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Universidade Federal do Rio de Janeiro Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde
Atenção Domiciliar: medicalização e substitutividad e
Emerson Elias Merhy Laura Macruz Feuerwerker
Haveria várias possibilidades de desenvolver a análise das experiências de Atenção Domiciliar
existentes no país, mas pareceu-nos mais promissor pensar nelas como experiências de práticas de saúde
que desafiam e/ou repetem modos hegemônicos de se produzir o cuidado na saúde. Essa seria a vertente
analítica com maior potencial de contribuir para enfrentar os desafios impostos pelo desejo de inovação no
modo de se construir a atenção à saúde.
Leva-nos, independente da modalidade de Atenção Domiciliar praticada – seja como internação
domiciliar, dentro de uma lógica nitidamente hospitalar na casa; seja como uma forma de atenção no
domicílio, que procura construir novas formas de cuidar; ou mesmo um cuidado paliativo no domicílio
resignificando a possibilidade de viver a morte de modo distinto -, olhá-las tanto sob a perspectiva da
medicalização, ofertada por Donnangelo (1976), quanto sob o ângulo da discussão contemporânea da
substitutividade do cuidado hegemônico por novos modos de produzir saúde, pautado pelo debate da
transição tecnológica (e da reestruturação produtiva) na saúde, trabalhada por Pires (2000), Merhy (2002) e
Franco (2005).
Aqui, por força da reflexão de uma autora como Donnangelo, tratamos o processo de medicalização
como “polaridade tensional” (Merhy, 2002) ao de rede substitutiva. Inscrevemos sob esse ângulo de
substitutiva as possibilidades inovadoras do cuidado em saúde que renovam o modo hegemônico ou que o
desinstitucionalizam criando novos campos de práticas de produção do cuidado, transitando para novos
campos para a produção do cuidado em saúde. No Brasil, de modo bem contundente vemos esse processo
em ato no território de cuidado em saúde mental, no interior da reforma psiquiátrica, em curso, e das redes
antimanicomiais em ação (Reforma Psiquiátrica no Cotidiano 2, vários, 2007).
Dessa maneira, a medicalização seria uma das possibilidades de se compreender a construção
histórica e social de um campo de práticas, que se expressa na constituição das políticas sociais de saúde,
inscritas na relação entre o estado e a sociedade, e que guardam presença marcante em alguns países
europeus, do século XVIII para cá, em particular na França, Alemanha e Inglaterra; e em países como o
Brasil a partir do século XIX.
Com esse conceito Donnangelo procura mostrar que o período histórico de emergência e
consolidação das relações sociais capitalistas é coetâneo ao processo de concretização de práticas de
saúde, que se exprimem pela aparição da saúde pública como uma política de estado, em suas distintas
modelagens: polícia médica alemã, sanitarismo inglês e medicina social francesa; ou mesmo, o
campanhismo brasileiro (Merhy, 1985; Gonçalves, 1986). Segundo essa autora, essas modelagens são da
maior importância enquanto constitutivas das relações sociais capitalistas, ou seja, não seriam as mesmas,
se esse campo de práticas da saúde não tivesse sido constituído do jeito que foi. Donnangelo coloca, desse
modo, em discussão a própria noção de determinação econômica das sociedades, pontuando a idéia de
uma sobre-determinação do campo das políticas sociais; ou até de uma construção política, histórica e
cultural, tão fundamentais quanto a econômica, na constituição das sociedades contemporâneas.
Com esse quadro, a autora no seu texto aponta que esse campo das políticas sociais de saúde -
com as suas ações de extensão de serviços e/ou extensão de cobertura, com as quais contingentes
populacionais cada vez maiores ficam sob a égide da ação dessas políticas estatais e/ou públicas -,
provoca a conformação do fenômeno social da medicalização. Entendida, de um lado, como ampliação do
acesso social aos serviços de saúde, e do outro, como alargamento da normatização médica (e correlatas)
sob o imaginário social do conjunto dos grupos sociais, como estratégia de constituição e reprodução das
relações sociais capitalistas, na sua dimensão subjetiva e material.
Mesmo sem ter que concordar com toda essa formulação de Donnangelo, há algo fundamental e
interessante de ser pontuado: a existência e consolidação de um novo campo de práticas sociais,
emergente nos países e nações após a “modernidade” (ou idade clássica, como prefere Foucault – História
da Loucura), que tem a maior intimidade com a construção de um modo hegemônico de olhar e pensar
certos fenômenos da existência humana, tais como: o corpo, a saúde e a doença, a soberania do estado
sobre os corpos, entre outros.
Além disso, essa formulação nos convida a olhar para os processos não-hegemônicos (contra ou
anti-hegemônicos) que podem se constituir durante esse mesmo período e, com isso, indicar-nos a noção
da existência de modelagens de outras práticas de saúde no “mesmo” campo histórico e social, que possam
apontar para outros sentidos e significações desses fenômenos da existência humana, necessariamente
enquanto processos constituídos historicamente.
Desse modo, estamos autorizados a pensar nos processos não-hegemônicos em relação às
práticas da medicina e correlatos, que nascem para se contrapor a ela, ou mesmo que nascem vindas de
um outro lugar, marcadas por outros sentidos. Autoriza-nos, também, a pensar na construção de redes de
serviços que possam não ser simples extensão de coberturas das práticas médicas, mas substitutivas a
essas. Substitutivas na medida que são práticas que visam outros tipos de objetos e formas de cuidar, bem
como operadoras de outras perspectivas de normatividades sociais, históricas e imaginárias.
Abre-se assim a imagem de que diante da organização de modalidades de Atenção Domiciliar
podemos estar-nos defrontando com uma tensão constitutiva básica: de um lado, a medicalização, em
sentido lato; de um outro, a sua substituição. Vale lembrar que apesar de lados, eles não são excludentes,
mas mutuamente produzidos, um pelo outro: por isso é que falamos em tensão constitutiva. E como tais,
nos processos produtivos que esses lados implicam, estaríamos diante de uma dobra nuclear dos
processos produtivos de saúde, em geral: reestruturação produtiva da saúde e / ou transição tecnológica.
A oferta que fazemos desses conceitos, nesse estudo, é para podermos criar novas possibilidades
para nossos olhares de pesquisadores, que vêm estudando e se defrontando com a construção efetiva de
modalidades de organização de práticas de cuidados domiciliares, no Brasil, e encontrando-nos com uma
polissemia muito interessante de ser mirada e que, talvez, traduza a existência de muitas transversalidades
nas construções investigadas.
Nessa linha, algumas idéias serão apresentadas para trazer à tona uma reflexão do que se está
vivenciando nesse território de práticas de saúde da atenção domiciliar, enquanto lugar de ações
substitutivas de saúde (como transição e/ou reestruturação), suas múltiplas dimensões e possibilidades.
Para isso, vamos trabalhar essas transversalidades sob a imagem de polaridades entendidas como
dobras e não lugares que se anulam e/ou excluem. Com isso, estamos dizendo junto com Deleuze e
Guattari (Anti-Édipo) que o dentro e o fora, o molar e o molecular, o A e o -A não são pólos de tensões que
se eliminam; mas ao contrário, são passagens que se relacionam no “entre”, no ponto de intercessão de
uma dobra, de um laço, indo de um a outro. Como é, no olhar do Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido), o
ato produtivo do trabalho e a cultura, pois como nos ensina esse pensador o trabalhador é cultura e o seu
trabalho é produção de cultura, não cabendo criar pólos de lugares que se separam, mas sim territórios que
se produzem. Intercessores de si (Conversações - Deleuze, 2000).
Essas nossas polaridades serão então entendidas como tensões, que constituem o campo de
práticas e saberes em que a Atenção Domiciliar tem existência no Brasil, e revelação da presença efetiva e
real de sujeitos em ação, produtores e produtos desse mundo histórico, social e subjetivante. Esses sujeitos
em ação serão nossos analisadores desse campo, pois nele têm sua produção (nascem nesse campo de
práticas e aí fazem sentido), ao mesmo tempo que são protagonistas da sua construção (são elementos
responsáveis pela própria produção do campo).
