universidade luterana do brasil · 2 a sanÇÃo penal no modelo constitucional ... um descompasso...

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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO ULBRA A SANÇÃO PENAL NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: FINALIDADE E APLICAÇÃO MILTON FONTANA Canoas, 2006

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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

MESTRADO

ULBRA A SANÇÃO PENAL NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:

FINALIDADE E APLICAÇÃO

MILTON FONTANA

Canoas, 2006

UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO

A SANÇÃO PENAL NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: FINALIDADE E APLICAÇÃO

MILTON FONTANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Luterana do Brasil, para obtenção do título de mestre em Direito. Orientador: Dr. Nereu José Giacomolli.

Canoas, 2006

A SANÇÃO PENAL NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: FINALIDADE E APLICAÇÃO

POR

MILTON FONTANA

Dissertação submetida ao Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em

Direito da Universidade Luterana do Brasil, como parte dos requisitos necessários

para obtenção do título de

Mestre em Direito

Área de Concentração: Desenvolvimento e Proteção dos Direitos

Fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito

Orientador: Prof. Dr. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI

Comissão de Avaliação: Dr. ANDRE LUÍS CALLEGARI

Dr. JAYME WEINGARTNER NETO

Dr. ÂNGELO ROBERTO ILHA

Agradeço o apoio e compreensão de Eliane

Ribeiro Portela e Isabella Portela Fontana, sem os

quais a conclusão desta dissertação seria inviável.

RESUMO

A Constituição Federal, por sua importância, irradia efeitos sobre todo o sistema normativo. O modelo constitucional de 1988 determina uma releitura do sistema penal positivado, notadamente acerca da pena, sua função e procedimento da aplicação.

Assim, tendo por fundamento os alicerces de um Estado Social e Democrático de Direito, o direito penal, por seu viés sancionador, deve obediência aos valores constitucionalizados. Na seara penal, inadiáveis as mudanças que devem ser observadas pelos operadores jurídicos, tendo em conta o novo paradigma, que produz efeitos de observância obrigatória, exigindo, desta forma, uma compatibilização da legislação ao novo modelo. O presente estudo busca, num primeiro momento, entender a compatibilidade da eficácia dos direitos fundamentais, a partir da nova ordem constitucional. Após, tendo como base os direitos fundamentais, busca esclarecer o papel da sanção penal e sua inserção nesse modelo. Na última parte, o enfoque é acerca da necessidade de motivação e fundamentação das decisões judiciais, especialmente no tocante ao sancionamento penal, onde exigida a compatibilidade das regras penais e processuais com o sistema constitucional. Indexação: Constituição. Direitos Fundamentais. Sanção Penal. Aplicação. Motivação e Finalidade.

ABSTRACT

The Federal Constitution, for its importance, irradiates effects on the whole normative system. The constitutional model of 1988 determines a rereading of the positivated criminal system, especially concerning on the feather, its function and application procedure.

Then, considering the foundations of a Social and Democratic State of Law,

the criminal law, for its sanctionatory inclination, owes obedience to the contitucionalyzed values.

In the penal field, the changes that they should be observed by the juridical

operators are undelayable, concerning the new paradigm, that produces effects of obligatory observance, demanding, this way, a compatibilization of the legislation to the new model.

The present study searches ina first moment to understand the compatibility of the efficacy of the fundamental rights from the new constitutional order. Afterwards, having as basis the fundamental rights, it looks for stabilishing the role of the penal sanction and its inserction on this model. Finally the focus is about the necessity of motivation and foundation of law decisions especially in concern to the penal saction, where the compatibility of the penal and procedural rules with the constitutional system is demanded.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................... 9 1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E ORDEM CONSTITUCIONAL................... 15 1.1 A exigência de efetividade dos direitos fundamentais......................... 15 1.2 Direitos fundamentais e sistema constitucional................................... 18

1.3 A dupla perspectiva dos direitos fundamentais: elementos objetivos fundamentais da comunidade ou direitos subjetivos individuais.................................................................................................. 22

1.3.1 Dupla perspectiva dos direitos fundamentais................................... 22 1.3.2 Perspectivas de direitos fundamentais e ordem

Constitucional............................................................................................ 23 1.3.3 Perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais.................. 24

1.3.4 A perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais........................... 29 1.3.5 Direitos Fundamentais e ordem jurídica........................................... 34

1.4 Da necessária vinculação do direito penal aos valores ....................... 35 1.4.1 Problemas de eficácia dos direitos fundamentais............................. 35 1.4.2 A teoria dos princípios de Robert Alexy........................................... 39 1.4.3 A vinculação do direito penal aos valores constitucionais............... 44 2 A SANÇÃO PENAL NO MODELO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO: FUNÇÃO E FUNDAMENTO.................................................... 49 2.1 Finalidade das penas e ordem constitucional....................................... 49

2.2 Teorias de justificação das penas ........................................................ 53 2.3 Teorias absolutas................................................................................. 55

2.3.1 Teorias da expiação e da retribuição................................................. 56 2.3.2 Fundamentos filosóficos para a retribuição...................................... 60

2.4 Teorias relativas................................................................................... 62 2.4.1 Prevenção geral negativa e positiva.................................................. 64

2.4.2 Prevenção especial positiva e negativa............................................. 69 2.5 Teorias unificadoras ou mistas............................................................ 72 2.6 Pena e constituição.............................................................................. 73

3 VALORES CONSTITUCIONAIS E APLICAÇÃO DA PENA....................... 81 3.1 O direito fundamental à pena motivada............................................... 81

3.2 Da necessidade constitucional da motivação das decisões judicias criminais........................................................................ 82 3.3 A motivação dos atos decisórios.......................................................... 88 3.4 exigência de fundamentação e motivação da sentença...................................................................................................... 90 3.5 O princípio-garantia da individualização da pena............................... 93 3.6 A valoração das circunstâncias judicias e a garantia constitucional da individualização do apenamento................................... 94 3.7 Individualização da pena e sistema constitucional de garantias.......... 96 3.8 A importância do processo interpretativo para a individualização sancionatória.............................................................................................. 99 3.9 A necessária releitura das disposições normativas referentes à aplicação da pena....................................................................................... 103 3.10 Dosimetria da sanção penal e a importância do princípio da secularização ........................................................................................ 104 3.11 Princípio da secularização e circunstâncias judiciais........................ 110 3.12 A pena motivada como direito fundamental...................................... 116

CONCLUSÃO....................................................................................................... 119 BIBLIOGRAFIA................................................................................................... 125

9

INTRODUÇÃO

A opção pelo enfoque da compatibilidade entre os direitos fundamentais e

temas ligados à sanção penal, notadamente a função da pena e o procedimento de sua

aplicação, leva em conta uma expectativa de contextualização das regras materiais e

formais de aplicação da sanção penal com os valores decorrentes do texto

constitucional brasileiro de 1988.

Se adequado o entendimento de que a Constituição é a representação do

conjunto de valores de uma sociedade, a definição de regras e princípios deve,

necessariamente, exercer uma função. Esta vem claramente definida no § 1° do art.

5°, que prevê a eficácia imediata das regras definidoras de direitos fundamentais,

entre os quais, aqueles de natureza penal e processual com incidência direta sobre o

procedimento sancionador.

Assim, se o direito penal, embora sua natureza fragmentária, é a expressão

máxima do controle social, a sua aplicação deve levar em conta os valores

constitucionais, decorrendo, daí, a necessidade da compatibilidade da pena, enquanto

instrumento desse controle, e a motivação das decisões judiciárias em geral e, em

especial, as etapas definidas no procedimento de imposição das penas.

10

Nesse contexto, o tema escolhido, portanto, é a busca da compatibilização das

regras fundamentais, das quais se extraem valores de obrigatória obediência, com a

dogmática penal definidora da função da pena e com a própria individualização.

É claro que a escolha do temário, vinculado à análise da necessidade de

fundamentação das decisões judiciais em relação ao processo sancionador, poderia

levar a uma dissertação sem fim, considerando-se a ampla gama de assuntos que

permitem abordagem nesse contexto. Poder-se-ia partir para uma análise meramente

processual acerca do dever de fundamentar todas as decisões judiciais; em outra

direção, a análise poderia ser vinculada à própria pena, como conseqüência da

desobediência do ordenamento positivo; ainda, a averiguação poderia tentar

compreender a própria crise do direito penal, enquanto instrumento de controle

social; todavia, o que se pretende é a análise da eficácia dos direitos fundamentais em

relação ao Poder Público e, especificamente, no tocante à existência (fundamento) e à

atividade judicial de individualização da pena.

O enfoque proposto parte, portanto, de um lado, da compreensão da eficácia

das regras de direitos fundamentais e, de outro, da vinculação do poder público aos

valores constitucionais, numa seara essencialmente importante para a cidadania, visto

que abrange um dos principais direitos individuais, que é o direito à liberdade.

Partindo-se da premissa de que as regras definidoras de valores fundamentais

são de obediência obrigatória ao Poder Público, o estudo busca, num primeiro

11

momento, questionar a existência de uma vinculação entre o direito penal e o sistema

constitucional para, em seguida, depois de investigar a compatibilidade da sanção

com os valores que norteiam a Carta Fundamental, explicar a necessidade de

mudança da atuação estatal (operadores jurídicos) quanto à individualização da pena.

Esses objetivos são palpáveis em razão de que princípios constitucionais

podem restar desprezados por força de regras infraconstitucionais, algumas anteriores

ao vigente texto da Carta Maior. Essa análise é importante, pois, como salientado, há

um descompasso legislativo entre os dispositivos do Código Penal, especialmente os

artigos 59 e 68, e a Constituição Federal, que é posterior.

Assim, a questão central a ser respondida é, sabendo-se da prevalência das

regras fundamentais sobre a legislação infraconstitucional, como resolver o aparente

conflito que se estabelece, por exemplo, de um lado, com o princípio da secularização

e, de outro, com a legislação ordinária que determina sejam consideradas situações

vinculadas ao autor (e não ao fato criminoso) na aplicação da pena.

Parece inegável, portanto, a necessidade de ‘depuração interpretativa’ da

legislação infraconstitucional, em razão dos valores constitucionalizados.

O objetivo geral é compreender a influência do positivismo

infraconstitucional como fator de impedimento para a efetivação de valores

constitucionais em matéria penal. De outra parte, o objetivo específico é entender se a

12

função da pena, preconizada pela dogmática, guarda compatibilidade com os valores

adotados pela Constituição Federal e se o procedimento de aplicação

(individualização) da pena prescinde da necessidade de releitura das regras penais em

face do novo paradigma constitucional.

A análise procedida é justificada pela necessidade de efetivação dos valores

constitucionais, a partir da concepção (modelo) de Estado delineada pela Constituição

de 1988 e pela conseqüente imposição de releitura da legislação vigente, o que, como

salientado, exige mudança dos operadores jurídicos.

Como acentuado, duas principais situações justificam o desenvolvimento do

estudo: a primeira, o descompasso normativo entre a legislação penal específica sobre

o tema e o texto constitucional de 1988; a segunda, a necessidade de efetivação

(judicial) dos valores fundamentais, tarefa obrigatória para o Poder Público,

especialmente para o Poder Judiciário.

É conhecimento corrente que a dogmática penal exerce importante papel na

compreensão do direito penal. Assim, apesar da natural crítica que surge quanto às

fontes bibliográficas, que não induzem à produção de novo conhecimento, mas

reelaboração conceitual, foi utilizada, predominantemente, essa forma de pesquisa,

em razão da grande quantidade de ensinamentos constantes de livros e outras

publicações referidas. As fontes para a pesquisa empreendida foram a legislação,

13

constitucional e infraconstitucional pertinentes, o conhecimento dogmático,

considerada a doutrina específica.

O tipo de pesquisa empreendida para o desenvolvimento do texto foi a

racional (não-experimental), com procedimento analítico-descritivo, procedendo-se

dedutivamente a partir dos ensinamentos adotados como referencial.

Sabe-se que toda interpretação é sempre decorrente de um processo de

atribuição de sentido, jamais produto de subsunção, que nada mais é do que a

repristinação de um processo de dedução.

Assim, dentro de uma perspectiva de percepção crítica do direito penal, na

linha de sua releitura, fica vinculado o operador a questionar a validade das normas

punitivas (positivismo formal), a partir da ordem constitucional, num Estado

Democrático de Direito.

O que se constata, então, é a necessidade uma efetiva e profunda releitura da

função do direito penal, especialmente no tocante ao papel da pena, em face da nova

ordem constitucional.

Assim, a proposta é, sempre acentuando a relevância dos preceitos

constitucionais, reentender aspectos da teoria da pena, especialmente na busca uma

nova justificativa (papel) para a finalidade da pena e para a individualização da

14

sanção penal, a partir do sistema das garantias e valores constitucionalizados. Não

mais é suficiente a mera repetição dos dizeres do texto legislativo; é imprescindível,

ao contrário, buscar a compatibilidade de tais dispositivos a partir dos valores

constitucionais.

A contribuição da pesquisa empreendida, para estudiosos da matéria e

operadores jurídicos, será de acentuar a necessária correspondência entre esse aspecto

do direito penal e a Constituição, além de estimular os construtores do direito a

empreenderem o necessário afastamento do positivismo formal, com a imprescindível

análise da eficácia das leis vigentes. As leis devem ser compreendidas a partir dos

valores constitucionais.

Por fim, de se enfatizar que a temática abordada se insere no contexto do

Programa de Pós-Graduação em Direito da Ulbra, considerando-se que uma das

linhas de pesquisa versa sobre Desenvolvimento e Proteção dos Direitos

Fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito (linha II).

15

1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E ORDEM CONSTITUCIONAL

1.1 A exigência de efetividade dos direitos fundamentais

Discorrer sobre direitos fundamentais na ordem constitucional é identificar,

no momento atual do ordenamento jurídico brasileiro, o aparente conflito entre os

valores consagrados constitucionalmente e algumas práticas do Poder Público,

inclusive do Poder Judiciário, que não guardam completa adequação com o modelo

constitucional adotado.

Essa identificação permite, desde um primeiro momento, avançar sobre a

dimensão que os valores constitucionais devem emprestar ao ordenamento

sancionador, quer como fonte propulsora ou como limite para o direito penal.1

Nesse contexto, a necessária releitura do direito penal, a partir da Carta

Constitucional, é tarefa que deve ser efetivada num ambiente de mudanças de modelo

de estado, notadamente da passagem do modelo de estado liberal para o estado

democrático de direito, que exige de todos, inclusive dos particulares, a vinculação

aos direitos fundamentais.

1Nesse sentido, T AVARES, Juarez, quando apresenta a obra de PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 11, identifica que “na verdade, a relação entre Direito Penal e Constituição, independentemente da formação e do adestramento dos seus formuladores, tem sido tratada sob o pressuposto de que a lei maior dita as regras do processo criminalizador, tanto no sentido negativo quanto positivo”.

16

Analisando as variáveis que demonstram a limitada influência das cartas

constitucionais sobre os modelos penais, ensina Francesco C. Palazzo2 que podem ser

elencadas duas espécies de causas que contribuem para o fenômeno:

[...] de um lado, as atinentes a uma certa resistência e capacidade

do sistema existente às transformações político-constitucionais; de

outro lado, as causas pertinentes a uma espécie de escassa

vitalidade e incidência de forças que deveriam ativar a

transformação.

Na primeira hipótese, à parte a existência das chamadas ‘constantes

penalísticas’, vale dizer, de um núcleo central do direito criminal,

invariável em todos os tempos e em todas as latitudes, não se pode

olvidar a relevante polivalência de algumas categorias penalísticas

(a legalidade, em si mesma, por exemplo) capazes de apagar a

exigência de fundo de regimes político-constitucionais, ainda que

profundamente diferenciados [...].

Na segunda hipótese, há de se levar em conta, antes de tudo, uma

certa dificuldade, senão relutância, da doutrina penalística,

sobretudo nos anos imediatamente sucessivos à constituição, a

desenvolver o trabalho de concretização dos valores

constitucionais, premissa indispensável para a sua penetração no

sistema penal.

Como visto, o processo de concretização dos valores fundamentais, em

relação ao direito penal, é tarefa ainda incompleta, cujas causas não podem ser

2 PALAZZO, Francesco C. Valores Constitucionais e Direito Penal. Um estudo comparado. Tradução

17

aprofundadas na limitada via deste estudo; todavia, a falta de compreensão da

eficácia desses valores, decorrente da própria concepção de unidade e efetividade

constitucional, pode ser apontada como uma das causas para a existente falta de

consonância.

Portanto, discorrer sobre direitos fundamentais na ordem constitucional é

entender a razão da necessária mudança de postura dos operadores jurídicos,

especialmente da área penal, quando o sistema jurídico deve ser concebido a partir da

constituição e não da legislação infraconstitucional.

Como se verá, na seara penal, a exigência de mudança de postura é mais

significativa, em razão do campo de incidência do direito repressivo e, dentro deste,

no tocante ao procedimento do sancionamento. Isso ocorre, continua a ensinar

Palazzo,3 pela magnitude da transformação exigida, porque

[...] o advento da Constituição comporta uma vera e própria

transformação das relações tradicionais entre ciência penal e

legislação penal: uma situação, por assim dizer, de subordinação da

primeira à segunda, imposta até pelo princípio da legalidade e pelo

peso de uma tradição científica de tecnicismo jurídico, passando-se,

em conseqüência, a adotar conceitos da literatura penalística

tendentes a possibilitar as decisões de fundo, da Constituição, ‘úteis

ao legislador’.

de Gerson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 20. 3 PALAZZO, Francesco C. Op.cit., p. 21.

18

A função da pena e a forma de sua aplicação, portanto, a partir da ordem

constitucional, devem merecer um novo enfoque, voltado à efetivação dos direitos

fundamentais.

A compreensão, todavia, da necessidade da efetivação dos direitos

fundamentais na seara penal passa pelo entendimento do próprio sistema

constitucional, quanto à aplicabilidade sobre todo o ordenamento e quanto ao

procedimento para a solução de conflitos diante da possível colisão entre os vários

valores consagrados.

1.2 Direitos Fundamentais e sistema constitucional

É sabido que a Constituição brasileira de 1988 atribuiu significado ímpar aos

direitos individuais. Assim, a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no

início do texto constitucional indica a clara intenção de lhes emprestar significado

especial. A amplitude conferida ao texto, cujo artigo 5° se desdobra em quase uma

centena de incisos, reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte

quis outorgar a esses direitos.

É nesse contexto, em que a idéia de que valores constitucionais devem ter

eficácia imediata, que é ressaltada a vinculação necessária dos órgãos estatais a esses

direitos e o seu dever de observação.

19

O texto da constituição reconheceu, também, que os direitos fundamentais são

elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando,

por isso, incabível qualquer reforma constitucional tendente à sua supressão. A

propósito, esclarece Ingo Sarlet:4

Em que pese a circunstância de que situação topográfica

do dispositivo poderia sugerir uma aplicação da norma contida no

art. 5°, § 1°, da CF apenas aos direitos individuais e coletivos (a

exemplo do que ocorre com o § 2° do mesmo artigo), o fato é que

este argumento não corresponde à expressão literal do dispositivo,

que utiliza a formulação genérica ‘direitos e garantias

fundamentais’, tal como consignada na epígrafe do Título II de

nossa Lex Suprema, revelando que, mesmo em se procedendo a

uma interpretação meramente literal, não há como sustentar uma

redução do âmbito de aplicação da norma a qualquer das categorias

específicas de direitos fundamentais consagrados em nossa

Constituição, nem mesmo aos – como já visto, equivocadamente

designados – direitos individuais e coletivos do art. 5° [...]. Sem

que se vá aprofundar aqui este aspecto, entendemos suficiente –

pelo menos no que diz com o postulado da aplicabilidade imediata

a todas as normas de direitos fundamentais – uma remissão aos

demais argumentos por nós deduzidos, que consideramos ainda

serem idôneos para afastar a pretendida exegese restritiva.

4 SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 248.

20

Assim, se a intenção é atribuir aos direitos individuais eficácia superior à das

normas meramente programáticas, uma primeira operação é identificar-se,

precisamente, os limites de cada direito, isto é, a exata definição do seu âmbito de

proteção.

Tal tarefa, como acentuado, é de relevância extrema para o direito penal, pelo

seu caráter sancionador e porque os direitos elencados no artigo 5° vinculam a

atuação estatal.

