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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MESTRADO
ULBRA A SANÇÃO PENAL NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
FINALIDADE E APLICAÇÃO
MILTON FONTANA
Canoas, 2006
UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO
A SANÇÃO PENAL NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: FINALIDADE E APLICAÇÃO
MILTON FONTANA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Luterana do Brasil, para obtenção do título de mestre em Direito. Orientador: Dr. Nereu José Giacomolli.
Canoas, 2006
A SANÇÃO PENAL NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: FINALIDADE E APLICAÇÃO
POR
MILTON FONTANA
Dissertação submetida ao Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Luterana do Brasil, como parte dos requisitos necessários
para obtenção do título de
Mestre em Direito
Área de Concentração: Desenvolvimento e Proteção dos Direitos
Fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito
Orientador: Prof. Dr. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI
Comissão de Avaliação: Dr. ANDRE LUÍS CALLEGARI
Dr. JAYME WEINGARTNER NETO
Dr. ÂNGELO ROBERTO ILHA
Agradeço o apoio e compreensão de Eliane
Ribeiro Portela e Isabella Portela Fontana, sem os
quais a conclusão desta dissertação seria inviável.
RESUMO
A Constituição Federal, por sua importância, irradia efeitos sobre todo o sistema normativo. O modelo constitucional de 1988 determina uma releitura do sistema penal positivado, notadamente acerca da pena, sua função e procedimento da aplicação.
Assim, tendo por fundamento os alicerces de um Estado Social e Democrático de Direito, o direito penal, por seu viés sancionador, deve obediência aos valores constitucionalizados. Na seara penal, inadiáveis as mudanças que devem ser observadas pelos operadores jurídicos, tendo em conta o novo paradigma, que produz efeitos de observância obrigatória, exigindo, desta forma, uma compatibilização da legislação ao novo modelo. O presente estudo busca, num primeiro momento, entender a compatibilidade da eficácia dos direitos fundamentais, a partir da nova ordem constitucional. Após, tendo como base os direitos fundamentais, busca esclarecer o papel da sanção penal e sua inserção nesse modelo. Na última parte, o enfoque é acerca da necessidade de motivação e fundamentação das decisões judiciais, especialmente no tocante ao sancionamento penal, onde exigida a compatibilidade das regras penais e processuais com o sistema constitucional. Indexação: Constituição. Direitos Fundamentais. Sanção Penal. Aplicação. Motivação e Finalidade.
ABSTRACT
The Federal Constitution, for its importance, irradiates effects on the whole normative system. The constitutional model of 1988 determines a rereading of the positivated criminal system, especially concerning on the feather, its function and application procedure.
Then, considering the foundations of a Social and Democratic State of Law,
the criminal law, for its sanctionatory inclination, owes obedience to the contitucionalyzed values.
In the penal field, the changes that they should be observed by the juridical
operators are undelayable, concerning the new paradigm, that produces effects of obligatory observance, demanding, this way, a compatibilization of the legislation to the new model.
The present study searches ina first moment to understand the compatibility of the efficacy of the fundamental rights from the new constitutional order. Afterwards, having as basis the fundamental rights, it looks for stabilishing the role of the penal sanction and its inserction on this model. Finally the focus is about the necessity of motivation and foundation of law decisions especially in concern to the penal saction, where the compatibility of the penal and procedural rules with the constitutional system is demanded.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................... 9 1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E ORDEM CONSTITUCIONAL................... 15 1.1 A exigência de efetividade dos direitos fundamentais......................... 15 1.2 Direitos fundamentais e sistema constitucional................................... 18
1.3 A dupla perspectiva dos direitos fundamentais: elementos objetivos fundamentais da comunidade ou direitos subjetivos individuais.................................................................................................. 22
1.3.1 Dupla perspectiva dos direitos fundamentais................................... 22 1.3.2 Perspectivas de direitos fundamentais e ordem
Constitucional............................................................................................ 23 1.3.3 Perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais.................. 24
1.3.4 A perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais........................... 29 1.3.5 Direitos Fundamentais e ordem jurídica........................................... 34
1.4 Da necessária vinculação do direito penal aos valores ....................... 35 1.4.1 Problemas de eficácia dos direitos fundamentais............................. 35 1.4.2 A teoria dos princípios de Robert Alexy........................................... 39 1.4.3 A vinculação do direito penal aos valores constitucionais............... 44 2 A SANÇÃO PENAL NO MODELO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO: FUNÇÃO E FUNDAMENTO.................................................... 49 2.1 Finalidade das penas e ordem constitucional....................................... 49
2.2 Teorias de justificação das penas ........................................................ 53 2.3 Teorias absolutas................................................................................. 55
2.3.1 Teorias da expiação e da retribuição................................................. 56 2.3.2 Fundamentos filosóficos para a retribuição...................................... 60
2.4 Teorias relativas................................................................................... 62 2.4.1 Prevenção geral negativa e positiva.................................................. 64
2.4.2 Prevenção especial positiva e negativa............................................. 69 2.5 Teorias unificadoras ou mistas............................................................ 72 2.6 Pena e constituição.............................................................................. 73
3 VALORES CONSTITUCIONAIS E APLICAÇÃO DA PENA....................... 81 3.1 O direito fundamental à pena motivada............................................... 81
3.2 Da necessidade constitucional da motivação das decisões judicias criminais........................................................................ 82 3.3 A motivação dos atos decisórios.......................................................... 88 3.4 exigência de fundamentação e motivação da sentença...................................................................................................... 90 3.5 O princípio-garantia da individualização da pena............................... 93 3.6 A valoração das circunstâncias judicias e a garantia constitucional da individualização do apenamento................................... 94 3.7 Individualização da pena e sistema constitucional de garantias.......... 96 3.8 A importância do processo interpretativo para a individualização sancionatória.............................................................................................. 99 3.9 A necessária releitura das disposições normativas referentes à aplicação da pena....................................................................................... 103 3.10 Dosimetria da sanção penal e a importância do princípio da secularização ........................................................................................ 104 3.11 Princípio da secularização e circunstâncias judiciais........................ 110 3.12 A pena motivada como direito fundamental...................................... 116
CONCLUSÃO....................................................................................................... 119 BIBLIOGRAFIA................................................................................................... 125
9
INTRODUÇÃO
A opção pelo enfoque da compatibilidade entre os direitos fundamentais e
temas ligados à sanção penal, notadamente a função da pena e o procedimento de sua
aplicação, leva em conta uma expectativa de contextualização das regras materiais e
formais de aplicação da sanção penal com os valores decorrentes do texto
constitucional brasileiro de 1988.
Se adequado o entendimento de que a Constituição é a representação do
conjunto de valores de uma sociedade, a definição de regras e princípios deve,
necessariamente, exercer uma função. Esta vem claramente definida no § 1° do art.
5°, que prevê a eficácia imediata das regras definidoras de direitos fundamentais,
entre os quais, aqueles de natureza penal e processual com incidência direta sobre o
procedimento sancionador.
Assim, se o direito penal, embora sua natureza fragmentária, é a expressão
máxima do controle social, a sua aplicação deve levar em conta os valores
constitucionais, decorrendo, daí, a necessidade da compatibilidade da pena, enquanto
instrumento desse controle, e a motivação das decisões judiciárias em geral e, em
especial, as etapas definidas no procedimento de imposição das penas.
10
Nesse contexto, o tema escolhido, portanto, é a busca da compatibilização das
regras fundamentais, das quais se extraem valores de obrigatória obediência, com a
dogmática penal definidora da função da pena e com a própria individualização.
É claro que a escolha do temário, vinculado à análise da necessidade de
fundamentação das decisões judiciais em relação ao processo sancionador, poderia
levar a uma dissertação sem fim, considerando-se a ampla gama de assuntos que
permitem abordagem nesse contexto. Poder-se-ia partir para uma análise meramente
processual acerca do dever de fundamentar todas as decisões judiciais; em outra
direção, a análise poderia ser vinculada à própria pena, como conseqüência da
desobediência do ordenamento positivo; ainda, a averiguação poderia tentar
compreender a própria crise do direito penal, enquanto instrumento de controle
social; todavia, o que se pretende é a análise da eficácia dos direitos fundamentais em
relação ao Poder Público e, especificamente, no tocante à existência (fundamento) e à
atividade judicial de individualização da pena.
O enfoque proposto parte, portanto, de um lado, da compreensão da eficácia
das regras de direitos fundamentais e, de outro, da vinculação do poder público aos
valores constitucionais, numa seara essencialmente importante para a cidadania, visto
que abrange um dos principais direitos individuais, que é o direito à liberdade.
Partindo-se da premissa de que as regras definidoras de valores fundamentais
são de obediência obrigatória ao Poder Público, o estudo busca, num primeiro
11
momento, questionar a existência de uma vinculação entre o direito penal e o sistema
constitucional para, em seguida, depois de investigar a compatibilidade da sanção
com os valores que norteiam a Carta Fundamental, explicar a necessidade de
mudança da atuação estatal (operadores jurídicos) quanto à individualização da pena.
Esses objetivos são palpáveis em razão de que princípios constitucionais
podem restar desprezados por força de regras infraconstitucionais, algumas anteriores
ao vigente texto da Carta Maior. Essa análise é importante, pois, como salientado, há
um descompasso legislativo entre os dispositivos do Código Penal, especialmente os
artigos 59 e 68, e a Constituição Federal, que é posterior.
Assim, a questão central a ser respondida é, sabendo-se da prevalência das
regras fundamentais sobre a legislação infraconstitucional, como resolver o aparente
conflito que se estabelece, por exemplo, de um lado, com o princípio da secularização
e, de outro, com a legislação ordinária que determina sejam consideradas situações
vinculadas ao autor (e não ao fato criminoso) na aplicação da pena.
Parece inegável, portanto, a necessidade de ‘depuração interpretativa’ da
legislação infraconstitucional, em razão dos valores constitucionalizados.
O objetivo geral é compreender a influência do positivismo
infraconstitucional como fator de impedimento para a efetivação de valores
constitucionais em matéria penal. De outra parte, o objetivo específico é entender se a
12
função da pena, preconizada pela dogmática, guarda compatibilidade com os valores
adotados pela Constituição Federal e se o procedimento de aplicação
(individualização) da pena prescinde da necessidade de releitura das regras penais em
face do novo paradigma constitucional.
A análise procedida é justificada pela necessidade de efetivação dos valores
constitucionais, a partir da concepção (modelo) de Estado delineada pela Constituição
de 1988 e pela conseqüente imposição de releitura da legislação vigente, o que, como
salientado, exige mudança dos operadores jurídicos.
Como acentuado, duas principais situações justificam o desenvolvimento do
estudo: a primeira, o descompasso normativo entre a legislação penal específica sobre
o tema e o texto constitucional de 1988; a segunda, a necessidade de efetivação
(judicial) dos valores fundamentais, tarefa obrigatória para o Poder Público,
especialmente para o Poder Judiciário.
É conhecimento corrente que a dogmática penal exerce importante papel na
compreensão do direito penal. Assim, apesar da natural crítica que surge quanto às
fontes bibliográficas, que não induzem à produção de novo conhecimento, mas
reelaboração conceitual, foi utilizada, predominantemente, essa forma de pesquisa,
em razão da grande quantidade de ensinamentos constantes de livros e outras
publicações referidas. As fontes para a pesquisa empreendida foram a legislação,
13
constitucional e infraconstitucional pertinentes, o conhecimento dogmático,
considerada a doutrina específica.
O tipo de pesquisa empreendida para o desenvolvimento do texto foi a
racional (não-experimental), com procedimento analítico-descritivo, procedendo-se
dedutivamente a partir dos ensinamentos adotados como referencial.
Sabe-se que toda interpretação é sempre decorrente de um processo de
atribuição de sentido, jamais produto de subsunção, que nada mais é do que a
repristinação de um processo de dedução.
Assim, dentro de uma perspectiva de percepção crítica do direito penal, na
linha de sua releitura, fica vinculado o operador a questionar a validade das normas
punitivas (positivismo formal), a partir da ordem constitucional, num Estado
Democrático de Direito.
O que se constata, então, é a necessidade uma efetiva e profunda releitura da
função do direito penal, especialmente no tocante ao papel da pena, em face da nova
ordem constitucional.
Assim, a proposta é, sempre acentuando a relevância dos preceitos
constitucionais, reentender aspectos da teoria da pena, especialmente na busca uma
nova justificativa (papel) para a finalidade da pena e para a individualização da
14
sanção penal, a partir do sistema das garantias e valores constitucionalizados. Não
mais é suficiente a mera repetição dos dizeres do texto legislativo; é imprescindível,
ao contrário, buscar a compatibilidade de tais dispositivos a partir dos valores
constitucionais.
A contribuição da pesquisa empreendida, para estudiosos da matéria e
operadores jurídicos, será de acentuar a necessária correspondência entre esse aspecto
do direito penal e a Constituição, além de estimular os construtores do direito a
empreenderem o necessário afastamento do positivismo formal, com a imprescindível
análise da eficácia das leis vigentes. As leis devem ser compreendidas a partir dos
valores constitucionais.
Por fim, de se enfatizar que a temática abordada se insere no contexto do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Ulbra, considerando-se que uma das
linhas de pesquisa versa sobre Desenvolvimento e Proteção dos Direitos
Fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito (linha II).
15
1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E ORDEM CONSTITUCIONAL
1.1 A exigência de efetividade dos direitos fundamentais
Discorrer sobre direitos fundamentais na ordem constitucional é identificar,
no momento atual do ordenamento jurídico brasileiro, o aparente conflito entre os
valores consagrados constitucionalmente e algumas práticas do Poder Público,
inclusive do Poder Judiciário, que não guardam completa adequação com o modelo
constitucional adotado.
Essa identificação permite, desde um primeiro momento, avançar sobre a
dimensão que os valores constitucionais devem emprestar ao ordenamento
sancionador, quer como fonte propulsora ou como limite para o direito penal.1
Nesse contexto, a necessária releitura do direito penal, a partir da Carta
Constitucional, é tarefa que deve ser efetivada num ambiente de mudanças de modelo
de estado, notadamente da passagem do modelo de estado liberal para o estado
democrático de direito, que exige de todos, inclusive dos particulares, a vinculação
aos direitos fundamentais.
1Nesse sentido, T AVARES, Juarez, quando apresenta a obra de PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 11, identifica que “na verdade, a relação entre Direito Penal e Constituição, independentemente da formação e do adestramento dos seus formuladores, tem sido tratada sob o pressuposto de que a lei maior dita as regras do processo criminalizador, tanto no sentido negativo quanto positivo”.
16
Analisando as variáveis que demonstram a limitada influência das cartas
constitucionais sobre os modelos penais, ensina Francesco C. Palazzo2 que podem ser
elencadas duas espécies de causas que contribuem para o fenômeno:
[...] de um lado, as atinentes a uma certa resistência e capacidade
do sistema existente às transformações político-constitucionais; de
outro lado, as causas pertinentes a uma espécie de escassa
vitalidade e incidência de forças que deveriam ativar a
transformação.
Na primeira hipótese, à parte a existência das chamadas ‘constantes
penalísticas’, vale dizer, de um núcleo central do direito criminal,
invariável em todos os tempos e em todas as latitudes, não se pode
olvidar a relevante polivalência de algumas categorias penalísticas
(a legalidade, em si mesma, por exemplo) capazes de apagar a
exigência de fundo de regimes político-constitucionais, ainda que
profundamente diferenciados [...].
Na segunda hipótese, há de se levar em conta, antes de tudo, uma
certa dificuldade, senão relutância, da doutrina penalística,
sobretudo nos anos imediatamente sucessivos à constituição, a
desenvolver o trabalho de concretização dos valores
constitucionais, premissa indispensável para a sua penetração no
sistema penal.
Como visto, o processo de concretização dos valores fundamentais, em
relação ao direito penal, é tarefa ainda incompleta, cujas causas não podem ser
2 PALAZZO, Francesco C. Valores Constitucionais e Direito Penal. Um estudo comparado. Tradução
17
aprofundadas na limitada via deste estudo; todavia, a falta de compreensão da
eficácia desses valores, decorrente da própria concepção de unidade e efetividade
constitucional, pode ser apontada como uma das causas para a existente falta de
consonância.
Portanto, discorrer sobre direitos fundamentais na ordem constitucional é
entender a razão da necessária mudança de postura dos operadores jurídicos,
especialmente da área penal, quando o sistema jurídico deve ser concebido a partir da
constituição e não da legislação infraconstitucional.
Como se verá, na seara penal, a exigência de mudança de postura é mais
significativa, em razão do campo de incidência do direito repressivo e, dentro deste,
no tocante ao procedimento do sancionamento. Isso ocorre, continua a ensinar
Palazzo,3 pela magnitude da transformação exigida, porque
[...] o advento da Constituição comporta uma vera e própria
transformação das relações tradicionais entre ciência penal e
legislação penal: uma situação, por assim dizer, de subordinação da
primeira à segunda, imposta até pelo princípio da legalidade e pelo
peso de uma tradição científica de tecnicismo jurídico, passando-se,
em conseqüência, a adotar conceitos da literatura penalística
tendentes a possibilitar as decisões de fundo, da Constituição, ‘úteis
ao legislador’.
de Gerson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 20. 3 PALAZZO, Francesco C. Op.cit., p. 21.
18
A função da pena e a forma de sua aplicação, portanto, a partir da ordem
constitucional, devem merecer um novo enfoque, voltado à efetivação dos direitos
fundamentais.
A compreensão, todavia, da necessidade da efetivação dos direitos
fundamentais na seara penal passa pelo entendimento do próprio sistema
constitucional, quanto à aplicabilidade sobre todo o ordenamento e quanto ao
procedimento para a solução de conflitos diante da possível colisão entre os vários
valores consagrados.
1.2 Direitos Fundamentais e sistema constitucional
É sabido que a Constituição brasileira de 1988 atribuiu significado ímpar aos
direitos individuais. Assim, a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no
início do texto constitucional indica a clara intenção de lhes emprestar significado
especial. A amplitude conferida ao texto, cujo artigo 5° se desdobra em quase uma
centena de incisos, reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte
quis outorgar a esses direitos.
É nesse contexto, em que a idéia de que valores constitucionais devem ter
eficácia imediata, que é ressaltada a vinculação necessária dos órgãos estatais a esses
direitos e o seu dever de observação.
19
O texto da constituição reconheceu, também, que os direitos fundamentais são
elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando,
por isso, incabível qualquer reforma constitucional tendente à sua supressão. A
propósito, esclarece Ingo Sarlet:4
Em que pese a circunstância de que situação topográfica
do dispositivo poderia sugerir uma aplicação da norma contida no
art. 5°, § 1°, da CF apenas aos direitos individuais e coletivos (a
exemplo do que ocorre com o § 2° do mesmo artigo), o fato é que
este argumento não corresponde à expressão literal do dispositivo,
que utiliza a formulação genérica ‘direitos e garantias
fundamentais’, tal como consignada na epígrafe do Título II de
nossa Lex Suprema, revelando que, mesmo em se procedendo a
uma interpretação meramente literal, não há como sustentar uma
redução do âmbito de aplicação da norma a qualquer das categorias
específicas de direitos fundamentais consagrados em nossa
Constituição, nem mesmo aos – como já visto, equivocadamente
designados – direitos individuais e coletivos do art. 5° [...]. Sem
que se vá aprofundar aqui este aspecto, entendemos suficiente –
pelo menos no que diz com o postulado da aplicabilidade imediata
a todas as normas de direitos fundamentais – uma remissão aos
demais argumentos por nós deduzidos, que consideramos ainda
serem idôneos para afastar a pretendida exegese restritiva.
4 SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 248.
20
Assim, se a intenção é atribuir aos direitos individuais eficácia superior à das
normas meramente programáticas, uma primeira operação é identificar-se,
precisamente, os limites de cada direito, isto é, a exata definição do seu âmbito de
proteção.
Tal tarefa, como acentuado, é de relevância extrema para o direito penal, pelo
seu caráter sancionador e porque os direitos elencados no artigo 5° vinculam a
atuação estatal.
