adoção, em escala mundial, de uma reestruturação, comandada pelo Consenso de Washington, que exigiu cortes fiscais e diminuição do Estado. Identifica-se, aqui, nitidamente a tensão existente entre a manutenção de uma sociedade capitalista e de um governo mínimo, e a concretização dos direitos de cidadania, exigência fundamental do Estado Democrático de Direito. Cf. KUNTZ, Rolf. FARIA, José Eduardo. Qual o Futuro dos Direitos: Estado, Mercado e Justiça na reestruturação capitalista. São Paulo: Max Limonad, 2002, pp. 42 e ss.

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O segundo argumento para se defender a metáfora do seguro hipotético

como a melhor interpretação do ideal igualitário é no sentido de que,

considerando que os programas redistributivos serão financiados por

intermédios de tributos, como por exemplo, imposto de renda progressivo125, e,

ainda, que a adesão a esses programas é compulsória126, o seguro hipotético

abrangerá a totalidade dos cidadãos, e o critério para o valor dos prêmios a

serem pagos não será a probabilidade que cada um tem de ter uma deficiência ou

uma má-sorte, mas sim a renda. Dessa forma, cada um contribuirá

proporcionalmente com a sua possibilidade e a cobertura será igual para todos.

O terceiro e último argumento para a defesa da igualdade ex ante situa-se

no campo puramente normativo. A principal crítica de DWORKIN ao

liberalismo rawlsiano é no sentido de que o princípio da diferença, embora

insensível às dotações, e não é suficientemente sensível às ambições, o que pode

gerar resultados contra-intuitivos127. Portanto, a igualdade de recursos

dworkiniana visa exatamente suprir essa falha que aparentemente existe na

teoria de RAWLS, propondo um esquema de tributação redistributiva que incide

sobre os ganhos provenientes da “sorte genética” e beneficia os prejudicados por

eventos de “sorte bruta”.

125 DWORKIN. Is democracy..., op. cit., p. 117. 126 Idem. Ibidem. p. 113-114. 127 GARGARELLA, op. cit., p. 72.

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CAPÍTULO II

IGUALDADE DE RECURSOS E LIBERDADE

Logo na introdução do ensaio “The Place of Liberty”, que atualmente

integra o Capítulo 03 do livro “Sovereign Virtue”, DWORKIN afirma que, ao

utilizar o termo “liberdade”, ele se refere à liberdade negativa, entendida

enquanto “liberdade de coerção legal128”. Mas o que significa liberdade

negativa? Essa expressão foi utilizada por ISAIAH BERLIN em seu clássico

ensaio “Dois Conceitos de Liberdade”, no qual identifica duas espécies de

liberdade que exprimem a essência desse ideal: a liberdade negativa e a

liberdade positiva.

Liberdade negativa, explica BERLIN, corresponde à acepção conferida ao

termo pelo liberalismo clássico, em especial por autores ingleses como LOCKE

e MILL. Notadamente na obra deste último, a liberdade foi defendida

ferrenhamente como condição necessária para o desenvolvimento humano,

condenando-se qualquer tipo de coerção como um mal em si129. BERLIN, por

sua vez, conceitua a liberdade negativa enquanto “área na qual um homem pode

agir sem ser obstruído por outros130”, mas ressalta, no decorrer do mencionado

ensaio, que “a liberdade não é o único objetivo dos homens”, no sentido de que

a esfera de atuação humana deve ter um campo delimitado pelo arranjo

institucional a que o indivíduo está sujeito.

Ao reconhecer a necessidade de limitação da liberdade, todavia, BERLIN

deixa claro que a mesma acarreta, necessariamente, perda da liberdade, de modo

que igualdade e liberdade, na concepção de BERLIN, são valores em

128 DWORKIN. Sovereign...̧op. cit., p. 120. 129 BERLIN, Ensaios…, op. cit., p.234. 130 Idem. Ibidem.p. 229.

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permanente colisão, não sendo possível a defesa da restrição da liberdade em

nome da própria liberdade:

Para evitar a desigualdade gritante ou a desgraça generalizada, estou pronto sacrificar parte da minha liberdade ou toda ela: posso agir desse modo voluntária e livremente; mas é a minha liberdade que estou renunciando em prol da justiça, igualdade ou amor pelos homens companheiros meus. Eu seria atormentado pela culpa, e com razão, se não estivesse disposto, em algumas circunstâncias, a fazer esse sacrifício. Mas o sacrifício não é um aumento do que está sendo sacrificado, a saber a liberdade, por maior que seja a necessidade moral ou a compensação pelo sacrifício. Tudo é o que é: liberdade é liberdade, não é igualdade, equidade, justiça ou cultura, felicidade humana ou uma consciência tranqüila131.

Conforme veremos no presente Capítulo, DWORKIN parte da noção de

liberdade negativa desenvolvida por BERLIN para a construção do seu próprio

entendimento acerca desse direito político, relacionando-o no contexto da justiça

distributiva, visando, ao contrário do que defende aquele autor, uma conciliação

entre a liberdade e a igualdade.

2.1. DIREITO À LIBERDADE OU DIREITO A LIBERDADES?

Visto que a liberdade, entendida como liberdade negativa um espaço de

atuação ação sem interferência governamental, é possível afirmar que, sob o

prisma da igualdade de recursos dworkiniana, existe um princípio libertário

abstrato, ou seja, que o direito à liberdade é um ideal abstrato independente?

No entendimento de DWORKIN a liberdade não é um ideal independente.

Partindo-se da idéia inicialmente exposta, de que o princípio igualitário abstrato

é amplamente aceito por uma comunidade Liberal (no sentido norte-americano

do termo), e que, de acordo com o conteúdo valorativo desse princípio, o Estado

131 BERLIN, op. cit., 232.

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tem o dever de tratar a todos com igual respeito e consideração, significando

isso a concretização, na comunidade, da igualdade de recursos com as

peculiaridades examinadas no Capítulo 01, DWORKIN conclui que, em tese,

havendo conflito entre a igualdade e a liberdade, aquela deverá prevalecer sobre

esta. DWORKIN, no entanto, pondera que tal situação não pode ocorrer, visto a

própria igualdade de recursos pressupõe a garantia de certas liberdades.

Nesse diapasão, a liberdade não deve ser compreendida como um direito

independente e concorrente com a igualdade, mas sim como um ideal

teleológicamente avaliado, ou seja, cuja importância valorativa depende,

exatamente, dos benefícios que traz a vida dos cidadãos na comunidade 132,

benefícios estes que devem ser otimizados pelo Estado, em atendimento ao

princípio igualitário abstrato.

Qual conclusão importante DWORKIN pretende extrair dessa

caracterização da liberdade como um ideal valorativamente dependente da

igualdade? Em primeiro lugar, visa ele rejeitar qualquer concepção da liberdade

como “licença” para atuar indiscriminadamente. Para o filósofo norte-

americano, não existe um direito abstrato à liberdade, mas sim direito a

liberdades, ou seja, direito a liberdades básicas, às quais o governo não pode

limitar “sem uma justificativa especial mais poderosa ou convincente que a

justificação que ele requer para outras decisões políticas, incluídos restrições a

outras liberdades não protegidas por esses direitos133”. A liberdade, portanto,

deve ser compreendida como acesso a liberdades fundamentais concretamente

definidas, tais como a liberdade de expressão, de associação, de religião, dentre

outras.

Nesse contexto, DWORKIN intenta redefinir a dinâmica existente entre o

binômio igualdade/liberdade, até então concebido pela teoria política como 132 DWORKIN. Sovereign.., op. cit., p. 129. 133“without some special justification more powerful or compelling than the justification it requires for other political decisions, including constraints on other freedoms not protected by such rights.” Idem. Ibidem. p.127.

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eminentemente conflitiva. Com efeito, no contexto da concepção de igualdade

de recursos dworkiniana, a liberdade e a igualdade constituem valores

complementares: para o filósofo norte-americano não existe conflito genuíno

entre a igualdade, entendida enquanto igualdade de recursos, e a liberdade:

De acordo com a igualdade de recursos, os direitos a liberdade que consideramos fundamentais são partes ou aspectos da igualdade distributiva, e são, assim, protegidos automaticamente sempre que a igualdade é alcançada. A prioridade da liberdade é assegurada não em detrimento da igualdade, mas em seu nome134.

Na verdade, conforme será abordado no fim do próximo Capítulo,

DWORKIN pretende harmonizar a igualdade e a liberdade como expressões de

um único ideal, que é a dignidade da pessoa humana. Os princípios da

responsabilidade individual e do valor intrínseco, na verdade, são reflexos

desses dois valores normativos, e juntos constituem a dignidade da pessoa

humana. Para o momento, cumpre analisar a forma como DWORKIN

compreende a forma como a garantia de algumas liberdades é de fundamental

importância para a concretização da igualdade de recursos.

2.2. COMO (RE)CONCILIAR A IGUALDADE E A LIBERDADE?

2.2.1. A ESTRATÉGIA DOS INTERESSES

Como foi dito, DWORKIN faz uma releitura da dinâmica existente entre

igualdade e liberdade, pretendendo uma conciliação entre esses dois ideais. Mas

como fazê-lo no campo da teoria política normativa? Reconciliar a igualdade e a

liberdade significa, em termos normativos, identificar a forma como se justifica,

134 “According to equality of resources, the rights to liberty we regard as fundamental are part or aspect of distributional equality, and so are automatically protected whenever equality is achieved. The priority to liberty is secured, not at the expense of equality, but in its name.” DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 133.

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em uma comunidade, a relação entre a justiça distributiva e a garantia das

liberdades fundamentais.

O pensador norte-americano identifica duas maneiras de se construir, no

campo normativo, uma teoria que concilie a igualdade e a liberdade. A primeira

delas, a qual denomina de “estratégia dos interesses”, consiste em identificar a

distribuição ideal dos recursos sociais a partir dos interesses individuais, para,

posteriormente, verificar quais liberdades são de fundamental importância para a

manutenção dessa distribuição. A liberdade, nesse contexto, serve de

instrumento para a garantia da distribuição dos recursos sociais, ou seja, como

instrumento dos interesses individuais que basearam a distribuição ideal de

recursos135. DWORKIN utiliza como exemplo de teoria política que adota a

estratégia dos interesses o utilitarismo, eis que, ao defender que a comunidade

deve buscar uma distribuição dos recursos sociais que vise proporcionar o maior

bem-estar médio possível a longo prazo, a doutrina utilitarista nada define

acerca da liberdade, deixando-a como instrumento para alcançar aquele objetivo.

A estratégia dos interesses, portanto, coloca em primeiro plano a busca

pela igualdade, e apenas em um segundo momento considera a liberdade,

enquanto instrumento garantidor daquela. Será a igualdade de recursos

dworkiniana compatível com a estratégia dos interesses? Conforme exposto no

Capítulo 01 da presente dissertação, DWORKIN constrói a sua teoria igualitária

a partir de um exemplo contrafactual, no qual imigrantes que estão em uma ilha

inexplorada, aceitam que os recursos deverão ser distribuídos equitativamente, e,

para tanto, realizam um leilão, cujo resultado deverá satisfazer o “teste da

inveja”, no sentido que nenhum dos indivíduos, ao final, cobice o montante de

recursos que outro indivíduo possua.

135 DWORKIN. Sovereign..., op. cit.. p. 135.

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DWORKIN argumenta que, nesse modelo, a estratégia dos interesses

somente teria alguma lógica se a liberdade fosse considerada como um recurso

disponível para compra no leilão hipotético, entrando, por conseguinte, em

concorrência com qualquer outro recurso disponível à venda no mercado

igualitário. Observe-se que, à luz da estratégia dos interesses, as liberdades

fundamentais seriam instrumentalmente compreendidas. Isso porque, enquanto

recursos136, seriam balizadas com os demais bens materiais (e imateriais) que os

indivíduos possuem e, nesse diapasão, constituiriam meios para alcançar a

igualdade, e não fins em si mesmas137. Há, dessa forma, a plena subordinação da

liberdade à igualdade.

2.2.2. A ESTRATÉGIA CONSTITUTIVA : A LIBERDADE COMO PRESSUPOSTO DA

IGUALDADE

O filósofo norte-americano, todavia, não pretende construir uma teoria

igualitária que coloque a liberdade em segundo plano. Reconhece, é verdade,

que “qualquer conflito genuíno entre a liberdade e a igualdade (...) é uma

concorrência que a liberdade deve perder138”. Mas, ao mesmo tempo, defende

que não existe, na igualdade de recursos, um conflito entre a igualdade e a

liberdade que se possa dizer “genuíno”. Pelo contrário, a igualdade de recursos,

nos moldes propostos por DWORKIN, pressupõe que “adquirir um determinado

recurso e adquirir direitos e oportunidades de utilizar esse recurso são duas

transações diferentes139”. Nesse sentido, os direitos de liberdade não podem ser

confundidos com os recursos disponíveis aos indivíduos e, ademais, constituem

136 Deve-se ficar atento para o fato de que os direitos de liberdade, uma vez considerados recursos, compõe a esfera das circunstâncias individuais, e não da personalidade. Vide, supra, a discussão acerca da diferença entre circunstâncias e personalidade. 137 DWORKIN. Sovereign…, op. cit., pp. 139-141. 138 “any genuine conflict between liberty and equality(...) is a contest that liberty must lose”. Idem. Ibidem. p.130. 139 “(...) acquiring a particular resource and acquiring rights and oportunities to use that resource are two independent transactions”. Idem. Ibidem. p. 143.

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pressuposto de viabilidade lógica das transações realizadas no leilão hipotético,

já que, conforme o próprio DWORKIN reconhece, ninguém, em pleno gozo de

suas faculdades morais, adquiriria um recurso sem ter certeza de terá um

mínimo de liberdade para utilizar o bem adquirido140.

O pressuposto teórico de que parte a igualdade de recursos, dessa maneira,

é bastante diferente da estratégia dos interesses: a liberdade não constitui

instrumento para a manutenção da igualdade, mas, antes, pressuposto lógico

para a concretização do princípio igualitário abstrato. Portanto, em contraponto à

estratégia dos interesses, DWORKIN desenvolve a “estratégia constitutiva”, já

que “edifica a liberdade na estrutura da concepção de igualdade escolhida desde

o começo141”. Desde o começo porque o leilão igualitário, que, para

DWORKIN, é o mecanismo para se atingir, no plano ideal142, uma distribuição

igualitária dos recursos sociais, pressupõe a existência de um sistema de

liberdades/restrições que estipule o que poderá ou não ser feito com os

recursos lá adquiridos.

Existem, portanto, algumas liberdades que devem ser garantidas como

condição de viabilidade do leilão abstrato. Cabe agora perguntar: qual conjunto

de liberdades que compõem o sistema de liberdade/restrições acima

mencionado? A igualdade de recursos é, para DWORKIN, a melhor

interpretação do princípio igualitário abstrato. Em outras palavras, tratar aos

cidadãos com “igual respeito e consideração”, na teoria dworkiniana, significa

distribuir os recursos sociais por intermédio de um leilão igualitário, o qual

presume que certas liberdades serão garantidas. Dessa forma, o leilão igualitário

deverá obedecer a determinados princípios, dos quais resultarão determinadas

140 DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 143. 141 “(...) builds liberty into the structure of its chosen conception of equality from the start”. Idem. Ibidem. p. 135. 142 Faço questão de ressaltar que a distribuição igualitária resultante do leilão hipotético dworkiniano é possível, como o próprio DWORKIN reconhece, apenas no plano ideal ou normativo. Essa distribuição ideal é utilizada pelo filósofo norte-americano para a elaboração de políticas públicas técnicamente viáveis para a diminuição das igualdades no mundo real.

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liberdades que serão, assim, tidas como fundamentais para o liberalismo

igualitário dworkiniano.

2.2.2.1. O princípios e subprincípios que regem os direitos de liberdade

Segundo DWORKIN, existe um princípio que faz a conexão (ou ponte, na

linguagem dworkiniana) entre o princípio igualitário abstrato e a igualdade de

recursos, ao qual denomina “princípio da abstração”. Trata-se de um princípio

que visa conferir segurança às relações desenvolvidas no mercado hipotético e

estipula que “a distribuição só é possível quando as pessoas estão legalmente

livres para agir como desejarem, a não ser quando há necessidade de restrições à

liberdade para proteger a segurança e a propriedade das pessoas, ou corrigir

as imperfeições dos mercados 143”. Segundo esse princípio, portanto, as pessoas

são livres para fazer o que bem entenderem com os recursos que possuem, desde

que não coloquem em risco a segurança e a propriedade dos demais indivíduos.

Do conteúdo axiológico desse princípio é possível extrair algumas

características do pensamento político de DWORKIN. Primeiramente, verifica-

se que a igualdade de recursos não pretende subordinar a liberdade. Pelo

contrário, limita-a apenas para a proteção dos demais indivíduos e da

propriedade144. Ademais, a teoria dworkiniana pressupõe um princípio de

segurança, no sentido de que somente é possível se desenvolver uma teoria da

igualdade distributiva com o pressuposto de que as pessoas terão garantias de

fruição da propriedade “para lhes permitir elaborar planos e projetos, e realizá-

los145”.

143 “It insists that an ideal distribution is possible only when people are legally free to act as they wish except so far as constrints on their freedom are necessary to protect security of person and property, or to correct certain imperfections in markets (…)”. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 148. 144 É claro que o princípio da abstração apenas vige em sua plenitude enquanto houver, na comunidade, a distribuição igualitária dos recursos. No plano real, considerando as gritantes desigualdades existentes, o princípio da abstração terá a sua aplicação mitigada, o que significa que haverá certas restrições à liberdade que, em tese, seriam repudiadas por essa norma mas que, no caso concreto, serão aceitas. 145 Idem. Ibidem. p. 149.

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A importância do princípio da abstração está em permitir com que os

indivíduos atuem no mercado hipotético em acordo com seus gostos e suas

preferências, adquirindo o que lhes aprouver para a realização de seus objetivos

de vida. Somente dessa forma será possível, para DWORKIN, a correta

apuração dos “custos de oportunidades” que cada recurso efetivamente

representa e, assim, “tornar a distribuição o mais sensível possível às escolhas

que as pessoas fazem ao elaborar seus próprios planos e projetos (...)146”.

O objetivo primordial do leilão igualitário é conferir aos indivíduos os

recursos necessários para a efetiva realização de seus planos e preferências, e é

exatamente com base nestas que os indivíduos deverão negociar durante a

realização do leilão. É, ainda, embasado nesse binômio recurso / preferência que

os indivíduos avaliarão o resultado da distribuição realizada e, enfim, aprovarão

ou não o resultado atingido. Para que o resultado dessa avaliação final seja

preciso, é necessário que se verifique qual o “real custo de oportunidade147” de

cada recurso, o que exige do leilão certa sensibilidade aos planos de vida

individuais148.

Assim, apenas para organizar os conceitos até agora apresentados, temos

que os custos de oportunidades são o parâmetro para a fixação dos preços dos

recursos a serem distribuídos, neutra e equitativamente, no leilão hipotético. A

garantia de higidez do sistema consiste na sensibilidade que o mercado deve ter

com relação às ambições e preferências individuais, expressas por intermédio da 146 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 151. 147 DWORKIN utiliza a expressão “custo” exatamente pelo fato de um indivíduo adquirir um recurso limita a sua aquisição por outro indivíduo, o que representa uma perda de oportunidade, no sentido de que esse recurso poderia servir, para outrem, para a realização de algum plano ou preferência. No entanto, devemos ter em mente que a distribuição somente será confirmada se passar pelo “teste da inveja”, ou seja, se nenhum indivíduo invejar a porção de recursos de outro indivíduo. Nesse contexto, somente a partir da atuação livre e segura dos indivíduos no mercado que será possível que ele, a partir de suas próprias preferência e à luz dos seus interesses críticos, opte, racionalmente, por um recurso ao invés de outro, o que permitirá a avaliação do real custo de oportunidade de cada recurso. 148 Idem. Ibidem. pp. 150 e ss.. DWORKIN admite, no entanto, que algumas limitações à liberdade, de caráter corretivo, podem ser feitas para se apurar com maior precisão o custo de oportunidade de um recurso: “constraints on freedom of choice are required and justified, according to that principle, If they improve the degree to which equality of resources secures its goal, which is to achieve a genuinely equal distribution measured by true opportunity costs”. Idem. Ibidem. p. 157.

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garantia das liberdades relacionadas com a formação da personalidade, como a

liberdade de escolha, expressão, pensamento, culto religioso, associação, dentre

outras, eis que é no exercício das mesmas que os indivíduos conseguem

desenvolver os seus valores e construir os seus objetivos de vida.

É de fundamental importância, nesse sentido, que o leilão se realize em

um ambiente que propicie ao indivíduo as mais amplas oportunidades para

formar a sua personalidade de forma independente e autêntica, de modo a não se

permitir “restrições, tanto antes do leilão inicial quanto depois dele, às

oportunidades de formar, ponderar ou advogar convicções, apegos ou

preferências149”. Tudo isso visa à formação genuína da personalidade dos

participantes do leilão, buscando-se a avaliação do real custo de oportunidade de

cada recurso adquirido, evitando que haja qualquer tipo de interferência ou

distorção na distribuição resultante do mercado igualitário.

Nesse sentido, o princípio da abstração, que garante aos indivíduos a

liberdade de gozar e fruir dos bens que adquiriram no leilão igualitário, salvo

para a garantia da segurança e/ou propriedade de outros indivíduos, possui, em

seu conteúdo, dois subprincípios, a saber, o princípio da correção, que visa à

imposição de restrições à atuação individual, se estas contribuírem para que se

alcance uma distribuição mais igualitária (e, claro, desde que essas restrições

não ofendam ao princípio da abstração), e o princípio da autenticidade, o qual

determina que os indivíduos tenham ampla liberdade para a formação,

genuinamente, de suas convicções e preferências, de modo a vedar qualquer

imposição de restrição relacionada à formação do caráter individual e, ainda, a

propiciar uma melhor avaliação dos verdadeiros custos de oportunidades dos

recursos distribuídos no leilão.

149 “so the baseline of an ideal distribution would in principle allow no constraint, either before the initial auction or after it, on opportunities to form, to reflect on, or to advocate convictions, attachments, or preferences. DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 160.

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Há, no entanto, mais um subprincípio que compõe o conteúdo normativo

do princípio da abstração: o princípio da independência. Segundo DWORKIN,

esse princípio “controla o princípio da correção ao insistir que não se pode

justificar como necessário nenhum parâmetro limitador para se chegar a um

resultado ao qual se chegaria em um leilão com perfeitos conhecimentos e

nenhum custo organizacional”, caso esses parâmetros reflitam “desprezo ou

antipatia” aos indivíduos que submetidos tal restrição, e, ainda, “controla o

princípio da abstração ao endossar parâmetros limitadores necessários para

proteger as pessoas sujeitas a preconceitos por sofrerem qualquer desvantagem

grave ou abrangente oriunda desses preconceitos150”. Possui, portanto, o

princípio da independência um conteúdo negativo, recomendando que o

princípio da correção não endosse qualquer parâmetro restritivo que tenha como

fundamento o preconceito ou a antipatia por qualquer indivíduo que vá sofrer tal

restrição, e um aspecto positivo, determinando que o princípio da abstração

acolha restrições e correções que visem amparar pessoas em situações de

desvantagem (natural ou social)151.

Dessa forma, conclui DWORKIN que “embora seja verdade que a

igualdade de recursos é neutra com relação às preferências que impõem

desvantagens no primeiro caso, posto que as pessoas devem ser livres para

escolherem o tipo de vida que pretendem levar, ela condena as atitudes que

geram desvantagens no segundo152”, recomendando, assim, a correção das

desvantagens naturais e a neutralização das vantagens obtidas a partir da sorte

150 “The principle of independence speaks to both liberty and constraint. First, it checks the principle od correction by insisting that no baseline constraint can be justified as necessary to reach a result that would be reached in an auction with perfect knowledge and no organizational costs, if that result would be reached only because people’s bids would reflect contempt or dislike for those who be subject to or suffer disadvantage in virtue of the constraint. Next, it checks the principle of abstraction by endorsing baseline constraints necessary to protect people who are the objects of systematic prejudice from suffering any serious or pervasive disadvantage from that prejudice (In effect, the principle of independence redefines opportunity costs in that way). DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 161. 151 É nítida a relação existente entre o princípio da independência e a característica fundamental do leilão igualitário, que é ser insensível às circunstâncias individuais. Novamente, o liberalismo igualitário dworkiniano recomenda a adoção de medidas para a correção do problema das deficiências. 152 Idem. Ibidem. p. 162.

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genética. A liberdade figura na igualdade de recursos, nesse contexto,

pressuposto de viabilidade do leilão igualitário. É a partir do conteúdo

axiológico do princípio da abstração, concretizado mediante ponderação com os

princípios da correção, da autenticidade e da independência, que DWORKIN

constrói o alicerce teórico da igualdade de recursos no plano da teoria política

normativa. Devemos analisar, agora, de que forma o princípio igualitário

abstrato pode atuar na realidade fática, na qual predomina a desigualdade e não

se pode elaborar uma distribuição igualitária nos moldes propostos.

2.3. A QUESTÃO DO DEFICIT DE RECURSOS E DE LIBERDADE

No Capítulo 03 de Sovereign Virtue DWORKIN pretende responder à

seguinte pergunta: qual é o lugar da liberdade na igualdade de recursos? A partir

da construção teórica acima, sustenta que a liberdade faz parte do próprio

conceito de igualdade de recursos, sendo aquela, nesse sentido, um pressuposto

para que se alcance desta. Obviamente, no entanto, os argumentos utilizados por

DWORKIN pressupõem certas condições ideais que não estarão presentes no

mundo real. Como, então, que a teoria dworkiniana pode ser útil para os países

como o Brasil, em que uma distribuição igualitária, tal como exigida pela

igualdade de recursos, é praticamente uma utopia?

Objetivando desenvolver uma resposta a essa pergunta, DWORKIN

desenvolve os conceitos de “deficit de recurso” e “deficit de liberdade”. O

primeiro consiste na diferença entre os recursos a que os indivíduos teriam

direito em uma distribuição igualitária e os que eles efetivamente possuem, ou

seja, “é a diferença entre os recursos que ela tem e os que teria adquirido em um

leilão equânime, originário de um parâmetro justo153”. Por sua vez, o defit de

liberdade consiste nos aspectos em que o indivíduo, em termos de liberdade, está

153“A person’s resource deficit is the difference between the resources he has and those he would have acquired in an egalitarian auction from a fair baseline”. DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 165.

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“em situação pior, além dos aspectos captados em seu deficit de recursos, porque

o sistema de liberdade/restrições de sua comunidade não é o que a igualdade de

recursos requer154”.

Segundo DWORKIN, o deficit de recursos pode ser facilmente

quantificado, vez que consiste na diferença aritmética entre os recursos que um

indivíduo possuiria em uma comunidade em que o ideal da igualdade de

recursos se concretizou, e os que efetivamente possui no mundo desigual. No

entanto, o fato de uma comunidade não ter desenvolvido plenamente a igualdade

de recursos traz conseqüências ao sistema de liberdades/restrições que será por

ela adotado155. Sem embargo, em uma comunidade desigual, não será possível a

formação autentica das preferências individuais, bem como serão necessárias a

imposição de maiores restrições ao uso da propriedade156. Existe, no entanto, um

problema a ser enfrentado: é possível quantificar o deficit de liberdade? Para o

filósofo norte-americano “duas restrições à liberdade são incomensuráveis, e não

idênticas, e essa incomensurabilidade (...) às vezes tornará também

incomensuráveis os deficits de recursos 157”.

Isso significa que a igualdade de recursos não endossa qualquer restrição à

liberdade pelo simples fato de se produzir uma distribuição mais igualitária, ou,

para se utilizar os termos utilizados por DWORKIN, não é qualquer correção na

liberdade de escolha que será admitida pelo princípio da abstração. A teoria

dworkiniana se mostra, nesse ponto, extremamente liberal, eis que impõe

154 A person’s liberty deficit, on the other hand, consists in the respects in which he is worse-off, in addition to the respects captured in his resource deficit, because the liberty/constraint system of his community is not what equality of resources requires”. DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 165. 155 Para DWORKIN, quanto mais igualitária a comunidade, ou seja, quanto mais ela se aproximar da distribuição recomendada pela igualdade de recursos, com maior efetividade se desenvolverá o princípio da abstração, no sentido de que a liberdade para uso da propriedade será maior, e as restrições se limitarão a questões de segurança e proteção da própria propriedade, eis que qualquer outra restrição que vise atingir à distribuição igualitária se fará desnecessária. 156 Vale lembrar que essas restrições são aceitas pelo princípio da abstração se tiverem como conseqüências uma distribuição mais igualitária dos recursos (princípio da correção) 157 “Two liberty deficits are incommensurate rather than identical, and that incommensurability, (...) will sometimes make overall equity incommensurate as well” . Idem. Ibidem. p. 167.

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condições especiais para o sacrifício da liberdade: trata-se, como dito, de uma

teoria da igualdade que se mostra, ao mesmo tempo, como uma defesa da

própria liberdade, uma vez que qualquer distribuição que se mostre “defensável”

sob a ótica da igualdade de recursos não poderia, em tese, endossar restrições

que seriam reprovadas pelo princípio da abstração.

Mas será que em uma comunidade desigual as restrições à liberdade

seriam aceitas como um instrumento para a comunidade alcançar a igualdade de

recursos ou, ao menos, para se aproximar de uma distribuição mais justa? A

resposta de DWORKIN a essa questão não é clara, mas parece apontar para uma

aceitação de limitação de certas liberdades, desde que estas não sejam

fundamentais. Assim, ao mesmo tempo que o filósofo norte-americano sustenta

que “não se pode conceder a igualdade por intermédio de insultos à

liberdade158”, reconhece que a melhoria de uma comunidade desigual deve-se

dar mediante a adoção de uma política distributiva defensável, significando esta

um programa de reformas políticas que preveja restrições que não são

encontradas no plano ideal, mas que, no entanto, não ofendam ao princípio da

abstração em sua essência.

2.4. A CRÍTICA DE AMARTYA SEN AO LIBERALISMO

DWORKINIANO

A liberdade é concebida no pensamento dworkiniano como um direito que

não conflita com a igualdade, mas antes o complementa. Trata-se de um traço

característico das teorias igualitárias que têm uma raiz comum: a teoria da

justiça rawlsiana. Sem dúvida, a Teoria da Justiça de RAWLS “é, em essência,

uma proposta de equilíbrio entre as exigências de valores políticos como a

158 “Liberty, it insists, demands nothing but the freedom of genuine equality, and equality cannot be served by any outrage to liberty”. DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 176.

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liberdade, a igualdade, a fraternidade e a eficiência, que são conflitantes mesmo

dentro da tradição política na qual esses valores têm uma saliência maior159”.

Nesse diapasão, deve-se ressaltar que tanto a teoria dworkiniana, quanto a

teoria capability-based de SEN não constituem uma teoria da justiça

independente, mas sim enfoques diferentes de uma tradição da filosofia política

que se iniciou com a justiça rawlsiana. Trata-se, portanto, de uma “briga em

família”, para utilizar as palavras de VITA160.

O enfoque igualitário de SEN consiste no que ele denomina de

“capacidades” (capabilities). Para desenvolver esse conceito, SEN parte da

idéias de que uma pessoa, em seu viver, necessita da realização de

“funcionamentos” (functionings), que consistem:

desde coisas elementares, como estar nutrido adequadamente, estar em boa saúde, livre de doenças que podem ser evitadas e da morte prematura etc., até realizações mais complexas, tais como ser feliz, ter respeito próprio, tomar parte na vida da comunidade, e assim por diante161.

Relacionada com a noção de “funcionamentos”, mas diversa desta, está a

“capacidade para realizar funcionamentos” (capability to function), que consiste

na habilidade, concreta, que uma pessoa tem para concretizar os functionings de

que necessita para realizar o tipo de vida a que escolheu para si. Assim, “a

capacidade é (...) um conjunto de funcionamentos, refletindo a liberdade da

pessoa para levar um tipo de vida ou outro162”. Por sua vez, a liberdade que um

indivíduo possui para escolher dentre as vidas possíveis constitui o seu conjunto

capacitário, de modo que SEN distingue entre a capacidade que uma pessoa

possui para realizar certos “funcionamentos”, a efetiva realização dos mesmos, e

a liberdade que o indivíduo tem para escolher quais “funcionamentos” ela quer

159 VITA. O liberalismo..., op. cit., p. 92. 160 Idem. Ibidem. p. 91. 161 SEN. Desigualdade..., op. cit., p. 79. 162 Idem. Ibidem. p. 80.

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concretizar, em consonância com o estilo de vida escolhido. Essa distinção é

crucial para o entendimento da teoria de SEN.

Com efeito, os functionings realizados pelo indivíduo constituem o seu

bem-estar163, eis que os functionings são considerados elementos constitutivos

do próprio bem-estar individual. Nesse contexto, “a capacidade reflete a

liberdade para buscar esses elementos constitutivos e pode até ter (...) um papel

direto no próprio bem-estar, na medida em que decidir e escolher também são

partes do viver164”.

A liberdade, assim, está diretamente relacionada com a capacidade, uma

vez que, representando a “habilidade” que uma pessoa tem para realizar

functionings, ela “representa a liberdade de uma pessoa para realizar bem-

estar165”. Não se pode, argumenta SEN, conferir à liberdade um caráter

meramente instrumental. Ou seja, a capacidade, enquanto reflexo da liberdade,

não significa meramente uma possibilidade de realização de “funcionamentos”,

mas sim a efetiva concretização dos mesmos, com liberdade de escolha. A

métrica da igualdade, para SEN, é o reflexo do conjunto capacitário de uma

pessoa, devendo abranger tanto a capacidade para funcionar, ou seja, a

capacidade para realizar certos “funcionamentos”, bem como os functionings

que o indivíduo optou por concretizar, à luz do estilo de vida que escolheu para

si166.