Como decorrência, não só o legislador, mas também os demais órgãos estatais

com poderes normativos, judiciais ou administrativos cumprem uma importante

tarefa na realização dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, a Constituição Federal, em seu art. 5°, parágrafo 1°, determina

a aplicabilidade dos direitos previstos na ordem constitucional, embora seja possível

diferenciá-los. Para tanto, esclarece novamente Ingo Sarlet5 que a aplicabilidade dos

direitos individuais, vinculados à liberdade, independe de qualquer outro comando.

O Constituinte de 1988, além de ter consagrado

expressamente uma gama variada de direitos fundamentais sociais,

considerou todos os direitos fundamentais como normas de

aplicabilidade imediata. Além disso, já se verificou que boa parte

dos direitos fundamentais sociais (assim denominadas liberdades

5 SARLET, Ingo. Op. cit, p. 255.

21

sociais) se enquadra, por sua estrutura normativa e por sua função,

no grupo dos direitos de defesa, razão pela qual não existem

maiores problemas em considerá-los auto-aplicáveis, mesmo de

acordo com os padrões da concepção clássica referida. [...]. Outros

direitos fundamentais há, de modo especial – mas não

exclusivamente – entre os direitos sociais, que, em virtude de sua

função prestacional e da forma de sua positivação, se enquadram na

categoria das normas dependentes de concretização legislativa, que

– a exemplo do que já foi visto – podem ser também denominadas

de normas dotadas de baixa densidade normativa. Ainda que para

estes direitos fundamentais também se aplique o princípio da

aplicabilidade imediata, não há, por certo, como sustentar que tal se

dê de forma idêntica aos direitos de defesa [...].

Nessa perspectiva, embora possam ser distinguidos os chamados princípios de

direito penal constitucional dos valores constitucionais pertinentes à matéria penal,

como ensina Palazzo6, certo é que, pela posição ocupada no caderno constitucional, a

força vinculante de tais disposições não permite que o operador penal os desconheça,

inexistindo razões para a subsistência do abismo entre as respeitáveis concepções

dogmáticas do direito penal e os valores consagrados pela ordem constitucional.

6 PALAZZO, Francesco C. O.cit., p. 22.

22

1.3 A dupla perspectiva dos direitos fundamentais: elementos objetivos

fundamentais da comunidade ou direitos subjetivos individuais

1.3.1 Dupla perspectiva dos direitos fundamentais

A partir da perspectiva inicial, delineada neste estudo, acerca da eficácia dos

direitos fundamentais, é necessário aprofundar-se a compreensão dos direitos

fundamentais sob dupla perspectiva: a perspectiva objetiva, vinculada ao seu

conteúdo material, e a perspectiva subjetiva, relacionada com a possibilidade da

obtenção de tutela jurisdicional específica para a sua concretização.

A importância dessa compreensão decorre que, relativamente ao direito penal,

as disposições constitucionais relativas à matéria penal determinam uma profunda

modificação sistemática. Comentando esse aspecto, ensina Palazzo:7

O grau e a natureza de influência exercida pelos valores e

princípios constitucionais sobre o ordenamento penal dependem

não somente do conteúdo desses princípios (se de direito penal

constitucional, se extra-penais, embora influentes na matéria

disciplinada), mas, por igual, do modo como são postos tais

princípios na Constituição.

7 PALAZZO, Francesco C. Op. cit., , p. 27.

23

Dessa forma, justificável a análise da perspectiva sob o enfoque de que os

princípios constitucionais de direito penal ou os valores constitucionais pertinentes à

matéria penal ingressam no ordenamento jurídico.

1.3.2 Perspectivas de direitos fundamentais e ordem constitucional

Na lição de Ingo Sarlet,8 a questão da dupla face dos direitos fundamentais

não é matéria estranha ao direito pátrio, onde o tema já encontra receptividade, vez

que a problemática foi objeto de oportuna referência na relativamente recente obra de

Raquel Denise Stumm,9 embora não tenha sido analisada com maior profundidade e

sob todos os seus ângulos, em virtude do tema específico da investigação da referida

autora. A propósito, há de se referir que também Toledo Barros10 faz alusão à dupla

perspectiva objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais. Nesse mesmo sentido, de

atentar-se para a advertência de Sarlet,11 esclarecendo que foi

Bonavides, um dos expoentes do constitucionalismo

nacional, quem, com o pioneirismo e profundidade que lhe são

peculiares, mais detidamente enfrentou o tema entre nós, centrando

sua análise na dimensão institucional dos direitos fundamentais e,

num segundo momento de sua obra, no problema de sua

interpretação [...].

8SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 145. 9Em Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 124. 10BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília: Editora Brasília Jurídica, 1996, p. 128 e seguintes. 11SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 145.

24

Logo, justificável a distinção existente entre perspectiva objetiva e subjetiva,

como tema central para o entendimento da eficácia dos direitos fundamentais.

1.3.3 Perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais

Uma primeira abordagem sobre a perspectiva objetiva dos direitos

fundamentais deve analisar essa questão conceitual: a advertência feita por Sarlet,

que refere ter Robert Alexy elencado várias expressões ligadas à dimensão objetiva

dos direitos fundamentais e que foram extraídas da doutrina e da jurisprudência:

ordem objetiva de valores, sistema de valores, decisões constitucionais fundamentais,

direitos fundamentais como normas objetivas, diretrizes e impulsos. Em que pese o

uso habitual da terminologia “dimensão objetiva e subjetiva”, sustenta Sarlet que

convém ressaltar que, com o objetivo de evitar eventuais equívocos relacionados ao

problema das diversas dimensões (como sucedâneo do termo “gerações”) dos direitos

fundamentais, é preferível utilizar a expressão “perspectiva objetiva e subjetiva”.12

Um segundo aspecto a ser considerado é o famoso precedente no Direito

Germânico, a partir da Lei Fundamental de 1949 e decisão de 1958 da Corte Federal

Constitucional. Como bem menciona Sarlet,13 lembrando E. Denninger, AK I, p.

189, no segundo volume da coletânea oficial de suas decisões (BverfGE 2, 1/12), o

Tribunal Federal Constitucional já havia feito referência, neste caso, reportando-se à

12 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 146. 13 Idem, p. 147.

25

Constituição na sua totalidade, a uma ordem de valores vinculativa de todos

os órgãos estatais, baseada principalmente nos valores fundamentais na dignidade

humana, na liberdade e na igualdade.

Também não pode ser desconsiderada a posição de Peres Luño,14 para quem,

na lição de Sarlet, 15 devemos ter em conta que

Os direitos fundamentais passaram a apresentar-se no

âmbito da ordem constitucional como um conjunto de valores

objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes

públicos, e não apenas garantias negativas dos interesses

individuais, entendimento este, aliás, consagrado pela

jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol praticamente

desde o início de sua profícua judicatura.

14PÉRES LUÑO, Antonio Henrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. Madrid: Editora Tecnos, 1999, p. 298/299. Na obra, o escritor Espanhol traça a distinção entre princípios e valores constitucionais e apresenta vários modelos de interpretação dos direitos fundamentais, a partir de uma teoria positivista, sendo que os direitos fundamentais podem ser interpretados como a)garantias da autonomia individual; b)garantias jurídicas essenciais; c)categorias jurídico-formais e, d)categorias independentes. 15SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 148, acrescentando nota onde destaca o reconhecimento da dupla dimensão dos direitos fundamentais: “Em face de sua relevância para o desenvolvimento, fora da Alemanha, do entendimento de que os direitos fundamentais apresentam uma dupla dimensão objetiva e subjetiva, passamos a transcrever os trechos do acórdão prolatado em 1981 STC 25/1981, FJ 5º), tal como citado na coletânea de F. Rubio Llorente (Org.), Derechos Fundamentales y Princípios Constitucionales, p. 77: ´En primer lugar, los derechos fundamentales son derechos subjetivos, derechos de los ciudadanos no sólo en cuanto derechos de los ciudadanos en sentido estricto, sino en cuanto garantizan un status jurídico o la libertad en un ámbito de existencia. Pero al propio tiempo, son elementos esenciales de un ordenamiento objetivo de la comunidad nacional, en cuanto ésta se configura como marco de una convivencia humana justa y pacífica, plasmada históricamente en el Estado de derecho y, más tarde, em el Estado social y democrático de derecho, según la fórmula de nuestra Constitución (...) esta doble naturaleza de los derechos fundamentales (...) se recoge em el art. 10.1 de la CE`. Cumpre aduzir, em homenagem à completude, que o artigo 10.1 da Constituição Espanhola de 1978 reza que ´La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarollo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del ordem político y de la paz social`.”

26

Com base nessas preliminares, é possível construir o entendimento, a partir da

lição de Sarlet,16 de que

com o reconhecimento de uma perspectiva objetiva dos direitos

fundamentais não se está fazendo referência ao fato de que

qualquer posição jurídica subjetiva pressupõe, necessariamente, um

preceito de direito objetivo que a preveja.

O aspecto central que distingue a dimensão objetiva dos direitos

fundamentais, em relação à faceta subjetiva, é a chamada mais valia jurídica,17 que

consiste

num reforço de juridicidade das normas de direitos fundamentais,

mais valia esta que, por sua vez, pode ser aferida por meio das

diversas categorias funcionais desenvolvidas na doutrina e na

jurisprudência, que passaram a integrar a assim denominada

perspectiva objetiva dos direitos fundamentais.

Com a compreensão anterior, é possível avançar para aferir a relação entre

direitos subjetivos individuais e elementos objetivos fundamentais: A faceta subjetiva

dos direitos fundamentais necessita de preceito objetivo que os preveja. A perspectiva

objetiva dos direitos fundamentais representa, como já referido, uma mais valia

16SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p.. 148. 17Idem, p. 148.

27

jurídica (reforço de juridicidade das normas de direitos fundamentais), também na

lição de J. C. Vieira de Andrade.18

Em síntese, podem ser destacados alguns aspectos para compreensão da

dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que são, em primeiro lugar, a relação

entre regras e perspectiva subjetiva e entre princípios e dimensão objetiva. Vieira de

Andrade faz a distinção entre dimensão valorativa (axiológica) e dimensão jurídica

estrutural da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais.19 Nesse sentido, de

ressalvar-se a dimensão comunitária (e não-individualista) dos Direitos Fundamentais

e a decorrência de “efeitos jurídicos autônomos”20 para além da perspectiva subjetiva.

O reconhecimento dos direitos subjetivos individuais está vinculado ao

reconhecimento pela comunidade e, nesse sentido, a perspectiva objetiva dos direitos

fundamentais justifica restrições aos direitos individuais, com base no interesse

comunitário prevalente.

Por outro lado, deve ser acentuada a chamada eficácia dirigente21 em face do

Poder Público, que está obrigado na concretização dos direitos fundamentais.

18ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Editora Almedina, 1998, p. 165. 19Idem, pág. 145. 20SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 150. 21SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 151.

28

Também, por decorrência, nessa dimensão, os direitos fundamentais servem

como parâmetro da constitucionalidade da lei e demais atos normativos22. E, ainda,

projetam efeitos potencialmente autônomos,23 caracterizados pela eficácia irradiante,

pelo reconhecimento de deveres de proteção pelo Estado contra agressões feitas até

por particulares e pela definição de parâmetros para a criação e constituição de

organizações estatais e para regras procedimentais.

Por fim, de acentuar-se a posição defendida por Sarlet,24 de que o presente

processo de valorização dos direitos fundamentais na sua perspectiva de normas de

direito objetivo foi provocada pela chamada “transição do modelo de Estado Liberal

para o do Estado Social e Democrático de Direito” e também pela

conscientização da insuficiência de uma concepção dos direitos

fundamentais como direitos subjetivos de defesa para a garantia de

uma liberdade efetiva para todos, e não apenas daqueles que

garantiram para si sua independência social e o domínio de seu

espaço de vida social.

A partir dessa compreensão, o próximo passo é o entendimento dos direitos

fundamentais pela sua faceta subjetiva.

22ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. cit., p.. 167/169. Refere aspectos do chamado efeito de inconstitucionalidade e do efeito de interpretação dos direitos fundamentais a partir de sua dimensão objetiva. 23 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p.. 152. Essa dimensão de efeitos decorre da aceitação do modelo apresentado por J. C. Vieira de Andrade, considerada a perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais como um reforço da eficácia normativa dos direitos fundamentais. 24Idem, p. 155/156.

29

1.3.4 A perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais

Uma abordagem sobre a perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais

passa pela necessária crítica conceitual. Nesse sentido, a ponderação de J. Miranda

sobre a terminologia “direito público subjetivo”, sustentando Sarlet,25 de que não

parece adequado utilizar

a expressão ´direito público subjetivo' , tão querida na doutrina

nacional e até mesmo na estrangeira, já que esta designação, além

de anacrônica e superada, não se revela afinada com a realidade

constitucional pátria, uma vez que atrelada à concepção positivista

e essencialmente estatista dos direitos fundamentais na qualidade

de direitos de defesa do indivíduo contra o Estado, típica do

liberalismo.

Já a posição de Vieira de Andrade26 revela que “o direito subjectivo exprime

a soberania jurídica do indivíduo, quer garantindo-lhe certa liberdade de decisão,

quer tornando efectiva a afirmação do ‘poder do querer’ que lhe é atribuída.” A

adoção do conceito de direito subjetivo, ligada ao papel central que reconhecemos a

esta dimensão, exprime a opção por uma idéia de liberdade mais próxima de Locke

(vontade) do que de Spinosa ou Hegel (racionalidade). “Poder (disponibilidade),

25SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 156. 26ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. cit., p. 163.

30

liberdade (vontade) e exigibilidade (efectividade) são, deste modo, elementos básicos

para a construção do conceito de direito subjectivo.”27

Ensina Sarlet,28 também que, em geral, a vinculação feita aos direitos

fundamentais como direitos subjetivos está ligada a sua exigibilidade. Assim

esclarece:

de modo geral, quando nos referimos aos direitos fundamentais

como direitos subjetivos, temos em mente a noção de que ao titular

de um direito fundamental é aberta a possibilidade de impor

judicialmente seus interesses juridicamente tutelados perante o

destinatário (obrigado). Desde logo, presente a idéia de que o

direito subjetivo consagrado por uma norma de direito

fundamental se manifesta por meio de uma relação trilateral,

formada entre o titular, o objeto e o destinatário do direito. Neste

sentido, o reconhecimento de um direito subjetivo está atrelado “à

proteção de uma determinada esfera de auto-regulamentação ou

de um espaço de decisão individual; tal como é associado a um

certo poder de exigir ou pretender comportamentos ou de produzir

autonomamente efeitos jurídicos.

A partir dessa visão inicial da faceta objetiva dos direitos fundamentais, é

possível esboçar a proposta classificatória de direitos fundamentais na condição de

27 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 164. 28 Idem, p. 157.

31

direitos subjetivos, apresentada por Sarlett,29 com base em Alexy: partindo da

distinção efetuada por Bentham entre rights to services, liberties and powers, edifica

sua concepção de direitos fundamentais (o que chamou de sistema das posições

jurídicas fundamentais) em sua perspectiva subjetiva, com base no seguinte tripé de

posições fundamentais, que, em princípio, pode integrar um direito fundamental

subjetivo: em primeiro lugar, direitos fundamentais são direitos a qualquer coisa, que

englobariam os direitos a ações negativas e positivas do Estado e/ou particulares e,

portanto, os clássicos direitos de defesa e os direitos a prestações; em seguida,

liberdades, no sentido de negação de exigências e proibições e por fim, os poderes,

no sentido de competências ou autorizações.

Outro aspecto que merece consideração é acerca do grau de exigibilidade dos

direitos fundamentais na perspectiva subjetiva: Aliado à noção de direito subjetivo

em sentido amplo, está, de outra banda, o reconhecimento de determinado grau de

exigibilidade (ou justiciabilidade, se preferirmos), que, no entanto, é de intensidade

variável e dependente da normatividade de cada direito fundamental. Sustenta Sarlet30

com base em estudo realizado, que

para traçarmos uma distinção suficientemente precisa entre a

perspectiva objetiva e subjetiva (sem prejuízo da possibilidade de

uma eventual subjetivação de posições em princípio limitadas à

juridicidade meramente objetiva), consideramos necessária a

clarificação do significado desta exigibilidade, já que, de certa

29SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 158. 30Idem, p. 158/159.

32

forma, a mera possibilidade de suscitar-se judicialmente o controle

da constitucionalidade de um ato normativo não deixa de

constituir, sob o ângulo de uma efetivação via judicial, uma faceta

da subjetivação inerente a todas as normas constitucionais na

condição de direito objetivo. Neste contexto, quando – no âmbito

da assim denominada perspectiva subjetiva – falamos de direitos

fundamentais subjetivos, estamo-nos referindo à possibilidade que

tem o seu titular (considerado como tal a pessoa individual ou ente

coletivo a quem é atribuído) de fazer valer judicialmente os

poderes, as liberdades ou mesmo o direito à ação ou às ações

negativas ou positivas que lhe foram outorgadas pela norma

consagradora do direito fundamental em questão.

Em síntese, quanto à relação entre as perspectivas subjetiva e objetiva dos

direitos fundamentais, de sustentar-se a prevalência da primeira, apoiados na lição de

Alexy,31 sendo que Sarlet32 enfatiza que a tese da presunção em favor da perspectiva

jurídico-subjetiva encontra sustentação em dois argumentos.

Assim, sustenta o renomado jusfilósofo, a finalidade

precípua dos direitos fundamentais (mesmo os de cunho coletivo)

reside na proteção do indivíduo, e não da coletividade, ao passo que

a perspectiva objetiva consiste, em primeira linha, numa espécie de

reforço da proteção jurídica dos direitos subjetivos. Já o segundo

31Em Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. 1993, p. 173 e seguintes. No Capítulo IV de sua clássica obra, desenvolve Alexy a construção dogmática dos direitos fundamentais como direitos subjetivos, demonstrando a vinculação entre direitos subjetivos e questões normativas, empíricas e analíticas e enfatizando a tríplice divisão dos direitos fundamentais em: a) direitos a algo; b) liberdades; c) competências. 32SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 159/160.

33

argumento (que Alexy designa de argumento da otimização) diz

com o caráter principiológico dos direitos fundamentais,

destacando-se o fato de que o reconhecimento de um direito

subjetivo significa um grau maior de realização do que a previsão

de obrigações de cunho meramente objetivo.

Em prosseguimento, Sarlet,33 de acordo com este entendimento e na plástica

formulação de J.J. Gomes Canotilho, continua esclarecendo que

os direitos fundamentais são, em primeira linha, direitos

individuais, do que resulta a constatação de que, em se encontrando

constitucionalmente protegidos como direitos individuais, esta

proteção dar-se-á sob a forma de direito subjetivo.

E, por derradeiro, o predomínio da perspectiva subjetiva encontra sua

justificativa no valor outorgado à autonomia individual, na qualidade de expressão da

dignidade da pessoa humana.34 Sustenta Sarlet que

esta presunção em favor da perspectiva subjetiva (individual) não

exclui a possibilidade, inclusive reconhecida pela nossa

Constituição, de atribuir-se a titularidade de direitos fundamentais

subjetivos a certos grupos ou entes coletivos que, todavia, e em que

pese a distinção entre as noções de pessoa e indivíduo, gravitam,

33 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 160. 34 Idem, p. 160.

34

em última análise, em torno da proteção do ser humano em sua

individualidade.

Portanto, a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais é o canal que

permite a titularidade de direitos fundamentais a outros titulares que não o ser

humano, decorrendo, daí, na seara penal, a compatibilidade constitucional da

proteção à pessoa jurídica.

1.3.5 Direitos fundamentais e ordem jurídica

Da breve análise realizada, pode ser compreendido que a existência de dupla

dimensão (objetiva e subjetiva) dos direitos fundamentais encontra eco em todas as

construções teóricas esboçadas a partir do constitucionalismo da segunda metade do

século XX.

A principal nota da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é que estes

não estão limitados ao papel de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo

frente ao Estado, constituindo-se decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da

Constituição, com eficácia sobre todo o ordenamento jurídico. É por isso que a

dimensão objetiva dos direitos fundamentais representa aquilo que Vieira de Andrade

chama de mais valia jurídica em relação à faceta subjetiva dos direitos fundamentais.

