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Universidade Federal do Rio de Janeiro Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde Atenção Domiciliar: medicalização e substitutividade Emerson Elias Merhy Laura Macruz Feuerwerker Haveria várias possibilidades de desenvolver a análise das experiências de Atenção Domiciliar existentes no país, mas pareceu-nos mais promissor pensar nelas como experiências de práticas de saúde que desafiam e/ou repetem modos hegemônicos de se produzir o cuidado na saúde. Essa seria a vertente analítica com maior potencial de contribuir para enfrentar os desafios impostos pelo desejo de inovação no modo de se construir a atenção à saúde. Leva-nos, independente da modalidade de Atenção Domiciliar praticada – seja como internação domiciliar, dentro de uma lógica nitidamente hospitalar na casa; seja como uma forma de atenção no domicílio, que procura construir novas formas de cuidar; ou mesmo um cuidado paliativo no domicílio resignificando a possibilidade de viver a morte de modo distinto -, olhá-las tanto sob a perspectiva da medicalização, ofertada por Donnangelo (1976), quanto sob o ângulo da discussão contemporânea da substitutividade do cuidado hegemônico por novos modos de produzir saúde, pautado pelo debate da transição tecnológica (e da reestruturação produtiva) na saúde, trabalhada por Pires (2000), Merhy (2002) e Franco (2005). Aqui, por força da reflexão de uma autora como Donnangelo, tratamos o processo de medicalização como “polaridade tensional” (Merhy, 2002) ao de rede substitutiva. Inscrevemos sob esse ângulo de substitutiva as possibilidades inovadoras do cuidado em saúde que renovam o modo hegemônico ou que o desinstitucionalizam criando novos campos de práticas de produção do cuidado, transitando para novos campos para a produção do cuidado em saúde. No Brasil, de modo bem contundente vemos esse processo em ato no território de cuidado em saúde mental, no interior da reforma psiquiátrica, em curso, e das redes antimanicomiais em ação (Reforma Psiquiátrica no Cotidiano 2, vários, 2007). Dessa maneira, a medicalização seria uma das possibilidades de se compreender a construção histórica e social de um campo de práticas, que se expressa na constituição das políticas sociais de saúde, inscritas na relação entre o estado e a sociedade, e que guardam presença marcante em alguns países europeus, do século XVIII para cá, em particular na França, Alemanha e Inglaterra; e em países como o Brasil a partir do século XIX. Com esse conceito Donnangelo procura mostrar que o período histórico de emergência e

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde

Atenção Domiciliar: medicalização e substitutividad e

Emerson Elias Merhy Laura Macruz Feuerwerker

Haveria várias possibilidades de desenvolver a análise das experiências de Atenção Domiciliar

existentes no país, mas pareceu-nos mais promissor pensar nelas como experiências de práticas de saúde

que desafiam e/ou repetem modos hegemônicos de se produzir o cuidado na saúde. Essa seria a vertente

analítica com maior potencial de contribuir para enfrentar os desafios impostos pelo desejo de inovação no

modo de se construir a atenção à saúde.

Leva-nos, independente da modalidade de Atenção Domiciliar praticada – seja como internação

domiciliar, dentro de uma lógica nitidamente hospitalar na casa; seja como uma forma de atenção no

domicílio, que procura construir novas formas de cuidar; ou mesmo um cuidado paliativo no domicílio

resignificando a possibilidade de viver a morte de modo distinto -, olhá-las tanto sob a perspectiva da

medicalização, ofertada por Donnangelo (1976), quanto sob o ângulo da discussão contemporânea da

substitutividade do cuidado hegemônico por novos modos de produzir saúde, pautado pelo debate da

transição tecnológica (e da reestruturação produtiva) na saúde, trabalhada por Pires (2000), Merhy (2002) e

Franco (2005).

Aqui, por força da reflexão de uma autora como Donnangelo, tratamos o processo de medicalização

como “polaridade tensional” (Merhy, 2002) ao de rede substitutiva. Inscrevemos sob esse ângulo de

substitutiva as possibilidades inovadoras do cuidado em saúde que renovam o modo hegemônico ou que o

desinstitucionalizam criando novos campos de práticas de produção do cuidado, transitando para novos

campos para a produção do cuidado em saúde. No Brasil, de modo bem contundente vemos esse processo

em ato no território de cuidado em saúde mental, no interior da reforma psiquiátrica, em curso, e das redes

antimanicomiais em ação (Reforma Psiquiátrica no Cotidiano 2, vários, 2007).

Dessa maneira, a medicalização seria uma das possibilidades de se compreender a construção

histórica e social de um campo de práticas, que se expressa na constituição das políticas sociais de saúde,

inscritas na relação entre o estado e a sociedade, e que guardam presença marcante em alguns países

europeus, do século XVIII para cá, em particular na França, Alemanha e Inglaterra; e em países como o

Brasil a partir do século XIX.

Com esse conceito Donnangelo procura mostrar que o período histórico de emergência e

consolidação das relações sociais capitalistas é coetâneo ao processo de concretização de práticas de

saúde, que se exprimem pela aparição da saúde pública como uma política de estado, em suas distintas

modelagens: polícia médica alemã, sanitarismo inglês e medicina social francesa; ou mesmo, o

campanhismo brasileiro (Merhy, 1985; Gonçalves, 1986). Segundo essa autora, essas modelagens são da

maior importância enquanto constitutivas das relações sociais capitalistas, ou seja, não seriam as mesmas,

se esse campo de práticas da saúde não tivesse sido constituído do jeito que foi. Donnangelo coloca, desse

modo, em discussão a própria noção de determinação econômica das sociedades, pontuando a idéia de

uma sobre-determinação do campo das políticas sociais; ou até de uma construção política, histórica e

cultural, tão fundamentais quanto a econômica, na constituição das sociedades contemporâneas.

Com esse quadro, a autora no seu texto aponta que esse campo das políticas sociais de saúde -

com as suas ações de extensão de serviços e/ou extensão de cobertura, com as quais contingentes

populacionais cada vez maiores ficam sob a égide da ação dessas políticas estatais e/ou públicas -,

provoca a conformação do fenômeno social da medicalização. Entendida, de um lado, como ampliação do

acesso social aos serviços de saúde, e do outro, como alargamento da normatização médica (e correlatas)

sob o imaginário social do conjunto dos grupos sociais, como estratégia de constituição e reprodução das

relações sociais capitalistas, na sua dimensão subjetiva e material.

Mesmo sem ter que concordar com toda essa formulação de Donnangelo, há algo fundamental e

interessante de ser pontuado: a existência e consolidação de um novo campo de práticas sociais,

emergente nos países e nações após a “modernidade” (ou idade clássica, como prefere Foucault – História

da Loucura), que tem a maior intimidade com a construção de um modo hegemônico de olhar e pensar

certos fenômenos da existência humana, tais como: o corpo, a saúde e a doença, a soberania do estado

sobre os corpos, entre outros.

Além disso, essa formulação nos convida a olhar para os processos não-hegemônicos (contra ou

anti-hegemônicos) que podem se constituir durante esse mesmo período e, com isso, indicar-nos a noção

da existência de modelagens de outras práticas de saúde no “mesmo” campo histórico e social, que possam

apontar para outros sentidos e significações desses fenômenos da existência humana, necessariamente

enquanto processos constituídos historicamente.

Desse modo, estamos autorizados a pensar nos processos não-hegemônicos em relação às

práticas da medicina e correlatos, que nascem para se contrapor a ela, ou mesmo que nascem vindas de

um outro lugar, marcadas por outros sentidos. Autoriza-nos, também, a pensar na construção de redes de

serviços que possam não ser simples extensão de coberturas das práticas médicas, mas substitutivas a

essas. Substitutivas na medida que são práticas que visam outros tipos de objetos e formas de cuidar, bem

como operadoras de outras perspectivas de normatividades sociais, históricas e imaginárias.

Abre-se assim a imagem de que diante da organização de modalidades de Atenção Domiciliar

podemos estar-nos defrontando com uma tensão constitutiva básica: de um lado, a medicalização, em

sentido lato; de um outro, a sua substituição. Vale lembrar que apesar de lados, eles não são excludentes,

mas mutuamente produzidos, um pelo outro: por isso é que falamos em tensão constitutiva. E como tais,

nos processos produtivos que esses lados implicam, estaríamos diante de uma dobra nuclear dos

processos produtivos de saúde, em geral: reestruturação produtiva da saúde e / ou transição tecnológica.