Esses analisadores nos abrem caminhos nesse campo de práticas de saúde e nos põem em
análise, bem como ao campo, sob o olhar da reflexão da substitutividade, na tensão
medicalização/desinstitucionalização; enquanto pólo em si tenso entre reestruturação produtiva e/ou
transição tecnológica na saúde (veja texto anexo retirado do Dicionário da Educação Profissional em Saúde,
organizado pela EPJV – FIOCRUZ).
Iremos tomar, adiante, eixos definidos por conjuntos de analisadores, que agregamos por
considerá-los como pertencentes a mesma natureza instituinte, e apresentados pelas suas
transversalidades, ao conjunto dos lugares estudados, na nossa pesquisa sobre As modalidades tecno-
assistenciais de cuidado na Atenção Domiciliar 1:
1 Não temos a intenção de tratar desses analisadores para além de uma descrição de seu significado no campo de
estudo que realizamos, pois cada um merece um texto próprio e de fôlego.
A disputa do cuidado entre trabalhadores e desses com os usuários e cuidadores
A troca e interdição de saberes, efeitos pororoca e flecha
A ação no domicílio como um agir em redes de vinculações
A construção oral da memória da produção do cuidado
A implicação dos trabalhadores
A substitutividade e a desinstitucionalização contidas na atenção domiciliar
A disputa do cuidado entre trabalhadores e desses c om os usuários e cuidadores
Por vários momentos, nós nos deparamos na investigação com situações nas quais os
trabalhadores de saúde, de um lado, referiam-se ao cuidador domiciliar de um modo queixoso 2: “ele não
cuida direito”; “faz o que quer”; “não segue o que ensinamos”; enquanto o cuidador domiciliar, de outro lado,
fazia falas semelhantes: “eles não entendem da situação que vivemos”; “chegam, falam e não se
envolvem”; “pedem coisas que não podemos fazer”.
Quando trouxemos essas situações para uma discussão e debate no nosso grupo de pesquisa é
que pudemos perceber que no campo da saúde, em geral, há sempre um processo de disputa pelo cuidado
que está sendo construído. No dia a dia dos serviços de saúde, sob as suas distintas formas, vivenciamos
isso costumeiramente, quando um dito “paciente” não leva em consideração as indicações do profissional
de saúde; ou quando o profissional de saúde não dá a mínima para o que o outro está lhe relatando, pois já
tem o cuidado desenhado e arquitetado.
No caso da Atenção Domiciliar essa disputa de cuidado é mais evidente, pois com a figura do
cuidador domiciliar e com o cuidado sendo produzido no campo do próprio usuário, o enfrentamento de
imaginários e de modos de agir fica muito explícito. Daí uma postura biunívoca queixosa.
Temos para nós que qualquer processo de cuidado, por ser intercessor e trabalho vivo em ato, é
território permanente dessas disputas, que não devem ser anuladas, mas sim explicitadas como intenção da
própria composição do “projeto terapêutico clínico” a ser produzido em conjunto, no interior da equipe e
desta com o cuidador familiar e o usuário.
Por isso, parece-nos que um dos saberes que a pesquisa possibilita é o de interrogar as equipes
queixosas, colocando-as para pensar sobre seus papéis enquanto analisadoras e problematizadoras
desses processos de disputa de cuidados, procurando entender e revelar o que se está disputando em
termos de cuidado, e dando pistas sobre como agir nessa situação, posicionando-se inclusive como um
aprendiz, de um mundo do trabalho, que é uma escola em si (educação permanente).
2 As falas a seguir são ficcionais, procurando repetir o sentido das reais que tivemos no campo, por isso não
identificamos o locutor
Por outro lado, esta pesquisa deixa claro que as investigações, que procuram tomar como objeto a
produção do cuidado em saúde, não podem desconsiderar que estão diante de um objeto movediço, não
dado, mas um dando, um objeto em produção, pois constituído pelo agir em ato dos seus protagonistas,
trazendo para a cena da investigação de modo ativo também o pesquisador com sua implicação e lugar de
olhar (seu ponto de vista como uma vista de um ponto 3)
Nos casos estudados, encontramos todas as possibilidades: desde equipes que constroem o plano
de cuidado em conjunto com os cuidadores, havendo a possibilidade de singularização do cuidado de
acordo com necessidades identificadas e recursos disponibilizados pela família até equipes que procuram
simplesmente transferir o hospital para dentro da casa, tentando enquadrar o cuidador como um simples
executor de um plano terapêutico construído exclusivamente de acordo com a racionalidade técnico-
científica.
A disputa se faz então entre a “institucionalização” da casa como um espaço de cuidado dominado
pela racionalidade técnica (e pelo predomínio das tecnologias duras e leve-duras na produção do cuidado) e
a “desinstitucionalização” do cuidado em saúde, havendo construção compartilhada do projeto terapêutico,
ampliação da autonomia do cuidador/família/usuário, ampliação da dimensão cuidadora do trabalho da
equipe (e o predomínio das tecnologias leves e leve-duras na produção do cuidado).
No segundo caso, a atenção domiciliar surge como uma alternativa de organização da atenção à
saúde que contribui ativamente para a produção da integralidade e da continuidade do cuidado, da
ampliação da autonomia dos usuários na produção de sua própria saúde. Assim como no caso da saúde
mental busca-se produzir dispositivos terapêuticos que levem à desinstitucionalização do cuidado e do
usuário. A atenção domiciliar pode ser trabalhada como um dispositivo para a produção de
desinstitucionalização do cuidado e novos arranjos tecnológicos do trabalho em saúde. A tensão entre
ambos os pólos é constitutiva da modalidade, mas, por isso, mesmo, ela é portadora de um potencial
significativo de inovação.
A troca e interdição de saberes, efeitos pororoca e flecha
Na mesma linha, não foram poucos os relatos de algumas equipes muito envolvidas com usuários
graves, ou mesmo terminais, de como no espaço da vida domiciliar e na dinâmica do grupo de moradores
há um patrimônio de modos de cuidar, não inscritos nos territórios dos profissionais de saúde. Entretanto,
também houve situações nas quais vários relatos apontavam o oposto: como atrapalhavam as “crenças”,
segundo falas desses outros trabalhadores, dos cuidadores e das redes domésticas de cuidado.
Desse modo, no nosso estudo encontramos movimentos de vários trabalhadores que se deixavam
afetar pelas relações e saberes com “os da casa ou da família”, recebendo de volta como aprendizagem a
relação que realizavam a partir do seu próprio trabalho tecnológico (efeito pororoca do trabalho, na lógica da
educação permanente). Mas também, de outro lado, havia trabalhadores que se posicionavam como um
arco que lança uma flecha – isso é, o seu agir só vai em uma direção: dele para o outro como seu objeto -,
3 De acordo com Frei Beto e Leonardo Boff
e com isso, negavam o agir do outro e seu saber (apontando-o como “crença”), por serem de menor valor
científico e não alçaram à posição de um saber tecnológico produtor de cuidado, legítimo.
Nos locais em que se colocam como produtoras de alternativas inovadoras no cuidado em saúde,
as equipes de atenção domiciliar tornam-se lugares de manifestação de grandes conflitos e desafios.
Conflitos em relação à autoria do plano de cuidados, ao papel de cada profissional e dos
usuários/cuidadores na produção do cuidado num espaço que é privado, mas invadido pelo público;
conflitos diante da convivência íntima dos profissionais com necessidades, sofrimentos, valores culturais e
religiosos antes apenas vislumbrados.
Desafios diante da necessidade de produzir novas tecnologias de cuidado; desafios de construir um
outro equilíbrio entre os diferentes tipos de tecnologias envolvidos no trabalho em saúde; desafio de
construir equipe com um trabalho efetivamente orientado e mobilizado pelas necessidades de saúde não
somente do usuário, mas do coletivo familiar em questão; desafio de superar a fragmentação do sistema de
saúde e de produzir continuidade de atenção no interior de uma linha de cuidado que é produzida em ato
para cada situação.