35

Quanto à dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, prevalente sobre a

faceta objetiva, compreende a noção de exigibilidade, por parte de um titular, da

concretização de um direito ou valor constitucional por parte do destinatário. Na

dimensão subjetiva, os direitos fundamentais se conformam numa relação trilateral:

titular, objeto e destinatário do direito a ser implementado.

Por fim, a partir dessa distinção, a vinculação entre a dimensão objetiva e

subjetiva dos direitos parece clara, na medida em que os direitos individuais,

enquanto direitos fundamentais objetivados na Constituição, são protegidos sob a

forma de direito subjetivo.

Assim, em decorrência, da força vinculante dos valores da Constituição e da

sua proteção sob forma de direitos subjetivos, parece natural a exigência da

vinculação do sistema de direito penal, especialmente no tocante à criminalização e

ao sancionamento a tais valores, sob pena de negar-se a eficácia da própria

Constituição.

1.4 Da necessária vinculação do Direito Penal aos valores

1.4.1 Problemas de eficácia dos direitos fundamentais

A partir da compreensão do papel e da dimensão dos direitos fundamentais, na

estreita via deste estudo, resta a análise do problema da colisão de direitos

36

fundamentais, considerada a extensão do rol constante no artigo 5° da Carta Magna e

a necessidade de vincular o direito penal a tais valores.

Essa vinculação é defendida por Francesco C. Palazzo, sob a denominação de

vias de penetração,35 quando esclarece que

A ´penetração´ dos valores constitucionais no corpo do

sistema penal (como, de resto, no de qualquer outro ramo do

ordenamento) pode ocorrer mediante a ´via legislativa´, por

intermédio de leis de atuação constitucional, ou pela ´via

jurisdicional´, entendendo-se como tal não apenas o trabalho de

adequação do magistrado a quanto se contenha nas malhas da lei,

mas, principalmente, a decisiva atividade Constitucional. Ora, se a

primeira via não apresenta problemas particulares no campo penal,

a segunda põe-se numa problemática relação a propósito do

princípio fundamental da estrita legalidade dos delitos e das penas.

A questão assume relevância, na linha do enfrentamento que aqui se pretende

fazer, notadamente quando se propõe a implementação de princípios e valores

constitucionais sobre a legislação penal infraconstitucional, surgindo, daí, a natural

necessidade de um ferramental adequado para o natural confronto entre a legislação

anterior ao atual texto constitucional e, também, entre o princípio da legalidade e

demais princípios e valores constitucionais, atinentes ao direito penal.36

35 Em Op. cit., p. 30. 36 PALAZZO, Francesco C. Op. cit., , p. 31. A propósito, esclarece que os grandes problemas a respeito da legalidade não surgem com a formulação da norma penal, mas, fundamentalmente, em relação à incidência dos valores constitucionais sobre uma regra penal adequadamente (legalmente) produzida.

37

Nesse ponto, ainda que brevemente, convém analisar como a teoria

constitucional posiciona o possível conflito entre princípios e valores da constituição

e entre estes e a legislação (regras).

Além disso, a matéria é relevante em qualquer estudo sobre direitos

fundamentais, considerando-se que, segundo Wilson Antônio Steinmetz, a chamada

Teoria Estrutural de Alexy não é uma teoria particular ou regional, mas, ao contrário,

uma referência obrigatória no estudo da matéria.37

A dimensão analítica da teoria de Alexy, segundo Steinmetz,38 tem primazia,

mas não guarda exclusividade. A propósito, ensina:

A teoria estrutural é, primeiramente, uma teoria analítica,

porque investiga os conceitos fundamentais no âmbito dos direitos

fundamentais, a influência destes direitos no sistema jurídico e a

fundamentação dos direitos fundamentais. Sendo a jurisprudência

do TCF a matéria mais importante, é uma teoria empírico-analítico.

Por fim, orientada pela pergunta sobre qual é a decisão correta

desde o ponto de vista dos direitos fundamentais e da

fundamentação racional destes direitos, a teoria estrutural é uma

37STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 120. Sobre o tema, ensina que a chamada teoria estrutural dos direitos fundamentais apresenta-se, primeiramente, como uma teoria dogmática, que tem por pressuposto um determinado modelo de ciência stricto sensu; para o modelo, a dogmática jurídica tem três dimensões, que são a analítica, a normativa e a empírica. 38 Idem, p. 121.

38

teoria normativo-analítico. A dimensão analítica tem primazia, mas

não exclusividade. Tal primazia se justifica porque ‘la claridad

analítico-conceptual es una condición elemental de la racionalidad

de toda ciencia’.

Assim, a base da teoria estrutural, como parte geral da dogmática dos direitos

fundamentais, seria constituída pela teoria dos princípios e a teoria das posições

jurídicas básicas.

Para Steinmetz, a imprescindibilidade da teoria estrutural decorre da sua

fundamental importância para a construção de um modelo de dogmática dos direitos

fundamentais,39 considerando-se que seu objeto são justamente os direitos

fundamentais. Nesse sentido:

Como já mencionado, a teoria estrutural de Alexy tem

como objeto a LF. Contudo, a teoria dos princípios e a teoria das

posições jurídicas básicas dão à teoria estrutural um caráter de

universalidade, um caráter paradigmático. Ela é uma teoria

adequada para constituições de Estados Democráticos de Direito

que possuam um catálogo de direitos fundamentais.

Para a investigação que aqui se desenvolve, nuclear é a

teoria dos princípios. Sem ela não é possível solucionar

adequadamente o problema da colisão de direitos fundamentais.

39STEINMETZ, Wilson Antônio. Op. cit., p. 122.

39

Ademais, presentemente, a teoria de Alexy apresenta-se como indispensável

para qualquer compreensão sobre eficácia de direitos constitucionais.

1.4.2 A teoria dos princípios de Robert Alexy Sem dúvida, uma das grandes contribuições de Robert Alexy para o

desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais foi estabelecer

pressupostos para a distinção entre princípios e regras. A propósito, ensina

Steinmetz:40

Segundo Alexy, na análise da estrutura das normas de

direitos fundamentais, para a teoria estrutural dos direitos

fundamentais, a principal distinção teórico-estrutural é a distinção

entre regras e princípios. Com ela, é possível a formulação de uma

teoria dos limites, uma teoria satisfatória da colisão e uma teoria

sobre o papel dos direitos fundamentais no sistema jurídico. Além

disso, essa distinção teórico-estrutural constitui o marco de uma

teoria normativo-material dos direitos fundamentais e, assim,

condição para a resposta ao problema da racionalidade no âmbito

dos direitos fundamentais.

Todavia, são necessários cuidados para a correta compreensão acerca da

distinção proposta. Assim, esclarece:41

40STEINMETZ, Wilson Antônio. Op. cit., p. 123. 41 Idem, p. 124.

40

Embora a distinção lógica entre regras e princípios não

seja uma novidade, Alexy identifica um certo grau de confusão e

polêmica por causa da insuficiência dos critérios utilizados para a

distinção, tais como: grau de generalidade, de determinabilidade,

referência a valores, referência à idéia de direito, importância para

o sistema jurídico, etc. Daí a necessidade de encontrar um critério

que permita uma distinção clara e precisa entre regras e princípios.

Alexy esposa a tese de que entre as normas-princípios e as

normas-regras existe não só uma diferença gradual mas também

qualitativa. Para ele, "el punto decisivo para la distinción entre

reglas y principios es que los principios son normas que ordenan

que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las

posibilidades jurídicas y reales existentes". São mandatos de

otimização que podem ser realizados em diferentes graus. Em

contrapartida, ‘[...] las regIas son normas que sólo pueden ser

cumplidas o no. Si una regIa es válida, entonces de hacerse

exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las

reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y

jurídicamente posible’.

Nessa linha, a ponderação surge como valor imprescindível para a solução de

um confronto entre princípios, cuja eficácia não pode ser negada. É por isso que

Steinmetz42 continua a ensinar que

42STEINMETZ, Wilson Antônio. Op. cit., p. 124.

41

O fato de que a realização dos princípios depende das

possibilidades jurídicas (além das fáticas), ou seja, é determinada

pelo peso dos princípios opostos, implica que os princípios não só

são suscetíveis mas necessitam de ponderação. As regras, por sua

vez, não são suscetíveis nem necessitam de ponderação. A

subsunção é o modo típico de aplicação de regras ao caso concreto.

Por outro lado, para uma situação em que duas regras jurídicas podem, em

tese, merecer aplicação num determinado caso concreto, a solução preconizada é

distinta daquela indicada para a colisão de princípios.43

Um conflito de regras, caracterizado pelas conseqüências

contraditórias quando da aplicação (das regras) ao caso concreto,

pode ser solucionado de dois modos: (a) ou introduzindo uma

cláusula de exceção em uma das regras, ou (b) declarando a

invalidade de, ao menos, uma delas, com base em critérios como

lex superior derogat legi inferiori, lex posterior derogat legi priori

e lex specialis derogat legi generali. Isso decorre do fato de que as

regras prescrevem imperativamente uma exigência, prevêem um

fato e determinam a conseqüência normativa, e, havendo uma

antinomia, impõe-se um juízo de (in)validez.

Alexy,44 dessarte, apresenta uma fórmula distinta que deve ser utilizada em

hipótese de colisão de princípios:

43STEINMETZ, Wilson Antônio. Op. cit., p. 125. 44ALEXY, Robert. Op. cit., p. 89.

42

cuando dos principios entran en colisión tal como es el caso cuando

según un principio algo está prohibido y, según otro principio, está

permitido -uno de los principios tiene que ceder ante el otro. Pero,

esto no significa declarar inválido al principio desplazado ni que en

el principio desplazado haya que introducir una cláusula de

excepción. Más bien lo que sucede es que, bajo ciertas

circunstancias uno de los principios precede al otro. Bajo otras

circunstancias, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada

de manera inversa. Esto es lo que quiere decir cuando se afirma que

en los casos concretos los principios tienen diferente peso y que

prima el principio con mayor peso. Los conflictos de reglas se

llevan a cabo en la dimensión de la validez; la colisión de

principios -como sólo pueden entrar en colisión principios válidos

tiene lugar más allá de la dimensión de la validez, en la dimensión

del peso.

Dessa maneira, razoável a opção pela proporcionalidade quando da colisão

de princípios de direitos fundamentais, como forma de manutenção do princípio

preterido dentro do contexto da ordem constitucional, fazendo-se aquilo que

Steinmetz chama de juízo de peso.45 Assim é que

[...] uma colisão de princípios não se resolve com uma cláusula de

exceção nem com um juízo de (in)validez. Requer um juízo de

peso. Trata-se da ponderação de bens, com a qual, tendo presente

as circunstâncias relevantes do caso e o jogo de argumentos a favor

45STEINMETZ, Wilson Antônio. Op. cit., p. 126.

43

e contra, decidir-se-á pela precedência de um princípio em relação

ao outro. Ao se proceder dessa forma, no caso concreto, a validez

jurídica do princípio preterido não é negada. O princípio não

desaparece do ordenamento jurídico. Como se vê, estabelece-se

uma relação de precedência condicionada que ‘[...] consiste en que,

tomando en cuenta el caso, se indican las condiciones bajo las

cuales un principio precede al otro. Bajo otras condiciones, la

cuestión de la precedencia puede ser solucionada inversamente’.

Essa ponderação se realiza mediante a máxima da

proporcionalidade e suas três submáximas ou máximas parciais.

Desse modo, incontestável a importância da distinção entre regras e princípios

para o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais. Sem tal distinção, seria

impossível a formulação adequada de uma teoria da colisão.

Por outro ângulo, embora a teoria de Alexy seja aceita, podem ser destacadas

as críticas feitas por Humberto Ávila46 para quem, apesar da concepção ser

catalogada como uma teoria forte, haveria inconsistências na distinção entre

princípios e regras. A principal crítica de Humberto Ávila à teoria de Alexy é a

possibilidade do tudo/nada na aplicação de uma regra, inexistindo espaço para

ponderação.

46Em Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 50. Ensina que não é coerente afirmar que somente os princípios possuem uma dimensão de peso, sustentando que a aplicação das regras também demanda o sopesamento de razões cuja

44

Um aspecto importante na construção do modelo de Alexy, que permite a

coexistência dos direitos fundamentais, é que, quando houver uma colisão de

princípios, não haverá um superando o outro; a solução se dará através do uso da

ponderação (peso). Ou seja, deve-se buscar o equilíbrio entre os princípios, de forma

que nenhum será totalmente excluído. Um será aplicado na solução do caso concreto.

Em síntese, a chamada Lei de Colisão consiste em um procedimento (método)

que utiliza a ponderação para decidir qual dos interesses jurídicos possui maior peso

no caso concreto. A solução da colisão consiste, nas circunstâncias no caso concreto,

em estabelecer-se entre os princípios uma relação de precedência condicionada.

1.4.3 A vinculação do direito penal aos valores constitucionais

Como salientado, o processo de constitucionalização do direito penal não é

tarefa simples. Um primeiro aspecto que pode ser apontado como fator impeditivo da

prevalência dos valores da constituição é a existência de uma dogmática penal

específica, cuja simbiose com o direito constitucional não é sempre pacífica.

Um segundo aspecto que foi apontado anteriormente é relativo ao problema

do conflito entre direitos fundamentais, na medida em que a Carta Magna consagra

importância será determinada pelo aplicador, vez que a dimensão valorativa não é privativa dos princípios, sendo elemento integrante de qualquer norma jurídica.

45

valores antagônicos (liberdade x pena), havendo necessidade de uma

instrumentalização teórica adequada para sua operacionalização.

Uma terceira distinção pode agora ser feita: estabelecerem-se referências entre

princípios de direito penal constitucional e valores constitucionais pertinentes a

matéria penal,47 na lição de Palazzo, o qual, com propriedade sustenta:

Os primeiros apresentam um conteúdo típico e

propriamente penalístico (legalidade do crime e da pena,

individualização da responsabilidade, etc.) e, sem dúvida,

delineiam a ‘feição constitucional’ de um determinado sistema

penal, a prescindir, eventualmente, do reconhecimento formal num

texto constitucional. Tais princípios, que fazem parte, diretamente,

do sistema penal, em razão do próprio conteúdo, têm, ademais,

características substancialmente constitucionais, enquanto se

circunscrevem dentro dos limites do poder punitivo que situam a

posição da pessoa humana no âmago do sistema penal. [...] .

Os outros, vale dizer, ‘os princípios (ou valores)

pertinentes à matéria penal’, se atêm à específica matéria

constitucionalmente relevante (economia, administração pública,

matrimônio e família), da qual traçam, freqüentemente, os grandes

rumos disciplinadores. Embora sejam princípios de condição

obviamente constitucional, seu conteúdo se revela heterogêneo e,

por isso, não exatamente característico do direito penal. [...] O

fenômeno de sua influência no direito penal moderno pressupõe o

47 PALAZZO, Francesco C. Op. cit., p. 22.

46

caráter ‘sancionatório’, em certo sentido, do direito penal em si,

enquanto – diferentemente dos princípios de direito penal

constitucional – condicionam, com prevalência, o conteúdo, a

matéria penalmente disciplinada e não a forma penal de tutela, o

modo de disciplina penalística.

Nesse ponto, cabe destacar que um dos grandes temas acerca da relação entre

direito penal e constituição, além daqueles vinculados ao sancionamento, objeto deste

estudo, é o relativo ao alcance da criminalização, sustentando Luiz Luisi48 que,

embora seja possível proteger-se bens não valorados nas constituições, essa proteção,

[...] há de fazer-se sem conflito com os princípios constitucionais. É

de sustentar-se também que a criminalização desses bens não

previstos nas constituições não só não podem entrar em conflito

com essas, como nelas encontram para a criminalização limitações

insuperáveis. E isso porque nos textos constitucionais a

criminalização encontra proibições expressas, bem como vedações

explícitas. [...].

As Constituições, portanto, não apenas são o repositório principal

de bens passíveis de criminalização, mas também contêm

princípios relevantíssimos que modelam a vida da comunidade e

que, para usar a linguagem dos constitucionalistas, constituem

cláusulas pétreas, embasadoras do sistema constitucional,

insuscetíveis de serem revistas.

48 Em Os princípios constitucionais penais. 2ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 2003, p. 174.

47

Na mesma linha, Janaína Conceição Paschoal,49 discorrendo sobre os limites

da intervenção penal, acentua a mudança paradigmática havida com o fenômeno do

constitucionalismo, quando os valores sociais passaram a ser substituídos pelos

valores constitucionais. Nesse sentido:

Uma das possíveis formas de relacionar o Direito Penal e a

Constituição é tomando esta como limite negativo daquele. Importa

dizer que toda criminalização que não desrespeite frontalmente o

texto constitucional será admitida, ainda que o valor (ou bem)

tutelado não esteja albergado na Constituição, significando que,

nessa concepção, não se exige para a criminalização que a

Constituição tenha reconhecido a dignidade do bem a ser protegido

pelo direito penal.

Noutra direção, mas sempre na perspectiva da simetria entre sistema

constitucional e direito penal, deve ser enfocada a posição defendida por Márcia

Dometila Lima de Carvalho,50 que, imediatamente após a Constituição de 1988,

defendeu a vinculação do direito penal aos valores da carta fundamental, acentuando

a necessidade dessa submissão:

Das exigências fundamentais inseridas na Constituição,

inferem-se os limites traçados, por ela, para o Direito Penal. Não se

49 Em Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 55. 50 Em Fundamentação Constitucional do Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 1992, p. 44.

48

pode olvidar que este, mormente em um Estado promocional, é, por

natureza, um de seus instrumentos mais eficazes. [...].

A dignidade da pessoa humana, como fundamento do

Estado Democrático de Direito, é o valor expresso no princípio da

humanidade do Direito Penal, que não pode deixar de ser

considerado quando da criminalização de qualquer fato, etiquetado

como socialmente agressivo, ou quando da cogitação de qualquer

sanção criminal.

Por fim, embora a matéria seja objeto de abordagem no capítulo seguinte, esse

mesmo nível de hierarquia e compatibilidade entre os direitos fundamentais e direito

penal deve ser observado quando da imposição do sancionamento, seja na observação

da culpabilidade como fundamento e limite, seja na vinculação da função da pena

aos valores fundamentais.

49

2 A SANÇÃO PENAL NO MODELO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO:

FUNÇÃO E FUNDAMENTO

2.1 Finalidades das penas e ordem constitucional

Como acentuando no capítulo anterior, procuramos demonstrar a supremacia

da ordem constitucional sobre o ordenamento jurídico, identificando o aparato teórico

existente para dar suporte à vinculação do direito penal ao modelo constitucional,

aduzindo que essa impregnação se dá através da criminalização e do sancionamento.

Neste capítulo, a abordagem é mais específica, direcionada ao sancionamento

penal, cujo escopo será demonstrar a necessidade de adequar-se os fins da pena aos

valores da Constituição, a partir da compreensão inicial da própria função da pena,

em ensinamento que é fornecido pela dogmática penal. A partir daí, tendo em conta o

princípio da culpabilidade, a tarefa consistirá em adequar a finalidade preventiva da

pena aos princípios constitucionais pertinentes.

A propósito da discussão sobre as finalidades da pena, há quem afirme que

esta se confunde com a própria discussão da existência do direito penal, não podendo

ser dissociada. Nesse sentido, ensina Nilo Batista que uma teoria da pena é sempre

uma teoria do direito penal.51

51 Em Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 111. Na mesma linha, sustenta que o debate científico-político sobre a pena se transforma no debate sobre todo o direito penal. E preconiza que discutir os fins da pena é o mesmo que discutir os fins do direito penal .

50

Noutro viés, não pode ser ignorada a lição de Günter StratenWerth,52 para

quem a justificativa para o fim da pena é uma questão ainda não concluída. A lição é

que:

Como es sabido, en la literatura del derecho penal de

lengua alemana de las últimas décadas esta cuestión há ocupado

um espacio desproporcionadamente amplio, incluso en

comparación con el número de publicaciones jurídicas, que de

todos modos aumenta en progresión geométrica. En esto se

expresa, com es notorio, la difundida sensación de que las

respuestas tradicionales ya no bastan, que los posibles fines de la

pena tienen que estar determinados de modo distinto o bien con

más precisión que hás ahora, aun cuando la discusión, por lo

general, sai siendo siempre conducida con las lategorías

conceptualis tradicionales de teorías absolutas y relativas, de

retribución, prevención genegeral y prevención especial.

