guattari e rolnik - micropolítica - (citações trechos pt br)

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Guattari e Rolnik - Micropoltica - (Citaes Trechos pt br) Transcrio por David Britto MICROPOLTICA: CARTOGRAFIAS DO DESEJO Felix Guattari, Suely Rolnik 7 Edio Revisada, Petrpolis, RJ: Vozes, 2005

Orelha ContracapaFlix Guattari (1930-92) atuou na clnica, na poltica e na teoria. O paradoxo entre a irredutvel heterogeneidade destes trs universos e sua indissocivel ligao funcionou desde sempre como disparador de sua obra, atravs da qual esta condio adquiriu consistncia filosfica, seja em suas criaes como solista, seja em seu duo com Deleuze. Pode-se dizer que o legado desta tripla confluncia constitui um dos principais ingredientes das prticas de experimentao na fronteira entre o esttico e o poltico que vem proliferando pelo planeta, desde meados dos anos 90. Como ativista, Guattari captava as ondas dos movimentos sociais e polticos com potencial criador, antes mesmo que eclodissem, e freqentemente nelas mergulhava o anarquismo, o trotskismo, o PC (do qual foi expulso em 56), Maio de 68 (foi do grupo 22 Mars), as Rdios Livres, a Autonomia italiana, o Solidariedade polons, o PT brasileiro, a ecologia... Como clnico, muito cedo foi atrado pelo trabalho com a psicose, atravs da Psicoterapia Institucional. Com 22 anos, participou com Jean Oury da fundao da clnica de La Borde (1952), na qual permaneceu at o final de sua vida. A instituio foi a principal referencia francesa da revoluo psiquitrica dos anos 70 na Europa, movimento do qual Guattari foi um dos mentores. como clnico, principalmente, que Guattari marca sua presena mais significativa no Brasil, tendo inspirado um movimento que vem ocupando, desde o final dos anos 70, um espao cada vez mais amplo que se estende da sade pblica aos consultrios privados, e das prticas teraputicas formao universitria. Certamente, uma sutil sintonia entre o pensamento de Guattari e as polticas de subjetivao e de criao cultural do pas, ter gerado, como ele escreveu, uma histria de amor primeira vista. (Orelha Capa) Suely Rolnik, brasileira, psicanalista, ensasta e Professora Titular do Ps Graduao de Psicologia Clnica da PUC/SP, no qual coordena o Ncleo de Estudos da Subjetividade. Aps priso pela ditadura militar em 1970, exilou-se em Paris por dez anos (1970-70), onde alm da formao psicanaltica, diplomou-se em Filosofia, Cincias Sociais e Psicologia. desta poca, o incio de sua relao com Deleuze e Guattari, tendo traduzido parte de sua obra para o portugus, como Mil Plats (Vol. III e IV), participado com Guattari da clnica de La Borde e dos movimentos que agitaram a psiquiatria nos anos 70. Data igualmente deste perodo, sua amizade com Lygia Clark, cuja ltima obra, Estruturao do Self, foi tema de sua tese na Frana (1978) e de um texto da artista publicado com sua colaborao (1980) uma pesquisa que vem se desdobrando em outros escritos e na produo de vasta documentao sobre as

propostas experimentais da artista, objeto de uma exposio que ser inaugurada na Frana (2005), com itinerncia pela Europa e as Amricas, da qual co-curadora. O tema principal de Rolnik so as polticas de subjetivao na atualidade, tratadas de um ponto de vista transdisciplinar, concentrando-se nos ltimos anos da arte contempornea em sua interface com a poltica e a clnica. Tem transitado entre Brasil, a Europa e os EUA, com conferncias em universidades (Yale, NYU, Columbia, Pittsburgh, Louvain, etc) museus (MacBa, MoCA, Bard College, Beaubourg, etc) mostras internacionais (Documenta X, Insite, Internationales Tanzfest Berlin, Theater der Welt, Bienal de So Paulo, etc.), e tambm com publicaes em livros, catlogos de exposies e revistas (foi editora convidada de um nmero da espanhola Zehar, em 2003, e de um outro, da canadense Parachute, em 2004, alm de suas colaboraes nas revistas Multitudes, October, Traffic, Chimres, Parkett, Trpico, etc).

Prefcio s edies estrangeirasStima edio brasileira revisitada Sim, eu acredito que exista um povo mltiplo, um povo de mutantes, um povo de potencialidades que aparece e desaparece, encarna-se em fatos sociais, em fatos literrios, em fatos musicais. comum me acusarem de ser exageradamente, bestamente, estupidamente otimista, de no ver a misria dos povos. Posso v-la mas... no sei, talvez eu seja delirante, mas penso que estamos num perodo de produtividade, de proliferao, de criao, de revolues absolutamente fabulosas do ponto de vista dessa emergncia de um povo. isto a revoluo molecular: no uma palavra de ordem, um programa, algo que eu sinto, que eu vivo, em encontros, em instituies, nos afetos, e tambm atravs de algumas reflexes. Assim referiu-se Guattari quilo que entrevia no Brasil em 1982. P.9 [cf. p.376] Vivia-se naquele momento o clima de campanha para as primeiras eleies diretas, aps quase duas dcadas de ditadura militar. Na reativao das vida pblica, o que mais entusiasmava Guattari no era apenas a dimenso macropoltica, previsvel neste tipo situao, mas acima de tudo a vitalidade micropoltica, a fora do que acontecia na poltica do desejo, da subjetividade e da relao com o outro. De fato, uma silenciosa revoluo molecular tomava corpo no discurso e mais ainda nos gestos e nas atitudes: esboava-se o desinvestimento de uma poltica de subjetivao construda em quinhentos anos de histria do Brasil em que foram [...] APRESENTAO ... como disse certa vez Deleuze, para os inconscientes que protestam que os dois escrevem; estes so os aliados que buscam. Se entendermos o inconsciente como o mbito da produo dos territrios e existncia, suas cartografias e suas micropolticas, produo operada pelo desejo, desfaz-se o enigma: motivos de sobra justificam tal protesto. No difcil identific-los: todos vivemos quase que cotidianamente em crise, crise da economia, mas no s da economia material, seno tambm da economia do desejo que faz com que mal consigamos articular um certo jeito de viver e ele j caduca. Vivemos sempre em defasagem em relao atualidade de nossas experincias. Somos ntimos desse incessante sucateamento de modos de existncia promovido pelo mercado que faz e

desfaz mundos: treinamos, dia aps dia, nosso jogo de cintura para manter um mnimo de equilbrio nisso tudo e adquirir agilidade na montagem de territrios. (rolnik apresentao p.15) Subjetividades dissidentes (minorias) p.16 De certo modo, este livro datado: ele traz a marca dos agenciamentos que o geraram. ... proliferao de grupos organizados de minorias, uso do termo alternativa para designar prticas sociais dissidentes (ecos dos anos 70) e coisas do gnero. P.18

I Cultura: um conceito reacionrio?

O conceito de cultura profundamente reacionrio. uma maneira de separar atividades semiticas (atividades de orientao no mundo social e csmico) em esferas, as quais os homens so remetidos. Isoladas, tais atividades so padronizadas, institudas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotizao dominante ou seja, elas so cortadas de suas realidades polticas. P.21 (Cf.p.82) A cultura enquanto esfera autnoma s existe em nvel dos mercados de poder, dos mercados econmicos, e no em nvel da produo, da criao e do consumo real. P.21 O que caracteriza os modos de produo capitalsticos (nota 15) que eles no funcionam unicamente no registro dos valores de troca, valores que so da ordem do capital, das semiticas monetrias ou dos modos de financiamento. Eles funcionam tambm atravs de um modo de controle da subjetivao, que eu chamaria de cultura de equivalncia ou de sistemas de equivalncia na esfera da cultura. Desse ponto de vista o capital funciona de modo complementar cultura enquanto conceito de equivalncia: o capital ocupa-se da sujeio econmica, e a cultura, da sujeio subjetiva. E quando falo em sujeio subjetiva no me refiro apenas publicidade para a produo e o consumo de bens. a prpria essncia do lucro capitalista que no se reduz ao campo da mais-valia econmica: ela est tambm na tomada de poder da subjetividade. P.21 Eu oporia a essa mquina de produo de subjetividade a idia de que possvel desenvolver modos de subjetivao singulares, aquilo que poderamos chamar de processos de singularizao: uma maneira de recusar todos esses modos de encodificao preestabelecidos, todos esses modos de manipulao e de telecomando, recus-los para construir modos de sensibilidade, modos de relao com o outro, modos de produo, modos de criatividade que produzam uma subjetividade singular. Uma singularizao existencial que coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a instaurao de dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que no so os nossos. H assim algumas palavras-cilada (como a palavra cultura), noes-anteparo que nos impedem de pensar a realidade dos processos em questo. P.22-3 O que d um carter de estranhamento ascenso poltica e social de pessoas como Lula o fato de sentirmos muito bem que no se trata apenas de um fenmeno de