Para almejar e conseguir tanto, este trabalho humano tem que ser portador de capacidade de
vivificar modos de existências interditados e antiprodutivos e tem que permitir que vida produza vida. Sua
“alma”, portanto, tem que ser a produção de um cuidado em saúde dirigido a propiciar ganhos de autonomia
e de vida dos seus usuários. Esse é um trabalho de alta complexidade, múltiplo, interdisciplinar, intersetorial
e interprofissional.
Um trabalho como esse só vinga se estiver colado a uma “revolução cultural” do imaginário social
dos vários sujeitos e atores sociais, de modo a ser gerador de novas possibilidades anti-hegemônicas de
compreender a multiplicidade e o sofrimento humano, dentro de um campo social de inclusividade e
produção de cidadania.
Essa aposta implica a fabricação de novos coletivos de trabalhadores de saúde que consigam com
seus atos vivos, tecnológicos e micropolíticos do trabalho em saúde, produzir mais vida ou a boa morte em
situações muitas vezes negligenciadas pelo sistema de saúde.
Os trabalhadores mais abertos a uma escuta do fazer cotidiano, como o lugar do trabalho implicado
com a produção do cuidado, que se conforma como uma verdadeira escola de formação e reafirmação do
saber-fazer, apontam de que modo esse processo de educação permanente explode repetidamente, a todo
o momento que há o encontro da equipe ou do trabalhador individual com os usuários e seus cuidadores.
E, nuclearmente, no interior da própria equipe de um trabalhador para o outro.
Pareceu-nos que esse processo é de dupla mão, pois se uma equipe nega o saber dos cuidadores,
estes tendem a fazer o mesmo com os saberes da equipe.
Olhar para o dia a dia do mundo do trabalho e ver os modos como os atos produtivos produzem e
transformam os conceitos, tornar esse processo objeto da curiosidade dos trabalhadores é a oportunidade
que traz a educação permanente em saúde, tornando-se um recurso indispensável para o trabalho de apoio
e produção de equipes inventoras.
Mas é preciso que esse seja um investimento da gestão do sistema e dos serviços e não seja mais
uma providência deixada a cargo da invenção de governabilidade das equipes.
No caso da atenção domiciliar há ainda, de modo mais evidente, a necessidade de também dialogar
e apoiar de maneira sistemática os cuidadores. Não somente proporcionando espaços de reflexão sobre as
práticas produzidas – e esse pode ser um recurso muito interessante para captação de novas tecnologias
de cuidado – mas também ofertando escuta e apoio para esse personagem que abre mão de partes
significativas de sua própria autonomia em prol do cuidado de outro.
O território de práticas da Atenção Domiciliar nos pareceu um lugar que favorece a explicitação
desses processos, trazendo a tona toda a tensão que ele contém na cotidianeidade dos processos de
cuidar em que se age, podendo facilitar as ações que põem em análise os ruídos que esse processo
provoca, tanto do ponto de vista da ação terapêutica (colocando em cheque a oferta de tecnologias de
cuidado por parte da equipe como normativa); quanto de uma busca de conhecimento sobre essas práticas
- que não pode abstrair a natureza intercessora do cuidado (Merhy, 2002).
Para que o domicílio seja espaço de produção de um lugar do novo e do acontecer em aberto e
experimental, é preciso construir um campo de proteção para quem tem que inventar coisas não pensadas
e não resolvidas; para quem tem que construir suas caixas de ferramentas, muitas vezes em ato; para
quem, sendo cuidador, deve ser cuidado.
Permitir colocar em interrogação o próprio fazer profissional como uma limitação parece ser uma
das conseqüências dessa situação. E, mais, parece ser uma necessidade nuclear para se imaginar novos
sentidos para as práticas de saúde.
A ação no domicílio como um agir em redes de vincul ações
Em poucas falas das equipes pesquisadas e de cuidadores aparecem situações que reconhecem
como limitada a redução da idéia de família ao núcleo típico familiar, bem como cuidado domiciliar à de
casa.
As equipes mais envolvidas com a busca de ganhos efetivos de autonomia por parte do usuário
e/ou do cuidador rapidamente perceberam a importância de ampliar a noção de casa para território de ação
e a de família para rede de vinculações. Aliás, aprendizagem que a construção das redes substitutivas em
saúde mental já tem de muito tempo, ensinando-nos bastante sobre isso, tanto nas suas práticas dos
CAPS, quanto das Residências Terapêuticas.
Entretanto, essa postura não foi tão predominante, quanto deveria. E, de fato, nem em uma
estratégia como a Saúde da Família isso parece ocorrer com freqüência. Ao contrário. A regra parece ser a
redução da família à lógica papai-mamãe ou assemelhados e a rede de vinculações a uma casa fisicamente
instalada. Mas não se opera essa redução sem muita dificuldade e tensão.
Essa tensão ocorre porque todas modalidades de Atenção Domiciliar que encontramos trabalham
com a figura do cuidador “domiciliar”, que em muitos casos não é nem morador da própria casa ou nem
mesmo pertence à família. Com isso a Atenção Domiciliar carrega consigo algo que lhe faz um lugar de
construção de práticas de saúde que precisam atuar com um “estranho” ao agir profissional e no território
desse outro, e não no interior de um estabelecimento de saúde. A atenção domiciliar fica sem essa
proteção.
Essa situação atravessa de modo tenso todo o processo da construção do cuidado nesse terreno,
fazendo com que qualquer equipe dessas modalidades de cuidado sinta essa tensão na composição de seu
agir terapêutico.
Dessa forma, ter que reconhecer a existência e mesmo atuar junto com as redes de vinculações
acaba sendo um ponto de pressão para produzir possibilidades substitutivas ao modo profissional de ser
hegemônico, puxado pela lógica domiciliar e familiar de cuidado. Mesmo que a equipe tenha uma postura
reducionista, ela acaba sendo transversalizada por toda essa característica, podendo com mais chance se
abrir a diálogos intra-equipe, que lhe apontem lugares de novos sentidos para o seu fazer, ampliando o seu
objeto de ação e impondo a construção de uma caixa de ferramentas mais alargada. Colocando em cheque
as práticas instituídas inter-profissionais que operam na saúde.
Na produção de conhecimento isso se torna relevante, pois leva os pesquisadores a ressignificarem
suas miradas sobre as tecnologias leves relacionais, para a competência de um agir cuidador e para a
presença significante do autogoverno dos cuidadores, profissionais ou não.
A construção oral da memória da produção do cuidado
Muitos relatos de experiências em diferentes redes de cuidado, e não só na Atenção Domiciliar,
apontam para a idéia de que os registros escritos, ou assemelhados, nunca espelham o que foi feito. Aliás,
fato corroborado pelos investigadores que procuram utilizar dados de prontuários, por exemplo, e sempre se
deparam com a situação de ter que ir buscar mais dados em outras fontes ou se queixar de que os
prontuários são mal preenchidos.
Nós, na nossa pesquisa, assumimos um outro olhar. Supusemos que mesmo um prontuário muito
bem preenchido não tem suficiência para registrar todo o processo de produção do cuidado, pois este é
nuclearmente centrado no trabalho vivo em ato e no seu agir tecnológico, em equipe, ou seja, em coletivo.
Dessa maneira, há uma outra memória operando no registro que não é a escrita, e que tivemos de
reconhecer: é a produção da memória oral no coletivo que está implicada com o cuidado realizado, na
equipe e para além da equipe (no próprio usuário, nas suas redes de vinculações).
Vale assinalar, que produzimos uma metodologia de investigação procurando esse diálogo, para
obtermos nossos dados. E, lá no campo, percebemos como a equipe em certas situações nos informava
mais sobre o que buscávamos fora dos momentos de conversas formais entre pesquisadores e
pesquisados. Houve situações em que a conversa no carro, indo e vindo de um domicílio, era a fonte mais
rica que tínhamos na mão.