Como decorrência, não só o legislador, mas também os demais órgãos estatais
com poderes normativos, judiciais ou administrativos cumprem uma importante
tarefa na realização dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, a Constituição Federal, em seu art. 5°, parágrafo 1°, determina
a aplicabilidade dos direitos previstos na ordem constitucional, embora seja possível
diferenciá-los. Para tanto, esclarece novamente Ingo Sarlet5 que a aplicabilidade dos
direitos individuais, vinculados à liberdade, independe de qualquer outro comando.
O Constituinte de 1988, além de ter consagrado
expressamente uma gama variada de direitos fundamentais sociais,
considerou todos os direitos fundamentais como normas de
aplicabilidade imediata. Além disso, já se verificou que boa parte
dos direitos fundamentais sociais (assim denominadas liberdades
5 SARLET, Ingo. Op. cit, p. 255.
21
sociais) se enquadra, por sua estrutura normativa e por sua função,
no grupo dos direitos de defesa, razão pela qual não existem
maiores problemas em considerá-los auto-aplicáveis, mesmo de
acordo com os padrões da concepção clássica referida. [...]. Outros
direitos fundamentais há, de modo especial – mas não
exclusivamente – entre os direitos sociais, que, em virtude de sua
função prestacional e da forma de sua positivação, se enquadram na
categoria das normas dependentes de concretização legislativa, que
– a exemplo do que já foi visto – podem ser também denominadas
de normas dotadas de baixa densidade normativa. Ainda que para
estes direitos fundamentais também se aplique o princípio da
aplicabilidade imediata, não há, por certo, como sustentar que tal se
dê de forma idêntica aos direitos de defesa [...].
Nessa perspectiva, embora possam ser distinguidos os chamados princípios de
direito penal constitucional dos valores constitucionais pertinentes à matéria penal,
como ensina Palazzo6, certo é que, pela posição ocupada no caderno constitucional, a
força vinculante de tais disposições não permite que o operador penal os desconheça,
inexistindo razões para a subsistência do abismo entre as respeitáveis concepções
dogmáticas do direito penal e os valores consagrados pela ordem constitucional.
6 PALAZZO, Francesco C. O.cit., p. 22.
22
1.3 A dupla perspectiva dos direitos fundamentais: elementos objetivos
fundamentais da comunidade ou direitos subjetivos individuais
1.3.1 Dupla perspectiva dos direitos fundamentais
A partir da perspectiva inicial, delineada neste estudo, acerca da eficácia dos
direitos fundamentais, é necessário aprofundar-se a compreensão dos direitos
fundamentais sob dupla perspectiva: a perspectiva objetiva, vinculada ao seu
conteúdo material, e a perspectiva subjetiva, relacionada com a possibilidade da
obtenção de tutela jurisdicional específica para a sua concretização.
A importância dessa compreensão decorre que, relativamente ao direito penal,
as disposições constitucionais relativas à matéria penal determinam uma profunda
modificação sistemática. Comentando esse aspecto, ensina Palazzo:7
O grau e a natureza de influência exercida pelos valores e
princípios constitucionais sobre o ordenamento penal dependem
não somente do conteúdo desses princípios (se de direito penal
constitucional, se extra-penais, embora influentes na matéria
disciplinada), mas, por igual, do modo como são postos tais
princípios na Constituição.
7 PALAZZO, Francesco C. Op. cit., , p. 27.
23
Dessa forma, justificável a análise da perspectiva sob o enfoque de que os
princípios constitucionais de direito penal ou os valores constitucionais pertinentes à
matéria penal ingressam no ordenamento jurídico.
1.3.2 Perspectivas de direitos fundamentais e ordem constitucional
Na lição de Ingo Sarlet,8 a questão da dupla face dos direitos fundamentais
não é matéria estranha ao direito pátrio, onde o tema já encontra receptividade, vez
que a problemática foi objeto de oportuna referência na relativamente recente obra de
Raquel Denise Stumm,9 embora não tenha sido analisada com maior profundidade e
sob todos os seus ângulos, em virtude do tema específico da investigação da referida
autora. A propósito, há de se referir que também Toledo Barros10 faz alusão à dupla
perspectiva objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais. Nesse mesmo sentido, de
atentar-se para a advertência de Sarlet,11 esclarecendo que foi
Bonavides, um dos expoentes do constitucionalismo
nacional, quem, com o pioneirismo e profundidade que lhe são
peculiares, mais detidamente enfrentou o tema entre nós, centrando
sua análise na dimensão institucional dos direitos fundamentais e,
num segundo momento de sua obra, no problema de sua
interpretação [...].
8SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 145. 9Em Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 124. 10BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília: Editora Brasília Jurídica, 1996, p. 128 e seguintes. 11SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 145.
24
Logo, justificável a distinção existente entre perspectiva objetiva e subjetiva,
como tema central para o entendimento da eficácia dos direitos fundamentais.
1.3.3 Perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais
Uma primeira abordagem sobre a perspectiva objetiva dos direitos
fundamentais deve analisar essa questão conceitual: a advertência feita por Sarlet,
que refere ter Robert Alexy elencado várias expressões ligadas à dimensão objetiva
dos direitos fundamentais e que foram extraídas da doutrina e da jurisprudência:
ordem objetiva de valores, sistema de valores, decisões constitucionais fundamentais,
direitos fundamentais como normas objetivas, diretrizes e impulsos. Em que pese o
uso habitual da terminologia “dimensão objetiva e subjetiva”, sustenta Sarlet que
convém ressaltar que, com o objetivo de evitar eventuais equívocos relacionados ao
problema das diversas dimensões (como sucedâneo do termo “gerações”) dos direitos
fundamentais, é preferível utilizar a expressão “perspectiva objetiva e subjetiva”.12
Um segundo aspecto a ser considerado é o famoso precedente no Direito
Germânico, a partir da Lei Fundamental de 1949 e decisão de 1958 da Corte Federal
Constitucional. Como bem menciona Sarlet,13 lembrando E. Denninger, AK I, p.
189, no segundo volume da coletânea oficial de suas decisões (BverfGE 2, 1/12), o
Tribunal Federal Constitucional já havia feito referência, neste caso, reportando-se à
12 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 146. 13 Idem, p. 147.
25
Constituição na sua totalidade, a uma ordem de valores vinculativa de todos
os órgãos estatais, baseada principalmente nos valores fundamentais na dignidade
humana, na liberdade e na igualdade.
Também não pode ser desconsiderada a posição de Peres Luño,14 para quem,
na lição de Sarlet, 15 devemos ter em conta que
Os direitos fundamentais passaram a apresentar-se no
âmbito da ordem constitucional como um conjunto de valores
objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes
públicos, e não apenas garantias negativas dos interesses
individuais, entendimento este, aliás, consagrado pela
jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol praticamente
desde o início de sua profícua judicatura.
14PÉRES LUÑO, Antonio Henrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. Madrid: Editora Tecnos, 1999, p. 298/299. Na obra, o escritor Espanhol traça a distinção entre princípios e valores constitucionais e apresenta vários modelos de interpretação dos direitos fundamentais, a partir de uma teoria positivista, sendo que os direitos fundamentais podem ser interpretados como a)garantias da autonomia individual; b)garantias jurídicas essenciais; c)categorias jurídico-formais e, d)categorias independentes. 15SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 148, acrescentando nota onde destaca o reconhecimento da dupla dimensão dos direitos fundamentais: “Em face de sua relevância para o desenvolvimento, fora da Alemanha, do entendimento de que os direitos fundamentais apresentam uma dupla dimensão objetiva e subjetiva, passamos a transcrever os trechos do acórdão prolatado em 1981 STC 25/1981, FJ 5º), tal como citado na coletânea de F. Rubio Llorente (Org.), Derechos Fundamentales y Princípios Constitucionales, p. 77: ´En primer lugar, los derechos fundamentales son derechos subjetivos, derechos de los ciudadanos no sólo en cuanto derechos de los ciudadanos en sentido estricto, sino en cuanto garantizan un status jurídico o la libertad en un ámbito de existencia. Pero al propio tiempo, son elementos esenciales de un ordenamiento objetivo de la comunidad nacional, en cuanto ésta se configura como marco de una convivencia humana justa y pacífica, plasmada históricamente en el Estado de derecho y, más tarde, em el Estado social y democrático de derecho, según la fórmula de nuestra Constitución (...) esta doble naturaleza de los derechos fundamentales (...) se recoge em el art. 10.1 de la CE`. Cumpre aduzir, em homenagem à completude, que o artigo 10.1 da Constituição Espanhola de 1978 reza que ´La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarollo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del ordem político y de la paz social`.”
26
Com base nessas preliminares, é possível construir o entendimento, a partir da
lição de Sarlet,16 de que
com o reconhecimento de uma perspectiva objetiva dos direitos
fundamentais não se está fazendo referência ao fato de que
qualquer posição jurídica subjetiva pressupõe, necessariamente, um
preceito de direito objetivo que a preveja.
O aspecto central que distingue a dimensão objetiva dos direitos
fundamentais, em relação à faceta subjetiva, é a chamada mais valia jurídica,17 que
consiste
num reforço de juridicidade das normas de direitos fundamentais,
mais valia esta que, por sua vez, pode ser aferida por meio das
diversas categorias funcionais desenvolvidas na doutrina e na
jurisprudência, que passaram a integrar a assim denominada
perspectiva objetiva dos direitos fundamentais.
Com a compreensão anterior, é possível avançar para aferir a relação entre
direitos subjetivos individuais e elementos objetivos fundamentais: A faceta subjetiva
dos direitos fundamentais necessita de preceito objetivo que os preveja. A perspectiva
objetiva dos direitos fundamentais representa, como já referido, uma mais valia
16SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p.. 148. 17Idem, p. 148.
27
jurídica (reforço de juridicidade das normas de direitos fundamentais), também na
lição de J. C. Vieira de Andrade.18
Em síntese, podem ser destacados alguns aspectos para compreensão da
dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que são, em primeiro lugar, a relação
entre regras e perspectiva subjetiva e entre princípios e dimensão objetiva. Vieira de
Andrade faz a distinção entre dimensão valorativa (axiológica) e dimensão jurídica
estrutural da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais.19 Nesse sentido, de
ressalvar-se a dimensão comunitária (e não-individualista) dos Direitos Fundamentais
e a decorrência de “efeitos jurídicos autônomos”20 para além da perspectiva subjetiva.
O reconhecimento dos direitos subjetivos individuais está vinculado ao
reconhecimento pela comunidade e, nesse sentido, a perspectiva objetiva dos direitos
fundamentais justifica restrições aos direitos individuais, com base no interesse
comunitário prevalente.
Por outro lado, deve ser acentuada a chamada eficácia dirigente21 em face do
Poder Público, que está obrigado na concretização dos direitos fundamentais.
18ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Editora Almedina, 1998, p. 165. 19Idem, pág. 145. 20SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 150. 21SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 151.
28
Também, por decorrência, nessa dimensão, os direitos fundamentais servem
como parâmetro da constitucionalidade da lei e demais atos normativos22. E, ainda,
projetam efeitos potencialmente autônomos,23 caracterizados pela eficácia irradiante,
pelo reconhecimento de deveres de proteção pelo Estado contra agressões feitas até
por particulares e pela definição de parâmetros para a criação e constituição de
organizações estatais e para regras procedimentais.
Por fim, de acentuar-se a posição defendida por Sarlet,24 de que o presente
processo de valorização dos direitos fundamentais na sua perspectiva de normas de
direito objetivo foi provocada pela chamada “transição do modelo de Estado Liberal
para o do Estado Social e Democrático de Direito” e também pela
conscientização da insuficiência de uma concepção dos direitos
fundamentais como direitos subjetivos de defesa para a garantia de
uma liberdade efetiva para todos, e não apenas daqueles que
garantiram para si sua independência social e o domínio de seu
espaço de vida social.
A partir dessa compreensão, o próximo passo é o entendimento dos direitos
fundamentais pela sua faceta subjetiva.
22ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. cit., p.. 167/169. Refere aspectos do chamado efeito de inconstitucionalidade e do efeito de interpretação dos direitos fundamentais a partir de sua dimensão objetiva. 23 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p.. 152. Essa dimensão de efeitos decorre da aceitação do modelo apresentado por J. C. Vieira de Andrade, considerada a perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais como um reforço da eficácia normativa dos direitos fundamentais. 24Idem, p. 155/156.
29
1.3.4 A perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais
Uma abordagem sobre a perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais
passa pela necessária crítica conceitual. Nesse sentido, a ponderação de J. Miranda
sobre a terminologia “direito público subjetivo”, sustentando Sarlet,25 de que não
parece adequado utilizar
a expressão ´direito público subjetivo' , tão querida na doutrina
nacional e até mesmo na estrangeira, já que esta designação, além
de anacrônica e superada, não se revela afinada com a realidade
constitucional pátria, uma vez que atrelada à concepção positivista
e essencialmente estatista dos direitos fundamentais na qualidade
de direitos de defesa do indivíduo contra o Estado, típica do
liberalismo.
Já a posição de Vieira de Andrade26 revela que “o direito subjectivo exprime
a soberania jurídica do indivíduo, quer garantindo-lhe certa liberdade de decisão,
quer tornando efectiva a afirmação do ‘poder do querer’ que lhe é atribuída.” A
adoção do conceito de direito subjetivo, ligada ao papel central que reconhecemos a
esta dimensão, exprime a opção por uma idéia de liberdade mais próxima de Locke
(vontade) do que de Spinosa ou Hegel (racionalidade). “Poder (disponibilidade),
25SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 156. 26ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. cit., p. 163.
30
liberdade (vontade) e exigibilidade (efectividade) são, deste modo, elementos básicos
para a construção do conceito de direito subjectivo.”27
Ensina Sarlet,28 também que, em geral, a vinculação feita aos direitos
fundamentais como direitos subjetivos está ligada a sua exigibilidade. Assim
esclarece:
de modo geral, quando nos referimos aos direitos fundamentais
como direitos subjetivos, temos em mente a noção de que ao titular
de um direito fundamental é aberta a possibilidade de impor
judicialmente seus interesses juridicamente tutelados perante o
destinatário (obrigado). Desde logo, presente a idéia de que o
direito subjetivo consagrado por uma norma de direito
fundamental se manifesta por meio de uma relação trilateral,
formada entre o titular, o objeto e o destinatário do direito. Neste
sentido, o reconhecimento de um direito subjetivo está atrelado “à
proteção de uma determinada esfera de auto-regulamentação ou
de um espaço de decisão individual; tal como é associado a um
certo poder de exigir ou pretender comportamentos ou de produzir
autonomamente efeitos jurídicos.
A partir dessa visão inicial da faceta objetiva dos direitos fundamentais, é
possível esboçar a proposta classificatória de direitos fundamentais na condição de
27 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 164. 28 Idem, p. 157.
31
direitos subjetivos, apresentada por Sarlett,29 com base em Alexy: partindo da
distinção efetuada por Bentham entre rights to services, liberties and powers, edifica
sua concepção de direitos fundamentais (o que chamou de sistema das posições
jurídicas fundamentais) em sua perspectiva subjetiva, com base no seguinte tripé de
posições fundamentais, que, em princípio, pode integrar um direito fundamental
subjetivo: em primeiro lugar, direitos fundamentais são direitos a qualquer coisa, que
englobariam os direitos a ações negativas e positivas do Estado e/ou particulares e,
portanto, os clássicos direitos de defesa e os direitos a prestações; em seguida,
liberdades, no sentido de negação de exigências e proibições e por fim, os poderes,
no sentido de competências ou autorizações.
Outro aspecto que merece consideração é acerca do grau de exigibilidade dos
direitos fundamentais na perspectiva subjetiva: Aliado à noção de direito subjetivo
em sentido amplo, está, de outra banda, o reconhecimento de determinado grau de
exigibilidade (ou justiciabilidade, se preferirmos), que, no entanto, é de intensidade
variável e dependente da normatividade de cada direito fundamental. Sustenta Sarlet30
com base em estudo realizado, que
para traçarmos uma distinção suficientemente precisa entre a
perspectiva objetiva e subjetiva (sem prejuízo da possibilidade de
uma eventual subjetivação de posições em princípio limitadas à
juridicidade meramente objetiva), consideramos necessária a
clarificação do significado desta exigibilidade, já que, de certa
29SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 158. 30Idem, p. 158/159.
32
forma, a mera possibilidade de suscitar-se judicialmente o controle
da constitucionalidade de um ato normativo não deixa de
constituir, sob o ângulo de uma efetivação via judicial, uma faceta
da subjetivação inerente a todas as normas constitucionais na
condição de direito objetivo. Neste contexto, quando – no âmbito
da assim denominada perspectiva subjetiva – falamos de direitos
fundamentais subjetivos, estamo-nos referindo à possibilidade que
tem o seu titular (considerado como tal a pessoa individual ou ente
coletivo a quem é atribuído) de fazer valer judicialmente os
poderes, as liberdades ou mesmo o direito à ação ou às ações
negativas ou positivas que lhe foram outorgadas pela norma
consagradora do direito fundamental em questão.
Em síntese, quanto à relação entre as perspectivas subjetiva e objetiva dos
direitos fundamentais, de sustentar-se a prevalência da primeira, apoiados na lição de
Alexy,31 sendo que Sarlet32 enfatiza que a tese da presunção em favor da perspectiva
jurídico-subjetiva encontra sustentação em dois argumentos.
Assim, sustenta o renomado jusfilósofo, a finalidade
precípua dos direitos fundamentais (mesmo os de cunho coletivo)
reside na proteção do indivíduo, e não da coletividade, ao passo que
a perspectiva objetiva consiste, em primeira linha, numa espécie de
reforço da proteção jurídica dos direitos subjetivos. Já o segundo
31Em Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. 1993, p. 173 e seguintes. No Capítulo IV de sua clássica obra, desenvolve Alexy a construção dogmática dos direitos fundamentais como direitos subjetivos, demonstrando a vinculação entre direitos subjetivos e questões normativas, empíricas e analíticas e enfatizando a tríplice divisão dos direitos fundamentais em: a) direitos a algo; b) liberdades; c) competências. 32SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 159/160.
33
argumento (que Alexy designa de argumento da otimização) diz
com o caráter principiológico dos direitos fundamentais,
destacando-se o fato de que o reconhecimento de um direito
subjetivo significa um grau maior de realização do que a previsão
de obrigações de cunho meramente objetivo.
Em prosseguimento, Sarlet,33 de acordo com este entendimento e na plástica
formulação de J.J. Gomes Canotilho, continua esclarecendo que
os direitos fundamentais são, em primeira linha, direitos
individuais, do que resulta a constatação de que, em se encontrando
constitucionalmente protegidos como direitos individuais, esta
proteção dar-se-á sob a forma de direito subjetivo.
E, por derradeiro, o predomínio da perspectiva subjetiva encontra sua
justificativa no valor outorgado à autonomia individual, na qualidade de expressão da
dignidade da pessoa humana.34 Sustenta Sarlet que
esta presunção em favor da perspectiva subjetiva (individual) não
exclui a possibilidade, inclusive reconhecida pela nossa
Constituição, de atribuir-se a titularidade de direitos fundamentais
subjetivos a certos grupos ou entes coletivos que, todavia, e em que
pese a distinção entre as noções de pessoa e indivíduo, gravitam,
33 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 160. 34 Idem, p. 160.
34
em última análise, em torno da proteção do ser humano em sua
individualidade.
Portanto, a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais é o canal que
permite a titularidade de direitos fundamentais a outros titulares que não o ser
humano, decorrendo, daí, na seara penal, a compatibilidade constitucional da
proteção à pessoa jurídica.
1.3.5 Direitos fundamentais e ordem jurídica
Da breve análise realizada, pode ser compreendido que a existência de dupla
dimensão (objetiva e subjetiva) dos direitos fundamentais encontra eco em todas as
construções teóricas esboçadas a partir do constitucionalismo da segunda metade do
século XX.
A principal nota da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é que estes
não estão limitados ao papel de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo
frente ao Estado, constituindo-se decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da
Constituição, com eficácia sobre todo o ordenamento jurídico. É por isso que a
dimensão objetiva dos direitos fundamentais representa aquilo que Vieira de Andrade
chama de mais valia jurídica em relação à faceta subjetiva dos direitos fundamentais.