A oferta que fazemos desses conceitos, nesse estudo, é para podermos criar novas possibilidades

para nossos olhares de pesquisadores, que vêm estudando e se defrontando com a construção efetiva de

modalidades de organização de práticas de cuidados domiciliares, no Brasil, e encontrando-nos com uma

polissemia muito interessante de ser mirada e que, talvez, traduza a existência de muitas transversalidades

nas construções investigadas.

Nessa linha, algumas idéias serão apresentadas para trazer à tona uma reflexão do que se está

vivenciando nesse território de práticas de saúde da atenção domiciliar, enquanto lugar de ações

substitutivas de saúde (como transição e/ou reestruturação), suas múltiplas dimensões e possibilidades.

Para isso, vamos trabalhar essas transversalidades sob a imagem de polaridades entendidas como

dobras e não lugares que se anulam e/ou excluem. Com isso, estamos dizendo junto com Deleuze e

Guattari (Anti-Édipo) que o dentro e o fora, o molar e o molecular, o A e o -A não são pólos de tensões que

se eliminam; mas ao contrário, são passagens que se relacionam no “entre”, no ponto de intercessão de

uma dobra, de um laço, indo de um a outro. Como é, no olhar do Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido), o

ato produtivo do trabalho e a cultura, pois como nos ensina esse pensador o trabalhador é cultura e o seu

trabalho é produção de cultura, não cabendo criar pólos de lugares que se separam, mas sim territórios que

se produzem. Intercessores de si (Conversações - Deleuze, 2000).

Essas nossas polaridades serão então entendidas como tensões, que constituem o campo de

práticas e saberes em que a Atenção Domiciliar tem existência no Brasil, e revelação da presença efetiva e

real de sujeitos em ação, produtores e produtos desse mundo histórico, social e subjetivante. Esses sujeitos

em ação serão nossos analisadores desse campo, pois nele têm sua produção (nascem nesse campo de

práticas e aí fazem sentido), ao mesmo tempo que são protagonistas da sua construção (são elementos

responsáveis pela própria produção do campo).

Esses analisadores nos abrem caminhos nesse campo de práticas de saúde e nos põem em

análise, bem como ao campo, sob o olhar da reflexão da substitutividade, na tensão

medicalização/desinstitucionalização; enquanto pólo em si tenso entre reestruturação produtiva e/ou

transição tecnológica na saúde (veja texto anexo retirado do Dicionário da Educação Profissional em Saúde,

organizado pela EPJV – FIOCRUZ).

Iremos tomar, adiante, eixos definidos por conjuntos de analisadores, que agregamos por

considerá-los como pertencentes a mesma natureza instituinte, e apresentados pelas suas

transversalidades, ao conjunto dos lugares estudados, na nossa pesquisa sobre As modalidades tecno-

assistenciais de cuidado na Atenção Domiciliar 1:

1 Não temos a intenção de tratar desses analisadores para além de uma descrição de seu significado no campo de

estudo que realizamos, pois cada um merece um texto próprio e de fôlego.

A disputa do cuidado entre trabalhadores e desses com os usuários e cuidadores

A troca e interdição de saberes, efeitos pororoca e flecha

A ação no domicílio como um agir em redes de vinculações

A construção oral da memória da produção do cuidado

A implicação dos trabalhadores

A substitutividade e a desinstitucionalização contidas na atenção domiciliar

A disputa do cuidado entre trabalhadores e desses c om os usuários e cuidadores

Por vários momentos, nós nos deparamos na investigação com situações nas quais os

trabalhadores de saúde, de um lado, referiam-se ao cuidador domiciliar de um modo queixoso 2: “ele não

cuida direito”; “faz o que quer”; “não segue o que ensinamos”; enquanto o cuidador domiciliar, de outro lado,

fazia falas semelhantes: “eles não entendem da situação que vivemos”; “chegam, falam e não se

envolvem”; “pedem coisas que não podemos fazer”.

Quando trouxemos essas situações para uma discussão e debate no nosso grupo de pesquisa é

que pudemos perceber que no campo da saúde, em geral, há sempre um processo de disputa pelo cuidado

que está sendo construído. No dia a dia dos serviços de saúde, sob as suas distintas formas, vivenciamos

isso costumeiramente, quando um dito “paciente” não leva em consideração as indicações do profissional

de saúde; ou quando o profissional de saúde não dá a mínima para o que o outro está lhe relatando, pois já

tem o cuidado desenhado e arquitetado.

No caso da Atenção Domiciliar essa disputa de cuidado é mais evidente, pois com a figura do

cuidador domiciliar e com o cuidado sendo produzido no campo do próprio usuário, o enfrentamento de

imaginários e de modos de agir fica muito explícito. Daí uma postura biunívoca queixosa.

Temos para nós que qualquer processo de cuidado, por ser intercessor e trabalho vivo em ato, é

território permanente dessas disputas, que não devem ser anuladas, mas sim explicitadas como intenção da

própria composição do “projeto terapêutico clínico” a ser produzido em conjunto, no interior da equipe e

desta com o cuidador familiar e o usuário.

Por isso, parece-nos que um dos saberes que a pesquisa possibilita é o de interrogar as equipes

queixosas, colocando-as para pensar sobre seus papéis enquanto analisadoras e problematizadoras

desses processos de disputa de cuidados, procurando entender e revelar o que se está disputando em

termos de cuidado, e dando pistas sobre como agir nessa situação, posicionando-se inclusive como um

aprendiz, de um mundo do trabalho, que é uma escola em si (educação permanente).

2 As falas a seguir são ficcionais, procurando repetir o sentido das reais que tivemos no campo, por isso não

identificamos o locutor

Por outro lado, esta pesquisa deixa claro que as investigações, que procuram tomar como objeto a

produção do cuidado em saúde, não podem desconsiderar que estão diante de um objeto movediço, não

dado, mas um dando, um objeto em produção, pois constituído pelo agir em ato dos seus protagonistas,

trazendo para a cena da investigação de modo ativo também o pesquisador com sua implicação e lugar de

olhar (seu ponto de vista como uma vista de um ponto 3)

Nos casos estudados, encontramos todas as possibilidades: desde equipes que constroem o plano

de cuidado em conjunto com os cuidadores, havendo a possibilidade de singularização do cuidado de

acordo com necessidades identificadas e recursos disponibilizados pela família até equipes que procuram

simplesmente transferir o hospital para dentro da casa, tentando enquadrar o cuidador como um simples

executor de um plano terapêutico construído exclusivamente de acordo com a racionalidade técnico-

científica.

A disputa se faz então entre a “institucionalização” da casa como um espaço de cuidado dominado

pela racionalidade técnica (e pelo predomínio das tecnologias duras e leve-duras na produção do cuidado) e

a “desinstitucionalização” do cuidado em saúde, havendo construção compartilhada do projeto terapêutico,

ampliação da autonomia do cuidador/família/usuário, ampliação da dimensão cuidadora do trabalho da

equipe (e o predomínio das tecnologias leves e leve-duras na produção do cuidado).

No segundo caso, a atenção domiciliar surge como uma alternativa de organização da atenção à

saúde que contribui ativamente para a produção da integralidade e da continuidade do cuidado, da

ampliação da autonomia dos usuários na produção de sua própria saúde. Assim como no caso da saúde

mental busca-se produzir dispositivos terapêuticos que levem à desinstitucionalização do cuidado e do

usuário. A atenção domiciliar pode ser trabalhada como um dispositivo para a produção de

desinstitucionalização do cuidado e novos arranjos tecnológicos do trabalho em saúde. A tensão entre

ambos os pólos é constitutiva da modalidade, mas, por isso, mesmo, ela é portadora de um potencial

significativo de inovação.

A troca e interdição de saberes, efeitos pororoca e flecha

Na mesma linha, não foram poucos os relatos de algumas equipes muito envolvidas com usuários

graves, ou mesmo terminais, de como no espaço da vida domiciliar e na dinâmica do grupo de moradores

há um patrimônio de modos de cuidar, não inscritos nos territórios dos profissionais de saúde. Entretanto,

também houve situações nas quais vários relatos apontavam o oposto: como atrapalhavam as “crenças”,

segundo falas desses outros trabalhadores, dos cuidadores e das redes domésticas de cuidado.