Assim, por exemplo, haverá ofensa à igualdade se um indivíduo estiver

passando fome porque não teve a opção de realizar o funcionamento “estar bem

nutrido”, mas o mesmo não ocorre para aquele que passa fome porque escolheu

estar nessa situação por conta de um culto religioso, uma vez que na segunda 163 DWORKIN, ao expor a teoria de Amartya Sen no Capítulo 07 de “Sovereign Virtue”, assevera que, pelo fato de SEN se referir constantemente a “bem-estar” em sua exposição teórica, pode-se interpretar a sua teoria igualitária como que endossando a igualdade de bem-estar. Todavia, entende o filósofo norte-americano que esta não é a melhor interpretação a ser conferida à teoria de SEN, conforme veremos. 164 SEN. Desigualdade..., op. cit., p. 82. 165 Idem. Ibidem. p. 89. 166 Idem. Ibidem. pp.89-92.

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situação o indivíduo, possuindo capacidade para funcionar e liberdade de

escolha, optou por jejuar, como forma de concretizar o seu bem-estar.

Com o foco, portanto, na capacidade, SEN critica as teorias igualitárias

baseadas em “recursos”, notadamente, a teoria da igualdade de recursos

dworkiniana e a justiça como equidade de RAWLS, que busca igualar as

pessoas no acesso a “bens primários” (primary goods), os quais constituem “as

bases das expectativas” (the basis of expectations167). Com efeito, os bens

primários constituem “coisas que são supostas que um indivíduo racional deseja,

não importando mais o que ele deseja168”. São, nesse sentido, bens que estão

relacionados com a realização dos planos individuais, e que devem ser

garantidos de acordo com o que determina o princípio da diferença: somente se

permite que um indivíduo representativo em uma posição social superior tenha

mais bens primários se, com isso, melhorar a situação dos que estão em uma

posição social inferior.

Existe, todavia, na teoria rawlsiana, uma sensibilidade com relação às

diferenças “naturais”, ou seja, concernentes às circunstancias pessoais. Com

efeito, afirma RAWLS, no §17 de “A Theory of Justice”, que o princípio da

diferença confere importância para a concretização do subprincípio da

“reparação” (principle of redress), o que estipula que “as desigualdades

imerecidas exigem reparação; e, uma vez que desigualdades de nascimento e

talento natural são imerecidas, essas desigualdades devem ser compensadas de

alguma maneira169”. Assim, considerando que as desigualdades provenientes da

natureza são consideradas por RAWLS como meros “fatos naturais”, e que a

justiça está relacionada não com esses fatos, mas sim com a forma como as

instituições sociais reagirão aos mesmos, resta claro que uma sociedade,

167 RAWLS. A Theory..., op. cit., pp. 78 e ss. 168“(…) are things which it is supposed a rational man wants whatever else he wants”. Idem. Ibidem. p. 79. 169 “(...) undeserved inequalities call for redress; and since inequalities of birth and natural endowment are undeserved, the inequalities are to be somehow compensated for”. Idem. Ibidem. p. 86.

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compreendida como um esquema de mútua cooperação, deve primar pela

compensação das desigualdades naturais170.

Nesse contexto, RAWLS afirma que o princípio da diferença não deve ser

interpretado como uma defesa de uma sociedade meritocrática. Pelo contrário, o

valor insculpido no princípio da diferença é a fraternidade, representando a

“idéia de não desejar possuir grandes vantagens a não ser que isso leve ao

benefício dos que estão em uma situação inferior171”.

Partindo dessa noção, DWORKIN, de acordo com o exposto tanto no

Capítulo 01, quanto no presente Capítulo, desenvolveu sua complexa teoria da

igualdade de recursos, a qual enfatiza a existência de duas espécies de recursos:

os recursos imateriais, os quais estão relacionados com a personalidade, e os

recursos materiais, que são externos ao indivíduo e, assim, passíveis de permuta.

Garantindo o acesso a liberdades fundamentais, garantido pelo princípio da

abstração, e pelos subprincípios da correção, da segurança e da autenticidade,

DWORKIN elabora o esquema do seguro hipotético, com o intuito de

compensar, com bens materiais, as desigualdades provenientes de bens

imateriais.

Tanto a teoria rawlsiana, quanto a dworkiniana, são sensíveis à

compensação das desigualdades provenientes de acontecimentos fortuitos, como

os talentos e as deficiências, por intermédio de bens materiais. Todavia, critica

SEN, sendo os recursos (DWORKIN) ou bens primários (RAWLS) meios para

atingir a liberdade, “a conversão destes bens primários e recursos em liberdade

de escolha (...) pode variar de pessoa para pessoa”, de modo que “a igualdade de

parcelas de bens primários ou de recursos pode seguir lado a lado com sérias

desigualdades nas liberdades reais desfrutadas por diferentes pessoas172”.

170 RAWLS. A Theory…, op. cit., pp.89-90. 171 “(...) to the idea of not wanting to have greater advantages unless this is to the benefit of others who are less well off”. Idem. Ibidem. p. 90. 172 SEN, op. cit., p. 136.

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Assim, para utilizar a terminologia de SEN, não basta que os indivíduos sejam

igualados em recursos, ou mesmo que as desigualdades sejam compensadas por

recursos materiais, eis que a promoção da liberdade se dá com a “capacidade de

uma pessoa para realizar várias combinações alternativas de funcionamentos173”.

As teorias igualitárias baseadas em bens primários ou recursos, portanto,

visam igualar as pessoas nos meios que elas possuem para realizar os seus fins

ou objetivos pessoais, mas são insensíveis, para SEN, com relação às “variações

interindividuais”, já que as pessoas não possuem as mesmas capacidades para

converter os recursos em liberdade. Uma verdadeira teoria igualitária, nesse

diapasão, deve igualar as pessoas em liberdade, o que exige não apenas conferir

os meios para a concretização dos “funcionamentos”, como também buscar a

igualdade nos resultados, ou seja, nas functionings concretizadas, sob pena de

privar os indivíduos menos capacitados de liberdade de escolha174.

2.4.1. A RESPOSTA DE DWORKIN

A crítica de SEN consiste, assim, no fato de a igualdade de recursos não

acarretar, necessariamente, igualdade na realização da liberdade. O foco na

capacidade e, por conseguinte, na concretização dos “funcionamentos”, com

liberdade de escolha, seria mais sensível às variações interindividuais e,

portanto, concentra-se “na liberdade efetiva de escolher entre os diferentes tipos

de vida que os indivíduos têm razões para valorizar175”. Para DWORKIN, no

entanto, as críticas de SEN não afeta os principais conceitos em que se

fundamenta a igualdade de recursos.

Com efeito, a maior preocupação de DWORKIN, ao utilizar como os

recursos como equalisandum, foi conferir um parâmetro objetivo para o

173 SEN, op. cit, p. 136. 174 Idem. Ibidem. p. 143. 175 VITA. O liberalismo…, op. cit., p. 108.

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princípio igualitário, e, ainda, construir uma doutrina que fosse sensível à

responsabilidade individual e insensível às circunstâncias. Nesse ponto, a teoria

capability-based de SEN pode ser interpretada de duas formas distintas.

Primeiramente, conforme o próprio SEN afirma, a efetivação das

functionings , com liberdade de escolha, garante a “liberdade de bem-estar176”.

Ora, se se interpretar o “bem-estar” como algum estado emotivo, tal como a

felicidade, a teoria de SEN estará impregnada com o mesmo subjetivismo que

todas as demais teorias igualitárias do bem-estar e, portanto, tudo o que foi dito

no Capítulo 01 acerca da igualdade de bem-estar servirá para a teoria de SEN. O

foco de SEN nas capacidades, no entanto, pode ser compreendido de outra

forma, conforme assevera DWORKIN:

O governo deve esforçar-se em assegurar que nenhuma diferença no grau em que as pessoas não são igualmente capazes de realizar felicidade e outras realizações “complexas” devem ser atribuíveis a diferenças em suas escolhas e personalidade e escolhas e personalidade de outras pessoas, não a diferenças em recursos pessoais e impessoais que possuem. Se nós entendermos a igualdade de capacidade dessa forma, ela não é uma alternativa à igualdade de recursos, mas apenas o mesmo ideal exposto em outra terminologia177.

Embora DWORKIN interprete o ideal da igualdade de capacidades de

forma a compatibilizá-lo com a igualdade de recursos, há de se reconhecer que

não foi essa a intenção de SEN. De fato, existe uma peculiaridade na teoria de

SEN que deve ser considerada: a sensibilidade às diferenças interpessoais.

Talvez por ser um teórico com origem em um país em desenvolvimento (Índia),

o economista demonstra uma preocupação com os aspectos físicos e biológicos

da desigualdade, eis que, para a realidade em que desenvolveu sua teoria, esse

176 SEN, op. cit., p. 80. 177 “Government should strive to insure that any differences in the degree to which people are no equally capable of realizing happiness and the other “complex” achievements should be attributable to differences in their choices and personality and the choices and personality of other people, not to differences in the personal and impersonal resources they command. If we do understand equality of capabilities in that way, it is not an alternative to equality of resources but only that same ideal set out in a different vocabulary”. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 303.

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fato é deveras importante. Por sua vez, tanto DWORKIN, quanto RAWLS,

observam realidades muito diferentes, nas quais as diferenças recursais são o

grande fator de desigualdade. Assim, nesse aspecto, a crítica de SEN mostra-se

relevante: não é apenas o aspecto econômico (ou recursal) da igualdade que

importa, havendo outros fatores que também influenciam na determinação

normativa do princípio igualitário abstrato.

No entanto, a essência da teoria dworkiniana da igualdade de recursos não

é afetada pela crítica de SEN. Pelo contrário, o enfoque das capacidades deve

ser visto como um refinamento necessário para a igualdade de recursos. Na

minha opinião, as diferenças nos conjuntos capacitários, ou seja, na capacidade

de realizar functionings leva a uma mitigação no princípio da responsabilidade

individual. Fatores que alteram a capacidade, como a pobreza e a subnutrição,

podem alterar de forma consideravel a liberdade de escolha dos indivíduos,

levando-os a utilizar o seu conjunto recursal de uma forma diversa do que faria

se tivesse no pleno gozo de sua capacidade. Nessa situação, o princípio pelo

qual “cada um deve pagar o preço pelas decisões que tomou no decorrer da

vida” deve ser balizado com o deficit capacitário do indivíduo, de modo a dar

mais relevância para outros princípios, também caros ao liberalismo, como o do

valor intrínseco da pessoa humana.

Equivoca-se SEN, no entanto, ao sustentar que a igualdade de recursos

dworkiniana preocupa-se meramente com os meios para a concretização da

liberdade, deixando de lado a questão da efetiva realização da liberdade em si.

Conforme exposto, a defesa dworkiniana da igualdade representa, também, uma

defesa da liberdade,visto que DWORKIN pretende reconciliar esses dois ideais

políticos. Embora o filósofo norte-americano reconheça que se houver um

conflito genuíno entre a igualdade e a liberdade, esta deverá ceder àquela, ele, ao

mesmo tempo, constrói uma teoria igualitária em que a liberdade não apenas não

conflita com a igualdade mas, antes, é o pressuposto desta.

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Somente com a garantia de certas liberdades fundamentais é que a

igualdade de recursos poderá se concretizar, uma vez que a manutenção da

justeza da distribuição recursal feita no leilão hipotético exige um sistema de

liberdades e restrições. Assim, tanto é verdade que os recursos são, na teoria

dworkiniana, um meio para a liberdade, como também o é que a liberdade faz-se

necessária para a garantia da igualdade.

Uma vez garantida a liberdade, e, ainda, distribuída de forma equânime os

recursos sociais, os indivíduos poderão escolher e realizar o tipo de vida que

desejam. Essa questão, no entanto, relaciona-se com o tema do viver bem, e será

tratado no próximo Capítulo.

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CAPÍTULO III

COMUNIDADE E ÉTICA

NO PENSAMENTO DWORKINIANO

O liberalismo igualitário dworkiniano baseia-se em três conceitos

fundamentais: i) no entendimento de que a igualdade deve ser mensurada a

partir dos recursos que cada um possui no decorrer de sua vida; ii) na concepção

da liberdade como valor complementar à igualdade; e iii) no conceito de

comunidade liberal. Este último é, sem dúvida, um conceito fundamental na

teoria política de DWORKIN. Isso porque é possível identificar, na forma como

o autor norte-americano concebe a comunidade liberal, a incorporação de muitas

críticas feitas pela corrente comunitarista aos liberais, e ainda, o reconhecimento

de que o liberalismo não pode ignorar certos valores comunitários. Para a

compreensão do aspecto sui generis com que DWORKIN desenvolve seu

conceito de comunidade liberal, faz-se necessária a exposição de alguns

argumentos utilizados por CHARLES TAYLOR acerca do debate existente

entre liberais e comunitaristas.

Segundo TAYLOR, tanto liberais quanto comunitaristas possuem

“diferenças genuínas”, bem como “propósitos entrelaçados178”. Com efeito,

existem aspectos teóricos coincidentes entre os defensores de ambas as

correntes, mas há uma nota diferencial que divide o debate, qual seja, a visão

acerca da neutralidade moral: enquanto os autores liberais defendem a

neutralidade da autoridade estatal com relação às concepções de boa-vida, os

comunitaristas entendem que a tolerância liberal ameaça certos valores

essenciais à vida comunitária. Cumpre salientar, todavia, que autores de ambas

178 TAYLOR. Argumentos..., op. cit., p. 197.

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as correntes utilizam argumentos e paradigmas diferentes para defender a

neutralidade (ou o perfeccionismo) moral.

Para uma compreensão ordenada das razões expostas por ambas as

correntes, TAYLOR distingue dois argumentos de espécies diferentes, aos quais

denomina de questões ontológicas e com questões de defesa. Sob o prisma

ontológico, ou seja, da explicação das coisas reais e da deliberação, TAYLOR

identifica autores que defendem a primazia da parte sobre o todo (atomismo)

daqueles que sustentam que o todo deve ser valorizado em detrimento das partes

(holismo)179. Já com relação às questões de defesa, que dizem respeito às

escolhas que devem (ou não) ser realizadas pelos indivíduos, o dualismo diz

respeitos àqueles que priorizam o indivíduo à comunidade (individualistas), e os

coletivistas, que defendem a primazia da vida comunitária com relação ao

indivíduo180.

TAYLOR assevera, ainda, que as questões ontológicas e as questões de

defesa não possuem uma relação de determinação, ou seja, um autor pode

defender uma posição ontológica atomista e sustentar questões de defesa

coletivistas, da mesma forma que é possível um autor individualista ter um

campo de visão da comunidade holista. Essa distinção entre questões ontológica

e questões de defesa será importante para o entendimento da comunidade liberal

dworkiniana, visto que o autor em análise utiliza um paradigma holista mas

desenvolve uma doutrina individualista181.

O presente capítulo, assim, será desenvolvido a partir dos argumentos

comunitaristas contra a tolerância liberal, para posteriormente demonstrar a

forma como DWORKIN aproveita esses argumentos e constrói a sua defesa do

republicanismo cívico liberal, relacionando a tolerância liberal com a questão da

179 TAYLOR, op. cit., p. 197. 180 Idem. Ibidem. p. 199 e ss. 181 Devo essa relação entre holismo e individualismo na teoria de Dworkin às aulas do Professor Cícero Araújo no curso de Filosofia e Teoria do Direito na Sociedade Brasileira de Direito Público.

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boa-vida para, ao final, analisar os dois princípios éticos que fundamentam a

teoria política dworkiniana.

3.1. OS ARGUMENTOS PELO PERFECCIONISMO MORAL

A doutrina liberal, em especial a desenvolvida no período pós-guerra,

possui um traço comum: a neutralidade moral. Mas o que se entende por

neutralidade moral? Segundo RICHARD BELLAMY, a neutralidade defendida

tanto pelos liberais neoconservadores de direita, como NOZICK ou HAYEK,

quanto pelos igualitaristas, em especial DWORKIN e RAWLS, significa que “a

única doutrina aceitável é aquela que considera, com imparcialidade, os valores

e projetos de pessoas diferentes182”.

Considerando de forma detida o desenvolvimento da doutrina liberal nos

pensamentos de RAWLS e DWORKIN, verifica-se que ambos partem de um

paradigma comum, a saber, o construtivismo. Define RAWLS que “o

construtivismo político é uma perspectiva sobre a estrutura e o conteúdo de uma

concepção política183”, que visa à construção dos princípios políticos

fundamentais que irão definir a estrutura básica da sociedade184. Trata-se,

portanto, de um instrumento teórico para a elaboração de valores políticos que

não tem por objetivo a identificação de valores absolutos, ou se consolidar como

doutrina abrangente, mas antes construir uma base comum valorativa (common

ground) na sociedade, a partir da qual serão desenvolvidas as concepções de

bem no seio social. A neutralidade da doutrina construtivista é evidente, pois

“tenta evitar a oposição com qualquer doutrina abrangente185”.

182 BELLAMY, Richard. Liberalismo e Sociedade Moderna. Tradução: Magda Lopes. São Paulo: Unesp,1994, p. 385. 183 RAWLS, John. O Liberalismo Político. Lisboa: Presença, 1997, p. 105. 184 Ao se referir a “estrutura básica da sociedade” RAWLS se refere à forma como as instituições (ou seja, a Constituição Política, e os arranjos sociais e econômicos) distribuem os direitos fundamentais e os deveres sociais, bem como determina a divisão das vantagens obtidas com a cooperação social. CF. RAWLS. A Theory..., op. cit.. p. 06. 185 RAWLS. O liberalismo..., op. cit., p. 109.

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O construtivismo é, sem dúvida, o arcabouço teórico com que DWORKIN

desenvolve a sua teoria política, ficando explicita a sua neutralidade sobre as

concepções de bem em diversos escritos, em especial na construção dos dois

princípios constitutivos da dignidade humana em seu último livro186. Os

principais argumentos de DWORKIN em defesa da tolerância liberal

encontram-se um artigo denominado “Liberal Community”, publicado em 1991

na “University of California Law Review, e que atualmente integra o Capítulo

05 do livro “Sovereign Virtue”. Nesse artigo o autor norte-americano expõe os

argumentos de quatro correntes comunitaristas que defendem a homogeneidade

moral e os refuta, mostrando como a tolerância liberal, à luz de sua teoria da

igualdade de recursos, é indispensável para a compreensão da sociedade norte-

americana187.

3.1.1. O ARGUMENTO MAJORITÁRIO

A primeira corrente comunitarista que DWORKIN analisa é a que

defende que a moralidade de uma determinada comunidade deve ser elaborada a

partir da vontade da maioria. Assim, havendo discordância substancial na

comunidade, esse conflito deverá ser resolvido de acordo com a vontade

majoritária, utilizando o critério “o vencedor leva tudo” (winner-take-all), já que

a decisão coletiva determinará que um valor ético, endossado pela maioria, seja

escolhido em detrimento de outro valor, defendido pela minoria188.

Mas será justo deixar com que a vontade da maioria imponha um valor

moral a uma minoria? DWORKIN considera injusta tal imposição, e demonstra

o erro em que incorre a doutrina majoritária a partir de sua argumentação sobre a

justiça distributiva. Segundo o autor norte-americano, a idéia fundamental da

186 Vide. DWORKIN, Ronald. Is democracy…, op. cit.. pp. 09 e ss. 187 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 211. 188 Idem. Ibidem. p. 213.

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igualdade, independentemente da doutrina adotada, é a de que os indivíduos

devem ter uma parcela justa de influência na decisão política que decide sobre a

distribuição dos recursos sociais. Se considerarmos a igualdade de recursos, a

argumentação a partir do leilão igualitário expressa exatamente esta

preocupação189. A questão que se coloca, então, é se este raciocínio, que tem por

base a esfera econômica da sociedade pode ser aplicado na esfera ética.

DWORKIN entende positivamente, defendendo, inclusive, que as esferas

econômica e ética da comunidade não são plenamente independentes, visto que

se influenciam mutuamente. Nesse diapasão, o critério de justiça, que determina

que seja reservada igual parcela de influência dos indivíduos na questão da

distribuição dos bens sociais, pode ser adaptado para a esfera ética, no sentido

de que os indivíduos devem ter uma justa interferência na determinação dos

valores sociais, o que fere de morte a essência da premissa majoritária190.

A premissa majoritária, todavia, não é totalmente descartada por

DWORKIN, uma vez que os defensores dessa corrente desenvolvem um

importante conceito que é apropriado pelo autor norte-americano: a concepção

de que a comunidade possui um ambiente ético. Com efeito, o erro do

argumento majoritário não reside na idéia de que a comunidade possui certos

princípios éticos que permeiam o todo social, mas sim no fato de conferir à

maioria o poder de decidir, de forma absoluta, quais valores deverão prevalecer

na comunidade. O que a concepção liberal de DWORKIN refuta é, assim, a

possibilidade de imposição de certos valores pela maioria, e não a existência de

um “ambiente ético” na comunidade.

3.1.2. O ARGUMENTO PATERNALISTA

O segundo argumento comunitarista contra a tolerância liberal se baseia

em uma visão paterinalista da comunidade, e constitui, segundo DWORKIN, 189 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p.214. 190 Idem. Ibidem. p. 215.

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uma corrente comunitária que coloca o todo social em uma posição ativa na

conformação do bem-estar dos indivíduos da comunidade191. Existem, todavia,

duas formas de interesses que influenciam o a formação da personalidade

individual.

O primeiro conjunto de interesses pode ser denominado “interesses

volitivos”, e se caracterizam por serem interesses que, embora façam parte da

personalidade, não são qualificados como interesses que realmente acrescentam

algo que possa ser objetivamente valorado como essencial para a vida da pessoa.

Trata-se, na verdade, de meras preferências pessoais, mas que não gozam de

importância coletiva, como por exemplo, gostar de futebol, torcer para

determinado time, querer desenvolver determinada aptidão física, etc. Em

contraposição aos interesses volitivos, encontram-se os interesses críticos, que,

ao contrário daqueles, são efetivamente reconhecidos como interesses que

influenciam, de forma objetiva, na forma como o indivíduo avaliará a sua

vida192. Os interesses críticos são, sem dúvida, valores enraizados no seio da

comunidade, como por exemplo o amor pelo filho, a importância da esfera

religiosa na vida pessoal, etc. Assim, a título exemplificativo, se o Brasil ganha

uma Copa do Mundo, um brasileiro pode dizer que um interesse pessoal foi

atendido, mas nem por isso poderá afirmar que sua vida tem mais valor só por

causa desse fato. Agora, se este mesmo brasileiro conseguir resolver uma

divergência familiar e se aproximar de sua filha, esse fato, por si só, pode ser

considerado um avanço valorativo em sua vida.

Nesse contexto, o argumento paternalista pressupõe que o Estado tem o

dever de impor determinados valores críticos aos indivíduos, que, por sua

vez, têm o dever de aceitá-los, para que suas vidas tenham mais valor. A

homogeneidade moral é vista, assim, como um avanço social, já que certas

191 DWORKIN. Sovereign..., op. cit, p. 216. 192 Idem. Ibidem. p. 216-217.

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condutas indesejadas são expurgadas da comunidade. O problema, no entanto,

está na natureza da aceitação desses valores pelo indivíduo. DWORKIN sustenta

que os valores críticos são, sem dúvida, fundamentais para a ética individual,

mas que eles devem, todavia, serem aceitos de forma reflexiva193, ou seja, o

consentimento com esses valores devem ser resultados da escolha individual, e

não uma imposição através da força. Nesse sentido, o argumento paternalista, ao

defender o uso da máquina do Estado, e.g., o Direito Penal, para impor certos

valores, é auto-destrutivo194, haja visto que, ante a pretensão de fazer com que a

comunidade adote certos valores críticos, viola um princípio ético que é basilar,

a saber, o princípio da responsabilidade individual, segundo o qual os indivíduos

devem ser livres para escolher ao rumos de sua vida, e isso inclui os valores que

orientarão as suas escolhas pessoais.

Novamente, ao refutar o argumento paternalista, DWORKIN reconhece

mais um aspecto importante na doutrina comunitarista que não deverá ser

ignorado pelas doutrinas liberais, a saber, a existência de valores críticos que

deverão fundamentar a moralidade comunitária, ressaltando, todavia, que esses

valores deverão se coadunar com a tolerância liberal e com a responsabilidade

individual.

3.1.3. O ARGUMENTO DO INTERESSE PESSOAL

O terceiro argumento comunitarista analisado por DWORKIN sustenta

que a tolerância liberal “faz com que as comunidades sejam menos capazes de

servir às várias necessidades sociais de seus membros195” . A atratividade da tese

do interesse pessoal está relacionada com o argumento segundo o qual a

193 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 218. 194 Nesse sentido. KYMLICKA. Filosofia política..., op. cit., p. 260. 195“makes communities less able to serve their members’various social needs.” DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 218.

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tolerância liberal faz com que a comunidade não seja capaz de atender às

necessidades intelectuais dos cidadãos.

Pressupõe-se, assim, que a identificação de um indivíduo com a

comunidade depende de certos fatores (ou necessidades) intelectuais, como a

língua e a cultura, que exercem um papel fundamental na auto-identificação do

indivíduo enquanto ser humano196. Nesse contexto, a homogeneização moral

exerceria a função exatamente de atuar nessa esfera de conexão do indivíduo

com a comunidade. Para exemplificar tal situação, DWORKIN utiliza a imagem

de uma pessoa que é católica fervorosa e que possui como traço fundamental de

sua personalidade os valores católicos, de modo que a sua identificação

enquanto indivíduo está genuinamente relacionada com a comunidade

católica197.

Todavia, DWORKIN questiona se a moralidade que uma determinada

comunidade política compartilha tenha realmente essa ligação profunda com a

moralidade pessoal. Pelo contrário, o autor norte-americano diz que a mudança

de certos princípios da moral social não irá afetar as crenças pessoais de um

indivíduo de forma tão profunda, de modo que, por exemplo, um indivíduo

católico não deixará de acreditar nos dogmas de sua religião somente porque

uma comunidade passa a adotar uma política de tolerância sexual. Outrossim,

DWORKIN acha implausível esse efeito devastador sobre a personalidade que

esse argumento pretende atribuir à moralidade de uma comunidade, já que é

possível que uma pessoa reflita sobre as mudanças dos paradigmas morais que

ocorreram na comunidade, e as aceite (ou rejeite) de forma racional, sem que

isso abale a sua personalidade ou sua auto-identificação198.

DWORKIN, assim, considera que o argumento do interesse pessoal traz à

tona uma premissa ética fundamental: a de que certos valores éticos são 196 DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 219-220. 197 Idem. Ibidem. p. 220. 198 Idem. Ibidem. pp. 219-221.

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importantes para a auto-identificação do indivíduo com a comunidade, bem

como devem servir de “ancora” para o desenvolvimento de uma atitude crítica

na escolha dos preceitos morais. Todavia, e aqui reside o equívoco no

argumento ora em análise, o desenvolvimento dessa atitude crítica não

pressupõe a homogeneidade moral, mas, pelo contrário, pode se desenvolver de

forma muito mais rica em um ambiente de pluralidade moral199.

3.1.4. O ARGUMENTO DO COMUNISTARISMO REPUBLICANO CÍVICO

O quarto argumento comunitarista analisado por DWORKIN é, sem

dúvida, o mais forte e atraente argumento contra a tolerância liberal. O

Comunitarismo Republicano Cívico (conforme denominação proposta por

DWORKIN) parte da seguinte assertiva: a distinção entre o bem-estar individual

e o bem-estar comunitário é equivocada. Propõe, em contrapartida, que a vida

dos indivíduos e a da comunidade como um todo são integradas, de modo que o

bem-estar de uma e de outra tem uma interdependência recíproca. Os

defensores desse argumento, portanto, “adotam a mesma atitude com relação à

saúde moral e ética da comunidade e à sua própria200” . Sem dúvida, essa forma

de comunitarismo integrativo é particularmente importante para o pensamento

político dworkiniano, já que é a partir do mesmo que DWORKIN desenvolve a

sua concepção liberal de comunidade. Isso porque o filósofo norte-americano

parte do princípio de que a principal premissa do Comunitarismo Republicano

Cívico está correta, qual seja, a de que a comunidade tem, de fato, uma “vida

comunitária” (communal life), e que o sucesso ou insucesso da mesma

determina o bem-estar dos indivíduos que a compõem.

199 DWORKIN. Sovereign…, op. cit.,pp. 221-222. 200 “take the same attitude toward the moral and ethical health of the community as they do toward their own.” Idem. Ibidem. p. 223.

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Mas o que seria a vida comunitária? Cumpre instar, em primeiro lugar,

que o argumento da integração não parte do princípio de que os indivíduos são

altruístas e de que atuam socialmente em prol do bem comum tendo em vista o

interesse alheio. Pelo contrário, trata-se de uma concepção egoísta, no sentido de

que os indivíduos visam, primeiramente, o seu bem-estar, e, visando atingir o

sucesso individual, acabam por atuar também em prol da comunidade, vez que,

conforme dito, o sucesso de um e de outro estão interligados201. Há, todavia,

uma peculiaridade na ação individual em uma comunidade integrada: os atos

individuais não devem ser considerados separadamente, mas sim como

pertencentes a um todo complexo, de forma que a avaliação da responsabilidade

de cada ato deve ser analisada holisticamente, considerando os efeitos do mesmo

perante a comunidade.

A lógica, na comunidade integrada, não deve partir do indivíduo para a

comunidade, mas do todo para o indivíduo, sendo que a coletividade prevalece

sobre o individual. É necessário, no entanto, salientar que, ontologicamente, a

comunidade não é vista como um ente metafísico que é, em si, mais importante

que o indivíduo. Com efeito, a prevalência da comunidade sobre o indivíduo

decorre de uma questão fática, ou seja, das atitudes e práticas observadas na

sociedade, e não de uma suposta natureza superior da comunidade202. Ademais,

são exatamente esses atos e atitudes que se desenvolvem, de forma consciente e

cooperativa, em prol do objetivo comum que forma a “vida comunitária”.

Analogicamente, da mesma forma que as atitudes individuais formam a vida da

comunitária, os atos formais dos entes políticos constituem a “vida política da

comunidade”.

O argumento da integração possui, de fato, o mérito de fazer a importante

distinção entre “vida comunitária da comunidade” e “vida política da

201I DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 224. 202 Idem. Ibidem. p. 226.

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comunidade”. Erra, todavia, na limitação a ser dada a esses dois conceitos.

Segundo DWORKIN, o equívoco está na visão antropomórfica em que o

Republicanismo Cívico Comunitário incide, ao sustentar que a vida comunitária

abarca todos os aspectos da vida humana203. Conforme veremos, DWORKIN

constrói a sua concepção de comunidade liberal utilizando muitos aspectos do

argumento da integração, mas impondo os devidos limites aos conceitos de vida

comunitária da comunidade e vida política da comunidade.

3.2. O REPUBLICANISMO CÍVICO LIBERAL DE DWORKIN: A

COMUNIDADE LIBERAL.

Conforme dito na introdução do Capítulo, embora o pensamento político

de DWORKIN possa ser considerado liberal, ele não parte de uma percepção

ontológica atomista da comunidade. Pelo contrário, a sua concepção de

comunidade liberal é construída a partir das críticas comunitaristas, procurando

incorporar os valores comunitários que se coadunam com os preceitos liberais.

Isso faz com que ele tenha uma percepção holista da comunidade, no sentido de

reconhecer importância ética do reconhecimento da integração política proposta

pelos Comunitaristas Republicanos Cívicos. É nesse contexto que DWORKIN

afirma que “embora os liberais não tenham dado ênfase à importância ética da

integração, o reconhecimento da sua importância não ameaça, mas antes abarca

os princípios liberais204”.

Como, então, conciliar os princípios liberais, em especial a neutralidade

sobre as concepções de boa-vida, com o argumento da integração política da

comunidade? Para DWORKIN, os argumentos comunitaristas anteriormente

analisados contêm elementos éticos que devem ser incorporados à teoria liberal.

203 DWORKIN. Sovereign…, op. cit.,p. 228 e ss. 204 “although liberals have not emphasized the ethical importance of integration, recognizing its importance does not threaten, but rather nourishes, liberal principles.” Idem. Ibidem. p. 231.

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Nesse sentido, o argumento da integração fornece a importante idéia de que o

sucesso da vida individual depende do sucesso da comunidade, e DWORKIN

aceita esse argumento. Todavia, para incorporá-lo à teoria liberal, o argumento

integrativo deve ser visto de forma limitada. Assim, a questão a ser respondida

pelos liberais é a seguinte: de que forma a vida comunitária e a vida individual

se integram? O argumento de DWORKIN consiste em que a vida coletiva da

comunidade deve se limitar à “vida política formal” , entendida como os atos

políticos formais proferidos pelas instituições políticas da comunidade

(Executivo, Legislativo e Judiciário). Dessa forma, DWORKIN reconhece que

os indivíduos em uma comunidade atuam de forma coletiva, visando um único

fim, mas limita essa atuação coletiva aos atos formais da comunidade. Nesse

sentido, conclui:

Esses atos políticos formais da comunidade como um todo devem ser entendidos como o exaurimento da vida comunitária de um corpo político, de modo que os cidadãos são entendidos como atuando conjuntamente, como uma coletividade, apenas dessa forma estruturada205.

DWORKIN, portanto, limita a atuação coletiva da comunidade aos atos

políticos, fazendo com que o sucesso ou insucesso da vida individual, enquanto

integrada com a comunidade, seja dependente desta apenas neste aspecto

formal . No que concerne ao prisma ético, o reconhecimento do valor

comunitário da integração tem uma conseqüência importante, que é fazer com

que o cidadão tenha uma preocupação maior com os rumos políticos da

comunidade, ou seja, a integração acarreta uma maior participação política na

comunidade. Outrossim, o argumento da integração permite o reconhecimento

de certos valores essenciais para o sucesso político da comunidade (e

conseqüentemente da vida individual), dentre eles o de que as instituições

205 “These formal political acts of the community as a whole should be taken to exhaust the communal life of a political body, so that citizens are understood to act together, as a collective, only in that structured way.” DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 232.

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99

devem tratar a todos com igual respeito e consideração206. No entanto, ao limitar

o argumento da integração aos atos formais da comunidade, DWORKIN permite

a conciliação entre os valores liberais da tolerância e da neutralidade com a

integração política. Portanto, constata-se que a comunidade liberal, nos termos

propostos por DWORKIN, é uma visão holista da comunidade, mas que

conserva os valores individualistas.