Sem dúvida, a equipe também, porém não necessariamente, percebia isso, a ponto de instituir e
reconhecer esse momento como trabalho construtor da equipe e da sua forma de cuidar. O carro, em
alguns casos, é reconhecido como lugar de encontro e produção, que permite a reflexão “a quente” e a
análise das situações que se acabou de vivenciar ou que possibilita “a combinação do jogo” imediatamente
antes de “o time entrar em campo”. Quando não, as equipes perdiam oportunidades riquíssimas, só se
vendo trabalhando “sério” nos momentos formais e pré-definidos de reuniões de equipes, ou até, das
equipes com os cuidadores.
Desse modo, o desenho da pesquisa teve que dar conta dessa situação e as análises também,
trazendo conseqüências importantes até para pensarmos sobre as propostas de construção de modos de
cuidar nas redes de estabelecimentos de saúde.
Um dos dispositivos para levantamento/análise de dados utilizados em nossa pesquisa foram os
casos traçadores. Após um primeiro reconhecimento dos serviços de atenção domiciliar e de sua relação
com os demais equipamentos da rede de atenção à saúde, solicitamos às equipes que montassem um
banco de casos que fossem representativos dos diferentes perfis de atendimento habitualmente
enfrentados. Os casos selecionados foram analisados em profundidade por meio de análise do prontuário,
entrevistas com as equipes, familiares e usuários, quando possível.
Chamou vivamente nossa atenção o contraste entre as informações obtidas por meio das
entrevistas e a que era possível resgatar dos prontuários. Nestes estavam registrados estritamente os
aspectos biológicos da situação de saúde do usuário e as condutas medicamentosas adotadas e/ou
exames solicitados em cada visita. Uma sucessão repetitiva de registros impessoais e condutas formais.
Nas entrevistas, ao contrário, foi possível resgatar muitas outras dimensões da vida, em cada caso: os
aspectos afetivos, sociais, as divergências dentro da equipe, as dificuldades de relacionamento com certas
famílias ou cuidadores, os estranhamentos (da equipe e das famílias), os dilemas e desafios, o impacto das
histórias sobre os profissionais. Havia sim fotografias, lembranças, lembretes, mas nada disso aparecia nos
prontuários.
O registro escrito está capturado pela lógica das tecnologias duras e leve-duras e não se mostra
adequado para captar toda a dinâmica de trocas intersubjetivas, toda a gama de tecnologias leves utilizadas
para trabalhar em equipe, construir planos de ação e efetivar o cuidado. Essas informações/ emoções/
vivências estão registradas na memória, na afetividade dos trabalhadores e dos
usuários/familiares/cuidadores. Mais que isso, são parte do processo de produção desses sujeitos
cuidadores, já que a cada experiência vivenciada se transformam todos os envolvidos e sua caixa de
ferramentas para o trabalho em saúde.
Portanto, não são poucos os momentos em que vivemos nessas redes perdas de memórias de
certos cuidados praticados, quando um membro de uma equipe se ausenta no trabalho ou mesmo sai de
uma equipe. Por mais que busquemos registrar tudo, isso se mostra impossível, ficando sempre o desafio
de introduzir mais uma forma de registro para preencher a percepção dessa falta.
Como regra, há uma tendência a querer burocratizar criando normas e mais normas para ver se o
registro escrito se realiza, e mesmo o de realizar gastos e mais gastos em sistemas cada vez mais
sofisticados de anotações escritas para poder “escrever tudo”. E, como regra, sempre sentimos que os
objetivos não foram preenchidos.
Há lugares que já deram conta dessa impossibilidade e procuram fazer registros orais dos
prontuários e das conversas das equipes. Isso não deixa de ser interessante, mas também não é uma
solução tão efetiva assim, pois cada um tem um relato sobre o mesmo fato e o olha de um ponto de vista
distinto.
Achamos que produzir também massa de dados orais e armazená-los já é uma possibilidade, hoje,
e deve ser usada, mas o melhor é assumir a impossibilidade do registro de tudo e viver com a perda, desde
que a problematizando no interior da equipe e abrindo-se para o registro via múltiplas fontes, apostando na
criação de ferramentas que consigam colocar em foco analisadores do modo do trabalho vivo em ato agir e
construir memórias dos vários processos.
A Atenção Domiciliar nos mostrou que aqui também há uma pobreza nesse campo e que, como
todos os outros onde se produz o cuidado, há que se abrir um novo front de investigação sobre essa
constatação e explorar melhor as conexões com o campo de investigação da História Oral, da Análise
Institucional e Esquizoanálise, bem como os estudos de Micropolítica do Trabalho em Saúde.
Sem uma percepção real de como a produção do cuidado está calcada em uma superfície de
produção vetorizada pela micropolítica do trabalho vivo em ato, acaba-se montando teorias sobre o trabalho
em saúde muito limitadas com sérias conseqüências para a produção de conhecimento e para o agir
cuidador.
A Atenção Domiciliar facilita essa percepção quando a figura do cuidador e sua memória entram em
jogo no cenário, porém não são todos que escutam sua presença e o ruído que provocam. Isso depende
das implicações ético-políticas dos trabalhadores que compõem a equipe e do modo como as colocam em
conversa nas suas dinâmicas enquanto um grupo em gestão coletiva, ou não.
A implicação dos trabalhadores
Uma situação que ficou muito marcada na nossa equipe de pesquisadores foi o relato de como
algumas equipes se envolviam com os usuários e seus cuidadores, a ponto de sofrerem intensamente
quando um paciente em situação terminal falecesse; mesmo que soubessem com clareza que isso iria
ocorrer. Além disso, as suas falas nos indicavam que a capacidade de ofertarem seu trabalho vivo em ato,
no cuidar - para produzirem sopro de vida (Clarice Lispector) e menor sofrimento, naquelas situações - era
algo digno de registro e admiração.
Vivências assim não foram privilégios só de situações terminais e sabemos que não são restritas às
modalidades de cuidado domiciliar. Nas múltiplas redes de cuidado do SUS, Brasil afora, nas experiências
relatadas nos programas de atenção aos pacientes portadores de HIV, nas redes de cuidado em saúde
mental, e assim por diante, vemos, a todo tempo, momentos iguais, contrapondo os relatos mais comuns
das mídias e das elites do quanto se descuida nas redes públicas.
Entretanto, vimos que na Atenção Domiciliar há um quê de militância pela vida no que fazem,
equiparando-a muito às experiências na saúde mental. Trabalhadores intensamente implicados com a
construção de uma morte mais digna, com um aplacamento no limite máximo do sofrimento do paciente e
das suas redes de vinculações, com a conquista de mínimas autonomias para a vida cotidiana, e assim por
diante.
Os trabalhadores das equipes de atenção domiciliar, em sua maioria, são apaixonados, implicando-
se intensamente com seu trabalho. Dedicam-se de maneira muito intensa, comprometem-se com as
pessoas de que cuidam e com suas famílias muito além do que a responsabilidade técnica/ formal
prescreve.
Parece, então, que a possibilidade de produção inovadora do cuidado neste caso está relacionada à
existência de um projeto ético-político que toma as necessidades do usuário como referência central e que,
portanto, reconhece-o como sujeito, interlocutor decisivo na produção dos projetos terapêuticos (muitas
vezes essa autonomia é “arrancada” pelas famílias).
Projeto ético-político, por outro lado, que tem na implicação/ paixão um elemento decisivo de
mobilização dos trabalhadores. Paixão pela possibilidade de resgatar a dimensão cuidadora de seu trabalho
em saúde. Paixão pela possibilidade de criar, inventar, ou seja, paixão pelo trabalho vivo autopoiético.