Desse modo, no nosso estudo encontramos movimentos de vários trabalhadores que se deixavam

afetar pelas relações e saberes com “os da casa ou da família”, recebendo de volta como aprendizagem a

relação que realizavam a partir do seu próprio trabalho tecnológico (efeito pororoca do trabalho, na lógica da

educação permanente). Mas também, de outro lado, havia trabalhadores que se posicionavam como um

arco que lança uma flecha – isso é, o seu agir só vai em uma direção: dele para o outro como seu objeto -,

3 De acordo com Frei Beto e Leonardo Boff

e com isso, negavam o agir do outro e seu saber (apontando-o como “crença”), por serem de menor valor

científico e não alçaram à posição de um saber tecnológico produtor de cuidado, legítimo.

Nos locais em que se colocam como produtoras de alternativas inovadoras no cuidado em saúde,

as equipes de atenção domiciliar tornam-se lugares de manifestação de grandes conflitos e desafios.

Conflitos em relação à autoria do plano de cuidados, ao papel de cada profissional e dos

usuários/cuidadores na produção do cuidado num espaço que é privado, mas invadido pelo público;

conflitos diante da convivência íntima dos profissionais com necessidades, sofrimentos, valores culturais e

religiosos antes apenas vislumbrados.

Desafios diante da necessidade de produzir novas tecnologias de cuidado; desafios de construir um

outro equilíbrio entre os diferentes tipos de tecnologias envolvidos no trabalho em saúde; desafio de

construir equipe com um trabalho efetivamente orientado e mobilizado pelas necessidades de saúde não

somente do usuário, mas do coletivo familiar em questão; desafio de superar a fragmentação do sistema de

saúde e de produzir continuidade de atenção no interior de uma linha de cuidado que é produzida em ato

para cada situação.

Para almejar e conseguir tanto, este trabalho humano tem que ser portador de capacidade de

vivificar modos de existências interditados e antiprodutivos e tem que permitir que vida produza vida. Sua

“alma”, portanto, tem que ser a produção de um cuidado em saúde dirigido a propiciar ganhos de autonomia

e de vida dos seus usuários. Esse é um trabalho de alta complexidade, múltiplo, interdisciplinar, intersetorial

e interprofissional.

Um trabalho como esse só vinga se estiver colado a uma “revolução cultural” do imaginário social

dos vários sujeitos e atores sociais, de modo a ser gerador de novas possibilidades anti-hegemônicas de

compreender a multiplicidade e o sofrimento humano, dentro de um campo social de inclusividade e

produção de cidadania.

Essa aposta implica a fabricação de novos coletivos de trabalhadores de saúde que consigam com

seus atos vivos, tecnológicos e micropolíticos do trabalho em saúde, produzir mais vida ou a boa morte em

situações muitas vezes negligenciadas pelo sistema de saúde.

Os trabalhadores mais abertos a uma escuta do fazer cotidiano, como o lugar do trabalho implicado

com a produção do cuidado, que se conforma como uma verdadeira escola de formação e reafirmação do

saber-fazer, apontam de que modo esse processo de educação permanente explode repetidamente, a todo

o momento que há o encontro da equipe ou do trabalhador individual com os usuários e seus cuidadores.

E, nuclearmente, no interior da própria equipe de um trabalhador para o outro.

Pareceu-nos que esse processo é de dupla mão, pois se uma equipe nega o saber dos cuidadores,

estes tendem a fazer o mesmo com os saberes da equipe.

Olhar para o dia a dia do mundo do trabalho e ver os modos como os atos produtivos produzem e

transformam os conceitos, tornar esse processo objeto da curiosidade dos trabalhadores é a oportunidade

que traz a educação permanente em saúde, tornando-se um recurso indispensável para o trabalho de apoio

e produção de equipes inventoras.

Mas é preciso que esse seja um investimento da gestão do sistema e dos serviços e não seja mais

uma providência deixada a cargo da invenção de governabilidade das equipes.

No caso da atenção domiciliar há ainda, de modo mais evidente, a necessidade de também dialogar

e apoiar de maneira sistemática os cuidadores. Não somente proporcionando espaços de reflexão sobre as

práticas produzidas – e esse pode ser um recurso muito interessante para captação de novas tecnologias

de cuidado – mas também ofertando escuta e apoio para esse personagem que abre mão de partes

significativas de sua própria autonomia em prol do cuidado de outro.

O território de práticas da Atenção Domiciliar nos pareceu um lugar que favorece a explicitação

desses processos, trazendo a tona toda a tensão que ele contém na cotidianeidade dos processos de

cuidar em que se age, podendo facilitar as ações que põem em análise os ruídos que esse processo

provoca, tanto do ponto de vista da ação terapêutica (colocando em cheque a oferta de tecnologias de

cuidado por parte da equipe como normativa); quanto de uma busca de conhecimento sobre essas práticas

- que não pode abstrair a natureza intercessora do cuidado (Merhy, 2002).

Para que o domicílio seja espaço de produção de um lugar do novo e do acontecer em aberto e

experimental, é preciso construir um campo de proteção para quem tem que inventar coisas não pensadas

e não resolvidas; para quem tem que construir suas caixas de ferramentas, muitas vezes em ato; para

quem, sendo cuidador, deve ser cuidado.

Permitir colocar em interrogação o próprio fazer profissional como uma limitação parece ser uma

das conseqüências dessa situação. E, mais, parece ser uma necessidade nuclear para se imaginar novos

sentidos para as práticas de saúde.

A ação no domicílio como um agir em redes de vincul ações

Em poucas falas das equipes pesquisadas e de cuidadores aparecem situações que reconhecem

como limitada a redução da idéia de família ao núcleo típico familiar, bem como cuidado domiciliar à de

casa.

As equipes mais envolvidas com a busca de ganhos efetivos de autonomia por parte do usuário

e/ou do cuidador rapidamente perceberam a importância de ampliar a noção de casa para território de ação

e a de família para rede de vinculações. Aliás, aprendizagem que a construção das redes substitutivas em

saúde mental já tem de muito tempo, ensinando-nos bastante sobre isso, tanto nas suas práticas dos

CAPS, quanto das Residências Terapêuticas.

Entretanto, essa postura não foi tão predominante, quanto deveria. E, de fato, nem em uma

estratégia como a Saúde da Família isso parece ocorrer com freqüência. Ao contrário. A regra parece ser a

redução da família à lógica papai-mamãe ou assemelhados e a rede de vinculações a uma casa fisicamente

instalada. Mas não se opera essa redução sem muita dificuldade e tensão.

Essa tensão ocorre porque todas modalidades de Atenção Domiciliar que encontramos trabalham

com a figura do cuidador “domiciliar”, que em muitos casos não é nem morador da própria casa ou nem

mesmo pertence à família. Com isso a Atenção Domiciliar carrega consigo algo que lhe faz um lugar de

construção de práticas de saúde que precisam atuar com um “estranho” ao agir profissional e no território

desse outro, e não no interior de um estabelecimento de saúde. A atenção domiciliar fica sem essa

proteção.

Essa situação atravessa de modo tenso todo o processo da construção do cuidado nesse terreno,

fazendo com que qualquer equipe dessas modalidades de cuidado sinta essa tensão na composição de seu

agir terapêutico.

Dessa forma, ter que reconhecer a existência e mesmo atuar junto com as redes de vinculações

acaba sendo um ponto de pressão para produzir possibilidades substitutivas ao modo profissional de ser

hegemônico, puxado pela lógica domiciliar e familiar de cuidado. Mesmo que a equipe tenha uma postura

reducionista, ela acaba sendo transversalizada por toda essa característica, podendo com mais chance se

abrir a diálogos intra-equipe, que lhe apontem lugares de novos sentidos para o seu fazer, ampliando o seu

objeto de ação e impondo a construção de uma caixa de ferramentas mais alargada. Colocando em cheque

as práticas instituídas inter-profissionais que operam na saúde.