3.3. COMUNIDADE E BOA-VIDA

O liberalismo dworkiniano, nesse diapasão, possui uma nota

característica: a tentativa de conciliação de valores que, prima facie, são

conflitivos. Assim foi com o dualismo igualdade/liberdade e, novamente, ocorre

com o comunitarismo e a boa-vida. Sem dúvida, a própria idéia de comunidade

traz consigo uma noção de “vida comunitária”, atrelando o sucesso e felicidade

individuais necessariamente ao êxito comunitário. Por sua vez, a boa-vida

expressa os ideais de uma filosofia individualista, preocupada com o sucesso da

parte em detrimento do todo.

No entanto, DWORKIN preocupa-se em compatibilizar esse dois

conceitos com o fito de demonstrar, em primeiro lugar, a importância e

limitações da neutralidade liberal; em segundo lugar, que o liberalismo pode

conviver com valores éticos que, em um campo abstrato, guiam as ações

individuais, mas sem desvirtuar o princípio da responsabilidade individual, que é

a viga mestre da doutrina liberal; e, em terceiro lugar, DWORKIN dirige uma

206 Importante perceber que a neutralidade liberal sobre as concepções de boa vida, nos moldes propostos por DWORKIN, significa que o governo, concretamente, não pode tomar uma posição valorativa acerca das possibilidades éticas da comunidade concretamente. Todavia, no campo normativo (abstrato), a teoria liberal deve reconhecer certos valores que deverão ser concretizados na comunidade. Segundo DWORKIN, três são os valores éticos que devem ser considerados fundamentais pelo liberalismo: os dois princípios éticos que compõem as dimensões da dignidade humana (o princípio da responsabilidade individual e do intrínseco valor da vida humana) e um terceiro valor que é uma “questão de métrica ética”. Cf. DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 240.

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100

crítica à filosofia cética, sustentando que existe uma “métrica ética” pela qual

podemos avaliar, objetivamente, o sucesso de nossa vida.

3.3.1. O CONCEITO DE BOA -VIDA (THE GOOD L IFE)

3.3.1.1. O “Modelo do Impacto” e a Ética Utilitarista

O que significa, em termos normativos, a boa-vida? Para DWORKIN,

existem duas interpretações possíveis do que significa a experiência ética do

viver bem. A primeira delas, à qual ele denomina de “modelo do impacto”,

sustenta que boa é a vida que produz um impacto relevante para o restante da

humanidade, ou seja, a vida individual deve ser mensurada em função da

relevância das ações que a pessoa produziu para o resto do mundo, de modo que

quanto mais relevante as conseqüências que a atuação do indivíduo gerou para a

comunidade, maior o valor ético de sua vida207.

Trata-se de um modelo que analisa a eticidade sob um prisma teleológico,

conferindo às conseqüências das ações individuais na comunidade de forma

objetiva. Isso significa que as atitudes humanas são avaliadas objetivamente pela

comunidade, de forma independente da opinião do indivíduo que as produziu,

tendo como parâmetro o impacto da ação individual para a comunidade.

A justiça, para essa modelo, não é parâmetro para o viver bem, visto que

uma pessoa pode, agindo injustamente, acarretar um impacto muito maior na sua

comunidade, e, dessa forma, ter uma vida muito mais valiosa “eticamente” do

que o indivíduo que atuou sempre de forma justa, mas que teve uma vida

insignificante. Um aspecto importante deve ficar sublinhado acerca do modelo

do impacto: defender esse modelo significa compreender que os valores são

transcendentes e que não dependem da avaliação subjetiva. Ou seja: a atuação

impactante na comunidade é vista como um valor transcendente. A auto-

207 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 252.

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101

avaliação, nesse contexto, fica prejudicada, eis que, mesmo que o indivíduo

entenda que sua vida é um fracasso, mesmo assim, se suas ações causaram

impacto na sociedade, ela será considerada uma vida bem sucedida, já que

parâmetro utilizado é estritamente objetivo.

O utilitarismo, certamente, pode ser interpretado à luz do modelo do

impacto, uma vez que o princípio da utilidade é visto, por essa corrente

filosófica, como um valor transcendente. De fato, a doutrina utilitarista, em sua

forma clássica, defende que uma sociedade está corretamente ordenada e,

conseqüentemente, é justa se as suas “instituições são ordenadas de modo a

atingir a maior rede de satisfação somada entre todos os indivíduos pertencentes

a ela208”. A busca pela satisfação e pela felicidade é vista, para teóricos

utilitaristas como BENTHAN e MILL, como um valor moral que resume os

demais, e, portanto, deve servir de parâmetro avaliativo para a conduta

individual. Nesse sentido, “o credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior

felicidade como fundação da moral sustenta que as ações são corretas na medida

em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o

contrário da felicidade209”. Nota-se, assim, que o “impacto”, compreendido

como “busca da maximização da felicidade ou do prazer”, é um valor objetivo

para pautar a conduta humana.Mas será o modelo do impacto compatível com a

igualdade de recursos? DWORKIN entende que uma comunidade que aceita o

princípio igualitário abstrato deve, por conseguinte, compreender a boa-vida sob

um prisma diverso do que prega esse modelo.

Na ótica da igualdade de recursos, doutrina que é anti-utilitarista por

excelência, a relação existente entre indivíduo e comunidade é complexa.

Complexa no sentido de não ser possível dissociar, plenamente, o êxito

individual do coletivo, e, ainda, os valores éticos (comportamento individual), e

208 RAWLS. A Theory..., op. cit., p. 20. 209 MILL, John Stuart. A Liberdade Utilitarismo. Tradução: Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 187.

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a justiça política (comportamento coletivo). O pensamento dworkiniano,

conforme dito, adota um paradigma de complexidade, que, parafraseando

MORIN, não dissocia o uno e o múltiplo, mas sim vê como o uno pode ser ao

mesmo tempo múltiplo. No contexto da teoria política de DWORKIN isso se

traduz pela adoção de um paradigma holístico, que procura observar como o

individual e o coletivo se influenciam mutuamente. A influência do pensamento

Grego, notadamente de Platão, aqui, é clara.

3.3.1.2. Igualdade de recursos e boa-vida: o “Modelo do Desafio”

3.3.1.2.1.Descartes e o surgimento do conceito de subjetividade humana

Ressalta-se, preliminarmente, que carecia na filosofia grega o conceito de

subjetividade humana. No brilhante escrito de HEIDEGGER210 acerca da

relação existente entre o pensamento Antigo e o hegeliano, o filosofo

existencialista ressalta o fato de que apenas a partir de DESCARTES, quando

em seu “Discurso do Método” (1637) afirmou “je pense, donc je suis” (penso,

logo existo), houve a dissociação da vida política, que se dava no espaço político

representado pela polis grega, do espaço privado, individual, surgindo a

subjetividade humana. Nesse sentido, HEIDEGGER transcreve a interessante

conclusão de HEGEL de que o homem grego “é certamente um sujeito, mas não

se coloca como tal211”. Conclui HEIDEGGER, portanto, que a antítese entre o

subjetivo e o objetivo não se dava de forma segura antes da filosofia cartesiana,

de modo que havia apenas um pensamento abstrato, preocupado com a essência

em si, em não com a concretude do pensamento: para HEGEL, o “estado da

consciência grega é o estado da abstração”.

210 HEIDEGGER, Martin. Hegel and the Greeks. Disponível em http://www.morec.com/hegelgre.htm. Acesso em 06.10.08. 211 “…is certainly a subject, but he has not posited himself as such" apud HEIDEGGER, Martin. Hegel and the Greeks. Disponível em http://www.morec.com/hegelgre.htm. Acesso em 06.10.08.

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103

Dessa forma, o espaço político e o espaço individual, no pensamento

platônico, se conectam de uma forma muito peculiar, visto que ambas as

dimensões (a política e a individual) são indissociáveis. A busca pela essência

da justiça no primeiro livro de “A República”, nesse contexto, se dá mediante a

investigação do que seria a justiça na polis para, num segundo momento, se

utilizar esse conceito na justiça individual. A esse respeito, ensina MICHEL

VILLEY que, para PLATÃO “o mesmo equilíbrio interior que constitui a justiça

no indivíduo (...) faz a justiça na polis. As duas dimensões são indissociáveis

(grifo no original)212” .

A justiça platônica, nesse sentido, deve ser um ideal socialmente útil e,

ainda, constituir um bem supremo inerente à alma humana. Trata-se, assim, da

síntese do desenvolvimento da idéia de que a justiça se manifesta,

concomitantemente, na alma do indivíduo e no conjunto do Estado, in verbis:

A íntima conexão entre o Estado e a alma do Homem insinua-se desde o primeiro instante pelo modo curioso como Platão aborda o tema do Estado. A julgar pelo título da obra, pensar-se-á que o Estado será finalmente proclamado como a verdadeira e fundamental finalidade da longa investigação sobre a justiça. Mas Platão trata esse tema pura e simplesmente como um meio para um fim, e o fim é pôr em relevo a essência e a função da justiça na alma do Homem. Visto que a justiça existe tanto na alma do indivíduo como no conjunto do Estado, é evidente que neste quadro muito maior, ainda que mais distante, se poderá ler a essência da justiça em sinais mais vultuosos e mais claros, por assim dizer, que na alma do homem individual213.

Para utilizar a terminologia dworkiniana, podemos dizer que o

pensamento platônico concebe o “atuar de forma justa” como um interesse

crítico, ou seja, como um parâmetro “rígido do viver bem”. Rígido porque é

requisito sine qua non para atingir a felicidade. A forma sui generis como Platão

concebe a dicotomia polis/indivíduo influenciou o pensamento dworkiniano, em 212 VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. Tradução :Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 27. 213 JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Tradução: Artur M.Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 762.

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especial no tocante à concepção de boa-vida e de comunidade. Primeiramente,

consoante dito acima, o liberalismo de DWORKIN, apesar de individualista,

reconhece a importância da comunidade e dos valores comunitários. Outrossim,

da mesma forma como Platão relaciona a prática da justiça na polis e o viver

bem214, o pensador norte-americano não dissocia o sucesso da vida individual, da

justiça. Pelo contrário, DWORKIN, seguindo a linha do pensamento platônico,

pretende conceber o viver bem em conjunto com a justiça distributiva, entendida

como concretização do ideal normativo da igualdade de recursos.

3.3.1.2.2. O Modelo do Desafio: a justiça como métrica do viver bem

A interpretação da boa-vida enquanto mensuração do impacto que as

atitudes individuais acarretam na sociedade não se coaduna, nesse sentido, com

o ideal da igualdade de recursos, eis que não permite essa conexão entre a ética e

justiça, ou seja, o atuar com retidão com o tratamento igualitário. Para

DWORKIN, o impacto não é a métrica adequada para a aferição do êxito

individual, sendo necessário, para tanto, um modelo que abranja a dimensão

histórico-valorativa da ética individual, e, ainda, que coloque em relevo a

integridade ética, ou seja, a conexão entre os valores individuais e a

coletividade.

A métrica do viver bem, portanto, deve ser, nas palavras de DWORKIN,

“uma performance”, ou seja, “uma resposta correta a um determinado

desafio215”. O “modelo do desafio” acarreta, dessa forma, uma série de

conseqüências teóricas distintas daquelas trazidas pelo modelo do impacto. A

214 Nesse sentido, explica EDSON BINI: “Para Platão, há um entrelaçamento e uma afinidade entre os atributos intelectuais, morais e existenciais: o indivíduo genuinamente inteligente é bom, justo, corajoso, venturoso, amigo, sábio e cidadão cumpridor das leis do Estado. Em última análise, o ideal de humanidade é o homem detentor de uma somatória harmoniosa de virtudes, que é uma espécie de virtude total. É por isso que Sócrates insiste em aproximar e nivelar as qualidades, conduzindo o interlocutor a reconhecer que é impossível que o indivíduo justo não obtenha com isto proveitos e uma vida feliz.” PLATÃO. A República (Da Justiça). Tradução: Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2006, p. 77, nota.53. 215 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., pp. 253 e ss.

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105

destacar, primeiramente, a dimensão histórica inerente a esse modelo. Em

diversas passagens do Capítulo 6 de “Sovereign Virtue”, DWORKIN assevera

que somente se pode avaliar qual o desafio a ser vencido por um determinado

indivíduo, se se tiver em mente as circunstâncias históricas em que ele está

situado, uma vez que estas funcionarão como parâmetros avaliativos do êxito

com que ele reagiu aos desafios de sua vida.

Como dito acima, existem, para DWORKIN, parâmetros do viver bem

que são rígidos, já que estabelecem condições essenciais para uma boa

performance em uma determinada situação, ao passo que outros parâmetros são

suaves, que espelham circunstâncias cuja inobservância, embora seja

importante, não acarreta, necessariamente, o fracasso do indivíduo perante um

determinado desafio. Nesse contexto, pergunta-se: será correto afirmar,

conforme o faz Platão, que a justiça é condição essencial para o viver bem?

Como essa concepção platônica de boa vida deve ser compreendida no

pensamento igualitarista dworkiniano e, assim, qual a influência da justiça, no

pensamento dworkiniano, enquanto parâmetro para o viver bem?

DWORKIN afirma a justiça platônica é apreendida como um parâmetro

rígido do viver bem, de tal forma que “nada pode redimir uma vida destruída

pela desgraça de viver em um Estado injusto216”. Todavia, embora também

busque uma aproximação da justiça como parâmetro da boa vida, DWORKIN

entende que não é adequado entendê-la como parâmetro rígido, uma vez que

embora uma pessoa se sustente com recursos obtidos injustamente não consiga a

plenitude do viver bem, “sua vida não é, entretanto, automaticamente sem valor,

e poderia ser uma vida muito boa217”.

216 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 266. 217 Idem. Ibidem. p. 266. Peço vênia, nesse ponto, para discordar de DWORKIN. Não entendo ser possível defender a concretização plena do princípio igualitário abstrato, praticamente de forma axiomática e, ao mesmo tempo, sustentar que a justiça não é um parâmetro rígido do viver bem. Sem embargo, com relação a esse ponto, DWORKIN entra em contradição, posto que admite que uma pessoa possa ter uma vida valiosa, embora tenha atuado de forma injusta, o que aproxima a sua concepção de modelo do desafio com o modelo do impacto que ele tanto critica.

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A justiça constitui, para DWORKIN, um parâmetro suave do viver bem,

sendo os recursos o “parâmetro normativo para definir o desafio da vida, e a

justiça entra na ética quando indagamos como os recursos devem figurar na

compreensão que as pessoas têm do desafio218”. Os recursos, assim, influenciam

na constituição das circunstâncias fáticas que definirão a resposta adequada para

um desafio. Exercem, nesse diapasão, um papel ético, atuando de forma decisiva

na avaliação subjetiva do sucesso individual. No modelo do desafio cabe ao

indivíduo analisar se a sua existência foi plena, quer dizer, se enfrentou da

melhor forma possível, com os recursos que possui, o desafio que sua vida o

proporcionou, atingindo a integridade ética, o que ocorre exatamente quando o

indivíduo “vive com a convicção que a sua vida, em seus aspectos centrais, é a

apropriada, que nenhuma outra vida que ele poderia ter vivido seria uma

resposta melhor aos parâmetros de sua situação ética corretamente entendida219”.

A integridade ética tem que ser entendida como uma interação entre os

valores comunitários, construídos historicamente na comunidade em que o

indivíduo se situa, e a ética individual: o indivíduo, reflexivamente, no uso de

sua razão, endossa genuinamente certos valores e os compreende como críticos

para a sua existência, servindo os mesmos para uma avaliação crítica da forma

como enfrentou os desafios apresentados em sua vida. É importante constatar,

nesse sentido, que DWORKIN pretende, ao sustentar que o indivíduo deve

buscar a integridade ética, aproximar a moralidade comunitária da ética

individual, mas sem permitir um predomínio daquela sobre esta, já que cabe ao

indivíduo, em última instância, endossar ou não os valores que entender críticos

para a sua existência.

218 DWORKIN. Sovereign…, op. cit.,p. 273. 219“he lives out of the conviction that his life, in its central features, is an appropriate one, that no other life he might live would be a plainly better response to the parameters of his ethical situation rightly judged.” Idem. Ibidem. p. 270.

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107

Para DWORKIN, a essência do que ele denomina de “liberalismo ético”

é, exatamente, a escolha, pelo indivíduo, dos valores éticos que servirão de base

para sua existência220. A teoria dworkiniana, dessa forma, consegue aliar uma

visão holística da comunidade, que compreende a complexidade inerente à

interação entre comunidade e indivíduo, mas sem perder a sua neutralidade. Pelo

contrário, ao reconhecer a importância do ambiente ético da comunidade, mas,

ao mesmo tempo, conferir ao indivíduo o reconhecimento dos valores que serão,

para ele, críticos, DWORKIN reafirma o princípio da tolerância liberal, sem,

todavia, conferi-lo caráter absoluto. É nesse contexto que DWORKIN

construirá o seu conceito de dignidade humana, compreendendo-o a partir de

dois princípios éticos que constituirão a base de toda a sua teoria igualitária.

3.4. AS DIMENSÕES DA DIGNIDADE HUMANA

O modelo do desafio, na forma como preconizado por DWORKIN,

relaciona o viver bem com a justiça social, uma vez que a distribuição justa dos

recursos influenciará, de forma determinante, para a definição tanto dos valores

éticos que o indivíduo endossará em sua vida, quanto na forma como o

indivíduo avaliará a forma como reagiu aos desafios que a sua vida o

proporcionou.

No pensamento dworkiniano, no entanto, a busca pelo viver bem, questão

eminentemente ética, eis que concernente à busca pela melhor performance que

o indivíduo pode obter frente a um desafio que a vida lhe impõe, e a moralidade,

expressão relacionada com a forma que uma pessoa deve tratar a outra na

comunidade, unem-se nos princípios constitutivos da dignidade da pessoa

humana.

220 DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 277.

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Para DWORKIN, existem dois princípios que constituem o common

ground da para a discussão dos assuntos importantes que surgem na comunidade

norte-americana. O primeiro princípio, ao qual DWORKIN denomina de

“principle of intrinsic value” (princípio do valor intrínseco), preconiza que cada

“vida humana tem um tipo especial de valor objetivo221”. A idéia de que a vida

humana possui um valor intrínseco consiste na concretização, na teoria política

dworkiniana, da máxima kantiana segundo a qual “o homem, e, duma maneira

geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para

o uso arbitrário desta ou daquela vontade222. Nesse contexto, “o sucesso ou

derrocada de qualquer vida humana é, por si só, importante, algo que todos nós

temos razão para querer ou lastimar223”.

O princípio do valor intrínseco da vida humana representa, no contexto da

igualdade de recursos, uma mudança de foco: a igualdade, que era vista apenas

em termos recursais, passa a conter um aspecto valorativo diverso, no sentido de

que o respeito que o indivíduo possui pela própria vida não pode ser separado do

respeito que possui pela vida de seus concidadãos. Nesse contexto, DWORKIN

afirma que “você não pode agir de uma forma que denegue a importância

intrínseca de qualquer vida humana sem insultar a sua própria dignidade224”.

Mas a quem compete a concretização do valor intrínseco da vida humana?

Esse princípio, que expressa de forma muito clara tanto a igualdade, quanto a

fraternidade, é completado pelo princípio da responsabilidade individual,

segundo o qual “cada pessoa tem uma responsabilidade especial pela realização

do sucesso de sua própria vida, uma responsabilidade que inclui o exercício do

221 “each human life has a special kind of objective value”. DWORKIN. Is Democracy…, op. cit., p. 09. 222 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 68. 223 “The success or failure of any human life is important in itself, something we all have reason to want or to deplore”. DWORKIN. Is Democracy..., op. cit. p. 09. 224 “you cannot act in a way that denies the intrinsic importance of any human life without na insult to your own dignity”. Idem. Ibidem. p. 16.

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julgamento acerca de qual vida será a de maior sucesso para ele225”. DWORKIN

atribui, nesse sentido, ao Estado o dever de prezar pela moralidade comunitária,

mas confere ao indivíduo o privilégio de escolher os princípios éticos que

guiarão a sua vida. Tal “privilégio” consiste, na verdade, em um direito / dever:

todos têm o direito à autodeterminação, mas, ao mesmo tempo, possuem o dever

de fazê-lo da melhor maneira possível.

Assim, para finalizar a exposição da teoria política de DWORKIN,

ressalta-se que os dois princípios constitutivos da dignidade da pessoa humana

representam a relação peculiar existente entre indivíduo e comunidade no

pensamento dworkiniano, eis que o princípio do valor intrínseco da pessoa

humana reflete a preocupação comunitária com o sucesso da vida de cada

cidadão, ao passo que o princípio da responsabilidade individual representa a

reafirmação dos dogmas da doutrina liberal, conferindo ao indivíduo o papel de

protagonista na conformação de sua personalidade, mas, ao mesmo tempo,

possui um aspecto obrigacional, que atribui ao cidadão o dever de otimização

existencial, como forma de garantir não apenas o sucesso da vida individual,

mas também da comunidade como um todo.

Aludidos princípios, por derradeiro, cimentam a defesa de DWORKIN de

que a igualdade e a liberdade não são ideais conflitivos, mas antes

complementares:

Eu não aceito esse suposto conflito entre a igualdade e a liberdade; eu penso que as comunidades políticas, pelo contrário, devem encontrar um entendimento de cada uma dessas virtudes que as mostre como compatíveis, sem dúvida, que mostre cada uma como um aspecto da outra. Essa é, também, minha ambição para os dois princípios da dignidade humana 226.

225 “each person has a special responsibility for realizing the success of his own life, a responsibility that includes exercising his judgment about what kind of life would be successful for him”. DWORKIN. Is Democracy..., op. cit., p. 10. 226 “I do not accept this supposed conflict between equality and liberty; I think instead that political communities must find an understanding of each of these virtues that shows them as compatible, indeed that shows each as an aspect of the other. This is my ambition for the two principles of human dignity as well” Idem. Ibidem. p. 11.

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110

Uma vez expostos os principais conceitos do liberalismo igualitário de

DWORKIN, urge verificar a forma como os mesmos atuam em sua filosofia

jurídica, o que será feito no próximo Capítulo, no qual será analisada a crítica

dworkiniana ao positivismo e a forma como o filósofo norte-americano

relaciona a teoria política normativa com a interpretação construtivista do

direito.

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111

CAPÍTULO IV

A FILOSOFIA DO DIREITO DWORKINIANA

O ensino do Direito no Brasil é inegavelmente influenciado pela doutrina

positivista, em especial nos moldes como a mesma foi desenvolvida por HANS

KELSEN. Conforme visto, ao afirmar que “a validade de uma ordem jurídica

positiva é independente da sua concordância ou discordância com qualquer

sistema de Moral227”, o pensador alemão estabeleceu um abismo entre a

compreensão do Direito enquanto Ciência, e a Moral. A idéia básica que

permeia as doutrinas positivistas é a de que o estudo do Direito deve basear-se

em parâmetros objetivos, de modo que não há a possibilidade de se fundar a

análise de qualquer sistema jurídico em valores morais absolutos228. A relação

entre Direito e Moral, nesse contexto, é puramente formal: o Direito é Moral

enquanto norma de conduta, mas não por exprimir qualquer valor social

absoluto. O valor jurídico para KELSEN, nesse sentido, é justamente o fato de

as normas jurídicas constituírem normas de conduta, de modo que o objeto de

estudo da Ciência do Direito nada mais é, portanto, que norma229.

A doutrina positivista representa, sem dúvida, uma evolução da

compreensão, tanto filosófica, quanto prática, do Direito, e foi elaborada como

paradigma filosófico no final do século XIX necessário para a superação do

jusnaturalismo, que era considerado “metafísico e anti-científico230”. No entanto,

o positivismo jurídico acarretou a sacralização da forma jurídica e da autoridade

227

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito [tradução João Baptista Machado], 6.ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 76. 228 Nesse sentido, além de KELSEN, posiciona-se HART: “Meu relato é descritivo, na medida em que é moralmente neutro e não tem propósitos de justificação” in O conceito..., op. cit., p. 301. 229 KELSEN. Idem. Ibidem. p. 74. 230 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil). Disponível em http://www.georgemlima.xpg.com.br/barroso.pdf, Acesso em 29.03.09, p. 05.

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112

estatal, o que permitiu que fossem cometidas inúmeras atrocidades sob o manto

da permissão legal. Houve, assim, um fracasso político do positivismo,

especialmente com as derrotas da Itália fascista e da Alemanha nazista na 2.ª

Guerra Mundial231.

Com o esgotamento do paradigma positivista houve o surgimento da

doutrina denominada de “pós-positivista”, a qual “busca ir além da legalidade

estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral

do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas232”. Ora, é exatamente

neste contexto que se insere o pensamento dworkiniano, objeto da presente

dissertação. Ao elaborar a sua teoria do direito, RONALD DWORKIN tem em

mente exatamente que a sua teoria “direito como integridade” (law as integrity)

constitui um meio termo entre as teorias jusnaturalistas e o positivismo jurídico.

No entanto, antes de proceder à explanação da teoria do direito

dworkiniana, fazem-se necessárias algumas considerações acerca do positivismo

jurídico, notadamente dos pensamentos de HERBERT HART e de HANS

KELSEN, bem como de algumas conseqüências no âmbito interpretativo que a

adoção do paradigma positivista acarreta.

4.1. O POSITIVISMO JURÍDICO

4.1.1. HART E O CONCEITO DE DIREITO

Da mesma forma que DWORKIN elaborou a sua filosofia do direito

visando à desconstrução do pensamento hartiano, o filósofo inglês teve como

alvo principal a concepção de direito de JOHN AUSTIN, tido por muitos como

o fundador do positivismo jurídico moderno e da teoria imperativa do direito233.

231 BARROSO, op. cit., p. 06. 232 Idem. Ibidem. p. 06. 233 Nesse sentido, cf. MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: Dos gregos ao pós-modernismo. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.258 e ss.

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No pensamento de AUSTIN, o conceito de direito era visto de forma

extremamente restrita, tendo em vista a preocupação do filósofo positivista em

conferir cientificidade à sua análise do fenômeno jurídico. Nesse contexto, ficou

famosa a sua definição do Direito com base em quatro critérios: soberania,

comando e obediência habitual e sanção234. Em suma, o Direito se resumiria à

obediência habitual a ordens provindas de um poder soberano ilimitado, o qual

teria o poder de aplicar sanções em caso de descumprimento das mesmas.

Segundo HART, essa concepção de Direito se consubstancia em uma

mera descrição de sistemas jurídicos que podem ser encontrados em sociedades

rudimentares, nas quais não houve o pleno desenvolvimento do Direito,

modernamente concebido. Trata-se, por essa razão, de uma teoria que

proporciona uma visão “externa” do fenômeno jurídico, ou seja, apreende o

Direito apenas em seu aspecto descritivo, ignorando outra faceta sistema

jurídico, que diz respeito à legitimação do comando provindo da norma jurídica.

Nesse contexto, HART faz uma diferenciação entre a afirmação de que

uma pessoa “ser obrigada a fazer algo” e a de que uma pessoa “tem a obrigação

de fazer algo”. Com efeito, uma pessoa pode ser compelida à realização de uma

ação sem que, necessariamente, tenha, em termos jurídicos, a obrigação de

proceder desta maneira, como ocorre, por exemplo, em um assalto. Isso

demonstra como a afirmação de AUSTIN, que o Direito é uma “obediência

habitual a uma ordem provinda de um poder soberano”, apenas descreve o

aspecto obrigacional do direito, ou seja, fixa a sua análise nas regras que HART

denomina “primárias”, que apenas fixam obrigações235.

O Direito, no entanto, não se limita apenas a regras de conteúdo

imperativo. Pelo contrário, a nota característica dos sistemas jurídicos modernos

é, para HART, o fato de possuírem certas regras que fornecem, acima de tudo, a 234 MORRISON, op. cit., p. 262. 235 HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, pp.92 e ss.

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justificação236 de certos comportamentos que são considerados obrigatórios. São

comandos, portanto, que se ocupam do aspecto interno das regras de direito, que

fazem com que uma pessoa não apenas seja obrigada a fazer algo, mas sim se

sinta obrigado a realizar uma determinada conduta.

Como, todavia, essas regras podem acarretar esse aspecto legitimador das

condutas previstas nas normas jurídicas? Isso se justifica pela função exercida

pelas mesmas no ordenamento jurídico: são regras secundárias, que visam,

basicamente, a atribuição de poderes e competências. As regras secundárias,

no pensamento hartiano, promovem a unificação do sistema jurídico, de modo

que “as regras não são mais agora apenas um conjunto discreto e desconexo,

mas estão, de um modo simples, unificadas237”. Conferem, assim, validade

jurídica às demais regras do sistema, atribuem poder legislativo às autoridades

públicas, além de estabelecer competências e procedimentos para os

julgamentos judiciais238. Nesse diapasão, com as regras secundárias “surge todo

um conjunto de novos conceitos e estes exigem uma referência ao ponto de vista

interno para a respectiva análise. Tais conceitos incluem as noções de legislação,

jurisdição e validade, e, em geral, de poderes jurídicos, privados e públicos239”.

Nesse sentido, para HART o Direito é um conjunto de regras, as quais

podem exercer duas funções no ordenamento jurídico: conferir competências ou

atribuir obrigações, sendo estas denominadas regras primárias, e aquelas regras

secundárias. Faz-se necessário, para os fins do presente trabalho, uma análise

mais detida acerca das regras ditas “secundárias”, às quais HART subdivide em

três espécies, a saber: i) regras secundárias de reconhecimento, cuja função é

identificar, dentre as diversas regras contidas na sociedade, quais possuem o

236 Note-se que ao utilizar o termo “justificação”, HART não se refere à justificação em termos políticos, mas sim a uma justificação formal: o individuo sente-se obrigado pelo fato de a obrigação decorrer de um estatuto legal legitimamente positivado por um órgão legislativo, cujos poderes provêm de uma regra de reconhecimento suprema, e não do conteúdo valorativo da regra. 237 HART, op. cit., p. 105. 238 Idem. Ibidem. p. 106. 239 Idem. Ibidem. p. 108.

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status jurídico e quais são regras meramente sociais ou morais; ii) regras

secundárias de alteração, cuja função é, nas palavras de HART, conferir “poder a

um indivíduo ou a um grupo de indivíduos para introduzir novas regras

primárias para a conduta da vida do grupo, ou de certa classe dentro dele, para

eliminar as regras antigas”240; e iii) regras secundárias de julgamento, que

estabelecem procedimentos e competências de julgamento.

As regras secundárias, portanto, conferem “a indivíduos em funções

públicas ou privadas o poder de variar a incidência de todo o conjunto de

normas, a alterar as normas ou a aplicar outras incluídas nesse conjunto241”.

Função de destaque, no entanto, exerce a regra secundária de

reconhecimento. Na teoria hartiana, as regras de reconhecimento são aquelas

utilizadas pelas autoridades públicas ou privadas (advogados, Tribunais, Juízes

de Direito, Legisladores, Ministros dos Tribunais Superiores, etc.) para a

identificação das regras componentes de um sistema jurídico, ou seja, das regras

que possuem o “status jurídico”. Trata-se de regras com “aceitação oficial” e

reconhecidas, do ponto de vista interno, ou seja, com legitimidade, eis que

constituem um padrão público para a identificação das regras que compõem a

ordem jurídica de uma determinada comunidade. Nesse sentido, conclui HART:

Há, portanto, duas condições mínimas necessárias e suficientes para a existência de um sistema jurídico. Por um lado, as regras de comportamento que são válidas segundo critérios últimos de validade do sistema devem ser geralmente obedecidas e, por outro lado, as suas regras de reconhecimento especificando os critérios de validade jurídica e suas regras de alteração e de julgamento devem ser efectivamente aceites como padrões públicos e comuns de comportamento oficial pelos seus funcionários242.

240 HART, op. cit.. p.105. 241MACCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. Tradução: Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 300. 242 HART, op. cit., p. 128.

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A legitimidade de uma ordem jurídica, ou seja, a sua capacidade de obter

comportamentos de acordo com as prescrições legais, é, na teoria de HART,

afirmação “bifronte”, pois pressupõe uma obediência voluntária, pelos

cidadãos comuns, das prescrições obrigacionais ditadas pelas regras primárias e,

ainda, a aceitação, do ponto de vista interno, “pelos funcionários das regras

secundárias como padrões críticos comuns de comportamento oficial243”.

Observa-se, nesse contexto, que o positivismo hartiano define a legitimidade

como a aceitação de um padrão público de comportamento, o que significa

identificá-la com a legalidade, ou seja: o fato de uma regra ter o caráter público

e ser aceite (do ponto de vista interno) a torna legitima. A noção de legitimidade

não está vinculada à expressão valorativa das regras, mas sim ao seu status (ou

pedigree)244.

O sistema hartiano de regras primárias e secundárias encontra o seu

fundamento último de validade de uma regra secundária de reconhecimento que

possui, em razão de sua aceitação pública, valor supremo. Ora, por ser suprema,

a sua validade dependerá única e exclusivamente de sua aceitação pela prática

dos Tribunais e demais autoridades públicas, de modo que “sua existência como

norma de reconhecimento de um sistema jurídico realmente operacional exige

que as normas que ela identifica estejam efetivamente em vigor (...)245” na

comunidade.

Com essa apreensão sistemática do Direito, HART objetiva elaborar uma

“tarefa de clarificação” da teoria jurídica, mediante uma teoria que seja, ao

mesmo tempo, geral e descritiva, ou seja, que não esteja vinculado a nenhum

“sistema ou cultura jurídicos concretos246”, e que proporcione um relato

243 HART, op. cit., p. 128. 244 Será visto oportunamente que DWORKIN possui uma noção diferente da legitimidade de uma ordem jurídica, identificando-a com o fato de a ordem jurídica representar o tratamento igualitário (igual respeito e consideração) do Estado para com os cidadãos. 245 MACCORMICK, op. cit., p. 300. 246 HART, op. cit., p. 300.

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descritivo e moralmente neutro do Direito. Trata-se, portanto, de uma descrição

do fenômeno jurídico do “ponto de vista externo”, como se fosse um relato de

um fato feito por um observador que não participe dessa prática247: HART

pretende, conforme assevera DWORKIN, “compreender mas não valorar as

elaboradas e penetrantes práticas sociais do Direito248”.