Paixão por terem que se defrontar cotidianamente com o inusitado, com as singularidades de cada pessoa
e de cada família (que existem sempre, é claro, mas que o cuidado no domicílio aparentemente torna mais
evidentes) – ou seja, paixão pelo trabalho vivo em ato. Paixão por se descobrirem humanos em seu
trabalho em saúde – na identificação que ocorre em sua percepção sobre a construção das relações
familiares, nas tristezas e alegrias, nos medos, na potência e na impotência de suas ofertas. Paixão por se
desejarem equipe e por conseguirem operar essa produção. Paixão pelo resgate da solidariedade em sua
prática profissional e pela demolição dos limites impostos pela racionalidade científica na definição de seus
fazeres, amores, desamores e responsabilidades nas relações com os usuários.
Sem implicação e compromisso não seria possível suportar a instabilidade, a incerteza, a exposição
e a exigência de criatividade que um trabalho - desenvolvido de maneira tão próxima e conectada com os
usuários e seu modo de viver a vida - exige.
Esse grau de implicação das equipes da atenção domiciliar associado às demais características de
seu trabalho analisadas até aqui (disputa de projeto terapêutico, necessidade da educação permanente em
saúde como ferramenta de autoanálise e invenção, predomínio da memória oral no registro das
experiências de cuidado) obrigam-nos a uma necessária reflexão a respeito das possibilidades de avaliação
e produção de conhecimento a respeito dessa modalidade de organização do trabalho em saúde.
Em nosso país, devido à presença cada vez mais significativa de trabalhadores de saúde e de
usuários de serviços que vêm participando do processo de Reforma Sanitária, tem sido freqüentes sua
parceria com núcleos de pesquisadores, da universidade ou de ONGs, para estudar seus próprios
processos de intervenção. E esses estudos são fundamentais na busca da reorganização/ redirecionamento
dos serviços e das práticas de saúde, pois as situações vividas são extremamente reveladoras das
potencialidades, limitações, desafios e impasses que a produção de alternativas ao modelo hegemônico
impõe.
Para avaliar experiências como essas o instrumental clássico disponíibilizado pela avaliação deixa a
desejar, apesar de haver todo um debate teórico acerca dos paradigmas em que se apóiam a teoria e a
prática avaliativas. No campo do paradigma hermenêutico situam-se várias linhas, entre as quais a Fourth
Generation Evaluation de Guba & Lincoln. Esses autores consideram que houve três grandes “gerações” de
abordagens avaliativas desenvolvidas fundamentalmente no campo da educação:
- geração da medida – foi a era dos testes de QI
o o avaliador tornava-se um técnico, isento de vieses, capaz de aplicar o teste
apropriado e de apresentar seus resultados e respectivos significados.
- geração da descrição – usavam-se ainda as medidas, especialmente em relação a
programas, mas de maneira articulada com uma certa caracterização do avaliado. Ou seja,
media-se o resultado em relação às intenções do avaliado.
o o avaliador descrevia as fortalezas e debilidades do avaliado em relação a
determinados objetivos
- geração do julgamento – o avaliador não somente descrevia mas julgava o mérito
ou o valor do avaliado à luz das fortalezas e debilidades.
Segundo Guba/Lincoln essas três gerações de abordagens padeciam de alguns problemas:
a) tendência a favorecer o ponto de vista do cliente, ou seja, o ponto de vista de quem
contrata a avaliação;
b) negavam o pluralismo de interesses e opiniões entre os participantes em relação à
avaliação; quer dizer trabalhavam com a idéia de que era possível estabelecer para a avaliação
uma determinada função objetiva unificada, com a qual todos estariam de acordo;
c) todas essas abordagens utilizavam centralmente metodologias quantitativas
baseadas no suposto da natureza quasi-científica desse tipo de investigação.
Para superar essas limitações, eles propõem como alternativa uma “avaliação construtivista e
responsiva”. Responsiva em relação ao foco, ao objetivo da avaliação, já que propicia aos vários atores a
possibilidade de participar da definição dos objetivos, dos critérios que serão utilizados. Ou seja, eles não
estão estabelecidos a priori, ao contrário, emergem no processo.
Acreditamos que no caso de processos como os aqui analisados mesmo a avaliação de quarta
geração (Guba & Lincoln) deixa a desejar, pois fica faltando colocar em análise a própria implicação dos
sujeitos produtores das ações a serem avaliadas. Ou seja, os processos avaliativos, além de terem os
trabalhadores e usuários como sujeitos, têm que tomar o seu próprio agir como objeto, trazendo para a
análise o seu próprio modo de dar sentido ao que é problema a ser investigado, no qual também significam
claramente a si mesmos e aos outros.
O desafio, então, fica pela possibilidade de operar a produção de saberes que são verdades
militantes, que fazem sentido para certos coletivos e não outros (para agrupamentos que também estão
instituídos, mas não no território oficial do científico), mas que permitem aos sujeitos implicados agir sobre o
mundo e determiná-lo na direção de rumos nem sempre previstos, não necessariamente subsumidos às
lógicas dos poderes, das ideologias e dos afetos instituídos.
Inclusive, este desafio alarga-se, na medida em que devemos imaginar que a produção da
validação de um saber militante, como conhecimento legítimo e saber para os outros, passa também pela
própria exposição dos interlocutores acadêmicos ou científicos nas suas implicações, não só nos seus
interesses. Estes devem assumir como uma necessidade comunicativa (na linha habermasiana) que o
processo de validação ocorrerá pelos diálogos das várias implicações em jogo, que se reconhecerão dando
sentidos entre si, mesmo que se oponham, posicionando-se no espaço público quanto a este processo de
validação do saber e de suas conseqüências.
A produção deste saber militante deve ser (e é) nova e auto-analítica, individual e coletiva, particular
e pública. Opera sob os vários modos de se ser sujeito produtor do processo em avaliação e em última
instância interroga os próprios sujeitos em suas ações protagonizadoras e os desafios de construírem novos
sentidos para os seus modos de agir, individual e coletivo. Interroga e pode repor suas apostas e modos de
ação.
A auto-análise das implicações do sujeito acorda-o do seu silêncio instituído e possibilita a abertura
para produzir novos sentidos e significações para os fenômenos, reconhecendo-se como seu produtor, re-
significando a si e aos sentidos de seus fazeres.
Neste tipo de estudo o mais importante do ponto de vista metodológico é a produção de dispositivos
que possam interrogar o sujeito instituído no seu silêncio, abrindo-o para novos territórios de significação, e
com isso, mais do que formatar um terreno de construção do sujeito epistêmico, apostar em processos que
gerem ruídos no seu agir cotidiano, colocando-o sob análise. Apostar na construção de dispositivos auto-
analíticos que os indivíduos e os coletivos em ação possam operar para se auto-analisar. Por isso os
processos de educação permanente em saúde precisam ser de algum modo registrados e sistematizados,
pois estão em clara conexão com a possibilidade de avaliação e produção de conhecimento a partir das
experiências vivenciadas.
Porém, há que reconhecer que há também situações opostas, sem clima de militância e
solidariedade, do ponto de vista da implicação com a produção da vida, em algumas equipes, nesse campo
de cuidado. Nessas experiências, mais instrumentais, em que a modalidade Atenção Domiciliar está
marcada pela racionalização da utilização dos recursos hospitalares ou de alto custo, transferindo para o
domicilio muito do custo pelo cuidado, vimos equipes mais restritas quanto a essa dimensão da implicação
com e pelo outro.
Quase que como regra isso ocorre em serviços de cuidados domiciliares não públicos, das redes
dos serviços privados, em que a lógica da comercialização se impõe de modo fundamental. E, as equipes,
são invadidas por essa implicação e não pela da produção da vida.
Essa constatação não é um julgamento moral, mas necessária para poder entender a presença de
certas racionalidades que invadem ou não o fazer. Desse modo, podemos ousar dizer que não há como
assumir uma visão única sobre a lógica da organização dessas modalidades de cuidado e isso se espelha
na implicação dos próprios trabalhadores e equipe, como um todo.