ruptura em relao gesto dos fluxos sociais e econmicos. Mas sim de colocar em prtica um tipo de processo de subjetivao diferente do capitalstico, com seu duplo registro de produo de valores universais por um lado, e de reterritorializao em pequenos guetos subjetivos, por outro lado. Colocar em prtica a produo de uma subjetividade que vai ser capaz de gerir a realidade das sociedades desenvolvidas e, ao mesmo tempo, gerir processos de singularizao subjetiva, que no confinem as diferentes categorias sociais (minorias sexuais, raciais, culturais e quaisquer outras) no esquadrinhamento dominante do poder. P.29 Como proclamar um direito singularidade no campo de todos esses nveis de produo dita cultural, sem que essa singularidade seja confinada num novo tipo de etnia? Como fazer para que esses diferentes modos de produo cultural no se tornem unicamente especialidades, mas possam articular-se ao conjunto dos outros tipos de produo (o que eu chamo de produes maqunicas: toda essa revoluo informtica, telemtica, dos robs, etc.)? Como abrir, e at quebrar, essas antigas esferas culturais fechadas sobre si mesmas? P.29 Como produzir novos agenciamentos de singularizao que trabalhem por uma sensibilidade esttica, pela mudana da vida num plano mais cotidiano e, ao mesmo tempo, pelas transformaes sociais em nvel dos grandes conjuntos econmicos e sociais? P.29-30 No existe, a meu ver, cultura popular e cultura erudita. H uma cultura capitalstica que permeia todos os campos de expresso semitica. isso que tento dizer ao evocar os trs ncleos semnticos do termo cultura. No h coisa mais horripilante do que fazer a apologia da cultura popular, ou da cultura proletria, ou sabe-se l o que do gnero. H processos de singularizao em prticas determinadas e h processos de reapropriao, de recuperao, operados pelos diferentes sistemas capitalsticos. P.30 No fundo, s h uma cultura: a capitalstica. uma cultura sempre etnocntrica e intelectocntrica (ou logocntrica), pois separa os universos semiticos das produes subjetivas. P.31 Assim como o capital um modo de semiotizao que permite ter um equivalente geral para as produes econmicas e sociais, a cultura o equivalente geral para as produes de poder. As classes dominantes sempre buscam essa dupla maisvalia: a mais-valia econmica, atravs do dinheiro, e a mais-valia de poder, atravs da cultura-valor. P.31 Considero essas duas funes, mais-valia econmica e mais-valia do poder, inteiramente complementares. Elas constituem, juntamente com uma terceira categoria de equivalncia o poder sobre a energia, a capacidade de converso das energias umas nas outras os trs pilares do CMI. (p.30-1) A singularidade, por sua vez, um conceito existencial Produo de subjetividade = produo subjetiva (cf p.45 terceiro parag) Ao invs de sujeito, de sujeito de enunciao ou das instncias psquicas de Freud, prefiro falar em agenciamento coletivo de enunciao. O agenciamento

coletivo no corresponde nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade social predeterminada. P.39 A subjetividade produzida por agenciamentos de enunciao. Os processos de subjetivao ou de semiotizao no so centrados em agentes individuais (no funcionamento de instncias intrapsquicas, egicas, microssociais), nem em agentes grupais. Esses processos so duplamente descentrados. Implicam o funcionamento de mquinas de expresso que podem ser tanto de natureza extrapessoal, extra-individual (sistemas maqunicos, econmicos, sociais, tecnolgicos, icnicos, ecolgicos, etolgicos, de mdia, ou seja, sistemas que no so mais imediatamente antropolgicos), quanto de natureza infra-humana, infrapsquica, infrapessoal (sistemas de percepo, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representao, de imagem e de valor, modos de memorizao e de produo de idias, sistemas de inibio e de automatismos, sistemas corporais, orgnicos, biolgicos, fisiolgicos e assim por diante). p. 39 Seria conveniente dissociar radicalmente os conceitos de indivduo e de subjetividade. Para mim, os indivduos so o resultado de uma produo de massa. O indivduo serializado, registrado, modelado. Freud foi o primeiro a mostrar at que ponto precria a noo da totalidade de um ego. A subjetividade no passvel de totalizao ou de centralizao no indivduo. Uma coisa a individualizao do corpo. Outra a multiplicidade dos agenciamentos da subjetivao: a subjetividade essencialmente fabricada e modelada no registro social. Descartes quis colar a idia de subjetividade consciente idia de indivduo (colar a conscincia subjetiva existncia do indivduo), e estamos nos envenenando com essa equao ao longo de toda a histria da filosofia moderna. Nem por isso deixa de ser verdade que os processos de subjetivao so fundamentalmente descentrados em relao individuao. P.40 (cf. 42??) No ato de dirigir um carro, no a pessoa enquanto indivduo, enquanto totalidade egica que est dirigindo; a individuao desaparece no processo de articulao servomecnica com o carro. Quando a direo flui, ela praticamente automtica e a conscincia do cogito cartesiano no intervm. E, de repente, h sinais que requisitam novamente a interveno da pessoa inteira ( o caso de sinais de perigo). claro que sempre se reencontra o corpo do indivduo nesses diferentes componentes de subjetivao; sempre se reencontra o nome prprio do indivduo; sempre h a pretenso do ego de se afirmar numa continuidade e num poder. Mas a produo da fala, das imagens, da sensibilidade, a produo do sujeito no se cola absolutamente a essa representao do indivduo. Essa produo adjacente a uma multiplicidade e agenciamentos sociais, a uma multiplicidade de processos de produo maqunica, a mutaes de universos de valor e de universos da histria. P.40 O lucro capitalista , fundamentalmente, produo de poder subjetivo. Isso no implica uma viso idealista da realidade social: a subjetividade no se situa no campo individual, seu campo o de todos os processos de produo social e material. O que se poderia dizer, usando a linguagem da informtica, que, evidentemente, um indivduo sempre existe, mas apenas, enquanto terminal; esse terminal individual se encontra na posio de consumidor de subjetividade. Ele consome sistemas de representao, de sensibilidade, etc., os quais no tm nada a ver com categorias naturais universais. P.41

Vou dar um exemplo que pode parecer bvio. Os jovens que passeiam pelas ruas equipados com um walkman estabelecem com a msica uma relao que no natural. Ao produzir esse tipo de instrumento (tanto como meio quanto como contedo de comunicao), a indstria altamente sofisticada que o fabrica no est fazendo algo que simplesmente transmita a msica ou organize sons naturais. O que essa indstria faz , literalmente, inventar um universo musical, uma outra relao com o os objetos musicais: a msica que vem de dentro e no de um ponto exterior. Em outras palavras, o que esta indstria faz inventar uma nova percepo. P.41. Outro exemplo o das crianas. De fato, elas percebem o mundo atravs das personagens do territrio domstico, no entanto isso apenas em parte verdadeiro. Grande parte de seu tempo passado diante da televiso, absorvendo relaes de imagem, de palavras, de significao. Tais crianas tero toda a sua subjetividade modelizada por esse tipo de aparelho. P.41 Outro exemplo, ainda, so as experincias feitas por antroplogos em sociedades ditas primitivas. Eles apresentaram vdeos para algumas tribos, e constataram que o vdeo era olhado como um objeto at divertido, mas como outro qualquer. Essa reao nos mostra que o tipo de comportamento que consiste em ficar inteiramente focalizado no aparelho, numa relao de comunicao direta, s existe em nossa sociedade. ela que o produz. P.41 Parto da idia de uma economia coletiva, de agenciamentos coletivos de subjetivao que, em algumas circunstncias, em alguns contextos sociais, podem se individuar. P.41 Para ilustrar isso, tomemos o exemplo particular e bvio da linguagem. P.41-2 Ferdinand de Saussure foi um dos primeiros lingistas que estabeleceu o carter fundamentalmente social da linguagem, seu carter de fato social que se encarna em falas e agentes individuados. claro que no so dois indivduos, um emissor e um receptor, que inventam a linguagem no momento em que esto falando. Existe a linguagem como fato social e existe o indivduo falante. A mesma coisa acontece com todos os fatos de subjetividade. A subjetividade est em circulao nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela essencialmente social, e assumida e vivida por indivduos em suas existncias particulares. O modo pelo qual os indivduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relao de alienao e opresso, na qual o indivduo se submete subjetividade tal como a recebe, ou uma relao de expresso e de criao, na qual o indivduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularizao. p.42 (cf. 40, indivduo??) Em face desse sistema de mediao intrnseca dos processos de desejo pela linguagem, penso ser necessrio elaborar uma outra concepo do que seja efetivamente a produo de subjetividade, a produo de enunciados em relao a essa subjetividade. Uma concepo que no tenha nada a ver com postular instncias intrapsquicas ou de individuao (como nas teorias do ego), nem instncias de modelizao de semiticas icnicas (como encontramos em todas as teorias relativas s funes da imagem no psiquismo). Um exemplo dessas ltimas a teoria freudiana: Freud quis construir uma economia social da subjetividade a partir dos sistemas de identificao e de toda a problemtica dos ideais do ego. P.42

No verdade o que dizem os estruturalistas: no so os fatos de linguagem nem os de comunicao que produzem a subjetividade. A subjetividade manufaturada como o so a energia, a eletricidade ou o alumnio. P.42 No existe uma subjetividade do tipo recipiente onde se colocariam coisas essencialmente exteriores, que seriam interiorizadas. As tais coisas so elementos que intervm na prpria sintagmtica da subjetivao inconsciente. So exemplos de coisas desse tipo: um certo jeito de utilizar a linguagem, de se articular ao modo de semiotizao coletiva (sobretudo da mdia); uma relao com o universo das tomadas eltricas, nas quais se pode ser eletrocutado; uma relao com o universo de circulao na cidade. Todos esses so elementos constitutivos da subjetividade. p.43 O indivduo, a meu ver, est na encruzilhada de mltiplos componentes de subjetividade. Entre esses componentes alguns so inconscientes. Outros so mais do domnio do corpo, territrio no qual nos sentimos bem. Outros so mais do domnio dquilo que os socilogos americanos chamam de grupos primrios (o cl, o bando, a turma). Outros, ainda, so do domnio da produo de poder: situam-se em relao lei, polcia e a instncias do gnero. Minha hiptese que existe tambm uma subjetividade ainda mais ampla: o que chamo de subjetividade capitalstica. P.43 Seria conveniente definir de outro modo a noo de subjetividade, renunciando totalmente idia de que a sociedade, os fenmenos de expresso social so a resultante de um simples aglomerado, de uma simples somatria de subjetividades individuais. Penso, ao contrrio, que a subjetividade individual que resulta de um entrecruzamento de determinaes coletivas de vrias espcies, no s sociais, mas econmicas, tecnolgicas, de mdia e tantas outras. P.43 Um fato subjetivo sempre engendrado por um agenciamento de nveis semiticos heterogneos. O engendramento histrico das modelizaes do inconsciente corresponde a um fenmeno de imensa deriva dos modos de territorializao subjetiva. Alguns modos de referncia subjetiva ou modos de produo de subjetividade, foram literalmente varridos do planeta com a ascenso dos sistemas capitalistas. Pode-se dizer que h um movimento geral de desterritorializao das referncias subjetivas. At a Revoluo Francesa e o Romantismo, a subjetividade permaneceu ligada a modos de produo territorializados na famlia ampla, nos sistemas de corporao, de castas, de segmentaridade social que no tornavam a subjetividade operatria em nvel especfico do indivduo. P.44 Com a emergncia de um novo tipo de fora coletiva de trabalho, com a delimitao de um novo tipo de individuao da subjetividade, colocou-se a questo de inventar novas coordenadas de produo da subjetividade. Historiadores como Philippe Aris, Donzelot e outros mostraram se foi assistindo a um confinamento da famlia e a uma circunscrio da infncia. Nos sistemas anteriores s formaes capitalistas, a produo da subjetividade na criana no era inteiramente centrada no funcionamento da famlia conjugal. P.44