A função da filosofia do direito é, para HART, prover essa descrição

neutra do Direito, o que não se confundiria com a análise da prática dos

Tribunais. No pós-escrito de “O Conceito de Direito”, HART deixa bem claro

essa distinção: a tarefa descritiva do Direito é um papel da filosofia jurídica, o

que não se confunde com a análise do fenômeno jurídico sob um ponto de vista

interno, ou seja, sob o ponto de vista dos participantes dessa prática. Dessa

forma, conclui HART:

Mesmo que (como Neil MacCormick e muitos outros críticos sustentaram) a perspectiva interna do participante, manifestada na aceitação do direito, enquanto este fornece orientações para a conduta e padrões de crítica, incluísse também necessariamente uma crença de que há razões morais para uma pessoa se conformar com as exigências do direito e justificação moral para o uso da coerção por ele, isto seria também algo que a Teoria Geral do Direito moralmente neutra registraria, mas não sustentaria ou partilharia249.

E nessa tarefa descritiva do Direito, HART faz uma análise da atividade

jurisdicional em casos nos quais a regra apresenta o que ele denomina de

“textura aberta”. O prisma interpretativo da teoria hartiana é de particular

importância para o presente trabalho e, por essa razão, far-se-á uma análise da

hermenêutica positivista de HART em confronto com a teoria kelseniana, para

posteriormente passar-se a expor o pensamento dworkiniano.

247 HART, op. cit., p. 305. 248 “to understand but not to evaluate the pervasive and elaborate social practices of law”. DWORKIN. Justice…, op. cit., p. 140. 249 HART, op. cit., p. 304.

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4.1.2. A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO NAS DOUTRINAS POSITIVISTA S: UM

PARALELO ENTRE HART E KELSEN

Conforme exposto na introdução do presente Capítulo, uma característica

marcante do positivismo jurídico é a sua preocupação pela abordagem científica

do estudo do Direito. Em virtude disto, a busca pela objetividade, autonomia,

sistematicidade e formalidade do Direito acarretou a desconexão do Direito e da

Moral, que passaram a ser vistos como ramos distintos do conhecimento. É

nítido, nesse ponto, que o positivismo é uma reação às doutrinas jusnaturalistas

que, ao fundamentarem a ordem jurídica vigente em valores transcendentes,

“contaminavam” o estudo da ciência jurídica com elementos subjetivos, que não

deveriam ser levados em conta na construção da Ciência do Direito, ou seja, “o

rigor do tratamento científico (...) exige que se atenha ao método e não mesclar

métodos sociológicos e jurídicos”250. Nesse contexto, “Kelsen denominou sua

teoria pura porque queria depurá-la de todos aqueles métodos que não sejam o

estritamente jurídico. Sua grande prescrição metodológica foi a de ater-se ao

método251.

HANS KELSEN elaborou a sua teoria do direito a partir da seguinte

premissa: todo valor moral é relativo e não deve ser levado em consideração

para o estudo do Direito. Nesse sentido, o ilustre jurista austríaco estabelece uma

relação entre Direito e Moral como mera forma, ou seja, a afirmação de que o

direito é moral está apenas no fato de que, tanto os sistemas morais, como os

sistemas jurídicos, estabelecem normas sociais com prescrições de deve-ser (o

que é justo deve ser feito, o que é injusto deve ser evitado / o que lícito é

permitido, o que é ilícito é proibido). Não há de se falar, dessa forma, em

250CALSAMIGLIA, Albert. Em defensa de Kelsen. Disponível em www. recercat. net/ bitstream/ 2072/1337/1/ ICPC/129.pdf. Acesso em 24 de julho de 2007, p. 08. 251 “Kelsen denominó a su teoría pura porque quería depurarla de todos aquellos métodos que no fueran el estrictamente jurídico. Su gran prescripción metodológica fue la de atenerse al método” Idem. Ibidem.., p.09.

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conexão axiológica entre estes dois sistemas, mas apenas de uma relação forma

entre os mesmos. Nesse diapasão, conclui o mestre de Viena:

Sob estes pressupostos, a afirmação de que o Direito é, por sua essência, moral, não significa que ele tenha um determinado conteúdo, mas que ele é norma e uma norma social que estabelece, com o caráter de devida (como devendo-ser), uma determinada conduta humana.252

Não existe, por conseguinte, relação de conteúdo entre o Direito e a

Moral, de modo que, inclusive, KELSEN admite que uma norma jurídica tenha

um conteúdo imoral. Isso porque a teoria kelseniana tem por objetivo central a

descrição analítica do sistema jurídico, através de dados objetivos e avalorativos.

Ora, se os valores morais são inerentemente relativos (variáveis de uma

sociedade para outra), é lógico que este elemento deve ser desconsiderado numa

análise cientifica e rigorosa do Direito, uma vez que “a tarefa da ciência jurídica

não é de forma alguma uma valoração ou apreciação do seu objeto, mas uma

descrição do mesmo alheia de valores” 253. Segue-se, portanto, que a estrutura do

Direito, para o positivismo, independe dos valores prescritos pelas normas

jurídicas. O relativismo axiológico é, dessa forma, o pressuposto do positivismo

kelseniano, já que separa o fundamento de validade do direito positivo de seu

conteúdo valorativo:

uma ordem jurídica positiva é, quanto à sua validade, independente da norma de justiça pela qual possam ser apreciados os atos que põem suas normas. Assim se mostra, pois, que uma teoria jurídica positivista, isto é, uma teoria do direito positivo, nada tem a ver com a apreciação ou valoração de seu objeto254.

Por esta razão, KELSEN denomina o positivismo jurídico como uma

teoria monista, visto que não apresenta como pressuposto de validade da norma

252 KELSEN, Hans. Teoria Pura..., op. cit., p. 74. 253 Idem. Ibidem, p. 77. 254 KELSEN, Hans. O problema..., op. cit., p. 70.

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jurídica a consonância com valores transcendentes, mas sim o fato de obedecer

os critérios de validade fixados por outra norma, de hierarquia superior, posta

por uma autoridade com competência legal para tanto. Ademais, a característica

fundamental de um sistema de normas é exatamente o fato de as normas de

hierarquia inferior retirarem o seu fundamento de validade das normas

superiores, sendo que todas as normas, ao final, amparam-se em uma norma

suprema, provinda da razão, denominada por KELSEN de “norma

fundamental255”. Daí a “pirâmide kelseniana”, composta por um sistema de

normas hierarquizado, cujo fundamento último de validade consiste em uma

“norma fundamental”, de natureza racional (pressuposta), e que dá fechamento

lógico ao sistema :

Como já notamos, a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como última e mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm) (...). Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum256.

O Direito é, assim, composto por normas que prescrevem condutas e

cominam sanções em caso de descumprimento, mediante o uso da linguagem

255 Embora desempenhem a função de dar validade a todo o ordenamento jurídico, existe uma diferença sutil entre a norma fundamental kelseniana e a regra de reconhecimento de Herbert Hart: a primeira fundamenta-se na razão e não tem existência concreta, posto que é hipotética; já a validade da segunda consiste, como o próprio HART afirma, em uma “questão de fato”, ou seja, existe porque as autoridades a utilizam para identificar as regras que compõem o ordenamento jurídico. Cf. KELSEN, Teoria Pura ..., op. cit., pp. 215 e ss. e HART, op. cit. pp. 126-128. 256 KELSEN. Teoria Pura..., op. cit., p. 217.

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(escrita ou falada). Dessa forma, KELSEN afirma que a aplicação de toda e

qualquer norma jurídica, desde a mais geral até a mais específica, exige do

aplicador do direito uma operação mental no sentido de determinar de seu

sentido, ou melhor, o seu conteúdo257. Possuem, assim, uma “relativa

indeterminação”, pois, muito embora o conteúdo das normas inferiores seja

vinculado às normas superiores, haverá sempre um “espaço vazio” sobre o qual

o intérprete poderá realizar uma livre apreciação. Em virtude da existência dessa

indeterminação, as normas jurídicas são comparadas por KELSEN a um quadro

ou moldura, que fixam uma conduta mas permitem várias interpretações, de

modo que a determinação de seu conteúdo concreto será completada pela

atuação da vontade do interprete.

Desta feita, o juiz, ao julgar um caso concreto, atuará como intérprete e

deverá fixar qual a norma jurídica que representará a “moldura” para a conduta

em apreço e preencher o conteúdo normativo do dispositivo legal

discricionariamente, escolhendo uma das várias possibilidades resultantes desse

processo. Nesse contexto, o ato interpretativo autêntico (ou seja, aquele feito

pelo órgão aplicado da norma) consiste na “determinação do conteúdo da norma,

ou seja, no estabelecimento de fronteiras mediante um “ato de vontade”, cuja

força vinculante provém da competência do órgão que aplica a norma 258. Por

sua vez, à doutrina do direito caberia a mera descrição desse fenômeno,

mediante a demonstração da plurivocidade dos conceitos jurídicos, sem

demonstrar qual interpretação seria, em tese, correta, pois isto “é falsear o

resultado e ultrapassar as fronteiras da ciência”, consistindo em ato realmente

político259.

257 KELSEN. Teoria Pura..., op. cit., p. 387. 258 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4.ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 262-263. 259 Idem. Ibidem. p. 263.

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A interpretação autêntica, realizada pelo órgão aplicado do direito, ao

optar por uma das várias possibilidades de interpretação da norma, acarreta a

criação de direito novo, vinculante em razão da competência atribuída ao órgão

judicante. Cumpre ressaltar que nesse processo, o intérprete é livre, desde que se

mantenha em conformidade com os ditames da norma jurídica, ou seja, a

vontade do interprete é livre, sem qualquer limitação substantiva a não ser a

moldura legal. A interpretação é, assim, “um ato de vontade em que o órgão

aplicador do Direito efetua uma escolha entre a possibilidades reveladas através

daquela mesma interpretação cognoscitiva”260.

Sendo, portanto, um “ato de vontade”, e, ainda, não existindo valor que

vincule o aplicador do direito, verifica-se que a interpretação do direito na teoria

kelseniana nada mais é do que uma manifestação do relativismo axiológico que

permeia o positivismo jurídico. O interprete está, nesse sentido, apenas

vinculado a critérios estritamente formais e deverá utilizar-se de uma

racionalidade puramente “formal” (legalista). Não há que se falar, ainda, na

teoria kelseniana, em “resposta certa” a uma questão jurídica, eis que, se o

interprete se deparar com duas interpretações possíveis de um mesmo

dispositivo legal, que expressem valores morais antagônicos, mas sejam

juridicamente possíveis, ambas serão válidas e, portanto, de igual peso. Caberá

ao intérprete, assim, determinar discricionariamente261 a solução jurídica ao caso

sub judice. Nesse contexto, assevera KELSEN:

Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a

260 KELSEN, op. cit. p. 394. 261 Discricionariamente no sentido de que, se a interpretação for realizada nos limites da moldura legal, o juiz é livre para escolher, mediante um ato de vontade, a solução que melhor lhe aprouver.

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aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. 262

A função do interprete do direito é, portanto, determinar uma

interpretação, dentre as várias possíveis, que se tornará vinculante, ou seja, que

integrará o direito positivo. Vê-se, portanto, que a preocupação de KELSEN é

com o fechamento estrutural do Direito, compreendido enquanto Ciência,

ficando questão da justiça para segundo plano, vez que é uma preocupação

política e não jurídica. Fica claro, neste ponto, que o positivismo kelseniano

funda-se no que MORIN denomina de “paradigma simplificador”, in verbis:

(...) a palavra paradigma é constituída por certo tipo de relação lógica extremamente forte entre noções mestras, noções-chaves, princípios-chaves. Esta relação e estes princípios vão comandar todos os propósitos que obedecem inconscientemente a seu império. Assim, o paradigma simplificador é um paradigma que põe ordem no universo, expulsa dele a desordem. A ordem se reduz a uma lei, a um princípio. A simplicidade vê o uno, ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. Ou o princípio da simplicidade separa o que está ligado (disjunção), ou unifica o que é diverso (redução)263.

De fato, KELSEN, em nome da sistematicidade de sua teoria, reduz a

interpretação do direito a um ato meramente formal, sem reconhecer a

“dimensão política” que envolve a aplicação do direito pelos Tribunais no caso

concreto264. Nisto reside a essência da crítica de DWORKIN ao positivismo

jurídico, já que, para o filósofo norte-americano, a atividade judicante é

262 KELSEN. Teoria Pura..., op. cit., p. 391. 263MORIN, Edgard. Introdução ao Pensamento Complexo. 3.ª Ed. Tradução: Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 59 264José Eduardo. As transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais. In FARIA, José Eduardo [org.]. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. 1.ªed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 56.

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eminentemente política265 e envolve a busca pela melhor solução, em termos

morais, da controvérsia jurídica.

A constatação de HANS KELSEN de que as normas jurídicas são

essencialmente “plurívocas” permeia, outrossim, o positivismo hartiano. Com

efeito, no Capítulo VII de seu “O Conceito de Direito”, o positivista inglês

assevera que as regras de direito são, na sua essência, diretivas que visam à

comunicação de padrões gerais de condutas, que se aplicarão a fatos futuros e

incertos e, para tanto, fazem uso de “palavras gerais266”. Como tais, os

comandos jurídicos acarretam certa “indeterminação”, ou seja, as normas gerais

e abstratas, ao serem aplicadas ao caso concreto particular, fazem surgir

“incertezas quanto à forma de comportamento exigidos por elas267”. Nesse

sentido, as normas possuiriam um “cerne de certeza” e um “entorno vago e de

trama rala268”. A aplicação do direito ao caso concreto, mediante atividade

interpretativa exercida pelos juízes singulares e Tribunais, se depara diante de

algo que HART denominou de “crise da comunicação”, tendo em vista que nas

questões jurídicas complexas a concretização dos comandos jurídicos consiste

em um processo de “escolha entre alternativas abertas269”. Com efeito, explica

HART, o raciocínio jurídico que envolve a solução de casos fáceis270 é a

265 “I shall argue that legal practice is an exercise in interpretation not only when lawyers interpret particular documents or statutes but generally. Law so conceived is deeply and thoroughly political. Lawyers and judges cannot avoid politics in the broad sense of political theory”. (Eu devo questionar que a prática jurídica é um exercício de interpretação não apenas quando os advogados interpretam documentos ou leis, mas de maneira geral. O Direito, assim concebido, é profunda e perfeitamente político. Advogados e Juízes não podem evitar a política no sentido amplo da teoria política). DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985, p.146. 266 HART, op. cit., p. 137. 267 Idem. Ibidem. p. 139. 268 MACCORMICK, op. cit., p. 300. 269 HART, op. cit., p. 140. 270 Ao utilizar a expressão “casos fáceis” (easy cases), me refiro àqueles em que o direito positivo dá uma solução imediata e indiscutível. Por exemplo, se for perguntado “na esfera cível, qual o prazo para a interposição do recurso de Apelação?”, a solução é simples e direta: “quinze dias, de acordo com o artigo 508 do Código de Processo Civil”. Já a expressão Hard cases ou casos controversos diz respeito àquele em que o direito não oferece uma solução simples ou não oferece qualquer solução. Ou seja: são aqueles em que há incerteza acerca do direito a ser aplicado. Esse conceito será melhor desenvolvido quando da análise da teoria dworkiniana.

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subsunção do fato à norma e a conseguinte extração de uma conclusão

silogística.

HART reconhece, todavia, que existem certas questões jurídicas não

podem ser resolvidas por raciocínio silogístico, ante a incerteza do direito a ser

aplicado. Nesses casos, o magistrado deverá utilizar o seu poder discricionário e

realizar uma escolha, “ainda que não possa ser arbitrária ou irracional271”.Assim,

embora não confira a mesma liberdade que a teoria kelseniana dá ao intérprete,

HART reconhece que, ao se deparar com normas de “textura aberta”, a

autoridade deverá “exercer um poder discricionário, e não há possibilidade de

tratar a questão suscitada pelos variados casos, como se houvesse uma única

resposta correcta a descobrir, distinta de uma resposta que seja um compromisso

razoável entre muitos interesses conflitantes272”.

É possível e necessário, aqui, traçar um paralelo entre o positivismo de

HART e a doutrina kelseniana. Sem embargo, embora ambos constituam uma

visão avalorativa (logo neutra) e descritiva do fenômeno jurídico, KELSEN faz

um rompimento mais profundo entre o Direito e a Moralidade, não impondo

qualquer limite valorativo para a vontade do magistrado (intérprete) ao decidir

um caso concreto. Por sua vez, HART demonstra certa preocupação com o

resultado prático da interpretação do Direito, mas reconhece que, enquanto

filósofo, compete-lhe apenas a descrição de tal fenômeno.

4.2. O DIREITO COMO INTEGRIDADE

4.2.1. A LIMITAÇÃO ESTRUTURAL DA TEORIA DE HERBERT HART

Uma das críticas centrais de DWORKIN ao positivismo jurídico, em

especial à teoria do direito de HART, é a sua limitação estrutural. Para o filósofo

271 HART, op. cit. p. 140. 272 Idem. Ibidem. pp. 144-145.

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norte-americano, ao afirmar que o direito é um sistema composto por regras

primárias e secundárias, HART ignora o fato de que os operadores do direito,

em casos de maior complexidade, utilizam padrões (standards) que atuam, no

raciocínio jurídico, de modo diferente das regras. Desta constatação advém a

clássica diferenciação que DWORKIN faz entre regras, princípios e políticas

(policies273). Regras (rules)274, no entendimento dworkiniano, são padrões que

obedecem a um raciocínio ou lógica do tudo-ou-nada (all-or-nothing fashion275),

de forma que sua aplicabilidade depende apenas de sua validade, e da ocorrência

da hipótese fática nela prevista.

Os princípios276, por sua vez, possuem uma dimensão de moralidade,

razão pela qual a sua incidência, no caso concreto, deverá seguir uma lógica de

sopesamento ou ponderação, sendo necessário que o aplicador do direito faça

um raciocínio que leve em conta o peso do princípio para a solução da questão

jurídica277. DWORKIN tem em mente, ao se referir ao peso (weight) do

princípio, que, por expressarem valores (morais ou políticos), esses padrões

muitas vezes conflitam e exigem do magistrado um juízo de valor que “leve em

273 O termo “policies”, no inglês, significa “linha de ação adotada por ser vantajosa ou oportuna”, em especial por órgãos governamentais, cf. Shorter Oxford English Disctionary apud MACCORMICK, op. cit., p. 341. Muito se contesta, por essa razão, a amplitude com que DWORKIN utiliza esse termo, justamente por abranger, nesses padrões, quaisquer “objetivos a ser alcançados, geralmente um ganho em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (...)” , Cf. DWORKIN. Taking..., op. cit., p. 22. 274 Adota-se, na presente dissertação, o entendimento de que tanto as regras, quanto os princípios são espécies de “norma jurídica”. Nesse sentido Ensina CANOTILHO que “A teoria da metodologia jurídica tradicional distinguia normas e princípios (Norm-Prinzip, Principles-rules, Norm und Grundsatz). Abandonar-se-á essa distinção para, em sua substituição, se sugerir: 1) as regras e princípios são duas espécies de normas; 2) a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas espécies de normas (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ªed. Coimbra: Almedina, 2003. p.1160). Do mesmo sentir é a doutrina de Robert ALEXY, in verbis, “tanto las reglas como los principios serán resumidos bajo ela concepto de norma. Tanto las reglas como los principios son normas porque dicen lo que debe ser”. (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. 2. ª ed. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001. p.83). 275 DWORKIN. Taking..., op. cit., p. 24. 276 “I shall use the term ‘principle’ generically, to refer to he whole set of these standards other than rules;” (DWORKIN. Taking…, op. cit., p. 22). Por essa razão, o termo “política” apenas será utilizado quando for necessário. No mais, o termo princípio abrangerá todos os padrões que não são regras. 277 Segundo Carlos Santiago Nino, Dworkin “sostiene que um sistema jurídico no está compuesto sólo por reglas sino también por outro tipo de normas, que él llama “princípios”. Los princípios (...) se distinguen de las reglas en que su aplicabilidad a um caso no es una cuestión de “todo o nada” – o es aplicable o no lo es – sino que depende Del peso relativo del princípio em contraste com el de otros princípios relevantes”. NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. 2ª ed. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2003, p.125.

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conta o peso relativo278” de cada princípio279. Os princípios exercem um papel

peculiar no pensamento dworkiniano, visto que é através dos mesmos que o

filósofo norte-americano insere em sua filosofia jurídica a dimensão moral que

tanto se deu destaque na presente dissertação. Com efeito, no desenvolvimento

de sua teoria construtivista, “Dworkin está muito mais interessado no horizonte

político-ético no qual se destacam os princípios irredutíveis às regras280”.

Não se faz necessário, todavia, maiores considerações sobre o tema.

Primeiramente porque a esse respeito a literatura é vasta e menciona muitas

questiúnculas que não são relevantes para o objeto deste trabalho. Em segundo

lugar, pretendo evitar o erro que muitos cometem ao analisar a crítica de

DWORKIN ao positivismo jurídico, que é exatamente ficar restrito aos

ensinamentos exarados pelo filósofo norte-americano em “Taking Rights

Seriously” e ignorar os demais escritos de DWORKIN, que, diga-se,

representam o amadurecimento de sua teoria e de sua crítica ao juspositivismo.

Por ora, mister ressaltar que DWORKIN, em momento algum se refere a

“princípios jurídicos”, e o faz de maneira proposital, tencionando demonstrar

que não é possível a pressuposição de uma norma jurídica superior (como

pretende HART) que dê validade e existência jurídica para todos os demais

padrões jurídicos. Segundo DWORKIN, os princípios são padrões que, devido à

sua dimensão de moralidade, estão em “transformação, desenvolvimento e

278 DWORKIN. Taking..., op.cit., p. 26. 279 A partir da filosofia dworkiniana, Robert Alexy afirma que os princípios são “mandatos de optimización”, uma vez que “pueden ser cumplidos em diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las possibilidades reales sino también de las jurídicas”. Nesse sentido, “no contienen mandatos definitivos sino sólo prima facie”. ALEXY , então, faz referência a uma “lei de colisão (colisión) de princípios”, com o intuito de analisar pormenorizadamente o raciocínio a ser realizado para se resolver uma colisão de princípios. Segundo essa “lei”, a solução das colisões entre princípios se dá através de uma relação de precedência condicionada (concreta ou relativa), pela qual se estabelece as condições de precedência (C) nas quais um determinado princípio (P1) deverá prevalecer sobre outro, que dispõe em sentido contrário (P2). Assim, pode-se dizer que, dada a ocorrência de determinadas condições (C), o princípio (P1) deverá prevalecer (P) sobre o princípio (P2), ou seja: (P1 P P2) C. Cf. ALEXY, op. cit., pp. 81 e ss. 280 RICOEUR, Paul. O Justo 1. Tradução: Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 160.

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mútua interação281”, e que por essa razão não podem ser aglutinados em uma

única regra suprema de reconhecimento.

Por essa razão, a crítica de DWORKIN tem a pretensão de ser totalmente

destrutiva à teoria de HART, já que, para a inclusão dos princípios, seria

necessário abandonar a noção de regra de reconhecimento, pelo menos na forma

concebida pelo filósofo inglês. Não é pacifico o entendimento, no entanto, de

que o positivismo hartiano não poderia abarcar o conceito de “princípio”, nos

moldes propostos por DWORKIN. Nesse sentido, observa MACCORMICK que

a inclusão dos princípios no ordenamento jurídico exige uma “relação” entre os

mesmos e as normas do direito, senão vejamos :

Existe uma relação entre a ‘norma do reconhecimento’ e princípios do direito, mas é um relacionamento indireto. As normas que são normas do direito são o que são graças à sua linhagem. Os princípios que são princípios do direito são o que são graças à função em relação àquelas normas, ou seja, a função a eles atribuída por quem os usa como racionalizações das normas282”.

Não se pode, assim, simplesmente descartar a teoria hartiana, uma vez que

a mesma pode conviver com a existência de princípios jurídicos. Assim, a teoria

de HART, portanto, não é insuficiente neste ponto, de modo que a crítica de

DWORKIN não possui o peso teórico que o filósofo norte-americano pretendeu.

Sem embargo, embora o positivismo jurídico defenda uma abordagem

avalorativa do Direito, não se pode afirmar que esta corrente filosófica não

reconhece, na manifestação concreta do Direito, que as normas expressam

valores, bem como que os magistrados julgam com base em valores. Essa

afirmação limita-se, na verdade, ao fato de que o positivismo defende “que não

se precisa sob nenhum aspecto compartilhar ou endossar esses valores no todo

281 DWORKIN. Taking..., op. cit., p. 40. 282 MACCORMICK, op. cit., p. 304.

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ou em parte para saber que a lei existe”.283 Assim, a crítica dworkiniana ao

positivismo, que ora se denomina “estrutural”, deve ser compreendida como

uma “crítica epistemológica284” : trata-se, na verdade, de uma releitura da

própria essência do positivismo jurídico, mediante a colocação de um novo

paradigma para o conhecimento do fenômeno jurídico.

Com efeito, desde o começo do desenvolvimento de sua filosofia jurídica

em “Taking Rights Seriously”, como em seus últimos livros, nomeadamente

“Justice in Robes” e “Is democracy possible here?”, DWORKIN pretende

sempre oferecer uma contraposição às doutrinas positivistas, sustentando uma

reaproximação entre o Direito e a Moral. Em palestra proferida quando do

recebimento do prêmio “Holberg Prisen”, no ano de 2007, DWORKIN fez uma

exposição acerca de seu entendimento da relação entre o Direito e a Moralidade

Política, afirmando que esses ramos do conhecimento não são independentes, de

modo que há uma conexão densa de substância entre ambos. A Moral e o

Direito, nesse contexto, não devem ser compreendidos de forma separada, mas

sim como essencialmente interligados, consoante afirma categoricamente o

filósofo norte-americano:

eu gostaria, então, de propor que nós comecemos (a raciocinar) um modelo muito diferente em mente. Ao invés de ver Direito e Moralidade como dois diferentes sistemas de idéias, que podem ou não estar conectados de diversas formas, interdependentes de várias formas, nós tentemos compreender o Direito como um departamento da moralidade, como embebido dentro da moralidade desde o começo285.

283 MACCORMICK, op. cit., p. 305. 284 Epistemologia, Segundo ABBAGNANO, pode ser compreendido como sinonimo de “teoria do conhecimento”, cf. op. cit., p. 392. Por sua vez, JOHN GRECO ensina que “a epistemologia ou teoria do conhecimento, é conduzida por duas questões principais: ‘O que é conhecimento?’ e ‘O que podemos conhecer’. Se pensamos que podemos conhecer algo, como quase todo mundo, então surge uma terceira questão essencial: ‘Como conhecemos o que conhecemos’”, cf. GRECO e SOSA, John e Ernest [org.]. Compêndio de Epistemologia. Tradutores: Alessandra Siedschlag Fernandes e Rogério Bettoni. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 16. 285I would like, therefore, to propose that we begin with a very different model in mind. In instead of seeing law and morality as two independents sets of ideas, witch might or might not be connected in various ways, interdependent in various ways, we try to understand law as a department of morality, as imbibed within morality right from the start”. Vídeo disponível em http://www.holbergprisen.no/HP_prisen/en_hp_2007_symposium.html, acesso em 29.03.09.

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A proposta de DWORKIN, portanto, constitui um paradigma

completamente diferente do positivismo jurídico e que tem influenciado a

compreensão do Direito pelo mundo. O Direito, segundo DWORKIN, constitui

um “departamento” da esfera moral, de modo que a compreensão dos conceitos

jurídicos, bem como a aplicação dos mesmos ao caso concreto, deverá ser

orientada pelos valores morais da comunidade política. É possível identificar,

assim, uma nítida diferença entre a teoria dworkiniana “law as integrity” e o

positivismo jurídico. Enquanto este constitui uma forma de pensar a realidade de

forma simplificadora, que, em nome do cientificismo, procura separar realidades

que estão ligadas (disjunção286), o “direito como integridade” parte de um

paradigma complexo, que identifica uma inter-conexão entre conceitos que são

aparentemente desconexos (Direito e Moral), mas que na verdade constituem

realidades que não podem ser estudadas separadamente. Ora, da mesma forma

que o paradigma simplificador acarreta a disjunção, ou seja, a necessidade de

redução do que é complexo a realidades menos complexas, o pensamento

complexo exige interdisciplinaridade, ou, para utilizar as palavras de MORIN,

“conjunção complexa287”. Nesse sentido, a filosofia jurídica de DWORKIN não

pode ser analisada, como muitos pretendem, de forma independente de sua

filosofia política.

Conforme dito, a principal contribuição de DWORKIN para a teoria do

direito está na mudança do paradigma positivista, que pleiteia a separação entre

Moralidade e Direito, para um paradigma que insere o Direito no campo da

Moral, o que acarreta inúmeras conseqüências para a teoria jurídica,

286 Segundo EDGAR MORIN, “a simplicidade vê o uno, ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. Ou o princípio da simplicidade separa o que está ligado (disjunção), ou unifica o que é diverso (redução)”. Cf. MORIN, Edgard. Introdução ao Pensamento Complexo. 3.ª Ed. Tradução: Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 59. O fenômeno da disjunção é exatamente o que ocorre com a abordagem positivista, que separa o Direito e a Moral em esferas diferentes, que devem ser estudadas de forma separada, sendo a validade e aplicação daquele independente desta. 287 Idem. Ibidem. p. 77.

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especialmente com relação à interpretação e justificação das decisões judiciais.

A teoria dworkiniana, ao contrário do que propõe o positivismo, pretende

apresentar uma verdadeira justificação do Direito288, e não uma mera descrição,

a qual decorre do compromisso do Estado de atuar em conformidade com um

conjunto coerente de princípios, e é este ponto que se passa a abordar.

4.2.2. A INTEGRIDADE COMO IDEAL POLÍTICO E A SUA MANIFESTAÇ ÃO NO

DIREITO

Um dos conceitos componentes do liberalismo igualitário dworkiniano

que exerce influência no “direito como integridade” é o de comunidade liberal.

Conforme exposto, o DWORKIN constrói a sua concepção de “Republicanismo

Cívico Liberal” a partir de uma visão holista da comunidade, visando coadunar

as críticas comunitaristas com os princípios liberais. O faz mediante a

constatação de que a comunidade possui uma “vida coletiva” que se expressa

pelos atos formais das instituições públicas comunitárias, notadamente pelos

Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. DWORKIN, dessa maneira,

consegue conciliar a idéia de uma “personificação da comunidade289”, que trata

o ente coletivo como um verdadeiro “agente moral” vinculado a princípios

próprios, com a doutrina liberal, centrada nos direitos individuais, e que visa

conferir ao indivíduo liberdade para a formação de seus próprios valores e

responsabilidade para a sua otimização existencial.

Já nas primeiras páginas do Capítulo VI de “Law’s Empire”, é possível

constatar uma grande preocupação de DWORKIN: vincular a atuação estatal a

princípios morais290, mediante a concepção Integridade (Integrity), ideal político

288 Por essa razão, inclusive, alguns críticos defendem que DWORKIN não desenvolveu propriamente uma Teoria Geral do Direito, mas sim uma teoria da prática judiciária, visto que o problema da justificação do Direito é um problema concreto, e não filosófico. Cf. DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 20. 289 Cf. DWORKIN. Law’s..., op. cit., pp. 167 e ss. 290 Deve-se ter em mente que DWORKIN desenvolveu o seu pensamento político em meados dos anos 1970, em plena Guerra do Vietnã e no auge do movimento pelos Direitos Civis. Observa STEPHEN GUEST que esses

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que condena a “incoerência de princípio entre os atos do Estado

personificado291”. A exigência de uma atuação estatal em coerência com

princípios morais representa, na realidade, um reflexo da idéia básica do

princípio igualitário, que, em sua forma mais abstrata, exige que o Estado trate a

todos os cidadãos com equal concern and respect, uma vez que decorre da

própria garantia de um direito à igualdade, seja ela formal ou material, a

necessidade de que os atos estatais referentes aos direitos individuais encontrem

justificativa em uma teoria política amplamente aceita, e que esteja em coerência

com as demais decisões do Estado292. Trata-se de um pressuposto para que o

Estado possa se colocar perante o indivíduo como uma “autoridade moral” e

utilizar a força coercitiva de forma legítima, visando à obtenção de

comportamentos conformes à ordem jurídica estabelecida293.

A concepção de legitimidade no pensamento dworkiniano parte da noção

de que os indivíduos atuam na comunidade vinculados por “obrigações morais

genuínas”, as quais decorrem exatamente do fato de o Estado aceitar a

integridade como ideal político e, por conseguinte, firmar um compromisso com

um conjunto de valores insculpido em princípios políticos, os quais regem a

atuação estatal. Tais obrigações são, portanto, “associativas”, ou seja, decorrem

do relacionamento dos indivíduos em uma comunidade fraternal294, o que

significa que os indivíduos têm que atuar de forma comprometida e honesta, em

virtude da identificação recíproca com o ente coletivo personificado. Mas qual o

fundamento para esse compromisso firmado entre os concidadãos da

comunidade? É o reconhecimento de que a comunidade é governada por um

fatos históricos causaram fissuras na sociedade americana que podem ser observadas até hoje, e influenciaram o pensamento dworkiniano, especialmente com relação à preocupação pelo desenvolvimento de princípios diretores da conduta governamental e a reinterpretação do conceito de direitos individuais. Cf. GUEST, op. cit., p. 04. 291 “ it is inconsistency in principle among the acts of the state personified that integrity condemns”. DWORKIN. Laws..., op. cit. p. 184. 292 DWORKIN. Law’s..., op. cit., p. 185. Vide, ainda, nesse sentido, os conceitos de “Tese dos Direitos” e “Responsabilidade Política desenvolvido por DWORKIN em Taking Rights Seriously, pp. 88 e ss. 293 DWORKIN. Law’s..., op. cit., p. 190 e ss. 294 Idem. Ibidem. pp. 198 e ss.

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sistema de princípios comuns, amplamente aceitos pelos cidadãos, dos quais

derivarão todos os direitos e obrigações, dentre as quais a de que “o direito será

escolhido, modificado, desenvolvido e interpretado de um modo global, fundado

em princípios295".

Dessa forma, ao defender que a “comunidade personificada” tem um

comprometimento genuíno a um conjunto coerente de princípios de justiça,

os quais expressam, basicamente, valores como a igualdade, a democracia e o

devido processo legal, DWORKIN vincula a produção legislativa ao

comprometimento com esses princípios, bem como reconhece que a atividade

judicante, exercida pelos magistrados e tribunais, representam uma manifestação

da própria comunidade e, portanto, também deve visar à concretização dos

valores que fundamentam a comunidade.