Por isso, análises que às vezes tomam essa modalidade como um cuidar “mais humano” ou,
outras, que dizem que é uma mera racionalização do modelo hegemônico e capitalista de produzir saúde,
não conseguem dar conta da constitutividade tensa desse campo de práticas, necessariamente polarizada
pelas possibilidades.
Ousamos mesmo a dizer que até em lugares do serviço público e do privado é possível haver
inversão. Ser muito instrumental e serviço centrado no público ou ser autopoiético 4 e centrado na vida do
usuário no privado. As margens de autogoverno das equipes permitem isso; e quem conhece a
micropolítica do trabalho vivo em ato sabe muito bem como isso é possível.
A substitutividade e a desinstitucionalização da at enção domiciliar
Como apontamos no começo deste texto, a Atenção Domiciliar coloca em cena a discussão da
substitutividade como desinstitucionalização ou não, entendendo a desinstitucionalização como uma
substitutividade no modo de se produzirem as práticas de saúde e não simplesmente uma reestruturação no
modo de se fazer a produção do mesmo modelo hegemônico, centrado nas profissões e nos
procedimentos, tendo como base nuclear o modelo médico, dos séculos XIX e XX, que predominou no
ocidente, baseado na visão do seu objeto como a doença localizada em um corpo biológico, mecânico.
4 Ver texto de Merhy: Engravidando as palavras.
Nos casos analisados, de acordo com os próprios sujeitos dos processos, o trabalho
desinstitucionalizado, realizado nas casas das pessoas, oferece-lhes mais liberdade de criação na
condução das suas atividades (inclusive nos aspectos clínicos), permite-lhes relacionar-se diretamente com
as pessoas (sem intermediários), possibilita-lhes conhecer e vivenciar seus contextos de vida e essa
vivência mobiliza sua capacidade de produzir alternativas coletivas, criativas e apropriadas para o cuidado e
a produção da autonomia.
Tudo isso lhes possibilita construir vínculos mais fortes, permite-lhes resgatar de maneira intensiva
a dimensão cuidadora do trabalho em saúde, operando como um trabalhador coletivo. Além disso – e essa
é uma consideração nossa - convivem e são desafiados por um grau inusitado de autonomia das famílias
na produção dos projetos de cuidado que são implementados.
Parece, então, que o fato de o cuidado em saúde ser produzido num território não institucional – o
domicílio – e de se propor a produzir alternativas substitutivas à organização do cuidado coloca os atores de
outro modo em cena e abre novos espaços para a inovação.
Assim como acontece na saúde mental e no trabalho dos agentes comunitários de saúde, a tensão
é constitutiva desse novo espaço institucional de cuidado. Tensão essa que pode ser produtiva,
convertendo-se em fator favorável à atenção domiciliar como espaço de “desinstitucionalização”,
potencialmente produtora de inovações. Ou pode ser uma tensão que se resolva por meio da subjugação
da família e da reprodução. O projeto ético-político das equipes é decisivo na definição desse jogo.
A substitutividade e a desinstitucionalização seriam então elementos fundamentais para a produção
de novas maneiras de cuidar, de novas práticas de saúde em que o compromisso com a defesa da vida
norteia o pacto de trabalho das equipes.
Ou seja, quando a atenção domiciliar, um CAPS ou o trabalho do agente comunitário de saúde se
configuram como modalidades substitutivas de organização da atenção, com intenção
desinstitucionalizador, como dispositivos para a produção de cuidados que efetivamente não são
produzidos segundo o modelo hegemônico dentro do hospital, do ambulatório ou do manicômio, eles se
configuram como um terreno do trabalho vivo em ato instituinte de novidades; possibilitando a
produção/invenção de práticas cuidadoras e implicada com um agir autopoiético na saúde (Merhy, 2005).
Existe grande potência nesses arranjos. Precisamos aprender com eles. A ruptura do fazer parece ser uma
condição fundamental para a invenção.
ANEXO
Verbetes escritos por Emerson E. Merhy e Túlio Batista Franco
Trabalho em Saúde
O trabalho
Toda atividade humana é um ato produtivo, modifica alguma coisa e produz algo novo. Os homens
e mulheres, durante toda a sua história, através dos tempos, estiveram ligados, de um modo ou outro, a
atos produtivos, mudando a natureza.
Quando eles tiram um fruto de uma árvore, ou caçam um animal, estão fazendo um ato produtivo e
transformação da natureza. O fruto fora da árvore ou o animal caçado só existe, agora, pelo ato produtivo
desses homens e mulheres. Isso é uma transformação da natureza pelo trabalho humano.
Homens e mulheres vivem em sociedade, sempre em coletivos, juntos. Os seus trabalhos também
se realizam juntos, são atividades organizadas uma com as outras. O trabalho de um se organiza junto com
o do outro. E, o modo como o trabalho se organiza e para que ele serve é importante para entendermos a
sociedade que vivemos.
Além disso, ao trabalharmos, todos nós, modificamos a natureza e nos modificamos. O ato do
trabalho funciona como uma escola, ele mexe com a nossa forma de pensar e de agir no mundo. Nos
formamos no trabalho.
Há autores como Marx que diz que o trabalho é a essência da humanidade dos homens ou como
Paulo Freire que afirma que a cultura é dada pela forma como trabalhamos o mundo para fazer sentido para
nós. Quando caçávamos animais estávamos dizendo que os animais estavam aí para serem nossos
alimentos, dávamos este sentido de existência para eles. Hoje, é assim também. Quando tiramos árvores
para fazer madeira estamos dizendo que as árvores são importantes por serem fontes de matéria-prima: o
carvão para fazer fogo, a madeira para fazer casa ou móveis, entre outros.
Mas, ainda bem, que estes sentidos não são fixos. Variam conforme a sociedade e os interesses
que nós construímos em cada época. Interesses que são muito variados e que, muitas vezes, brigam entre
si. Por exemplo, muitos de nós defendem que árvores, hoje, não são fonte de madeira, mas seres vivos
importantes para manter a própria vida, em atividade, na terra. As sociedades e as formas de organizar o
trabalho, como vimos, têm história. Variam no tempo, se modificam. E, nós, também.
A sociedade que vivemos, hoje, a capitalista, existe de alguns séculos para cá. Antes dela outras
formas de organização social e do trabalho existiam, como, por exemplo, as sociedades de senhores e
escravos; ou as dos reis e servos.
O modo como o trabalho é realizado e o que se faz com seus produtos variam conforme a
sociedade que estamos analisando. Nas sociedades da caça e coleta o trabalho é propriedade de cada um
e o produto do trabalho pertence a quem o faz. Nas sociedades de senhores e escravos, o trabalho do
escravo pertence ao senhor.
Por isso, dizemos que o trabalho é produtor de “valores de uso” e de “valores de troca”. Conforme a
necessidade que procura satisfazer, o trabalho produz um produto que carrega um certo “valor de uso”, por
exemplo, a caça serve para alimentar satisfazendo esta necessidade; por outro lado, se caço para trocar
por uma fruta a utilidade dele agora é de ser trocado por outro produto que outro trabalhador produziu.
Agora ele tem “valor de troca”. Nas sociedades o modo como estes dois componentes se comportam
variam.
Nas sociedades capitalistas, que vivemos, o produto do trabalho do trabalhador é do patrão ou da
empresa que o emprega. Ele só recebe um salário por trabalhar e não pelos produtos que produz. A riqueza
da sociedade, se medida pela quantidade de trabalho e de produtos que o trabalho produz, é desigualmente
distribuída. Quem trabalha, como regra, é quem menos recebe da riqueza produzida. Assim, o trabalho do
trabalhador serve para produzir produtos que tenham “valores de troca” para o patrão.
Há sociedades modernas, como as socialistas, que defendem que a riqueza é de toda a sociedade
e a sua distribuição deve ser feita de acordo com o trabalho e a necessidade de cada um.