A noo de responsabilidade individuada uma noo tardia, assim como as noes de erro e de culpabilidade interiorizada. Num certo momento, se assistiu a um

confinamento generalizado das subjetividades, a uma separao dos espaos sociais e a uma ruptura de todos os antigos modos de dependncia. P.44 Com a Revoluo Francesa, no s todos os indivduos tornaram-se de direito, e no de fato, livres, iguais e irmos (e perderam suas aderncias subjetivas aos sistemas de cls, de grupos primrios), mas tambm tiveram de prestar contas a leis transcendentais, leis da subjetividade capitalstica. P.44-5 Nessas condies, foi necessrio fundar o sujeito e suas relaes em outras bases: a relao do sujeito como o pensamento (o cogito cartesiano), a relao do sujeito com a lei moral (o numen kantiano), a relao do sujeito com a natureza (outro sentimento em relao natureza e outra concepo de natureza), a relao com o outro (a concepo do outro como objeto). nessa deriva geral dos modos territorializados da subjetividade que se desenvolveram no s teorias psicolgicas referentes s faculdades da alma, como tambm uma reescrita permanente dos procedimentos de subjetivao no campo geral das transformaes sociais. P.45 Contudo, a meu ver, evidente que os maiores psicanalistas no so nem Freud, nem Lacan, nem Jung, nem algum do gnero, mas gente como Proust, Kafka ou Lautramont. Eles conseguiram respeitar as mutaes subjetivas muito melhor do que os empreendimentos de modelizao pretensamente cientficos. P.45 subjetividade burguesa p.45) 4. SINGULARIDADE X INDIVIDUALIDADE P.46 Reunio no Instituto Freudiano de Psicanlise (Rio de Janeiro, 10/09/1982) Pergunta: Voc coloca[...] Definiao de indivduo e de processo de individuao p.46 CRIAO X SIST MOD (46) Quando falo em processo de subjetivao, de singularizao, isso no tem nada a ver com o indivduo. A meu ver, no existe unidade evidente da pessoa: o indivduo, o ego ou a poltica do ego, a poltica da individuao da subjetividade, so correlativos de sistemas de identificao os quais so modelizantes. P.47 A produo da subjetividade pelo CMI serializada, normalizada, centralizada em torno de uma imagem, de um consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei transcendental. Esse esquadrinhamento da subjetividade o que permite que ela se propague em nvel da produo e do consumo das relaes sociais, em todos os meios (intelectual, agrrio, fabril, etc.) e em todos os pontos do planeta. P.48 A tendncia atual igualar tudo atravs de grandes categorias unificadoras e redutoras tais como o capital, o trabalho, um certo tipo de assalariamento, a cultura, a informao que impedem que se d conta dos processos de singularizao. Toda criatividade no campo social e tecnolgico tende a ser esmagada, todo microvetor de subjetivao singular, recuperado. Uma deriva geral dos modos territorializados de subjetivao ocorre por toda parte. Tradies milenares de um certo tipo de relao social e de vida cultural so rapidamente varridas do planeta. Todas as pretensas identidades culturais residuais so contaminadas. Todos os modos de valorizao da existncia e da produo encontram-se ameaados no desenvolvimento atual das

sociedades. At os valores mais tradicionais, mais bem ancorados, como o trabalho, esto sendo minados por dentro pelas revolues industriais. Se analisarmos com cuidado o que se passa com as pessoas que inventam semiticas ricas e personalizadas, como o caso do candombl, veremos que elas no so completamente impermeveis e autnomas em relao aos modelos dominantes. P.48-9

Freud, Lacan e Jung como sistemas de modelizao do psiquismo pretensamentes cientficas.

desde a infncia que se instaura a mquina de produo de subjetividade capitalstica, desde a entrada da criana no mundo das lnguas dominantes, com todos os modelos tanto imaginrios quanto tcnicos nos quais ela deve se inserir. P.49 A apropriao da produo de subjetividade pelo CMI esvaziou todo o conhecimento da singularidade. uma subjetividade que no conhece dimenses essenciais da existncia como a morte, a dor, a solido, o silncio, a relao com os cosmos, com o tempo. (p.51) Tudo o que do domnio da ruptura, da surpresa e da angstia, mas tambm do desejo, da vontade de amar e de criar, deve se encaixar de algum jeito nos registros de referncias dominantes. H sempre um arranjo que tenta prever tudo o que possa ser da natureza de uma dissidncia do pensamento e do desejo. H uma tentativa de eliminar aquilo que eu chamo de processo de singularizao. Tudo o que surpreende, ainda que levemente, deve ser classificvel em alguma zona de enquadramento, de referenciao. (p.52) O que faz a fora da subjetividade capitalstica que ela se produz tanto em nvel dos opressores quanto dos oprimidos. Nisto, ela se distingue dos sistemas de classes sociais ou das antigas castas senhoriais e religiosas. (p.53) Japo Minha insistncia nessa idia do modo de produo da subjetividade capitalstica no tem como objetivo descrever um estado de fato, em direo ao qual estaramos caminhando inexoravelmente. Se insisto nisso no porque quero celebrar o aniversrio do romance do Orwell, 1984, mas porque considero que esse desenvolvimento da subjetividade capitalstica traz imensas possibilidades de desvio e reapropriao. Isso, desde que se reconhea que a luta no mais se restringe ao plano da economia poltica, mas abrange tambm o da economia subjetiva. (p.53) So muitos os autores que se dedicam anlise dos processos de subjetivao caractersticos do capitalismo, assim como anlise das implicaes polticas de tais processos. E muitos deles consideram tais processos como uma linha de montagem subjetiva disseminada por todo o corpo social, e que veicula uma violncia de espcie

diferente daquela, mais diretamente perceptvel, das relaes de dominao e de explorao. O que me parece original no trabalho que Deleuze e Guattari vm desenvolvendo , primeiramente, o reconhecimento dessa produo como a prpria indstria de base do sistema capitalista (ou socialista burocrtico); em seguida, a sensibilidade destes autores aos pontos de ruptura desse dispositivo complexo de produo da subjetividade, pontos nos quais se situariam, segundo eles, muitos dos movimentos sociais da atualidade; e, finalmente, o reconhecimento de tais pontos de ruptura como focos de resistncia poltica da maior importncia, j que atacam a lgica do sistema, no como abstrao, mas sim como experincia vivida. H nessa posio, temos que reconhecer, uma abertura de perspectivas um tanto rara nos dias de hoje. (Rolnik, p.54) 6. Revolues moleculares: o atrevimento de singularizar A tentativa de controle social, atravs da produo da subjetividade em escala planetria, se choca com fatores de resistncia considerveis, processos de diferenciao permanente que eu chamaria de revoluo molecular. Mas o nome pouco importa. P.54 O que caracteriza os novos movimentos sociais no somente uma resistncia contra esse processo geral de serializao da subjetividade, mas tambm a tentativa de produzir modos de subjetivao originais e singulares, processos de singularizao subjetiva. P.54 A idia de revoluo molecular diz respeito sincronicamente a todos os nveis: infrapessoais (o que est em jogo no sonho, na criao, etc.), pessoais (como as relaes de autodominao, aquilo que os psicanalistas chamam de Superego) e interpessoais (como a inveno de novas formas de sociabilidade na vida domstica, amorosa e profissional, e nas relaes com a vizinhana e a escola). P.55 O que estou chamando de processos de singularizao algo que frustra esses mecanismos de interiorizao dos valores capitalsticos, algo que pode conduzir afirmao de valores num registro particular, independentemente das escalas de valor que nos cercam e espreitam de todos os lados. P.55-6 O trao comum entre os diferentes processos de singularizao um devir diferencial que recusa a subjetivao capitalstica. Isso se sente por um calor nas relaes, por determinada maneira de desejar, por uma afirmao positiva da criatividade, por uma vontade de amar, por uma vontade de simplesmente viver ou sobreviver, pela multiplicidade dessas vontades. preciso abrir espao para que isso acontea. O desejo s pode ser vivido em vetores de singularidade. P.56 Todos os devires singulares, todas as maneiras de existir de modo autntico chocam-se contra o muro da subjetividade capitalstica. P.59