4.2.3. A INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVISTA DWORKINIANA

A análise do pensamento de Herbert HART e de Hans KELSEN foi feita

como o fito de identificar as principais características do positivismo jurídico,

uma vez que essa corrente filosófica possui pressupostos antagônicos ao

paradigma dworkiniano. Com efeito, é possível identificar, a essa altura, pelo

menos três traços fundamentais da filosófica positivas: i) em termos estruturais,

o positivismo conceitua o direito como um sistema hermético de regras, que

extraem o seu fundamento de validade em uma regra superior, à qual HART

denomina de “regra de reconhecimento” e KELSEN de “norma fundamental”;

ii) em termos valorativos, apóia-se o positivismo em um relativismo moral,

argüindo, em síntese, que o Direito e a Moral são áreas distintas do

conhecimento e que, portanto, o estudo científico do Direito não depende de

avaliações valorativas, mas sim deve possuir uma preocupação

295 “the promise that Law will be chosen, changed, developed, and interpreted in na overall principled way”. DWORKIN. Law’s... , op. cit., p. 214.

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analítico/descritiva do fenômeno jurídico ; e iii) em termos interpretativos, o

positivismo adota a teoria da discricionariedade judicial, aproximando o juízo

interpretativo do magistrado a um simples ato de vontade.

Conforme visto, DWORKIN inicia o seu ataque ao positivismo jurídico

com uma crítica estrutural, sustentando que essa corrente filosófica ignorou a

existência dos princípios, padrões que possuem uma dimensão moral e que

exercem uma função decisiva no raciocínio judicial, especialmente nos casos

controversos (hard cases). A filosofia dworkiniana, nesse sentido, constitui um

novo paradigma jurídico, posto que defende que o Direito deve ser

compreendido como um “compartimento” da Moral, ou seja, o Direito insere-se

na Moral e deve, a partir dela, ser compreendido.

A terceira dimensão crítica de DWORKIN ao positivismo jurídico, e sem

dúvida a mais relevante para o presente trabalho, diz respeito à interpretação do

Direito: para DWORKIN, o Direito é um fenômeno essencialmente

interpretativo. O construtivismo político rawlsiano, nesse ponto, também exerce

um papel fundamental.

Sem embargo, DWORKIN denomina o seu modelo interpretativo de

“construtivista” tendo em mente o “procedimento de construção” nos moldes

expostos no “Liberalismo Político” rawlsiano, dando ênfase, notadamente, a

dois aspectos fundamentais do construtivismo rawlsiano: ao raciocínio prático e

à objetividade moral.

4.2.3.1. Razão prática e o Construtivismo Político

Pode-se verificar o embrião do conceito de razão prática na filosofia

aristotélica. Com efeito, no Livro VI da “Ética a Nicômaco”, o filósofo grego

afirma que as pessoas “sábias na prática” são aquelas “capazes de deliberar bem

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com vista a obter algum fim particular valioso(...)296”. Trata-se, assim, de uma

virtude relacionada com o deliberar com a intenção de alcançar as coisas que são

boas aos seres humanos. Já no pensamento político contemporâneo, o termo

“razão prática” ganhou importância da “reabilitação/renascimento da filosofia

prática”, ocorrida nos anos 1960 e que consistiu no “renascimento do interesse

filosófico pela esfera da ação prática e pelos grandes temas da Moral, do Direito

e da Política297”.

Segundo RAWLS, na perspectiva kantiana, a razão teórica diz respeito ao

“conhecimento dos objetos dados298”, ao passo que a razão prática “é relativa à

produção de objectos de acordo com uma concepção desses objectos299”. Nesse

sentido, “enquanto a razão teórica permite a derivação de uma cadeia causal

inteira a partir da premissa maior, a razão prática permanece apenas como um

guia para a ação, que não dá uma solução exata para a deliberação300”.A razão

prática, portanto, não se baseia na causalidade, mas sim no raciocino e na

deliberação, e visa justamente chegar a um juízo moral razoável, ou seja, que

seja justificável do ponto de vista moral:

Isso é posto em evidência pelo facto de não exigirmos de um juízo moral ou político quer que as razões que o sustentam mostrem que ele se encontra ligado a um processo causal apropriado, quer uma sua explicação decorrente da psicologia cognitiva. Pelo contrário, basta que as razões apresentadas sejam suficientemente fortes301.

O raciocínio prático, segundo TAYLOR, manifesta-se através de um

“juízo comparativo” entre objetos em transição, visando demonstrar um

caminho racional para a realização de uma transição moral, a partir de juízos

296 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Édipro, 2002, p. 168. 297 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário..., op. cit., p. 975. 298 RAWLS. O liberalismo..., op. cit., p. 128. A esse respeito, cf. JESUS, Carlos Frederico Ramos. RAWLS, a Concepção de Ser Humano e os Fundamentos dos Direitos do Homem. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo, 2008, p. 40. 299 RAWLS. O Liberalismo..., op. cit., p. 128. 300 JESUS. RAWLS..., op. cit., p. 40. 301 RAWLS. O Liberalismo..., op. cit., p. 129.

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136

morais já aceites pelos indivíduos, ou seja, de “constantes implicitamente aceitas

pelo interlocutor302”. Essa é a noção de razão prática que fundamenta o

construtivismo rawlsiano, eis que o procedimento de construção, representado

pelo argumento a partir da posição original, visa à identificação de princípios de

justiça que irão regular a estrutura básica da sociedade.

RAWLS parte da “idéia fundamental de sociedade bem-ordenada como

um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos razoáveis encarados como

livres e iguais” e dotados de duas faculdades morais fundamentais, a saber, “a

capacidade para um sentido de justiça” e a “capacidade para uma concepção de

bem”, visando elaborar um mecanismo processual para o exercício do

procedimento de construção, qual seja, a posição original, a partir da qual os

indivíduos, no exercício da razão, selecionarão os princípios públicos de justiça

que regerão a estrutura básica da sociedade303. Deve restar claro que o

construtivismo político não visa atingir valores absolutos ou transformar-se em

doutrina abrangente304, mas apenas identificar valores políticos que gozam de

ampla aceitação e que servirão de base de sustentação para a discussão das

questões pertinentes à estrutura básica da sociedade.

O construtivismo rawlsiano, sem dúvida alguma, exerceu influência

decisiva no pensamento dworkiniano, já que diversas elaborações teóricas do

pensador norte-americano amparam-se nessa noção, tais como as duas

dimensões da dignidade humana e a própria concepção de igualdade de recursos,

elaborada a partir do exemplo contrafactual do mercado igualitário hipotético.

No mesmo sentido, as idéias de “conceitos interpretativos” e de

comprometimento da comunidade com princípios de justiça como forma de

302 TAYLOR, op. cit., pp. 62-63. 303 RAWLS. O Liberalismo..., op. cit., pp. 116-117. 304 Pelo contrário, observa RAWLS que “o construtivismo tenta evitar a oposição com qualquer doutrina abrangente”, O Liberalismo..., op. cit., p. 109.

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manifestação da integridade, também devem ser compreendidas a partir do

construtivismo rawlsiano, conforme será demonstrado.

4.2.3.2. A atitude interpretativa e a definição do Direito como objeto

interpretativo

DWORKIN denomina “atitude interpretativa” a ação do intérprete que

busca a melhor interpretação, em termos morais, do objeto examinado305, seja

ele uma obra de arte, uma prática social ou a lei. O interpretativismo

dworkiniano foi elaborado em contraposição à filosofia lingüística positivista,

eminentemente descritiva, e amparada na razão teórica. Conforme visto, a

filosofia positivista é caracterizada pela preocupação analítica, o que acarreta

certa passividade do intérprete frente ao seu objeto de estudo.

Em, sentido diverso, o interpretativismo dworkiniano visa impor um

objetivo ou finalidade ao objeto interpretado306, ou seja, o intérprete não se

limita a descrever o objeto, mas sim tem uma atitude ativa com relação ao

mesmo, alterando-lhe o sentido à luz dos princípios morais que o norteiam.

Assim, “a interpretação construtivista é uma questão de impor um propósito em

um objeto ou prática com o objetivo de fazê-lo o melhor exemplo possível da

forma ou gênero ao qual ele pertence307”.

Nesse diapasão, deve restar claro que a atitude interpretativa fundamenta-

se na razão prática. Retoma-se, por esse motivo, a noção de TAYLOR que a

razão prática é um “argumento de transições308” que visa ao convencimento

racional dos indivíduos, a partir daquilo “com que o oponente já está

comprometido”, procurando trazer à luz uma conclusão moral que o indivíduo 305 DWORKIN. Law’s..., op. cit., p. 52. 306 Cf. GUEST, op. cit. p. 25-26. 307 “constructive interpretation is a matter of imposing purpose on na object or practice in order to make of it the best possible example of the form or genre to which it is taken to belong”. DWORKIN. Law’s…, op. cit., p. 52. 308 TAYLOR, op. cit., p. 63.

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não pode repudiar309, ou seja, para utilizar a linguagem rawlsiana, a razão prática

parte dos princípios de justiça publicamente aceitos, e objetiva confrontar

doutrinas abrangentes para, racionalmente, convencer uma das partes que uma

concepção moral é superior à outra. Nesse contexto, DWORKIN assume, com a

idéia de conceitos interpretativos, que o ato de interpretar deve partir do

pressuposto de que o objeto possui uma finalidade, e que esta se transforma com

o passar do tempo, de modo que o hermeneuta deve “impor um significado à

instituição – para vê-la em sua melhor luz – e depois reestruturá-la à luz desse

significado310”, o que significa basicamente que ele deve partir de um dado (que

pode ser uma instituição ou um texto de lei) para chegar a uma construção, que é

exatamente a reestruturação do objeto à luz da melhor interpretação dos

princípios morais a ele pertinentes.

Mas quais objetos podem ser compreendidos como interpretativos? Em

“Justice in Robes”, DWORKIN, indagando-se acerca da natureza do conceito

dogmático de direito, identifica três espécies de conceitos: os conceitos padrões

(criterial concepts), os conceitos biológicos (natural kind concepts) e os

conceitos interpretativos (interpretative concepts). Sustenta, então, que as duas

primeiras espécies de conceitos não dependem de atuação do intérprete para a

sua definição. Por exemplo, um conceito padrão, como o triângulo eqüilátero,

retira o seu significado de sua própria definição matemática (ou seja, do fato de

possuir três lados iguais). Por sua vez, um conceito biológico, “árvore”, por

exemplo, tem a sua definição extraída cientificamente da biologia. Em suma,

tanto o conceito padrão quanto o biológico exigem do intérprete um raciocínio

analítico, de forma que sua definição não envolve qualquer espécie de

deliberação moral311.

309 TAYLOR, op. cit., pp. 66 e ss. 310 “ impose meaning on the institution – to see it in its best light – and then to restructure it in the light of that meaning”. DWORKIN. Law’s…, op. cit., p. 47. 311 DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 09-11.

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Todavia, os conceitos interpretativos não obedecem a essa lógica. Trata-

se, com efeito, de conceitos que exigem um raciocínio prático, sendo definidos a

partir da argumentação valorativa, no sentido que exigem uma deliberação

moral a partir das próprias convicções dos indivíduos. São, dessa forma,

“práticas políticas complexas” das quais os indivíduos dividem uma

compreensão mínima, mas cujas peculiaridades devem ser definidas

argumentativamente, mediante o uso de uma teoria que é, ela mesma, uma

interpretação e, portanto, controversa. Por essa razão, esses conceitos não são

apreendidos analiticamente, mas sim construtivamente, através do uso da razão

prática312. Os principais conceitos políticos possuem natureza interpretativa,

dentre eles o Direito.

Nesse diapasão, DWORKIN sustenta que as doutrinas positivistas se

equivocam ao tratar o Direito como um conceito analítico, eis que a mera

descrição do fenômeno jurídico não abrange toda a sua complexidade. Nesse

sentido, a perquirição do conceito doutrinário do Direito deve começar com a

sua definição, em uma primeira etapa da interpretação construtivista

denominada “Etapa Semântica” (Semantic Stage)313, como um conceito

interpretativo.

Enquanto conceito interpretativo, o Direito deve ser definido à luz dos

argumentos políticos que oferecem a sua melhor justificação filosófica.

Conforme visto, DWORKIN compreende o Direito como um “compartimento”

da Moral, e, nesse sentido, em uma “Etapa Filosófica” (Jurisprudential Stage), o

intérprete deve buscar, na moralidade política, os valores que informam e

mostram os principiais conceitos jurídicos, como o de legalidade e Estado de

312 DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 12. 313 Em Law’s Empire DWORKIN apresenta três etapas da interpretação construtivista, a saber: a etapa pré-interpretativa, a etapa interpretativa e a etapa pós-interpretativa (vide, op. cit, pp. 65 e ss.). Já em Justice in Robes DWORKIN utiliza outra denominação para esse procedimento interpretativo e faz uma explicação pormenorizada. Esta última obra, tanto por ser mais completa quanto por ser mais recente, servirá de base para a análise das etapas da interpretação construtivista.

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Direito, em sua melhor luz. É nessa etapa que a integridade e a igualdade

exercem um papel decisivo para a definição do Direito314.

Fica explícito, assim, que DWORKIN pretende uma nova leitura da

própria definição de legalidade. Com efeito, um dos principais axiomas do

positivismo jurídico é o de que a compreensão do fenômeno jurídico não

depende do endosso de qualquer valor, ou seja, que o estudo e definição do

Direito devem ser neutros. DWORKIN, a seu turno, defende que o Direito deve

ser compreendido, filosoficamente, a partir dos valores que o interprete entende

serem essenciais para a ordem jurídica. Nessa visão, o próprio positivismo pode

ser compreendido de outra maneira: não a partir de uma teoria a respeito do

significado dos termos jurídicos (filosofia lingüística) ou de uma teoria que diga

respeito apenas ao conceito científico (ou puro) do Direito, mas sim como uma

doutrina que decorre do comprometimento com certos valores políticos, como a

segurança jurídica e a democracia315. A divergência entre o “direito como

integridade” e o positivismo jurídico passa, nesse sentido, do prisma da

ontologia, para o da axiologia: enquanto o positivismo, à luz desse novo

paradigma, passa a ser visto como uma teoria que endossa a segurança jurídica

como valor basilar do Estado de Direito, o “direito como integridade” dá

preferência “ao princípio que o Estado deve tentar, o máximo possível, governar

através de um conjunto coerente de princípios políticos cujos benefícios ele

estende a todos os cidadãos316”, princípio esse que foi denominado de

“integridade política”, e que tem implícita em sua própria concepção o princípio

abstrato igualitário.

314 DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 13. 315 DWORKIN expressa esse entendimento na palestra proferida para o Holberg Prize Symposium 2007, denominada: Law and Polítical Morality. Vídeo disponível em http://video.google.com/videoplay?docid=-8182465071522193147&hl=undefined#. Acesso em 11.10.09. 316“ to the principle that a state should try si far as possible to govern through a coherent set of political principles whose benefit it extends to all citizens”. DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 13.

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Sem dúvida, o Estado de Direito, à luz da teoria dworkiniana, deve ser

compreendido a partir de duas idéias basilares: i) a de que o Estado tem o dever

de atuar de acordo com um conjunto coerente de princípios políticos; e ii) a de

que o Estado tem o dever de tratar aos cidadãos com igual respeito e

consideração, estendendo os benefícios decorrentes dos princípios ao qual se

submete a todos os indivíduos, indiscriminadamente. Em termos concretos, esse

comprometimento estatal com o princípio igualitário estipula um dever de, por

intermédio de seus poderes políticos (Executivo, Legislativo e, principalmente, o

Judiciário), buscar a realização da igualdade de recursos, ou seja, a igualdade de

recursos servirá como parâmetro de avaliação das políticas públicas elaboradas

pelo Poder Executivo, das leis promulgadas pelo Poder Legislativo, e das

decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Todos os conceitos políticos

explanados na primeira parte da presente dissertação devem, portanto, ser

utilizados como substrato para a compreensão do Direito no pensamento

dworkiniano.

Assim, na teoria dworkiniana, alguns conceitos centrais da teoria do geral

do direito, como por exemplo a legitimidade da ordem jurídica, não podem ser

explicados sem que se tenha por base o liberalismo igualitário dworkiniano. Por

exemplo, o conceito de legitimidade, que no positivismo hartiano provém do

“aspecto interno da regra”, que decorre do fato de um determinado padrão

jurídico ser reconhecido, por uma regra de reconhecimento suprema

habitualmente aceita, como pertencente ao ordenamento jurídico, agora ganha

contornos substantivos. Com efeito, DWORKIN recorre à idéia de legitimidade

política, proveniente do fato de atos estatais expressarem o um

comprometimento em tratar aos cidadãos com igual respeito e consideração.

Portanto, um conceito que na doutrina positivista, tinha apenas um esboço

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formal, confundindo-se com “legalidade317”, adquire, no pensamento

dworkiniano, contornos substantivos, o que somente se compreende com o

estudo do “direito como integridade” à luz do liberalismo igualitário

dworkiniano.

O Direito é semanticamente concebido, então, como um conceito

interpretativo, e filosoficamente comprometido com a integridade e a igualdade,

de modo que os conceitos básicos da teoria geral do direito devem ser

substancialmente compreendidos à luz dos valores políticos identificados na

Etapa Filosófica. DWORKIN sustenta, assim, que em uma “Etapa Dogmática”

(Doctrinal Stage), o intérprete fixe, à luz da integridade, condições de validade

para as proposições jurídicas. Para o filósofo norte-americano, nessa etapa, o

intérprete deve fazer um juízo de adequação da interpretação que propõe fazer,

verificando se a mesma pode ser justificada se confrontada com as demais

interpretações já realizadas e, ainda, um juízo valorativo, no qual avaliará se a

sua interpretação leva em consideração os principais valores envolvidos na

proposição jurídica interpretada318. Nesse diapasão, uma proposição jurídica será

verdadeira se decorrer dos princípios morais que representarem a melhor

interpretação do ramo do Direito a que a proposição pertencer319. Um exemplo

elucidará a questão.

317 Segundo José Eduardo Faria, o conceito de legitimidade, até a Revolução Industrial, “era tratado como uma questão de definição de pautas: o poder seria legítimo à medida que estivesse em conformidade com a tradução ou com o jusnaturalismo racionalista”. Após, com o advento da Modernidade e conseqüente mudança da racionalidade universalista para a racionalidade voltada à eficiência, o problema da legitimidade passou a “ser visto como uma questão de reconhecimento de pautas: para tornar-se legítimo, o poder depende então de um critério externo aos legisladores e aos governantes, ou seja, de uma explícita aprovação popular obtida por procedimentos formais, cf. FARIA, José Eduardo. A Crise Constitucional e a Restauração da Legitimidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabrinis Editor, 1985, p. 13.FARIA, no entanto, critica o caráter excessivamente formalista da legitimidade vista pela ótica liberal, atentando para a necessidade de um conceito substantivo de legitimidade: “No entanto, essa preocupação excessivamente formal não deixará de lado a questão social? Em que medida a ênfase ao mercado, onde os mais ricos e os mais cultos têm condições substantivas de maximizar os direitos de cidadania, não perverte o princípio da igualdade?”. A doutrina dworkiniana é sensível ao problema do excessivo formalismo da legitimidade pregada pelos “liberais clássicos”, razão pela qual coloca a igualdade em destaque em sua teoria política e vincula a legitimidade à concretização da igualdade de recursos. 318 DWORKIN. Justice…, op. cit., p. 15. 319 Idem. Ibidem. p. 14.

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Imaginemos a seguinte situação: um indivíduo “A” assina um contrato de

prestação de serviços de plano de saúde com a operadora “O”. Referido contrato

possui uma cláusula na qual prevê a cobertura de “tratamento quimioterápico”,

mas contém outra cláusula que exclui a cobertura de medicamentos importados.

Após dez anos da contratação do plano de saúde, “A” foi acometido com um

raríssimo câncer, em estado metastático, e que tem como único tratamento a

realização de quimioterapia com a droga “D”, que é importada. “A”, então, liga

para o seu plano de saúde, pretendendo a obtenção de senha de autorização para

a realização de quimioterapia, com a utilização da droga “D”, no Hospital “H”,

que faz parte da rede referenciada do plano de saúde. O plano da saúde, então,

analisa a situação e responde negativamente a “A”, alegando que o contrato

firmado entre as parte não oferta cobertura ao tratamento pretendido, uma vez

que há exclusão expressa para quimioterapia com droga importada.

Inconformado, o indivíduo “A” ajuíza ação cominatória com pedido de

tutela antecipada em face da empresa “O”, alegando que a cláusula que exclui a

cobertura de medicamento importado é nula de pleno direito, vez que ofende aos

princípios basilares da legislação consumerista, como o princípio da boa-fé

objetiva (CDC, artigo 4.º, inciso III), o princípio de que o consumidor não pode

sofrer desvantagem manifestamente exagerada (CDC, artigo 39) e o princípio de

que as cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em vantagem

desproporcional são nulas de pleno direito. Sustenta, ainda, que a cláusula

ofende ao princípio da função social do contrato (CC, artigo 421) e ofende,

ademais, ao princípio da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1.º, inciso III)

e da cidadania (CF, artigo 1.º, inciso II). Por sua vez, a empresa “O” contesta o

feito, alegando que o princípio basilar das relações contratuais é o pacta sunt

servanda, e que o afastamento da mencionada cláusula fere de morte o aludido

princípio. Fundamenta a sua pretensão no princípio da segurança jurídica e da

legalidade (CF, artigo 5.º, inciso II), e diz, ainda, que o afastamento da cláusula

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irá criar alterar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado com “A”.

Desta feita, considerando que o juiz da causa aceita, semanticamente, que o

Direito é um objeto interpretativo, e, ainda, filosoficamente, que o Estado

brasileiro está comprometido com a integridade e com a igualdade, como deverá

decidir o a causa? Será que o magistrado pode afastar a aplicação da clausula

combatida e determinar que a operadora de saúde arque com o tratamento

quimioterápico de “A”? Ou, pelo contrário, deverá reconhecer que o princípio

pacta sunt servanda, amparado na legalidade e na segurança jurídica, deve

prevalecer e, portanto, a operadora não teria o dever de custear o tratamento

pleiteado?

A teoria dworkiniana recomenda que o magistrado identifique os

princípios (valores) que estão em questão e decida de acordo com aquele que

mostre o Direito “em sua melhor luz”? Assim, nessa “Etapa Decisória”

(Adjudicative Stage), o intérprete deve, à luz dos valores identificados na Etapa

Dogmática, elaborar uma decisão política que decidirá qual é o Direito no caso

concreto. No exemplo dado, há a necessidade de o intérprete, no caso o

magistrado, identificar o conflito que, em última instância, se dá entre o

princípio da dignidade da pessoa humana e a legalidade e decidir qual dos dois

deverá prevalecer.

Esse juízo, defende DWORKIN, é político320 e envolve uma apreciação

eminentemente valorativa. No caso em tela, o indivíduo “A” utiliza o que

DWORKIN denomina de “argumento de princípio”, fundamentando a sua

pretensão no direito constitucional a uma vida digna. Já a resistência da

operadora ampara-se em argumentos de natureza econômica e invoca um

princípio da teoria geral dos contratos (pacta sunt servanda) que, embora seja

importante, não pode prevalecer sobre a função social do contrato e, menos

320 Nesse sentido, cf. DWORKIN. Law’s..., op. cit., pp. 255-258; DWORKIN. A matter…, op. cit., pp. 66 e ss. DWORKIN. Taking…, op. cit., pp. 106-107.

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ainda, sobre a dignidade da pessoa humana. Por essa razão a teoria dworkiniana

indicaria uma solução em favor de “A”.

Questão interessante, e de fundamental importância para a teoria do

Direito, diz respeito à existência ou não de respostas certas em casos complexos.

Foram identificadas duas respostas possíveis no caso apresentado, ambas

juridicamente plausíveis, como deve, nessa situação, atuar o aplicador do

Direito? Deverá o magistrado, discricionariamente, escolher uma dessas

respostas ou existe um dever de buscar a melhor resposta para o caso concreto?

Filosoficamente: existem, em casos complexos, respostas melhores do que as

outras ou as soluções possuem o mesmo peso jurídico?

4.3. CETICISMO, COERÊNCIA E RESPOSTA CERTA

Talvez a principal contribuição de DWORKIN para a Filosofia do Direito

esteja em sua teoria da resposta certa (right answer theory). Embora muitos

autores tenham interpretado a afirmação que o autor norte-americano faz no

sentido de que é possível o interprete alcançar uma resposta correta em um caso

controverso como uma postura que se aproxima de um idealismo

jusnaturalista321, não foi esse o sentido que DWORKIN pretendeu conferir à sua

filosofia jurídica.

Para a plena compreensão da tese da resposta certa dworkiniana, é

necessário ter-se em mente o momento histórico em que DWORKIN escreveu a

sua teoria, bem como o estagio evolutivo da teoria política normativa norte-

americana nas décadas de 1970 e 1980. Assim, antes de adentrar propriamente

na análise do combate de DWORKIN ao ceticismo que predominava na filosofia

321 Como por exemplo, GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.42 e NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 1.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.207.

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146

do direito, faz-se necessária uma breve introdução acerca da evolução da teoria

política normativa nos Estados Unidos no século passado.

4.3.1. O PREDOMÍNIO E DECLÍNIO DO CETICISMO NA TEORIA POLÍTICA

NORMATIVA

A teoria política normativa, na primeira metade do século XX, foi

marcada pelo que VITA denominou de “eclipse da teoria política normativa322”,

em virtude do predomínio de uma “atitude intelectual de ceticismo323”,

decorrente do predomínio do positivismo lógico no campo da filosofia analítica.

Assim, ante a predominância do princípio segundo o qual “a toda razão

opõe-se uma razão de igual valor324”, os filósofos defensores do pensamento

cético defendiam a existência de proposições de duas espécies: i) as proposições

que contém conteúdo cognitivo, dentre as quais as analíticas, “que são

verdadeiras por definição325”, como por exemplo os axiomas matemáticos, e as

proposições sintéticas ou empíricas, que são passíveis de demonstração por

intermédio de um raciocínio científico apodítico ou demonstrativo; e ii)

proposições sem conteúdo cognitivo, que exprimem meramente sentimentos de

aprovação ou desaprovação326, quais sejam as proposições morais. Nesse

sentido, interessante é a constatação de TAYLOR que o ceticismo acarreta uma

“crença disseminada segundo a qual não se podem discutir posição morais327”, o

que significa dizer que uma afirmação moral não é verdadeira ou falsa, mas sim

possui conteúdo meramente subjetivo ou emotivo.

322 Cf. Apresentação da edição brasileira, RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Nova Tradução baseada na edição americana revista pelo Autor. Tradução: Jussara Simões. Revisão Técnica e da Tradução: Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2008, XII. 323 Segundo Nicola ABBAGNANO, por ceticismo (Scepticism, Scepticisme, Skepticizmus, Scetticismo) “entende-se a tese de que é impossível decidir sobre a verdade ou a falsidade de uma proposição qualquer”.Cf. ABBAGNANO, op. cit., p. 151. 324 Idem. Ibidem. p. 151. 325 VITA, Álvaro. Apresentação da edição brasileira do livro Uma teoria da Justiça, op. cit. p. XIII. 326 Idem. Ibidem. p. XIII. 327 TAYLOR, op. cit. p. 47.

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147

Foi nesse contexto teórico que BERLIN328 escreveu seu clássico ensaio

denominado “Ainda Existe a Teoria Política?329” , no qual questiona a

importância da teoria política normativa para o pensamento contemporâneo,

uma vez que não havia surgido, até então, qualquer obra grandiosa de filosofia

política330. Segundo BERLIN, em termos filosóficos, principalmente em virtude

da influência do positivismo lógico331, havia, até então, somente dois tipos de

classes de problemas para os quais os homens conseguiam obter repostas claras,

quais sejam, os empíricos, que partiam da observação fática dos fenômenos

naturais e do senso comum diário, e os formais, que consistiam e deduções

realizadas a partir de axiomas, e.g., raciocínio matemático. Afora essas espécies

de questões filosóficas, estar-se-ia no campo da “quase-ciência” ou na região

das ideologias, de modo que as proposições morais, que indagam a respeito de

questões de natureza ética ou acerca do que é justo ou injusto, não pertencem ao

reino do conhecimento filosófico-científico332.

BERLIN, todavia, rejeita a tese de que as proposições morais não são

passíveis de avaliação racional. Na verdade, sustenta que a pretensão a um

conhecimento definitivo sobre questões eminentemente conflitivas (como o

conceito de igualdade ou justiça) é uma ingenuidade teórica. Com efeito, em

uma sociedade em que predomina a pluralidade valorativa, não se pode

pretender encontrar respostas objetivas a questões dessa natureza pela simples

observação empírica dos fenômenos ou pelo raciocínio lógico-dedutivo. E, nesse

sentido, esse seria o objetivo da teoria política, a qual, sustenta BERLIN:

328 Justifica-se, aqui, a menção a esse autor em virtude da influência que BERLIN exerceu no pensamento dworkiniano, não apenas com relação ao conceito de liberdade, mas também em termos epistemológicos. 329 BERLIN, op. cit., pp. 99-130. 330 Idem. Ibidem. p. 100. 331 De acordo com Nicola ABBAGNANO, o positivismo lógico ou empirismo lógico consiste em uma corrente filosófica instaurada no Círculo de Viena e posteriormente seguida por alguns filósofos ingleses e norte-americanos, no início do século XX, e tinha como principal característica “a redução da filosofia à análise da linguagem”. Assim, negava a existência de qualquer tipo de conhecimento que não o passível de verificação empírica ou lógico-dedutiva, cf. ABBAGANANO, op. cit., p. 381. Para a filosofia do direito, o positivismo lógico ganha importância em virtude de sua influência para o pensamento kelseniano. 332 BERLIN, op. cit., pp. 99-102.

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148

não pode então evitar, pela própria natureza de seus interesses, a avaliação; está completamente comprometida, não só com a análise, mas com as conclusões da validade das idéias do bem e do mal, do permitido e do proibido, do harmonioso e do discordante, que mais cedo ou mais tarde toda discussão sobre a liberdade, justiça, autoridade ou moralidade política está fadada a enfrentar333.

Assim, os autores céticos, ao limitarem o conhecimento político científico

apenas às avaliações empíricas e formais, ignoram a própria essência da teoria

política normativa, que é a análise de julgamentos avaliativos. BERLIN

critica, nesse sentido, as teorias que utilizam os julgamentos morais apenas

como instrumentos à consecução de um fim que, supostamente, é aceito

irrestritamente pela sociedade, uma vez que estas pressupõem um consenso

onde, na verdade, há o conflito. De fato, as teorias “monistas”, como o

utilitarismo, que defendem que o objetivo da convivência social é promover “a

maior felicidade possível, compartilhada pelo maior número possível de

pessoas334”, utilizam o raciocínio segundo o qual “tudo-é-ou-um-fim-

indiscutível-ou-um-meio335”, e pressupõem a pacificação acerca da questão ética

concernente aos valores individuais: a ação individual serve a um fim maior, que

é a promoção da felicidade.

Nesse diapasão, o utilitarismo acarreta a valorização instrumental

“daquilo que se espera que as pessoas aprendam a valorizar de forma não-

instrumental336”, ou seja, a justificação de um comportamento ético, que deveria

ser algo perquirido pela teoria política normativa como finalidade, como objeto,

acabar por tornar-se um meio à realização de um objetivo social definido a

333 BERLIN, op. cit., p. 114 334 ABBAGNANO, op. cit., p. 1172. Nicola ABBAGNANO confere a formulação original da definição de utilitarismo acima transcrita a Cesare Beccaria. 335 BERLIN, op. cit., p. 108. 336 VITA, Álvaro de. A justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 15.

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priori. É nesse contexto que ganha relevância a teoria rawlsiana da “Justiça

como Eqüidade” (Justice as Fairness)

O livro “A Theory of Justice” (1971) de JOHN RAWLS é,

reconhecidamente, a grande obra de filosofia política do século XX. A teoria

rawlsiana, ao contrário do que defende o utilitarismo, parte da idéia de que toda

pessoa tem uma inviolabilidade baseada na justiça que nem o bem-estar da

sociedade pode atingir. Assim, a “Justiça como Eqüidade” traz consigo o

conceito de que certos direitos do indivíduo não podem ser violados com

fundamento no bem-estar da sociedade (utilitarismo). Para tanto, há a

necessidade de que exista uma concepção pública da idéia de justiça, ou seja,

um conjunto de princípios aceitos por todos, bem como que as instituições da

sociedade satisfaçam estes princípios337. Assim, a teoria rawlsiana representou

uma evolução da teoria de BERLIN, vez que:

Propõe-se a (...) articular uma perspectiva normativa segundo a qual se poderia demonstrar que uma determinada configuração de valores deve ser vista como preferível a outras, pelo menos para nós, que almejamos ser cidadãos de uma sociedade democrática e pelo menos com respeito a um rol de questões políticas mais urgentes que envolvem um componente de desacordo moral338.

O modelo contratualista rawlsiano, com seu argumento para a construção

racional dos princípios de justiça a partir da posição original, consiste numa

resposta ao ceticismo e ao relativismo, demonstrando os valores morais são

dotados objetividade e não dependem do arbítrio individual339. Pretende, dessa

forma, demonstrar que em uma situação de divergência acerca de questões

concernentes à moralidade, existem argumentos valorativos que são preferíveis a

outros, como demonstra, por exemplo, a concepção rawlsiana de prioridade

léxica do primeiro princípio de justiça, segundo o qual todos os indivíduos têm

337 RAWLS. A Theory, op. cit., pp. 06-07. 338 VITA. Apresentação da edição brasileira do livro Uma teoria da Justiça, op. cit. p. XVIII 339 Nesse sentido, cf. JESUS, op. cit., pp. 31-32.

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igual direito ao mais amplo rol de liberdades básicas compatível com um rol

similar de liberdades dos demais indivíduos, ao segundo princípio de justiça (as

desigualdades econômicas e sociais deverão ser dispostas de modo que: a) haja

uma expectativa razoável de ser em favor de todos; b) relacionadas a posições e

cargos abertos a todos340), ou mesmo o próprio argumento de RAWLS a favor

dos dois princípios de justiça mencionados, em detrimento do princípio da

utilidade.