Na produção de conhecimento isso se torna relevante, pois leva os pesquisadores a ressignificarem

suas miradas sobre as tecnologias leves relacionais, para a competência de um agir cuidador e para a

presença significante do autogoverno dos cuidadores, profissionais ou não.

A construção oral da memória da produção do cuidado

Muitos relatos de experiências em diferentes redes de cuidado, e não só na Atenção Domiciliar,

apontam para a idéia de que os registros escritos, ou assemelhados, nunca espelham o que foi feito. Aliás,

fato corroborado pelos investigadores que procuram utilizar dados de prontuários, por exemplo, e sempre se

deparam com a situação de ter que ir buscar mais dados em outras fontes ou se queixar de que os

prontuários são mal preenchidos.

Nós, na nossa pesquisa, assumimos um outro olhar. Supusemos que mesmo um prontuário muito

bem preenchido não tem suficiência para registrar todo o processo de produção do cuidado, pois este é

nuclearmente centrado no trabalho vivo em ato e no seu agir tecnológico, em equipe, ou seja, em coletivo.

Dessa maneira, há uma outra memória operando no registro que não é a escrita, e que tivemos de

reconhecer: é a produção da memória oral no coletivo que está implicada com o cuidado realizado, na

equipe e para além da equipe (no próprio usuário, nas suas redes de vinculações).

Vale assinalar, que produzimos uma metodologia de investigação procurando esse diálogo, para

obtermos nossos dados. E, lá no campo, percebemos como a equipe em certas situações nos informava

mais sobre o que buscávamos fora dos momentos de conversas formais entre pesquisadores e

pesquisados. Houve situações em que a conversa no carro, indo e vindo de um domicílio, era a fonte mais

rica que tínhamos na mão.

Sem dúvida, a equipe também, porém não necessariamente, percebia isso, a ponto de instituir e

reconhecer esse momento como trabalho construtor da equipe e da sua forma de cuidar. O carro, em

alguns casos, é reconhecido como lugar de encontro e produção, que permite a reflexão “a quente” e a

análise das situações que se acabou de vivenciar ou que possibilita “a combinação do jogo” imediatamente

antes de “o time entrar em campo”. Quando não, as equipes perdiam oportunidades riquíssimas, só se

vendo trabalhando “sério” nos momentos formais e pré-definidos de reuniões de equipes, ou até, das

equipes com os cuidadores.

Desse modo, o desenho da pesquisa teve que dar conta dessa situação e as análises também,

trazendo conseqüências importantes até para pensarmos sobre as propostas de construção de modos de

cuidar nas redes de estabelecimentos de saúde.

Um dos dispositivos para levantamento/análise de dados utilizados em nossa pesquisa foram os

casos traçadores. Após um primeiro reconhecimento dos serviços de atenção domiciliar e de sua relação

com os demais equipamentos da rede de atenção à saúde, solicitamos às equipes que montassem um

banco de casos que fossem representativos dos diferentes perfis de atendimento habitualmente

enfrentados. Os casos selecionados foram analisados em profundidade por meio de análise do prontuário,

entrevistas com as equipes, familiares e usuários, quando possível.

Chamou vivamente nossa atenção o contraste entre as informações obtidas por meio das

entrevistas e a que era possível resgatar dos prontuários. Nestes estavam registrados estritamente os

aspectos biológicos da situação de saúde do usuário e as condutas medicamentosas adotadas e/ou

exames solicitados em cada visita. Uma sucessão repetitiva de registros impessoais e condutas formais.

Nas entrevistas, ao contrário, foi possível resgatar muitas outras dimensões da vida, em cada caso: os

aspectos afetivos, sociais, as divergências dentro da equipe, as dificuldades de relacionamento com certas

famílias ou cuidadores, os estranhamentos (da equipe e das famílias), os dilemas e desafios, o impacto das

histórias sobre os profissionais. Havia sim fotografias, lembranças, lembretes, mas nada disso aparecia nos

prontuários.

O registro escrito está capturado pela lógica das tecnologias duras e leve-duras e não se mostra

adequado para captar toda a dinâmica de trocas intersubjetivas, toda a gama de tecnologias leves utilizadas

para trabalhar em equipe, construir planos de ação e efetivar o cuidado. Essas informações/ emoções/

vivências estão registradas na memória, na afetividade dos trabalhadores e dos

usuários/familiares/cuidadores. Mais que isso, são parte do processo de produção desses sujeitos

cuidadores, já que a cada experiência vivenciada se transformam todos os envolvidos e sua caixa de

ferramentas para o trabalho em saúde.

Portanto, não são poucos os momentos em que vivemos nessas redes perdas de memórias de

certos cuidados praticados, quando um membro de uma equipe se ausenta no trabalho ou mesmo sai de

uma equipe. Por mais que busquemos registrar tudo, isso se mostra impossível, ficando sempre o desafio

de introduzir mais uma forma de registro para preencher a percepção dessa falta.

Como regra, há uma tendência a querer burocratizar criando normas e mais normas para ver se o

registro escrito se realiza, e mesmo o de realizar gastos e mais gastos em sistemas cada vez mais

sofisticados de anotações escritas para poder “escrever tudo”. E, como regra, sempre sentimos que os

objetivos não foram preenchidos.

Há lugares que já deram conta dessa impossibilidade e procuram fazer registros orais dos

prontuários e das conversas das equipes. Isso não deixa de ser interessante, mas também não é uma

solução tão efetiva assim, pois cada um tem um relato sobre o mesmo fato e o olha de um ponto de vista

distinto.

Achamos que produzir também massa de dados orais e armazená-los já é uma possibilidade, hoje,

e deve ser usada, mas o melhor é assumir a impossibilidade do registro de tudo e viver com a perda, desde

que a problematizando no interior da equipe e abrindo-se para o registro via múltiplas fontes, apostando na

criação de ferramentas que consigam colocar em foco analisadores do modo do trabalho vivo em ato agir e

construir memórias dos vários processos.

A Atenção Domiciliar nos mostrou que aqui também há uma pobreza nesse campo e que, como

todos os outros onde se produz o cuidado, há que se abrir um novo front de investigação sobre essa

constatação e explorar melhor as conexões com o campo de investigação da História Oral, da Análise

Institucional e Esquizoanálise, bem como os estudos de Micropolítica do Trabalho em Saúde.

Sem uma percepção real de como a produção do cuidado está calcada em uma superfície de

produção vetorizada pela micropolítica do trabalho vivo em ato, acaba-se montando teorias sobre o trabalho

em saúde muito limitadas com sérias conseqüências para a produção de conhecimento e para o agir

cuidador.

A Atenção Domiciliar facilita essa percepção quando a figura do cuidador e sua memória entram em

jogo no cenário, porém não são todos que escutam sua presença e o ruído que provocam. Isso depende

das implicações ético-políticas dos trabalhadores que compõem a equipe e do modo como as colocam em

conversa nas suas dinâmicas enquanto um grupo em gestão coletiva, ou não.

A implicação dos trabalhadores

Uma situação que ficou muito marcada na nossa equipe de pesquisadores foi o relato de como

algumas equipes se envolviam com os usuários e seus cuidadores, a ponto de sofrerem intensamente

quando um paciente em situação terminal falecesse; mesmo que soubessem com clareza que isso iria

ocorrer. Além disso, as suas falas nos indicavam que a capacidade de ofertarem seu trabalho vivo em ato,

no cuidar - para produzirem sopro de vida (Clarice Lispector) e menor sofrimento, naquelas situações - era

algo digno de registro e admiração.

Vivências assim não foram privilégios só de situações terminais e sabemos que não são restritas às

modalidades de cuidado domiciliar. Nas múltiplas redes de cuidado do SUS, Brasil afora, nas experiências

relatadas nos programas de atenção aos pacientes portadores de HIV, nas redes de cuidado em saúde

mental, e assim por diante, vemos, a todo tempo, momentos iguais, contrapondo os relatos mais comuns

das mídias e das elites do quanto se descuida nas redes públicas.

Entretanto, vimos que na Atenção Domiciliar há um quê de militância pela vida no que fazem,

equiparando-a muito às experiências na saúde mental. Trabalhadores intensamente implicados com a

construção de uma morte mais digna, com um aplacamento no limite máximo do sofrimento do paciente e

das suas redes de vinculações, com a conquista de mínimas autonomias para a vida cotidiana, e assim por

diante.