O questionamento do sistema capitalstico no mais apenas do domnio das lutas polticas e sociais em grande escala, mas inclui tudo aquilo que agrupei sob o nome de revoluo molecular. bvio que a revoluo molecular no se restringe s minorias, mas a todos os movimentos de indivduos, grupos, etc. que questionam o sistema em sua dimenso da produo de subjetividade. (p.162) No se trata mais de nos reapropriarmos apenas dos meios de produo ou dos meios de expresso poltica, mas tambm de sairmos do campo da economia poltica e entrarmos no campo da economia subjetiva. (p.162-3) 3 funes da subjetividade capitalstica: culpabilizao, segregao e infantilizao. (p.49-50) segregao Infantilizao... (p.50) 8. Identidade X Singularidade Identidade e singularidade so completamente diferentes. A singularidade um conceito existencial; j a identidade um conceito de referenciao, de circunscrio da realidade a quadros de referncia, quadros esses que podem ser imaginrios. Essa referenciao vai desembocar tanto no que os freudianos chamam de processo de identificao, quanto nos procedimentos policiais, no sentido da identificao do indivduo sua carteira de identidade, sua impresso digital. Em outras palavras, a identidade aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um s e mesmo quadro de referncia identificvel. p.80 Ora, o que interessa subjetividade capitalstica no o processo de singularizao, mas justamente esse resultado do processo: sua circunscrio a modos de identificao dessa subjetividade dominantes. P.80 [...] tambm existem processos de subjetivao atravs dos fenmenos religiosos. Isto, principalmente se pensarmos como esses fenmenos so reapropriados pelo prprio tecido social (e at como h uma reinveno da religiosidade por esse tecido), o que representa uma forte contribuio de energia de luta no campo social. P.180

Toda subjetivao modelizao / modelo capitalstico = modelo de modelo, reduo modelizadora p.385 CMI = megamquina de produo de cultura, de cincia e de subjetividade com o intuito de destruir todos os modos de expresso e valorao que possam normalizar e colocar a seu servio. P.258

... Freud quis construir uma economia social da subjetividade a partir dos sistemas de identificao e de toda a problemtica dos ideais do ego.

...me parece que os conceitos de cultura e de identidade cultural so profundamente reacionrios: a cada vez que os utilizamos, veiculamos sem perceber modos de representao da subjetividade que a reificam e que com isso no nos permitem dar conta de seu carter composto, elaborado, fabricado, da mesma foram que qualquer mercadoria no campo dos mercados capitalsticos. (p.82) cf.p.21 A identidade cultural constitui um nvel da subjetividade: o nvel de territorializao subjetiva. Ela um meio de auto-identificao num determinado grupo que conjuga seus modos de subjetivao nas relaes de segmenaridade social. (p.85 continuar a explicar o resto do parag que ele faz um porm) A noo de identidade cultural tem implicaes polticas e micropolticas desastrosas, pois o que lhe escapa justamente toda a riqueza da produo semitica de uma etnia, de um grupo social ou de uma sociedade. (p.85) Em outras palavras, a idia de devir est ligada possibilidade ou no de um processo se singularizar. Singularidades femininas, poticas, homossexuais ou negras podem entrar em ruptura com as estratificaes dominantes. Esta a mola-mestra da problemtica das minorias: uma problemtica da multiplicidade e da pluralidade e no um questo de identidade cultural, de retorno ao idntico, de retorno ao arcaico. P.86 dimenso molecular do inconsciente. P.87 Inmeros processos de minorizao atravessam a sociedade p.87 interessante observar que essa intensa difuso e opresso da subjetividade capitalstica no se d solitria em meio a uma total apatia das singularidades. Tanto socialmente como individualmente, as reaes podem ser percebidas. No entanto, Guattari destaca a alto poder de contaminao desses modelos capitalsticos a ponto de gerar reaes de tentativas de recomposio de identidades ou subjetividades culturais que, segundo o autor, no passam de pseudo-identidades culturais. No que concerne s reaes sociais, Guattari nos d o exemplo da Frana

Assim sendo, no apenas o fato de fazer rdios livres, vdeo independente ou superoito, que permitir aos grupos desmontar a produo da subjetividade dominante. [...] O que vai permitir o desmantelamento da produo de subjetividade capitalstica que a reapropriao dos meios de comunicao de massa se integre em agenciamentos de enunciao que tenham toda uma micropoltica e uma poltica no campo social. Uma rdio livre s tem interesse se ela vinculada a um grupo de pessoas que querem mudar sua relao com a vida cotidiana, que querem mudar o tipo de r que tm entre si no seio da prpria equipe que fabrica a rdio livre, que desenvolve uma sensibilidade; pessoas

que tm uma perspectiva ativa em nvel desses agenciamentos e ao mesmo tempo no se fecham em guetos a esse nvel. P.141 bvio que s poderemos mudar a relao com a mdia com esse modo de produo de subjetividade atravs de um mnimo de reapropriao dos meios de comunicao. No o caso de ficar esperando que algum lder, que algum partido autorize ou crie rdios livres, mas sim de comearmos desde j a criar, ns mesmos, nossas prprias rdios livres, pois hoje que a situao se apresenta com esta possibilidade. P.141

Guattari + Marx + Lacan + Freud + Nietzsche Eu nunca pertenci a nenhuma religio, nunca fui batizado, no sou catlico, nem marxista, nem anarquista, nem freudiano nem nada. Isto posto, continuo a utilizar idias, maneiras de fazer funcionar as idias, de tudo quanto tipo de terico, em particular de Marx. Marx foi um gnio extraordinrio que leu a histria, a economia e a produo de subjetividade de uma maneira inteiramente nova. O que paradoxal que se fez dele uma salada universitria execrvel. Isso faz parte do poder de recuperao, de reterritorializao de todo e qualquer movimento de mutao no mundo. (p.163-4) Jesus e o de Freud. ismos ... a maneira como os psicanalistas utilizam o pensamento de Freud me revolta. E no entanto, no pensamento de Freud h coisas surpreendentes, de uma dialtica, de uma juventude e de uma vitalidade, que nos fornecem verdadeiras golfadas de oxignio. P.164

preciso tentar voltar a uma perspectiva originria no do freudismo, mas da loucura de Freud, de sua genialidade, e que tem mais a ver com o Presidente Schreber do que com a virtuosidade da psicanlise contempornea. preciso propor um modelo de inconsciente que nos permita apreender melhor a articulao entre esses diferentes modos de semiotizao. Isso quer dizer um inconsciente que no seja redutor como o das concepes familialistas dos primeiros modelos de inconsciente freudianos, ou como os inconscientes estruturalistas, que reduzem tudo semiotizao dos significante, ou ainda como as diferentes frmulas em torno do sistemismo em voga nas terapias de famlia. p.252 2) A escola surpreendente como Freud, que descobriu o perodo de latncia (esse perodo de depresso, de esvaziamento do sentido do mundo, que se segue ao complexo de dipo e ao complexo de castrao) no tenha se dado conta de que esse perodo coincide com a idade de escolarizao, a entrada da criana nos equipamentos produtivos modelizantes, a entrada nas lnguas dominantes. E a criana, que tem capacidades extraordinrias como as de dana, de canto e de desenho, perde em poucos

meses toda essa riqueza. Sua criatividade cai numa espcie de grau zero: ela comea a fazer desenhos estereotipados, ela se modeliza segundo as atitudes dominantes. P.115

... da reapropriao feita pelo tecido social, sem passar por essa mediao do Estado que assume propores cada vez maiores e que desenvolve um modo de produo subjetiva cada vez mais alienante e serializado. P.118 d. Minoria marginalidade autonomia alternativa: o devir-molecular Correspondncia entre F. Guattari e Suely Rolnik (fevereiro e setembro de 1983) Suely Rolnik Quando voc se refere aos processos de ruptura com o modo de produo de subjetividade capitalstica, voc utiliza uma srie de termos: processo de singularizao ou de autonomizao da subjetividade, funo de autonomizao ou de minorizao, e ainda autonomia, minoria, marginalidade e revoluo molecular. Todos esses termos se equivalem ou estariam designando diferentes polticas deste processo de ruptura, ou diferentes tipos de processo, ou ento diferentes aspectos de um mesmo processo? Guattari Concordo em que h uma equivalncia dessas frmulas. Mas eu diria o seguinte: 1) Revoluo molecular corresponde mais a uma atitude tico-analticapoltica (vale o mesmo para funo de autonomia). 2) Processo de singularizao seria o fato mais objetivo de uma singularidade desprender-se dos estratos de ressonncia e fazer proliferar e ampliar um processo, o qual poder ou no encontrar um estrutura ou um sistema de referncia intrnsecos. 3) A autonomia se refere mais a novos territrios, novos ritornelos sociais. 4) Alternativas podem ser tanto macro quanto micropolticas. 5) Quanto a "minoria e a marginalidade, eu veria minoria mais no sentido de um devir, um devir minoritrio (exemplos: um devir minoritrio para a literatura que seria uma sada das redundncias dominantes, um devir-criana, um devir-multido, etc.), enquanto que marginalidade seria mais sociolgico, mais passivo. P.142-3