A idéia de existência de razões objetivas no campo da moral pressupõe,

sem dúvida alguma, a concepção de razão prática supramencionada, que é uma

forma de raciocínio deliberativo engajado com a ação individual e sua respectiva

justificação ética341. Pressupõe, ainda, a existência de uma base pública para a

justificação dos juízos morais, “assente na conjunção dos princípios de razão

prática com concepções da sociedade e da pessoa”, sendo a idéia de

razoabilidade o padrão de correção para os juízos morais.

Portanto, tanto em “Uma Teoria da Justiça” quanto em “O Liberalismo

Político”, RAWLS retoma a essência da teoria política, que é, conforme afirma

BERLIN, que é a preocupação com os julgamentos avaliativos e dá uma reposta

“política, não metafísica342” a toda a tradição cética e relativista que o antecedeu.

Nesse diapasão, considerando que DWORKIN desenvolveu todo o seu

pensamento político e jurídico a partir do construtivismo rawlsiano, a crítica

dworkiniana ao ceticismo positivista, bem como a sua teoria da resposta certa

devem ser compreendidas como uma reverberação da construção teórica de

rawlsiana na dogmática jurídica.

340 CF. RAWLS. A Theory, op. cit., pp. 53 e ss. 341 Cf. POSNER, Richard. Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 95 e ss. 342 RAWLS. O Liberalismo..., op. cit., p. 112.

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151

4.3.2. O CETICISMO NO DIREITO E A CRÍTICA DWORKINIANA

A influência cética na teoria do Direito, notadamente na filosofia

positivista, fez com que a compreensão desse campo do conhecimento fosse

isolada dos demais, dentre eles da teoria política. Conforme visto, o positivismo

tinha como principal pretensão conferir sistematicidade e cientificidade ao

estudo jurídico, e, para tanto, fundamentou-se no relativismo moral, eis que, não

sendo as proposições morais dotadas de um conteúdo cognoscitivo, não

deveriam as mesmas ser levadas em consideração para a apreensão o estudo do

Direito

Em termos analíticos, o positivismo reduziu a sua ambição teórica à mera

descrição do Direito, sustentando que o jurista deveria abster-se de juízos

valorativos e apenas descrever, externamente, o Direito. Contrapondo-se a essa

teoria analítica positivista, DWORKIN desenvolveu o conceito de

interpretativismo, e sustentou que o filósofo deve ter uma posição ativa com

relação ao conceito jurídico em exame. Percebe-se, aqui, a nítida divergência

epistemológica existente entre os pensadores positivistas e DWORKIN:

enquanto aqueles fundavam-se na filosofia cética, a filosofia dworkiniana

insere-se na tradição rawlsiana, e traz, com isso, o comprometimento com a

filosofia prática para a compreensão do Direito.

Com efeito, ao analisar o modelo de interpretação do Direito de HANS

KELSEN, foi visto como o filosofo alemão conferia ampla liberdade para o

intérprete, dentro da moldura legal, aplicar o direito como ato de vontade: sendo

o julgamento valorativo eminentemente subjetivo, interessa para o aplicador do

direito apenas a verificação da norma aplicável, sendo a compreensão valorativa

desta apenas a expressão de uma preferência subjetiva. A posição cética

expressada pelo positivismo kelseniano insere-se, assim, no que DWORKIN

denominou de “ceticismo interior”, uma vez sustenta uma permanente

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indeterminação nos julgamentos morais343, ante a relatividade e subjetividade

dos mesmos344.

O ceticismo interior, explica DWORKIN, “apóia-se na solidez de uma

atitude interpretativa geral para pôr em dúvida todas as possíveis interpretações

de um objeto de interpretação específico345”. É o que se verifica na doutrina

kelseniana, dentre outras, na seguinte passagem de sua “Teoria Pura do

Direito”, in verbis:

Uma teoria dos valores relativista não significa – como muitas vezes erroneamente se entende – que não haja qualquer valor e, especialmente, que não haja Justiça. Significa, sim, que não há valores absolutos mas apenas valores relativos, que não existe uma Justiça absoluta mas apenas uma Justiça relativa, que os valores que nós constituímos através dos nossos atos produtores de normas e pomos na base dos nossos juízos de valor não podem apresentar-se com a pretensão de excluir a possibilidade de valores opostos346.

Evidente a influência do positivismo lógico que, como visto, surgiu na

Áustria nos anos 1920 com o Círculo de Viena, o que acarretou uma

preocupação exacerbada de KELSEN com o significado lingüístico dos

conceitos jurídicos, e um conseqüente desengajamento quanto à concretização

de princípios morais de Justiça, por intermédio pela aplicação do Direito,. Nesse

diapasão, conclusão outra não há senão a de que a interpretação do texto legal,

para KELSEN, pode levar a mais de uma solução jurídica possível do ponto de

vista lógico. Diante dessa situação, o intérprete não pode fundamentar

substantivamente a escolha por uma delas, vez que esse ato será eminentemente

político e não pode pretender apresentar-se como verdade científica347. Diante

de um caso controverso, portanto, o magistrado deve, discricionariamente,

343 DWORKIN, Ronald. Objectivity and Truth: You’d Better Believe It. Philosophy and Public Affairs, vol. 25, n.º 2: Blackwell Publishing, 1996, p. 130. 344 KELSEN. Teoria Pura..., op. cit., pp. 72 e ss. 345 “relies on the soundness of a general interpretative attitude to call into question all possible interpretations of a particular object of interpretation”. DWORKIN. Law’s..., op. cit., pp. 78-79. 346 KELSEN. Teoria Pura..., op. cit., p. 76. 347 Idem. Ibidem. p. 396.

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escolher qual solução é de sua preferência, não havendo, moralmente, qualquer

constrição à sua decisão.

Por sua vez, o positivismo hartiano representa uma postura cética que

DWORKIN denomina de “ceticismo exterior348”, ou seja, uma posição

meramente descritiva da realidade e que não pretende realizar juízos de valor

acerca da mesma. Nas palavras de DWORKIN:

O cético externo supõe que pode observar todos os julgamentos interpretativos confrontando-os com alguma realidade externa, cujo conteúdo não pode ser determinado por argumentos que se tornam familiares pela prática, mas que devem ser apreendidos de forma diversa. Ele supõe que pode ficar totalmente fora do empreendimento, dar diferentes sentidos para os julgamentos interpretativos dos que eles têm dentro dele, testar esses argumentos assim concebidos de alguma maneira diferente do que confrontar os argumentos desenvolvidos a favor e contra eles na prática ordinária da interpretação, e julgá-los todos falsos ou sem sentido quando mensurados contra esse supostamente mais objetivo padrão349.

Esse é a interpretação que DWORKIN faz da teoria hartiana, uma vez que

o filósofo inglês afirma, no pós-escrito de seu livro “O Conceito de Direito”,

que o seu relato acerca do Direito é “descritivo, na medida em que é moralmente

neutro e não tem propósitos de justificação350”. Portanto, existe uma sensível

diferença entre a afirmação kelseniana de que a interpretação do Direito é um

“ato de vontade”, e a de HART no sentido que os juízes, em casos controversos,

decidem “discricionariamente.

348 DWORKIN trata expressamente desse aspecto do positivismo de HART in DWORKIN. Justice..., op. cit., pp. 140 e ss. 349 “The external skeptic supposes he can check all interpretative judgments against some external reality whose content is not to be determined by arguments of the sort made familiar by the practice but which is to be apprehended in some other way. He supposes that he can step wholly outside the enterprise, give some different sense to interpretative judgments from the sense they have within it, test these judgments so conceived in some way different from confronting the arguments deployed for and against them in the ordinary practice of interpretation, and find them all false or senseless when measured against this supposedly more objective standard”. DWORKIN. A Matter..., op. cit., p. 176. 350 HART, op. cit., p. 301.

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Com efeito, a postura de KELSEN é interpretativa e reflete uma postura

moral351, posto que o filósofo alemão ampara-se em uma teoria do relativismo

moral para negar qualquer possibilidade de se realizar um julgamento avaliativo

objetivo. Já HART, por sua vez, abstém-se de julgamentos morais em nome de

uma pretensão descritiva. Não nega, efetivamente, a existência de valores

morais objetivos, mas sim os renega enquanto pretensão de construção de uma

teoria geral do Direito. Dessa forma, embora ambos defendam posições

“moralmente neutras”, o fazem por razões distintas.

Todavia, tanto o positivismo kelseniano quanto o hartiano trazem uma

conseqüência concreta importante para a prática jurídica: o descompromisso do

jurista com a moralidade. De fato, a neutralidade positivista, de uma forma

geral, acarreta um excessivo formalismo na interpretação do Direito e, por

conseguinte, o seu fechamento hermético, colocando-o em descompasso com a

realidade. Nesse ponto, a teoria dworkiniana representou um verdadeiro avanço

com relação às doutrinas positivistas, vez que, além de ter aberto o sistema

jurídico para a interrelação com outras áreas do conhecimento, preocupou-se

com a sua legitimidade e efetividade no momento áureo da prática jurídica: na

sua aplicação ao caso concreto.

4.3.3. INTEGRIDADE E COERÊNCIA

A interpretação construtivista dworkiniana, conforme visto, visa à

construção (ou reconstrução) do direito vigente à luz da moralidade política

vigente em um determinado momento histórico. Em tal processo, o magistrado,

ao decidir, “reconcilia as decisões racionalmente reconstruídas do passado com

pretensão à aceitabilidade racional no presente, ou seja, reconcilia a história com

351 Embora DWORKIN não dialogue diretamente com KELSEN, o filósofo norte-américano refuta o argumento cético “interior” utilizando os mesmos argumentos que se passa a expor. Cf. DWORKIN. Law’s..., op. cit., pp. 78 e ss. e DWORKIN. Objectivity and Truth..., op. cit., pp. 129 e ss.

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a justiça352”. Tendo como paradigma o direito norte-americano, no qual é

possível se identificar uma prática jurisprudencial de mais de dois séculos,

DWORKIN aproxima a interpretação da norma legal da interpretação literária,

ressaltando a necessidade de coerência entre as interpretações produzidas no

presente com a “história legal” produzida no passado.

Para o filósofo norte-americano, a interpretação do direito se aproxima da

interpretação das obras de arte na medida em que o magistrado, assim como o

crítico literário, deve interpretar o direito como um todo coerente, ou seja, eles

têm o “dever de criar, na medida do possível, um romance único e integrado353”.

Nesse diapasão, a interpretação direito seria, metaforicamente, como um

“romance em cadeia” (The Chain of Law), descrito por DWORKIN nos

seguintes termos:

Cada juiz é, então, como um romancista na cadeia. Ele ou ela deve ler através do que outros juízes escreveram no passado não apenas para descobrir o que esses juízes disseram, ou seus estados de consciência quando disseram isso, mas para alcançar uma opinião acerca do que esses juízes coletivamente fizeram, no sentido que cada um dos nossos romancistas formaram uma opinião a respeito do romance coletivo até então escrito. Qualquer juiz forçado a decidir uma controvérsia judicial vai achar, se procurar nos livros apropriados, registros de muitos casos plausivelmente similares decididos há décadas ou mesmo séculos por outros juízes de diferentes estilos e filosofias jurídicas e políticas diversas, em períodos nos quais processos e convenções judiciais eram diferentes. Cada juiz deve se considerar, ao decidir um novo caso, como um parceiro em um empreendimento em cadeira complexo dos quais essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história354.

352 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade I. 2.ª ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 264. 353“duty to create, so far as they can, a single, unified novel”. DWORKIN. A Matter..., op. cit., p. 159. 354 “each judge is then like a novelist in the chain. He or she must read through what other judges in the past have written not only to discover what these judges have said, or their state of mind when said it, but to reach an opinion about what these judges have collectively done, in the way that each of our novelist formed an opinion about the collective novel so far written. Any judge forced to decide a lawsuit will find, if he looks in the appropriate books, records of many arguably similar cases decided over decades or even centuries past by many other judges of different styles and judicial and political philosophies, in periods of different orthodoxies of procedure and judicial convention. Each judge must regard himself, in deciding the new case before him, as a partner in a complex chain enterprise of which of these innumerable decisions, structures, conventions and practices are the history”. Idem. Ibidem. p. 159.

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156

Assim, o magistrado deve considerar a sua interpretação como um novo

capítulo de um romance já iniciado, cabendo a ele, nesse diapasão, olhar o que

foi escrito previamente, interpretar toda a prática que o precede, e inserir a sua

contribuição nesse todo complexo, a qual deverá ser coerente com o mesmo e,

ainda, demonstrar a sua finalidade ou valor. Nesse ponto, é nítida a influência da

expressão-chave da hermenêutica gadameriana “wirkungsgeschichte” (história

dos efeitos ou das determinações), pelo qual “Gadamer pretende dizer que o

intérprete pode preparar-se para a tarefa interpretativa apenas num contexto de

interpretações já dadas, que agem sobre ele de modo irreflexo, levando-o a lidar

não com um objeto “virgem”, mas com estratificações de sentido fornecidas

pelas interpretações passadas355”. GADAMER, partindo do conceito

heideggeriano de “circulo hermenêutico”, o qual faz HEIDEGGER “derivar

fundamentalmente a estrutura circular de compreensão a partir da temporalidade

da pre-sença356”, sustenta que a tarefa hermenêutica se desenvolve a partir da

própria coisa interpretada, de modo que “aquele que quer compreender não pode

se entregar de antemão ao arbítrio de suas próprias opiniões prévias, ignorando a

opinião do texto da maneira mais obstinada, conseqüente possível – até que este

acabe por não poder ser ignorado e derrube a suposta compreensão357”.

Os dados constituem, dessa forma, a pré-compreensão do objeto

interpretado, no sentido que a hermenêutica deverá partir dos conceitos prévios,

“que serão substituídos por outros mais adequados358”. DWORKIN, assim, parte

da hermenêutica gadameriana para defender que o magistrado, ao interpretar a

lei, deverá fazê-lo a partir das decisões passadas, mas reconstruindo-as,

coerentemente, com o direito vigente, em termos semânticos e, principalmente,

em termos valorativos ou substantivos, sendo essa exigência um reflexo da 355 ABBAGNANO, op. cit, p. 1206, v. Wirkungsgeschichte 356 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 9.ª ed. Tradução: Flávio Paulo Meurer. Nova Revisão da Tradução por Enio Paulo Gianchini. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 354. 357 Idem. Ibidem. p. 358. 358 Idem. Ibidem. p. 356.

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integridade, que exige, como visto, da comunidade personificada uma atuação

em acordo com um conjunto coerente de princípios políticos. Dessa forma,

considerando que o Judiciário é uma manifestação da “comunidade

personificada”, deverá, também, observar em sua atuação, os princípios políticos

que informam o todo coletivo.

O requisito interpretativo da “coerência”, assim, não deve ser

compreendido apenas em termos formais359, mas sim substantivos. A esse

respeito, imperiosa se faz a análise das críticas dirigidas por HABERMAS e

RICOEUR à interpretação dworkiniana.

4.3.3.1. A crítica de HABERMAS ao “princípio monológico” de DWORKIN

HABERMAS descreve a filosofia jurídica dworiniana como uma “teoria

reconstrutiva do direito”, a qual tem como objetivo propiciar, por intermédio do

Poder Judiciário, uma reconstrução racional e coerente do direito vigente

mediante a observância das decisões passadas e dos princípios políticos vigentes

na sociedade. Como resultado desse reconstrutivismo racional, o Direito seria

visto como um sistema de normas idealmente coerentes, justificado

valorativamente pelas decisões tomadas no âmbito judicial360.

DWORKIN elabora sua teoria, assim, de acordo com o que HABERMAS

de denomina de “princípio monológico”:

Pois o ponto de vista da integridade, sob o qual o juiz reconstrói racionalmente o direito vigente, é uma expressão de uma idéia Estado

359 Não concordo, nesse sentido, com a crítica que Sandra Martinho Rodrigues dirige a Dworkin, no sentido de que “a coerência, na construção de Dworkin, é elevada a critério último e decisivo de “validade normativo-jurídica”; e a utilização deste critério conduz, como afirma Castanheira Neves, à desconsideração da dimensão específica exigida pelo caso concreto, e ao desprezo pelos momentos específicos que concorrem nessa decisão. Assim, sendo, a coerência não constitui um critério metodologicamente válido”, cf. RODRIGUES, Sandra Martinho. A Interpretação Jurídica no Pensamento de Ronald Dworkin: uma abordagem. Coimbra: Almedina, 2005, p. 152. Conforme será visto, a coerência, no pensamento dworkiniano, serve a critérios substantivos (ou seja, trata-se de coerência com valores políticos-normativos), e não a critério jurídico-dogmáticos, como, no caso da crítica em tela, é a validade. A preocupação de Dworkin com a coerência interpretativa, portanto, não é formal ou metodológica, mas sim substantiva. 360 HABERMAS. Direito e Democracia...I, op. cit., pp. 261 e ss.

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de direito que a jurisdição que a jurisdição e o legislador político apenas tomam empréstimo ao ato de função da constituição e da prática dos cidadãos que participam do processo constitucional. Dworkin oscila entre a perspectiva dos cidadãos que legitima os deveres judiciais e a perspectiva de um juiz que tem a pretensão de um privilégio cognitivo, apoiando-se apenas em si mesmo, no caso em que a sua própria interpretação diverge de todas as outras361.

A crítica habermasiana, nesse sentido, consiste no fato de DWORKIN

depositar no magistrado a tarefa de interpretar os valores comunitários e realizar

a reconstrução do direito vigente. Segundo o filósofo alemão, a capacidade

sobrenatural que DWORKIN confere a Hércules visa exatamente compensar o

seu isolamento da opinião publica, eis que somente um magistrado com tais

características conseguiria concretizar a integridade e realizar o modelo

interpretativo proposto pelo filósofo norte-americano.

Tal crítica deve ser vista à luz da teoria do agir comunicativo de

HABERMAS, a qual, mediante a adoção de um modelo procedimentalista de

democracia, confere à esfera pública, compreendida como uma “estrutura

comunicacional do agir orientado pelo entendimento362”, o locus apropriado

para o debate racional que formará os valores da sociedade e influenciará o

sistema político, ao qual compete a tomada das decisões. Trata-se, assim, de

uma visão de democracia completamente diversa da defendida por DWORKIN:

enquanto este confere ao Judiciário o papel de “fórum do princípio”, onde se

realizará o debate acerca dos direitos individuais (argumentos de princípio) e,

através da reconstrução racional do Direito, serão concretizados os valores

fundamentais da comunidade, HABERMAS confere à opinião pública, formada

na esfera pública (mundo da vida) o mister de modelar o sistema político na

tomada das decisões democráticas.

361 HABERMAS. Direito e Democracia...I, op. cit, p. 276. 362 HABERMAS. Direito e Democracia... II, op. cit., p. 92.

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Nesse contexto, a crítica habermasiana é no sentido de que o princípio

monológico em que se baseia a interpretação construtivista dworkiniana

apreende a interpretação do Direito como um ato singular, e não como “um

empreendimento comum, sustentado pela comunicação pública dos cidadãos363”.

Pela mesma razão, falha a teoria dworkiniana ao defender que Hércules seria

capaz de alcançar a única resposta certa pertinente a cada caso concreto, tendo

em vista que a compreensão da teoria do discurso jurídico como um desenrolar

argumentativo, mediante a qual se obtém apenas uma aceitabilidade racional, e

não argumentos cogentes, faz com que a teoria do direito que DWORKIN

atribui a Hércules “teria que ser vista como uma ordem de argumentos por

enquanto coerentes, construída provisoriamente, a qual se vê exposta à crítica

ininterrupta364”.

A crítica de HABERMAS parte de uma premissa correta: a parte mais

frágil da doutrina dworkiniana consiste na atribuição da interpretação do direito

ao juiz Hércules. DWORKIN lança mão desse artifício visando blindar-se de

uma suposta crítica de inaplicabilidade prática de sua teoria do direito, ante as

suas complexas exigências interpretativas, mas acaba abrindo espaço para uma

interpretação idealista de sua teoria. Sem embargo, Hércules é completamente

desnecessário para o entendimento do “direito como integridade”. Nesse

sentido, a crítica ao princípio monológico que fundamenta a interpretação do

direito de DWORKIN tem o mérito de explicitar o idealismo que se mostra

presente na interpretação construtivista dworkiniana: a pretensão de mostrar que

um juiz sobrenatural poderia apreender interpretativamente toda a história

jurisprudencial, toda a prática jurídica e todos os valores políticos existentes em

uma determinada comunidade e chegar a uma solução correta em um hard case.

363 HABERMAS. Direito e Democracia...I, op. cit., p. 278. 364 Idem. Ibidem. p. 282.

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Duas ponderações, todavia, devem ser feitas. Em primeiro lugar, a leitura

idealista da teoria dworkiniana não é apropriada e, com certeza, não expressa a

visão do autor norte-americano acerca do direito. Pode-se afirmar, com

convicção, que DWORKIN não sustenta a existência concreta de uma resposta

correta nos casos controversos, o que será objeto de estudo no item 4.3.4.

Em segundo lugar, deve-se ter em mente que DWORKIN, em seu livro

mais recente, denominado “Is Democracy Possible Here?”, exalta o debate

político, construído racionalmente por intermédio de princípios políticos

comuns, como forma de deliberação democrática acerca das questões políticas

mais relevantes da comunidade. Assim, embora haja uma descrença implícita

nos poderes legislativo e executivo na teoria dworkiniana, o que explica a visão

idealista da figura do magistrado, DWORKIN não ignora a importância do

debate público para a formação dos valores comunitários.

4.3.3.2. A crítica de Paul Ricoeur: a falta de uma teoria da argumentação

no pensamento dworkiniano

A leitura que RICOEUR faz a interpretação construtivista dworkiniana

parte da constatação de que o filósofo norte-americano, visando combater as

vigas mestras do pensamento juspositivista, desenvolveu uma “teoria da

interpretação” visando sustentar que é possível, nos hard cases, chegar a uma

resposta justa, sem que seja necessário o recurso ao arbítrio judicial: “é nesse

instante crítico que a teoria jurídica encontra o modelo do texto literário e o

submodelo do texto narrativo, que, nas mãos de Dworkin, passará a ser o

paradigma do texto literário365”.

A partir, então, da “fábula da cadeia de narradores”, explica RICOEUR, a

interpretação construtivista dworkiniana coloca em relevo o princípio

365 RICOEUR, op. cit., p. 157.

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hermenêutico da interpretação recíproca da parte e do todo, conferindo ao

interprete a tarefa de realizar o “fit” hermenêutico, “uma vez que a interpretação

recorre de modo visível, na reconstrução do sentido do texto, a relações de

conveniência, justeza ou ajuste entre a interpretação proposta de um trecho

difícil e a interpretação do conjunto da obra366”.

No entanto, para RICOEUR, a teoria da interpretação construtivista

dworkiniana carece de uma teoria da argumentação “que pudesse perfeitamente

ser assumida a título mesmo de critério de coerência, seja esta redutível ou não à

coerência narrativa367”. Todavia, o próprio RICOEUR encarrega-se de,

brilhantemente, identificar a razão pela qual DWORKIN não desenvolve uma

teoria da argumentação jurídica. Citando o livro de DWORKIN denominado

“The Philosophy of Law”, RICOEUR assevera que

Pode-se então perguntar por que Dworkin não explorou uma teoria mais refinada da argumentação. Certamente não é por falta de sutileza, pois se trata de temível polemista; mas por razões mais profundas que são mais bem entendidas quando abordamos a seção “Law as Interpretation” de Matter of Principle do ensaio “Is Law a system of rules?”, extraído de The Philosophy of Law. Esse ensaio revela que DWORKIN está muito menos interessado na formalidade dos argumentos do que em sua substância e – cabe dizer desde já, em sua substância moral e política. A concepção de direito proposta por esse notável artigo assenta numa hierarquia entre os diversos componentes normativos do direito. Mas uma vez, é a polêmica com o positivistamo de Hart que conduz o jogo. O que se denuncia aí é a cumplicidade entre a rigidez jurídica vinculada à idéia de regra unívoca e o decidionismo que redunda no aumento do poder discricionário do juiz. A univocidade – como se diz com insistência – é uma característica das regras. Não convém aos princípios que, em última análise, são de natureza ético-jurídico. O direito estabelecido, na qualidade de sistema de regras, não esgota o direito como empreitada política368.

366 RICOEUR, op. cit., p.157. 367 Idem. Ibidem. p. 158-59, 368 Idem. Ibidem. p. 159.

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Assim, retomando a distinção feita por DWORKIN entre “regras,

princípios e políticas”, RICOEUR destaca duas características do pensamento

dworkiniano. Em primeiro lugar, a despreocupação com a forma. Com efeito,

DWORKIN não é um autor que escreve de forma sistemática, e, muitas vezes,

peca pela imprecisão dos conceitos que utiliza (muitos dos quais, inclusive,

diferem do comumente utilizado na literatura jurídica). Isso se explica, no

entanto, pela segunda característica marcante da filosofia dworkiniana: a

preocupação com a substância, ou seja, o desenvolvimento da teoria do direito

a partir da teoria política normativa.

Trata-se de um aspecto da teoria dworkiniana que se procurou colocar em

relevo na presente dissertação: embora não se possa extrair, da obra de

DWORKIN, uma verdadeira teoria geral do direito, ante a falta de definição de

alguns conceitos jurídicos clássicos, como os de validade e argumentação, o

“direito como integridade” tem o mérito de relevar a importância da forma, tão

prezada pelos positivistas, e colocar em destaque a substância.

Por essa razão, a tese da resposta certa não pode ser compreendida em

termos lógico-formais, ou mesmo em termos ideais, mas sim deve refletir a

preocupação de DWORKIN com o resgate do dever judicial de buscar a

interpretação mais justa, conforme será visto.

4.3.4. UMA LEITURA DA “ TESE DA RESPOSTA CERTA”: O DEVER BUSCAR A

MELHOR SOLUÇÃO

A interpretação do Direito foi tratada, na teoria dworkiniana, como uma

verdadeira “teoria da prestação jurisdicional”. DWORKIN preocupou-se, nesse

sentido, não apenas em formular, abstratamente, uma filosofia interpretativa,

mas sim em concretizá-la na aplicação do direito, pelo magistrado, nos casos sub

judice.

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Para tanto, o ponto de partida é a rejeição tanto do ceticismo “interior”,

quanto do ceticismo “exterior”. Primeiramente, DWORKIN afirma que o

Direito é um objeto “interpretativo”. Conforme visto, isso significa que o teórico

e o aplicador do Direito elaboram verdadeiros “juízos interpretativos” ao

examinar os conceitos jurídicos. O intérprete, nesse contexto, assume uma

postura ativa, devendo reestruturar o sentido dos conceitos jurídico à luz da

moralidade política da comunidade. O valor político determinante desse

processo é a integridade, que determina que a elaboração, interpretação e

aplicação do Direito deve ser comprometida com um conjunto coerente de

princípios morais, dentre os quais a Justiça, a eqüidade e o devido processo

legal. De forma concludente, DWORKIN afirma que as teorias descritivas do

Direito, que se consubstanciam em um ceticismo exterior, não apenas deixam de

apreender a faceta mais importante do fenômeno jurídico, que é a sua dimensão

de moralidade369, mas, ainda, são filosoficamente equivocadas. O são por

simplesmente ignorarem o fato de que a análise de conceitos políticos como a

igualdade, a liberdade, e o Direito não pode ser meramente descritiva, mas antes,

exige, necessariamente, um julgamento substantivo, normativo e politicamente

engajado, ou seja, deve fundamentar-se na teoria política370.

O ceticismo “interior” expressa, por sua vez, uma posição

verdadeiramente cética e pretende, interpretativamente, afirmar que “nenhum

juízo moral é realmente melhor do que qualquer outro371”. Por isso, inclusive,

KELSEN abstrai completamente a validade da norma jurídica com a

conformação com qualquer valor, vez que existem, na comunidade, diversas

concepções de Justiça, possivelmente contraditórias entre si372, não cabendo ao

filósofo do Direito emitir juízos avaliativos acerca das mesmas. A aplicação do 369 Essa é a crítica que está por trás da afirmação que DWORKIN faz no sentido que o Direito não é apenas composto por regras, mas também por princípios e por políticas. 370 Dentre diversas passagem em que DWORKIN expressa essa crítica à filosofia positivista “descritiva”, destaca-se, por ser mais recente, DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 143. 371 DWORKIN. Law’s..., op. cit., p. 85. 372 KELSEN. O Problema..., op. cit.. pp. 69-70.

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Direito, nesse sentido, expressa apenas um ato de vontade conformado com as

proposições jurídico-normativas: trata-se da exteriorização de um juízo subjetivo

(emotivo).

A crítica de DWORKIN ao ceticismo por ele denominado de “interior”

vai além da compreensão da natureza do Direito: é uma crítica sobre a própria

essência da teoria política. De acordo com o exposto, DWORKIN insere-se na

tradição rawlsiana, e, portanto, inclui em seu pensamento filosófico a pretensão

de RAWLS de retomar a teoria política para promover a justificação racional de

certa disposição de valores. DWORKIN utiliza-se, para tanto, do construtivismo

rawlsiano para justificar a defesa de seu liberalismo-igualitário. Visa-se, no

construtivismo político, a obtenção de uma base de sustentação para o debate

político, para a discussão de questões fundamentais, para constituir um consenso

de sobreposição acerca dos valores políticos razoáveis, permitindo sempre a

existência de um pluralismo razoável, ou seja, que haja um consenso acerca das

idéias fundamentais entre doutrinas abrangentes e razoáveis em uma sociedade

democrática, o que acarreta a inexistência de uma doutrina absoluta, mas sim um

consenso razoável acerca de questões de justiça política373. O construtivismo,

portanto, não pretende que os indivíduos abandonem as suas concepções

políticas, mas sim que aceitem a existência de valores políticos basilares,

dotados de caráter público, acerca dos quais deverão ser desenvolvidas as

divergências sobre questões da estrutura básica da sociedade, ou seja, os

cidadãos, em uma sociedade democrática, deverão definir “as suas diferenças

fundamentais em função da idéia de razão pública374”.

Existem, nesse sentido, certos valores que, racionalmente, devem ser

aceitos pelos indivíduos e deverão informar a elaboração das instituições

políticas da comunidade. A aceitação da teoria construtivista por DWORKIN

373 Cf. RAWLS. O Liberalismo..., op. cit., p. 45. 374 Idem. Ibidem. p. 112.

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fica bastante clara na concepção dworkiniana de personificação da comunidade

e na defesa que ele faz no sentido que a comunidade norte-americana aceita o

princípio igualitário abstrato como fundamento do Estado democrático: o

princípio igualitário constitui, para DWORKIN, um valor consensual, no sentido

de que as divergências políticas e morais deverão não ir contra a igualdade, mas

sim partir desse valor para a construção dos demais.

A forma axiomática com que DWORKIN concebe a igualdade faz,

conforme visto, com que seu pensamento seja constantemente aproximado da

escola jusnaturalista. Essa interpretação da filosofia dworkiniana equivoca-se,

todavia, justamente pelo fato de ignorar a base construtivista que DWORKIN

utilizou para fundamentar a sua doutrina. A igualdade, nesse sentido, não deve

ser considerada um valor transcendente, mas sim a conseqüência de uma

construção histórica375. Nesse contexto, o que significa a afirmação que

DWORKIN faz no sentido de que o magistrado deve buscar a melhor

interpretação moral do Direito? Significaria dizer que existe uma resposta

moralmente superior que, portanto, seria a resposta certa a ser dada em um

determinado caso jurídico?

O Direito como Integridade tem como principal nota distintiva a exigência

que DWORKIN faz de que o intérprete deve, na medida do possível, buscar a

melhor interpretação do Direito em termos morais. Essa afirmação, todavia,

refere-se a duas dimensões de um mesmo fenômeno. A primeira dimensão, que

DWORKIN denomina de “integridade pura376” (pure integrity) diz respeito à

interpretação do Direito levando-se em consideração os princípios de justiça, ou

seja, levando em consideração a justiça distributiva em sua versão mais pura e

abstrata. Em suma, significa interpretar o Direito à luz da igualdade de recursos

375 Por essa razão, afirma LUIZ WERNECK VIANNA que “a história é categoria-chave em Dworkin”, cf. VIANNA, Luiz Werneck. [et al]. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 36. 376 DWORKIN. Law’s..., op. cit., pp. 203 e ss.

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em sua forma mais plena, normativamente considerada. Nessa dimensão de

integridade o magistrado é livre para interpretar o Direito sem levar em

consideração as distorções mundanas, de modo a refletir o texto legal sob a

perspectiva da teoria política normativa:

O direito contemporâneo, entretanto, contém um outro direito que delimita sua ambições para si próprio; esse direito mais puro é definido pela integridade pura. Compõe-se de princípios de justiça que oferecem a melhor justificativa do direito contemporâneo, posto que não são vistos a partir da perspectiva de nenhuma instituição em particular, abstraindo, desse modo, todas as restrições de eqüidade e de processo que a integridade exige, Essa interpretação purificada se dirige não aos deveres distintos de juízes ou legisladores, ou a qualquer órgão ou instituição política, mas diretamente à comunidade personificada. Declara como as práticas da comunidade devem ser reformuladas para servirem, de modo mais coerente e abrangente, à visão de justiça social que particularmente adotou, mas não estabelece qual a função que cada autoridade possui nesse grande projeto377.

DWORKIN reconhece, no entanto, que o ato interpretativo encontra, no

momento histórico em que o magistrado situa-se, certas limitações que não

podem ser desconsideradas. Com efeito, além das restrições decorrentes da

impossibilidade de concretização da igualdade em sua forma plena, o próprio

Direito possui outros valores que não podem ser descartados pura e

simplesmente em nome da igualdade. Dentre eles, DWORKIN a eqüidade, por

ele utilizado com sentido peculiar, significando a harmonia no exercício do

poder pelas instituições, o devido processo legal, que impõe procedimentos que

devem ser observados para se pleitear um direito em juízo, e a própria

igualdade, aqui concretamente considerada. Nesses termos, a interpretação

possui dois momentos distintos: um no qual o magistrado deve considerar os

377 “Present Law, however, contains another law, which marks out its ambitions for itself; this purer law is defined by pure integrity. It consists in the principles of justice that offer the best justification of the present law seen from the perspective of no institution in particular and thus abstracting from all the constraints of fairness and process that inclusive integrity requires. This purified interpretation speaks, no to the distinct duties of judges or legislators or any other political body or institution, but directly to the community personified. It declares haw the community’s practices must be reformed to serve more coherently and comprehensively a vision of social justice it has partly adopted, but it does not declare which officer has which office in that grand project”. DWORKIN. Law’s…, op. cit., pp. 406-07.