35
Quanto à dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, prevalente sobre a
faceta objetiva, compreende a noção de exigibilidade, por parte de um titular, da
concretização de um direito ou valor constitucional por parte do destinatário. Na
dimensão subjetiva, os direitos fundamentais se conformam numa relação trilateral:
titular, objeto e destinatário do direito a ser implementado.
Por fim, a partir dessa distinção, a vinculação entre a dimensão objetiva e
subjetiva dos direitos parece clara, na medida em que os direitos individuais,
enquanto direitos fundamentais objetivados na Constituição, são protegidos sob a
forma de direito subjetivo.
Assim, em decorrência, da força vinculante dos valores da Constituição e da
sua proteção sob forma de direitos subjetivos, parece natural a exigência da
vinculação do sistema de direito penal, especialmente no tocante à criminalização e
ao sancionamento a tais valores, sob pena de negar-se a eficácia da própria
Constituição.
1.4 Da necessária vinculação do Direito Penal aos valores
1.4.1 Problemas de eficácia dos direitos fundamentais
A partir da compreensão do papel e da dimensão dos direitos fundamentais, na
estreita via deste estudo, resta a análise do problema da colisão de direitos
36
fundamentais, considerada a extensão do rol constante no artigo 5° da Carta Magna e
a necessidade de vincular o direito penal a tais valores.
Essa vinculação é defendida por Francesco C. Palazzo, sob a denominação de
vias de penetração,35 quando esclarece que
A ´penetração´ dos valores constitucionais no corpo do
sistema penal (como, de resto, no de qualquer outro ramo do
ordenamento) pode ocorrer mediante a ´via legislativa´, por
intermédio de leis de atuação constitucional, ou pela ´via
jurisdicional´, entendendo-se como tal não apenas o trabalho de
adequação do magistrado a quanto se contenha nas malhas da lei,
mas, principalmente, a decisiva atividade Constitucional. Ora, se a
primeira via não apresenta problemas particulares no campo penal,
a segunda põe-se numa problemática relação a propósito do
princípio fundamental da estrita legalidade dos delitos e das penas.
A questão assume relevância, na linha do enfrentamento que aqui se pretende
fazer, notadamente quando se propõe a implementação de princípios e valores
constitucionais sobre a legislação penal infraconstitucional, surgindo, daí, a natural
necessidade de um ferramental adequado para o natural confronto entre a legislação
anterior ao atual texto constitucional e, também, entre o princípio da legalidade e
demais princípios e valores constitucionais, atinentes ao direito penal.36
35 Em Op. cit., p. 30. 36 PALAZZO, Francesco C. Op. cit., , p. 31. A propósito, esclarece que os grandes problemas a respeito da legalidade não surgem com a formulação da norma penal, mas, fundamentalmente, em relação à incidência dos valores constitucionais sobre uma regra penal adequadamente (legalmente) produzida.
37
Nesse ponto, ainda que brevemente, convém analisar como a teoria
constitucional posiciona o possível conflito entre princípios e valores da constituição
e entre estes e a legislação (regras).
Além disso, a matéria é relevante em qualquer estudo sobre direitos
fundamentais, considerando-se que, segundo Wilson Antônio Steinmetz, a chamada
Teoria Estrutural de Alexy não é uma teoria particular ou regional, mas, ao contrário,
uma referência obrigatória no estudo da matéria.37
A dimensão analítica da teoria de Alexy, segundo Steinmetz,38 tem primazia,
mas não guarda exclusividade. A propósito, ensina:
A teoria estrutural é, primeiramente, uma teoria analítica,
porque investiga os conceitos fundamentais no âmbito dos direitos
fundamentais, a influência destes direitos no sistema jurídico e a
fundamentação dos direitos fundamentais. Sendo a jurisprudência
do TCF a matéria mais importante, é uma teoria empírico-analítico.
Por fim, orientada pela pergunta sobre qual é a decisão correta
desde o ponto de vista dos direitos fundamentais e da
fundamentação racional destes direitos, a teoria estrutural é uma
37STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 120. Sobre o tema, ensina que a chamada teoria estrutural dos direitos fundamentais apresenta-se, primeiramente, como uma teoria dogmática, que tem por pressuposto um determinado modelo de ciência stricto sensu; para o modelo, a dogmática jurídica tem três dimensões, que são a analítica, a normativa e a empírica. 38 Idem, p. 121.
38
teoria normativo-analítico. A dimensão analítica tem primazia, mas
não exclusividade. Tal primazia se justifica porque ‘la claridad
analítico-conceptual es una condición elemental de la racionalidad
de toda ciencia’.
Assim, a base da teoria estrutural, como parte geral da dogmática dos direitos
fundamentais, seria constituída pela teoria dos princípios e a teoria das posições
jurídicas básicas.
Para Steinmetz, a imprescindibilidade da teoria estrutural decorre da sua
fundamental importância para a construção de um modelo de dogmática dos direitos
fundamentais,39 considerando-se que seu objeto são justamente os direitos
fundamentais. Nesse sentido:
Como já mencionado, a teoria estrutural de Alexy tem
como objeto a LF. Contudo, a teoria dos princípios e a teoria das
posições jurídicas básicas dão à teoria estrutural um caráter de
universalidade, um caráter paradigmático. Ela é uma teoria
adequada para constituições de Estados Democráticos de Direito
que possuam um catálogo de direitos fundamentais.
Para a investigação que aqui se desenvolve, nuclear é a
teoria dos princípios. Sem ela não é possível solucionar
adequadamente o problema da colisão de direitos fundamentais.
39STEINMETZ, Wilson Antônio. Op. cit., p. 122.
39
Ademais, presentemente, a teoria de Alexy apresenta-se como indispensável
para qualquer compreensão sobre eficácia de direitos constitucionais.
1.4.2 A teoria dos princípios de Robert Alexy Sem dúvida, uma das grandes contribuições de Robert Alexy para o
desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais foi estabelecer
pressupostos para a distinção entre princípios e regras. A propósito, ensina
Steinmetz:40
Segundo Alexy, na análise da estrutura das normas de
direitos fundamentais, para a teoria estrutural dos direitos
fundamentais, a principal distinção teórico-estrutural é a distinção
entre regras e princípios. Com ela, é possível a formulação de uma
teoria dos limites, uma teoria satisfatória da colisão e uma teoria
sobre o papel dos direitos fundamentais no sistema jurídico. Além
disso, essa distinção teórico-estrutural constitui o marco de uma
teoria normativo-material dos direitos fundamentais e, assim,
condição para a resposta ao problema da racionalidade no âmbito
dos direitos fundamentais.
Todavia, são necessários cuidados para a correta compreensão acerca da
distinção proposta. Assim, esclarece:41
40STEINMETZ, Wilson Antônio. Op. cit., p. 123. 41 Idem, p. 124.
40
Embora a distinção lógica entre regras e princípios não
seja uma novidade, Alexy identifica um certo grau de confusão e
polêmica por causa da insuficiência dos critérios utilizados para a
distinção, tais como: grau de generalidade, de determinabilidade,
referência a valores, referência à idéia de direito, importância para
o sistema jurídico, etc. Daí a necessidade de encontrar um critério
que permita uma distinção clara e precisa entre regras e princípios.
Alexy esposa a tese de que entre as normas-princípios e as
normas-regras existe não só uma diferença gradual mas também
qualitativa. Para ele, "el punto decisivo para la distinción entre
reglas y principios es que los principios son normas que ordenan
que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las
posibilidades jurídicas y reales existentes". São mandatos de
otimização que podem ser realizados em diferentes graus. Em
contrapartida, ‘[...] las regIas son normas que sólo pueden ser
cumplidas o no. Si una regIa es válida, entonces de hacerse
exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las
reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y
jurídicamente posible’.
Nessa linha, a ponderação surge como valor imprescindível para a solução de
um confronto entre princípios, cuja eficácia não pode ser negada. É por isso que
Steinmetz42 continua a ensinar que
42STEINMETZ, Wilson Antônio. Op. cit., p. 124.
41
O fato de que a realização dos princípios depende das
possibilidades jurídicas (além das fáticas), ou seja, é determinada
pelo peso dos princípios opostos, implica que os princípios não só
são suscetíveis mas necessitam de ponderação. As regras, por sua
vez, não são suscetíveis nem necessitam de ponderação. A
subsunção é o modo típico de aplicação de regras ao caso concreto.
Por outro lado, para uma situação em que duas regras jurídicas podem, em
tese, merecer aplicação num determinado caso concreto, a solução preconizada é
distinta daquela indicada para a colisão de princípios.43
Um conflito de regras, caracterizado pelas conseqüências
contraditórias quando da aplicação (das regras) ao caso concreto,
pode ser solucionado de dois modos: (a) ou introduzindo uma
cláusula de exceção em uma das regras, ou (b) declarando a
invalidade de, ao menos, uma delas, com base em critérios como
lex superior derogat legi inferiori, lex posterior derogat legi priori
e lex specialis derogat legi generali. Isso decorre do fato de que as
regras prescrevem imperativamente uma exigência, prevêem um
fato e determinam a conseqüência normativa, e, havendo uma
antinomia, impõe-se um juízo de (in)validez.
Alexy,44 dessarte, apresenta uma fórmula distinta que deve ser utilizada em
hipótese de colisão de princípios:
43STEINMETZ, Wilson Antônio. Op. cit., p. 125. 44ALEXY, Robert. Op. cit., p. 89.
42
cuando dos principios entran en colisión tal como es el caso cuando
según un principio algo está prohibido y, según otro principio, está
permitido -uno de los principios tiene que ceder ante el otro. Pero,
esto no significa declarar inválido al principio desplazado ni que en
el principio desplazado haya que introducir una cláusula de
excepción. Más bien lo que sucede es que, bajo ciertas
circunstancias uno de los principios precede al otro. Bajo otras
circunstancias, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada
de manera inversa. Esto es lo que quiere decir cuando se afirma que
en los casos concretos los principios tienen diferente peso y que
prima el principio con mayor peso. Los conflictos de reglas se
llevan a cabo en la dimensión de la validez; la colisión de
principios -como sólo pueden entrar en colisión principios válidos
tiene lugar más allá de la dimensión de la validez, en la dimensión
del peso.
Dessa maneira, razoável a opção pela proporcionalidade quando da colisão
de princípios de direitos fundamentais, como forma de manutenção do princípio
preterido dentro do contexto da ordem constitucional, fazendo-se aquilo que
Steinmetz chama de juízo de peso.45 Assim é que
[...] uma colisão de princípios não se resolve com uma cláusula de
exceção nem com um juízo de (in)validez. Requer um juízo de
peso. Trata-se da ponderação de bens, com a qual, tendo presente
as circunstâncias relevantes do caso e o jogo de argumentos a favor
45STEINMETZ, Wilson Antônio. Op. cit., p. 126.
43
e contra, decidir-se-á pela precedência de um princípio em relação
ao outro. Ao se proceder dessa forma, no caso concreto, a validez
jurídica do princípio preterido não é negada. O princípio não
desaparece do ordenamento jurídico. Como se vê, estabelece-se
uma relação de precedência condicionada que ‘[...] consiste en que,
tomando en cuenta el caso, se indican las condiciones bajo las
cuales un principio precede al otro. Bajo otras condiciones, la
cuestión de la precedencia puede ser solucionada inversamente’.
Essa ponderação se realiza mediante a máxima da
proporcionalidade e suas três submáximas ou máximas parciais.
Desse modo, incontestável a importância da distinção entre regras e princípios
para o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais. Sem tal distinção, seria
impossível a formulação adequada de uma teoria da colisão.
Por outro ângulo, embora a teoria de Alexy seja aceita, podem ser destacadas
as críticas feitas por Humberto Ávila46 para quem, apesar da concepção ser
catalogada como uma teoria forte, haveria inconsistências na distinção entre
princípios e regras. A principal crítica de Humberto Ávila à teoria de Alexy é a
possibilidade do tudo/nada na aplicação de uma regra, inexistindo espaço para
ponderação.
46Em Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 50. Ensina que não é coerente afirmar que somente os princípios possuem uma dimensão de peso, sustentando que a aplicação das regras também demanda o sopesamento de razões cuja
44
Um aspecto importante na construção do modelo de Alexy, que permite a
coexistência dos direitos fundamentais, é que, quando houver uma colisão de
princípios, não haverá um superando o outro; a solução se dará através do uso da
ponderação (peso). Ou seja, deve-se buscar o equilíbrio entre os princípios, de forma
que nenhum será totalmente excluído. Um será aplicado na solução do caso concreto.
Em síntese, a chamada Lei de Colisão consiste em um procedimento (método)
que utiliza a ponderação para decidir qual dos interesses jurídicos possui maior peso
no caso concreto. A solução da colisão consiste, nas circunstâncias no caso concreto,
em estabelecer-se entre os princípios uma relação de precedência condicionada.
1.4.3 A vinculação do direito penal aos valores constitucionais
Como salientado, o processo de constitucionalização do direito penal não é
tarefa simples. Um primeiro aspecto que pode ser apontado como fator impeditivo da
prevalência dos valores da constituição é a existência de uma dogmática penal
específica, cuja simbiose com o direito constitucional não é sempre pacífica.
Um segundo aspecto que foi apontado anteriormente é relativo ao problema
do conflito entre direitos fundamentais, na medida em que a Carta Magna consagra
importância será determinada pelo aplicador, vez que a dimensão valorativa não é privativa dos princípios, sendo elemento integrante de qualquer norma jurídica.
45
valores antagônicos (liberdade x pena), havendo necessidade de uma
instrumentalização teórica adequada para sua operacionalização.
Uma terceira distinção pode agora ser feita: estabelecerem-se referências entre
princípios de direito penal constitucional e valores constitucionais pertinentes a
matéria penal,47 na lição de Palazzo, o qual, com propriedade sustenta:
Os primeiros apresentam um conteúdo típico e
propriamente penalístico (legalidade do crime e da pena,
individualização da responsabilidade, etc.) e, sem dúvida,
delineiam a ‘feição constitucional’ de um determinado sistema
penal, a prescindir, eventualmente, do reconhecimento formal num
texto constitucional. Tais princípios, que fazem parte, diretamente,
do sistema penal, em razão do próprio conteúdo, têm, ademais,
características substancialmente constitucionais, enquanto se
circunscrevem dentro dos limites do poder punitivo que situam a
posição da pessoa humana no âmago do sistema penal. [...] .
Os outros, vale dizer, ‘os princípios (ou valores)
pertinentes à matéria penal’, se atêm à específica matéria
constitucionalmente relevante (economia, administração pública,
matrimônio e família), da qual traçam, freqüentemente, os grandes
rumos disciplinadores. Embora sejam princípios de condição
obviamente constitucional, seu conteúdo se revela heterogêneo e,
por isso, não exatamente característico do direito penal. [...] O
fenômeno de sua influência no direito penal moderno pressupõe o
47 PALAZZO, Francesco C. Op. cit., p. 22.
46
caráter ‘sancionatório’, em certo sentido, do direito penal em si,
enquanto – diferentemente dos princípios de direito penal
constitucional – condicionam, com prevalência, o conteúdo, a
matéria penalmente disciplinada e não a forma penal de tutela, o
modo de disciplina penalística.
Nesse ponto, cabe destacar que um dos grandes temas acerca da relação entre
direito penal e constituição, além daqueles vinculados ao sancionamento, objeto deste
estudo, é o relativo ao alcance da criminalização, sustentando Luiz Luisi48 que,
embora seja possível proteger-se bens não valorados nas constituições, essa proteção,
[...] há de fazer-se sem conflito com os princípios constitucionais. É
de sustentar-se também que a criminalização desses bens não
previstos nas constituições não só não podem entrar em conflito
com essas, como nelas encontram para a criminalização limitações
insuperáveis. E isso porque nos textos constitucionais a
criminalização encontra proibições expressas, bem como vedações
explícitas. [...].
As Constituições, portanto, não apenas são o repositório principal
de bens passíveis de criminalização, mas também contêm
princípios relevantíssimos que modelam a vida da comunidade e
que, para usar a linguagem dos constitucionalistas, constituem
cláusulas pétreas, embasadoras do sistema constitucional,
insuscetíveis de serem revistas.
48 Em Os princípios constitucionais penais. 2ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 2003, p. 174.
47
Na mesma linha, Janaína Conceição Paschoal,49 discorrendo sobre os limites
da intervenção penal, acentua a mudança paradigmática havida com o fenômeno do
constitucionalismo, quando os valores sociais passaram a ser substituídos pelos
valores constitucionais. Nesse sentido:
Uma das possíveis formas de relacionar o Direito Penal e a
Constituição é tomando esta como limite negativo daquele. Importa
dizer que toda criminalização que não desrespeite frontalmente o
texto constitucional será admitida, ainda que o valor (ou bem)
tutelado não esteja albergado na Constituição, significando que,
nessa concepção, não se exige para a criminalização que a
Constituição tenha reconhecido a dignidade do bem a ser protegido
pelo direito penal.
Noutra direção, mas sempre na perspectiva da simetria entre sistema
constitucional e direito penal, deve ser enfocada a posição defendida por Márcia
Dometila Lima de Carvalho,50 que, imediatamente após a Constituição de 1988,
defendeu a vinculação do direito penal aos valores da carta fundamental, acentuando
a necessidade dessa submissão:
Das exigências fundamentais inseridas na Constituição,
inferem-se os limites traçados, por ela, para o Direito Penal. Não se
49 Em Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 55. 50 Em Fundamentação Constitucional do Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 1992, p. 44.
48
pode olvidar que este, mormente em um Estado promocional, é, por
natureza, um de seus instrumentos mais eficazes. [...].
A dignidade da pessoa humana, como fundamento do
Estado Democrático de Direito, é o valor expresso no princípio da
humanidade do Direito Penal, que não pode deixar de ser
considerado quando da criminalização de qualquer fato, etiquetado
como socialmente agressivo, ou quando da cogitação de qualquer
sanção criminal.
Por fim, embora a matéria seja objeto de abordagem no capítulo seguinte, esse
mesmo nível de hierarquia e compatibilidade entre os direitos fundamentais e direito
penal deve ser observado quando da imposição do sancionamento, seja na observação
da culpabilidade como fundamento e limite, seja na vinculação da função da pena
aos valores fundamentais.
49
2 A SANÇÃO PENAL NO MODELO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO:
FUNÇÃO E FUNDAMENTO
2.1 Finalidades das penas e ordem constitucional
Como acentuando no capítulo anterior, procuramos demonstrar a supremacia
da ordem constitucional sobre o ordenamento jurídico, identificando o aparato teórico
existente para dar suporte à vinculação do direito penal ao modelo constitucional,
aduzindo que essa impregnação se dá através da criminalização e do sancionamento.
Neste capítulo, a abordagem é mais específica, direcionada ao sancionamento
penal, cujo escopo será demonstrar a necessidade de adequar-se os fins da pena aos
valores da Constituição, a partir da compreensão inicial da própria função da pena,
em ensinamento que é fornecido pela dogmática penal. A partir daí, tendo em conta o
princípio da culpabilidade, a tarefa consistirá em adequar a finalidade preventiva da
pena aos princípios constitucionais pertinentes.
A propósito da discussão sobre as finalidades da pena, há quem afirme que
esta se confunde com a própria discussão da existência do direito penal, não podendo
ser dissociada. Nesse sentido, ensina Nilo Batista que uma teoria da pena é sempre
uma teoria do direito penal.51
51 Em Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 111. Na mesma linha, sustenta que o debate científico-político sobre a pena se transforma no debate sobre todo o direito penal. E preconiza que discutir os fins da pena é o mesmo que discutir os fins do direito penal .
50
Noutro viés, não pode ser ignorada a lição de Günter StratenWerth,52 para
quem a justificativa para o fim da pena é uma questão ainda não concluída. A lição é
que:
Como es sabido, en la literatura del derecho penal de
lengua alemana de las últimas décadas esta cuestión há ocupado
um espacio desproporcionadamente amplio, incluso en
comparación con el número de publicaciones jurídicas, que de
todos modos aumenta en progresión geométrica. En esto se
expresa, com es notorio, la difundida sensación de que las
respuestas tradicionales ya no bastan, que los posibles fines de la
pena tienen que estar determinados de modo distinto o bien con
más precisión que hás ahora, aun cuando la discusión, por lo
general, sai siendo siempre conducida con las lategorías
conceptualis tradicionales de teorías absolutas y relativas, de
retribución, prevención genegeral y prevención especial.