O trabalho e alguns de seus detalhes nos microproce ssos
O objeto do trabalho, o animal a ser caçado, a planta a ser colhida, o aço a ser trabalhado, vai
adquirir sentido pela ação intencional do trabalhador - ser alimento, virar automóvel – através de seu
trabalho com as suas ferramentas, seus meios de trabalhar e o modo como organiza o seu uso – todo
trabalhador carrega consigo uma caixa de ferramentas, que na saúde fazemos a imagem de valises
tecnológicas para fazer o seu trabalho. Nesta caixa, os trabalhadores, tanto de modo individual, quanto
coletivo, têm suas ferramentas-máquinas, seus conhecimentos e saberes tecnológicos (o seu saber-fazer) e
suas relações com todos os outros que participam da produção e consumo do seu trabalho.
Entretanto, um trabalho não é igual ao outro. De acordo com o que produz, um trabalho difere do
outro. Por exemplo, para produzir carro tem que se fazer de um certo modo; para produzir saúde tem que
se produzir de outro. Cada produção de um produto específico exige técnicas diferentes, matéria-prima
diferente, modos de organizar o trabalho específicos e trabalhadores próprios para aquela produção. Cada
trabalho tem como seu objeto coisas distintas.
Todo processo de trabalho combina trabalho em ato e consumo de produtos feitos em trabalhos
anteriores. Na produção de um carro exige-se placas de aço. Para o trabalhador fazer em ato o carro
necessita que o aço esteja já feito. Este aço é produto de trabalho de uma outra produção feita antes pelo
trabalhador de uma siderúrgica. Assim, o trabalho de fazer carro combina um trabalho em ato do
trabalhador que está fabricando o carro e um trabalho feito antes por outro trabalhador em outro tipo de
fábrica.
O trabalho feito em ato chamamos de “trabalho vivo em ato” e o trabalho feito antes que só chega
através do seu produto, o aço, chamamos de “trabalho morto”.
O trabalho vivo em ato nos convida a olhar para duas dimensões: uma, é a da atividade como
construtora de produtos, de sua realização através da produção de bens, de diferentes tipos, e que está
ligada à realização de uma finalidade para o produto (para que ele serve, que necessidade satisfaz, que
“valor de uso” ele tem).
A outra dimensão é a que se vincula ao produtor do ato, o trabalhador, e sua relação com seu ato
produtivo e os produtos que realiza, bem como com suas relações com os outros trabalhadores e com os
possíveis usuários de seus produtos. Detalhar estas duas dimensões é fundamental para entendermos o
que é o trabalho como prática social e prática técnica. Como ato produtivo de coisas e de pessoas. Antes de
olharmos isso na saúde, vamos andar mais um pouco pelo trabalho em vários outros campos.
Como produtor de bens, o trabalhador está amarrado a uma cadeia material dura e simbólica, pois o
“valor de uso” do produto é dado pelo “valor referente simbólico” que carrega, construído pelos vários atores
sociais em suas relações. Já o “valor de troca” de um produto está amarrado a forma de funciona uma
sociedade, historicamente fabricadas pelos homens, como a capitalista que vivemos, hoje.
Se para a produção de carro o “valor referente simbólico” é servir para transportar ou, até, para se
exibir com uma máquina especial (para quem deseja não um carro mas uma Ferrari), para a produção da
saúde o “referente simbólico” é ser cuidado ou vender procedimentos para ganhar dinheiro. Depende de
quem está em cena, seu lugar social, seu lugar no processo produtivo, seus valores culturais, entre várias
outras coisas.
Por isso, os autores deste texto advogam que nas sociedades de direito à saúde, como é a
brasileira de acordo com sua constituição de 1988, o trabalho em saúde deve se pautar pelo seu principal
“referente simbólico”: o ato de cuidar da vida e do outro, como alma da produção da saúde. E, assim, tomar
como seu objeto central o mundo da necessidade dos usuários individuais e coletivos, visando a produção
social da vida e defendendo-a.
Trabalho em saúde
Trabalho vivo em ato : A produção na saúde se realiza, sobretudo, por meio do “trabalho vivo em
ato”, isto é, o trabalho humano no exato momento em que é executado e que determina a produção do
cuidado. Mas o trabalho vivo interage todo o tempo com instrumentos, normas, máquinas, formando assim
um processo de trabalho, no qual interagem diversos tipos de tecnologias. Estas formas de interações
configuram um certo sentido no modo de produzir o cuidado.
Vale ressaltar que todo trabalho é mediado por tecnologias e depende da forma como elas se
comportam no processo de trabalho, pode-se ter processos mais criativos, centrados nas relações, ou
processos mais presos à lógica dos instrumentos duros (como as máquinas).
Trabalho e suas tecnologias : O trabalho em saúde pode ser percebido usando como exemplo o
trabalho do médico, no qual se imagina a existência de três valises para demonstrar o arsenal tecnológico
do trabalho em saúde. Na primeira, carrega-se os instrumentos (tecnologias duras), na segunda, o saber
técnico estruturado (tecnologias leve-duras) e, na terceira, as relações entre sujeitos que só têm
materialidade em ato (tecnologias leves). Na produção do cuidado, o médico utiliza-se das três valises,
arranjando de modo diferente uma com a outra, conforme o seu modo de produzir o cuidado. Assim, pode
haver a predominância da lógica instrumental; de outra forma, pode haver um processo em que os
processos relacionais (interseçores) intervêm para um processo de trabalho com maiores graus de
liberdade, tecnologicamente centrado nas tecnologias leves e leve-duras.
O trabalho em saúde e seu produto : Os produtos na saúde trazem a particularidade de uma certa
materialidade simbólica. A seguir, três das 17 teses de Merhy (2002): tese 1 : “falar em tecnologia é ter
sempre como referência a temática do trabalho, mas em um trabalho cuja ação intencional é demarcada
pela busca da produção de ‘coisas’ (bens/produtos) – que funcionam como objetos, mas que não
necessariamente são materiais, duros, pois podem ser bens/produtos simbólicos (que também portam
valores de uso) – que satisfaçam necessidades”; tese 7 : “o trabalho em saúde é centrado no 'trabalho vivo
em ato', um pouco à semelhança do trabalho em educação”; tese 14 : “a efetivação da 'tecnologia leve' do
'trabalho vivo em ato', na saúde, expressa-se como processo de produção de “relações interseçoras” em
uma de suas dimensões-chave, que é o seu encontro com o usuário final, que ‘representa’, em última
instância, as necessidades de saúde como sua intencionalidade, e, portanto, quem pode, como seu
interesse particular, ‘publicizar’ as distintas intencionalidades dos vários agentes na cena do trabalho em
saúde”; (MERHY; 2002:46-52).
O trabalhador de saúde é sempre coletivo : apesar deste ser um outro termo, deste dicionário,
vale assinalar que não há trabalhador de saúde que consiga sozinho dar conta do complexo objeto do ato
de cuidar: o mundo das necessidades de saúde. Deste modo, o trabalho de um técnico da saúde, de um
profissional universitário ou de um auxiliar, depende um do outro. Uma caixa de ferramentas de um é
necessária para completar a do outro. O trabalhador sempre depende desta troca, deste empréstimo.
A pactuação do processo de trabalho : A cena na qual é definido o modelo tecnológico de
produção da saúde é permeada por sujeitos, com capacidade de operar pactuações entre si, de forma que
a resultante dessas disputas é sempre produto da correlação de forças que se estabelece no processo.
Essa pactuação, segundo MERHY (2002), não se dá apenas em processos de negociação, mas estrutura-
se, muitas vezes, a partir de conflitos e tensões vividos no cenário de produção da saúde, seja na gestão ou
na assistência.
O debate em torno do processo de trabalho tem se mostrado extremamente importante para a
compreensão da organização da assistência à saúde e, fundamentalmente, de sua potência
transformadora, particularmente quando nos debruçamos sobre a micropolítica de organização do trabalho.