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valores políticos normativos em seu caráter mais abstrato, e outro quando ele

promove uma harmonização entre a igualdade abstrata e os demais valores

concretamente considerados (integridade inclusiva). O magistrado, assim, deve

buscar, para o caso concreto, a melhor interpretação do Direito, consideradas

essas duas dimensões de integridade.

Mas de onde decorreria o dever do magistrado em buscar a melhor

solução para o caso concreto? Não poderia ele apenas fornecer uma resposta,

dentre as várias existentes? Observe-se a seguinte passagem de Law’s Empire:

O espírito da integridade, que situamos na fraternidade, seria violado se Hércules tomasse sua decisão de outro modo que não fosse a escolha da interpretação que lhe parece a melhor do ponto de vista da moral política como um todo. Aceitamos a integridade como um ideal político porque queremos tratar a nossa comunidade política como uma comunidade de princípios, e os cidadãos de uma comunidade de princípios não têm por único objetivo princípios comuns, como se uniformidade fosse tudo o que desejassem, mas os melhores princípios comuns que a política seja capaz de encontrar378.

O juiz, assim, enquanto membro da comunidade de princípio e, ainda,

enquanto órgão da comunidade personificada, tem o dever de interpretar e

aplicar a lei buscando a sua melhor concepção em termos morais. Os casos

difíceis, portanto, não exigem apenas “respostas” jurídicas, mas sim a melhor

resposta que o magistrado possa encontrar, em termos de moralidade

política. DWORKIN, no entanto,em momento algum defende que existe apenas

uma resposta correta, mas apenas que não se pode partir, como pretendem os

positivistas, da conclusão cética de que não existe uma resposta melhor do que a

outra, mas apenas respostas. Parece um tanto quanto equivocada, nesse

diapasão, ler a “tese da resposta certa” dworkiniana como que defendendo a

378 “The spirit of integrity, which is located in fraternity, would be outraged if Hercules were to make his decision in any way other than by choosing the interpretation that he believes best from the standpoint of political morality as a role. We accept integrity as a political ideal because we want to treat our political community as one principle, and the citizens of a community of principle aim not simply at common principles, as if uniformity were all they wanted, but the best common principles politics can find. DWORKIN. Law’s..., op. cit., p. 263.

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existência de uma resposta transcendental, superior, correta em si mesma, para

os casos controversos.

Pelo contrário, DWORKIN apenas afirma que, em termos morais e

políticos, existem interpretações que melhor se coadunam com os princípios de

uma determinada comunidade. Para tanto, o intérprete deve amparar-se na teoria

política normativa, o que significa, à luz do pensamento dworkiniano, que o

magistrado deve buscar no liberalismo igualitário, ou seja, na igualdade de

recursos o parâmetro para a interpretação da lei:

A igualdade é central para a filosofia política de Dworkin e forma o foco prioritário em sua filosofia jurídica. A conexão com o Direito é que fazer a melhor leitura da lei significa fazer a sua melhor leitura moral dela, e isso significa fazer a melhor leitura moral em termos igualitários 379.

Faz-se aqui, portanto, a conexão entre a filosofia política e a filosofia

jurídica de DWORKIN. A importância da igualdade de recursos, nesse sentido,

figura em termos interpretativos. Entendo que é na interpretação da Constituição

que a igualdade de recursos pode servir de parâmetro para a definição de certos

direitos individuais. Essa idéia ficará clara com a interpretação do direito à

saúde à luz da Constituição Federal de 1988, tema a ser abordado no derradeiro

Capítulo de presente dissertação.

379 “Equality is central to Dworkin’s political philosophy and forms a major focus in his legal philosophy. The connection with law is that making the best sense of the law means making the best moral sense of it and that means making the best sense of it in terms of equality”. GUEST, op. cit.. p.254.

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CAPÍTULO V

O PENSAMENTO DWORKINIANO E A INTERPRETAÇÃO DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Na primeira parte desta dissertação foram dedicados alguns capítulos para

o estudo do liberalismo igualitário dworkiniano, o qual representa uma

reinterpretação do liberalismo norte-americano, em especial da dinâmica

existente entre a igualdade, a liberdade e a fraternidade. À luz de sua teoria

política, foi visto como a interpretação do direito, para DWORKIN, não consiste

em apenas buscar o significado semântico da lei, mas sim num verdadeiro

exercício construtivo, em que o magistrado deve buscar o melhor significado

moral do instituto jurídico interpretado. A teoria do direito dworkiniana, assim,

busca uma interrelação entre o direito e a moralidade política, o que influencia

de maneira decisiva a aplicação da lei ao caso concreto.

No presente e derradeiro capítulo desta dissertação pretendo fazer uma

relação entre o pensamento dworkiniano e a interpretação da Constituição

brasileira de 1988. Pretende-se, dessa forma, mostrar de que forma o

pensamento dworkiniano pode servir como substrato para a elaboração de uma

reflexão crítica das decisões proferidas pela Ministra do Supremo Tribunal

Federal Ellen Gracie na Suspensão de Segurança n.º 3073 e na Suspensão de

Tutela Antecipada n.º 91, na qual reconheceu que as decisões do Poder

Judiciário que reconhecem o dever do Estado em fornecer gratuitamente

medicamentos de alto custo, pode representar uma violação ao artigo 196 da

Constituição da República.

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5.1. O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO E A

EVOLUÇÃO DO ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL

A Constituição brasileira de 1988, que foi corolário da redemocratização

do país ocorrida na década de 1980, é, sem dúvida alguma, o texto

constitucional mais liberal e democrático que o país já teve, visto que foi uma

das que mais ampliou o rol dos direitos sociais na história da nossa República380.

Com o advento na nova ordem constitucional, houve uma mudança na

concepção do papel do Judiciário no Brasil: antes formalista e hermético, o

Poder Judiciário passou a conscientizar-se de que havia a necessidade de

aproximar a interpretação das normas jurídicas com a realidade. Isso se deu,

basicamente, em virtude da positivação de “normas de textura aberta”, que

exigem em sua interpretação “critérios de racionalidade material381”:

No atual Estado-Providência, com seus diferentes e complexos papéis como provedor de serviços básicos, como promotor de novas relações sociais, como planejador de atividades econômicas e até mesmo como agente diretamente produtor de bens e serviços, muitas de suas leis caracterizam-se por suas funções promocionais – o que exige de seus aplicadores, nos tribunais, um esforço de compreensão valorativa de suas regras, mediante procedimentos mais abertos e flexíveis do que os previstos pela hermenêutica comum ao Estado liberal382.

FARIA constata, assim, uma mudança na racionalidade a ser utilizada

pelo Poder Judiciário a partir do advento na nova ordem constitucional: ante a

falência do positivismo jurídico e sua defesa do “fechamento estrutural” do

Direito (racionalidade formal), surge uma nova racionalidade, denominada de

“material”, que visa a compreensão do Direito a partir de seu caráter axiológico,

o que leva à substituição das “pautas hermenêuticas normativamente estritas por 380 Nesse sentido, cf. CARVALHO, José Murilo de. A cidadania no Brasil: o longo caminho. 11.ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008, pp. 199 e ss. 381 FARIA, José Eduardo. As transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais. In FARIA, José Eduardo [org.]. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. 1.ªed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 63. 382 Idem. Ibidem. p. 62.

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pautas bem mais flexíveis, baseadas em critérios de racionalidade

material(...)383”. Trata-se de uma racionalidade que busca uma reaproximação

entre a filosofia jurídica e a moralidade, pondo em relevo o conteúdo moral e/ou

político dos conceitos jurídicos.

É nesse contexto que deve ser compreendido o direito à saúde na

Constituição da República, previsto primeiramente como direito social384, no

artigo 6.º, caput e, posteriormente, no capítulo referente à Ordem Social, como

“direito de todos e dever do Estado”, devendo ser concretizado mediante

políticas públicas que visem garantir aos cidadãos o acesso “universal e

igualitário às ações e serviços para sua promoção”.

Mas o que significa acesso “universal e igualitário” aos serviços de saúde?

Naturalmente, o Poder Judiciário pátrio, por intermédio de seu órgão de cúpula,

firmou posição no sentido de que o artigo 196 da Lei Maior, enquanto

supedâneo dos princípios da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1.º, inciso

III) e da cidadania (CF, artigo 1.º, inciso II), representa a consagração do dever

estatal em garantir à população o acesso amplo e irrestrito aos meios necessários

à garantia do direito à saúde. Nesse contexto, por exemplo, menciona-se o voto

do Ministro do Supremo Tribunal Federal Dr. Celso de Mello no Agravo no

Recurso Extraordinário n.º 271.286 – 8/Rio Grande do Sul, no qual figuram

como agravante o Município de Porto Alegre e como agravada a Sra. Diná Rosa

Vieira, e cuja matéria em debate é o fornecimento de medicamento para

pacientes destituídos de recursos financeiros e portadores do vírus HIV, in

verbis:

383 FARIA, As Transformações..., op. cit., p. 63. 384 Cumpre salientar que, consoante ensina o constitucionalista português J.J. Gomes CANOTILHO que os sociais inserem-se no que ele denomina de “Constituição Social”, que consiste no “conjunto de direitos e princípios de natureza social formalmente plasmados na Constituição”, consubstanciando-se em um “superconceito que engloba os princípios fundamentais daquilo a que vulgarmente se chama ‘direito social’”. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ªed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 348.

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Na realidade, o reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, deu efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5.º, caput, e 196), representando, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essência dignidade.

Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar385.

Ademais, no decisum acima transcrito, o Douto Ministro reconheceu que

as controvérsias que envolvem o fornecimento de medicamentos de alto custo

envolvem um conflito entre, de um lado, o direito subjetivo à saúde e à vida do

cidadão que necessita do fármaco e, de outro lado, os interesses financeiros do

Estado, optando pela prevalência do primeiro “por razões de ética-jurídica”:

Tal como pude enfatizar, em decisão por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246 – SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, caput, art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana, notadamente daqueles que têm acesso, por força da legislação local, ao programa de distribuição gratuita de medicamentos, instituído em favor de pessoas carentes.

385 Fonte: http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/342_REAgR%20271286%20saude.pdf. Acesso em 22 de setembro de 2009.

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A questão do fornecimento de medicamentos, no entanto, tomou

contornos mais conflitivos com as decisões proferidas pela então Ministra

Presidente do Supremo Tribunal Federal Dra. Hellen Gracie, no ano de 2007, na

Suspensão de Segurança n.º 3073 e na Suspensão de Tutela Antecipada n.º 91.

Ambas as decisões possuem objeto semelhante, a saber, a suspensão de medida

antecipatório dos efeitos da tutela jurisdicional proferida pelo Juízo local,

determinado que o Estado fornecesse, gratuitamente, medicamentos de alto

custo a indivíduos portadores de enfermidades de extrema gravidade.

Identificando o mesmo conflito existente entre o direito subjetivo

inalienável à vida e à saúde, e os interesses estatais em efetivar as políticas

públicas de saúde e, ainda, com fulcro no mesmo artigo 196 da Constituição

Federal, a Ministra Hellen Gracie determinou a suspensão das aludidas decisões

liminares, alegando suposta lesão à ordem pública nos seguintes termos:

Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários.

Entendo que a norma do art. 196, da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao deferir o custeio de medicamento em questão em prol do impetrante, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade.

Vê-se, portanto, que, a partir da interpretação de um mesmo dispositivo

legal, houve a prolação de duas decisões diametralmente opostas: uma

reconhecendo que o artigo 196 da Constituição, ao mencionar o acesso

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“universal e igualitário” à saúde, representa um direito subjetivo inalienável e

que deve prevalecer sobre os interesses econômicos do Estado e, outra

interpretando que a garantia do acesso universal e igualitário à saúde significa,

antes, a efetivação das políticas públicas de saúde que “alcancem a população

como um todo (...) e não situações individualizadas”.

Assim, ambas as decisões são juridicamente justificáveis e representam

interpretações distintas de um mesmo artigo de nossa Carta Política. Ainda, a

controvérsia a respeito do fornecimento de medicamentos de alto custo é atual e

gerou, inclusive, a convocação de uma audiência pública, que foi realizada em

abril de 2009 e que envolveu a discussão do tema com diversos profissionais e

especialistas na área da saúde, não havendo, ainda, um posicionamento pacífico

do Supremo Tribunal Federal acerca do tema386.

Pretende-se, dessa forma, analisar como a posição exarada pela Ministra

Hellen Gracie na Suspensão de Segurança n.º 3073 , que utilizou-se de uma

racionalidade material econômica para justificar uma lesão à ordem pública,

exigiu uma melhoria qualitativa na análise da matéria, e como a teoria

dworkiniana pode ser utilizada para sustentar uma posição contrária à defendida

pela Ministra.

5.2. UMA QUESTÃO INTERPRETATIVA

A solução da controvérsia envolvendo o fornecimento de medicamentos

de alto custo, no âmbito do Poder Judiciário, deve envolver, necessariamente,

uma tomada de posição acerca da amplitude da expressão “universal e

igualitário”, contida no caput do artigo 196 da Constituição Federal. Tal

questão, no entanto, extrapola os limites do Direito. Com efeito, se partíssemos

386 No entanto, aos 18 de setembro de 2009, o Ministro Presidente Gilmar Mendes indeferiu o pedido de Suspensão de Tutela Antecipada n.º 244, reconhecendo o dever do Estado do Paraná em fornecer o medicamento NAGLAZYME (Galsulfase), tendo em vista a sua eficácia para o combate da doença que acomete o paciente.

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do “paradigma da dogmática jurídica”, o qual concebe o fenômeno jurídico

“basicamente como uma ordem coativa unitária, completa e fechada, que exclui

a contradição e a descontinuidade, satisfazendo um ideal de racionalização

formal (...)387”, a interpretação desses conceitos se reduziria a uma analise da

legalidade/ilegalidade, ou melhor, da compatibilidade ou não de uma

determinada interpretação com a nossa ordem constitucional.

Pretendeu-se no presente trabalho, a partir do exame do pensamento

jusfilosófico de RONALD DWORKIN, demonstrar que certos conceitos

jurídicos são “interpretativos” e que, por essa razão, exigem que o aplicador do

direito recorra à teoria política normativa. Ou seja, não basta a apreensão do

conteúdo formal desses conceitos à luz do ordenamento jurídico, mas sim há a

necessidade da compreensão da dimensão material do mesmos, de modo a

possibilitar ao intérprete a justificação de determinados comportamentos e,

principalmente, das decisões judiciais. Trata-se, portanto, de um exercício de

razão prática, que envolve juízos de valor e ponderações principiológicas.

Em termos constitucionais, DWORKIN denomina a atividade

interpretativa com base em princípios morais de moral reading (leitura moral).

A leitura moral, que nada mais é do que a aplicação específica da teoria “direito

como integridade” para a interpretação do texto constitucional, parte do

princípio de que os conceitos interpretativos, tais como a igualdade e a liberdade

e, no caso em tela, a universalidade e equidade do acesso à saúde, “referem-se a

princípios morais abstratos e, por referência, incorporam-nos como limites ao

poder do Estado388”. Isso significa, no contexto do pensamento dworkiniano,

que a interpretação constitucional exige do hermeneuta uma análise dos

387 FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. 1.ª edição. 4.ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004, p.269. 388 DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 10.

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princípios morais da comunidade em que ele se situa, que estão insculpidos, em

grande parte, na própria Carta Política.

Assim, verifica-se, primeiramente, que os valores que envolveram o

processo de feitura do texto constitucional, os quais foram declarados pelos

legisladores constituintes, são determinantes para a compreensão do que

DWORKIN denomina de “moralidade constitucional”, que são os princípios

informativos da Lei Maior. O que não significa, todavia, que o intérprete deve

recorrer a uma “intenção dos constituintes” ou perquirir o que eles pretendiam

dizer, mas sim que a correta compreensão dos princípios morais exige do

intérprete:

(...) um trabalho de equipe junto com os demais funcionários da justiça do passado e do futuro, que elaboram juntos uma moralidade constitucional coerente; e devem cuidar para que suas contribuições se harmonizem com todas as outras389.

A “integridade constitucional” exige, dessa forma, que o hermeneuta

analise a Constituição à luz dos princípios morais da comunidade, mas que o

faça em coerência com o passado e observando as conseqüências de sua

interpretação para o futuro, uma vez que a Constituição, enquanto texto

legislativo, “está ancorada na história, na prática e na integridade390”. Nesse

sentido, assevera DWORKIN que:

Os juízes devem submeter-se à opinião geral e estabelecida acerca do caráter do poder que a Constituição lhes confere. A leitura moral lhes pede que encontrem a melhor concepção dos princípios morais constitucionais – a melhor compreensão, por exemplo, de o que realmente significa a igualdade moral dos homens e das mulheres 0 que se encaixe no conjunto da história norte-americana. Não lhes pede que sigam os ditames de sua própria consciência ou as tradições de sua classe ou partido, caso esses ditames ou tradições não se encaixem nesse conjunto histórico391.

389 DWORKIN. O Direito..., op. cit., p. 15. Em Law’s Empire, DWORKIN denominou esse processo intepretativo de “romance em cadeia”, cf., op.cit., pp. 228 e ss. 390 Idem. Ibidem. p. 17. 391Idem. Ibidem. p. 16.

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177

A leitura moral, enquanto técnica interpretativa do texto constitucional,

pressupõe que os magistrados, ao decidirem uma determinada lide, tomam

decisões substantivas, e não meramente procedimentais. Dessa forma,

DWORKIN reserva ao Poder Judiciário um papel central tanto em sua filosofia

do direito, como em sua teoria política, uma vez que parte de uma concepção

substancialista de democracia, no sentido de que o princípio democrático se

realiza em uma determinada sociedade mediante a concretização de

determinados valores fundamentais.

Nos Estados Unidos, e idéias de que a Suprema Corte tem a incumbência

de proteger a democracia é extremamente difundida. Todavia, existe uma cisão

doutrinária acerca da forma como isso deve ser feito. Para alguns autores,

defensores da doutrina procedimentalista, cujo principal representante é John

Hart ELY, o Poder Judiciário deve zelar pelo procedimento democrático, mas

não deve adentrar em questões que envolvam julgamentos valorativos, visto que

estes são privativos do Poder Legislativo. Os procedimentalistas qualificam,

nesse sentido, um governo como democrático quando a escolha dos

representantes e a tomada das decisões observam as regras ou procedimentos

previstos na legislação. Por essa razão, IAN SHAPIRO denomina essa corrente

de “rule-centered”, destacando que as regras estão no centro ou na essência da

democracia392. Dizer que as regras estão na essência da democracia acarreta duas

características fundamentais da teoria democrática procedimentalista. A primeira

delas é que o princípio majoritário ganha um papel de destaque, razão pela qual

RONALD DWORKIN se refere a essa doutrina como “majoritarian

view”(visão majoritária), no sentido de que “a democracia é o governo pela

392 SHAPIRO, Ian. Components of the democratic ideal. In BRETON, Albert [et al]. Understanding Democracy. London: Cambridge University Press, 1997, p. 212.

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vontade da maioria393”. O procedimento democrático deve, assim, procurar

captar a vontade da maioria dos cidadãos, sem importar se essa vontade da

maioria é justa ou injusta. Isso significa que uma decisão democrática, para os

procedimentalistas, pode ser injusta, e nem por causa disso deixará de ser

democrática.

DWORKIN ressalta que a visão majoritária da democracia não exige, por

exemplo, que o debate político seja constituído de argumentos fundados em

valores políticos, visto que não há uma responsabilidade democrática para a

busca da melhor decisão para a sociedade394. O princípio majoritário, nesse

sentido, é visto para os procedimentalistas como um princípio absoluto e como

um valor político independente. Assim, da defesa do princípio majoritário

decorre a segunda característica do procedimentalismo, que é a defesa de uma

atuação restrita do Poder Judiciário, em especial da Suprema Corte. Para os

adeptos desse paradigma democrático, o Judiciário deve se limitar a intervir para

que os procedimentos democráticos sejam preservados. A interpretação

constitucional, nesse sentido, deve ser meramente procedimental, de modo a

garantir um processo legislativo democrático395.

O procedimentalismo, todavia, foi severamente criticado por sua

despreocupação com o conteúdo da decisão democrática e pelo fato de,

freqüentemente, lesar os direitos das minorias396. A partir dos efeitos nefastos

que decorrem da adoção do paradigma procedimentalista,, passou-se a

questionar se o princípio majoritário deve, de fato, ter a posição de destaque que

aquela doutrina o reservou, e se o Judiciário não deveria ter um papel mais ativo

na construção de uma sociedade democrática. A doutrina substancialista

representa uma contraposição ao puro procedimentalismo, sustentando que a

393 “democracy is government by majority will”. DWORKIN. Is Democracy…, op. cit., p. 131. 394 Idem. Ibidem. p. 132. 395 VIANNA, op. cit., p. 29. 396 SHAPIRO, op. cit., p. 212.

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democracia deve visar à consecução de determinados valores, que têm por

objetivo balizar as decisões políticas. Nesse sentido, ensina IAN SHAPIRO que

a corrente substancialista:

“(...) especifica resultados distributivos ou estado de coisas (igualdade, diminuição de certos tipos ou graus de desigualdade, ou algum outro estado) com referência aos quais os resultados de diferentes regras de decisão são avaliados por sua adequação ou justiça”397.

Trata-se, portanto, de uma doutrina teleológica da democracia, que

prioriza a realização de determinados valores políticos (outcome-centered) em

face da vontade da maioria. Ao invés da sacralização da vontade da maioria, o

substancialismo preocupa-se com a limitação dos possíveis efeitos negativos que

a decisão majoritária possa ter sobre as minorias. Em razão disto, os adeptos

desse paradigma defendem uma ação incisiva do Poder Judiciário na proteção

dos direitos fundamentais398. Esse é o paradigma democrático adotado por

DWORKIN, uma vez que o autor norte-americano entende que o princípio

majoritário não é absoluto, mas antes, pressupõe que alguns valores estejam

concretizados na comunidade. Nesse sentido, ao comentar a importância teórica

e política da decisão da Suprema Corte Americana no caso Marbury vs

Madison, DWORKIN constata que o Judiciário possui o papel de “tomar

decisões (...) sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistema constitucional,

não decisões sobre se promove melhor o bem-estar geral399”. Trata-se de uma

garantia de que as decisões envolvendo os direitos fundamentais, em uma

sociedade democrática, não serão decididas segundo uma racionalidade

econômica ou que permita a prevalência do poder político, mas antes “serão

397 SHAPIRO, op. cit., p. 212. 398 Idem. Ibidem. p. 212. 399 “make decisions of principle rather than policy – decisions about what rights people have under our constitutional system rather than decisions about how the general welfare is best promoted”. DWORKIN. A Matter..., op. cit., p. 69.

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finalmente expostas e debatidas como questões de princípio e não apenas de

poder político (...)400”.

Assim, a solução do problema proposto, que diz respeito a um dos direitos

mais importantes dentre os protegidos pela ordem constitucional pátria, exige

um juízo de moralidade política, com o intuito de determinar o alcance jurídico

da garantia que o artigo 196 da Constituição Federal confere aos cidadãos

brasileiros, qual seja, que as políticas públicas, no que diz respeito à saúde,

deverão tender à universalidade e a igualdade.

5.3. A CRISE DO ESTADO SOCIAL E O DIREITO À SAÚDE

Ao desenvolver o conteúdo abstrato do princípio igualitário, DWORKIN

tem uma nítida preocupação com a efetivação da justiça distributiva. Com

efeito, a igualdade de recursos é, efetivamente, um parâmetro normativo para a

distribuição dos bens sociais. Assim, para se verificar a utilidade que a teoria

dworkiniana pode ter para a solução do caso prático proposto, deve-se responder

à seguinte pergunta: de que forma a Constituição Federal de 1988 relaciona o

direito à saúde com a justiça social ou distributiva?

O direito à saúde, enquanto direito social, representa o direito,

parafraseando CANOTILHO, a prestações em sentido estrito401, ou seja, o

direito um ato positivo do Estado, no sentido de elaborar uma política pública

para garantir a efetivação da saúde pública. Nesse contexto, à previsão abstrata

do direito à saúde como direito social, contida no caput do artigo 6.º da

Constituição, corresponde uma norma programática, que determina a sua

efetivação mediante políticas públicas que tendam a garantir o acesso universal

e igualitário “às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

400 DWORKIN. A Matter... , op. cit., p. 70. 401 CANOTILHO, J.J. Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. 1.ª ed. brasileira. 2.ª ed. portuguesa. Coimbra: Coimbra editora, 2008, p. 51.

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Trata-se, na lição clássica de JOSÉ AFONSO DA SILVA, de uma norma

constitucional de eficácia limitada, que não estipulam direitos subjetivos, mas

antes, são normas constitucionais:

(...) através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades visando à realização dos fins sociais do Estado402.

Os direitos sociais, por essa razão, não estão abarcados pelo conceito

clássico de “direito subjetivo”, uma vez que, sendo a sua norma instituidora

meramente programática, sem, portanto, imperatividade, não existe o dever

jurídico correlativo, de modo que não haveria como se exigir, judicialmente, a

efetivação de um direito dessa natureza. Essa concepção dos direitos sociais, no

entanto, é atualmente vista como conservadora, sendo certo que, hodiernamente,

a doutrina constitucional tem compreendido que existem instrumentos

processuais para se pleitear, perante o Judiciário, a efetivação dos direitos

sociais403. Mas no que a doutrina política de RONALD DWORKIN pode

acrescentar nesse debate, em especial para o caso brasileiro?

A garantia do acesso universal e igualitário às políticas públicas

relacionadas à saúde está prevista no Título VIII do texto constitucional. Logo

no artigo 193, que inaugura o Título referente à “Ordem Social”, resta

estabelecido que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como

objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. De forma expressa, portanto, a justiça

social é vista como um parâmetro para a consecução dos direitos relacionados à

ordem social, como é o caso do direito à saúde. Nesse diapasão, visando,

402 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7. ª ed, São Paulo: Malheiros, 2008, p. 138. 403 A esse respeito, cf. CANOTILHO. Estudos..., op. cit., pp. 35 e ss. e LOPES, José Reinado de Lima. Direito Subjetivo e Direitos Sociais: o dilema do Judiciário no Estado Social de Direito, in FARIA. Direitos Humanos..., op., cit., pp. 113 e ss.

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conforme determina DWORKIN, a interpretação da Constituição à luz da

melhor compreensão moral de seus dispositivos, resta claro que o intérprete

deve atribuir significado (e não apenas descrever), com base na teoria política

normativa, aos termos “universal” e “igualitário”, expressos no artigo 196 da Lei

Maior.

5.3.1. O PROBLEMA DA GOVERNABILIDADE

Assim, o magistrado deve buscar na teoria política os critérios de justiça

para a definição e justificação da decisão que será tomada no caso concreto.

Talvez nesse ponto as decisões suspensivas de tutela antecipada proferidas pela

Ministra Ellen Gracie tenham representado um avanço na jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal, não propriamente por seus fundamentos, mas sim

por trazer ao debate o conflito que existe, em cada caso, entre a chamada

“reserva econômica do possível” (Vorbehalt des Möglichen)404 e a efetivação

dos direitos sociais405. A questão que ganha relevância, portanto, diz respeito ao

efeito que a concretização do direito à saúde pode ter sobre a governabilidade.

Segundo demonstra a Ministra Ellen Gracie na fundamentação de sua

decisão, a manutenção das decisões atacadas pela Suspensão de Segurança

poderia afetar o “já abalado sistema público de saúde”, havendo a necessidade,

nesse sentido, de uma “racionalização” entre o custo e o benefício dos

tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, de modo a abranger o

404 CANOTILHO. Estudos sobre..., op. cit., p. 52. 405 Um interessante levantamento da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca dos direitos sociais feito por Daniel Wei Liang Wang em um artigo publicado pela na Revista de Direito da GV, mostra que o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o direito à saúde pode ser dividido em duas etapas: antes da Suspensão de Tutela Antecipada n.º 91 e depois dessa decisão. Em um primeiro momento, verifica-se que o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro conferia os medicamentos pleiteados sem se preocupar com o conflito existente com a escassez de recursos, ao passo que em um segundo momento, após as decisões da Ministra Ellen Gracie, esse conflito mostrou-se mais evidente, o que representou “ganhos qualitativos em razão da maior qualidade da argumentação”. Cf. WANG, Liang Wei Daniel. Escassez de Recursos, Custo dos Direitos e Reserva do Possível na Jurisprudência do STF. Revista Direito GV – São Paulo. Julho-dezembro de 2008, pp. 538-568. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v4n2/a09v4n2.pdf. Acesso em 16.11.2009.

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maior número possível de pessoas. É nítida, assim, a preocupação com uma

possível incapacidade de efetivar as políticas públicas relacionadas à saúde, na

hipótese de manutenção das decisões que obrigaram o Estado a fornecer

gratuitamente os medicamentos de alto custo, ou seja, com o aumento da

litigância acerca do acesso aos tratamentos e medicamentos de alto custo, pode

ocorrer que as despesas sociais cresçam de forma mais acelerada dos que os

meios disponíveis para financiá-las. Assim, assevera FARIA:

Como é sabido, essas despesas, uma vez efetivadas, convertem-se em direitos sociais que acabam não podendo mais ser suprimidos sem o risco de grandes tensões – sob forma de greves por vezes selvagens, protestos por vezes violentos, e grandes mobilizações – para a sustentação dos governos e para a legitimidade do próprio sistema político406.

O problema da crise de governabilidade está, assim, relacionado com o

alto custo dos direitos sociais, associado à dificuldade do Estado Social de

manter uma política econômica sustentável. Existem algumas condições básicas

que devem ser observadas para que o Estado intervencionista possa

“desempenhar positivamente as suas tarefas de sociabilidade”, a saber:

(1) provisões financeiras necessárias e suficientes, por parte dos cofres públicos, o que implica um sistema fiscal eficiente e capaz de assegurar e exercer relevante capacidade de coacção tributária;

(2) estrutura da despesa pública orientada para o financiamento dos serviços sociais (despesa social) e para investimentos produtivos (despesa produtiva);

(3) orçamento público equilibrado de forma a assegurar o controlo do défice das despesas públicas e evitar que um défice elevado tenha reflexos negativos na inflação e no valor da moeda;

(4) taxa de crescimento do rendimento nacional de valor médio ou elevado (3%, pelo menos ao ano)407.

406 FARIA. O Direito..., op. cit., pp.119-120. 407 CANOTILHO. Estudos..., op. cit., p. 253.

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Assim, da simples leitura das condições de manutenção eficiente das

prestações sociais pelo Estado, verifica-se a enorme dificuldade que a maioria

dos países que adotam esse modelo organizacional para efetivar os direitos

sociais constitucionalmente garantidos, sem que tenham que adotar uma política

de deficit spending, que consiste no “endividamento do Estado, com a finalidade

de financiar a despesa pública, sobretudo a despesa social408”. Esse fenômeno

acarreta a crise de legitimidade tanto do sistema político, quanto do sistema

jurídico, uma vez que não se consegue mais a garantia de expectativas

normativas e sociais.

É um fato incontroverso, portanto, que a constitucionalização dos direitos

sociais, e a recorrente adoção, pelos Tribunais, da tese da “irreversibilidade de

direitos sociais adquiridos409”, acarretam um alto custo para o Estado Social e a

conseqüente dificuldade na garantia da prestação dos serviços essenciais, sendo

a judicialização, especificamente, do direito à saúde, é uma conseqüência desse

fenômeno. Aliás, no que tange ao custo que representa a garantia do direito à

saúde, cumpre ressaltar a ocorrência de duas situações que intensificam esse

fenômeno: i) o fato de existirem, cada vez mais, tecnologias que, além de

encarecerem os tratamentos clínicos, “são cumulativas, e não substitutas, ou

seja, não se substitui necessariamente um medicamento porque um novo produto

foi lançado no mercado. Ao contrário, esse último se soma ao arsenal já

existente (...)410”; e ii) a falta de critério para a incorporação dessas tecnologias,

que muitas vezes não representam um ganho em eficiência, mas apenas um

maior custo411.

408 CANOTILHO. Estudos..., op. cit.., p. 253. 409 Idem. Ibidem. p. 266. 410 FERRAZ, Octávio Luiz Motta; VIEIRA, Fabiola Sulpino. Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante. Dados, Rio de Janeiro, v. 52, n. 1, mar. 2009 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582009000100007&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 02 mar. 2010. doi: 10.1590/S0011-52582009000100007. 411 Idem. Ibidem. p. 234.

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A possibilidade de uma crise de governabilidade, em razão da recorrente

interferência do Pode Judiciário na questão do fornecimento gratuito de

tratamentos e medicamentos de alto custo é, portanto, um problema atual, e que

não pode ser ignorado para um debate consistente acerca da concretização do

direito à saúde. Como deve, então, decidir o magistrado ante o conflito entre a

efetivação do direito à saúde e, por conseguinte, da dignidade humana, por um

lado, e a governabilidade, do outro?

5.4. A IMPORTÂNCIA DE SE RECORRER À TEORIA POLÍTICA

NORMATIVA

O argumento econômico que a Ministra Ellen Gracie trouxe à baila com

as decisões mencionadas colocou em xeque a posição que, até então, o Supremo

Tribunal Federal vinha adotando acerca do fornecimento gratuito de

medicamentos e tratamentos de alto custo. Com efeito, ao fundamentar a sua

decisão na manutenção da “ordem pública”, a magistrada colocou uma

roupagem axiológica em seu decisum, que pode, inclusive, ser visto como uma

interpretação dos valores fundamentais da República brasileira.

Entende a Ministra que as políticas públicas, na área da saúde, devem

buscar o atendimento ao maior número possível de pessoas, “e não a situações

individualizadas”, ou seja, entre expandir os serviços mais básicos de saúde ou

garantir tratamentos de alto custo para quem precisa, deve prevalecer a primeira

situação. O argumento em análise é poderoso, mas será que subsiste a uma

análise normativa? Nesse sentido pergunta-se: será que a negativa de

fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo ofende ao princípio

igualitário abstrato?