É por isso que Pedro Krebs53 chama atenção para esta peculiaridade:
Questão das mais controvertidas, o tema a respeito da
finalidade da pena tem sido alvo de inúmeras controvérsias e
debates, até mesmo porque a discussão gira em torno da
legitimidade de o Estado impor uma sanção penal a um cidadão
detentor de direitos.
52 Em ¿Que aporta la teoría de los fines de la pena? Traducción de Marcelo A. Sancinetti. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 1998, p. 11. 53 Em Teorias a Respeito das Finalidades da Pena. Revista Ibero-Americana de Ciências Criminais, Porto Alegre, n. 5, janeiro/abril de 2002, p. 99.
51
Por sua vez, o sempre lembrado Luiz Luisi54 destacou que, embora a
Constituição Federal não tenha acentuado função para o apenamento, pode-se dizer
que a função retributiva e preventiva são compatíveis com o modelo constitucional,
não sendo possível, contudo, extrair-se uma única finalidade:
A rigor, portanto, certa é a polifuncionalidade da pena,
sendo que seus fins principais são o de retribuir o mal do crime e o
da prevenção. Em caráter secundário a pena pode servir para educar
ou reeducar o delinqüente. Mas isso só é eventualmente viável,
dependendo de uma série de circunstâncias conjunturais,
principalmente da decisão política de aplicar os recursos
necessários para que se torne possível o objetivo em causa.
Dessa forma, considerando a importância que a pena representa, tendo em
conta o caráter sancionador do direito penal, é preciso caracterizar as linhas gerais
que procuram estruturar as teorias das penas. É bem verdade que, nessa tarefa, há de
ser acentuado que, ao contrário do direito penal, enquanto regramento tendente ao
controle social, a teoria da pena não conseguiu se vincular, de forma definitiva, aos
valores do constitucionalismo moderno. Assim, se para o direito penal é atual a
discussão da importância dos princípios e valores constitucionais, para as teorias da
pena tal discussão é periférica. Exemplo disso é a importância do princípio da
54 Em Os princípios constitucionais penais. 2ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 186.
52
secularização,55 com reflexo praticamente insignificante na discussão das teorias das
penas.
De qualquer sorte, em linhas gerais, duas grandes correntes podem ser
apresentadas quando se busca estruturar, racionalmente, a justificativa para o
sancionamento penal. Uma primeira vertente, de cunho abolicionista, realça a
ausência de justificativa para o direito penal e, por decorrência, para o direito de
punir, preconizando sua substituição por outras formas punitivas de solução de
conflitos;56 de outro lado, alinhando-se ao fundamento de que o direito penal é
instrumento irrenunciável do Estado para exercer controle social, estão as correntes
justificacionalistas.
A propósito, Pedro Krebs57 esclarece que:
Dentre as inúmeras correntes que objetivam responder à
pergunta qual o direito de o estado castigar, duas se fizeram surgir:
a primeira, de caráter negativo, denomina-se abolicionista, que não
vislumbra nenhuma justificativa para a punição; a segunda, com
características positivas, denominada justificacionista, vê, no
direito penal, uma resposta a entornos de ordem social ou moral
irrenunciáveis. Esta última doutrina, que é a mais realista, apresenta
inúmeras variantes: teorias absoluta e relativa, sendo que esta
última ainda se divide em teorias da prevenção geral – positiva ou
negativa – ou da prevenção especial, também positiva ou negativa.
55 O tema é abordado por CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Hamilton Bueno de. Aplicação da pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 5/97. 56SILVA SANCHES, Jesús-Maria. Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo. Barcelona: J.M. Bosch editor, 1992, p. 18. 57Em Teorias a respeito das finalidades da pena. Revista Ibero-Americana de Ciências Criminais, Porto Alegre, n. 5, janeiro/abril de 2002, p. 100.
53
Como mencionado, a característica fundamental da corrente abolicionista é o
seu viés negativo, ou seja, sustentando a absoluta ineficácia no sistema penal e, por
outra banda, o viés positivo, ou seja, a crença na resposta estatal ao delito é a marca
das correntes justificacionistas, que apresentam, num quadro de racionalidade
conceitual, razões a sustentar a intervenção penal sancionatória.
2.2 Teorias de justificação das penas
Já as teorias justificacionistas, informa Krebs, realçam a importância que o
direito penal representa em sua função de solução de conflitos sociais.58
Tais teorias, ao contrário dos ideais abolicionistas,
concebem uma importância ao direito penal e nele vêem como uma
solução efetiva a inúmeros problemas sociais. Reduzem-se, em
geral, a duas doutrinas: as teorias absolutas (ou punitur, quia
peccatum est) ou relativas (punitur, ne peccetur). Para as primeiras,
a pena é concebida como um fim em si mesma, ou seja, um
‘castigo’, ‘compensação’, ‘reação’, ‘reparação’ ou ‘retribuição’ do
delito, não permitindo uma finalidade outra – como a prevenção – e
não concebendo que a pena não seja cumprida e na sua totalidade,
sob pena de afrontar os ideais da justiça (idéia sustentada por
KANT) ou do direito (referida por HEGEL); já as teorias relativas
justificam a pena como um meio para que não sejam praticados
delitos no futuro.
58Em “Teorias...”, cit., p. 103.
54
Como assinalado, superado o entendimento de que o abolicionismo penal não
é instrumento adequado para o exercício do controle social, a justificação à pena pode
ser estruturada a partir de duas doutrinas centrais: a primeira, a seguir denominada de
teorias absolutas, que tem como nota principal, para fundamentar a pena, o
entendimento de que esta é um fim em si mesmo (dado absoluto), representando,
portanto, uma reação contra o delito; a segunda, ao contrário, que denominaremos
teorias relativas, tem como sustentação central o fundamento de que a pena é um
instrumento ou meio para evitar a prática de novos delitos, numa visão
prevencionista, dirigida à sociedade (prevenção geral) ou ao agente que praticou o
delito (prevenção especial).
Essa distinção entre as teorias que justificam a pena é bem retratada por Heiko
H. Lesch,59 que sustenta:
Por lo que respecta a la función de la pena, se suele
distinguir entre teorias absolutas de la pena y teorias relativas. En
la terminologia usual, la concepción de las teorias relativas se
reduce hoy dia al concepto de teoría preventia y se identifican com
el programa “punitir ne peccetur”, mientras que la concepcíon de
las teorias absolutas permanece unida al principio de la
compensación de la culpabilidad – “punitur, quia peccatur est”-.
Por ello es, desde todo punto, acertado cuando se habla de “la
antítesis de un Derecho penal represivo y uno preventivo”. En todo
59 Em La función de la pena. Traducción de Javier Sánchez-Vera Gomes-Trelles. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2000, p. 17.
55
caso – este es el sentido que habitualmente se concede a esta
diferenciacíon en grandes líneas – se otorga a las teorias absolutas
uma orientación meramente “allende-de-lo-trascendental”, y en
cambio, por su parte a las relativas – a ellas en exclusiva-
“aquende-de-lo-social.”
Como visto, portanto, o marco caracterizador das teorias absolutas, nesta
contraposição com as teorias relativas, é a ausência de atribuição de finalidades à
sanção.
2.3 Teorias absolutas
Para esta corrente, o aspecto central na resposta estatal representada pela pena
é o entendimento de que o crime é um mal e, portanto, a pena é uma reação ou
castigo a este dano praticado. Note-se que há um absoluto descompasso entre a
reação (pena) e o efeito social da pena, já que esta (a sanção) é estruturada dentro de
uma perspectiva de ideal de justiça ou de fidelidade ao direito. Pedro Krebs
identifica:60
Para essa doutrina, a pena não vislumbra como finalidade,
algo socialmente relevante ou útil, mas apenas a imposição de um
mal merecido que é retribuído a um mal cometido, compensando,
assim, a culpabilidade do agente em virtude do ilícito praticado. A
pena, assim, funcionaria não só como um efetivo castigo à pessoa
60 KREBS, Pedro. “Teorias...”, cit., p. 103.
56
do delinqüente, mas também como a possibilidade de o autor do
delito se redimir perante a sociedade, ou seja, saldar sua dívida para
com ela.
Fala-se em teoria absoluta porque a finalidade da pena é
desvinculada (absolutus significa desvinculado) de seu efeito
social, visando à realização da justiça ou o império do direito.
Como destacado, nessa acepção, as teorias absolutas consagram à pena a
função de composição do mal praticado, de forma que o autor do crime possa saldar a
sua dívida social, redimindo-se do fato praticado.
Outro aspecto a ser realçado é que, dentro dessa concepção, não há espaço
para a pena realizar outra função, como a prevenção, já que desvinculada de seu
efeito social.
Doutrinariamente, nessa corrente, podem ser agrupadas as teorias da expiação
e da retribuição, como expressão do pensamento retributivo sobre a fim da pena.
2.3.1 Teorias da expiação e da retribuição
A idéia central defendida pela teoria da expiação é que a pena representa a
possibilidade da reconciliação do agente consigo mesmo, num gesto de dignidade
57
moral. O que chama atenção é que não há qualquer preocupação na recuperação da
ordem das coisas ou na prevenção de novos delitos. O ponto central da justificativa da
sanção é o restabelecimento da ordem jurídica violada, exigindo-se, contudo, que a
sociedade reconheça no agente sua redenção ou um livre arrependimento.61
Lesch,62 a propósito, acentuando esse aspecto reconciliatório consigo mesmo,
que caracteriza a expiação, sustenta:
La pena como expiación – a diferencia de la pena como
retribución – no es uma restitución del orden correcto de las cosas,
sino la reconciliación del delincuente consigo mismo, com el
ordenamiento quebrantado, en definitiva, com la comunidad. Con
la expiación moral “el culpable se libera de sua culpa, alcanza de
nuevo la plena posesión de sua dignidade personal. Expiación em
este sentido solo puede tener éxtito de todas formas allí donde el
culpable preste su libre arrepentimineto, un arrepentimiento que
sea visto la sociedad como redención de sua culpa.
Por outro enfoque, ainda dentro da concepção absoluta para a função da pena,
a teoria da retribuição tem sua estrutura fundamentada na exigência da pena como
uma resposta física, um sofrimento que deve ser imposto ao ofensor como forma de
compensação pelo mal causado ao ofendido. O fundamento dessa concepção,
portanto, é jurídico:63
61 KREBS, Pedro. “Teorias...” cit., p. 103. 62 Em La función de la pena. Traducción de Javier Sánchez-Vera Gomes-Trelles. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2000, p. 18. 63 Em KREBS, Pedro. “Teorias...” cit., p. 104
58
A pena fica livre de toda consideração relativa a sua
finalidade (‘poena absoluta ab effectu’) e só representa a causação
desejada de um mal como compensação da infração jurídica
culpavelmente cometida. As bases ideológicas das teorias absolutas
se encontram no reconhecimento do Estado como guardião da
justiça e compêndio das noções morais, na fé e na capacidade da
pessoa para se autodeterminar, e na limitação da função estatal à
proteção da liberdade individual. Nas teorias absolutas da pena
coincidem, portanto, pensamentos idealistas, conservadores e
liberais.
O talião é, sem dúvida, a expressão que representa a síntese da concepção
retributiva. Eugênio Raúl Zaffaroni e Pierangeli,64 ao identificar essa hipótese,
esclarece:
Até o contratualismo, o que se obtivera era a limitação do
poder estatal pela via do dever de estabelecer, rigidamente, os
limites do proibido (Hobbes) e o reconhecimento de limites do
poder estatal pela via do objeto da sociedade, mas a natureza em si
da pena muda o seu sentido – e com isto todo o direito penal – a
partir da abordagem contratual. Se a própria sociedade é
estabelecida mediante um contrato, o homem que pretende alcançar
a riqueza por uma via não autorizada por aquele viola aquilo que o
contrato preceitua. Qual é a sanção para quem viola o contrato?
Uma reparação, uma indenização. Quando um cidadão não paga
64 Em Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 262/263.
59
uma indenização devida como resultado da violação de um
contrato, é forçado a fazê-lo (dele é expropriado algo de valor), mas
os homens da massa criminalizada por esse controle social nada
possuíam. O que deles se expropriava? A única coisa que podiam
oferecer no mercado: sua capacidade de trabalho, sua liberdade.
Daí surge a ideologia que faz da privação da liberdade uma pena,
que até então havia sido apenas uma medida preventiva (o que hoje
chamamos de ‘prisão preventiva’) durante o processo, pois as penas
eram corporais. Essa forma de pena – privativa de liberdade – era
um modelo ideal para ser quantificado, o que também coincidia
com as práticas do momento: a privação da liberdade pode ser
medida em tempo, concebido este como algo linear, que se projeta
em linha reta do passado até o futuro (esta visão do tempo já não é
hoje admissível) e que, portanto, pode ser medida da mesma forma
que as mercadorias e a moeda, de modo análogo ao das práticas
comerciais da época [...]. Qual podia ser a medida da pena? O
Talião, isto é, aquela necessária para reparar o mal causado com o
delito. Essa era a ideologia que se impunha e que conduzia à
limitação do poder estatal quanto ao montante da pena.
Uma observação fundamental há de ser destacada, no sentido de que o Talião
representou, num momento histórico, a adoção de regra de proporcionalidade em
relação ao sancionamento.
60
2.3.2 Fundamentos filosóficos para a retribuição
A sustentação filosófica para a retribuição, tal como concebida, foi produzida,
principalmente, por Hegel, que preconizou o aspecto jurídico.
Sob o enfoque da retribuição, Georg Hegel via na prática do delito o
fundamento para a pena, justificando-a a partir da racionalidade.
São de Georg Wilhelm Friedrich Hegel65 as afirmações:
Esta fenomenalidade do direito – em que ele mesmo e a
sua existência empírica essencial, a vontade particular, coincidem
imediatamente – torna-se evidente como tal quando, na injustiça,
adquire a forma de oposição entre o direito em si e a vontade
particular, tornando-se então um direito particular. Mas a verdade
desta aparência é o seu caráter negativo, e o direito, negando essa
negação, restabelecendo-se e, utilizando este processo de mediação,
regressando a si a partir da sua negação, acaba por determinar-se
real e válido.
65 Em Princípios da filosofia do direito. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 80. E mais adiante, em p. 87, acrescenta: “Como evento que é, a violação do direito enquanto direito possui, sem dúvida, uma existência positiva exterior, mas contém a negação. A manifestação desta negatividade é a negação desta violação que entra por sua vez na existência real; a realidade do direito reside na sua necessidade ao reconciliar-se ela consigo mesmo diante a supressão da violação do direito”.
61
Por fim, a concepção da pena como retribuição também está sedimentada na
distinção que é feita entre norma penal e lei penal. A partir de Binding, para quem a
pena é a retribuição do mal contra o mal,66 a distinção é estruturada no sentido de que
a norma penal é dirigida ao cidadão e contém regras ou preceitos; a lei, por sua vez, é
dirigida ao julgador e contém a sanção. Logo, a celebração da justiça é a função da
pena, na medida em que a norma penal sequer conteria preceito sancionatório. Nesse
sentido, esclarecem Zaffaroni e Pierangeli:67
Definindo as normas como ‘proibições ou mandatos de
ação’, Binding afirma que o delito choca contra estas proibições ou
mandatos, mas não contra a lei penal. Normas são, por exemplo, as
do Decálogo, mas elas não pertencem à lei penal, nem estão nela. O
artigo 121 do CP não diz: ‘Não matarás’, e sim ‘matar alguém’:
pena de 6 a 20 anos de reclusão. As normas são deduzidas dos tipos
legais, isto é, da lei penal: se o furto é sancionado dizemos que há
uma proibição de furtar, se a omissão de socorro é sancionada,
deduzimos que há um mandato de socorrer. Mas nem a proibição
nem o mandato (as normas) estão na lei. Daí que se possa dizer que
o que furta ou omite socorro não viola a lei penal, e sim a cumpre,
violando a norma, que está fora da lei penal, mas que conhecemos
através dela.
Nesse sentido, inegável que, sob o enfoque retribucionista, a pena cumpriria
função dúplice, visto que, além de representar um castigo (reação) em face da
66 Em “Teorias...” cit., p. 108. 67 Em Op. cit., p. 309.
62
conduta praticada, é fenômeno restaurador da ordem, presente, portanto, o ideal de
justiça que está materializado na sua aplicação.
Por fim, embora inadmissível conceber-se, atualmente, a retribuição (castigo)
pura e como justificativa sancionatória, é inegável que esta concepção trouxe consigo
a idéia da mediação, isto é, da proporcionalidade ou limitação da pena, balizando a
atividade punitiva estatal.
2.4 Teorias relativas
O fim utilitarista é o principal aspecto que caracteriza as teorias relativas. Se
as teorias absolutas são marcadas por vinculações a aspectos morais, religiosos ou a
ideais de justiça, a concepção relativa acerca dos fins da pena traz como proposta
central uma função para a pena: a evitação de novos delitos. Explica Krebs:68
Vislumbram a pena como um meio para prevenir a prática
de crimes futuros (relativo deriva do latim refere = referir-se a) ou
seja, vêem nela uma finalidade utilitarista, que é a prevenção
(evitação) do delito, e não como um fim em si mesma, como
apregoam as teorias absolutas. A pena, assim, passa a ser
necessária para evitar a prática de lesões a determinados interesses
sociais. Culpabilidade, para essas teorias, não importa em papel
algum, eis que a finalidade da pena em nada diz respeito com a
68Em “Teorias...” cit., p. 110.
63
culpa do agente, mas apenas na prevenção da ocorrência
de novos delitos.
Por seu turno, Jescheck, destaca que são razões humanitárias, sociais,
racionais e utilitárias que justificam as teorias relativas das penas.69
De qualquer forma, ao contrário das teorias absolutas, que partem da
sustentação de que a pena deva ser imposta ao agente como imperativo de justiça, as
concepções relativas conferem à sanção a missão de prevenir novos delitos,
subdividindo-se em prevenção geral e especial quanto ao seu alcance. Na prevenção
geral, a pena imposta a um agente é direcionada para toda a coletividade, que ainda
não incidiu no delito; na prevenção especial, a pena é direcionada ao agente em
particular, sempre no desiderato da evitação de novos fatos criminosos.
Na prevenção geral, é correta a crítica de Bustos Ramírez,70 para quem a pena,
no fundo, é um castigo sobre a cabeça alheia, na medida em que seu direcionamento
tem por destinatários os membros da comunidade que ainda não praticaram fatos
criminosos. Assim, a pena não exerce qualquer retribuição ou influência sobre o
69JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal – parte general. 4ª ed. Corrigida e ampliada. Tradução de José Luis Manzanares Mananiego. Granada: Comares, 1993, p. 62, esclarecendo que os fundamentos ideológicos das teorias relativas da pena são as humanitárias doutrinárias políticas da Ilustração, a crença na explicação científico-causal de todo o comportamento das pessoas, a fé na capacidade - também dos adultos – para serem educados mediante a apropriada atuação pedagógico-social, e o rechaço a qualquer intento de interpretação metafísica dos problemas da vida social. São, pois, razões humanitárias, sociais, racionais e utilitárias que as convergem nas teorias relativas da pena. 70Em Manual de Derecho Penal – Parte General. 4ª ed. Barcelona: PPU, 1994, p. 72.
64
condenado em especial, mas visa a exercer sobre a coletividade os efeitos que a pena
representa sobre o agente.
2.4.1 Prevenção geral negativa e positiva
A perspectiva de que a pena se inclui entre os instrumentos de defesa que o
Estado deve adotar é esclarecida por Lesch,71 para quem a pena se “incluye
completamente em el elenco de los instrumentos del Estado para la defensa ante
peligros y la realización de cuidados exinstenciales”.
A prevenção geral, enquanto concepção sobre os fins da pena, abrange as
teorias da prevenção geral negativa e positiva, cuja principal distinção reside, para
aquela, na idéia da intimidação (coação psicológica), enquanto que para esta a
prevenção se materializa através do reforço institucional na vigência da ordem
jurídica.