É por isso que Pedro Krebs53 chama atenção para esta peculiaridade:

Questão das mais controvertidas, o tema a respeito da

finalidade da pena tem sido alvo de inúmeras controvérsias e

debates, até mesmo porque a discussão gira em torno da

legitimidade de o Estado impor uma sanção penal a um cidadão

detentor de direitos.

52 Em ¿Que aporta la teoría de los fines de la pena? Traducción de Marcelo A. Sancinetti. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 1998, p. 11. 53 Em Teorias a Respeito das Finalidades da Pena. Revista Ibero-Americana de Ciências Criminais, Porto Alegre, n. 5, janeiro/abril de 2002, p. 99.

51

Por sua vez, o sempre lembrado Luiz Luisi54 destacou que, embora a

Constituição Federal não tenha acentuado função para o apenamento, pode-se dizer

que a função retributiva e preventiva são compatíveis com o modelo constitucional,

não sendo possível, contudo, extrair-se uma única finalidade:

A rigor, portanto, certa é a polifuncionalidade da pena,

sendo que seus fins principais são o de retribuir o mal do crime e o

da prevenção. Em caráter secundário a pena pode servir para educar

ou reeducar o delinqüente. Mas isso só é eventualmente viável,

dependendo de uma série de circunstâncias conjunturais,

principalmente da decisão política de aplicar os recursos

necessários para que se torne possível o objetivo em causa.

Dessa forma, considerando a importância que a pena representa, tendo em

conta o caráter sancionador do direito penal, é preciso caracterizar as linhas gerais

que procuram estruturar as teorias das penas. É bem verdade que, nessa tarefa, há de

ser acentuado que, ao contrário do direito penal, enquanto regramento tendente ao

controle social, a teoria da pena não conseguiu se vincular, de forma definitiva, aos

valores do constitucionalismo moderno. Assim, se para o direito penal é atual a

discussão da importância dos princípios e valores constitucionais, para as teorias da

pena tal discussão é periférica. Exemplo disso é a importância do princípio da

54 Em Os princípios constitucionais penais. 2ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 186.

52

secularização,55 com reflexo praticamente insignificante na discussão das teorias das

penas.

De qualquer sorte, em linhas gerais, duas grandes correntes podem ser

apresentadas quando se busca estruturar, racionalmente, a justificativa para o

sancionamento penal. Uma primeira vertente, de cunho abolicionista, realça a

ausência de justificativa para o direito penal e, por decorrência, para o direito de

punir, preconizando sua substituição por outras formas punitivas de solução de

conflitos;56 de outro lado, alinhando-se ao fundamento de que o direito penal é

instrumento irrenunciável do Estado para exercer controle social, estão as correntes

justificacionalistas.

A propósito, Pedro Krebs57 esclarece que:

Dentre as inúmeras correntes que objetivam responder à

pergunta qual o direito de o estado castigar, duas se fizeram surgir:

a primeira, de caráter negativo, denomina-se abolicionista, que não

vislumbra nenhuma justificativa para a punição; a segunda, com

características positivas, denominada justificacionista, vê, no

direito penal, uma resposta a entornos de ordem social ou moral

irrenunciáveis. Esta última doutrina, que é a mais realista, apresenta

inúmeras variantes: teorias absoluta e relativa, sendo que esta

última ainda se divide em teorias da prevenção geral – positiva ou

negativa – ou da prevenção especial, também positiva ou negativa.

55 O tema é abordado por CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Hamilton Bueno de. Aplicação da pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 5/97. 56SILVA SANCHES, Jesús-Maria. Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo. Barcelona: J.M. Bosch editor, 1992, p. 18. 57Em Teorias a respeito das finalidades da pena. Revista Ibero-Americana de Ciências Criminais, Porto Alegre, n. 5, janeiro/abril de 2002, p. 100.

53

Como mencionado, a característica fundamental da corrente abolicionista é o

seu viés negativo, ou seja, sustentando a absoluta ineficácia no sistema penal e, por

outra banda, o viés positivo, ou seja, a crença na resposta estatal ao delito é a marca

das correntes justificacionistas, que apresentam, num quadro de racionalidade

conceitual, razões a sustentar a intervenção penal sancionatória.

2.2 Teorias de justificação das penas

Já as teorias justificacionistas, informa Krebs, realçam a importância que o

direito penal representa em sua função de solução de conflitos sociais.58

Tais teorias, ao contrário dos ideais abolicionistas,

concebem uma importância ao direito penal e nele vêem como uma

solução efetiva a inúmeros problemas sociais. Reduzem-se, em

geral, a duas doutrinas: as teorias absolutas (ou punitur, quia

peccatum est) ou relativas (punitur, ne peccetur). Para as primeiras,

a pena é concebida como um fim em si mesma, ou seja, um

‘castigo’, ‘compensação’, ‘reação’, ‘reparação’ ou ‘retribuição’ do

delito, não permitindo uma finalidade outra – como a prevenção – e

não concebendo que a pena não seja cumprida e na sua totalidade,

sob pena de afrontar os ideais da justiça (idéia sustentada por

KANT) ou do direito (referida por HEGEL); já as teorias relativas

justificam a pena como um meio para que não sejam praticados

delitos no futuro.

58Em “Teorias...”, cit., p. 103.

54

Como assinalado, superado o entendimento de que o abolicionismo penal não

é instrumento adequado para o exercício do controle social, a justificação à pena pode

ser estruturada a partir de duas doutrinas centrais: a primeira, a seguir denominada de

teorias absolutas, que tem como nota principal, para fundamentar a pena, o

entendimento de que esta é um fim em si mesmo (dado absoluto), representando,

portanto, uma reação contra o delito; a segunda, ao contrário, que denominaremos

teorias relativas, tem como sustentação central o fundamento de que a pena é um

instrumento ou meio para evitar a prática de novos delitos, numa visão

prevencionista, dirigida à sociedade (prevenção geral) ou ao agente que praticou o

delito (prevenção especial).

Essa distinção entre as teorias que justificam a pena é bem retratada por Heiko

H. Lesch,59 que sustenta:

Por lo que respecta a la función de la pena, se suele

distinguir entre teorias absolutas de la pena y teorias relativas. En

la terminologia usual, la concepción de las teorias relativas se

reduce hoy dia al concepto de teoría preventia y se identifican com

el programa “punitir ne peccetur”, mientras que la concepcíon de

las teorias absolutas permanece unida al principio de la

compensación de la culpabilidad – “punitur, quia peccatur est”-.

Por ello es, desde todo punto, acertado cuando se habla de “la

antítesis de un Derecho penal represivo y uno preventivo”. En todo

59 Em La función de la pena. Traducción de Javier Sánchez-Vera Gomes-Trelles. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2000, p. 17.

55

caso – este es el sentido que habitualmente se concede a esta

diferenciacíon en grandes líneas – se otorga a las teorias absolutas

uma orientación meramente “allende-de-lo-trascendental”, y en

cambio, por su parte a las relativas – a ellas en exclusiva-

“aquende-de-lo-social.”

Como visto, portanto, o marco caracterizador das teorias absolutas, nesta

contraposição com as teorias relativas, é a ausência de atribuição de finalidades à

sanção.

2.3 Teorias absolutas

Para esta corrente, o aspecto central na resposta estatal representada pela pena

é o entendimento de que o crime é um mal e, portanto, a pena é uma reação ou

castigo a este dano praticado. Note-se que há um absoluto descompasso entre a

reação (pena) e o efeito social da pena, já que esta (a sanção) é estruturada dentro de

uma perspectiva de ideal de justiça ou de fidelidade ao direito. Pedro Krebs

identifica:60

Para essa doutrina, a pena não vislumbra como finalidade,

algo socialmente relevante ou útil, mas apenas a imposição de um

mal merecido que é retribuído a um mal cometido, compensando,

assim, a culpabilidade do agente em virtude do ilícito praticado. A

pena, assim, funcionaria não só como um efetivo castigo à pessoa

60 KREBS, Pedro. “Teorias...”, cit., p. 103.

56

do delinqüente, mas também como a possibilidade de o autor do

delito se redimir perante a sociedade, ou seja, saldar sua dívida para

com ela.

Fala-se em teoria absoluta porque a finalidade da pena é

desvinculada (absolutus significa desvinculado) de seu efeito

social, visando à realização da justiça ou o império do direito.

Como destacado, nessa acepção, as teorias absolutas consagram à pena a

função de composição do mal praticado, de forma que o autor do crime possa saldar a

sua dívida social, redimindo-se do fato praticado.

Outro aspecto a ser realçado é que, dentro dessa concepção, não há espaço

para a pena realizar outra função, como a prevenção, já que desvinculada de seu

efeito social.

Doutrinariamente, nessa corrente, podem ser agrupadas as teorias da expiação

e da retribuição, como expressão do pensamento retributivo sobre a fim da pena.

2.3.1 Teorias da expiação e da retribuição

A idéia central defendida pela teoria da expiação é que a pena representa a

possibilidade da reconciliação do agente consigo mesmo, num gesto de dignidade

57

moral. O que chama atenção é que não há qualquer preocupação na recuperação da

ordem das coisas ou na prevenção de novos delitos. O ponto central da justificativa da

sanção é o restabelecimento da ordem jurídica violada, exigindo-se, contudo, que a

sociedade reconheça no agente sua redenção ou um livre arrependimento.61

Lesch,62 a propósito, acentuando esse aspecto reconciliatório consigo mesmo,

que caracteriza a expiação, sustenta:

La pena como expiación – a diferencia de la pena como

retribución – no es uma restitución del orden correcto de las cosas,

sino la reconciliación del delincuente consigo mismo, com el

ordenamiento quebrantado, en definitiva, com la comunidad. Con

la expiación moral “el culpable se libera de sua culpa, alcanza de

nuevo la plena posesión de sua dignidade personal. Expiación em

este sentido solo puede tener éxtito de todas formas allí donde el

culpable preste su libre arrepentimineto, un arrepentimiento que

sea visto la sociedad como redención de sua culpa.

Por outro enfoque, ainda dentro da concepção absoluta para a função da pena,

a teoria da retribuição tem sua estrutura fundamentada na exigência da pena como

uma resposta física, um sofrimento que deve ser imposto ao ofensor como forma de

compensação pelo mal causado ao ofendido. O fundamento dessa concepção,

portanto, é jurídico:63

61 KREBS, Pedro. “Teorias...” cit., p. 103. 62 Em La función de la pena. Traducción de Javier Sánchez-Vera Gomes-Trelles. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2000, p. 18. 63 Em KREBS, Pedro. “Teorias...” cit., p. 104

58

A pena fica livre de toda consideração relativa a sua

finalidade (‘poena absoluta ab effectu’) e só representa a causação

desejada de um mal como compensação da infração jurídica

culpavelmente cometida. As bases ideológicas das teorias absolutas

se encontram no reconhecimento do Estado como guardião da

justiça e compêndio das noções morais, na fé e na capacidade da

pessoa para se autodeterminar, e na limitação da função estatal à

proteção da liberdade individual. Nas teorias absolutas da pena

coincidem, portanto, pensamentos idealistas, conservadores e

liberais.

O talião é, sem dúvida, a expressão que representa a síntese da concepção

retributiva. Eugênio Raúl Zaffaroni e Pierangeli,64 ao identificar essa hipótese,

esclarece:

Até o contratualismo, o que se obtivera era a limitação do

poder estatal pela via do dever de estabelecer, rigidamente, os

limites do proibido (Hobbes) e o reconhecimento de limites do

poder estatal pela via do objeto da sociedade, mas a natureza em si

da pena muda o seu sentido – e com isto todo o direito penal – a

partir da abordagem contratual. Se a própria sociedade é

estabelecida mediante um contrato, o homem que pretende alcançar

a riqueza por uma via não autorizada por aquele viola aquilo que o

contrato preceitua. Qual é a sanção para quem viola o contrato?

Uma reparação, uma indenização. Quando um cidadão não paga

64 Em Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 262/263.

59

uma indenização devida como resultado da violação de um

contrato, é forçado a fazê-lo (dele é expropriado algo de valor), mas

os homens da massa criminalizada por esse controle social nada

possuíam. O que deles se expropriava? A única coisa que podiam

oferecer no mercado: sua capacidade de trabalho, sua liberdade.

Daí surge a ideologia que faz da privação da liberdade uma pena,

que até então havia sido apenas uma medida preventiva (o que hoje

chamamos de ‘prisão preventiva’) durante o processo, pois as penas

eram corporais. Essa forma de pena – privativa de liberdade – era

um modelo ideal para ser quantificado, o que também coincidia

com as práticas do momento: a privação da liberdade pode ser

medida em tempo, concebido este como algo linear, que se projeta

em linha reta do passado até o futuro (esta visão do tempo já não é

hoje admissível) e que, portanto, pode ser medida da mesma forma

que as mercadorias e a moeda, de modo análogo ao das práticas

comerciais da época [...]. Qual podia ser a medida da pena? O

Talião, isto é, aquela necessária para reparar o mal causado com o

delito. Essa era a ideologia que se impunha e que conduzia à

limitação do poder estatal quanto ao montante da pena.

Uma observação fundamental há de ser destacada, no sentido de que o Talião

representou, num momento histórico, a adoção de regra de proporcionalidade em

relação ao sancionamento.

60

2.3.2 Fundamentos filosóficos para a retribuição

A sustentação filosófica para a retribuição, tal como concebida, foi produzida,

principalmente, por Hegel, que preconizou o aspecto jurídico.

Sob o enfoque da retribuição, Georg Hegel via na prática do delito o

fundamento para a pena, justificando-a a partir da racionalidade.

São de Georg Wilhelm Friedrich Hegel65 as afirmações:

Esta fenomenalidade do direito – em que ele mesmo e a

sua existência empírica essencial, a vontade particular, coincidem

imediatamente – torna-se evidente como tal quando, na injustiça,

adquire a forma de oposição entre o direito em si e a vontade

particular, tornando-se então um direito particular. Mas a verdade

desta aparência é o seu caráter negativo, e o direito, negando essa

negação, restabelecendo-se e, utilizando este processo de mediação,

regressando a si a partir da sua negação, acaba por determinar-se

real e válido.

65 Em Princípios da filosofia do direito. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 80. E mais adiante, em p. 87, acrescenta: “Como evento que é, a violação do direito enquanto direito possui, sem dúvida, uma existência positiva exterior, mas contém a negação. A manifestação desta negatividade é a negação desta violação que entra por sua vez na existência real; a realidade do direito reside na sua necessidade ao reconciliar-se ela consigo mesmo diante a supressão da violação do direito”.

61

Por fim, a concepção da pena como retribuição também está sedimentada na

distinção que é feita entre norma penal e lei penal. A partir de Binding, para quem a

pena é a retribuição do mal contra o mal,66 a distinção é estruturada no sentido de que

a norma penal é dirigida ao cidadão e contém regras ou preceitos; a lei, por sua vez, é

dirigida ao julgador e contém a sanção. Logo, a celebração da justiça é a função da

pena, na medida em que a norma penal sequer conteria preceito sancionatório. Nesse

sentido, esclarecem Zaffaroni e Pierangeli:67

Definindo as normas como ‘proibições ou mandatos de

ação’, Binding afirma que o delito choca contra estas proibições ou

mandatos, mas não contra a lei penal. Normas são, por exemplo, as

do Decálogo, mas elas não pertencem à lei penal, nem estão nela. O

artigo 121 do CP não diz: ‘Não matarás’, e sim ‘matar alguém’:

pena de 6 a 20 anos de reclusão. As normas são deduzidas dos tipos

legais, isto é, da lei penal: se o furto é sancionado dizemos que há

uma proibição de furtar, se a omissão de socorro é sancionada,

deduzimos que há um mandato de socorrer. Mas nem a proibição

nem o mandato (as normas) estão na lei. Daí que se possa dizer que

o que furta ou omite socorro não viola a lei penal, e sim a cumpre,

violando a norma, que está fora da lei penal, mas que conhecemos

através dela.

Nesse sentido, inegável que, sob o enfoque retribucionista, a pena cumpriria

função dúplice, visto que, além de representar um castigo (reação) em face da

66 Em “Teorias...” cit., p. 108. 67 Em Op. cit., p. 309.

62

conduta praticada, é fenômeno restaurador da ordem, presente, portanto, o ideal de

justiça que está materializado na sua aplicação.

Por fim, embora inadmissível conceber-se, atualmente, a retribuição (castigo)

pura e como justificativa sancionatória, é inegável que esta concepção trouxe consigo

a idéia da mediação, isto é, da proporcionalidade ou limitação da pena, balizando a

atividade punitiva estatal.

2.4 Teorias relativas

O fim utilitarista é o principal aspecto que caracteriza as teorias relativas. Se

as teorias absolutas são marcadas por vinculações a aspectos morais, religiosos ou a

ideais de justiça, a concepção relativa acerca dos fins da pena traz como proposta

central uma função para a pena: a evitação de novos delitos. Explica Krebs:68

Vislumbram a pena como um meio para prevenir a prática

de crimes futuros (relativo deriva do latim refere = referir-se a) ou

seja, vêem nela uma finalidade utilitarista, que é a prevenção

(evitação) do delito, e não como um fim em si mesma, como

apregoam as teorias absolutas. A pena, assim, passa a ser

necessária para evitar a prática de lesões a determinados interesses

sociais. Culpabilidade, para essas teorias, não importa em papel

algum, eis que a finalidade da pena em nada diz respeito com a

68Em “Teorias...” cit., p. 110.

63

culpa do agente, mas apenas na prevenção da ocorrência

de novos delitos.

Por seu turno, Jescheck, destaca que são razões humanitárias, sociais,

racionais e utilitárias que justificam as teorias relativas das penas.69

De qualquer forma, ao contrário das teorias absolutas, que partem da

sustentação de que a pena deva ser imposta ao agente como imperativo de justiça, as

concepções relativas conferem à sanção a missão de prevenir novos delitos,

subdividindo-se em prevenção geral e especial quanto ao seu alcance. Na prevenção

geral, a pena imposta a um agente é direcionada para toda a coletividade, que ainda

não incidiu no delito; na prevenção especial, a pena é direcionada ao agente em

particular, sempre no desiderato da evitação de novos fatos criminosos.

Na prevenção geral, é correta a crítica de Bustos Ramírez,70 para quem a pena,

no fundo, é um castigo sobre a cabeça alheia, na medida em que seu direcionamento

tem por destinatários os membros da comunidade que ainda não praticaram fatos

criminosos. Assim, a pena não exerce qualquer retribuição ou influência sobre o

69JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal – parte general. 4ª ed. Corrigida e ampliada. Tradução de José Luis Manzanares Mananiego. Granada: Comares, 1993, p. 62, esclarecendo que os fundamentos ideológicos das teorias relativas da pena são as humanitárias doutrinárias políticas da Ilustração, a crença na explicação científico-causal de todo o comportamento das pessoas, a fé na capacidade - também dos adultos – para serem educados mediante a apropriada atuação pedagógico-social, e o rechaço a qualquer intento de interpretação metafísica dos problemas da vida social. São, pois, razões humanitárias, sociais, racionais e utilitárias que as convergem nas teorias relativas da pena. 70Em Manual de Derecho Penal – Parte General. 4ª ed. Barcelona: PPU, 1994, p. 72.

64

condenado em especial, mas visa a exercer sobre a coletividade os efeitos que a pena

representa sobre o agente.

2.4.1 Prevenção geral negativa e positiva

A perspectiva de que a pena se inclui entre os instrumentos de defesa que o

Estado deve adotar é esclarecida por Lesch,71 para quem a pena se “incluye

completamente em el elenco de los instrumentos del Estado para la defensa ante

peligros y la realización de cuidados exinstenciales”.

A prevenção geral, enquanto concepção sobre os fins da pena, abrange as

teorias da prevenção geral negativa e positiva, cuja principal distinção reside, para

aquela, na idéia da intimidação (coação psicológica), enquanto que para esta a

prevenção se materializa através do reforço institucional na vigência da ordem

jurídica.