III POLTICAS 1. Micropoltica: molar & molecular

Quando eu era jovem, fiz o curso de Farmcia at a metade. Foi certamente isso que me deixou esta mania de usar expresses como molar e molecular. P.149 A questo micropoltica ou seja, a questo de uma analtica das formaes do desejo no campo social diz respeito ao modo como o nvel das diferenas sociais mais amplas (que chamei de molar) se cruza com aquele que chamei de molecular. Entre esses dois nveis, no h uma oposio distintiva, que dependa de um princpio lgico de contradio. Parece difcil, mas preciso simplesmente mudar de lgica. Na fsica quntica, por exemplo, foi necessrio que um dia os fsicos admitissem que a matria corpuscular e ondulatria, ao mesmo tempo. Da mesma forma, as lutas sociais so, ao mesmo tempo, molares e moleculares. P.149 No fundo, os processos de singularizao no podem ser especificamente atribudos a um nvel macrossocial, nem a um nvel microssocial, nem mesmo a um nvel individual. por isso que prefiro falar de processo de singularizao em vez de singularidade e, ainda uma vez, sem fazer uma apologia destes processos, pois eles podem entrar em toda espcie de modalidade de sistemas de recuperao, de sistemas de modelizao. Toda problemtica micropoltica consistiria, exatamente, em tentar agenciar os processos de singularizao no prprio nvel de onde eles emergem. E isso para frustrar sua recuperao pela produo de subjetividade capitalstica. P.152 Se desse para apontar a regra n. 1 da micropoltica (n. 1 e nica), uma espcie de parmetro de uma analtica das formaes do inconsciente no campo social, eu diria o seguinte: estar alerta para todos os fatores de culpabilizao; estar alerta para tudo o que bloqueia os processos de transformao do campo subjetivo. P.158 Filme No Limite da Maldade O Estado cumpre um papel fundamental na produo de subjetividade capitalstica. um Estado-Mediador, um Estado-Providncia, pelo qual tudo deve passar, numa relao de dependncia, na qual se produz uma subjetividade infantilizada. Essa funo ampliada do Estado muito mais abrangente do que os poderes administrativos, financeiro, militar ou policial se realiza, por exemplo, atravs de um sistema assistencial, aquilo que nos EUA chamado de welfare state. um sistema de salrios diferidos; um sistema de subvenes que fazem com que o grupo se autoregule, se autoforme, se autodiscipline; um sistema de informao, de exame, de controle, de hierarquia, de promoo, etc. O Estado esse conjunto de ramificaes, essa espcie de rizoma de instituies que denominamos equipamentos coletivos. por essa razo que o Estado pode falar, sem medo, em descentralizao. por essa razo que programas partidrios podem incluir, sem medo, propostas de autogesto. P.172 Toda a perspectiva dos capitalistas, e tambm dos partidos socialistas (clssicos e/ou marxistas) acelerar esse processo de entrada nos fluxos capitalsticos, promover o progresso, segundo uma certa concepo. ... Quanto aos problemas de mudana da vida cotidiana, da economia do desejo, esses so para depois. Mas a Histria nos mostra

que esse corte no absolutamente pertinente: a concepo da luta social em diferentes etapas desemboca no fato de que a problemtica da autogesto e da valorizao social sempre retardada, sempre adiada. O que acontece que essa funo de subjetivao capitalstica, esses equipamentos de Estado que se instauram no conjunto do campo social, se fazem em proveito das novas castas burocrticas, das novas elites que no tm a menor inteno de se despojar de seu poder. P.173 Insisto no fato de que isso no se d apenas em relao s funes produtivas. tambm ao Estado-Providncia que nos referimos para saber se vamos ou no transar, com quem e como, se devemos ou no amamentar e de que jeito. Essa funo infantilizadora do poder do Estado se d a um nvel extremamente miniaturizado, que no se limita ao esquadrinhamento do social e do comportamento. Essa modelizao atinge tambm as representaes inconscientes. A talvez resida a diferena desta concepo em relao concepo althusseriana dos aparelhos ideolgicos do Estado: no se trata s desses equipamentos visveis, encarnados na sociedade. O Estado tambm funciona a um nvel invisvel de integrao. p.173 Rolnik: ... um dos aspectos fecundos da parceria de Guattari com Deleuze o de ter superado uma espcie de dialtica na qual ele ainda estava emperrado, segundo suas prprias palavras, embora j antes do encontro com Deleuze ele havia formulado sua concepo de desejo como mquina, deslocando-se portanto da concepo dialtica do desejo. Me parecia que ele usava o termo simplesmente como sinnimo de relao dinmica, tal como comumente empregado no discurso militante da esquerda ou num certo discurso universitrio. P.184 E da, no que se faa explicitamente o elogio do capitalismo, mas se afirma coisas do tipo preciso dizer que o capitalismo o menor dos males, ou se for para escolher entre a liberdade bem conhecida que reina nos Estados Unidos e esse tipo de tentativa, no to evidente, como a tomada de poder pelos socialistas na Frana, bvio que muito melhor o capitalismo americano. A vem toda uma srie de racionalizaes sobre o neoliberalismo, as belezas da liberdade de mercado americano. Esses tericos fizeram a sua escolha: eles esto incontestavelmente do lado do imperialismo americano. Entre esses intelectuais esto, por exemplo, Baudrillard e tambm os que foram agrupados com o nome de Novos Filsofos, como Bernard-Henri Levy. 194 O que me parece apaixonante do que estou entendendo do Brasil atual que essas problemticas que globalmente se poderia chamar de nova cultura ou de revoluo molecular esto sendo retomadas em bases muito diferentes das que apareceram nas dcadas de 60 e 70, na Europa. Estamos assistindo a um renascimento de todos esses processos de singularizao no campo do desejo, renascimento que est, no entanto, se acompanhando de uma tentativa de colocar os problemas polticos e sociais tambm em escala global. Isso talvez venha a evitar o tipo de fracasso que vivemos na Europa. 194 Talvez eu seja totalmente retr, mas eu nunca mudei de ponto de vista desde aquele perodo de 1968, que foi um perodo cultural dos mais ricos. 194

importante interrogar as organizaes polticas em funo das questes do desejo;mas tambm importante e muito interrogar a economia do desejo, em funo das mquinas estatais. 195 Organizaes como partidos ou sindicatos so tambm terrenos para o exerccio de uma funo de autonomia. 202 A questo, portanto, no se devemos ou no nos organizar, e sim se estamos ou no reproduzindo os modos de subjetivao dominante, e isso em qualquer uma de nossas aes cotidianas, inclusive de militncia nas organizaes. nesses termos que se coloca a funo de autonomia. A micropoltica tem a ver sim com a possibilidade de os agenciamentos sociais levarem em considerao as produes de subjetividade no capitalismo, problemticas essas geralmente deixadas de lado no movimento militante. 203 A construo de mquinas de luta, de mquinas de guerra, de que estamos precisando para derrubar as situaes do capitalismo e do imperialismo... 203 Estou longe de qualquer idia de espontanesmo no campo da economia do desejo: algo de indiferenciado que precisaria estar passando pelas malhas da rede de algum centralismo democrtico. Eu nunca pensei, nem disse, que seria preciso canalizar as energias das diferentes autonomias; mesmo porque, em minha opinio, preciso recusar totalmente essa noo de energia em todo o campo das Cincias Humanas. O desejo, ao contrrio, corresponde a um certo tipo de produo. O desejo tem infinitas possibilidades de montagem, de criatividade, mas que tambm podem entrar em processos de imploso. No tenho nada a ver com a mitologia libertadora do desejo pelo desejo. 204

O texto nunca essa toca, onde, aninhados, teramos a impresso de que, dialeticamente ou no, tudo sempre esteve, est e estar sob controle. exatamente com essa tradio que a dupla Deleuze & Guattari tenta romper. Ao mofo metafsico desse confinamento na representao em seu estatuto imaginrio e/ou no conceito em seu estatuto de abstrao, eles contrapem um procedimento em que o conceito tem sempre seu sentido definido no campo de experimentao com o qual se encontra articulado. uma escrita arejada, exposta ao ar livre do mundo: no h por que proteger-se do mundo, ao contrrio, h que experiment-lo. nessa experimentao que este ou aquele conceito convocado, inventado ou reinventado. O termo dialtica, como qualquer outro, s adquire significado em suas variaes. Cheguei a comentar isso com Guattari numa carta. Eis o que ele me escreveu: No sei por que utilizo o termo dialtica. No quero mais espezinhar as palavras. Durante uma certa poca Gilles condenava algumas palavras, e todo mundo em torno dele ia atrs. As palavras vm a mim como elas querem, no ligo mais para

isso. menos pensando em Plato ou em Hegel que devo ter falado em dialtica, e mais pensando nos phylum maqunicos, na dimenso de irreversibilidade dos rizomas... (Carta de 25/08/1982). P.185 ... a meu ver, a idia de revoluo se identifica com a idia de processo. Produzir algo que no exista, produzir uma singularidade na prpria existncia das coisas, dos pensamentos e das sensibilidades. um processo que acarreta mutaes no campo social inconsciente, para alm do discurso. Poderamos chamar isso de um processo de singularizao existencial. P.213 (cf 241) Ser que um projeto pode ser revolucionrio de forma permanente como, por exemplo, na concepo trotskista? claro que isso um jogo de palavras automtico, pois a revoluo, por definio, no pode ser permanente: ela um certo momento de transformao, que poderamos caracterizar como um momento de irreversibilidade num processo. P.213 Os microprocessos revolucionrios no tm a ver s com as relaes sociais. Por exemplo, Modigliani v os rostos de uma maneira que talvez ningum tinha ousado ver at ento. Ele pinta, por exemplo, um certo tipo de olhar azul, num determinado momento, que muda inteiramente aquilo que poderamos chamar de mquina de rostidade em circulao em sua poca. Esse microprocesso de transformao, em nvel da percepo, em nvel da prtica, retomado por pessoas que percebem que algo mudou, que Modigliani no apenas mudou seu prprio modo de ver um rosto, mas tambm a maneira coletiva de ver um rosto. P.214 No acredito em transformao revolucionria, seja qual for o regime, se no houver tambm uma revoluo cultural, uma espcie de mutao entre as pessoas, se o que camos na reproduo da sociedade anterior. o conjunto das possibilidades de prticas especficas de mudana de modo de vida, com seu potencial criador, que constitui o que chamo de revoluo molecular, condio para qualquer transformao social. E isso no tem nada de utpico, nem de idealista. P.214 IV DESEJO E HISTRIA 1. Psicanlise & Corporaes de analistas Parece-me que Freud tentou, pelo menos durante boa parte de sua vida, no se tornar um profissional da psicanlise. Depois tudo acabou caindo na institucionalizao e nos sistemas redutores. P.239 No pensamento de Freud h coisas surpreendentes, de uma juventude e de uma vitalidade que exalam golfadas de oxignio. Porm, a maneira como os psicanalistas utilizam seu pensamento d vontade de fugir. P.239 Estou constantemente repetindo o mesmo refro: as prticas de produo subjetiva e as referncias s cartografias relativas a essas produes so da alada de agenciamentos os quais esto sempre em vias de ser destrudos e reconstrudos, desfeitos e recolocados em funcionamento. No da alada de processos universais, que seriam os de uma matemtica geral do inconsciente, nem de uma corporao