O ponto de partida para a teoria da prevenção geral negativa é, sem dúvida, a
teoria da coação psicológica, desenvolvida por Feuerbach, baseada na coerção ou
intimidação que a ameaça de pena exerce sobre a coletividade. Esclarece Pedro
Krebs:72
Tal entendimento decorre, de acordo com FEUERBACH,
da idéia da qual a alma do delinqüente em potencial encontra-se
71 Em Op. cit., p. 38. 72Em “Teorias...”. cit., p. 111.
65
sob um permanente conflito: de um lado, a tentação (ou prazer) de
praticar o delito, e, do outro, a ocorrência do mal inevitável (como
uma sensação de desagrado), como resposta estatal, que é a
imposição da pena. FEUERBACH, assim, vislumbrava a
cominação da pena como uma efetiva coação à psiquê do agente,
ameaçando-o com a sua aplicação, enquanto que a sua imposição
serviria só para demonstrar a todos a seriedade da ameaça.
E acentua:73
FEUERBACH, entendendo que a teoria kantiana da pena
não a justificava, tratou de distinguir a mesma em moral e jurídica,
onde a primeira – pena moral – surge da consciência do infrator
pelo fato concedido, enquanto que a segunda – pena jurídica -, que
não poderia penetrar na consciência do indivíduo, baseava-se na
necessidade de harmonia entre as condutas praticadas – fatos
externos, portanto – e o princípio do atendimento à justiça ou
compatibilidade da liberdade de cada um dos demais agentes
sociais. FEUERBACH aparta-se das idéias de KANT ao se
questionar se não seria cruel castigar só pelo fato de ter delinqüido,
concluindo que o Estado só está autorizado a punir desde que seja
para assegurar bens jurídicos, tutelando a si próprio frente ao
delinqüente.
Nessa linha, é notório o efeito de intimidação que a pena exerce sobre a
coletividade. É que, ao punir-se o condenado, evita-se a prática de novos delitos na
73 Idem, p. 111/112.
66
medida em que reforça a idéia de que, violada a norma, ao agente será imposta sanção
idêntica.
A grande questão que é levantada contra a prevenção geral negativa é o
completo afastamento da culpabilidade, enquanto fundamento para a resposta penal.
Assim, se a pena tem função intimidatória geral e seu destinatário é a coletividade,
não há razão para considerar-se a reprovação da culpabilidade como critério central
de apenamento.
De outra forma, a estrutura da prevenção geral positiva representa um
abandono da idéia de intimidação para agasalhar a justificativa da pena na proposta
de reforço da crença no ordenamento jurídico. A convicção coletiva na eficiência do
ordenamento jurídico é que sustenta a finalidade da pena, relativizando-se a função
do direito penal, enquanto sistema, que é a proteção de bens jurídicos.
A perspectiva da prevenção geral positiva é estruturada, portanto, a partir de
uma visão sistêmica da sociedade, em que os diversos papéis sociais devem ser
cumpridos. Jakobs, apoiado nas idéias sistêmicas de Luhmann, estrutura sua
concepção a partir da necessidade de eficácia do direito.
A propósito, Krebs,74 em elucidativa lição, identifica:
74Em “Teorias...” cit., p. 112/113.
67
Para JAKOBS, a única forma de o homem cultivar um
relacionamento é conhecendo as regras existentes. Assim o é, por
exemplo, na relação do homem com a natureza, onde a existência
de uma regularidade dos acontecimentos permite um conhecimento
prévio do que deve ser feito. O relacionamento entre as pessoas
também depende dessa regularidade comportamental, sob pena de
tornar inviável o contato social se as pessoas tiverem que se
deparar, a cada momento, com qualquer atividade imprevisível das
outras que a cercam.
Se, dentro da relação homem-natureza, surgir uma
decepção frente às expectativas, nasce, para o decepcionado, a
necessidade de alterar seus critérios frente ao como deve reagir,
tendo, pois, que promover uma revisão em seu modelo de
orientação. Nos contatos sociais, de igual forma, também podem
surgir decepções, como ocorrem nas relações homem-natureza. Nas
relações sociais, só se pode esperar que a outra pessoa acabe por
respeitar as regras da natureza (saber-se que toda pessoa, por
exemplo, é formada de “carne e osso” ou que pode morrer
afogada), embora não seja necessário que a mesma respeite as
normas jurídicas, uma vez que esse acatamento deriva de uma mera
liberalidade. Aquelas decepções (relações homem-natureza) são de
caráter cognoscitivo, isto é, se ocorreram foi porque houve um erro
de cálculo, devendo-se corrigir o vício – através da experiência
prática – para um futuro. Já uma decepção no tocante às relações
sociais afeta as expectativas que derivam da pretensão em relação à
outra pessoa de que esta respeitará as normas vigentes.
Isto porque a relação entre os indivíduos não deriva do
binômio satisfação/insatisfação, mas do fato de que os mesmos
68
seguem normas. Pessoa é a quem se concede o rótulo de cidadão
que respeita o direito. A pessoa, assim, não atua conforme seu
esquema individual de satisfação e insatisfação, mas de acordo a
um padrão de dever, para com a lei, e liberdade de ação.
Dado que as pessoas podem organizar o mundo, embora já
viviam em um mundo já organizado (em um mundo com
instituições), as expectativas normativas, imprescindíveis para
possibilitar os contatos sociais – independentemente do conteúdo
das diversas normas -, não permite sejam esses contatos
planificáveis, já que a outra parte não só deve ter a boa vontade de
querer respeitar a ordem como também deve saber quando está
diante de um comportamento normativamente regulado.
Em suma, a finalidade das penas é promover a confiança
nas pessoas de que as normas jurídicas serão atendidas, bem como
conhecer antecipadamente qual o padrão de conduta, ou seja, o que
esperar de cada um, tudo com o objetivo de possibilitar a vida em
sociedade.
Nesse ponto, não é possível deixar de salientar a importância do
funcionalismo penal, na visão de Jakobs,75 para o resgate da prevenção geral positiva
enquanto função da pena, especialmente pela função exercida pelo ordenamento
jurídico. O ensinamento é que:
75 Nesse sentido, em Sobre la teoría de la pena. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2001, p. 32.
69
El resultado alcanzado -la pena como confirmación de la
configuración de la sociedad - tiene puntos de estrecho contacto
con uma teoría reciente de acuerdo com la cual la pena tiene la
misión preventiva de mantener la norma como esquema de
orientación, en el sentido de que quines confián en una norma
deben ser confirmados em su confianza.
Como visto, a prevenção geral positiva, sob esse viés, ao abandonar a
concepção intimidatória, passa a buscar na convicção da força do ordenamento
jurídico (reforço da vigência da norma) a base para sua justificação.
2.4.2 Prevenção especial positiva e negativa
Noutra direção, estão as concepções decorrentes das orientações preventivas
em especial, ou seja, da prevenção especial positiva e negativa.
Aqui o enfoque é completamente distinto. Se na prevenção geral há o
abandono completo do agente, para estruturar-se a função da pena a partir da
intimidação social ou incentivo na crença e efetividade do sistema, na prevenção
especial o foco é no agente, como meio de evitar-se a reincidência.
70
Segundo Claus Roxin,76 foi Franz Von Liszt o porta-voz dessa concepção,
sendo que a prevenção especial negativa deveria atuar de três formas: assegurando a
comunidade frente aos criminosos, mediante o encarceramento destes; intimidando os
autores de delitos, mediante a pena, para que deixem de praticá-los e preservando a
ocorrência da reincidência mediante sua correção.
Pedro Krebs, em linha similar, acerca do caráter admonitório e
ressocializador das penas:77
A prevenção especial positiva tende a evitar que o
condenado venha novamente a delinqüir através da imposição de
penas cuja função será admonitória ou ressocializadora.
O caráter admonitório das penas é dirigido àqueles
delinqüentes primários ou de escassa periculosidade, servindo a
pena para intimidar o agente apenas.
No direito brasileiro, tal função é referida, por exemplo,
no artigo 60, § 2º, do Código Penal, quando refere que a pena
privativa de liberdade, não superior a seis meses, poderá ser
substituída por uma pena de multa, no caso de o réu não for
reincidente em crime doloso, bem como a culpabilidade, os
antecedentes, a conduta social, a personalidade, os motivos e as
circunstâncias do crime recomendarem a substituição. Assim
sendo, essa pena de multa apresenta um caráter admonitório
76Em Derecho Penal. Parte General. Tradução de Diego-Manuel Luzón Pena et alli. Madrid: Civitas, 2000, p. 85/86. 77Em “Teorias...” cit., p. 115.
71
Já o caráter ressocializador da pena busca seja o
condenado submetido a tratamento a fim de que o mesmo possua a
intenção e a capacidade de viver respeitando as leis.
Nota desse aspecto pode ser observada na Lei 7210/84, quando declina que,
entre os fins da execução criminal, deve ser observada a ressocialização do agente.
Por último, quanto à prevenção especial negativa, a função da pena aqui é
expressa como instrumento para que o agente deixe de expressar sua maior ou menor
periculosidade. A neutralização do agente ou sua inocuização são instrumentos desta
função, na qual o agente deve ser afastado do convívio social para prevenir a
ocorrência de novos delitos.
Ao seu turno, inocuização comporta divisão entre os agentes que podem ser
ressocializados e aqueles que necessitam da segregação, vez que representariam
delinqüentes por convicção.
A propósito, realçando o papel de Von Liszt na defesa dessa posição, destaca
Krebs:78
O maior expoente dessa acepção de pena – teorias de
prevenção especial - foi FRANZ VON LISZT, que vislumbrava a
possibilidade de a pena atuar de três formas: a) trazendo segurança
78 Em “Teorias...” cit., p. 116.
72
para a comunidade através do enclausuramento do condenado; b)
intimidando o autor mediante a pena para que não cometa crimes
futuros; c) preservando-lhe da reincidência mediante sua correção.
Assim, LISZT idealizou um tratamento para os
delinqüentes de acordo com o tipo de autor: a) inocuização do
delinqüente habitual de quem não se podia conseguir que desistisse
da prática de delitos futuros ou que melhorasse; b) a intimidação do
mero delinqüente ocasional; c) a correção do autor corrigível.
No sistema penal brasileiro, o impedimento da liberdade provisória e a
exigência do cumprimento da pena no regime integralmente fechado79, tal como
disciplina a Lei 8072/90, são hipóteses de incidência dos primados da prevenção
especial negativa.
2.5 Teorias unificadoras ou mistas
Quando do estudo das teorias da pena, ao lado da tradicional divisão entre
teorias absolutas e relativas, surge a perspectiva de aperfeiçoamento da concepção
preventiva da pena, aglutinando posições divergentes. A principal contribuição, nesse
campo, é creditada a Claus Roxin, quando manifesta uma concepção dialética da
pena. Sob o enfoque de uma Teoría unificadora preventiva, o professor germânico
sustenta o fim exclusivamente preventivo da pena, a necessidade de renúncia total a
79 De atentar-se que no julgamento do HC 82.959, ocorrido em 23 de fevereiro de 2006, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a vedação de progressão prevista na Lei 8072/90.
73
concepção retributiva e a redefinição do papel da culpabilidade como meio de
limitação da intervenção penal estatal.80
De qualquer forma, as concepções mistas, concretamente, projetam novas
perspectivas justificadoras da prevenção, tendo em comum o desprezo ao papel
retributivo da pena.
2.6 Pena e constituição
Da exposição realizada, se reafirma o questionamento, posto no início deste
estudo, acerca do distanciamento entre as teorias dos fins das penas e o sistema
constitucional. A análise do texto da Constituição Federal de 1988 revela que o
legislador maior elegeu como fundamentos da República, alçada, portanto, a
dimensão de valor constitucional, a dignidade da pessoa humana e, referentemente às
sanções penais, exigiu a individualização, prevendo que o apenamento não passe da
pessoa do condenado, prevendo certas modalidades, vedando espécies de
sancionamento81 e dispondo sobre regras de seu cumprimento.
Assim, numa primeira análise, não há qualquer referência constitucional sobre
a função que a pena deva exercer, ou seja, se a imposição, fundamentada, de pena
visa à retribuição, à prevenção ou à ressocialização.
80ROXIN, Claus. Op. cit., p. 96/101. 81 O inciso XLVIII do artigo 5° proíbe expressamente as penas de morte (exceção feita para a hipótese de guerra declarada), as penas de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis.
74
Na falta desse indicativo, um primeiro aspecto há de ser destacado. Sendo um
dos direitos fundamentais, o respeito ao devido processo legal deve nortear o
procedimento da imposição, devendo ser valorada, enfaticamente, a necessidade de
fundamentação da decisão que aplica a sanção penal. Nesse sentido, correta a
orientação de Aury Lima Lopes Júnior,82 que sustenta:
Para o controle da eficácia do contraditório e do direito de
defesa, bem como de que existe prova suficiente para sepultar a
presunção de inocência, é fundamental que as decisões judiciais
(sentenças e decisões interlocutórias) estejam suficientemente
motivadas. Só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade
da decisão predominou sobre o poder, premissa fundante de um
processo penal democrático.
Numa outra vertente, congruente com a necessidade de compatibilizar a
aplicação da pena aos direitos fundamentais, ensina Nereu José Giacomolli:83
A relevância da exigência da motivação das decisões
criminais se justifica na previsão expressa da Constituição Federal,
em seu artigo 93, IX, combinado com a adoção do Estado
82 Em Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2004, p. 253. 83Em “Aproximação à Garantia da Motivação das Decisões Criminais: aspectos jurisprudências”. Revista Ibero-Americana de Ciências Criminais. Porto Alegre, ano 6, número 11, pág. 70, 2005.
75
Democrático de Direito, pena Carta Magna, tendo na proteção da
dignidade da pessoa humana um dos pilares básicos.
Em decorrência, à ausência de disposição constitucional específica sobre a
finalidade da pena, a eficácia constitucional vinculante, na espécie, incide sobre o
procedimento de sua imposição, que deve fundar-se num processo penal
constitucionalmente válido, com a imposição do sancionamento adequadamente
motivado, sempre tendo em conta que a dignidade da pessoa humana é um dos
fundamento da República.
Essa questão, todavia, acerca da motivação, será analisada no capítulo
seguinte, quando se abordará a compatibilidade do procedimento de aplicação das
sanções em relação aos valores fundamentais. A análise agora cabível é acerca da
compatibilidade da pena, em sua função preventiva, com os princípios
constitucionais.
Qualquer abordagem sobre os fins da pena deve considerar, inicialmente, a
crise que o direito penal, enquanto sistema, tem enfrentado. Tal afirmativa parece
adequada na medida em que a discussão sobre os fins da pena se confunde com os
fins do direito penal.
É inegável que a dogmática penal experimentou avanços que a teoria dos fins
da pena ainda não implementou. A velha distinção entre retribuição e prevenção
76
ainda baliza as discussões nessa seara, enquanto que a dogmática penal recebeu
aporte significativo da teoria constitucional, cujos reflexos não se fizeram sentir na
teoria da pena, que tem na estrutura constitucional seus limites, faltando-lhe, todavia,
um sentido teórico próprio. Outro ponto a ser destacado, nesse sentido, é a ausência
de orientação constitucional sobre qual o papel que a pena deva cumprir.
Não obstante, entender e discutir os fins da pena é tarefa tão importante
quanto compreender o próprio direito penal e o seu papel no controle social. Negar-se
ao direito penal essa função é esquecer dos conflitos que sociedade moderna enfrenta
e a necessidade de sua resolução.
Portanto, a concepção preventiva, na sua estrutura, ainda pode melhor
representar a finalidade que a pena exerce. As vertentes gerais e especiais talvez não
expressem, em suas subdivisões, a síntese necessária do que a pena deve representar,
mas indicam um caminho que não pode ser abandonado quando se concebe o direito,
e especialmente o direito penal, com sua carga sancionatória, como ferramenta de
controle da vida social. Oportuna, portanto, a lição de Francisco Muñoz Conde:84
Por eso, me parece preferible una teoria preventiva
intimidatória que muestra la auténtica face del derecho penal como
sistema de disciplinamiento de las personas y de protección de
determinados intereses. [...] En todo caso, la búsqueda de un sano
84MUÑHOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal y Control Social. Bogotá: Editora Editorial Temis S.A., 1999, p. 121.
77
efecto preventivo intimidatório, proporcional y autocontrolado, no
hay que hacerla solo através del derecho penal, entendido en el
sentido represivo institucional. Es necesaria una mayor ‘fantasía
institucional’ que procure la máxima eficacia preventiva con el
mínimo de sacrificio de la liberdad individual.
Por fim, quanto ao enfoque dos direitos fundamentais sobre a pena, na
ausência de disposição específica, já que constituição federal apenas baliza as
modalidades e formas de execução das sanções, essencial destacar a necessidade do
respeito à dignidade da pessoa humana, que é fundamento do próprio Estado
Constitucional e Democrático de Direito, bem como a exigência de válido processo
penal, com a imprescindível motivação da imposição.
Analisando os princípios fundamentais para a aplicação das penas e medidas
de segurança, Eduardo Reale Ferrari85 destaca que as sanções criminais, incluídas as
medidas de segurança, constituem formas de invasão do poder estatal na liberdade do
homem, existindo, portanto, o dever irrenunciável de análise da compatibilidade da
resposta estatal ante os valores fundamentais. Especificamente em relação ao respeito
à dignidade da pessoa humana, leciona:86
Dignidade da pessoa humana constitui um valor supremo
que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, englobando
85Em Medidas de Segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 92. 86Idem, p. 122.
78
desde os direitos pessoais, os direitos sociais, os direitos dos
trabalhadores até à organização econômica. Consiste num valor
autônomo e específico, inerente aos homens em virtude de sua
simples pessoalidade, obrigando a uma intensa densificação
valorativa que tenha em conta seu amplo sentido normativo-
constitucional.
De acordo com o princípio da dignidade da pessoa
humana, nenhum cidadão pode ser sancionado desnecessária ou
ilimitadamente, devendo haver restrições temporais máximas à sua
punição, respeitando-se o homem em seus atributos no instante da
enunciação e aplicação dos preceitos primários, bem como das
sanções penais.
O respeito à dignidade da pessoa humana, assim, é o valor constitucional que
deve balizar a finalidade da pena, independentemente da função a ela reservada pelo
legislador ordinário. Dessa forma, as disposições do artigo 59 do Código Penal e o
artigo 1° da Lei de Execuções Penais87 devem guardar compatibilidade com referido
critério norteador. É por isso que Maurício Antonio Ribeiro Lopes sustenta que a
obediência ao valor determina que, para o cumprimento da função preventiva da
pena, deve haver proximidade entre o cometimento do delito e a aplicação da
sanção.88 O ensinamento é que
87 No Código Penal, a disposição identifica que a pena deva ser aplicada em quantidade necessária e suficiente para a prevenção e reprovação do crime, e a Lei de Execuções Penais identifica que a execução penal tem por objetivo, além de efetivar as disposições da decisão criminal, proporcionar condições para a integração social do condenado e do internado. 88Em Princípios políticos do direito penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 254.
79
[...] a dignidade da pessoa humana exige que a punição esteja
identificada, temporalmente, o mais próximo possível com o
cometimento do delito para se evitar que a pena seja imposta à
pessoa que já expiou pelo tempo, por sua mudança de
temperamento, caráter ou pelo sentimento de culpa de que não
tenha se libertado, sofrimento bastante para tornar improdutiva
pena criminal que venha a ser imposta.
Por outro lado, é criticável a demora verificada na implementação de outros
valores constitucionais em relação ao apenamento. Maurício Antonio Ribeiro
Lopes,89 antes referido, aponta a lentidão do processo legislativo como causa, aliada à
velocidade de transformação do Estado, indicando que
[...] muito mais do que ruptura, há adaptação da ordem
constitucional aos novos valores sociais que decorrem mais de
evoluções do que de revoluções, ou daquelas feitas com mais
derramento de tinta do que de sangue.
De qualquer sorte, na lição de Sérgio Salomão Schecaira,90 é inegável o dever
de observância dos valores constitucionais quando do apenamento:
Portanto, o estudo do Direito Penal positivo, mormente de seu
sistema de penas, deve observar a influência dos valores e
89Em op. cit., p. 206. 90 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena. Finalidades, Direito Positivo, Jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 69.
80
princípios constitucionais, os quais revelarão a forma e os limites
da persecução penal no atual Estado Democrático de Direito. Um
Direito Penal em contradição com a Carta Magna ou não atualizado
após a superveniência desta, seja no processo legislativo, seja na
interpretação e aplicação da lei, representa exercício de poder
punitivo sem qualquer legitimação democrática.