O ponto de partida para a teoria da prevenção geral negativa é, sem dúvida, a

teoria da coação psicológica, desenvolvida por Feuerbach, baseada na coerção ou

intimidação que a ameaça de pena exerce sobre a coletividade. Esclarece Pedro

Krebs:72

Tal entendimento decorre, de acordo com FEUERBACH,

da idéia da qual a alma do delinqüente em potencial encontra-se

71 Em Op. cit., p. 38. 72Em “Teorias...”. cit., p. 111.

65

sob um permanente conflito: de um lado, a tentação (ou prazer) de

praticar o delito, e, do outro, a ocorrência do mal inevitável (como

uma sensação de desagrado), como resposta estatal, que é a

imposição da pena. FEUERBACH, assim, vislumbrava a

cominação da pena como uma efetiva coação à psiquê do agente,

ameaçando-o com a sua aplicação, enquanto que a sua imposição

serviria só para demonstrar a todos a seriedade da ameaça.

E acentua:73

FEUERBACH, entendendo que a teoria kantiana da pena

não a justificava, tratou de distinguir a mesma em moral e jurídica,

onde a primeira – pena moral – surge da consciência do infrator

pelo fato concedido, enquanto que a segunda – pena jurídica -, que

não poderia penetrar na consciência do indivíduo, baseava-se na

necessidade de harmonia entre as condutas praticadas – fatos

externos, portanto – e o princípio do atendimento à justiça ou

compatibilidade da liberdade de cada um dos demais agentes

sociais. FEUERBACH aparta-se das idéias de KANT ao se

questionar se não seria cruel castigar só pelo fato de ter delinqüido,

concluindo que o Estado só está autorizado a punir desde que seja

para assegurar bens jurídicos, tutelando a si próprio frente ao

delinqüente.

Nessa linha, é notório o efeito de intimidação que a pena exerce sobre a

coletividade. É que, ao punir-se o condenado, evita-se a prática de novos delitos na

73 Idem, p. 111/112.

66

medida em que reforça a idéia de que, violada a norma, ao agente será imposta sanção

idêntica.

A grande questão que é levantada contra a prevenção geral negativa é o

completo afastamento da culpabilidade, enquanto fundamento para a resposta penal.

Assim, se a pena tem função intimidatória geral e seu destinatário é a coletividade,

não há razão para considerar-se a reprovação da culpabilidade como critério central

de apenamento.

De outra forma, a estrutura da prevenção geral positiva representa um

abandono da idéia de intimidação para agasalhar a justificativa da pena na proposta

de reforço da crença no ordenamento jurídico. A convicção coletiva na eficiência do

ordenamento jurídico é que sustenta a finalidade da pena, relativizando-se a função

do direito penal, enquanto sistema, que é a proteção de bens jurídicos.

A perspectiva da prevenção geral positiva é estruturada, portanto, a partir de

uma visão sistêmica da sociedade, em que os diversos papéis sociais devem ser

cumpridos. Jakobs, apoiado nas idéias sistêmicas de Luhmann, estrutura sua

concepção a partir da necessidade de eficácia do direito.

A propósito, Krebs,74 em elucidativa lição, identifica:

74Em “Teorias...” cit., p. 112/113.

67

Para JAKOBS, a única forma de o homem cultivar um

relacionamento é conhecendo as regras existentes. Assim o é, por

exemplo, na relação do homem com a natureza, onde a existência

de uma regularidade dos acontecimentos permite um conhecimento

prévio do que deve ser feito. O relacionamento entre as pessoas

também depende dessa regularidade comportamental, sob pena de

tornar inviável o contato social se as pessoas tiverem que se

deparar, a cada momento, com qualquer atividade imprevisível das

outras que a cercam.

Se, dentro da relação homem-natureza, surgir uma

decepção frente às expectativas, nasce, para o decepcionado, a

necessidade de alterar seus critérios frente ao como deve reagir,

tendo, pois, que promover uma revisão em seu modelo de

orientação. Nos contatos sociais, de igual forma, também podem

surgir decepções, como ocorrem nas relações homem-natureza. Nas

relações sociais, só se pode esperar que a outra pessoa acabe por

respeitar as regras da natureza (saber-se que toda pessoa, por

exemplo, é formada de “carne e osso” ou que pode morrer

afogada), embora não seja necessário que a mesma respeite as

normas jurídicas, uma vez que esse acatamento deriva de uma mera

liberalidade. Aquelas decepções (relações homem-natureza) são de

caráter cognoscitivo, isto é, se ocorreram foi porque houve um erro

de cálculo, devendo-se corrigir o vício – através da experiência

prática – para um futuro. Já uma decepção no tocante às relações

sociais afeta as expectativas que derivam da pretensão em relação à

outra pessoa de que esta respeitará as normas vigentes.

Isto porque a relação entre os indivíduos não deriva do

binômio satisfação/insatisfação, mas do fato de que os mesmos

68

seguem normas. Pessoa é a quem se concede o rótulo de cidadão

que respeita o direito. A pessoa, assim, não atua conforme seu

esquema individual de satisfação e insatisfação, mas de acordo a

um padrão de dever, para com a lei, e liberdade de ação.

Dado que as pessoas podem organizar o mundo, embora já

viviam em um mundo já organizado (em um mundo com

instituições), as expectativas normativas, imprescindíveis para

possibilitar os contatos sociais – independentemente do conteúdo

das diversas normas -, não permite sejam esses contatos

planificáveis, já que a outra parte não só deve ter a boa vontade de

querer respeitar a ordem como também deve saber quando está

diante de um comportamento normativamente regulado.

Em suma, a finalidade das penas é promover a confiança

nas pessoas de que as normas jurídicas serão atendidas, bem como

conhecer antecipadamente qual o padrão de conduta, ou seja, o que

esperar de cada um, tudo com o objetivo de possibilitar a vida em

sociedade.

Nesse ponto, não é possível deixar de salientar a importância do

funcionalismo penal, na visão de Jakobs,75 para o resgate da prevenção geral positiva

enquanto função da pena, especialmente pela função exercida pelo ordenamento

jurídico. O ensinamento é que:

75 Nesse sentido, em Sobre la teoría de la pena. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2001, p. 32.

69

El resultado alcanzado -la pena como confirmación de la

configuración de la sociedad - tiene puntos de estrecho contacto

con uma teoría reciente de acuerdo com la cual la pena tiene la

misión preventiva de mantener la norma como esquema de

orientación, en el sentido de que quines confián en una norma

deben ser confirmados em su confianza.

Como visto, a prevenção geral positiva, sob esse viés, ao abandonar a

concepção intimidatória, passa a buscar na convicção da força do ordenamento

jurídico (reforço da vigência da norma) a base para sua justificação.

2.4.2 Prevenção especial positiva e negativa

Noutra direção, estão as concepções decorrentes das orientações preventivas

em especial, ou seja, da prevenção especial positiva e negativa.

Aqui o enfoque é completamente distinto. Se na prevenção geral há o

abandono completo do agente, para estruturar-se a função da pena a partir da

intimidação social ou incentivo na crença e efetividade do sistema, na prevenção

especial o foco é no agente, como meio de evitar-se a reincidência.

70

Segundo Claus Roxin,76 foi Franz Von Liszt o porta-voz dessa concepção,

sendo que a prevenção especial negativa deveria atuar de três formas: assegurando a

comunidade frente aos criminosos, mediante o encarceramento destes; intimidando os

autores de delitos, mediante a pena, para que deixem de praticá-los e preservando a

ocorrência da reincidência mediante sua correção.

Pedro Krebs, em linha similar, acerca do caráter admonitório e

ressocializador das penas:77

A prevenção especial positiva tende a evitar que o

condenado venha novamente a delinqüir através da imposição de

penas cuja função será admonitória ou ressocializadora.

O caráter admonitório das penas é dirigido àqueles

delinqüentes primários ou de escassa periculosidade, servindo a

pena para intimidar o agente apenas.

No direito brasileiro, tal função é referida, por exemplo,

no artigo 60, § 2º, do Código Penal, quando refere que a pena

privativa de liberdade, não superior a seis meses, poderá ser

substituída por uma pena de multa, no caso de o réu não for

reincidente em crime doloso, bem como a culpabilidade, os

antecedentes, a conduta social, a personalidade, os motivos e as

circunstâncias do crime recomendarem a substituição. Assim

sendo, essa pena de multa apresenta um caráter admonitório

76Em Derecho Penal. Parte General. Tradução de Diego-Manuel Luzón Pena et alli. Madrid: Civitas, 2000, p. 85/86. 77Em “Teorias...” cit., p. 115.

71

Já o caráter ressocializador da pena busca seja o

condenado submetido a tratamento a fim de que o mesmo possua a

intenção e a capacidade de viver respeitando as leis.

Nota desse aspecto pode ser observada na Lei 7210/84, quando declina que,

entre os fins da execução criminal, deve ser observada a ressocialização do agente.

Por último, quanto à prevenção especial negativa, a função da pena aqui é

expressa como instrumento para que o agente deixe de expressar sua maior ou menor

periculosidade. A neutralização do agente ou sua inocuização são instrumentos desta

função, na qual o agente deve ser afastado do convívio social para prevenir a

ocorrência de novos delitos.

Ao seu turno, inocuização comporta divisão entre os agentes que podem ser

ressocializados e aqueles que necessitam da segregação, vez que representariam

delinqüentes por convicção.

A propósito, realçando o papel de Von Liszt na defesa dessa posição, destaca

Krebs:78

O maior expoente dessa acepção de pena – teorias de

prevenção especial - foi FRANZ VON LISZT, que vislumbrava a

possibilidade de a pena atuar de três formas: a) trazendo segurança

78 Em “Teorias...” cit., p. 116.

72

para a comunidade através do enclausuramento do condenado; b)

intimidando o autor mediante a pena para que não cometa crimes

futuros; c) preservando-lhe da reincidência mediante sua correção.

Assim, LISZT idealizou um tratamento para os

delinqüentes de acordo com o tipo de autor: a) inocuização do

delinqüente habitual de quem não se podia conseguir que desistisse

da prática de delitos futuros ou que melhorasse; b) a intimidação do

mero delinqüente ocasional; c) a correção do autor corrigível.

No sistema penal brasileiro, o impedimento da liberdade provisória e a

exigência do cumprimento da pena no regime integralmente fechado79, tal como

disciplina a Lei 8072/90, são hipóteses de incidência dos primados da prevenção

especial negativa.

2.5 Teorias unificadoras ou mistas

Quando do estudo das teorias da pena, ao lado da tradicional divisão entre

teorias absolutas e relativas, surge a perspectiva de aperfeiçoamento da concepção

preventiva da pena, aglutinando posições divergentes. A principal contribuição, nesse

campo, é creditada a Claus Roxin, quando manifesta uma concepção dialética da

pena. Sob o enfoque de uma Teoría unificadora preventiva, o professor germânico

sustenta o fim exclusivamente preventivo da pena, a necessidade de renúncia total a

79 De atentar-se que no julgamento do HC 82.959, ocorrido em 23 de fevereiro de 2006, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a vedação de progressão prevista na Lei 8072/90.

73

concepção retributiva e a redefinição do papel da culpabilidade como meio de

limitação da intervenção penal estatal.80

De qualquer forma, as concepções mistas, concretamente, projetam novas

perspectivas justificadoras da prevenção, tendo em comum o desprezo ao papel

retributivo da pena.

2.6 Pena e constituição

Da exposição realizada, se reafirma o questionamento, posto no início deste

estudo, acerca do distanciamento entre as teorias dos fins das penas e o sistema

constitucional. A análise do texto da Constituição Federal de 1988 revela que o

legislador maior elegeu como fundamentos da República, alçada, portanto, a

dimensão de valor constitucional, a dignidade da pessoa humana e, referentemente às

sanções penais, exigiu a individualização, prevendo que o apenamento não passe da

pessoa do condenado, prevendo certas modalidades, vedando espécies de

sancionamento81 e dispondo sobre regras de seu cumprimento.

Assim, numa primeira análise, não há qualquer referência constitucional sobre

a função que a pena deva exercer, ou seja, se a imposição, fundamentada, de pena

visa à retribuição, à prevenção ou à ressocialização.

80ROXIN, Claus. Op. cit., p. 96/101. 81 O inciso XLVIII do artigo 5° proíbe expressamente as penas de morte (exceção feita para a hipótese de guerra declarada), as penas de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis.

74

Na falta desse indicativo, um primeiro aspecto há de ser destacado. Sendo um

dos direitos fundamentais, o respeito ao devido processo legal deve nortear o

procedimento da imposição, devendo ser valorada, enfaticamente, a necessidade de

fundamentação da decisão que aplica a sanção penal. Nesse sentido, correta a

orientação de Aury Lima Lopes Júnior,82 que sustenta:

Para o controle da eficácia do contraditório e do direito de

defesa, bem como de que existe prova suficiente para sepultar a

presunção de inocência, é fundamental que as decisões judiciais

(sentenças e decisões interlocutórias) estejam suficientemente

motivadas. Só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade

da decisão predominou sobre o poder, premissa fundante de um

processo penal democrático.

Numa outra vertente, congruente com a necessidade de compatibilizar a

aplicação da pena aos direitos fundamentais, ensina Nereu José Giacomolli:83

A relevância da exigência da motivação das decisões

criminais se justifica na previsão expressa da Constituição Federal,

em seu artigo 93, IX, combinado com a adoção do Estado

82 Em Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2004, p. 253. 83Em “Aproximação à Garantia da Motivação das Decisões Criminais: aspectos jurisprudências”. Revista Ibero-Americana de Ciências Criminais. Porto Alegre, ano 6, número 11, pág. 70, 2005.

75

Democrático de Direito, pena Carta Magna, tendo na proteção da

dignidade da pessoa humana um dos pilares básicos.

Em decorrência, à ausência de disposição constitucional específica sobre a

finalidade da pena, a eficácia constitucional vinculante, na espécie, incide sobre o

procedimento de sua imposição, que deve fundar-se num processo penal

constitucionalmente válido, com a imposição do sancionamento adequadamente

motivado, sempre tendo em conta que a dignidade da pessoa humana é um dos

fundamento da República.

Essa questão, todavia, acerca da motivação, será analisada no capítulo

seguinte, quando se abordará a compatibilidade do procedimento de aplicação das

sanções em relação aos valores fundamentais. A análise agora cabível é acerca da

compatibilidade da pena, em sua função preventiva, com os princípios

constitucionais.

Qualquer abordagem sobre os fins da pena deve considerar, inicialmente, a

crise que o direito penal, enquanto sistema, tem enfrentado. Tal afirmativa parece

adequada na medida em que a discussão sobre os fins da pena se confunde com os

fins do direito penal.

É inegável que a dogmática penal experimentou avanços que a teoria dos fins

da pena ainda não implementou. A velha distinção entre retribuição e prevenção

76

ainda baliza as discussões nessa seara, enquanto que a dogmática penal recebeu

aporte significativo da teoria constitucional, cujos reflexos não se fizeram sentir na

teoria da pena, que tem na estrutura constitucional seus limites, faltando-lhe, todavia,

um sentido teórico próprio. Outro ponto a ser destacado, nesse sentido, é a ausência

de orientação constitucional sobre qual o papel que a pena deva cumprir.

Não obstante, entender e discutir os fins da pena é tarefa tão importante

quanto compreender o próprio direito penal e o seu papel no controle social. Negar-se

ao direito penal essa função é esquecer dos conflitos que sociedade moderna enfrenta

e a necessidade de sua resolução.

Portanto, a concepção preventiva, na sua estrutura, ainda pode melhor

representar a finalidade que a pena exerce. As vertentes gerais e especiais talvez não

expressem, em suas subdivisões, a síntese necessária do que a pena deve representar,

mas indicam um caminho que não pode ser abandonado quando se concebe o direito,

e especialmente o direito penal, com sua carga sancionatória, como ferramenta de

controle da vida social. Oportuna, portanto, a lição de Francisco Muñoz Conde:84

Por eso, me parece preferible una teoria preventiva

intimidatória que muestra la auténtica face del derecho penal como

sistema de disciplinamiento de las personas y de protección de

determinados intereses. [...] En todo caso, la búsqueda de un sano

84MUÑHOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal y Control Social. Bogotá: Editora Editorial Temis S.A., 1999, p. 121.

77

efecto preventivo intimidatório, proporcional y autocontrolado, no

hay que hacerla solo através del derecho penal, entendido en el

sentido represivo institucional. Es necesaria una mayor ‘fantasía

institucional’ que procure la máxima eficacia preventiva con el

mínimo de sacrificio de la liberdad individual.

Por fim, quanto ao enfoque dos direitos fundamentais sobre a pena, na

ausência de disposição específica, já que constituição federal apenas baliza as

modalidades e formas de execução das sanções, essencial destacar a necessidade do

respeito à dignidade da pessoa humana, que é fundamento do próprio Estado

Constitucional e Democrático de Direito, bem como a exigência de válido processo

penal, com a imprescindível motivação da imposição.

Analisando os princípios fundamentais para a aplicação das penas e medidas

de segurança, Eduardo Reale Ferrari85 destaca que as sanções criminais, incluídas as

medidas de segurança, constituem formas de invasão do poder estatal na liberdade do

homem, existindo, portanto, o dever irrenunciável de análise da compatibilidade da

resposta estatal ante os valores fundamentais. Especificamente em relação ao respeito

à dignidade da pessoa humana, leciona:86

Dignidade da pessoa humana constitui um valor supremo

que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, englobando

85Em Medidas de Segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 92. 86Idem, p. 122.

78

desde os direitos pessoais, os direitos sociais, os direitos dos

trabalhadores até à organização econômica. Consiste num valor

autônomo e específico, inerente aos homens em virtude de sua

simples pessoalidade, obrigando a uma intensa densificação

valorativa que tenha em conta seu amplo sentido normativo-

constitucional.

De acordo com o princípio da dignidade da pessoa

humana, nenhum cidadão pode ser sancionado desnecessária ou

ilimitadamente, devendo haver restrições temporais máximas à sua

punição, respeitando-se o homem em seus atributos no instante da

enunciação e aplicação dos preceitos primários, bem como das

sanções penais.

O respeito à dignidade da pessoa humana, assim, é o valor constitucional que

deve balizar a finalidade da pena, independentemente da função a ela reservada pelo

legislador ordinário. Dessa forma, as disposições do artigo 59 do Código Penal e o

artigo 1° da Lei de Execuções Penais87 devem guardar compatibilidade com referido

critério norteador. É por isso que Maurício Antonio Ribeiro Lopes sustenta que a

obediência ao valor determina que, para o cumprimento da função preventiva da

pena, deve haver proximidade entre o cometimento do delito e a aplicação da

sanção.88 O ensinamento é que

87 No Código Penal, a disposição identifica que a pena deva ser aplicada em quantidade necessária e suficiente para a prevenção e reprovação do crime, e a Lei de Execuções Penais identifica que a execução penal tem por objetivo, além de efetivar as disposições da decisão criminal, proporcionar condições para a integração social do condenado e do internado. 88Em Princípios políticos do direito penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 254.

79

[...] a dignidade da pessoa humana exige que a punição esteja

identificada, temporalmente, o mais próximo possível com o

cometimento do delito para se evitar que a pena seja imposta à

pessoa que já expiou pelo tempo, por sua mudança de

temperamento, caráter ou pelo sentimento de culpa de que não

tenha se libertado, sofrimento bastante para tornar improdutiva

pena criminal que venha a ser imposta.

Por outro lado, é criticável a demora verificada na implementação de outros

valores constitucionais em relação ao apenamento. Maurício Antonio Ribeiro

Lopes,89 antes referido, aponta a lentidão do processo legislativo como causa, aliada à

velocidade de transformação do Estado, indicando que

[...] muito mais do que ruptura, há adaptação da ordem

constitucional aos novos valores sociais que decorrem mais de

evoluções do que de revoluções, ou daquelas feitas com mais

derramento de tinta do que de sangue.

De qualquer sorte, na lição de Sérgio Salomão Schecaira,90 é inegável o dever

de observância dos valores constitucionais quando do apenamento:

Portanto, o estudo do Direito Penal positivo, mormente de seu

sistema de penas, deve observar a influência dos valores e

89Em op. cit., p. 206. 90 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena. Finalidades, Direito Positivo, Jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 69.