Verifica-se que, no modelo médico-hegemônico, a distribuição do trabalho assistencial é dimensionada para
concentrar o fluxo da assistência no profissional médico. No entanto, observa-se que há um potencial de
trabalho de todos os profissionais que pode ser aproveitado para cuidados diretos ao usuário, elevando
assim a capacidade resolutiva dos serviços. Isso se faz, sobretudo, reestruturando os processos de trabalho
e potencializando o “trabalho vivo em ato”, como fonte de energia criativa e criadora de um novo momento
na configuração do modelo de assistência à saúde.
O trabalho em saúde é sempre realizado por um trabalhador de dimensão coletiva. Não há nenhum
perfil de trabalho que dê conta sozinho do mundo das necessidades de saúde, o objeto real do trabalho em
saúde.
Os trabalhadores universitários, técnicos e auxiliares são fundamentais para que o trabalho de um
dê sentido ao trabalho do outro, na direção da verdadeira finalidade do trabalho em saúde: cuidar do
usuário, o portador efetivo das necessidades de saúde.
Termos associados: trabalhadores de saúde, trabalhador técnico, necessidades de saúde, relações
de trabalho, vínculos trabalhistas, tecnologias em saúde, modelo tecnoassistencial, entre outros.
Reestruturação Produtiva em Saúde
A reestruturação produtiva é a resultante de mudanças no modo de produzir o cuidado, geradas a
partir de inovações nos sistemas produtivos da saúde, que impactam o modo de fabricar os produtos da
saúde e na sua forma de assistir e cuidar das pessoas e dos coletivos populacionais.
Nem sempre, novas formas de organizar o processo de trabalho resultam em modos radicalmente
novos de produzir o cuidado, que sejam capazes de impactar os processos de produção da saúde. As
determinações para que uma reestruturação produtiva se realize são diversas. Os vários sujeitos, que
estão ligados à área da saúde, disputam, nos lugares onde se decide sobre a organização da política e dos
serviços de saúde, seus interesses distintos, como os: corporativos, burocráticos, políticos e de mercado.
Como conseqüência dessas disputas, o modelo tecnológico de produção da saúde, pode se
caracterizar a partir de diversos dispositivos de mudança do modo de produzir saúde, sem no entanto
mudar seu núcleo tecnológico, isto é, a mudança não é tão profunda no sentido de alterar a lógica da
produção de saúde, alterando a hegemonia centrada no trabalho morto (os mais comuns, hoje, como os
centrados em procedimentos profissionais de cuidado, mais do que nas necessidades dos usuários) para
outra centrada no trabalho vivo em ato, que se direciona pela centralidade do ato de cuidar do outro.
Por exemplo, a incorporação de novas tecnologias no trabalho em saúde na assistência hospitalar,
pode alterar o modo de produção do cuidado, e, assim, caracterizar uma forma de reestruturação
produtiva , pois altera os processos de trabalho e impacta no modo de realizar atos de saúde, construindo a
assistência. No entanto, o núcleo tecnológico dos processos de trabalho, criadores dos produtos, pode
permanecer como antes, “trabalho morto centrado”, com grande captura do “trabalho vivo em ato”. Outro
exemplo, pode ser dado em relação ao Programa Saúde da Família, quando este não consegue alterar os
processos de trabalho medicocêntricos, estruturados a partir dos atos prescritivos, desta profissão. Ele
muda a forma de produzir saúde a partir de núcleos familiares e da referência no território, mas o núcleo
tecnológico onde se processa o cuidado continua centrado no trabalho morto, operando nuclearmente um
modelo produtor de procedimentos. Nesses dois exemplos, podemos observar mudanças nos processos de
trabalho e na forma de produzir o cuidado, mas não a ponto de alterar a lógica produtiva e formar uma
outra maneira de cuidar.
As mudanças, dos processos produtivos na saúde, podem ser verificadas se olharmos a partir da
incorporação de novas tecnologias de cuidado, nos processos produtivos, nas outras maneiras de
organização o processo de trabalho e, até mesmo, nas mudanças das atitudes dos profissionais, no modo
de cuidar do outro. Isto é, processos de subjetivação dos profissionais, também, podem determinar uma
certa reestruturação produtiva , desde que impactam o modo de se produzir o cuidado. A reestruturação
produtiva , como é processo, pode ocorrer de forma desigual e em diversos graus de mudança, no interior
dos processos de trabalho.
O debate em torno das tecnologias de trabalho em saúde teve como uma das primeiras referências
a obra de Gonçalves (1994), que as define como “tecnologias materiais” (máquinas e instrumentos) e
“tecnologias não materiais” (conhecimento técnico). Gonçalves sugere que no trabalho em saúde há uma
micropolítica, pois os saberes tecnológicos (como a clínica e a epidemiologia) podem adquirir no mesmo
serviço, dependendo do trabalhador e da organização do modelo assistencial onde atua, formatos tão
diferentes que o modo de fazer o cuidado, no mesmo serviço, pode ser o oposto do outro. Nesta direção,
Merhy (1997) sugere outras categorias para designar e compreender as tecnologias de trabalho: aquelas
centradas em máquinas e instrumentos, chamadas de “tecnologias duras”, as do conhecimento técnico,
“tecnologias leve-duras”, e as das relações, “tecnologias leves”. Essas tecnologias operam o “trabalho
morto” e o “trabalho vivo em ato”, compondo assim os processos de produção da assistência à saúde, que
determinam o núcleo tecnológico do trabalho.
Verifica-se que, para além das máquinas e do conhecimento técnico, há algo nuclear no trabalho
em saúde, que são as relações entre os sujeitos e o agir cotidiano destes. Essa permanente atuação no
cenário de produção da saúde configura, então, a “micropolítica do trabalho vivo em ato”. Trata-se
sobretudo do reconhecimento que o espaço onde se produz saúde é um lugar onde se realizam também os
desejos e a intersubjetividade, que estruturam a ação dos sujeitos trabalhador e usuário, individual e
coletivo.
É possível haver, portanto, várias formas de reestruturação produtiva , sempre centradas na idéia
de que há mudança nos processos de trabalho e no modo de produzir o cuidado. Mas se estas mudanças
conseguem de fato alterar o núcleo tecnológico do cuidado, passando a operar centralmente as tecnologias
leves, organizando um modo de produção centrado no trabalho vivo, com determinação dos sujeitos,
trabalhador e usuário, que conduzem o processo de cuidado, isto pode configurar um modo de produção
radicalmente novo, ao qual conceituamos como transição tecnológica (Merhy, 2002; Franco, 2003).
A transição tecnológica traz em si a idéia de que há mudanças de sentido na produção do
cuidado, há de fato uma nova forma de conceber o próprio objeto e a finalidade do cuidado. Alterando de
modo significativo a lógica de produção do cuidado. Muda o núcleo tecnológico. Em vez de procedimento
centrada, passa a ser relacional centrada, olhando sempre e se subordinando ao mundo das necessidades
de saúde, individuais e coletivas. Ela ocorre a partir dos mesmos dispositivos que provocam a
reestruturação produtiva , aos quais são acrescentados processos de subjetivação, que redefinem um
modo de agir no mundo do trabalho em saúde, diferente do anterior, com hegemonia do trabalho vivo em
ato e das tecnologias leves no processo produtivo.
Porém, este movimento não é só nesta direção do interesse do usuário, pois no próprio mercado da
saúde, hoje, está instalada a disputa por uma transição tecnológica que aponta para outras formas de
obtenção do lucro com o trabalho em saúde. Há uma disputa social importante entre o capital do complexo
médico-industrial, que se apóia nos processos procedimento centrados, e o capital financeiro das
seguradoras e operadoras de planos de saúde que obtem lucros quanto menos procedimentos realiza. Isso
faz com que apareça no mercado um discurso em defesa da produção da saúde, mas isso é instrumental,
pois o objetivo central é o lucro com o cuidado de grupos populacionais que não fiquem doentes ou não
consumam atos de saúde. Este tema deve ser objeto de outra referência: a atenção gerenciada da saúde.