Em síntese, ainda que a construção de um arcabouço teórico para a função da
pena seja produto da dogmática tradicional, há necessidade de compatibilização da
finalidade (preventiva) com o conjunto dos valores e princípios consagrados
constitucionalmente.
Por fim, não basta a compatibilidade da sanção, enquanto modalidade de
controle social, com o modelo constitucional, havendo, também, a necessidade da
adequação do procedimento de sua imposição, o que será objeto de análise no
capítulo seguinte.
81
3 VALORES CONSTITUCIONAIS E APLICAÇÃO DA PENA
3.1 O direito fundamental à pena motivada
Como já salientado, a efetividade do direito penal, como instrumento punitivo
de um Estado Democrático de Direito, pode ser medida pelo seu grau de submissão
ao ordenamento constitucional.
A instrumentalização do sistema punitivo, por sua vez, exige, igualmente, um
procedimento constitucionalmente adequado, onde as regras respeitem os
fundamentos da República, entre eles, necessariamente, o da dignidade da pessoa
humana e o da presunção de inocência.
Exemplo de vinculação do procedimento aos valores constitucionais é o
necessário respeito do direito ao silêncio do acusado, que se apresenta, no magistério
de Antônio Magalhães Gomes Filho91, como uma decorrência natural do modelo
processual paritário.
Ante tais premissas, o que se pretende agora, depois da análise da influência
do sistema constitucional sobre o direito penal e acerca da necessária compatibilidade
entre a pena e os valores constitucionais, é compreender a importância da motivação
91 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 111.
82
e fundamentação das decisões judiciais como gênero e, especificamente, a
necessidade de motivação da sentença criminal, no tocante à aplicação da pena.
A individualização da pena, ao lado de ser um dos requisitos da sentença
condenatória e, portanto, uma obrigação do julgador, é um direito do condenado, com
base constitucional, devendo tal ato constituir-se num meio de efetivação de valores
fundamentais.
3.2 Da necessidade constitucional da motivação das decisões judiciais criminais
O direito penal guarda uma característica que o diferencia dos demais ramos
do direito, inclusive do dentro do ramo do direito público, por interferir diretamente
nas liberdades individuais. Por seu turno, o direito processual penal, que
instrumentaliza sua efetividade, deve ter sua aplicação regrada sob um enfoque de
respeito aos direitos fundamentais, notadamente a determinação de observância do
devido processo legal.
Assim, compreender o papel das decisões judiciais e, especificamente, das
decisões criminais, representa um passo importante para entender a forma como é
exercido o direito de punir, que tem como uma de suas características a
imperatividade.
83
Nessa linha, discorrendo sobre a necessidade de controle e racionalidade das
decisões judiciais, esclarece Aury Lima Lopes Júnior:92
No modelo garantista não se admite nenhuma imposição
de pena; sem que se produza a comissão de um delito; sem que ele
esteja previamente tipificado por lei; sem que exista necessidade de
sua proibição e punição; sem que os efeitos da conduta sejam
lesivos para terceiros; sem o caráter exterior ou material da ação
criminosa; sem a imputabilidade e culpabilidade do autor; e sem
que tudo isso seja verificado através de uma prova empírica, levada
pela acusação a um juiz imparcial em um processo público,
contraditório, com amplitude de defesa e mediante um
procedimento legalmente preestabelecido.
A partir de tais premissas, acentua-se a importância na definição do dever de
motivação, que deve ser o alicerce de todos os pronunciamentos decisórios criminais,
já que, dentre tantas outras garantias, é a que serve para dar efetividade aos demais
direitos fundamentais, também porque limitadora dos poderes jurisdicionais.
Nesse ponto, um primeiro questionamento deve ser enfrentado, para
esclarecer a possível distinção entre a fundamentação e a motivação das decisões
judiciais. Nereu José Giacomolli,93 a propósito, esclarece:
92Em Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004, p. 253. 93Em “Aproximação...”, cit., p. 71. Nesse sentido, ver também PICÓI JUNOY, Joan. Las garantias contitucionales del processo. Barcelona: Bosch, 1977, p. 61, quando afirma i a obrigação de fundamentar as sentenças além de mera emissão de uma declaração de vontade do julgador, num
84
Considerando que o nosso ordenamento jurídico utiliza,
indistintamente, os termos fundamentação e motivação, se faz
necessário estabelecer sua diferenciação, possibilitando uma
melhor compreensão do objeto da presente investigação.
Por motivo se entende a causa ou a condição de uma
escolha, a qual direciona a atividade para um fim específico,
orientando a conduta humana, sem, no entanto, fornecer uma
explicação ou uma justificação.
O fundamento é a explicação ou a justificação racional da
coisa da qual é causa; a razão de ser. O fundamento permite
compreender porque determinada decisão foi ditada num sentido e
não em outro; porque é assim e não de outra forma. Em suma,
possibilita o entendimento ou a justificação racional da coisa, da
qual é causa. O fundamento ou razão suficiente explica por que a
coisa pode ser ou comportar-se de determinada maneira. Wolff
distinguia o princípio essendi (razão da possibilidade da coisa), o
fiendi ou da causalidade (do acontecer - razão da realidade) e o
cognoscendi ou de demonstração (proposição que leva ao
conhecimento da verdade de outra proposição).
Assim, fica clara a existência de uma primeira fundamental distinção entre
fundamentar e motivar: a fundamentação está vinculada à possibilidade de
sentido ou em outro, para impor que toda decisão esteja procedida de uma argumentação que a fundamente.
85
compreender o sentido da decisão (a favor ou contra), ou seja, a preferência, a escolha
realizada; a motivação, por sua vez, é a causa da escolha.
Discorrendo sobre a importância da motivação das decisões, ensina Aury
Lopes Lima Júnior:94
Nesse contexto, a motivação serve para o controle da
racionalidade da decisão judicial. Não se trata de gastar folhas e
folhas para demonstrar erudição jurídica (e jurisprudencial) ou
discutir obviedades. O mais importante é explicar o porquê da
decisão, o que o levou a tal conclusão sobre a autoria e
materialidade. A motivação sobre a matéria fática demonstra o
saber que legitima o poder, pois a pena somente pode ser imposta a
quem – racionalmente – pode ser considerado autor do fato
criminoso imputado. [...].
Quando se fala em racionalidade e razão, é
importantíssimo destacar que concepção estamos dando à “deusa
razão”. Não se trata da razão no sentido cartesiano, que separa a
mente do cérebro e do corpo, substanciando o “penso, logo existo”,
pilar de toda uma noção de superioridade da racionalidade e do
sentimento consciente sobre a emoção. Isso sugere que pensar e ter
consciência de pensar são os verdadeiros substratos de existir, pois
Descartes via o ato de pensar como uma atividade separada do
corpo, desvinculando a “coisa pensante” do ‘corpo não pensante’.
94Em o. cit., p. 254.
86
Interessante observação pode ser feita, tanto no texto constitucional, quanto no
Código de Processo Penal, sobre essa questão: o texto constitucional, no artigo 93,
IX, ao se referir às decisões do Poder Judiciário, determina que sejam fundamentadas,
sob pena de nulidade, enquanto que o artigo 381, III, do CPP, exige que o
magistrado, na sentença, indique os motivos de fato e de direito em que se fundar
(fundamentar) a decisão.
É por isso que, com razão, Nereu Giacomolli95 continua a ensinar, mostrando
a distinção entre motivar e fundamentar:
Portanto, motivar não é sinônimo de fundamentar. A
fundamentação pode ser só baseada em motivos de direito, por
exemplo, ou só em motivos de, fato, ou nos dois. É claro que a
fundamentação da decisão terá como base fática e/ou de direito.
Toda decisão judicial deverá ser motivada e fundamentada. Motivar
é dizer quais as bases fáticas e/ou de direito que permitem a funda-
mentação, ou seja, a explicação racional da decisão. Somente a
motivação, sem uma fundamentação, uma explicação racional que
possibilite o entendimento que permita a sua compreensão, não
satisfaz o artigo 93, IX, da Constituição Federal.
As mesmas circunstâncias fáticas - motivos - podem
embasar duas decisões diferentes, dependendo da compreensão e da
justificação racional do juiz. Da mesma forma, a mesma matéria de
direito - motivo - poderá levar a duas decisões diferentes. Por isso,
a motivação orienta o raciocínio do magistrado, mas a
fundamentação depende da exteriorização racional, da explicação
racional. A racionalização do juiz Pedro poderá ser diferente da
95Em “Aproximação...”, cit., p. 62.
87
explicação do juiz João, embora utilizem os mesmos substratos de
fato e de direito.
É a fundamentação que permite à acusação e à defesa
saber o porquê da conclusão num sentido ou em outro; permite
desvendar o aspecto positivo (o explicitado) e o negativo (o porquê
da conclusão diferente). A acusação e a defesa impugnam a decisão
porque a dualidade e o oposto são possíveis. A verdade
racionalizada no processo é a verdade processualizada, a que o
magistrado racionaliza com o que os autos contêm (verdade
contextualizada nos autos), mais a sua compreensão. Isso significa
que pode ser emitida uma solução oposta à que foi exteriorizada
nos autos do processo, mas também justificável, fundamentada,
inclusive sobre o mesmo substrato. As duas soluções não
necessariamente serão excludentes, em termos de fundamentação.
São possíveis e válidas, constitucionalmente, sempre que houver
motivação e fundamentação.
Portanto, fundamentar é mais que motivar, e não há
fundamentação sem motivação.
Caracterizada a importância do dever de motivar e fundamentar, pode ser
compreendido, agora, o seu alcance.
88
3.3 A motivação dos atos decisórios
Quando se destaca a importância da necessidade da motivação e da
fundamentação e motivação das decisões judiciais, uma primeira referência é feita: tal
garantia alcança, em termos procedimentais, os chamados atos decisórios, ainda que a
decisão seja interlocutória, como a decisão que instaura a ação penal, pelo
recebimento da denúncia ou queixa.
Nesse sentido, queremos enfatizar que certas decisões judiciais, embora não
sejam definitivas (sentenças de mérito), acabam alterando a situação dos agentes,
transformando-os de suspeitos, indiciados, investigados ou referidos em demandados
ou processados.
A sustentação que se faz, nesse contexto, é que o sistema constitucional exige
a motivação até para os atos administrativos (artigo 93, X) expedidos pelo Poder
Judiciário; daí, com muito mais razão, não obstante o silêncio do Código de Processo
Penal, imperiosa a necessidade de demonstração da justa causa para a instauração da
lide penal.
Como refere Giacomolli,96 não há qualquer dúvida de que o não-recebimento
ou rejeição da denúncia ou queixa devem ser fundamentados, até em razão da
possibilidade de recursos específicos contra tal ato; todavia, a divergência doutrinária
96Em “Aproximação...”, cit., p. 84.
89
existente acerca da necessidade/desnecessidade de fundamentação do recebimento da
inicial acusatória deve ser dissipada pela exigência constitucional da fundamentação
das decisões judiciais, entendendo-se que o provimento jurisdicional de recebimento
da denúncia ou queixa é verdadeira decisão, devendo, por isso, ser proferida de
conformidade com o inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, que exige
fundamentação no proceder jurisdicional.
Nesse sentido, mais uma vez, acertada a lição97 que assenta:
Por isso, pensamos que a decisão que recebe a denúncia ou
a queixa-crime, sem a devida motivação e fundamentação, não
encontra legitimação constitucional. A fundamentação, para
encontrar validade constitucional, não basta repetir o artigo da lei,
mas adequar os fatos e circunstâncias ao requisito legal, de forma
racional, de modo explicativo e compreensível. Embora não se
exija uma análise profunda da culpabilidade do agente, é de exigir-
se a motivação da culpabilidade provisória (viabilidade acusatória,
determinada pela presença dos requisitos legais). Nesse sentido,
embora tímidas, há decisões dos tribunais. A culpabilidade
definitiva carece de fundamentação no juízo condenatório.
Dessa forma, de acordo com a orientação constitucional, todos os atos
procedimentais que importem em mudança de situação do acusado, e não somente a
97 GIACOMOLLI, Nereu José. “Aproximação...”, cit., p. 87.
90
sentença condenatória criminal, devem receber a pertinente motivação e
fundamentação.
3.4 A exigência de fundamentação e motivação da sentença
A sentença criminal é o provimento jurisdicional definitivo que encerra o
processo pelo qual o Estado deslinda a causa que lhe é posta. Se a Constituição
Federal assegura que nenhuma lesão ou ameaça de lesão pode ser excluída da
apreciação do Poder Judiciário, é através da sentença criminal que, na seara penal,
que o jus puniendi é exercitado com intensidade, já que a pena somente pode ser
aplicada em decorrência do processo penal.
Quando condenatória, a sentença criminal há de conter, além do fundamento e
dispositivo, a fixação da pena, a forma de seu cumprimento e o respectivo regime
prisional inicial.
A fundamentação é uma das partes mais importantes da sentença
condenatória. Explica Nereu José Giacomolli:98
98 Em “Aproximação...”, cit., p. 89.
91
Na segunda parte da sentença, denominada de
fundamentação, é que o julgador emite seu juízo de mérito sobre a
procedência (total ou parcial) ou improcedência da pretensão
acusatória. É o momento em que é construído o juízo de absolvição
ou de condenação, com base na motivação fática, a qual recebe a
qualificação jurídica (motivação jurídica) dos fatos. Todas as teses
trazidas aos autos devem ser analisadas, sob pena de nulidade de
um juízo condenatório mesmo que de forma sucinta.
Como visto, existente distinção entre fundamentação e aplicação da pena, a
localização do dispositivo também é importante para, em caso de provimento de
recurso defensivo que vise à modificação da pena, determinar-se a subsistência ou
não da sentença.
Assim, esclarece Giacomolli:99
Há duas formas de estruturação formal de uma sentença
criminal: fixação da pena antes ou após o dispositivo. Fixando a
pena antes do dispositivo, considerando que este é parte essencial
da sentença criminal, nos termos do Código de Processo Penal, a
falta de motivação válida e suficiente da fixação da pena acarreta a
nulidade integral da sentença, pois a fixação da pena está antes do
dispositivo, integra o comando sentencial. Ao contrário, quando a
individualização da pena for efetuada após o dispositivo, a nulidade
seria só da aplicação da pena, na medida em que permaneceria
99 Em “Aproximação...”, cit., p. 89/90.
92
hígida a racionalidade motivada em fatos e no direito, no que tange
ao juízo condenatório, bem como o seu comando legal.
Idêntica situação pode ser traçada em se tratando de decisão de segundo
grau,100 no exercício da atividade jurisdicional recursal:
Vêm entendendo os Tribunais que a nulidade é somente da
aplicação da pena quando esta parte da sentença é a defeituosa, a
que não está bem fundamentada, permanecendo hígidas as demais
partes do decisum, como antes afirmado. Da mesma forma, quando
a aplicação da pena ocorrer no segundo grau de jurisdição. Na
hipótese da medição da pena ter sido elaborada antes do dispositivo
do ato sentencial, a nulidade macula todo o ato e não só a aplicação
da pena, devendo ser prolatada outra sentença (relatório,
fundamentação, dispositivo e aplicação da pena com a sua forma de
cumprimento). Observa-se que na hipótese da aplicação da pena ser
realizada após o dispositivo da sentença, com nulidade somente da
parte que efetuou o cálculo da pena, o juízo ad quem está vedando
que juízo a quo absolva o réu, pois permanece hígida, conforme
entendimento antes referido, a estrutura da sentença que o
condenou. Penso que há de ser analisada a situação concretizada
nos autos, de tal sorte a permitir a reformatio in mellius e vedar a
reformatio in pejus.
100 GIACOMOLLI, Nereu José. “Aproximação...”, cit., p. 94.
93
Como referido, se o defeito de motivação é anterior ao dispositivo da sentença
(ou do acórdão), a nulidade atinge a totalidade do ato sentencial, devendo outra
decisão ser proferida.
3.5 O princípio-garantia da individualização da pena
Como se sabe, nosso sistema probatório é o do convencimento motivado, isto
é, aquele em que o julgador, no momento de decidir, analisa e valora o conjunto
probatório constante nos autos, de forma racional, tendo o dever de motivar o seu
convencimento. No tocante à aplicação da pena, o dever de fundamentar e motivar o
convencimento decorre tanto da obrigação constitucional de fundamentar as decisões,
quanto das garantias irrenunciáveis do condenado, que tem o direito assegurado à
individualização da pena.
A individualização da pena, portanto, deve ser fundamentada, pois, embora
livre o convencimento do julgador, este deve explicitar as razões que o levaram a
determinada dosimetria da sanção. Este dever de motivar a aplicação da pena deve ser
feito sem subjetivismo, de acordo com dados do processo, em relação aos quais tenha
sido possível à defesa realizar a pertinente refutação.
Nesse sentido, esclarece Giacomolli:101
101Em “Aproximação...”, cit., p. 90.
94
Embora várias circunstâncias da aplicação da pena
dependam de uma avaliação do magistrado, influindo,
sobremaneira, a motivação ideológica (o que pensa sobre a pena
privativa de liberdade, o que pensa sobre a situação carcerária, o
que pensa sobre o desrespeito aos direitos fundamentais do ser
humano nos presídios, o que pensa sobre a função da pena e do
Direito Penal, por exemplo), a avaliação e a demonstração da pena
final há de refletir os dados objetivos constantes nos autos.
Evidentemente que componentes outros (antropológicos,
sociológicos, filosóficos, políticos, psicológicos, por exemplo) vão
influir no momento em que o magistrado, por exemplo, avalia que
o acusado registra antecedentes: afasta a pena do mínimo legal em
seis meses ou um ano; ao reconhecer a menoridade: diminui a
pena-base em seis meses ou um ano.
Assim, embora seja possível a análise de circunstâncias que não tenham
vinculação direta com o fato, mas envolvam juízo sobre o agente, imprescindível que
o juízo de reprovabilidade reflita prova dos autos, garantida a possibilidade defensiva
da refutação.
3.6 A valoração das circunstâncias judiciais e a garantia constitucional da
individualização do apenamento
95
O Código Penal, no artigo 68, determina que a aplicação da pena deve ser
feita observando-se fases ou etapas, realizando-se o procedimento da individualização
a partir de determinadas circunstâncias, judiciais ou legais.
Comentando o método trifásico, mais uma vez ensina Nereu José
Giacomolli:102
O Código Penal estabelece a fixação da pena privativa de
liberdade em três fases distintas, as quais devem ser observadas,
sob pena de nulidade, salvo hipótese de extirpação de aumento ou
diminuição que pode ser feita pelo órgão ad quem, sem prejuízo ao
acusado. É uma garantia do acusado, também sob o prisma da
motivação das decisões, na medida em que os sujeitos processuais
são informados das razões da fixação do quantum penal. Na dicção
do STF, é um direito público subjetivo do acusado. Na fixação da
pena-base, parte-se do mínimo cominado no tipo penal, afastando-
se desse quantum na medida em que forem surgindo as
circunstâncias desfavoráveis previstas no artigo 59 do Código
Penal, motivadas em fatos e circunstâncias concretas mediante
avaliação adequada à necessidade de incidência proporcional do ius
puniendi. O afastamento do mínimo há de vir devidamente
motivado e, não havendo motivação suficiente e adequada ao
substrato fático contido nos autos, o órgão ad quem deverá
modificar a individualização, em favor do acusado, com o
102 Em “Aproximação...”, cit., p. 90/91.
96
apenamento mínimo possível, adequado à respectiva fase de
aplicação da pena ou à própria circunstância.
Penso que todas as circunstâncias do artigo 59 do Código
Penal devem estar devidamente fundamentadas, contando-se em
favor do acusado aquelas que carecem de fundamentação legal,
embora haja entendimento contrário do STF, pela desnecessidade
da análise individualizada de cada circunstância judicial, mas
sendo observadas todas as fases.
Nesta seara da exigência da individualização da pena, não se pode olvidar que
o condenado tem a garantia de que as circunstâncias devam ser analisadas, e a
exacerbação da sanção além do mínimo devidamente fundamentada.