Os trabalhadores das equipes de atenção domiciliar, em sua maioria, são apaixonados, implicando-

se intensamente com seu trabalho. Dedicam-se de maneira muito intensa, comprometem-se com as

pessoas de que cuidam e com suas famílias muito além do que a responsabilidade técnica/ formal

prescreve.

Parece, então, que a possibilidade de produção inovadora do cuidado neste caso está relacionada à

existência de um projeto ético-político que toma as necessidades do usuário como referência central e que,

portanto, reconhece-o como sujeito, interlocutor decisivo na produção dos projetos terapêuticos (muitas

vezes essa autonomia é “arrancada” pelas famílias).

Projeto ético-político, por outro lado, que tem na implicação/ paixão um elemento decisivo de

mobilização dos trabalhadores. Paixão pela possibilidade de resgatar a dimensão cuidadora de seu trabalho

em saúde. Paixão pela possibilidade de criar, inventar, ou seja, paixão pelo trabalho vivo autopoiético.

Paixão por terem que se defrontar cotidianamente com o inusitado, com as singularidades de cada pessoa

e de cada família (que existem sempre, é claro, mas que o cuidado no domicílio aparentemente torna mais

evidentes) – ou seja, paixão pelo trabalho vivo em ato. Paixão por se descobrirem humanos em seu

trabalho em saúde – na identificação que ocorre em sua percepção sobre a construção das relações

familiares, nas tristezas e alegrias, nos medos, na potência e na impotência de suas ofertas. Paixão por se

desejarem equipe e por conseguirem operar essa produção. Paixão pelo resgate da solidariedade em sua

prática profissional e pela demolição dos limites impostos pela racionalidade científica na definição de seus

fazeres, amores, desamores e responsabilidades nas relações com os usuários.

Sem implicação e compromisso não seria possível suportar a instabilidade, a incerteza, a exposição

e a exigência de criatividade que um trabalho - desenvolvido de maneira tão próxima e conectada com os

usuários e seu modo de viver a vida - exige.

Esse grau de implicação das equipes da atenção domiciliar associado às demais características de

seu trabalho analisadas até aqui (disputa de projeto terapêutico, necessidade da educação permanente em

saúde como ferramenta de autoanálise e invenção, predomínio da memória oral no registro das

experiências de cuidado) obrigam-nos a uma necessária reflexão a respeito das possibilidades de avaliação

e produção de conhecimento a respeito dessa modalidade de organização do trabalho em saúde.

Em nosso país, devido à presença cada vez mais significativa de trabalhadores de saúde e de

usuários de serviços que vêm participando do processo de Reforma Sanitária, tem sido freqüentes sua

parceria com núcleos de pesquisadores, da universidade ou de ONGs, para estudar seus próprios

processos de intervenção. E esses estudos são fundamentais na busca da reorganização/ redirecionamento

dos serviços e das práticas de saúde, pois as situações vividas são extremamente reveladoras das

potencialidades, limitações, desafios e impasses que a produção de alternativas ao modelo hegemônico

impõe.

Para avaliar experiências como essas o instrumental clássico disponíibilizado pela avaliação deixa a

desejar, apesar de haver todo um debate teórico acerca dos paradigmas em que se apóiam a teoria e a

prática avaliativas. No campo do paradigma hermenêutico situam-se várias linhas, entre as quais a Fourth

Generation Evaluation de Guba & Lincoln. Esses autores consideram que houve três grandes “gerações” de

abordagens avaliativas desenvolvidas fundamentalmente no campo da educação:

- geração da medida – foi a era dos testes de QI

o o avaliador tornava-se um técnico, isento de vieses, capaz de aplicar o teste

apropriado e de apresentar seus resultados e respectivos significados.

- geração da descrição – usavam-se ainda as medidas, especialmente em relação a

programas, mas de maneira articulada com uma certa caracterização do avaliado. Ou seja,

media-se o resultado em relação às intenções do avaliado.

o o avaliador descrevia as fortalezas e debilidades do avaliado em relação a

determinados objetivos

- geração do julgamento – o avaliador não somente descrevia mas julgava o mérito

ou o valor do avaliado à luz das fortalezas e debilidades.

Segundo Guba/Lincoln essas três gerações de abordagens padeciam de alguns problemas:

a) tendência a favorecer o ponto de vista do cliente, ou seja, o ponto de vista de quem

contrata a avaliação;

b) negavam o pluralismo de interesses e opiniões entre os participantes em relação à

avaliação; quer dizer trabalhavam com a idéia de que era possível estabelecer para a avaliação

uma determinada função objetiva unificada, com a qual todos estariam de acordo;

c) todas essas abordagens utilizavam centralmente metodologias quantitativas

baseadas no suposto da natureza quasi-científica desse tipo de investigação.

Para superar essas limitações, eles propõem como alternativa uma “avaliação construtivista e

responsiva”. Responsiva em relação ao foco, ao objetivo da avaliação, já que propicia aos vários atores a

possibilidade de participar da definição dos objetivos, dos critérios que serão utilizados. Ou seja, eles não

estão estabelecidos a priori, ao contrário, emergem no processo.

Acreditamos que no caso de processos como os aqui analisados mesmo a avaliação de quarta

geração (Guba & Lincoln) deixa a desejar, pois fica faltando colocar em análise a própria implicação dos

sujeitos produtores das ações a serem avaliadas. Ou seja, os processos avaliativos, além de terem os

trabalhadores e usuários como sujeitos, têm que tomar o seu próprio agir como objeto, trazendo para a

análise o seu próprio modo de dar sentido ao que é problema a ser investigado, no qual também significam

claramente a si mesmos e aos outros.

O desafio, então, fica pela possibilidade de operar a produção de saberes que são verdades

militantes, que fazem sentido para certos coletivos e não outros (para agrupamentos que também estão

instituídos, mas não no território oficial do científico), mas que permitem aos sujeitos implicados agir sobre o

mundo e determiná-lo na direção de rumos nem sempre previstos, não necessariamente subsumidos às

lógicas dos poderes, das ideologias e dos afetos instituídos.

Inclusive, este desafio alarga-se, na medida em que devemos imaginar que a produção da

validação de um saber militante, como conhecimento legítimo e saber para os outros, passa também pela

própria exposição dos interlocutores acadêmicos ou científicos nas suas implicações, não só nos seus

interesses. Estes devem assumir como uma necessidade comunicativa (na linha habermasiana) que o

processo de validação ocorrerá pelos diálogos das várias implicações em jogo, que se reconhecerão dando

sentidos entre si, mesmo que se oponham, posicionando-se no espaço público quanto a este processo de

validação do saber e de suas conseqüências.

A produção deste saber militante deve ser (e é) nova e auto-analítica, individual e coletiva, particular

e pública. Opera sob os vários modos de se ser sujeito produtor do processo em avaliação e em última

instância interroga os próprios sujeitos em suas ações protagonizadoras e os desafios de construírem novos

sentidos para os seus modos de agir, individual e coletivo. Interroga e pode repor suas apostas e modos de

ação.

A auto-análise das implicações do sujeito acorda-o do seu silêncio instituído e possibilita a abertura

para produzir novos sentidos e significações para os fenômenos, reconhecendo-se como seu produtor, re-

significando a si e aos sentidos de seus fazeres.

Neste tipo de estudo o mais importante do ponto de vista metodológico é a produção de dispositivos

que possam interrogar o sujeito instituído no seu silêncio, abrindo-o para novos territórios de significação, e

com isso, mais do que formatar um terreno de construção do sujeito epistêmico, apostar em processos que

gerem ruídos no seu agir cotidiano, colocando-o sob análise. Apostar na construção de dispositivos auto-

analíticos que os indivíduos e os coletivos em ação possam operar para se auto-analisar. Por isso os

processos de educação permanente em saúde precisam ser de algum modo registrados e sistematizados,

pois estão em clara conexão com a possibilidade de avaliação e produção de conhecimento a partir das

experiências vivenciadas.