80

princípios constitucionais, os quais revelarão a forma e os limites

da persecução penal no atual Estado Democrático de Direito. Um

Direito Penal em contradição com a Carta Magna ou não atualizado

após a superveniência desta, seja no processo legislativo, seja na

interpretação e aplicação da lei, representa exercício de poder

punitivo sem qualquer legitimação democrática.

Em síntese, ainda que a construção de um arcabouço teórico para a função da

pena seja produto da dogmática tradicional, há necessidade de compatibilização da

finalidade (preventiva) com o conjunto dos valores e princípios consagrados

constitucionalmente.

Por fim, não basta a compatibilidade da sanção, enquanto modalidade de

controle social, com o modelo constitucional, havendo, também, a necessidade da

adequação do procedimento de sua imposição, o que será objeto de análise no

capítulo seguinte.

81

3 VALORES CONSTITUCIONAIS E APLICAÇÃO DA PENA

3.1 O direito fundamental à pena motivada

Como já salientado, a efetividade do direito penal, como instrumento punitivo

de um Estado Democrático de Direito, pode ser medida pelo seu grau de submissão

ao ordenamento constitucional.

A instrumentalização do sistema punitivo, por sua vez, exige, igualmente, um

procedimento constitucionalmente adequado, onde as regras respeitem os

fundamentos da República, entre eles, necessariamente, o da dignidade da pessoa

humana e o da presunção de inocência.

Exemplo de vinculação do procedimento aos valores constitucionais é o

necessário respeito do direito ao silêncio do acusado, que se apresenta, no magistério

de Antônio Magalhães Gomes Filho91, como uma decorrência natural do modelo

processual paritário.

Ante tais premissas, o que se pretende agora, depois da análise da influência

do sistema constitucional sobre o direito penal e acerca da necessária compatibilidade

entre a pena e os valores constitucionais, é compreender a importância da motivação

91 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 111.

82

e fundamentação das decisões judiciais como gênero e, especificamente, a

necessidade de motivação da sentença criminal, no tocante à aplicação da pena.

A individualização da pena, ao lado de ser um dos requisitos da sentença

condenatória e, portanto, uma obrigação do julgador, é um direito do condenado, com

base constitucional, devendo tal ato constituir-se num meio de efetivação de valores

fundamentais.

3.2 Da necessidade constitucional da motivação das decisões judiciais criminais

O direito penal guarda uma característica que o diferencia dos demais ramos

do direito, inclusive do dentro do ramo do direito público, por interferir diretamente

nas liberdades individuais. Por seu turno, o direito processual penal, que

instrumentaliza sua efetividade, deve ter sua aplicação regrada sob um enfoque de

respeito aos direitos fundamentais, notadamente a determinação de observância do

devido processo legal.

Assim, compreender o papel das decisões judiciais e, especificamente, das

decisões criminais, representa um passo importante para entender a forma como é

exercido o direito de punir, que tem como uma de suas características a

imperatividade.

83

Nessa linha, discorrendo sobre a necessidade de controle e racionalidade das

decisões judiciais, esclarece Aury Lima Lopes Júnior:92

No modelo garantista não se admite nenhuma imposição

de pena; sem que se produza a comissão de um delito; sem que ele

esteja previamente tipificado por lei; sem que exista necessidade de

sua proibição e punição; sem que os efeitos da conduta sejam

lesivos para terceiros; sem o caráter exterior ou material da ação

criminosa; sem a imputabilidade e culpabilidade do autor; e sem

que tudo isso seja verificado através de uma prova empírica, levada

pela acusação a um juiz imparcial em um processo público,

contraditório, com amplitude de defesa e mediante um

procedimento legalmente preestabelecido.

A partir de tais premissas, acentua-se a importância na definição do dever de

motivação, que deve ser o alicerce de todos os pronunciamentos decisórios criminais,

já que, dentre tantas outras garantias, é a que serve para dar efetividade aos demais

direitos fundamentais, também porque limitadora dos poderes jurisdicionais.

Nesse ponto, um primeiro questionamento deve ser enfrentado, para

esclarecer a possível distinção entre a fundamentação e a motivação das decisões

judiciais. Nereu José Giacomolli,93 a propósito, esclarece:

92Em Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004, p. 253. 93Em “Aproximação...”, cit., p. 71. Nesse sentido, ver também PICÓI JUNOY, Joan. Las garantias contitucionales del processo. Barcelona: Bosch, 1977, p. 61, quando afirma i a obrigação de fundamentar as sentenças além de mera emissão de uma declaração de vontade do julgador, num

84

Considerando que o nosso ordenamento jurídico utiliza,

indistintamente, os termos fundamentação e motivação, se faz

necessário estabelecer sua diferenciação, possibilitando uma

melhor compreensão do objeto da presente investigação.

Por motivo se entende a causa ou a condição de uma

escolha, a qual direciona a atividade para um fim específico,

orientando a conduta humana, sem, no entanto, fornecer uma

explicação ou uma justificação.

O fundamento é a explicação ou a justificação racional da

coisa da qual é causa; a razão de ser. O fundamento permite

compreender porque determinada decisão foi ditada num sentido e

não em outro; porque é assim e não de outra forma. Em suma,

possibilita o entendimento ou a justificação racional da coisa, da

qual é causa. O fundamento ou razão suficiente explica por que a

coisa pode ser ou comportar-se de determinada maneira. Wolff

distinguia o princípio essendi (razão da possibilidade da coisa), o

fiendi ou da causalidade (do acontecer - razão da realidade) e o

cognoscendi ou de demonstração (proposição que leva ao

conhecimento da verdade de outra proposição).

Assim, fica clara a existência de uma primeira fundamental distinção entre

fundamentar e motivar: a fundamentação está vinculada à possibilidade de

sentido ou em outro, para impor que toda decisão esteja procedida de uma argumentação que a fundamente.

85

compreender o sentido da decisão (a favor ou contra), ou seja, a preferência, a escolha

realizada; a motivação, por sua vez, é a causa da escolha.

Discorrendo sobre a importância da motivação das decisões, ensina Aury

Lopes Lima Júnior:94

Nesse contexto, a motivação serve para o controle da

racionalidade da decisão judicial. Não se trata de gastar folhas e

folhas para demonstrar erudição jurídica (e jurisprudencial) ou

discutir obviedades. O mais importante é explicar o porquê da

decisão, o que o levou a tal conclusão sobre a autoria e

materialidade. A motivação sobre a matéria fática demonstra o

saber que legitima o poder, pois a pena somente pode ser imposta a

quem – racionalmente – pode ser considerado autor do fato

criminoso imputado. [...].

Quando se fala em racionalidade e razão, é

importantíssimo destacar que concepção estamos dando à “deusa

razão”. Não se trata da razão no sentido cartesiano, que separa a

mente do cérebro e do corpo, substanciando o “penso, logo existo”,

pilar de toda uma noção de superioridade da racionalidade e do

sentimento consciente sobre a emoção. Isso sugere que pensar e ter

consciência de pensar são os verdadeiros substratos de existir, pois

Descartes via o ato de pensar como uma atividade separada do

corpo, desvinculando a “coisa pensante” do ‘corpo não pensante’.

94Em o. cit., p. 254.

86

Interessante observação pode ser feita, tanto no texto constitucional, quanto no

Código de Processo Penal, sobre essa questão: o texto constitucional, no artigo 93,

IX, ao se referir às decisões do Poder Judiciário, determina que sejam fundamentadas,

sob pena de nulidade, enquanto que o artigo 381, III, do CPP, exige que o

magistrado, na sentença, indique os motivos de fato e de direito em que se fundar

(fundamentar) a decisão.

É por isso que, com razão, Nereu Giacomolli95 continua a ensinar, mostrando

a distinção entre motivar e fundamentar:

Portanto, motivar não é sinônimo de fundamentar. A

fundamentação pode ser só baseada em motivos de direito, por

exemplo, ou só em motivos de, fato, ou nos dois. É claro que a

fundamentação da decisão terá como base fática e/ou de direito.

Toda decisão judicial deverá ser motivada e fundamentada. Motivar

é dizer quais as bases fáticas e/ou de direito que permitem a funda-

mentação, ou seja, a explicação racional da decisão. Somente a

motivação, sem uma fundamentação, uma explicação racional que

possibilite o entendimento que permita a sua compreensão, não

satisfaz o artigo 93, IX, da Constituição Federal.

As mesmas circunstâncias fáticas - motivos - podem

embasar duas decisões diferentes, dependendo da compreensão e da

justificação racional do juiz. Da mesma forma, a mesma matéria de

direito - motivo - poderá levar a duas decisões diferentes. Por isso,

a motivação orienta o raciocínio do magistrado, mas a

fundamentação depende da exteriorização racional, da explicação

racional. A racionalização do juiz Pedro poderá ser diferente da

95Em “Aproximação...”, cit., p. 62.

87

explicação do juiz João, embora utilizem os mesmos substratos de

fato e de direito.

É a fundamentação que permite à acusação e à defesa

saber o porquê da conclusão num sentido ou em outro; permite

desvendar o aspecto positivo (o explicitado) e o negativo (o porquê

da conclusão diferente). A acusação e a defesa impugnam a decisão

porque a dualidade e o oposto são possíveis. A verdade

racionalizada no processo é a verdade processualizada, a que o

magistrado racionaliza com o que os autos contêm (verdade

contextualizada nos autos), mais a sua compreensão. Isso significa

que pode ser emitida uma solução oposta à que foi exteriorizada

nos autos do processo, mas também justificável, fundamentada,

inclusive sobre o mesmo substrato. As duas soluções não

necessariamente serão excludentes, em termos de fundamentação.

São possíveis e válidas, constitucionalmente, sempre que houver

motivação e fundamentação.

Portanto, fundamentar é mais que motivar, e não há

fundamentação sem motivação.

Caracterizada a importância do dever de motivar e fundamentar, pode ser

compreendido, agora, o seu alcance.

88

3.3 A motivação dos atos decisórios

Quando se destaca a importância da necessidade da motivação e da

fundamentação e motivação das decisões judiciais, uma primeira referência é feita: tal

garantia alcança, em termos procedimentais, os chamados atos decisórios, ainda que a

decisão seja interlocutória, como a decisão que instaura a ação penal, pelo

recebimento da denúncia ou queixa.

Nesse sentido, queremos enfatizar que certas decisões judiciais, embora não

sejam definitivas (sentenças de mérito), acabam alterando a situação dos agentes,

transformando-os de suspeitos, indiciados, investigados ou referidos em demandados

ou processados.

A sustentação que se faz, nesse contexto, é que o sistema constitucional exige

a motivação até para os atos administrativos (artigo 93, X) expedidos pelo Poder

Judiciário; daí, com muito mais razão, não obstante o silêncio do Código de Processo

Penal, imperiosa a necessidade de demonstração da justa causa para a instauração da

lide penal.

Como refere Giacomolli,96 não há qualquer dúvida de que o não-recebimento

ou rejeição da denúncia ou queixa devem ser fundamentados, até em razão da

possibilidade de recursos específicos contra tal ato; todavia, a divergência doutrinária

96Em “Aproximação...”, cit., p. 84.

89

existente acerca da necessidade/desnecessidade de fundamentação do recebimento da

inicial acusatória deve ser dissipada pela exigência constitucional da fundamentação

das decisões judiciais, entendendo-se que o provimento jurisdicional de recebimento

da denúncia ou queixa é verdadeira decisão, devendo, por isso, ser proferida de

conformidade com o inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, que exige

fundamentação no proceder jurisdicional.

Nesse sentido, mais uma vez, acertada a lição97 que assenta:

Por isso, pensamos que a decisão que recebe a denúncia ou

a queixa-crime, sem a devida motivação e fundamentação, não

encontra legitimação constitucional. A fundamentação, para

encontrar validade constitucional, não basta repetir o artigo da lei,

mas adequar os fatos e circunstâncias ao requisito legal, de forma

racional, de modo explicativo e compreensível. Embora não se

exija uma análise profunda da culpabilidade do agente, é de exigir-

se a motivação da culpabilidade provisória (viabilidade acusatória,

determinada pela presença dos requisitos legais). Nesse sentido,

embora tímidas, há decisões dos tribunais. A culpabilidade

definitiva carece de fundamentação no juízo condenatório.

Dessa forma, de acordo com a orientação constitucional, todos os atos

procedimentais que importem em mudança de situação do acusado, e não somente a

97 GIACOMOLLI, Nereu José. “Aproximação...”, cit., p. 87.

90

sentença condenatória criminal, devem receber a pertinente motivação e

fundamentação.

3.4 A exigência de fundamentação e motivação da sentença

A sentença criminal é o provimento jurisdicional definitivo que encerra o

processo pelo qual o Estado deslinda a causa que lhe é posta. Se a Constituição

Federal assegura que nenhuma lesão ou ameaça de lesão pode ser excluída da

apreciação do Poder Judiciário, é através da sentença criminal que, na seara penal,

que o jus puniendi é exercitado com intensidade, já que a pena somente pode ser

aplicada em decorrência do processo penal.

Quando condenatória, a sentença criminal há de conter, além do fundamento e

dispositivo, a fixação da pena, a forma de seu cumprimento e o respectivo regime

prisional inicial.

A fundamentação é uma das partes mais importantes da sentença

condenatória. Explica Nereu José Giacomolli:98

98 Em “Aproximação...”, cit., p. 89.

91

Na segunda parte da sentença, denominada de

fundamentação, é que o julgador emite seu juízo de mérito sobre a

procedência (total ou parcial) ou improcedência da pretensão

acusatória. É o momento em que é construído o juízo de absolvição

ou de condenação, com base na motivação fática, a qual recebe a

qualificação jurídica (motivação jurídica) dos fatos. Todas as teses

trazidas aos autos devem ser analisadas, sob pena de nulidade de

um juízo condenatório mesmo que de forma sucinta.

Como visto, existente distinção entre fundamentação e aplicação da pena, a

localização do dispositivo também é importante para, em caso de provimento de

recurso defensivo que vise à modificação da pena, determinar-se a subsistência ou

não da sentença.

Assim, esclarece Giacomolli:99

Há duas formas de estruturação formal de uma sentença

criminal: fixação da pena antes ou após o dispositivo. Fixando a

pena antes do dispositivo, considerando que este é parte essencial

da sentença criminal, nos termos do Código de Processo Penal, a

falta de motivação válida e suficiente da fixação da pena acarreta a

nulidade integral da sentença, pois a fixação da pena está antes do

dispositivo, integra o comando sentencial. Ao contrário, quando a

individualização da pena for efetuada após o dispositivo, a nulidade

seria só da aplicação da pena, na medida em que permaneceria

99 Em “Aproximação...”, cit., p. 89/90.

92

hígida a racionalidade motivada em fatos e no direito, no que tange

ao juízo condenatório, bem como o seu comando legal.

Idêntica situação pode ser traçada em se tratando de decisão de segundo

grau,100 no exercício da atividade jurisdicional recursal:

Vêm entendendo os Tribunais que a nulidade é somente da

aplicação da pena quando esta parte da sentença é a defeituosa, a

que não está bem fundamentada, permanecendo hígidas as demais

partes do decisum, como antes afirmado. Da mesma forma, quando

a aplicação da pena ocorrer no segundo grau de jurisdição. Na

hipótese da medição da pena ter sido elaborada antes do dispositivo

do ato sentencial, a nulidade macula todo o ato e não só a aplicação

da pena, devendo ser prolatada outra sentença (relatório,

fundamentação, dispositivo e aplicação da pena com a sua forma de

cumprimento). Observa-se que na hipótese da aplicação da pena ser

realizada após o dispositivo da sentença, com nulidade somente da

parte que efetuou o cálculo da pena, o juízo ad quem está vedando

que juízo a quo absolva o réu, pois permanece hígida, conforme

entendimento antes referido, a estrutura da sentença que o

condenou. Penso que há de ser analisada a situação concretizada

nos autos, de tal sorte a permitir a reformatio in mellius e vedar a

reformatio in pejus.

100 GIACOMOLLI, Nereu José. “Aproximação...”, cit., p. 94.

93

Como referido, se o defeito de motivação é anterior ao dispositivo da sentença

(ou do acórdão), a nulidade atinge a totalidade do ato sentencial, devendo outra

decisão ser proferida.

3.5 O princípio-garantia da individualização da pena

Como se sabe, nosso sistema probatório é o do convencimento motivado, isto

é, aquele em que o julgador, no momento de decidir, analisa e valora o conjunto

probatório constante nos autos, de forma racional, tendo o dever de motivar o seu

convencimento. No tocante à aplicação da pena, o dever de fundamentar e motivar o

convencimento decorre tanto da obrigação constitucional de fundamentar as decisões,

quanto das garantias irrenunciáveis do condenado, que tem o direito assegurado à

individualização da pena.

A individualização da pena, portanto, deve ser fundamentada, pois, embora

livre o convencimento do julgador, este deve explicitar as razões que o levaram a

determinada dosimetria da sanção. Este dever de motivar a aplicação da pena deve ser

feito sem subjetivismo, de acordo com dados do processo, em relação aos quais tenha

sido possível à defesa realizar a pertinente refutação.

Nesse sentido, esclarece Giacomolli:101

101Em “Aproximação...”, cit., p. 90.

94

Embora várias circunstâncias da aplicação da pena

dependam de uma avaliação do magistrado, influindo,

sobremaneira, a motivação ideológica (o que pensa sobre a pena

privativa de liberdade, o que pensa sobre a situação carcerária, o

que pensa sobre o desrespeito aos direitos fundamentais do ser

humano nos presídios, o que pensa sobre a função da pena e do

Direito Penal, por exemplo), a avaliação e a demonstração da pena

final há de refletir os dados objetivos constantes nos autos.

Evidentemente que componentes outros (antropológicos,

sociológicos, filosóficos, políticos, psicológicos, por exemplo) vão

influir no momento em que o magistrado, por exemplo, avalia que

o acusado registra antecedentes: afasta a pena do mínimo legal em

seis meses ou um ano; ao reconhecer a menoridade: diminui a

pena-base em seis meses ou um ano.

Assim, embora seja possível a análise de circunstâncias que não tenham

vinculação direta com o fato, mas envolvam juízo sobre o agente, imprescindível que

o juízo de reprovabilidade reflita prova dos autos, garantida a possibilidade defensiva

da refutação.

3.6 A valoração das circunstâncias judiciais e a garantia constitucional da

individualização do apenamento

95

O Código Penal, no artigo 68, determina que a aplicação da pena deve ser

feita observando-se fases ou etapas, realizando-se o procedimento da individualização

a partir de determinadas circunstâncias, judiciais ou legais.

Comentando o método trifásico, mais uma vez ensina Nereu José

Giacomolli:102

O Código Penal estabelece a fixação da pena privativa de

liberdade em três fases distintas, as quais devem ser observadas,

sob pena de nulidade, salvo hipótese de extirpação de aumento ou

diminuição que pode ser feita pelo órgão ad quem, sem prejuízo ao

acusado. É uma garantia do acusado, também sob o prisma da

motivação das decisões, na medida em que os sujeitos processuais

são informados das razões da fixação do quantum penal. Na dicção

do STF, é um direito público subjetivo do acusado. Na fixação da

pena-base, parte-se do mínimo cominado no tipo penal, afastando-

se desse quantum na medida em que forem surgindo as

circunstâncias desfavoráveis previstas no artigo 59 do Código

Penal, motivadas em fatos e circunstâncias concretas mediante

avaliação adequada à necessidade de incidência proporcional do ius

puniendi. O afastamento do mínimo há de vir devidamente

motivado e, não havendo motivação suficiente e adequada ao

substrato fático contido nos autos, o órgão ad quem deverá

modificar a individualização, em favor do acusado, com o

102 Em “Aproximação...”, cit., p. 90/91.

96

apenamento mínimo possível, adequado à respectiva fase de

aplicação da pena ou à própria circunstância.

Penso que todas as circunstâncias do artigo 59 do Código

Penal devem estar devidamente fundamentadas, contando-se em

favor do acusado aquelas que carecem de fundamentação legal,

embora haja entendimento contrário do STF, pela desnecessidade

da análise individualizada de cada circunstância judicial, mas

sendo observadas todas as fases.

Nesta seara da exigência da individualização da pena, não se pode olvidar que

o condenado tem a garantia de que as circunstâncias devam ser analisadas, e a

exacerbação da sanção além do mínimo devidamente fundamentada.