especializada de intrpretes do inconsciente. A reapropriao dos processos de singularizao subjetiva, as revolues moleculares contra a produo de subjetividade capitalstica, num certo nvel, tambm passam pelo questionamento de tal corporao de psicanalistas, da mesma forma que passam pelo questionamento de um certo tipo de formao universitria. P.239 O que talvez seja mais importante ainda o fato de que esse modo de funcionamento tenha esterilizado por completo a pesquisa analtica, a pesquisa terica fundamental. O sistema que Lacan tinha proposto (os cartis) nunca funcionou desse modo; e sim da forma que costuma acontecer nos grupelhos: os tais cartis implantavam-se em torno de tal ou qual lder, ficava-se debatendo em relaes de fora, o que redundava numa hierarquia, ainda que tcita. P.241 A problemtica da anlise das formaes do inconsciente diz respeito a questes to fundamentais quanto, por exemplo, o futuro dos movimentos de transformao social. 241 (cf 213) to eficaz, que as vezes ele nem precisa abrir a boca, pois os educadores, as famlias, enfim, todas as pessoas implicadas nessa realidade social ficam de qualquer maneira totalmente tolhidas de tanta angstia e terror que a simples presena do psicanalista lhes causa, por seu suposto saber. Elas se dizem: no fui psicanalizado, no conheo a teoria psicanaltica; se eu ousar falar ou fazer algo, pode ser a maior besteira! A partir desse lugar mtico encarnado pelo psicanalista, instaura-se toda uma hierarquia de saber e de poder, essa espcie de pirmide da modelizao. E bvio que no preciso insistir em faz-los notar que essa mesma pirmide existe sob outras formas no conjunto do campo social. P.243 O importante no que os psicanalistas faam uma ruptura com sua concepo de prtica, mas sim com sua concepo de neutralidade, com sua concepo de relao com o outro, quando, na verdade, o outro algum que lhes traz algo que da ordem de uma certa problemtica contextualizada. Refiro-me ao fato de os psicanalistas dizerem que eles no tm que se meter com micropoltica, que eles no tm que sujar suas mos nas realidades com as quais esto confrontados, que eles se bastam a si mesmos. Eles so depositrios de uma cincia dos matemas do inconsciente, a qual lhes d trabalho suficiente em sua poltrona,... De meu ponto de vista, eles so simplesmente reacionrios: eles trabalham sistematicamente na consolidao de uma certa produo de subjetividade... Eles monopolizam o campo da problemtica da anlise das formaes do inconsciente, quando essa problemtica , exatamente, um dos elementos fundamentais de que o conjunto do campo social deveria se reapropriar. P.243 Pergunta Se partirmos dessa concepo no d mais para dizer que a psicanlise ou a clnica de um modo geral sejam lugares privilegiados do analtico. Guattari claro que no. O que no sinnimo de uma condenao do mtier de psicoterapeuta ou de qualquer funo de trabalhador social. como se me perguntassem se podemos considerar que a poesia est intrinsecamente ligada profisso de professor de literatura. Eu diria que no: pode acontecer, por acaso, que haja um professor de literatura que seja tambm poeta, mas a relao totalmente circunstancial. P.244 Uma outra abordagem dessa questo reconhecer que os psi" esto em posio de fora para impedir os processos analticos. Os analistas so os resistentes, no

sentido em que podemos falar da resistncia durante a guerra; a Sociedade Amigos da Resistncia, o sindicalismo da resistncia antianaltica. Quero dizer que, se Freud descobriu algo da natureza do inconsciente no campo individual e social, no tirou isso totalmente de sua cabea; claro que em algum lugar isso se colocava. E desde ento as problemticas inconscientes da subjetividade no pararam de se afirmar no conjunto dos comps polticos e social. Nesse contexto, aterrador ver a que ponto as corporaes de analistas participam dos modos de recuperao. Mas no s eles. A anlise diz respeito a uma problemtica social que vai muito alm da psicanlise propriamente dita. Nesse sentido, para mim, os analistas so como os jornalistas, como a mdia, como o ensino universitrio, os quais impedem que a anlise advenha. P.244 Na verdade, o que est em jogo na psicanlise no se restringe ao terreno do div, mas diz respeito tambm a sua existncia enquanto referncia de iniciao elitista muito concreta. A psicanlise funciona como uma espcie de referncia religiosa, ideolgica, presente na tentativa de redefinio das relaes sociais em todos os nveis. Eu tinha discusses constantes em torno, exatamente, desse aspecto da psicanlise, com um grande amigo, agora desaparecido, o Basaglia. Para ele, no contexto italiano, a psicanlise no tinha o menor interesse, e no valia a pena sequer falar nisso. Ele dizia: bem, se alguns idiotas tm dinheiro e tempo, e querem entrar nisso, problema deles! A meu ver, ao contrrio, muito importante no s discutir, mas tambm observar como isso est evoluindo, pois trata-se de um dos elementos e no pouco significativo do dispositivo de subjetivao capitalstica, uma vez que esta no funciona s em relaes visveis. Tanto as escolas de psicanlise, como o tipo de relao que se estabelece num trabalho psicanaltico, colocam em jogo modelos, mquinas abstratas, sistemas, que perpassam o campo de produo da subjetividade capitalstica como um todo. p.244-5 Pergunta A psicanlise teria esse impacto em todas as classes sociais? Guattari Sim. Claro que estou tomando uma posio paradoxal, um tanto provocadora. Sei muito bem que o pessoal da favela no est nem a para a psicanlise, Freud ou Lacan. Mas as mquinas abstratas de subjetivao produzidas pela psicanlise, atravs da mdia, das revistas, dos filmes, etc., esto certamente presentes tambm naquilo que acontece nas favelas. P. 245

2.Psicanlise e reducionismo Pelo que tenho sentido do que est ocorrendo no Brasil, se eu tivesse a oportunidade de propor algo a ser acrescentado aos programas de transformao uma notinha de rodap, um tpico suplementar no programa do PT, por exemplo eu sugeriria a liberdade de construo de novos tipos de modelo referentes anlise do inconsciente. p.245 Podemos tentar traar no a histria da psicanlise, mas sua trajetria, como sendo a de um longo empreendimento de reduo. O familialismo, isto , a reduo da

representao do inconsciente a um certo tringulo familiar, apenas uma das etapas dessa trajetria comumente, a mais enfocada[...] P.245-6 Nota 80: O termo reducionismo designa a reduo sistemtica de um campo de conhecimento a um outro mais formalizado (por exemplo: reduzir as matemticas lgica formal, perdendo com isso parte de sua densidade e sua complexidade). No caso, Guattari refere-se reduo que a psicanlise faz da produo rica e variada do inconsciente a certos modelos, reduo esta que, segundo ele, inaugura-se com o prprio Freud. Para Guattari, qualquer modelo, neste campo, sempre a cartografia de determinada formao do inconsciente. Nessa medida, ele alerta para a importncia de se preservar a possibilidade de inveno de novos modelos, como condio para uma escuta da produo do inconsciente. No texto que se segue (montagem de vrias conferncias e falas esparsas sobre este tema), Guattari busca apontar diferentes reducionismos que se produziram na psicanlise, especialmente na obra de Freud. Olhar p. 246-9 sobre Freud Considero as elaboraes tericas no campo psicanaltico como modos de cartografia de formaes do inconsciente ou de situaes que as presentificam e das quais no se pode fazer um mapa ou uma teoria geral. Devemos estar sempre dispostos a guardar nossas prprias cartografias na gaveta e a inventar novas cartografias dentro da situao em que nos encontramos. No fundo, no ter sido exatamente isso que Freud fez nesse perodo criativo que deu origem psicanlise? P. 247 Naquilo que se chamou primeira tpica, Freud organiza o mundo das significaes repartindo-o em dois continentes: de um lado, o Inconsciente e do outro, o Preconsciente e o Consciente. p.247 No seio do Inconsciente, temos um mundo altamente diferenciado, de sentidos, enunciados, imagens e representaes latentes, que simplesmente dependem de uma lgica particular: trata-se do chamado processo primrio, cuja lgica no nem mais pobre, nem mais rica do que a do processo secundrio, e sim diferente. p.247-8 [...] Esse perodo da elaborao de Freud como uma espcie de descoberta de vrios mundos novos. O inconsciente ainda um universo fervilhante, produtor de novos sentidos, de roteiros fantasmticos, que se pode encontrar na religio, na arte, na infncia, nas sociedades arcaicas, etc. p.248 Na segunda tpica freudiana, a trade Inconsciente-Preconsciente-Consciente substituda pela trade Id-Ego-Superego, e a delimitao entre esses trs modos de semiotizao especficos, entre esses trs processos, j no a mesma. exatamente a especificidade dos processos primrios que tende a se perder: eles agora habitam tanto o Id, como o Ego, o Superego ou o Ideal do Ego. A dissoluo do inconsciente j est aqui muito mais acentuada. A lgica do inconsciente arrastada em direo a uma espcie de matria indiferenciada, algo que no fim da vida de Freud ser relacionado pura e simplesmente a um caos, a uma desordem pulsional, reificada sob a forma de pulso de morte. Uma perspectiva gentica as fases oral, anal, flica, etc. ir substituir a relao entre as instncias psquicas enquanto diferentes continentes lgicos,

enquanto diferentes maneiras de semiotizar essas realidades. Desse novo ponto de vista, as instncias psquicas vo se engendrar umas a partir das outras num processo geral de amadurecimento e por que no diz-lo? de normalizao. Em outras palavras, temos uma espcie de corrida de obstculos, que vai permitir a integrao da lgica do processo primrio, por etapas sucessivas, s normas do Ego, s normas dos valores sociais, s normas dominantes. E essa gentica da entrada nas significaes dominantes que, se tudo correr bem, conduzir sublimao participa da prpria montagem do psiquismo. O que a trajetria das prticas psicanalticas a histria da institucionalizao da psicanlise seno essa paulatina reduo da percepo do inconsciente? P.248-9 A modelizao que ir se tornar cada vez mais dominante a da leitura gentica, que faz entrar o nonsense do inconsciente numa perspectiva de fases de integrao ao social, de sistemas de identificao imaginria chamados de polos personolgicos. Cada fase ser associada a determinada figura personolgica: certa figura da me para a fase oral, certa figura do controle social domstico para a fase anal, certa figura de integrao ao mundo dos valores paternos com a triangulao edipiana, certa figura de submisso aos valores dominantes com o complexo de castrao e o perodo de latncia. P.249