Porém, há que reconhecer que há também situações opostas, sem clima de militância e

solidariedade, do ponto de vista da implicação com a produção da vida, em algumas equipes, nesse campo

de cuidado. Nessas experiências, mais instrumentais, em que a modalidade Atenção Domiciliar está

marcada pela racionalização da utilização dos recursos hospitalares ou de alto custo, transferindo para o

domicilio muito do custo pelo cuidado, vimos equipes mais restritas quanto a essa dimensão da implicação

com e pelo outro.

Quase que como regra isso ocorre em serviços de cuidados domiciliares não públicos, das redes

dos serviços privados, em que a lógica da comercialização se impõe de modo fundamental. E, as equipes,

são invadidas por essa implicação e não pela da produção da vida.

Essa constatação não é um julgamento moral, mas necessária para poder entender a presença de

certas racionalidades que invadem ou não o fazer. Desse modo, podemos ousar dizer que não há como

assumir uma visão única sobre a lógica da organização dessas modalidades de cuidado e isso se espelha

na implicação dos próprios trabalhadores e equipe, como um todo.

Por isso, análises que às vezes tomam essa modalidade como um cuidar “mais humano” ou,

outras, que dizem que é uma mera racionalização do modelo hegemônico e capitalista de produzir saúde,

não conseguem dar conta da constitutividade tensa desse campo de práticas, necessariamente polarizada

pelas possibilidades.

Ousamos mesmo a dizer que até em lugares do serviço público e do privado é possível haver

inversão. Ser muito instrumental e serviço centrado no público ou ser autopoiético 4 e centrado na vida do

usuário no privado. As margens de autogoverno das equipes permitem isso; e quem conhece a

micropolítica do trabalho vivo em ato sabe muito bem como isso é possível.

A substitutividade e a desinstitucionalização da at enção domiciliar

Como apontamos no começo deste texto, a Atenção Domiciliar coloca em cena a discussão da

substitutividade como desinstitucionalização ou não, entendendo a desinstitucionalização como uma

substitutividade no modo de se produzirem as práticas de saúde e não simplesmente uma reestruturação no

modo de se fazer a produção do mesmo modelo hegemônico, centrado nas profissões e nos

procedimentos, tendo como base nuclear o modelo médico, dos séculos XIX e XX, que predominou no

ocidente, baseado na visão do seu objeto como a doença localizada em um corpo biológico, mecânico.

4 Ver texto de Merhy: Engravidando as palavras.

Nos casos analisados, de acordo com os próprios sujeitos dos processos, o trabalho

desinstitucionalizado, realizado nas casas das pessoas, oferece-lhes mais liberdade de criação na

condução das suas atividades (inclusive nos aspectos clínicos), permite-lhes relacionar-se diretamente com

as pessoas (sem intermediários), possibilita-lhes conhecer e vivenciar seus contextos de vida e essa

vivência mobiliza sua capacidade de produzir alternativas coletivas, criativas e apropriadas para o cuidado e

a produção da autonomia.

Tudo isso lhes possibilita construir vínculos mais fortes, permite-lhes resgatar de maneira intensiva

a dimensão cuidadora do trabalho em saúde, operando como um trabalhador coletivo. Além disso – e essa

é uma consideração nossa - convivem e são desafiados por um grau inusitado de autonomia das famílias

na produção dos projetos de cuidado que são implementados.

Parece, então, que o fato de o cuidado em saúde ser produzido num território não institucional – o

domicílio – e de se propor a produzir alternativas substitutivas à organização do cuidado coloca os atores de

outro modo em cena e abre novos espaços para a inovação.

Assim como acontece na saúde mental e no trabalho dos agentes comunitários de saúde, a tensão

é constitutiva desse novo espaço institucional de cuidado. Tensão essa que pode ser produtiva,

convertendo-se em fator favorável à atenção domiciliar como espaço de “desinstitucionalização”,

potencialmente produtora de inovações. Ou pode ser uma tensão que se resolva por meio da subjugação

da família e da reprodução. O projeto ético-político das equipes é decisivo na definição desse jogo.

A substitutividade e a desinstitucionalização seriam então elementos fundamentais para a produção

de novas maneiras de cuidar, de novas práticas de saúde em que o compromisso com a defesa da vida

norteia o pacto de trabalho das equipes.

Ou seja, quando a atenção domiciliar, um CAPS ou o trabalho do agente comunitário de saúde se

configuram como modalidades substitutivas de organização da atenção, com intenção

desinstitucionalizador, como dispositivos para a produção de cuidados que efetivamente não são

produzidos segundo o modelo hegemônico dentro do hospital, do ambulatório ou do manicômio, eles se

configuram como um terreno do trabalho vivo em ato instituinte de novidades; possibilitando a

produção/invenção de práticas cuidadoras e implicada com um agir autopoiético na saúde (Merhy, 2005).

Existe grande potência nesses arranjos. Precisamos aprender com eles. A ruptura do fazer parece ser uma

condição fundamental para a invenção.

ANEXO

Verbetes escritos por Emerson E. Merhy e Túlio Batista Franco

Trabalho em Saúde

O trabalho

Toda atividade humana é um ato produtivo, modifica alguma coisa e produz algo novo. Os homens

e mulheres, durante toda a sua história, através dos tempos, estiveram ligados, de um modo ou outro, a

atos produtivos, mudando a natureza.

Quando eles tiram um fruto de uma árvore, ou caçam um animal, estão fazendo um ato produtivo e

transformação da natureza. O fruto fora da árvore ou o animal caçado só existe, agora, pelo ato produtivo

desses homens e mulheres. Isso é uma transformação da natureza pelo trabalho humano.

Homens e mulheres vivem em sociedade, sempre em coletivos, juntos. Os seus trabalhos também

se realizam juntos, são atividades organizadas uma com as outras. O trabalho de um se organiza junto com

o do outro. E, o modo como o trabalho se organiza e para que ele serve é importante para entendermos a

sociedade que vivemos.

Além disso, ao trabalharmos, todos nós, modificamos a natureza e nos modificamos. O ato do

trabalho funciona como uma escola, ele mexe com a nossa forma de pensar e de agir no mundo. Nos

formamos no trabalho.

Há autores como Marx que diz que o trabalho é a essência da humanidade dos homens ou como

Paulo Freire que afirma que a cultura é dada pela forma como trabalhamos o mundo para fazer sentido para

nós. Quando caçávamos animais estávamos dizendo que os animais estavam aí para serem nossos

alimentos, dávamos este sentido de existência para eles. Hoje, é assim também. Quando tiramos árvores

para fazer madeira estamos dizendo que as árvores são importantes por serem fontes de matéria-prima: o

carvão para fazer fogo, a madeira para fazer casa ou móveis, entre outros.

Mas, ainda bem, que estes sentidos não são fixos. Variam conforme a sociedade e os interesses

que nós construímos em cada época. Interesses que são muito variados e que, muitas vezes, brigam entre

si. Por exemplo, muitos de nós defendem que árvores, hoje, não são fonte de madeira, mas seres vivos

importantes para manter a própria vida, em atividade, na terra. As sociedades e as formas de organizar o

trabalho, como vimos, têm história. Variam no tempo, se modificam. E, nós, também.

A sociedade que vivemos, hoje, a capitalista, existe de alguns séculos para cá. Antes dela outras

formas de organização social e do trabalho existiam, como, por exemplo, as sociedades de senhores e

escravos; ou as dos reis e servos.

O modo como o trabalho é realizado e o que se faz com seus produtos variam conforme a

sociedade que estamos analisando. Nas sociedades da caça e coleta o trabalho é propriedade de cada um

e o produto do trabalho pertence a quem o faz. Nas sociedades de senhores e escravos, o trabalho do

escravo pertence ao senhor.

Por isso, dizemos que o trabalho é produtor de “valores de uso” e de “valores de troca”. Conforme a

necessidade que procura satisfazer, o trabalho produz um produto que carrega um certo “valor de uso”, por

exemplo, a caça serve para alimentar satisfazendo esta necessidade; por outro lado, se caço para trocar

por uma fruta a utilidade dele agora é de ser trocado por outro produto que outro trabalhador produziu.

Agora ele tem “valor de troca”. Nas sociedades o modo como estes dois componentes se comportam

variam.