Outro aspecto a ser enfrentado, no tocante à individualização, é acerca da

necessidade de fundamentação, quando a pena restar individualizada no mínimo

legal. A questão aqui posta pode ser resolvida pela ausência de prejuízo, quando

suficiente a fundamentação da decisão condenatória, aplicando-se o sistema de

nulidades do Código de Processo Penal, que proclama a manutenção dos atos

processuais quando inexistente prejuízo às partes.

3.7 Individualização da pena e sistema constitucional de garantias

Quando da aferição de qualquer aspecto do direito positivado, essencial atentar-

se para a importância que o sistema constitucional exerce sobre a legislação posta.

Essa maximização da potência constitucional deve ser verificada, sobremaneira, em

97

relação ao direito penal e seu instrumento de realização, o direito processual penal,

cuja compatibilidade programática necessita ser adequada ao programa da carta

fundamental, principalmente num modelo de Estado Social e Democrático de Direito,

em que princípios e valores constitucionais adquirem relevância extrema, ensejando

do aplicador (intérprete) imediata efetivação. Nesse sentido, postulando uma posição

transformadora do direito, sustenta Rogério Gesta Leal:103

Toda lei enseja interpretação, e o processo hermenêutico

tem, sem dúvida, relevância superior ao processo de elaboração

legislativa, uma vez que será através da interpretação da norma que

esta será aplicada e inserida dentro de um contexto fático

específico, sendo adequada a toda uma realidade histórica e aos

valores dela decorrentes. Cremos, na seqüência desta reflexão, que

inexiste norma jurídica per si, senão uma norma jurídica

interpretada, ressaltando que interpretar um ato normativo nada

mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública

do espaço social e político em que tem vigência.

Dessarte, o que se sustenta é a necessidade de interpretar/reinterpretar o

procedimento da aplicação da pena, compatibilizando as circunstâncias judiciais e

103 Em Hermenêutica e Direito: considerações sobre a teoria do direito e os operadores jurídicos. 2ª ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1999, p. 155. Na mesma linha, defendendo a imediata aplicação dos princípios constitucionais vinculados aos direitos fundamentais, na p. 160, volta a insistir: “Sustentamos, pois, que a Constituição, e em especial seus princípios fundamentais, é, integralmente, norma jurídica, tendo todas suas disposições aplicação imediata e direta, vinculando os poderes instituídos do Estado e a própria sociedade civil. Daqui decorre o entendimento de que a eficácia dos direitos fundamentais, dentre eles os direitos humanos, não depende de prévia regulação na lei ordinária, mas antes e pelo contrário, se aplicam independentemente de intervenção legislativa.” .

98

legais do Código Penal104 com o princípio da secularização, que marca, de forma

definitiva, a separação entre direito e moral, consagrando o respeito à personalidade

(direito à diferença), tendo, portanto, incidência imediata, no ensinar de Salo de

Carvalho105 que esclarece:

A secularização, ainda, de acordo com a cadeia

principiológica estabelecida pela Constituição, deduz inúmeros

(sub) princípios, como o da inviolabilidade da intimidade e respeito

da vida privada (art. 5°, X); do resguardo da liberdade de

manifestação do pensamento (art. 5°, IV); da liberdade de

consciência e crença religiosa (art. 5°, VI); da liberdade de

convicção filosófica ou política (art. 5°, VIII); e da garantia da livre

manifestação do pensar (art. 5°, IX). Note-se que, em realidade, a

amplitude e o alcance do princípio é superior ao da sua gênese

histórica iluminista, representando atualmente verdadeira pedra

angular da democracia e ferramenta pródiga de

legitimação/deslegitimação de toda a atividade do poder estatal,

seja legiferante, administrativa e/ou judicial. Possibilita, inclusive,

a averiguação dos níveis de legitimidade e dos graus de justiça e

validade de todo o sistema jurídico, principalmente das legislações

penais ordinárias – inclusive pré-constitucionais.

Portanto, a pretensão é demonstrar a importância da interpretação para a

efetivação dos direitos fundamentais e, num momento posterior, após realçar a força

das disposições constitucionais na aplicação da pena, acentuar a recepção do

104 O Código Penal Brasileiro, ao estabelecer o procedimento da aplicação da pena determina, no seu artigo 68, observar, em primeiro lugar, as circunstâncias judiciais, previstas no art. 59, entre as quais se incluem a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, as circunstâncias e conseqüências e o comportamento da vítima. As circunstâncias legais, agravantes e atenuantes, majorantes e minorantes, são apreciadas nas fases posteriores do processo de individualização da sanção. 105 CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Hamilton Bueno de. Aplicação da pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 17.

99

princípio da secularização e sua influência no sistema penal, o que exige mudança

operativa dos profissionais do direito.

3.8 A importância do processo interpretativo para a individualização sanciona-

tória

O questionamento da validade das normas punitivas, formalmente vigentes, a

partir da ordem constitucional, é instrumento fundamental para aferição da validade

do ordenamento jurídico num Estado Democrático de Direito. Uma das formas de

realizar este enfrentamento é a partir de uma hermenêutica (crítica), que pode ser

definida, em linhas gerais, como a teoria da interpretação do sentido.

Rogério Leal106 sustenta a essencialidade do processo interpretativo:

Há um reconhecimento de que as expressões humanas

contêm componentes significativos, que tem de ser conhecidos

106Em Hermenêutica e Direito: considerações sobre a teoria do direito e os operadores jurídicos. 2ª ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1999, p. 134. E mais, na p. 133, acerca da eficácia dos princípios constitucionais, acentua que “No Brasil, principalmente no que tange à teoria constitucional, não temos os operadores jurídicos nos esforçado para desvendar e enfrentar os componentes significativos da Constituição Federal enquanto instrumento político jurídico que estabelece os valores e princípios norteadores da constituição da nossa república como um Estado Democrático de Direito”. Essa importância do papel da hermenêutica, continua na p. 141, deve-se à sua função de “romper o hermetismo do universo dos signos jurídicos, abrindo o texto e o discurso ao mundo. Para ela, o intérprete não decodifica apenas um sistema de signos, mas interpreta um texto. Subjacente a este conjunto de idéias está a rejeição de uma concepção de linguagem com função meramente instrumental – a linguagem como signo ou mera função simbólica – considerando-a, ao invés, como uma instituição social complexa, eis que partimos do pressuposto de que as expressões têm sentido apenas no contexto dos distintos jogos de linguagem, que são complexos de discurso e de ação. Assim, a gramática da linguagem jurídica só poderá ser elucidada de dentro, a partir do conhecimento das regras constitutivas do jogo e não mediante apelo a metalinguagem.”

100

como tais pelos sujeitos sociais e transportados para os seus

próprios sistemas de valores e significados.

O resgate desse papel do direito, como ferramenta utilitária de efetivação de

direitos fundamentais, deve ser visto a partir da superação de sua função tradicional.

A distância entre o direito posto e sua funcionalidade, voltada para o futuro, foi

observada por Germano Schwartz,107 ao destacar o papel simbólico do direito:

Tem-se, assim, um quadro de inaptidão e desapontamento

tanto da ciência jurídica como das pessoas, em relação ao

simbolismo que o Direito representa na sociedade moderna. Ele

passa a funcionar, como bem ilustra Ost, em um tempo distanciado

do tempo social, repetindo e entronizando o passado, esquecendo,

dessa forma, seu papel maior: a construção do futuro.

Com propriedade, ensina Lenio Streck108 que para compreender a

Constituição é necessário um rompimento, abrindo-se um espaço hermenêutico de

entendimento. Nesse sentido:

Dizendo de outro modo, o entendimento da Constituição

como sendo o produto de um processo compreensivo, é dizer, de

uma applicatio hermenêutica, pressupõe um rompimento

107Em Direito e Literatura: proposições iniciais para uma observação de segundo grau do sistema jurídico. Revista da Ajuris, 96. Porto Alegre: 2004, pág. 126. 108STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica (jurídica): compreendemos porque interpretamos ou interpretamos porque compreendemos? Uma resposta a partir do Ontological Turn. In: Armário do Programa de Pós-Graduação em Direito 2003. UNISINOS. São Leopoldo: 2003, p. 235.

101

paradigmático, isto é, torna-se imprescindível saltar do ‘modo

apofântico’ para o ‘modo hermenêutico’, isso porque compreender

é um existencial, que é uma categoria pela qual o homem se

constitui.

Dessa maneira, a falta de correspondência entre parcela do direito penal e a

Constituição, segundo Evandro Pelarin, é manifesta,109 havendo a necessidade de

uma nova postura do operador do direito. É que a Constituição traça as linhas gerais a

serem seguidas, onde imperativa a observação de valores que acabam limitando o

direito punitivo do Estado. É, então, de se ressaltar

que a Constituição traça, na sua supremacia formal e material,

principalmente na última, os ditames valorativos a serem seguidos,

de modo que compete ao legislador e ao juiz, para exemplificar, a

criminalização ou a descriminalização das condutas: ou, numa

linguagem técnica para o último, a penalização ou a despenalização

no caso concreto.110

Se inevitável, portanto, a supremacia dos valores defendidos

constitucionalmente em face do direito punitivo, é fundamental (re)entender a

relevância decorrente dos direitos (ou princípios) assentados na Constituição. E, aqui,

parece importante o enfrentamento, por exemplo, em nível de teoria do fato punível,

109 Em Bem Jurídico Penal, São Paulo, IBCCRIM, 2002, p. 90, quando destaca a absoluta infidelidade do direito penal à Constituição vigente. 110 Idem, p. 93.

102

do papel do bem jurídico, dentro de um contexto de ofensividade,111 a partir de um

verdadeiro sistema constitucional de delito. É que, num Estado Constitucional e

Democrático de Direito, obedecida a regra da secularização, o crime deve ser

compreendido não como infração do aspecto imperativo da norma primária (que

determina coativamente uma determinada pauta de conduta), “senão, principalmente

como infração do aspecto valorativo dessa mesma norma”.112 Então, uma primeira

tarefa é contextualizar o papel do bem jurídico na concepção do injusto penal, a partir

dos valores constitucionais, o que passa pelo enfrentamento do objeto da proteção do

direito penal, com análise das novas concepções funcionalistas (Jakobs),113 que

sustentam ser função do direito penal a proteção de vigência das normas punitivas.

Outro essencial aspecto a ser destacado, vinculado ao objeto central deste

estudo, é a estrutura do sistema sancionador, cuja importância transcende a própria

111 GOMES, Luis Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 15, sustentando: “O princípio da ofensividade, desse modo, para além de cumprir uma dupla função: (a) político-criminal (dirigida ao legislador, que está obrigado a só descrever tipos penais ofensivos a bens jurídicos) e (b) dogmática e interpretativa (dirigida ao intérprete e ao aplicador da lei).” 112GOMES, Luis Flávio. Op. cit., p. 36, aduzindo ainda: “É preciso, dessarte, que os bens jurídicos protegidos, tanto o imediato – segurança viária – quanto os mediatos – vida, integridade física das pessoas, patrimônio, etc. -entrem no raio da ação perigosa (criadora de riscos), gerando um concreto perigo de dan.” 113 JAKOBS, apud GRECO, Luis. Introdução à dogmática funcionalista do delito. Editora Renovar, 2002, p. 139, apoiado nos estudos de NIKLAS LUHMANN sustenta que “o mundo em que vivem os homens é um mundo pleno de sentido. As possibilidades de agir são inúmeras, e aumentam com o grau de complexidade da sociedade em questão. O homem não está só, mas interage, e ao tomar consciência da presença dos outros, surge um ‘elemento de perturbação’: não se sabe ao certo o que esperar do outro, nem tampouco o que o outro espera de nós. Este conceito, de expectativa, desempenha valor central na teoria de LUHMANN: são as expectativas e as expectativas de expectativas que orientam o agir e o interagir dos homens em sociedade, reduzindo a complexidade, tornando a vida mais previsível e menos insegura”. A concepção funcionalista, na acepção antes explicitada, sustenta que a defesa do bem jurídico pode ser estruturada a partir da visão de que “a vida em sociedade torna cada pessoa portadora de um determinado papel – pedestre, motorista, esportista, eleitor – que consubstancia um feixe de expectativas. Cada qual, e não só o autor de crimes omissivos impróprios, como na doutrina tradicional, é garante destas expectativas”.

103

noção de delito. É que as disposições procedimentais sobre aplicação da pena devem

ser adequadas ao ordenamento constitucional, fazendo-se a leitura dos códigos a

partir da Constituição (e não o procedimento inverso). É o que será analisado a

seguir.

3.9 A necessária releitura das disposições normativas referentes à aplicação da

pena

Sabe-se que a função da pena é objeto de debates infindáveis, havendo,

inclusive, sustentação de que deve nortear-se por valores político-criminais.

Todavia, o aspecto mais alarmante, sob a ótica da operacionalização do direito

penal, é a dissociação entre alguns princípios constitucionais (secularização,

fundamentação das decisões, respeito à dignidade da pessoa humana, humanidade,

culpabilidade) e as sanções cominadas, que acabam se constituindo na única

alternativa de enfrentamento a comportamentos aleatoriamente definidos como

desviantes, sem a necessária observação de que a criminalidade é um fenômeno

complexo.

A questão central é, portanto, como compatibilizar aspectos do direito penal e

processual em face dos valores constitucionais, estes de observação obrigatória e

eficácia imediata, conseqüência da própria função da Carta Maior.

104

Nesse contexto, surge, cada vez mais, a necessidade de uma mudança de postura

operativa, a fim de abrandar o alcance do positivismo formal na construção de uma

nova dogmática jurídica (não-tradicional), em que os valores constitucionais sejam

referência para um direito tutelador de valores efetivamente relevantes para a

coletividade. Aqui, potencializa-se a importância, no caso do direito penal, de um

processo penal adequado constitucionalmente. A crise da dogmática jurídica

tradicional há de ser superada, com a adoção de novos procedimentos interpretativos.

O entendimento da teoria da pena, portanto, deve ser compatibilizado com a

busca de uma nova justificativa (papel) para a individualização da sanção penal, a

partir do sistema das garantias e valores constitucionalizados. Não mais é suficiente a

mera repetição dos dizeres do texto legislativo; é imprescindível, ao contrário, buscar

a compatibilidade (interpretar, hermeneuticamente) de tais dispositivos. O ponto de

partido para essa tarefa é compreender o princípio da secularização e sua importância

para o direito penal, operando reflexos deste entendimento na valoração das

circunstâncias judiciais que determinam a dosimetria da pena.

3.10 Dosimetria da sanção penal e a importância do princípio da secularização

É relevante contextualizar a noção de secularização, a partir de sua base

conceitual. Salo de Carvalho114 esclarece:

114 Em op. cit., p.5.

105

O termo secularização é utilizado para definir os

processos pelos quais a sociedade, a partir do século XV, produziu

uma cisão entre a cultura eclesiástica e as doutrinas filosóficas

(laicização), mais especificamente entre a moral do clero e o modo

de produção das ciências.

Este processo de distanciamento entre o direito, enquanto ciência, e as

justificações teológicas, foi um caminho longo, não decorrendo apenas da produção

filosófica.

Ainda, segundo Salo de Carvalho:115

Toda explicação dos fenômenos mundanos era fornecida

com base nas doutrinas cléricas, ocasionando não apenas um

entrelaçamento entre moral e ciência mas, fundamentalmente, entre

moral e política, e, em decorrência, entre moral e direito (penal).

Das fundamentações cosmológicas do mundo, presentes na

antiguidade, a teologia passa a fornecer, desde a consolidação do

cristianismo, todas as respostas necessárias para a compreensão do

homem. Assim, ‘a’ verdade passa a ser dada desde uma pesquisa

teocêntrica.

[...]

Se é a partir do Século IV a.C (marco inicial da filosofia,

pois antes de Tales de Mileto a esfera do conhecimento é baseada

115 Em op. cit., p. 6.

106

em fantasias e mitos) que o fundamento do saber adquirirá, com a

perspectiva cosmocêntrica, característica metafísica (realidade para

além da physis), o primeiro grande giro metodológico aparecerá

com a compreensão da ciência pela crença, em decorrência do

deslocamento do objeto do universo (cosmos) para o divino. A fé

combate e ‘explica’ a razão. O processo de secularização possibilita

outra mudança copérnica nas ciências, pois o saber passa a ser

fundado na razão do homem. A análise do homem racional funda o

antropocentrismo, negando toda e qualquer perspectiva ontológica

de verdade (verdade em si), iniciando o processo que, no século

XX, redundará na universalização dos direitos humanos.

Esse novo modelo, jusnaturalista, possibilitou ainda, segundo Carvalho,116 que

o direito natural fosse apresentado, historicamente, sob a forma de direito natural

cosmológico (voltado ao cosmos, portanto), direito natural teológico (voltado a Deus)

e direito natural antropológico (girando em torno do homem). E, neste aspecto, o

ponto fundamental, no avanço da concepção da secularização, é a passagem do

jusnaturalismo teológico para o antropológico.

Nesse sentido, continua a explicar Carvalho:117

A fusão entre moral e direito na esfera penal, presente no

modelo jusnaturalista teológico, abriu campo para a intervenção

jurídica na esfera do pensamento, criminalizando e punindo

indivíduos por convicções, idéias, pensamentos e outras opções

pessoais. Ao agregar direito e moral, obtém-se como corolário

lógico uma percepção híbrida de crime, consagrado na sinonímia

116 Em op. cit., p. 7. 117 Idem, p. 8.

107

delito-pecado. O criminoso, portanto, antes de mais nada, é um

objeto de consciência, visto que não corresponde (nega) ‘o’ modelo

de verdade imposta. Não é por menos que a idéia de heresia,

segundo o Directorium Inquisitorium, obra de maior significado e

representação à repressão imposta pelos Tribunais do Santo Ofício

na Inquisição Espanhola, significa eleição e adesão de uma falsa

(perversa) doutrina em detrimento da verdadeira.

O início da superação de tal modelo somente é concebido com o surgimento

das correntes contratualistas, em que a concepção do delito passa a ser estruturada a

partir do dano causado (resultado) e não do homem pelo que é. Nesse sentido, a

Escola Positiva bem acentuou as bases para a incidência penal. A propósito, ensina

Eduardo Reali Ferrari:118

Partindo do fato de que o delinqüente era fruto de uma

concepção antropologicamente anormal, ou, quando muito, de má

influência social, positivistas italianos defendiam a tese de que a

punição se justificava apenas por sua responsabilidade social.

Como dito, sob essa nova perspectiva (contratualista), surge a necessidade de

proteção de um direito fundamental, que é o direito à diferença, ou seja, espaço sobre

o qual o Estado não pode interferir. Não há uma cessão de todos os direitos do

118 Em op. cit., p. 22.

108

cidadão para o Estado, mas uma reserva, imune da interferência estatal. Mais uma

vez explica Salo de Carvalho:119

Ressaltamos, porém, o fato de que não são todas as

liberdades pactuadas, e muito menos a vida ingressa nesta

bilateralidade obrigacional. A esfera de liberdade da consciência e

a vida, bem como a plenitude da liberdade de locomoção (ir, vir e

permanecer), não estão entre os bens disponíveis ao indivíduo

pactuar, visto serem inalienáveis, isto é, anteriores e insuscetíveis

ao pacto, pois são os seus próprios pressupostos.

Acentuando o caráter laico do Estado, por força da separação entre direito e

moral, ensina Luigi Ferrajoli:120

A doutrina da separação entre direito e moral, da maneira

como vem sendo equacionada pelo conjunto de proposições

assertivas e prescritivas até o momento analisadas, reflete o

processo, contemporâneo ao nascimento do Estado moderno, por

meio do qual o direito e a cultura jurídica, particularmente de

conteúdo penal, tornaram-se laicos. Referida doutrina, sob o

aspecto teórico, foi útil para o desenvolvimento de uma ciência

penal juspositiva, fundada sobre o princípio da legalidade, e, sob o

prisma normativo – juntamente com aquela, também normativa,

dos ‘direitos naturais’ – importante na elaboração de grande parte

119 CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Hamilton Bueno de. Op. cit., p. 11. 120 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer e outros. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 180.

109

das garantias de liberdade do cidadão, bem como das formas do

moderno ‘Estado de Direito’, tais como sistema político sujeito a

regras, limites e controles.