Definio de desejo Quando tento colocar o problema do desejo enquanto formao coletiva, evidencia-se logo que o desejo no forosamente um negcio secreto ou vergonhoso como toda a psicologia e moral dominantes pretendem. O desejo permeia o campo social, tanto em prticas imediatas quanto em projetos muito ambiciosos. P.260 Por no querer me atrapalhar com definies complicadas, eu proporia denominar desejo a todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepo do mundo, outros sistemas de valores. P.260-1 Para a modelizao dominante aquilo que eu chamo de subjetividade capitalstica essa concepo do desejo totalmente utpica e anrquica. P.261

Reunio na Escola Freudiana de So Paulo (SP, 26/08/1982)

A meu ver os fenmenos que a psicanlise trata em termos de conflito no podem ser assim apreendidos. Tomemos o exemplo da noo de recalque: [...] Um exemplo esclarecedor o do sonho. Todos, na experincia do sonho, passam por grades sucessivas de leitura, cada vez mais reducionistas. A questo se coloca em termos de agenciamento de enunciao e no de interpretao. [...] p.264 No entanto, no de interpretao que se trata aqui: esses diferentes modos de semiotizao no se colocam numa relao de conflito ou de recalque entre um suposto

sentido latente e outro manifesto. No h um sentido latente, deformado, uma significao verdadeira espera de uma interpretao que viria desnud-la. Nenhum sistema de significao tem primazia sobre os outros. O agenciamento A to verdadeiro que o B, o C, ou o D. Eles simplesmente no so da natureza de um mesmo sistema de semiotizao. Na passagem de um para o outro, o que se d uma ruptura de agenciamento. A questo sabers diferenas em jogo nos vrios sistemas de semiotizao, e no reduzir um ao outro, considerando, por exemplo, o agenciamento E, a enunciao ao psicanalista, como aquele que ilumina a verdade de todos os outros. Eu diria que a verdade, aqui, se torna apenas funcional: para que serve sonhar nesse nvel A? para que serve contar meu sonho no caf da manh? o que gera, em termos de produtividade ou improdutividade, o fato de contar o sonho ao psicanalista? P.265 Sem querer me estender nesse exemplo, gostaria no entanto de enfatizar o fato de que a perspectiva que situa a problemtica do inconsciente nas enunciaes e no nos enunciados ou, mais precisamente, nos agenciamentos de enunciao - algo que no mnimo nos permite economizar dualismos, p.265 tanto do tipo contedo manifesto e latente, quanto do tipo tomada de poder sobre as significaes, seja por parte do ego, seja por parte de um psicanalista interpretando. P.266 Essa questo, j bastante complicada no exemplo do sonho, se complica ainda mais no caso de outros objetos psquicos, tais como contextos de realidade social ou de produtividade artstica. A, a diferenciao entre os agenciamentos ainda mais gritante. No exemplo do sonho, s mexemos com trs personagens: o ego do despertar, a interlocutora do caf da manh e eventualmente o psicanalista. J em outros sistemas de agenciamento entram instituies complexas, equipamentos de trabalho, equipamento de modelizao dos sentidos, sistemas de mquinas. As significaes a fala, a escrita esto cada vez menos restritas ao espao de relao entre os indivduos, e cada vez mais mediadas por sistemas maqunicos no s explcitos (um gravador, por exemplo), mas tambm invisveis (esquemas de comportamento, referenciais, mquinas de identificao enfim, toda uma srie de elementos de significao social que teleguiam, literalmente, as idias e as atitudes). Em outras palavras, num agenciamento de enunciao entram todos os modos de produo de subjetividade, seja qual for o nvel em que nos encontramos: pequenos grupos, instituies ou grandes conjuntos lingsticos nacionais. O inconsciente, aqui, est sendo considerado como um produo singular de enunciados, de afetos, de sensibilidade, sempre resultante do entrecruzamento de diferentes agenciamentos. P.266 Por isso, eu recuso a problemtica do conflito: no h conflito, e no h continuum; h simplesmente a mutao de um tipo de possvel que no se faz passo a passo, progressivamente por induo, transferncia, deslocamento, determinao mltipla, ou seja, por uma economia de processos primrios. Na verdade, uma outra constelao de possveis criada de um s golpe: isso me parece apreender melhor, do ponto de vista fenomenolgico, esses fenmenos de ruptura. Tais fenmenos so a criao de novos campos de possvel, e isso no acontece dialeticamente em relao a outros campos de possvel: eles coexistem. H sempre a possibilidade de somatizao, h sempre a possibilidade de recair nos mesmos buracos negros: nunca se est curado de coisa alguma; no h deslocamentos dialticos. Somos sempre tudo ao mesmo tempo: acordados, conscientes, apaixonados, ambivalentes... E no se trata de uma ambivalncia conflitiva, mas do fato que todas essas constelaes se perfilam simultaneamente nesse nvel. E esse o nico interesse do que estou dizendo: parece-

me que o tratamento dinmico, econmico das problemticas subjetivas, no nos permite apreender o carter de ruptura e de desdobramento global de todo um campo de possibilidades. Nesse sentido, torna-se absolutamente incompreensvel a noo de sublimao alis, ningum mais fala nela. P.267 Bem, se insisto tanto na diferena entre essas concepes de como funciona a relao entre os agenciamentos, porque elas implicam, igualmente, uma diferena de posio em face dos fluxos capitalsticos. Me explico: a idia de conflito indissocivel da instaurao dos fluxos capitalsticos como tradutibilidade geral de todas as lnguas possveis e imaginveis, como equivalente geral para as ordens econmicas, libidinal, semitica, etc. p.268 c. Interpretao: o analista e o pianista A questo como o sonho vai se interpretar nos agenciamentos desencadeados. Esses no remetem necessariamente a duas pessoas uma no div e outra na poltrona. P.268

Debate no Curso de Psicanlise do Instituto Sedes Sapientiae (So Paulo, 31/08/1982)De certo modo eles teriam razo: o essencial da interpretao para os estruturalistas se reduz, pura e simplesmente, a prensar todas as produes de enunciado, com uma zona de silncio. Sua concepo terica e sua prtica consistem em operar, sistematicamente, uma espcie de esvaziamento de todo fenmeno de sentido. Com a prtica vergonhosa das sesses curtas, com a prtica vergonhosa da manuteno do silncio que pode se prolongar durante anos, para no dizer dezenas de anos [...] p.271 Essa interpretao pela reduo dos enunciados ao nonsense no significa uma ausncia de modelizao; , pelo contrrio, o cmulo da modelizao e, mais exatamente, da modelizao capitalstica. Pois no isso que o modo de produo capitalstico faz em relao a tudo que da ordem de um sistema de sentido? Todo fenmeno de produo de sentido relacionado a um equivalente geral de nonsense, a um valor de troca generalizado. Esse esvazia de seu contedo todos os valores de desejo, todos os valores de uso, para depois se reapropriar das produes subjetivas, ou reterritorializ-las em relaes de produo bem esquadrinhadas. A psicanlise, desse ponto de vista, produziu um modelo de poder sem precedentes. P.271

4. A esquizoanlise a. Individuao do desejo: a alienaoA concepo de desejo no campo social, que Gilles Deleuze e eu tentamos desenvolver, tende a questionar a idia de que o desejo e a subjetividade estariam centrados nos indivduos e resultariam da interao de fatos individuais no plano coletivo. P.280 Partimos mais da idia de uma economia coletiva, de agenciamentos coletivos de desejo e de subjetividade que, em algumas circunstncias, alguns contextos sociais, podem se individualizar. P.280-1

Queria falar de uma concepo um pouco clssica do desejo como algo de individual, e do social como algo que vai se construindo a partir desse desejo individual, por etapas sucessivas. claro que se pode sempre tentar fazer a cartografia de uma situao a partir dessas noes. No h, a meu ver, modelos universais e cientficos para se tentar compreender uma situao e, alm disso, os prprios modelos cientficos se repelem, se intercambiam, se conjugam entre si. No entanto, essa concepo clssica de desejo est aqum de uma srie de fenmenos, especialmente de um que me parece muito importante, o da produo de subjetividade mais do que o de sua modelizao em escala social, e mesmo mundial. P.281