Conforme visto, o parâmetro para a igualdade, no pensamento

dworkiniano, consiste nos recursos. Estes, por sua vez, podem ser materiais ou

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imateriais, sendo aqueles os recursos concretos, passíveis de permuta, e estes as

capacidades física e mental. A saúde, assim, pode ser considerada um recurso

imaterial, no sentido que uma pessoa que possui uma deficiência ou sofre de

uma doença grave possui, efetivamente, um deficit recursal. Visando reparar

essa situação, DWORKIN criou o esquema do “seguro hipotético”, que objetiva

fundamentar a compensação recursal dos indivíduos portadores de deficiência.

O raciocínio feito pelo filósofo norte-americano é no sentido de que, se fosse

oferecida a possibilidade dos indivíduos comprarem um seguro que garantisse

uma compensação recursal no caso de uma deficiência física, todos, no uso da

razão, optariam por adquiri-lo. Trata-se, assim, de um fundamento normativo

para que, no mundo real, as instituições sejam elaboradas de modo a garantir

com que os acontecimentos de sorte bruta, ou seja, que os acontecimentos

fortuitos, como uma doença grave, sejam neutralizados.

Assim, em termos abstratos, um Estado justo, e, conseqüentemente,

legítimo, que trata os cidadãos com igual respeito e consideração, deve

compensar o deficit recursal proveniente do acometimento por uma doença

grave. Em termos práticos, DWORKIN entende que há a necessidade do

custeamento dos programas distributivos através de uma política tributária,

sendo que, a partir do momento que o cidadão efetua o pagamento do tributo e,

por conseguinte, financia a política pública, ele teria um direito adquirido a ser

protegido pela mesma412. Aliás, no direito brasileiro, a inviolabilidade do direito

adquirido, bem como a inafastabilidade da apreciação, pelo Judiciário, de “lesão

ou ameaça a direito”, são direitos individuais, por força do artigo 5.º, incisos

XXXV e XXXVI, da Constituição da República.

A compensação financeira das deficiências é fundamentada, ainda, no

princípio ético que DWORKIN denomina de “principle of intrinsic value”,

segundo o qual cada vida humana é, por si só, objetivamente importante para a

412 Cf. DWORKIN. Is Democracy..., op. cit., pp. 112-113.

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187

comunidade413. Assim, sendo a comunidade um ente personificado e, assim,

comprometida com princípios morais, dentre eles o do valor intrínseco da vida

humana, deve ela atuar de forma coerente e comprometida, o que significa que,

concretamente, o Estado de reconhecer que uma pessoa portadora de uma

deficiência severa deve ser amparada pelas políticas distributivas, como

exigência da integridade.

Essa análise abstrata do problema prático enquadra-se no que DWORKIN

denomina de “integridade pura”, que visa identificar o que o autor norte-

americano denomina de “law beyond the law”, ou seja, o direito que está,

normativamente, além do direito concreto. É um exercício de razão prática que

leva o magistrado para o plano ideal, para a formação de um parâmetro

comparativo abstrato do direito positivado. DWORKIN, no entanto, coloca o

magistrado novamente no plano existencial para aplicar a lei mediante o uso da

“integridade inclusiva”, da qual a “leitura moral” da Constituição é uma

espécie414.

A “integridade inclusiva” exige que o juiz faça uma harmonização entre

as exigências normativas da justiça, e os princípios políticos que efetivamente

vigem na comunidade (e que não necessariamente corresponde àquelas). Não se

deve perder de vista, no entanto, que DWORKIN escreve a sua teoria em um

contexto bem específico: a comunidade norte-americana. Sua teoria política

normativa tem plena aplicação, nesse diapasão, para a valoração do direito

norte-americano. Questão controversa, todavia, diz respeito à sua utilização para

os países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil.

413 Idem. Ibidem. p. 09. 414Embora DWORKIN não mencione, em momento algum, essa afirmação, trata-se de uma conclusão que decorre da análise sistemática de seu pensamento.

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188

5.4.1. O LIBERALISMO IGUALITÁRIO E O ESTADO BRASILEIRO

Como aplicar a doutrina política de RONALD DWORKIN para o caso

brasileiro? Essa pergunta não é de fácil resposta, uma vez que a cultura política

dos Estados Unidos e do Brasil contêm profundas diferenças, sendo que,

enquanto sociedade norte-americana pode ser considerada o maior exemplo de

comunidade liberal e desenvolvida, a discussão acerca da modernidade da

sociedade brasileira ainda está longe de ser pacificada.

De fato, a doutrina clássica acerca da formação da sociedade brasileira é

praticamente uníssona no sentido de reconhecer a existência de um “ethos

ibérico” que apartaria o Brasil da modernidade. A chamada “sociologia da

inautenticidade415”, composta pelos autores que, em rompimento com a

sociologia naturalista, que descrevia a sociedade brasileira em termos de

determinantes raciais, “se consolidou ao redor da tese que utiliza a permanência

de aspectos psicossociais, herdados de um passado ibérico, como elemento

fundamental de compreensão do Brasil 416”.

Para essa corrente do pensamento sociológico pátrio, o Brasil seria um

país que estaria fadado a permanecer na pré-modernidade, justamente em razão

da presença da herança ibérica, a qual enraizou na nossa cultura “valores” como

o patriarcalismo, o mandonismo, o patrimonialismo, a cordialidade e todas as

demais formas de arcaísmos proveniente da cultura portuguesa417. A sociedade

brasileira, nesse sentido, não teria as características das chamadas “sociedades

modernas centrais”, nas quais:

a) Estado, mercado, e sociedade civil ocupam necessariamente esferas plenamente diferenciadas entre si, reguladas exclusivamente por códigos próprios e dinamizadas por lógicas particulares; b) a

415 Segundo Orlando Villas Bôas Filho, essa expressão advém da lição de Jessé Souza, e refere-se especificamente às lições de Gilberto Freyre (Casa-grande e senzala), Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil) e Raymundo Faoro (Os Donos do Poder). cf. VILLAS BOAS FILHO, Orlando. Teoria dos Sistemas e o Direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 183. 416 Idem. Ibidem. p. 181. 417 Idem. Ibidem. p. 237.

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normatividade que regula as relações entre indivíduos e deles com o Estado e o mercado são plenamente desencantadas além de protegidas de influências de concepções de mundo e sistemas normativos não-racionalizados; e c) os âmbitos público e privado, por sua vez, são também plenamente separados, cada um dos quais ordenado por códigos e lógicas particulares, comunicando-se apenas e tão-somente através de canais apropriados que mantêm inalterados os termos e as regras de cada um dos domínios418.

Trata-se, no entanto, de uma visão da cultura brasileira que, embora ainda

exerça uma considerável influência419, não mais predomina no pensamento

sociológico hodierno. Com efeito, há, atualmente, uma tendência de

flexibilização do conceito de modernidade, de modo a abranger o processo

civilizatório brasileiro como uma, dentre outras, formas de se alcançar a

modernidade420. Não se pode olvidar, no entanto, que o Brasil é um país

marcado pela desigualdade e forte exclusão social, situação que se assemelha ao

que SANTOS denomina de “subumanidade moderna”, na qual certos indivíduos

estão excluídos do processo civilizatório moderno, não sendo “sequer candidatos

à inclusão social”. Assim, embora o direito à igualdade (e conseqüente dever

estatal de tratar a todos com igual respeito e consideração) esteja, para usar a

expressão de NEVES, “simbolicamente” garantido na Constituição Federal, a

verdade é que, concretamente, existe no Estado brasileiro uma cultura da

desigualdade que não pode ser ignorada, para fins de aplicabilidade do

liberalismo igualitário para o caso brasileiro. Portanto, embora moderna, a

418 TAVOLARO, Sergio B. F.. Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 2005, vol.20, n.59 [cited 2009-11-21], pp. 5-22 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092005000300001&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0102-6909. doi: 10.1590/S0102-69092005000300001 Acesso em 17.12.2009. 419 TAVOLARO ressalta que a chamada “sociologia da inautenticidade” ou “sociologia exerceu influência nos autores que compõem o que ele denomina de “sociologia da dependência”, que, a partir de um enfoque econômico, também conclui pela pré-modernidade do Estado brasileiro. Dentre outros, adotam essa linha de pensamento Caio Prado Jr, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni. Cf. TAVOLARO, op. cit.. 420 A partir da concepção de “modernidades múltiplas”, TAVOLARO defende que “em vez de reduzir as diversas configurações políticas, econômicas, institucionais e sociais experienciadas ao longo da recente história brasileira a um supostamente único tipo de configuração moderna (pré determinado por tendências culturais e/ou econômicas), abre-se caminho alternativo para que se considere como as disputas que se desenrolaram entre nós vieram a se traduzir em padrões variados de diferenciação / complexificação social, de secularização e de separação público / privado no decorrer de nossa história”. Cf., TAVOLARO, op. cit..

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sociedade brasileira não teve a plena concretização dos valores liberais basilares

(igualdade e liberdade421), não podendo, nesse contexto, se considerada liberal.

Nesse diapasão, verificado que, no plano normativo, a compensação das

desigualdades provenientes das deficiências físicas é um imperativo do princípio

igualitário abstrato e, ainda, que, especificamente, a sociedade brasileira, embora

moderna, não pode ser considerada liberal, qual a melhor interpretação do artigo

196 da Constituição Federal de 1988, em termos político-normativos, ou melhor,

qual interpretação confere a melhor justificação normativa para o direito à saúde

no Brasil?

5.4.2. A SOLUÇÃO DIVERGENTE

O liberalismo igualitário dworkiniano tem como pilares dois princípios

éticos, que constituem as dimensões da dignidade da pessoa humana, e que

expressam a conciliação dos valores políticos igualdade e liberdade. Referidos

princípios, como visto, são o princípio da responsabilidade individual e o

princípio do valor intrínseco da pessoa humana. Embora DWORKIN não

estabeleça uma prioridade entre ambos, em “Sovereign Virtue” o autor norte-

americano deixa bem claro que o princípio igualitário abstrato, em termos

normativos, exige que as pessoas paguem o preço de suas escolhas, ou seja, a

igualdade deve ser sensível às escolhas individuais. Há, assim, um indício de

prioridade do princípio da responsabilidade individual sobre o do valor

intrínseco.

Aludido indício, todavia, se confirma no Capítulo 08 de “Sovereign

Virtue”, denominado “Justice and the High Cost of Health”, no qual 421 “A desimportância atribuída à autonomia das pessoas procede de concepções autoritárias ou paternalistas e resulta que instituições liberais não conseguem se impor na sociedade brasileira” LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos humanos e tratamento igualitário: questões de impunidade, dignidade e liberdade. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 2000, vol.15, n.42 [cited 2009-11-22], pp. 77-100 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092000000100006&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0102-6909. doi: 10.1590/S0102-69092000000100006

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DWORKIN analisa o sistema público de saúde norte-americano. O problema

colocado pelo autor norte-americano, no mencionado ensaio, diz respeito ao alto

custo que a saúde representa para os cofres públicos do governo americano, por

causa, especificamente, das novas tecnologias e tratamentos disponíveis nos

EUA. Assim, pergunta DWORKIN: em se tratando de saúde pública, o que não

pode ser negado sob o argumento do alto custo422?

Para resolver esse problema, que na verdade é um problema da filosofia

prática423, DWORKIN apresenta dois argumentos que podem ser utilizados. O

primeiro, ao qual denomina de “rescue principle” (princípio do resgate),

determina que “devemos gastar tudo que pudermos até que não seja possível

pagar nenhuma melhora na saúde ou na expectativa de vida424”. Trata-se,

portanto, do ideal que estaria na base da concepção de que o Estado tem o dever

de garantir aos cidadãos qualquer tratamento que seja necessário para a sua cura,

independentemente do custo.

Em contraponto ao modelo do resgate, DWORKIN expõe o princípio do

“seguro-prudente”, que aceita certa limitação aos tratamentos que o Estado deve

disponibilizar aos cidadãos, visando estabelecer um equilíbrio entre o valor que

será gasto, pela comunidade, com tratamento médico e com outras finalidades:

ele supõe que as pessoas podem pensar que levam vidas melhores quando eles investem menos em medicina duvidosa e mais em fazer a vida bem-sucedida ou agradável, ou em se proteger contra outros riscos, incluindo os econômicos, que podem arruinar as suas vidas425.

422 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 309. 423 “possivelmente, nada conseguimos demonstrar sobre um problema central da filosofia prática: quais os direitos que o indivíduo, como homem, cidadão, e trabalhador, tem ou deve ter numa comunidade.” CANOTILHO. Estudos..., op. cit., p. 35. 424 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 309. 425 “ it supposes that people might think they lead better livers overall when they invest less in doubtful medicine and more in making life successful or enjoyable, or in protecting themselves against other risks, including economic ones, that might also blight their lives”. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 317.

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Universalizar a política de saúde, seguindo essa linha de raciocínio,

significa ampliá-la para o maior número de cidadãos possível, mas não confere o

dever estatal de custear tratamentos de alto custo. A conclusão de DWORKIN,

então, é no sentido de que, em termos normativos, o modelo do seguro prudente

é mais justo para uma sociedade em que o princípio igualitário abstrato esteja

concretizado.

Obviamente, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil, não há como se

defender, razoavelmente, que o princípio igualitário abstrato está concretizado.

Talvez o modelo do seguro-prudente seja plausível para a realidade norte-

americana, mas, com toda certeza, não se coaduna com os valores políticos

expressos pela Constituição Republicana de 1988. Em entrevista recente,

DWORKIN, ao ser perguntado sobre o esquema do seguro-prudente, afirma o

seguinte:

Suponha que um sistema justo de seguro estivesse de fato em funcionamento como um serviço de saúde com financiador único. Suponha também que o tipo de taxação redistributiva que eu recomendo estivesse em vigor, de modo que as enormes desigualdades de riquezas que hoje estragam nossas sociedades tivessem sido eliminadas. Por que não deveríamos permitir que as pessoas gastassem seu excedente como quisessem? Algumas em casas maiores, outras em férias, outras com mais seguro-saúde. Assim, minha sugestão parece melhor quando vista como parte de um sistema geral da justiça distributiva. Há outras vantagens a todos, além daquelas que descrevo426.

Logo, o próprio autor norte-americano estabelece algumas condições para

a aplicação do modelo do seguro-prudente, que é a vigência de um sistema de

taxação redistributiva e, ainda, que a sociedade não seja muito desigual. Esse

modelo, assim, não se aplica para o Brasil. De fato, a peculiaridade da sociedade

brasileira, em especial o processo de modernização seletiva (e ainda inacabado),

426 DWORKIN, Ronaldo. Igualdade como ideal. Novos estud. - CEBRAP [online]. 2007, n.77 [cited 2009-11-22], pp. 233-240 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000100012&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0101-3300. doi: 10.1590/S0101-33002007000100012. Acesso em 22 de novembro de 2009.

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bem como a existência de cidadãos que não possuem meios (recursos e acesso a

direitos fundamentais) para o pleno exercício da sua faculdade de escolha, ante a

situação de pobreza e miséria em que se encontram, não permitem a sacralização

do princípio da responsabilidade individual para o caso brasileiro.

Não se pode perder de vista que o construtivismo político rawlsiano,

doutrina que está na base da teoria política dworkiniana, pressupõe, para a

escolha racional, que a existência de uma sociedade bem-ordenada,

compreendida como um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos

razoáveis, considerados como livres e iguais. A forte exclusão social vigente na

sociedade brasileira, nesse sentido, impede que os indivíduos que se encontram

nessa situação sejam considerados “livres e iguais”, razão pela qual, ao invés de

se considerar o princípio da responsabilidade individual como um axioma para a

sociedade brasileira, urge, antes, a concretização do princípio do valor intrínseco

da pessoa humana, para que seja possível a construção das condições ideais para

a prevalência da responsabilidade individual.

É nesse contexto que deve ser interpretado o artigo 3.º, incisos I e III, da

Constituição Federal, que afirmam ser objetivos da nossa República a

construção de uma sociedade “livre, justa e solidária”, bem como a erradicação

da pobreza e da marginalização. Não se nega a importância do princípio da

responsabilidade individual para a efetivação dessas metas comunitárias, mas

deve-se privilegiar, certamente, o princípio do valor intrínseco. Deve prevalecer,

assim, a máxima kantiana segundo a qual “o homem, e, duma maneira geral,

todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso

arbitrário desta ou daquela vontade427”, a qual inspirou DWORKIN a sustentar

427 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 68.

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que “o sucesso ou derrocada de qualquer vida humana é, por si só, importante,

algo que todos nós temos razão para querer ou lastimar428”.

Ora, a conjunção da essencialidade da pessoa humana, que deve ser

considerada como fim em si mesma, com a necessidade de erradicação da

pobreza e construção de uma sociedade livre e justa, visando a plenitude da

modernização da sociedade pátria, exige o reconhecimento de que não se pode

mitigar o direito de um paciente portador de uma moléstia grave receber,

gratuitamente, o devido tratamento. Não se pode ignorar, ainda, que os

indivíduos que utilizam o Sistema Único de Saúde, são, em sua maioria, aqueles

que não têm condições de arcar com a medicina privada, razão pela qual a

negativa estatal de fornecimento de medicação de alto custo representa,

indubitavelmente, a retirada da única esperança dos mesmos de conseguir o

tratamento de que necessitam429.

No conflito, assim, entre a racionalidade material econômica utilizada

pela Ministra Ellen Gracie, e a racionalidade material principiológica, no sentido

conferido a esse termo por DWORKIN430, esta deve prevalecer sobre aquela. O

Poder Judiciário, em especial o seu órgão de cúpula, ao qual DWORKIN

denominou “fórum do princípio”, ou seja, o lócus no qual os direitos individuais

são postos em discussão e valoração, deve buscar a melhor interpretação moral

da Constituição, que, no problema prático apresentado, é no sentido de atribuir

às expressões “universal e igualitário”, contidas no artigo 196 da Constituição, o

reconhecimento político de que o Estado, no exercício de seu dever soberano de

tratar a todos com igual respeito e consideração, e, por conseguinte, ser

insensível às circunstâncias individuais, deve neutralizar as deficiências,

independentemente do preço que isto representará para a comunidade.

428 “The success or failure of any human life is important in itself, something we all have reason to want or to deplore”. DWORKIN, Ronald. Is Democracy…, op. cit., p.10. 429 430 “o Tribunal deve tomar decisões (...) sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistema constitucional, não decisões sobre se promove melhor o bem-estar geral”. DWORKIN. A Matter..., op. cit., p. 69.

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Não se pretende aqui, por óbvio, conferir nova roupagem à interpretação

que os juristas pátrios, em especial o Supremo Tribunal Federal, conferiam ao

direito à saúde, no sentido de considerá-lo “como um direito a atendimento à

saúde, terapêutico e farmacêutico ilimitado431”, na qual a saúde é vista como:

um “conceito unidimensional (de mera ausência de doença); as políticas de saúde são reduzidas a apenas um de seus aspectos (o atendimento médico; e é ignorado o fato de que, no mundo real, não haveria e provavelmente jamais haverá recursos suficientes para implementar universalmente (isto é, para todos) um direito à assistência à saúde ilimitado432.

Pelo contrário, conforme acima exposto, o problema da escassez dos

recursos deve ser o ponto de partida para se analisar a justeza ou não da

interpretação que a Ministra Ellen Gracie pretende atribuir ao artigo 196 da

Carta Magna. O que se deve levar em consideração, no entanto, à luz do

igualitarismo dworkiniano, é que as desigualdades provenientes de deficiências

são inerentemente injustas, de modo que os indivíduos que necessitam de

medicamentos de alto custo possuem um deficit recursal que justifica a

destinação de recursos sociais para a sua neutralização.

A melhor interpretação moral do artigo 196 da Constituição Federal, no

que tange às políticas públicas de fornecimento de medicamento de alto custo,

faz com que o magistrado, no caso concreto, reconheça que o dever estatal de

tratar a todos com igual interesse e consideração o leva a sobrepor interesse do

cidadão, privado na via administrativa de receber o tratamento que necessita,

sobre o interesse econômico do Estado.

431 FERRAZ, Octávio Luiz Motta; VIEIRA, Fabiola Sulpino. Direito à saúde..., op. cit., p. 242. 432 Idem. Ibidem. p. 242.

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CONCLUSÃO

Pretendo, na conclusão do presente trabalho, apresentar resposta a duas

questões que representam a essência da dissertação. A primeira, obviamente, é a

que se fez logo na introdução: qual a importância da teoria política para o

Direito? E acrescenta-se: de que forma o estudo da igualdade no pensamento

dworkiniano colaborou para a compreensão da relação existente entre a filosofia

política e a filosofia do direito?

A filosofia dworkiniana representa, sem dúvida alguma, uma tentativa, de

ressaltar a importância dos conceitos basilares do liberalismo, notadamente a

igualdade, a liberdade e a fraternidade, para a interpretação do Direito. Nesse

sentido, a preocupação de DWORKIN com o prisma ético-político do Direito

possui o seu ápice no momento interpretativo. E isso tem uma explicação: a

crença que o autor norte-americano, jurista que é, no Poder Judiciário. Não é por

acaso que DWORKIN afirma em “Law’s Empire” que “os tribunais são as

capitais do império do direito, e os juízes são seus príncipes”, frase esta que

ficou famosa (inclusive para seus críticos). Trata-se, na verdade, de uma visão

democrática substancialista, para a qual a efetivação dos direitos individuais, por

intermédio da atuação dos magistrados, é de fundamental importância. Pode-se

inferir, inclusive, que a doutrina dworkiniana apresenta uma visão pessimista

dos Poderes Executivo e Legislativo, mediante a exaltação do Poder Judiciário,

visto como um verdadeiro fórum de debate de questões que envolvem

moralidade política, tais como a legalização do aborto, a pesquisa com células-

tronco e o dever estatal de fornecer medicamentos de alto custo gratuitamente,

os quais exigem do magistrado, na aplicação do direito, o uso da razão prática, e

não meramente teórico (como defendem os positivistas).

Mencionadas questões, para DWORKIN, constituem um núcleo

valorativo cuja efetividade condiciona o exercício do princípio majoritário: para

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o filósofo norte-americano, todas as questões relacionadas com a efetividade da

pessoa humana, ou seja, com os dois princípios éticos que formam a dignidade

da pessoa humana (princípio da responsabilidade individual e princípio do valor

intrínseco), constituem “conditions of full partnership”, condições de integração

do indivíduo na comunidade, as quais não podem ser suprimidas pela vontade da

maioria. A função do magistrado, nesse contexto, visa ao controle da legislação

produzida, bem como dos atos do Executivo, mediante o uso do instituto da

judicial review, (correspondente no direito brasileiro ao controle de

constitucionalidade). DWORKIN pode ser visto, assim, como defensor do

“ativismo judicial”, eis que, partindo do pressuposto que os indivíduos, em uma

sociedade democrática, possuem “moral rights” (direitos morais) contra o

Estado, o autor norte-americano defende que o Poder Judiciário “deve estar

preparado para formular questões de moralidade política e dar-lhes uma

resposta433”.

Sem embargo, no liberalismo dworkiniano o Poder Judiciário tem um

papel decisivo tanto na defesa dos direitos individuais, entendidos enquanto

direitos morais que a Constituição confere ao cidadão contra a maioria, quanto

no debate democrático acerca do reconhecimento de novos direitos de cidadania.

Essa preocupação de DWORKIN com a atuação da Suprema Corte ficou

explicita em artigo do filósofo norte-americano publicado no site

www.nybooks.com, denominado “A fateful election434” , no qual ele afirma que:

433 “Must be prepared to frame and answer questions of political morality”. DWORKIN. Taking…, op. cit., p. 147. O capítulo 05 de Taking Rights Seriously, denominado Constitutional Cases, foi publicado em 1977 e representa uma defesa de uma postura “ativista” da Suprema Corte norte-americana, em contraposição ao “constitucionalismo estrito” defendido pelo partido republicano, em especial pelo ex-presidente Nixon, o qual, baseado em um ceticismo acerca da existência de direitos morais contra o Estado, sustentava que o Judiciário deveria adotar uma postura moderada, valorando a letra da lei e abstendo-se de elaborar juízos políticos e morais. 434 John McCain's election would be a disaster for our Constitution. Conservatives have worked for decades to capture the Supreme Court with an unbreakable majority that would, in every case, reliably serve their cultural, religious, and economic orthodoxies. That goal has so far escaped them. Though Republican presidents have appointed seven of the nine justices now serving, only four of them—John Roberts, Antonin Scalia, Clarence Thomas, and Samuel Alito—are dependably rigid conservatives. Four other justices—two other Republican appointees, John Paul Stevens and David Souter, and the Democratic appointees Ruth Bader Ginsburg and Stephen Breyer—have voted consistently in favor of more liberal interpretations of the Constitution. The ninth

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A eleição de John McCain pode ser um desastre para nossa Constituição. Os conservadores trabalharam por décadas para dominar a Suprema Corte com uma maioria invencível que irá, em qualquer caso, certamente servir suas ortodoxias culturais, religiosas e econômicas. Seus objetivos até agora lhes escaparam. Embora os presidentes Republicanos tenham nomeado sete, dos nove Ministros que atualmente compõem a Suprema Corte, apenas quatro deles – John Roberts, Antonin Scalia, Clarence Thomas e Samuel Alito – são fiéis à rigidez conservadora. Quatro outros Ministros – dois outros nomeados pelos Republicanos, John Paul Stevens e David Souter, e os Democratas Ruth Bader Ginsburg e Stephen Breyer – têm votado conscientemente a favor de interpretações mais liberais da Constituição. O novo Ministro – Anthony Kennedy – possui o crucial voto “swing” que tem decidido casos de importância capital, às vezes com os conservadores, às vezes com os liberais”.

No trecho acima transcrito, mostra-se claro a visão de DWORKIN no

sentido de que a Suprema Corte possui um papel decisivo na interpretação dos

direitos morais dos indivíduos e, por conseguinte, na efetivação dos mesmos. No

entanto, ao passo que a doutrina dworkiniana teve o mérito de ressaltar a

necessidade de o jurista valer-se da teoria política para uma melhor

compreensão do fenômeno jurídico, não se pode perder de vista a falta, em

DWORKIN, de uma instância democrática deliberativa. Com efeito, o

Judiciário não pode ser sacralizado da forma o autor norte-americano, eis que

não pode se esperar que as grandes decisões e os grandes debates políticos de

uma comunidade ocorram em uma instância política que não foi criada para

tanto. Nesse sentido, a teoria habermasiana é mais coerente ao atribuir à “esfera

pública” o locus adequado para a deliberação racional e influencia do poder

político.

DWORKIN afirma, todavia, que a sua teoria liberal igualitária,

notadamente o seu conceito de igualdade de recursos, tem uma função

primordial na realidade fática: a avaliação das instituições reais. Da mesma

justice—Anthony Kennedy—holds the crucial "swing" vote that has decided cases of capital importance, sometimes with the conservatives and sometimes with the liberals”. Disponível em: http://www.nybooks.com/articles/22017, acesso em 03.03.2010.

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forma, a igualdade de recursos serve à interpretação do Direito como parâmetro

ético-político. Nesse diapasão, e aqui a resposta para a segunda pergunta, a

principal contribuição de RONALD DWORKIN para o Direito está,

exatamente, em conferir ao magistrado o dever de buscar a Justiça.

A teoria “Law as Integrity” não deve ser apenas apreendida como um

ataque ao positivismo jurídico. Seu alcance é mais profundo: constitui uma

resposta ao ceticismo que predominou na filosofia do direito no século passado.

A recolocação do Direito como compartimento da Moralidade, a qual deve ser

concebida, parafraseando RAWLS, de forma política, não metafísica435,

representa uma mudança no próprio conceito de legitimidade da ordem jurídica:

não mais se procura o fundamento da ordem jurídica em um plano superior de

valores, como fizeram os jusnaturalistas, ou mesmo no direito posto pelo Estado,

como pretenderam os positivistas. Legítima, para DWORKIN, é a ordem

jurídica que espelha que o Estado, por intermédio do Judiciário, atua de forma

íntegra, ou seja, em coerência com um conjunto de princípios morais, buscando

sempre a melhor leitura do texto legal, entendida esta como a interpretação que

mostre o direito em seu melhor prisma moral.

Mas o que significa mostrar o direito em seu melhor prisma moral? Em

Taking Rights Seriously, bem como nos livros que se sucederam (A Matter of

Principle e Law’s Empire), DWORKIN não deixa claro o que significa essa

“busca pela melhor interpretação moral”, passando, inclusive, a idéia de que

seria um filósofo neojusnaturalista. Por essa razão, em conformidade com o que

foi defendido ao longo da presente dissertação, a doutrina do direito

dworkiniana deve ser lida a partir de sua teoria política. Procedendo dessa

forma, fica claro que DWORKIN tencionava, com aquela afirmação, defender

que a interpretação do Direito deve ter como parâmetro a igualdade de

435 Explica ROLF KUNTZ que RAWLS pretendeu, ao elaborar a sua concepção “política, não metafísica”, criar uma noção de justiça aplicável às sociedades democrático-liberais, a partir de valores publicamente valorizados, “não de sentimentos ou de opiniões pessoais”. Cf. KUNZ e FARIA, op. cit., p. 52.

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recursos. Portanto, no contexto da interpretação construtivista dworkiniana, a

teoria política normativa serve de substrato tanto à definição dos conceitos

interpretativos, quanto para a avaliação da justeza da aplicação da norma ao caso

concreto.

Não se pode, ainda, perder de vista que DWORKIN elaborou o seu

pensamento à luz da sociedade norte-americana. Nesse sentido, não se pode

apropriar o pensamento dworkiniano para a realidade brasileira sem que sejam

feitas algumas ponderações. Nesse sentido, ao analisar a questão do

fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo, foi visto que as decisões

da Ministra Ellen Gracie na Suspensão de Segurança n.º 3073 e na Suspensão de

Tutela Antecipada n.º 91, nas quais, a partir de uma racionalidade econômica,

restou reconhecido que a manutenção do entendimento de que o Estado é

irrestritamente responsável pelo fornecimento de tratamentos e medicamentos de

alto custo poderia representar uma ofensa à ordem pública, contribuíram para

uma melhoria qualitativa no debate acerca do direito à saúde. Isso porque

colocou em discussão o problema do custo dos direitos sociais e da crise de

governabilidade que poderia resultar do entendimento que o Supremo Tribunal

Federal vinha, até então, adotando436.

O argumento utilizado pela Ministra é, de fato, relevante, e exige uma

reconstrução do conteúdo normativo dos vocábulos “universal” e “igualitário”,

contidos no artigo 196 da Constituição Federal. Não se justifica, por

436 Octávio Luiz Motta e Fabiola Sulpino Vieira defendem, que, no Brasil, em virtude da interpretação que o Supremo Tribunal Federal adota acerca do direito à saúde, “há um duplo sacrifício os princípios da universalidade e equidade em saúde. Os que já possuem condições de saúde comparativamente melhores em virtude de suas condições socioeconômicas avantajadas são beneficiados ainda mais por conta de seu acesso mais fácil ao Judiciário. De política pública universal e igualitária, tendente a minimizar as desigualdades de saúde decorrentes das desigualdades sociais, o SUS se transforma, por meio das ações judiciais, em perpetuador e contribuinte do já elevado déficit de equidade em saúde do país”. Idem. Ibidem. p. 245. Observa-se, no entanto, que, na prática, muitos dos indivíduos que procuram os escritórios de advocacia para pleitear, junto ao Judiciário, um medicamento de alto custo, são aqueles que não possuem condições financeiras de contratar um plano de saúde, ficando, por conseguinte, sob a dependência, única e exclusiva, do fornecimento estatal do fármaco de que necessita. Nesse diapasão, ao invés de perpetuador da desigualdade, o Judiciário, ao intervir em situações concernentes à saúde pública, representa um instrumento concretizador da cidadania.

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conseguinte, o raciocínio meramente formalista que o STF adotava

anteriormente às decisões em comento. Com efeito, para contrapor ao

argumento econômico utilizado pela Ministra Ellen Gracie, faz-se necessária

uma análise normativa do dever estatal de fornecer gratuitamente os

medicamentos em questão.

Assim, de que forma o liberalismo igualitário dworkiniano pode

contribuir para a interpretação do artigo 196 da Constituição Federal? A

igualdade de recursos, consoante exposto, sustenta que as desigualdades

provenientes de deficiências físicas devem ser compensadas. A questão que se

coloca, no tocante ao fornecimento gratuito de medicamentos, é o limite de tal

compensação. Em Sovereign Virtue, DWORKIN sustenta que a política pública

de saúde deve ser formulada de acordo com o que ele denomina de “modelo do

seguro prudente”, o qual confere ao indivíduo a escolha da cobertura securitária

que o Estado vai oferecer-lhe no tocante à saúde pública. Fundamenta-se, dessa

forma, no princípio da responsabilidade individual, eis que, de acordo com que

entende o filósofo norte-americano, o “seguro prudente” acarretaria uma

expansão dos serviços relacionados à saúde pública, mas, ao mesmo tempo,

isentaria o Estado de destinar recursos para custear tratamentos de alto custo.

Aludido modelo, todavia, não se aplica para a sociedade brasileira. Com

efeito, dadas as peculiaridades da nossa sociedade, que ainda sente os efeitos de

uma tradição patrimonialista, e, outrossim, marcada por uma cultura de

desigualdade e exclusão social, há a necessidade de mitigação do princípio da

responsabilidade individual, e, por conseguinte, colocar em relevo o princípio

segundo o qual “o sucesso ou derrocada de qualquer vida humana é, por si só,

importante, algo que todos nós temos razão para querer ou lastimar437”. Assim,

enquanto DWORKIN, no tocante à interpretação do direito à saúde, defende a

437 “The success or failure of any human life is important in itself, something we all have reason to want or to deplore”. DWORKIN. Is Democracy..., op. cit. p. 09.

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primazia do princípio da responsabilidade individual, sustenta-se, na presente

dissertação, que, para o caso brasileiro, notadamente para a interpretação do

artigo 196 da Constituição Federal, o princípio do valor intrínseco deve

prevalecer sobre aquele, de modo que as expressões “universal” e igualitário” lá

contidas representam, em termos políticos, o dever estatal de fornecer

gratuitamente os medicamentos de alto custo para os cidadãos.

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