Acentuada, assim, a importância do princípio da secularização para o direito

penal, um outro aspecto, na dimensão estreita desta abordagem, é compreender a

inserção desse referencial no corpo da Constituição. A discussão é identificar a

recepção, explícita ou não, do referido princípio.

Salo de Carvalho, discordando da perspectiva apresentada por Canotilho e por

Zaffaroni, sustenta que o princípio da secularização integra o texto constitucional

pátrio:121

Advogamos que o princípio está incorporado em nossa

realidade constitucional, não sendo dedutível dos demais valores e

princípios, mas sendo ‘o’ princípio do qual aqueles são dedutíveis.

Nesse sentido, a categoria corresponde a um dos núcleos

substanciais do ordenamento jurídico, juntamente com os preceitos

preambulares da Constituição (o pluralismo, a fraternidade, o

pacifismo, a igualdade) e os ‘fundamentos’ estabelecidos no art. 1°

(soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, pluralismo

político). Tais princípios, ou valores constitucionais, sedimentam

121 Em op. cit., p. 15. Todavia, o autor faz a ressalva de que CANOTILHO sustenta que o princípio da secularização está vinculado, principiologicamente, ao modelo republicano e, no caso da Constituição Portuguesa, os principais corolários lógico-materiais do laicisismo surgem a partir da separação e neutralidade do Estado em relação à igreja e no tocante à liberdade de consciência. Já para Raúl Zaffaroni a secularização é princípio metajurídico, funcionando como um referencial de legitimidade externa do direito penal.

110

os pilares axiológicos sob os quais está fundada a República,

conformando a estrutura jurídica basilar do Estado, diluindo e

contaminando sua carga valorativa às demais esferas normativas.

De qualquer forma, o sistema constitucional brasileiro permite, baseado no

princípio da liberdade de crença, que o modelo estatal seja laico.

3.11 Princípio da secularização e circunstâncias judiciais

Do antes sustentado, aduz-se que necessária uma readequação interpretativa

acerca da função das circunstâncias judiciais, previstas no artigo 59 do Código Penal,

as quais, no procedimento da individualização da pena, determinam a fixação do

quantum inicial do apenamento, a chamada pena-base.

Uma primeira análise das referidas circunstâncias122 que servem para definir a

fase inicial da aplicação da pena revela que algumas têm vinculação ao fato

(circunstâncias e conseqüências do crime), enquanto que outras embasam a

individualização da sanção sobre a personalidade do agente (antecedentes, conduta

social, personalidade) ou sobre o modo de comportamento do ofendido

(comportamento da vítima).

122 Na forma do artigo 59 do Código Penal, as circunstâncias judiciais são a culpabilidade, os antecedentes, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias e conseqüências do crime e o comportamento da vítima.

111

É nesse momento que, na linguagem de Salo de Carvalho, o sistema penal

revela toda a sua perversidade,123 visto que tolera e admite a valoração de elementos

morais, que impedem a averiguabilidade probatória, sendo de impossível refutação

empírica, quando considerados em desfavor do agente.

Se o modelo de Estado Democrático de Direito se caracteriza pela adoção da

secularização, as condutas morais, vinculadas à personalidade, não poderão servir de

base para decisão adequadamente motivada, sob pena de violar um dos pilares do

modelo Constitucional, que é o respeito à dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, defendemos que, na fixação da pena, critérios vinculados a

aspectos morais não poderão ser analisados, como base para dimensionar a sanção

penal na primeira fase. A impossibilidade de análise recai, como decorrência, sobre as

circunstâncias judiciais nominadas de antecedentes, conduta social e personalidade.

Sobre antecedentes, sustenta Salo de Carvalho:124

Entre as correntes extremadas, o posicionamento que

perdura é o de que inquéritos instaurados e processos criminais em

andamento, absolvições por insuficiência de provas, prescrições

abstratas, retroativas e intercorrentes, além de condenações

criminais sem trânsito em julgado ou que não constituem

123 Em op. cit., p. 31. 124 Em op. cit., p. 49.

112

reincidência devem ser valoradas como antecedentes negativos do

imputado.

Criticando tal posicionamento, sustenta o mesmo autor a impossibilidade da

valoração de tal circunstância, pelo caráter perpétuo dos antecedentes e visto que

representam valoração moral do agente.

Nesse sentido, um primeiro passo é fixar um marco temporal para a irradiação

dos efeitos da condenação anterior, tal como ocorre com a reincidência.125 Assim,

sugere Salo de Carvalho aplicar-se o referido prazo:126

Note-se que os antecedentes, além de fornecer uma

graduação à pena decorrente do histórico de vida do acusado,

representam um gravame penalógico eternizado, em total afronta

aos princípios constitucionais referidos (princípio da racionalidade

e humanidade das penas).

Assim, cremos urgente instituir sua temporalidade,

fixando um prazo determinado para a produção dos efeitos

impostos pela lei penal. O recurso à analogia permite-nos limitar o

prazo de incidência dos antecedentes no marco dos cinco anos –

delimitação temporal da reincidência -, visto ser a única orientação

permitida pela sistemática do Código Penal.

125 O artigo 64 do Código Penal determina que os efeitos da reincidência prevalecem durante o prazo de cinco (5) anos, contados da data do cumprimento ou extinção da pena. 126 Em op. cit., p. 52.

113

Por outro lado, além da necessidade de limitar os efeitos temporais da

consideração dos antecedentes, uma sistemática interpretação dos efeitos da

secularização, combinada com o princípio da dignidade da pessoa humana, importa

em excluir da apreciação, para o fim específico da imposição da pena, a circunstância

dos antecedentes, vez que vinculada a personalidade do agente (que voltou a cometer

novo crime) e não ao fato que está sendo julgado.

Assim, continua a sustentar Salo de Carvalho,127 sobre a consideração dos

antecedentes como circunstância judicial:

[...] o instituto afronta, em absoluto, o princípio da

secularização, pois entendemos que o dispositivo legal, agregado à

circunstância conduta social, reforça ainda mais a culpabilidade de

autor, em detrimento da culpabilidade de fato – a consideração da

conduta social na dosimetria da pena representou alinhamento com

a concepção da culpabilidade pelos fatos da vida, e não

propriamente de culpabilidade só pelo fato cometido [...].

Dessa maneira, se no juízo de culpabilidade, como vimos,

já existe forte tendência em subverter o direito penal do fato em

prol de um direito penal do autor, quando da avaliação dos

antecedentes e da conduta social esta opção fica mais nítida. A

eleição legal é fortalecida ainda mais pela obrigatoriedade de o

magistrado valorar a personalidade do autor do fato.

127Em op. cit., p. 53.

114

Assim, se em relação aos antecedentes e conduta social há a possibilidade da

valoração incidir sobre aspectos morais do agente, em detrimento da valoração das

circunstâncias da prática do fato, a análise da circunstância da personalidade do

agente revela direta violação ao princípio do respeito à dignidade da pessoa humana,

na medida da impossibilidade de refutação de uma eventual consideração,

absolutamente subjetiva, de tal circunstância e porque a sua apreciação incide sobre

campo absolutamente estranho ao direito penal do fato.

Logo, não parece possível a valoração da personalidade do agente, pela

pluralidade de significados (descrição de habilidades, perícia social do agente ou

impressão destacada que causa nos outros) que a acepção permite:128

Antes de qualquer coisa, então, para proceder

levantamento apurado e, principalmente, para poder fundamentar o

juízo sobre a personalidade do réu, deveria o juiz indicar qual o

conceito de personalidade em que se baseou para a tarefa, qual a

metodologia utilizada, quais foram os critérios e passos seguidos e,

em conseqüência, em qual momento processual foi-lhe

possibilitada a averiguação [...]

Não basta, pois, o magistrado suscitar um elemento

categórico, encobrindo-o por termos vagos e imprecisos. O

requisito constitucional da fundamentação das decisões impõe a

explicitação dos critérios, métodos e conceitos utilizados.

128 Em op. cit., p. 55.

115

Inadmissível, assim, que se possa auferir juízo negativo de

personalidade sem demonstrar a base conceitual e metodológica

que possibilitou a enunciação.

Dessa forma, não havendo condições para avaliação da personalidade, seja

pela falta de aptidão técnica do julgador, seja porque o objeto recai sobre campo de

alcance vedado pela regra da secularização, a garantia da motivação e fundamentação

das decisões judiciais impede a apreciação de tal circunstância. É o que se conclui, na

sustentação de Salo de Carvalho:129

A indefinição da circunstância da personalidade cria

verdadeira impossibilidade de refutação, bem como de

comprovação, acarretando, na maioria dos casos, nulidade do ato

sentencial por falta de motivação. Mais, tais enunciados ferem

dramaticamente o princípio da taxatividade, pois, segundo

Ferrajoli, decisões nesse sentido inspiram – nos melhores casos –

modelos penais de legalidade atenuada [...].

Em realidade, o que se constata na prática forense é a

redução da circunstância personalidade a juízos sobre o

temperamento e o caráter do imputado [...].

Todavia, entendemos que, mesmo se fosse o magistrado

apto a realizar tal tarefa, o juízo sobre a personalidade do sujeito

seria ilegítimo, visto estar assentado em valoração estritamente

moral sobre o ser do acusado.

129 Em op. cit., p. 58.

116

Diante disso, sustentamos a impossibilidade de, com obediência à necessária

fundamentação das decisões judiciais, considerar-se circunstâncias judiciais, na

individualização da sanção penal, que não permitam refutação e que tenham por

objeto aspectos morais do agente, desvinculadas, portanto, do fato praticado.

Em síntese, o que defendemos é que, se é assegurado à cidadania apresentar

qualquer comportamento, dentro da sua esfera de liberdade individual, somente deve

haver incidência penal na medida em que tal agir estiver previamente tipificado.

Logo, ainda que a conduta social, a personalidade ou a índole do agente não

seja exatamente o que a sociedade ou parte dela espera, ainda assim, pelo princípio

constitucional do respeito à dignidade da pessoa humana, nenhuma censura pode ser

feita pelo modo como vive, sendo incabível, assim, maior sancionamento pelo modo

de vida de alguém.

3.12 A pena motivada como direito fundamental

A análise realizada buscou demonstrar a necessidade de compatibilização do

procedimento de imposição do sancionamento com os valores da ordem

constitucional.

A (re)construção de uma nova base para o sancionamento penal deve ter como

marco o significado de um novo modelo constitucional e sua força irradiante. Uma

117

Constituição existe para produzir efeitos, sendo produto democrático, cabendo aos

operadores uma mudança de postura para sua concretização. É o que ensina Lenio

Streck:130

Constituição significa constituir alguma coisa; é fazer um

pacto, um contrato, no qual toda a sociedade é co-produtora. Desse

modo, violar a Constituição ou deixar de cumpri-la é descumprir

essa constituição do contrato social. Isto porque a Constituição –

em especial a que estabelece o Estado Democrático de Direito,

oriundo de um processo constituinte originário, após a ruptura com

o regime não-constitucional autoritário – , no contexto de que o

contrato social é a metáfora na qual se fundou a racionalidade

social e política da modernidade, vem a ser a explicitação desse

contrato social.

Nessa linha, cumpre salientar que o Direito Penal, enquanto catálogo do

modelo sancionador, deve ter sua compatibilidade com o modelo constitucional

considerando-se que a pena atinge bens de relevante significado para a cidadania.

O princípio da secularização nasceu da superação do modelo de estado

teocrático e jusnaturalista; é produto de uma concepção contratualista, em que a

construção do Estado, via contrato social, não abrange todos os direitos, sendo alguns

inalienáveis. Entre os direitos inalienáveis, que não podem ser pactuados, está o

direito à diferença.

130STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 240.

118

Assim, um programa de direito penal compatível com o modelo de Estado

Constitucional Democrático de Direito deve respeitar a individualidade, não punindo

condutas morais, que não produzam resultados danosos e, quando estes se

verificarem, típica e ilícita a conduta, o sancionamento deve ser imposto com base

exclusiva na culpabilidade, sendo possível conduta diversa; inviável, portanto, a

valoração de aspectos morais ou éticos do agente, desvinculados do fato. O artigo 59

do Código Penal, nessa linha, merece (re) interpretação, vez que sua recepção pela

Constituição Federal de 1988 há de ser compatibilizada com o princípio da

secularização, corolário do modelo republicano e em vista dos valores do modelo de

Estado idealizado pela Carta Maior.

Nessa perspectiva, as decisões judiciais proferidas pelo Poder Judiciário

devem ser fundamentadas e motivadas. Na seara criminal, especialmente na

individualização da pena, mais que uma obrigação, a motivação do sancionamento é

uma garantia constitucional do processado.

Conseqüência do sustentado é a inviabilidade de, no modelo constitucional

brasileiro, considerar-se aspectos morais do agente, descontextualizados do fato

criminoso, para acentuar-se o sancionamento penal, sob pena de violação do

necessário respeito à dignidade da pessoa humana, cujas condutas atípicas não têm

relevância penal, por força da secularização do direito.

119

CONCLUSÃO

Como anunciado na identificação dos objetivos deste estudo, pretendeu-se

investigar a compatibilidade entre o sistema de valores e princípios fundamentais,

inseridos na Constituição Federal, em relação a alguns aspectos do sancionamento

penal, em especial acerca da função exercida pela pena e de critérios para sua

imposição.

De denunciar-se, desde o primeiro momento, o descompasso entre a

operacionalização do direito penal e Constituição, que decorre, entre outras causas,

pela ausência de compatibilidade temporal entre a maior parte da legislação ordinária

e a nova Carta Constitucional, sendo que esta é posterior àquela.

De qualquer forma, o positivismo formal e a exigência de legalidade aparecem

como sólido fator de impedimento da realização de valores fundamentais na seara

penal. Além disso, apresenta-se a dogmática penal, com sua solidez conceitual e

centenária tradição, como fator que dificulta a convivência com a teoria

constitucional.

Nessa linha, propõe-se uma releitura de aspectos do direito penal, para

compatibilizá-lo com os valores da constituição, tendo o cuidado, contudo, de

entender que o próprio corpo do texto constitucional abriga diversos princípios e

120

valores, penais ou de natureza penal, que não guardam necessária identidade

(liberdade de imprensa x proteção da privacidade).

Por isso, uma primeira tarefa empreendida foi (re)entender-se a dinâmica da

teoria constitucional, no tocante a dois de seus temas centrais: a efetividade dos

direitos fundamentais, quando analisada a questão da eficácia e a questão da dupla

dimensão (objetiva e subjetiva) e, por outro lado, o resgate, ainda que sumário, da

teoria dos princípios de Robert Alexy, ferramenta indispensável para proceder-se ao

necessário manejo dos conflitos entre os diversos valores, princípios e regras que

refletem sobre a matéria penal.

Nessa passagem, o estudo revelou, inicialmente, que não é estranha, na

doutrina, a visão de que há resistência à efetivação de valores constitucionais em

relação ao direito penal. Francesco C. Palazzo já apontou essa dificuldade quando

procedeu à análise, no final do século passado, dos sistemas constitucionais da

Alemanha, Itália e Espanha, relativamente ao direito penal.

Essa resistência é que instigou, em grande parte, a investigação realizada, a

qual, como registrado, partiu de uma análise de aspectos da teoria constitucional para,

num segundo momento, buscar sua compatibilidade com temas do direito penal,

especialmente em relação ao sancionamento.

121

Advertiu-se que outros caminhos poderiam ter sido seguidos. O mais natural

seria a análise – o que praticamente ocupa a maior parte da doutrina produzida na

área pena, sob o enfoque constitucional – da penalização sob o enfoque dos valores

fundamentais, centrando o estudo no objeto de proteção do direito penal ou na

possibilidade de criminalização/descriminalização.

A opção exercida, contudo, como dito, foi voltar-se para o estudo de aspectos

vinculados à pena, quer quanto à sua existência (função), quer em relação ao

sancionamento.

Duas questões centrais, como já referido, ocuparam o primeiro capítulo da

tarefa empreendida: o resgate do alcance da efetividade dos direitos fundamentais e o

ferramental disponível para a solução dos conflitos decorrentes da colidência de

valores, princípios e regras.

Quanto ao primeiro aspecto, serviu de apoio, fortemente, a lição de Ingo

Wolfgang Sarlet, que sustenta o entendimento de que, pelo menos em relação aos

direitos individuais, inexiste possibilidade de negação de sua eficácia (emprestando-

se-lhes, então, eficácia limitada), visto que são elementos integrantes da identidade e

da continuidade constitucional, o que, aliás, impede até discussão acerca de sua

supressão.

122

Em relação ao segundo aspecto, foram apontadas as críticas que são dirigidas

a Alexy, quando formula a lei da colisão, a qual, contudo, encontra aceitação

crescente, até porque permite a co-existência de valores e princípios constitucionais,

dando, por outro lado, às regras o necessário papel dentro do ordenamento jurídico.

Ao encerramento do primeiro capítulo procurou-se apontar as chamadas vias

de penetração dos valores constitucionais, relativamente ao direito penal. Apontou-

se, na passagem referida, o forte antagonismo existente entre a liberdade, valor

constitucional por excelência, e a pena, que é a expressão máxima de restrição da

liberdade física. Destacou-se, também, quando analisada a vinculação do direito penal

aos valores constitucionais, a mudança paradigmática provocada pela constituição em

relação ao fenômeno da criminalização, no tocante ao objeto de proteção (bem

jurídico), quando os valores sociais passaram a ser substituídos pelos valores

constitucionais.

Em seqüência, abordou-se a complexa questão da função da pena,

notadamente em relação ao valor constitucional dignidade da pessoa humana, tendo

por objetivo analisar a sua compatibilidade com a anunciada função da sanção penal,

notadamente pelo enfoque preventivo.

Nessa parte da atividade procedeu-se à análise das teorias das penas e, como

ponto de ligação entre o tema penal e seu viés constitucional, buscou-se aferir a

123

compatibilidade da pena e o valor constitucional da dignidade da pessoa humana,

aceitando-se o entendimento de que há compatibilidade entre a função preventiva

exercida pelo sancionamento e referido norte apontado pela Carta Constitucional.

Destacou-se, contudo, que a referida compatibilidade somente é possível quando

houver proximidade entre o cometimento do delito e a aplicação da sanção.

No último capítulo resultante da pesquisa avançou-se, a partir da compreensão

da efetividade dos valores constitucionais e da compatibilidade da função da pena, em

seu viés ressocializador, para o resultado da inflexão de princípios constitucionais no

procedimento de imposição da sanção penal.

Sabe-se que a aplicação judicial da pena é ato impregnado de relativo

subjetivismo, característica do próprio modelo finalista adotado no Brasil, em que a

reprovação da culpabilidade é tarefa atribuída ao juiz sentenciante. Todavia, não pode

a aplicação da pena ser um ato de completa subjetividade.

Na análise procedida, em primeiro lugar, seguindo-se a lição de Nereu

Giacomolli, evidenciou-se a distinção entre fundamentação e motivação dos atos

decisórios, para tornar clara a necessidade de motivação da sentença criminal e da

imposição da pena em especial.

Nesse particular, quando se tratou da individualização da pena, ao lado da

crítica feita em relação às circunstâncias que servem de base para a dosimetria, vez

124

que algumas não guardam a indispensável vinculação com o fato criminoso, buscou-

se reconstruir a base analítica da secularização do direito, mostrando o espaço

reservado à liberdade individual, que não integra o espectro do contratualismo social.

A partir da separação entre direito e moral, defendeu-se o respeito à

personalidade (direito à diferença) para, tendo em conta a necessária atenção ao valor

dignidade da pessoa humana, acentuar que não é possível a valoração de elementos

morais em desfavor do agente, notadamente quando importam em inviável

contraditório.

Denunciou-se que, em relação às circunstâncias judiciais antecendentes,

conduta social e personalidade, a análise leva em conta valores morais, protegidos

constitucionalmente como patrimônio intangível da esfera de disponibilidade pessoal,

sendo, ademais, de impossível refutação.

Finalizando, a síntese possível é que sustentou-se a necessidade de

compatibilidade do procedimento sancionatório com os valores constitucionais, sendo

que tal identidade deve ser buscada quando da escolha da pena, em razão da função

que esta exerce e, também, quando de sua imposição, respeitando-se espaços de

liberdade não sujeitos à aferição penal.

125

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