Nas sociedades capitalistas, que vivemos, o produto do trabalho do trabalhador é do patrão ou da

empresa que o emprega. Ele só recebe um salário por trabalhar e não pelos produtos que produz. A riqueza

da sociedade, se medida pela quantidade de trabalho e de produtos que o trabalho produz, é desigualmente

distribuída. Quem trabalha, como regra, é quem menos recebe da riqueza produzida. Assim, o trabalho do

trabalhador serve para produzir produtos que tenham “valores de troca” para o patrão.

Há sociedades modernas, como as socialistas, que defendem que a riqueza é de toda a sociedade

e a sua distribuição deve ser feita de acordo com o trabalho e a necessidade de cada um.

O trabalho e alguns de seus detalhes nos microproce ssos

O objeto do trabalho, o animal a ser caçado, a planta a ser colhida, o aço a ser trabalhado, vai

adquirir sentido pela ação intencional do trabalhador - ser alimento, virar automóvel – através de seu

trabalho com as suas ferramentas, seus meios de trabalhar e o modo como organiza o seu uso – todo

trabalhador carrega consigo uma caixa de ferramentas, que na saúde fazemos a imagem de valises

tecnológicas para fazer o seu trabalho. Nesta caixa, os trabalhadores, tanto de modo individual, quanto

coletivo, têm suas ferramentas-máquinas, seus conhecimentos e saberes tecnológicos (o seu saber-fazer) e

suas relações com todos os outros que participam da produção e consumo do seu trabalho.

Entretanto, um trabalho não é igual ao outro. De acordo com o que produz, um trabalho difere do

outro. Por exemplo, para produzir carro tem que se fazer de um certo modo; para produzir saúde tem que

se produzir de outro. Cada produção de um produto específico exige técnicas diferentes, matéria-prima

diferente, modos de organizar o trabalho específicos e trabalhadores próprios para aquela produção. Cada

trabalho tem como seu objeto coisas distintas.

Todo processo de trabalho combina trabalho em ato e consumo de produtos feitos em trabalhos

anteriores. Na produção de um carro exige-se placas de aço. Para o trabalhador fazer em ato o carro

necessita que o aço esteja já feito. Este aço é produto de trabalho de uma outra produção feita antes pelo

trabalhador de uma siderúrgica. Assim, o trabalho de fazer carro combina um trabalho em ato do

trabalhador que está fabricando o carro e um trabalho feito antes por outro trabalhador em outro tipo de

fábrica.

O trabalho feito em ato chamamos de “trabalho vivo em ato” e o trabalho feito antes que só chega

através do seu produto, o aço, chamamos de “trabalho morto”.

O trabalho vivo em ato nos convida a olhar para duas dimensões: uma, é a da atividade como

construtora de produtos, de sua realização através da produção de bens, de diferentes tipos, e que está

ligada à realização de uma finalidade para o produto (para que ele serve, que necessidade satisfaz, que

“valor de uso” ele tem).

A outra dimensão é a que se vincula ao produtor do ato, o trabalhador, e sua relação com seu ato

produtivo e os produtos que realiza, bem como com suas relações com os outros trabalhadores e com os

possíveis usuários de seus produtos. Detalhar estas duas dimensões é fundamental para entendermos o

que é o trabalho como prática social e prática técnica. Como ato produtivo de coisas e de pessoas. Antes de

olharmos isso na saúde, vamos andar mais um pouco pelo trabalho em vários outros campos.

Como produtor de bens, o trabalhador está amarrado a uma cadeia material dura e simbólica, pois o

“valor de uso” do produto é dado pelo “valor referente simbólico” que carrega, construído pelos vários atores

sociais em suas relações. Já o “valor de troca” de um produto está amarrado a forma de funciona uma

sociedade, historicamente fabricadas pelos homens, como a capitalista que vivemos, hoje.

Se para a produção de carro o “valor referente simbólico” é servir para transportar ou, até, para se

exibir com uma máquina especial (para quem deseja não um carro mas uma Ferrari), para a produção da

saúde o “referente simbólico” é ser cuidado ou vender procedimentos para ganhar dinheiro. Depende de

quem está em cena, seu lugar social, seu lugar no processo produtivo, seus valores culturais, entre várias

outras coisas.

Por isso, os autores deste texto advogam que nas sociedades de direito à saúde, como é a

brasileira de acordo com sua constituição de 1988, o trabalho em saúde deve se pautar pelo seu principal

“referente simbólico”: o ato de cuidar da vida e do outro, como alma da produção da saúde. E, assim, tomar

como seu objeto central o mundo da necessidade dos usuários individuais e coletivos, visando a produção

social da vida e defendendo-a.

Trabalho em saúde

Trabalho vivo em ato : A produção na saúde se realiza, sobretudo, por meio do “trabalho vivo em

ato”, isto é, o trabalho humano no exato momento em que é executado e que determina a produção do

cuidado. Mas o trabalho vivo interage todo o tempo com instrumentos, normas, máquinas, formando assim

um processo de trabalho, no qual interagem diversos tipos de tecnologias. Estas formas de interações

configuram um certo sentido no modo de produzir o cuidado.

Vale ressaltar que todo trabalho é mediado por tecnologias e depende da forma como elas se

comportam no processo de trabalho, pode-se ter processos mais criativos, centrados nas relações, ou

processos mais presos à lógica dos instrumentos duros (como as máquinas).

Trabalho e suas tecnologias : O trabalho em saúde pode ser percebido usando como exemplo o

trabalho do médico, no qual se imagina a existência de três valises para demonstrar o arsenal tecnológico

do trabalho em saúde. Na primeira, carrega-se os instrumentos (tecnologias duras), na segunda, o saber

técnico estruturado (tecnologias leve-duras) e, na terceira, as relações entre sujeitos que só têm

materialidade em ato (tecnologias leves). Na produção do cuidado, o médico utiliza-se das três valises,

arranjando de modo diferente uma com a outra, conforme o seu modo de produzir o cuidado. Assim, pode

haver a predominância da lógica instrumental; de outra forma, pode haver um processo em que os

processos relacionais (interseçores) intervêm para um processo de trabalho com maiores graus de

liberdade, tecnologicamente centrado nas tecnologias leves e leve-duras.

O trabalho em saúde e seu produto : Os produtos na saúde trazem a particularidade de uma certa

materialidade simbólica. A seguir, três das 17 teses de Merhy (2002): tese 1 : “falar em tecnologia é ter

sempre como referência a temática do trabalho, mas em um trabalho cuja ação intencional é demarcada

pela busca da produção de ‘coisas’ (bens/produtos) – que funcionam como objetos, mas que não

necessariamente são materiais, duros, pois podem ser bens/produtos simbólicos (que também portam

valores de uso) – que satisfaçam necessidades”; tese 7 : “o trabalho em saúde é centrado no 'trabalho vivo

em ato', um pouco à semelhança do trabalho em educação”; tese 14 : “a efetivação da 'tecnologia leve' do

'trabalho vivo em ato', na saúde, expressa-se como processo de produção de “relações interseçoras” em

uma de suas dimensões-chave, que é o seu encontro com o usuário final, que ‘representa’, em última

instância, as necessidades de saúde como sua intencionalidade, e, portanto, quem pode, como seu

interesse particular, ‘publicizar’ as distintas intencionalidades dos vários agentes na cena do trabalho em

saúde”; (MERHY; 2002:46-52).

O trabalhador de saúde é sempre coletivo : apesar deste ser um outro termo, deste dicionário,

vale assinalar que não há trabalhador de saúde que consiga sozinho dar conta do complexo objeto do ato

de cuidar: o mundo das necessidades de saúde. Deste modo, o trabalho de um técnico da saúde, de um

profissional universitário ou de um auxiliar, depende um do outro. Uma caixa de ferramentas de um é

necessária para completar a do outro. O trabalhador sempre depende desta troca, deste empréstimo.

A pactuação do processo de trabalho : A cena na qual é definido o modelo tecnológico de

produção da saúde é permeada por sujeitos, com capacidade de operar pactuações entre si, de forma que

a resultante dessas disputas é sempre produto da correlação de forças que se estabelece no processo.

Essa pactuação, segundo MERHY (2002), não se dá apenas em processos de negociação, mas estrutura-

se, muitas vezes, a partir de conflitos e tensões vividos no cenário de produção da saúde, seja na gestão ou

na assistência.