Outro aspecto a ser enfrentado, no tocante à individualização, é acerca da
necessidade de fundamentação, quando a pena restar individualizada no mínimo
legal. A questão aqui posta pode ser resolvida pela ausência de prejuízo, quando
suficiente a fundamentação da decisão condenatória, aplicando-se o sistema de
nulidades do Código de Processo Penal, que proclama a manutenção dos atos
processuais quando inexistente prejuízo às partes.
3.7 Individualização da pena e sistema constitucional de garantias
Quando da aferição de qualquer aspecto do direito positivado, essencial atentar-
se para a importância que o sistema constitucional exerce sobre a legislação posta.
Essa maximização da potência constitucional deve ser verificada, sobremaneira, em
97
relação ao direito penal e seu instrumento de realização, o direito processual penal,
cuja compatibilidade programática necessita ser adequada ao programa da carta
fundamental, principalmente num modelo de Estado Social e Democrático de Direito,
em que princípios e valores constitucionais adquirem relevância extrema, ensejando
do aplicador (intérprete) imediata efetivação. Nesse sentido, postulando uma posição
transformadora do direito, sustenta Rogério Gesta Leal:103
Toda lei enseja interpretação, e o processo hermenêutico
tem, sem dúvida, relevância superior ao processo de elaboração
legislativa, uma vez que será através da interpretação da norma que
esta será aplicada e inserida dentro de um contexto fático
específico, sendo adequada a toda uma realidade histórica e aos
valores dela decorrentes. Cremos, na seqüência desta reflexão, que
inexiste norma jurídica per si, senão uma norma jurídica
interpretada, ressaltando que interpretar um ato normativo nada
mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública
do espaço social e político em que tem vigência.
Dessarte, o que se sustenta é a necessidade de interpretar/reinterpretar o
procedimento da aplicação da pena, compatibilizando as circunstâncias judiciais e
103 Em Hermenêutica e Direito: considerações sobre a teoria do direito e os operadores jurídicos. 2ª ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1999, p. 155. Na mesma linha, defendendo a imediata aplicação dos princípios constitucionais vinculados aos direitos fundamentais, na p. 160, volta a insistir: “Sustentamos, pois, que a Constituição, e em especial seus princípios fundamentais, é, integralmente, norma jurídica, tendo todas suas disposições aplicação imediata e direta, vinculando os poderes instituídos do Estado e a própria sociedade civil. Daqui decorre o entendimento de que a eficácia dos direitos fundamentais, dentre eles os direitos humanos, não depende de prévia regulação na lei ordinária, mas antes e pelo contrário, se aplicam independentemente de intervenção legislativa.” .
98
legais do Código Penal104 com o princípio da secularização, que marca, de forma
definitiva, a separação entre direito e moral, consagrando o respeito à personalidade
(direito à diferença), tendo, portanto, incidência imediata, no ensinar de Salo de
Carvalho105 que esclarece:
A secularização, ainda, de acordo com a cadeia
principiológica estabelecida pela Constituição, deduz inúmeros
(sub) princípios, como o da inviolabilidade da intimidade e respeito
da vida privada (art. 5°, X); do resguardo da liberdade de
manifestação do pensamento (art. 5°, IV); da liberdade de
consciência e crença religiosa (art. 5°, VI); da liberdade de
convicção filosófica ou política (art. 5°, VIII); e da garantia da livre
manifestação do pensar (art. 5°, IX). Note-se que, em realidade, a
amplitude e o alcance do princípio é superior ao da sua gênese
histórica iluminista, representando atualmente verdadeira pedra
angular da democracia e ferramenta pródiga de
legitimação/deslegitimação de toda a atividade do poder estatal,
seja legiferante, administrativa e/ou judicial. Possibilita, inclusive,
a averiguação dos níveis de legitimidade e dos graus de justiça e
validade de todo o sistema jurídico, principalmente das legislações
penais ordinárias – inclusive pré-constitucionais.
Portanto, a pretensão é demonstrar a importância da interpretação para a
efetivação dos direitos fundamentais e, num momento posterior, após realçar a força
das disposições constitucionais na aplicação da pena, acentuar a recepção do
104 O Código Penal Brasileiro, ao estabelecer o procedimento da aplicação da pena determina, no seu artigo 68, observar, em primeiro lugar, as circunstâncias judiciais, previstas no art. 59, entre as quais se incluem a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, as circunstâncias e conseqüências e o comportamento da vítima. As circunstâncias legais, agravantes e atenuantes, majorantes e minorantes, são apreciadas nas fases posteriores do processo de individualização da sanção. 105 CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Hamilton Bueno de. Aplicação da pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 17.
99
princípio da secularização e sua influência no sistema penal, o que exige mudança
operativa dos profissionais do direito.
3.8 A importância do processo interpretativo para a individualização sanciona-
tória
O questionamento da validade das normas punitivas, formalmente vigentes, a
partir da ordem constitucional, é instrumento fundamental para aferição da validade
do ordenamento jurídico num Estado Democrático de Direito. Uma das formas de
realizar este enfrentamento é a partir de uma hermenêutica (crítica), que pode ser
definida, em linhas gerais, como a teoria da interpretação do sentido.
Rogério Leal106 sustenta a essencialidade do processo interpretativo:
Há um reconhecimento de que as expressões humanas
contêm componentes significativos, que tem de ser conhecidos
106Em Hermenêutica e Direito: considerações sobre a teoria do direito e os operadores jurídicos. 2ª ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1999, p. 134. E mais, na p. 133, acerca da eficácia dos princípios constitucionais, acentua que “No Brasil, principalmente no que tange à teoria constitucional, não temos os operadores jurídicos nos esforçado para desvendar e enfrentar os componentes significativos da Constituição Federal enquanto instrumento político jurídico que estabelece os valores e princípios norteadores da constituição da nossa república como um Estado Democrático de Direito”. Essa importância do papel da hermenêutica, continua na p. 141, deve-se à sua função de “romper o hermetismo do universo dos signos jurídicos, abrindo o texto e o discurso ao mundo. Para ela, o intérprete não decodifica apenas um sistema de signos, mas interpreta um texto. Subjacente a este conjunto de idéias está a rejeição de uma concepção de linguagem com função meramente instrumental – a linguagem como signo ou mera função simbólica – considerando-a, ao invés, como uma instituição social complexa, eis que partimos do pressuposto de que as expressões têm sentido apenas no contexto dos distintos jogos de linguagem, que são complexos de discurso e de ação. Assim, a gramática da linguagem jurídica só poderá ser elucidada de dentro, a partir do conhecimento das regras constitutivas do jogo e não mediante apelo a metalinguagem.”
100
como tais pelos sujeitos sociais e transportados para os seus
próprios sistemas de valores e significados.
O resgate desse papel do direito, como ferramenta utilitária de efetivação de
direitos fundamentais, deve ser visto a partir da superação de sua função tradicional.
A distância entre o direito posto e sua funcionalidade, voltada para o futuro, foi
observada por Germano Schwartz,107 ao destacar o papel simbólico do direito:
Tem-se, assim, um quadro de inaptidão e desapontamento
tanto da ciência jurídica como das pessoas, em relação ao
simbolismo que o Direito representa na sociedade moderna. Ele
passa a funcionar, como bem ilustra Ost, em um tempo distanciado
do tempo social, repetindo e entronizando o passado, esquecendo,
dessa forma, seu papel maior: a construção do futuro.
Com propriedade, ensina Lenio Streck108 que para compreender a
Constituição é necessário um rompimento, abrindo-se um espaço hermenêutico de
entendimento. Nesse sentido:
Dizendo de outro modo, o entendimento da Constituição
como sendo o produto de um processo compreensivo, é dizer, de
uma applicatio hermenêutica, pressupõe um rompimento
107Em Direito e Literatura: proposições iniciais para uma observação de segundo grau do sistema jurídico. Revista da Ajuris, 96. Porto Alegre: 2004, pág. 126. 108STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica (jurídica): compreendemos porque interpretamos ou interpretamos porque compreendemos? Uma resposta a partir do Ontological Turn. In: Armário do Programa de Pós-Graduação em Direito 2003. UNISINOS. São Leopoldo: 2003, p. 235.
101
paradigmático, isto é, torna-se imprescindível saltar do ‘modo
apofântico’ para o ‘modo hermenêutico’, isso porque compreender
é um existencial, que é uma categoria pela qual o homem se
constitui.
Dessa maneira, a falta de correspondência entre parcela do direito penal e a
Constituição, segundo Evandro Pelarin, é manifesta,109 havendo a necessidade de
uma nova postura do operador do direito. É que a Constituição traça as linhas gerais a
serem seguidas, onde imperativa a observação de valores que acabam limitando o
direito punitivo do Estado. É, então, de se ressaltar
que a Constituição traça, na sua supremacia formal e material,
principalmente na última, os ditames valorativos a serem seguidos,
de modo que compete ao legislador e ao juiz, para exemplificar, a
criminalização ou a descriminalização das condutas: ou, numa
linguagem técnica para o último, a penalização ou a despenalização
no caso concreto.110
Se inevitável, portanto, a supremacia dos valores defendidos
constitucionalmente em face do direito punitivo, é fundamental (re)entender a
relevância decorrente dos direitos (ou princípios) assentados na Constituição. E, aqui,
parece importante o enfrentamento, por exemplo, em nível de teoria do fato punível,
109 Em Bem Jurídico Penal, São Paulo, IBCCRIM, 2002, p. 90, quando destaca a absoluta infidelidade do direito penal à Constituição vigente. 110 Idem, p. 93.
102
do papel do bem jurídico, dentro de um contexto de ofensividade,111 a partir de um
verdadeiro sistema constitucional de delito. É que, num Estado Constitucional e
Democrático de Direito, obedecida a regra da secularização, o crime deve ser
compreendido não como infração do aspecto imperativo da norma primária (que
determina coativamente uma determinada pauta de conduta), “senão, principalmente
como infração do aspecto valorativo dessa mesma norma”.112 Então, uma primeira
tarefa é contextualizar o papel do bem jurídico na concepção do injusto penal, a partir
dos valores constitucionais, o que passa pelo enfrentamento do objeto da proteção do
direito penal, com análise das novas concepções funcionalistas (Jakobs),113 que
sustentam ser função do direito penal a proteção de vigência das normas punitivas.
Outro essencial aspecto a ser destacado, vinculado ao objeto central deste
estudo, é a estrutura do sistema sancionador, cuja importância transcende a própria
111 GOMES, Luis Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 15, sustentando: “O princípio da ofensividade, desse modo, para além de cumprir uma dupla função: (a) político-criminal (dirigida ao legislador, que está obrigado a só descrever tipos penais ofensivos a bens jurídicos) e (b) dogmática e interpretativa (dirigida ao intérprete e ao aplicador da lei).” 112GOMES, Luis Flávio. Op. cit., p. 36, aduzindo ainda: “É preciso, dessarte, que os bens jurídicos protegidos, tanto o imediato – segurança viária – quanto os mediatos – vida, integridade física das pessoas, patrimônio, etc. -entrem no raio da ação perigosa (criadora de riscos), gerando um concreto perigo de dan.” 113 JAKOBS, apud GRECO, Luis. Introdução à dogmática funcionalista do delito. Editora Renovar, 2002, p. 139, apoiado nos estudos de NIKLAS LUHMANN sustenta que “o mundo em que vivem os homens é um mundo pleno de sentido. As possibilidades de agir são inúmeras, e aumentam com o grau de complexidade da sociedade em questão. O homem não está só, mas interage, e ao tomar consciência da presença dos outros, surge um ‘elemento de perturbação’: não se sabe ao certo o que esperar do outro, nem tampouco o que o outro espera de nós. Este conceito, de expectativa, desempenha valor central na teoria de LUHMANN: são as expectativas e as expectativas de expectativas que orientam o agir e o interagir dos homens em sociedade, reduzindo a complexidade, tornando a vida mais previsível e menos insegura”. A concepção funcionalista, na acepção antes explicitada, sustenta que a defesa do bem jurídico pode ser estruturada a partir da visão de que “a vida em sociedade torna cada pessoa portadora de um determinado papel – pedestre, motorista, esportista, eleitor – que consubstancia um feixe de expectativas. Cada qual, e não só o autor de crimes omissivos impróprios, como na doutrina tradicional, é garante destas expectativas”.
103
noção de delito. É que as disposições procedimentais sobre aplicação da pena devem
ser adequadas ao ordenamento constitucional, fazendo-se a leitura dos códigos a
partir da Constituição (e não o procedimento inverso). É o que será analisado a
seguir.
3.9 A necessária releitura das disposições normativas referentes à aplicação da
pena
Sabe-se que a função da pena é objeto de debates infindáveis, havendo,
inclusive, sustentação de que deve nortear-se por valores político-criminais.
Todavia, o aspecto mais alarmante, sob a ótica da operacionalização do direito
penal, é a dissociação entre alguns princípios constitucionais (secularização,
fundamentação das decisões, respeito à dignidade da pessoa humana, humanidade,
culpabilidade) e as sanções cominadas, que acabam se constituindo na única
alternativa de enfrentamento a comportamentos aleatoriamente definidos como
desviantes, sem a necessária observação de que a criminalidade é um fenômeno
complexo.
A questão central é, portanto, como compatibilizar aspectos do direito penal e
processual em face dos valores constitucionais, estes de observação obrigatória e
eficácia imediata, conseqüência da própria função da Carta Maior.
104
Nesse contexto, surge, cada vez mais, a necessidade de uma mudança de postura
operativa, a fim de abrandar o alcance do positivismo formal na construção de uma
nova dogmática jurídica (não-tradicional), em que os valores constitucionais sejam
referência para um direito tutelador de valores efetivamente relevantes para a
coletividade. Aqui, potencializa-se a importância, no caso do direito penal, de um
processo penal adequado constitucionalmente. A crise da dogmática jurídica
tradicional há de ser superada, com a adoção de novos procedimentos interpretativos.
O entendimento da teoria da pena, portanto, deve ser compatibilizado com a
busca de uma nova justificativa (papel) para a individualização da sanção penal, a
partir do sistema das garantias e valores constitucionalizados. Não mais é suficiente a
mera repetição dos dizeres do texto legislativo; é imprescindível, ao contrário, buscar
a compatibilidade (interpretar, hermeneuticamente) de tais dispositivos. O ponto de
partido para essa tarefa é compreender o princípio da secularização e sua importância
para o direito penal, operando reflexos deste entendimento na valoração das
circunstâncias judiciais que determinam a dosimetria da pena.
3.10 Dosimetria da sanção penal e a importância do princípio da secularização
É relevante contextualizar a noção de secularização, a partir de sua base
conceitual. Salo de Carvalho114 esclarece:
114 Em op. cit., p.5.
105
O termo secularização é utilizado para definir os
processos pelos quais a sociedade, a partir do século XV, produziu
uma cisão entre a cultura eclesiástica e as doutrinas filosóficas
(laicização), mais especificamente entre a moral do clero e o modo
de produção das ciências.
Este processo de distanciamento entre o direito, enquanto ciência, e as
justificações teológicas, foi um caminho longo, não decorrendo apenas da produção
filosófica.
Ainda, segundo Salo de Carvalho:115
Toda explicação dos fenômenos mundanos era fornecida
com base nas doutrinas cléricas, ocasionando não apenas um
entrelaçamento entre moral e ciência mas, fundamentalmente, entre
moral e política, e, em decorrência, entre moral e direito (penal).
Das fundamentações cosmológicas do mundo, presentes na
antiguidade, a teologia passa a fornecer, desde a consolidação do
cristianismo, todas as respostas necessárias para a compreensão do
homem. Assim, ‘a’ verdade passa a ser dada desde uma pesquisa
teocêntrica.
[...]
Se é a partir do Século IV a.C (marco inicial da filosofia,
pois antes de Tales de Mileto a esfera do conhecimento é baseada
115 Em op. cit., p. 6.
106
em fantasias e mitos) que o fundamento do saber adquirirá, com a
perspectiva cosmocêntrica, característica metafísica (realidade para
além da physis), o primeiro grande giro metodológico aparecerá
com a compreensão da ciência pela crença, em decorrência do
deslocamento do objeto do universo (cosmos) para o divino. A fé
combate e ‘explica’ a razão. O processo de secularização possibilita
outra mudança copérnica nas ciências, pois o saber passa a ser
fundado na razão do homem. A análise do homem racional funda o
antropocentrismo, negando toda e qualquer perspectiva ontológica
de verdade (verdade em si), iniciando o processo que, no século
XX, redundará na universalização dos direitos humanos.
Esse novo modelo, jusnaturalista, possibilitou ainda, segundo Carvalho,116 que
o direito natural fosse apresentado, historicamente, sob a forma de direito natural
cosmológico (voltado ao cosmos, portanto), direito natural teológico (voltado a Deus)
e direito natural antropológico (girando em torno do homem). E, neste aspecto, o
ponto fundamental, no avanço da concepção da secularização, é a passagem do
jusnaturalismo teológico para o antropológico.
Nesse sentido, continua a explicar Carvalho:117
A fusão entre moral e direito na esfera penal, presente no
modelo jusnaturalista teológico, abriu campo para a intervenção
jurídica na esfera do pensamento, criminalizando e punindo
indivíduos por convicções, idéias, pensamentos e outras opções
pessoais. Ao agregar direito e moral, obtém-se como corolário
lógico uma percepção híbrida de crime, consagrado na sinonímia
116 Em op. cit., p. 7. 117 Idem, p. 8.
107
delito-pecado. O criminoso, portanto, antes de mais nada, é um
objeto de consciência, visto que não corresponde (nega) ‘o’ modelo
de verdade imposta. Não é por menos que a idéia de heresia,
segundo o Directorium Inquisitorium, obra de maior significado e
representação à repressão imposta pelos Tribunais do Santo Ofício
na Inquisição Espanhola, significa eleição e adesão de uma falsa
(perversa) doutrina em detrimento da verdadeira.
O início da superação de tal modelo somente é concebido com o surgimento
das correntes contratualistas, em que a concepção do delito passa a ser estruturada a
partir do dano causado (resultado) e não do homem pelo que é. Nesse sentido, a
Escola Positiva bem acentuou as bases para a incidência penal. A propósito, ensina
Eduardo Reali Ferrari:118
Partindo do fato de que o delinqüente era fruto de uma
concepção antropologicamente anormal, ou, quando muito, de má
influência social, positivistas italianos defendiam a tese de que a
punição se justificava apenas por sua responsabilidade social.
Como dito, sob essa nova perspectiva (contratualista), surge a necessidade de
proteção de um direito fundamental, que é o direito à diferença, ou seja, espaço sobre
o qual o Estado não pode interferir. Não há uma cessão de todos os direitos do
118 Em op. cit., p. 22.
108
cidadão para o Estado, mas uma reserva, imune da interferência estatal. Mais uma
vez explica Salo de Carvalho:119
Ressaltamos, porém, o fato de que não são todas as
liberdades pactuadas, e muito menos a vida ingressa nesta
bilateralidade obrigacional. A esfera de liberdade da consciência e
a vida, bem como a plenitude da liberdade de locomoção (ir, vir e
permanecer), não estão entre os bens disponíveis ao indivíduo
pactuar, visto serem inalienáveis, isto é, anteriores e insuscetíveis
ao pacto, pois são os seus próprios pressupostos.
Acentuando o caráter laico do Estado, por força da separação entre direito e
moral, ensina Luigi Ferrajoli:120
A doutrina da separação entre direito e moral, da maneira
como vem sendo equacionada pelo conjunto de proposições
assertivas e prescritivas até o momento analisadas, reflete o
processo, contemporâneo ao nascimento do Estado moderno, por
meio do qual o direito e a cultura jurídica, particularmente de
conteúdo penal, tornaram-se laicos. Referida doutrina, sob o
aspecto teórico, foi útil para o desenvolvimento de uma ciência
penal juspositiva, fundada sobre o princípio da legalidade, e, sob o
prisma normativo – juntamente com aquela, também normativa,
dos ‘direitos naturais’ – importante na elaboração de grande parte
119 CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Hamilton Bueno de. Op. cit., p. 11. 120 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer e outros. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 180.
109
das garantias de liberdade do cidadão, bem como das formas do
moderno ‘Estado de Direito’, tais como sistema político sujeito a
regras, limites e controles.