O debate em torno do processo de trabalho tem se mostrado extremamente importante para a

compreensão da organização da assistência à saúde e, fundamentalmente, de sua potência

transformadora, particularmente quando nos debruçamos sobre a micropolítica de organização do trabalho.

Verifica-se que, no modelo médico-hegemônico, a distribuição do trabalho assistencial é dimensionada para

concentrar o fluxo da assistência no profissional médico. No entanto, observa-se que há um potencial de

trabalho de todos os profissionais que pode ser aproveitado para cuidados diretos ao usuário, elevando

assim a capacidade resolutiva dos serviços. Isso se faz, sobretudo, reestruturando os processos de trabalho

e potencializando o “trabalho vivo em ato”, como fonte de energia criativa e criadora de um novo momento

na configuração do modelo de assistência à saúde.

O trabalho em saúde é sempre realizado por um trabalhador de dimensão coletiva. Não há nenhum

perfil de trabalho que dê conta sozinho do mundo das necessidades de saúde, o objeto real do trabalho em

saúde.

Os trabalhadores universitários, técnicos e auxiliares são fundamentais para que o trabalho de um

dê sentido ao trabalho do outro, na direção da verdadeira finalidade do trabalho em saúde: cuidar do

usuário, o portador efetivo das necessidades de saúde.

Termos associados: trabalhadores de saúde, trabalhador técnico, necessidades de saúde, relações

de trabalho, vínculos trabalhistas, tecnologias em saúde, modelo tecnoassistencial, entre outros.

Reestruturação Produtiva em Saúde

A reestruturação produtiva é a resultante de mudanças no modo de produzir o cuidado, geradas a

partir de inovações nos sistemas produtivos da saúde, que impactam o modo de fabricar os produtos da

saúde e na sua forma de assistir e cuidar das pessoas e dos coletivos populacionais.

Nem sempre, novas formas de organizar o processo de trabalho resultam em modos radicalmente

novos de produzir o cuidado, que sejam capazes de impactar os processos de produção da saúde. As

determinações para que uma reestruturação produtiva se realize são diversas. Os vários sujeitos, que

estão ligados à área da saúde, disputam, nos lugares onde se decide sobre a organização da política e dos

serviços de saúde, seus interesses distintos, como os: corporativos, burocráticos, políticos e de mercado.

Como conseqüência dessas disputas, o modelo tecnológico de produção da saúde, pode se

caracterizar a partir de diversos dispositivos de mudança do modo de produzir saúde, sem no entanto

mudar seu núcleo tecnológico, isto é, a mudança não é tão profunda no sentido de alterar a lógica da

produção de saúde, alterando a hegemonia centrada no trabalho morto (os mais comuns, hoje, como os

centrados em procedimentos profissionais de cuidado, mais do que nas necessidades dos usuários) para

outra centrada no trabalho vivo em ato, que se direciona pela centralidade do ato de cuidar do outro.

Por exemplo, a incorporação de novas tecnologias no trabalho em saúde na assistência hospitalar,

pode alterar o modo de produção do cuidado, e, assim, caracterizar uma forma de reestruturação

produtiva , pois altera os processos de trabalho e impacta no modo de realizar atos de saúde, construindo a

assistência. No entanto, o núcleo tecnológico dos processos de trabalho, criadores dos produtos, pode

permanecer como antes, “trabalho morto centrado”, com grande captura do “trabalho vivo em ato”. Outro

exemplo, pode ser dado em relação ao Programa Saúde da Família, quando este não consegue alterar os

processos de trabalho medicocêntricos, estruturados a partir dos atos prescritivos, desta profissão. Ele

muda a forma de produzir saúde a partir de núcleos familiares e da referência no território, mas o núcleo

tecnológico onde se processa o cuidado continua centrado no trabalho morto, operando nuclearmente um

modelo produtor de procedimentos. Nesses dois exemplos, podemos observar mudanças nos processos de

trabalho e na forma de produzir o cuidado, mas não a ponto de alterar a lógica produtiva e formar uma

outra maneira de cuidar.

As mudanças, dos processos produtivos na saúde, podem ser verificadas se olharmos a partir da

incorporação de novas tecnologias de cuidado, nos processos produtivos, nas outras maneiras de

organização o processo de trabalho e, até mesmo, nas mudanças das atitudes dos profissionais, no modo

de cuidar do outro. Isto é, processos de subjetivação dos profissionais, também, podem determinar uma

certa reestruturação produtiva , desde que impactam o modo de se produzir o cuidado. A reestruturação

produtiva , como é processo, pode ocorrer de forma desigual e em diversos graus de mudança, no interior

dos processos de trabalho.

O debate em torno das tecnologias de trabalho em saúde teve como uma das primeiras referências

a obra de Gonçalves (1994), que as define como “tecnologias materiais” (máquinas e instrumentos) e

“tecnologias não materiais” (conhecimento técnico). Gonçalves sugere que no trabalho em saúde há uma

micropolítica, pois os saberes tecnológicos (como a clínica e a epidemiologia) podem adquirir no mesmo

serviço, dependendo do trabalhador e da organização do modelo assistencial onde atua, formatos tão

diferentes que o modo de fazer o cuidado, no mesmo serviço, pode ser o oposto do outro. Nesta direção,

Merhy (1997) sugere outras categorias para designar e compreender as tecnologias de trabalho: aquelas

centradas em máquinas e instrumentos, chamadas de “tecnologias duras”, as do conhecimento técnico,

“tecnologias leve-duras”, e as das relações, “tecnologias leves”. Essas tecnologias operam o “trabalho

morto” e o “trabalho vivo em ato”, compondo assim os processos de produção da assistência à saúde, que

determinam o núcleo tecnológico do trabalho.

Verifica-se que, para além das máquinas e do conhecimento técnico, há algo nuclear no trabalho

em saúde, que são as relações entre os sujeitos e o agir cotidiano destes. Essa permanente atuação no

cenário de produção da saúde configura, então, a “micropolítica do trabalho vivo em ato”. Trata-se

sobretudo do reconhecimento que o espaço onde se produz saúde é um lugar onde se realizam também os

desejos e a intersubjetividade, que estruturam a ação dos sujeitos trabalhador e usuário, individual e

coletivo.

É possível haver, portanto, várias formas de reestruturação produtiva , sempre centradas na idéia

de que há mudança nos processos de trabalho e no modo de produzir o cuidado. Mas se estas mudanças

conseguem de fato alterar o núcleo tecnológico do cuidado, passando a operar centralmente as tecnologias

leves, organizando um modo de produção centrado no trabalho vivo, com determinação dos sujeitos,

trabalhador e usuário, que conduzem o processo de cuidado, isto pode configurar um modo de produção

radicalmente novo, ao qual conceituamos como transição tecnológica (Merhy, 2002; Franco, 2003).

A transição tecnológica traz em si a idéia de que há mudanças de sentido na produção do

cuidado, há de fato uma nova forma de conceber o próprio objeto e a finalidade do cuidado. Alterando de

modo significativo a lógica de produção do cuidado. Muda o núcleo tecnológico. Em vez de procedimento

centrada, passa a ser relacional centrada, olhando sempre e se subordinando ao mundo das necessidades

de saúde, individuais e coletivas. Ela ocorre a partir dos mesmos dispositivos que provocam a

reestruturação produtiva , aos quais são acrescentados processos de subjetivação, que redefinem um

modo de agir no mundo do trabalho em saúde, diferente do anterior, com hegemonia do trabalho vivo em

ato e das tecnologias leves no processo produtivo.

Porém, este movimento não é só nesta direção do interesse do usuário, pois no próprio mercado da

saúde, hoje, está instalada a disputa por uma transição tecnológica que aponta para outras formas de

obtenção do lucro com o trabalho em saúde. Há uma disputa social importante entre o capital do complexo

médico-industrial, que se apóia nos processos procedimento centrados, e o capital financeiro das

seguradoras e operadoras de planos de saúde que obtem lucros quanto menos procedimentos realiza. Isso

faz com que apareça no mercado um discurso em defesa da produção da saúde, mas isso é instrumental,

pois o objetivo central é o lucro com o cuidado de grupos populacionais que não fiquem doentes ou não

consumam atos de saúde. Este tema deve ser objeto de outra referência: a atenção gerenciada da saúde.