Acentuada, assim, a importância do princípio da secularização para o direito
penal, um outro aspecto, na dimensão estreita desta abordagem, é compreender a
inserção desse referencial no corpo da Constituição. A discussão é identificar a
recepção, explícita ou não, do referido princípio.
Salo de Carvalho, discordando da perspectiva apresentada por Canotilho e por
Zaffaroni, sustenta que o princípio da secularização integra o texto constitucional
pátrio:121
Advogamos que o princípio está incorporado em nossa
realidade constitucional, não sendo dedutível dos demais valores e
princípios, mas sendo ‘o’ princípio do qual aqueles são dedutíveis.
Nesse sentido, a categoria corresponde a um dos núcleos
substanciais do ordenamento jurídico, juntamente com os preceitos
preambulares da Constituição (o pluralismo, a fraternidade, o
pacifismo, a igualdade) e os ‘fundamentos’ estabelecidos no art. 1°
(soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, pluralismo
político). Tais princípios, ou valores constitucionais, sedimentam
121 Em op. cit., p. 15. Todavia, o autor faz a ressalva de que CANOTILHO sustenta que o princípio da secularização está vinculado, principiologicamente, ao modelo republicano e, no caso da Constituição Portuguesa, os principais corolários lógico-materiais do laicisismo surgem a partir da separação e neutralidade do Estado em relação à igreja e no tocante à liberdade de consciência. Já para Raúl Zaffaroni a secularização é princípio metajurídico, funcionando como um referencial de legitimidade externa do direito penal.
110
os pilares axiológicos sob os quais está fundada a República,
conformando a estrutura jurídica basilar do Estado, diluindo e
contaminando sua carga valorativa às demais esferas normativas.
De qualquer forma, o sistema constitucional brasileiro permite, baseado no
princípio da liberdade de crença, que o modelo estatal seja laico.
3.11 Princípio da secularização e circunstâncias judiciais
Do antes sustentado, aduz-se que necessária uma readequação interpretativa
acerca da função das circunstâncias judiciais, previstas no artigo 59 do Código Penal,
as quais, no procedimento da individualização da pena, determinam a fixação do
quantum inicial do apenamento, a chamada pena-base.
Uma primeira análise das referidas circunstâncias122 que servem para definir a
fase inicial da aplicação da pena revela que algumas têm vinculação ao fato
(circunstâncias e conseqüências do crime), enquanto que outras embasam a
individualização da sanção sobre a personalidade do agente (antecedentes, conduta
social, personalidade) ou sobre o modo de comportamento do ofendido
(comportamento da vítima).
122 Na forma do artigo 59 do Código Penal, as circunstâncias judiciais são a culpabilidade, os antecedentes, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias e conseqüências do crime e o comportamento da vítima.
111
É nesse momento que, na linguagem de Salo de Carvalho, o sistema penal
revela toda a sua perversidade,123 visto que tolera e admite a valoração de elementos
morais, que impedem a averiguabilidade probatória, sendo de impossível refutação
empírica, quando considerados em desfavor do agente.
Se o modelo de Estado Democrático de Direito se caracteriza pela adoção da
secularização, as condutas morais, vinculadas à personalidade, não poderão servir de
base para decisão adequadamente motivada, sob pena de violar um dos pilares do
modelo Constitucional, que é o respeito à dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, defendemos que, na fixação da pena, critérios vinculados a
aspectos morais não poderão ser analisados, como base para dimensionar a sanção
penal na primeira fase. A impossibilidade de análise recai, como decorrência, sobre as
circunstâncias judiciais nominadas de antecedentes, conduta social e personalidade.
Sobre antecedentes, sustenta Salo de Carvalho:124
Entre as correntes extremadas, o posicionamento que
perdura é o de que inquéritos instaurados e processos criminais em
andamento, absolvições por insuficiência de provas, prescrições
abstratas, retroativas e intercorrentes, além de condenações
criminais sem trânsito em julgado ou que não constituem
123 Em op. cit., p. 31. 124 Em op. cit., p. 49.
112
reincidência devem ser valoradas como antecedentes negativos do
imputado.
Criticando tal posicionamento, sustenta o mesmo autor a impossibilidade da
valoração de tal circunstância, pelo caráter perpétuo dos antecedentes e visto que
representam valoração moral do agente.
Nesse sentido, um primeiro passo é fixar um marco temporal para a irradiação
dos efeitos da condenação anterior, tal como ocorre com a reincidência.125 Assim,
sugere Salo de Carvalho aplicar-se o referido prazo:126
Note-se que os antecedentes, além de fornecer uma
graduação à pena decorrente do histórico de vida do acusado,
representam um gravame penalógico eternizado, em total afronta
aos princípios constitucionais referidos (princípio da racionalidade
e humanidade das penas).
Assim, cremos urgente instituir sua temporalidade,
fixando um prazo determinado para a produção dos efeitos
impostos pela lei penal. O recurso à analogia permite-nos limitar o
prazo de incidência dos antecedentes no marco dos cinco anos –
delimitação temporal da reincidência -, visto ser a única orientação
permitida pela sistemática do Código Penal.
125 O artigo 64 do Código Penal determina que os efeitos da reincidência prevalecem durante o prazo de cinco (5) anos, contados da data do cumprimento ou extinção da pena. 126 Em op. cit., p. 52.
113
Por outro lado, além da necessidade de limitar os efeitos temporais da
consideração dos antecedentes, uma sistemática interpretação dos efeitos da
secularização, combinada com o princípio da dignidade da pessoa humana, importa
em excluir da apreciação, para o fim específico da imposição da pena, a circunstância
dos antecedentes, vez que vinculada a personalidade do agente (que voltou a cometer
novo crime) e não ao fato que está sendo julgado.
Assim, continua a sustentar Salo de Carvalho,127 sobre a consideração dos
antecedentes como circunstância judicial:
[...] o instituto afronta, em absoluto, o princípio da
secularização, pois entendemos que o dispositivo legal, agregado à
circunstância conduta social, reforça ainda mais a culpabilidade de
autor, em detrimento da culpabilidade de fato – a consideração da
conduta social na dosimetria da pena representou alinhamento com
a concepção da culpabilidade pelos fatos da vida, e não
propriamente de culpabilidade só pelo fato cometido [...].
Dessa maneira, se no juízo de culpabilidade, como vimos,
já existe forte tendência em subverter o direito penal do fato em
prol de um direito penal do autor, quando da avaliação dos
antecedentes e da conduta social esta opção fica mais nítida. A
eleição legal é fortalecida ainda mais pela obrigatoriedade de o
magistrado valorar a personalidade do autor do fato.
127Em op. cit., p. 53.
114
Assim, se em relação aos antecedentes e conduta social há a possibilidade da
valoração incidir sobre aspectos morais do agente, em detrimento da valoração das
circunstâncias da prática do fato, a análise da circunstância da personalidade do
agente revela direta violação ao princípio do respeito à dignidade da pessoa humana,
na medida da impossibilidade de refutação de uma eventual consideração,
absolutamente subjetiva, de tal circunstância e porque a sua apreciação incide sobre
campo absolutamente estranho ao direito penal do fato.
Logo, não parece possível a valoração da personalidade do agente, pela
pluralidade de significados (descrição de habilidades, perícia social do agente ou
impressão destacada que causa nos outros) que a acepção permite:128
Antes de qualquer coisa, então, para proceder
levantamento apurado e, principalmente, para poder fundamentar o
juízo sobre a personalidade do réu, deveria o juiz indicar qual o
conceito de personalidade em que se baseou para a tarefa, qual a
metodologia utilizada, quais foram os critérios e passos seguidos e,
em conseqüência, em qual momento processual foi-lhe
possibilitada a averiguação [...]
Não basta, pois, o magistrado suscitar um elemento
categórico, encobrindo-o por termos vagos e imprecisos. O
requisito constitucional da fundamentação das decisões impõe a
explicitação dos critérios, métodos e conceitos utilizados.
128 Em op. cit., p. 55.
115
Inadmissível, assim, que se possa auferir juízo negativo de
personalidade sem demonstrar a base conceitual e metodológica
que possibilitou a enunciação.
Dessa forma, não havendo condições para avaliação da personalidade, seja
pela falta de aptidão técnica do julgador, seja porque o objeto recai sobre campo de
alcance vedado pela regra da secularização, a garantia da motivação e fundamentação
das decisões judiciais impede a apreciação de tal circunstância. É o que se conclui, na
sustentação de Salo de Carvalho:129
A indefinição da circunstância da personalidade cria
verdadeira impossibilidade de refutação, bem como de
comprovação, acarretando, na maioria dos casos, nulidade do ato
sentencial por falta de motivação. Mais, tais enunciados ferem
dramaticamente o princípio da taxatividade, pois, segundo
Ferrajoli, decisões nesse sentido inspiram – nos melhores casos –
modelos penais de legalidade atenuada [...].
Em realidade, o que se constata na prática forense é a
redução da circunstância personalidade a juízos sobre o
temperamento e o caráter do imputado [...].
Todavia, entendemos que, mesmo se fosse o magistrado
apto a realizar tal tarefa, o juízo sobre a personalidade do sujeito
seria ilegítimo, visto estar assentado em valoração estritamente
moral sobre o ser do acusado.
129 Em op. cit., p. 58.
116
Diante disso, sustentamos a impossibilidade de, com obediência à necessária
fundamentação das decisões judiciais, considerar-se circunstâncias judiciais, na
individualização da sanção penal, que não permitam refutação e que tenham por
objeto aspectos morais do agente, desvinculadas, portanto, do fato praticado.
Em síntese, o que defendemos é que, se é assegurado à cidadania apresentar
qualquer comportamento, dentro da sua esfera de liberdade individual, somente deve
haver incidência penal na medida em que tal agir estiver previamente tipificado.
Logo, ainda que a conduta social, a personalidade ou a índole do agente não
seja exatamente o que a sociedade ou parte dela espera, ainda assim, pelo princípio
constitucional do respeito à dignidade da pessoa humana, nenhuma censura pode ser
feita pelo modo como vive, sendo incabível, assim, maior sancionamento pelo modo
de vida de alguém.
3.12 A pena motivada como direito fundamental
A análise realizada buscou demonstrar a necessidade de compatibilização do
procedimento de imposição do sancionamento com os valores da ordem
constitucional.
A (re)construção de uma nova base para o sancionamento penal deve ter como
marco o significado de um novo modelo constitucional e sua força irradiante. Uma
117
Constituição existe para produzir efeitos, sendo produto democrático, cabendo aos
operadores uma mudança de postura para sua concretização. É o que ensina Lenio
Streck:130
Constituição significa constituir alguma coisa; é fazer um
pacto, um contrato, no qual toda a sociedade é co-produtora. Desse
modo, violar a Constituição ou deixar de cumpri-la é descumprir
essa constituição do contrato social. Isto porque a Constituição –
em especial a que estabelece o Estado Democrático de Direito,
oriundo de um processo constituinte originário, após a ruptura com
o regime não-constitucional autoritário – , no contexto de que o
contrato social é a metáfora na qual se fundou a racionalidade
social e política da modernidade, vem a ser a explicitação desse
contrato social.
Nessa linha, cumpre salientar que o Direito Penal, enquanto catálogo do
modelo sancionador, deve ter sua compatibilidade com o modelo constitucional
considerando-se que a pena atinge bens de relevante significado para a cidadania.
O princípio da secularização nasceu da superação do modelo de estado
teocrático e jusnaturalista; é produto de uma concepção contratualista, em que a
construção do Estado, via contrato social, não abrange todos os direitos, sendo alguns
inalienáveis. Entre os direitos inalienáveis, que não podem ser pactuados, está o
direito à diferença.
130STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 240.
118
Assim, um programa de direito penal compatível com o modelo de Estado
Constitucional Democrático de Direito deve respeitar a individualidade, não punindo
condutas morais, que não produzam resultados danosos e, quando estes se
verificarem, típica e ilícita a conduta, o sancionamento deve ser imposto com base
exclusiva na culpabilidade, sendo possível conduta diversa; inviável, portanto, a
valoração de aspectos morais ou éticos do agente, desvinculados do fato. O artigo 59
do Código Penal, nessa linha, merece (re) interpretação, vez que sua recepção pela
Constituição Federal de 1988 há de ser compatibilizada com o princípio da
secularização, corolário do modelo republicano e em vista dos valores do modelo de
Estado idealizado pela Carta Maior.
Nessa perspectiva, as decisões judiciais proferidas pelo Poder Judiciário
devem ser fundamentadas e motivadas. Na seara criminal, especialmente na
individualização da pena, mais que uma obrigação, a motivação do sancionamento é
uma garantia constitucional do processado.
Conseqüência do sustentado é a inviabilidade de, no modelo constitucional
brasileiro, considerar-se aspectos morais do agente, descontextualizados do fato
criminoso, para acentuar-se o sancionamento penal, sob pena de violação do
necessário respeito à dignidade da pessoa humana, cujas condutas atípicas não têm
relevância penal, por força da secularização do direito.
119
CONCLUSÃO
Como anunciado na identificação dos objetivos deste estudo, pretendeu-se
investigar a compatibilidade entre o sistema de valores e princípios fundamentais,
inseridos na Constituição Federal, em relação a alguns aspectos do sancionamento
penal, em especial acerca da função exercida pela pena e de critérios para sua
imposição.
De denunciar-se, desde o primeiro momento, o descompasso entre a
operacionalização do direito penal e Constituição, que decorre, entre outras causas,
pela ausência de compatibilidade temporal entre a maior parte da legislação ordinária
e a nova Carta Constitucional, sendo que esta é posterior àquela.
De qualquer forma, o positivismo formal e a exigência de legalidade aparecem
como sólido fator de impedimento da realização de valores fundamentais na seara
penal. Além disso, apresenta-se a dogmática penal, com sua solidez conceitual e
centenária tradição, como fator que dificulta a convivência com a teoria
constitucional.
Nessa linha, propõe-se uma releitura de aspectos do direito penal, para
compatibilizá-lo com os valores da constituição, tendo o cuidado, contudo, de
entender que o próprio corpo do texto constitucional abriga diversos princípios e
120
valores, penais ou de natureza penal, que não guardam necessária identidade
(liberdade de imprensa x proteção da privacidade).
Por isso, uma primeira tarefa empreendida foi (re)entender-se a dinâmica da
teoria constitucional, no tocante a dois de seus temas centrais: a efetividade dos
direitos fundamentais, quando analisada a questão da eficácia e a questão da dupla
dimensão (objetiva e subjetiva) e, por outro lado, o resgate, ainda que sumário, da
teoria dos princípios de Robert Alexy, ferramenta indispensável para proceder-se ao
necessário manejo dos conflitos entre os diversos valores, princípios e regras que
refletem sobre a matéria penal.
Nessa passagem, o estudo revelou, inicialmente, que não é estranha, na
doutrina, a visão de que há resistência à efetivação de valores constitucionais em
relação ao direito penal. Francesco C. Palazzo já apontou essa dificuldade quando
procedeu à análise, no final do século passado, dos sistemas constitucionais da
Alemanha, Itália e Espanha, relativamente ao direito penal.
Essa resistência é que instigou, em grande parte, a investigação realizada, a
qual, como registrado, partiu de uma análise de aspectos da teoria constitucional para,
num segundo momento, buscar sua compatibilidade com temas do direito penal,
especialmente em relação ao sancionamento.
121
Advertiu-se que outros caminhos poderiam ter sido seguidos. O mais natural
seria a análise – o que praticamente ocupa a maior parte da doutrina produzida na
área pena, sob o enfoque constitucional – da penalização sob o enfoque dos valores
fundamentais, centrando o estudo no objeto de proteção do direito penal ou na
possibilidade de criminalização/descriminalização.
A opção exercida, contudo, como dito, foi voltar-se para o estudo de aspectos
vinculados à pena, quer quanto à sua existência (função), quer em relação ao
sancionamento.
Duas questões centrais, como já referido, ocuparam o primeiro capítulo da
tarefa empreendida: o resgate do alcance da efetividade dos direitos fundamentais e o
ferramental disponível para a solução dos conflitos decorrentes da colidência de
valores, princípios e regras.
Quanto ao primeiro aspecto, serviu de apoio, fortemente, a lição de Ingo
Wolfgang Sarlet, que sustenta o entendimento de que, pelo menos em relação aos
direitos individuais, inexiste possibilidade de negação de sua eficácia (emprestando-
se-lhes, então, eficácia limitada), visto que são elementos integrantes da identidade e
da continuidade constitucional, o que, aliás, impede até discussão acerca de sua
supressão.
122
Em relação ao segundo aspecto, foram apontadas as críticas que são dirigidas
a Alexy, quando formula a lei da colisão, a qual, contudo, encontra aceitação
crescente, até porque permite a co-existência de valores e princípios constitucionais,
dando, por outro lado, às regras o necessário papel dentro do ordenamento jurídico.
Ao encerramento do primeiro capítulo procurou-se apontar as chamadas vias
de penetração dos valores constitucionais, relativamente ao direito penal. Apontou-
se, na passagem referida, o forte antagonismo existente entre a liberdade, valor
constitucional por excelência, e a pena, que é a expressão máxima de restrição da
liberdade física. Destacou-se, também, quando analisada a vinculação do direito penal
aos valores constitucionais, a mudança paradigmática provocada pela constituição em
relação ao fenômeno da criminalização, no tocante ao objeto de proteção (bem
jurídico), quando os valores sociais passaram a ser substituídos pelos valores
constitucionais.
Em seqüência, abordou-se a complexa questão da função da pena,
notadamente em relação ao valor constitucional dignidade da pessoa humana, tendo
por objetivo analisar a sua compatibilidade com a anunciada função da sanção penal,
notadamente pelo enfoque preventivo.
Nessa parte da atividade procedeu-se à análise das teorias das penas e, como
ponto de ligação entre o tema penal e seu viés constitucional, buscou-se aferir a
123
compatibilidade da pena e o valor constitucional da dignidade da pessoa humana,
aceitando-se o entendimento de que há compatibilidade entre a função preventiva
exercida pelo sancionamento e referido norte apontado pela Carta Constitucional.
Destacou-se, contudo, que a referida compatibilidade somente é possível quando
houver proximidade entre o cometimento do delito e a aplicação da sanção.
No último capítulo resultante da pesquisa avançou-se, a partir da compreensão
da efetividade dos valores constitucionais e da compatibilidade da função da pena, em
seu viés ressocializador, para o resultado da inflexão de princípios constitucionais no
procedimento de imposição da sanção penal.
Sabe-se que a aplicação judicial da pena é ato impregnado de relativo
subjetivismo, característica do próprio modelo finalista adotado no Brasil, em que a
reprovação da culpabilidade é tarefa atribuída ao juiz sentenciante. Todavia, não pode
a aplicação da pena ser um ato de completa subjetividade.
Na análise procedida, em primeiro lugar, seguindo-se a lição de Nereu
Giacomolli, evidenciou-se a distinção entre fundamentação e motivação dos atos
decisórios, para tornar clara a necessidade de motivação da sentença criminal e da
imposição da pena em especial.
Nesse particular, quando se tratou da individualização da pena, ao lado da
crítica feita em relação às circunstâncias que servem de base para a dosimetria, vez
124
que algumas não guardam a indispensável vinculação com o fato criminoso, buscou-
se reconstruir a base analítica da secularização do direito, mostrando o espaço
reservado à liberdade individual, que não integra o espectro do contratualismo social.
A partir da separação entre direito e moral, defendeu-se o respeito à
personalidade (direito à diferença) para, tendo em conta a necessária atenção ao valor
dignidade da pessoa humana, acentuar que não é possível a valoração de elementos
morais em desfavor do agente, notadamente quando importam em inviável
contraditório.
Denunciou-se que, em relação às circunstâncias judiciais antecendentes,
conduta social e personalidade, a análise leva em conta valores morais, protegidos
constitucionalmente como patrimônio intangível da esfera de disponibilidade pessoal,
sendo, ademais, de impossível refutação.
Finalizando, a síntese possível é que sustentou-se a necessidade de
compatibilidade do procedimento sancionatório com os valores constitucionais, sendo
que tal identidade deve ser buscada quando da escolha da pena, em razão da função
que esta exerce e, também, quando de sua imposição, respeitando-se espaços de
liberdade não sujeitos à aferição penal.
125
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