Debate promovido por um diretrio do PT do Rio de Janeiro (RJ,11/09/1982) Do meu ponto de vista no d para se falar em desejo individual. a produo de subjetividade capitalstica que tende a individualizar o desejo, e quando vitoriosa nessa operao, no h mais acmulo processual possvel. Instaura-se um fenmeno de serializao, de identificao, que se presta a toda espcie de manipulao pelos equipamentos capitalsticos. P.281 Tal elaborao seria algo do tipo daquilo que Freud, em sua primeira tpica, situava como pertencendo ordem de processos primrios. Alis, exatamente esse tipo de elaborao que foi se reduzindo, em todas as correntes psicanalticas. Da reduo inicial do processo primrio a uma massa pulsional indiferenciada, chegou-se a uma frmula de desordem ou de pulso de morte, ou ainda, no caso dos estruturalistas, a uma teoria universalizante do significante. Todos aqui devem ter tido a experincia eu, pelo menos, a tenho freqentemente do contraste entre a descoberta da complexidade, da riqueza, da diferenciao que se pode ter numa experincia onrica e a pobreza de meios que se tem ao despertar, quando se tenta expressar essa produo onrica pela rememorao, pela escrita ou pelo desenho. Aqui, eu me permitiria questionar toda referncia indiferenciao, toda referncia s mitologias espontanestas: toda vez que conseguimos agenciar dispositivos de expresso que escapam ao despotismo do sistema das significaes dominantes, que escapam articulao de todas as sintaxizaes dominantes, estamos justamente lidando com maquinismos altamente elaborados. 288

c. Inconsciente maqunico: desejo como produoAcho muito mais vantajoso partir para uma teoria do desejo que o considere como pertencendo propriamente a sistemas maqunicos altamente diferenciados e elaborados. E, quando digo maqunico, no me refiro a mecnico, nem necessariamente a mquinas tcnicas. As mquinas tcnicas existem, claro, mas h tambm mquinas sociais, mquinas estticas, mquinas tericas e assim por diante. Em outras palavras, h mquinas territorializadas (em metais, em eletricidade, etc.), assim como h tambm mquinas desterritorializadas que funcionam num nvel de semiotizao completamente outro. P.288

A problemtica da produo, a meu ver, inseparvel da problemtica do desejo. Muitas pessoas no consideram as coisas dessa forma; h at as que operam um corte radical entre o campo do trabalho e o campo do desejo. p.288 Forjei com Gilles Deleuze, uma expresso que pode parecer paradoxal, mas que nos foi muito til em nossa reflexo: o conceito de mquina desejante. a idia de que o desejo corresponde a um certo tipo de produo e que ele no absolutamente algo de indiferenciado. O desejo no nem uma pulso orgnica, nem algo que estaria sendo trabalhado, por exemplo, pelo segundo princpio da termodinmica, sendo arrastado de maneira inexorvel por uma espcie de pulso de morte. O desejo, ao contrrio, teria infinitas possibilidades de montagem. O desejo de uma criana, por exemplo, no pode, a nosso ver, ser reduzido aos esquemas da psicanlise por exemplo, a seus imagos de triangulaes. Observando as coisas simplesmente de um ponto de vista fenomenolgico o desejo mostra-se em conexo direta com os mais diferenciados elementos de seu entorno que vo da famlia ao cosmos. [...] Gilles Deleuze e eu estamos inteiramente distanciados de qualquer idia de espontanesmo neste campo. O desejo, para ns, no a nova frmula do bom selvagem de JeanJacques Rousseau. Ele tambm pode, como toda mquina que se preze, se paralisar, se bloquear (e at muito mais do que qualquer mquina tcnica); ele corre o risco de entrar em processos de imploso, de autodestruio, que no campo social podero se manifestar atravs de fenmenos que eu e Deleuze chamamos de microfascismos. Portanto, para ns, a questo est em se tentar apreciar o que efetivamente a economia do desejo, num nvel pr-pessoal, num nvel das relaes de identidade ou das relaes intrafamiliares, assim como em todos os nveis do campo social. P.289

Reunio na Escola Freudiana de So Paulo (SP, 26/08/1982)Pergunta Ento esse sistema de esquizoanlise de vocs vai contra toda a psicanlise? Como que vocs substituem o tringulo edipiano? Guattari No sou eu quem substitui o tringulo. O tringulo se substitui sozinho. A prpria famlia transformada enquanto equipamento coletivo, em relao com o conjunto dos outros equipamentos coletivos, os quais vo assumir a criana, desde a formao at sua entrada na fora coletiva de trabalho. Tudo isso, atualmente programado. No h relao natural com a me nem com o pai, nem com ningum. A televiso, por exemplo, desempenha um papel que substitui em parte o da me. P.290 TPICO ... atravs desse novo tipo de agenciamento as relaes dele com a famlia se modificaram, houve certas aberturas, uma mudana considervel de comportamento, uma estabilizao; enfim, um resultado bastante satisfatrio. P.293 Nesse novo agenciamento solitrio, ele comeou a forjar um modo de expresso, a desenvolv-lo, a criar uma espcie de cartografia de seu prprio universo, coisa que ele no podia desenvolver no territrio familiar, nem, evidentemente, no territrio de um hospital psiquitrico e nem em sua relao teraputica comigo. P.293-4 Qual poderia ser o julgamento de um psicanalista acerca desse tipo de interveno? Dizer que muito bem, um excelente trabalho de assistncia social, mas evidentemente no tem nada a ver com anlise da psicose. Creio que, de fato, no

tenho nenhum mrito em ter descoberto algo que seria um sentido latente e que pudesse mudar seus modos de subjetivao, num passe de mgica. Mas, justamente a anlise aqui perdeu seus traos mgicos, seus traos fascinatrios. A anlise consistiu apenas em tentar apreciar, com a maior exatido possvel, o que poderiam ser os diferentes modos de consistncia de territrios, os diferentes tipos de processos que chamo de processos maqunicos suscetveis de serem postos em funcionamento. Consistiu tambm em nunca encorajar alguma coisa que por minha conta e risco poderia lev-lo a um impasse total; em tentar apreciar o que pode ser a mutao do que eu chamo de constelao de universos, que estaria permitindo a Jean-Baptiste assumir seus diferentes modos de semiotizao na sua situao. P.294 O que podemos esperar de um processo de institucionalizao? Muito mais do que um simples ajustamento de problemas microssociais, e uma coisa totalmente diferente de uma interveno patho-plstica que se bastaria a si mesma para adaptar casos to singulares quanto os de drogados, de psicticos, de crianas autistas, etc. s normas dominantes. P.301 Por que, nesse campo, h sempre uma defasagem entre os fatos e as representaes, como se fssemos tributrios de uma relao de incerteza, como o que Heisenberg aponta com seu princpio de incerteza? Por uma razo, a meu ver, irredutvel, incontornvel: os objetos com os quais estamos lidando no so sujeitos homogneos, entidades que possamos circunscrever, nem mesmo em relao a uma unidade corporal individual. So agenciamentos subjetivo-objetivos de componentes heterogneos, cujo contorno nunca se pode circunscrever de maneira confivel. P.302 Cultivamos o mito de uma individuao a priori da subjetividade, de que as pessoas seriam responsveis por elas mesmas e conscientes delas mesmas. Mas a maior parte do tempo, isso no verdade! Para perceber isso, convm se livrar das abordagens redutoras da comunicao: o fulano que est ali, que me fala, que faz determinada coisa, habita seus fatos, seus gestos, seus dizeres, somente na superfcie. P.302 Pois tudo isso na realidade inseparvel de marcas coletivas, que incluem a famlia, os grupos sociais, os grupos primrios de toda natureza. P.302-3 O indivduo que temos diante de ns, freqentemente, no seno o terminal de todo um conjunto de agenciamentos sociais. E se no atingimos o cerne desses agenciamentos, embarcamos em atitudes fictcias. Trata-se no s de localizar a insero de agenciamento em que um indivduo se constitui, mas tambm de encontrar um ponto de apoio mnimo que lhe permita conquistar alguns graus suplementares de liberdade. P.303 Acrescentemos a isso que no h apenas agenciamentos interpessoais visveis; h tambm agenciamentos infrapessoais. Certas cristalizaes de subjetividade s se operam segundo dimenses inconscientes. P.303 O sujeito no to evidente, ele no est dado, ele no naturalmente engendrado: preciso trabalh-lo. Sua modelizao na realidade, sua produo - artificial, e o ser cada vez mais. P.309 Reunio na Escola Freudiana de So Paulo (SP, 25/08/1982)

Radio Vert p.310 ...Subjetivar uma classe escolar... Agora, voltando ao freudismo. O que Freud fez com uma certa escuta da histeria? Ele descortinou um novo tipo de universo de possveis, um novo modo de semiotizao da subjetividade, no seio do qual se engolfaram depois de consideraes tericas, grupos, tendncias, prticas, etc. Mas, no incio, o que Freud produziu foi uma ruptura dos universos de referncia. Para mim, o ato analtico no algo que pode centrar-se na interpretao do analista em determinada seqncia de discurso. P.311 aquilo que, vindo de tais ou quais elementos de singularidade, pode fazer fugir, completamente armados, outros tipos de possveis, numa situao onde tudo parecia predeterminado, pr-escrito, em modos estratificados de subjetivao, em modos de redundncia de expresso, etc. 311-2 Representam revolues analticas dessa natureza a associao livre e os modos de ruptura a-significantes, os quais aparecem ao mesmo tempo na literatura, no surrealismo, na pintura, etc. p.312 Hoje, podemos considerar que a sada de um impasse, qualquer que seja ele, sempre implica que um processo de singularizao possa surgir, possa presentificar a problemtica sob novos ngulos, possa criar flutuaes produtoras de um outro tipo de equilbrio, de um outro tipo de ordem. o que Ilya Prigogine e Isabelle Stengers chamam de flutuaes fora do equilbrio, estruturas longe do equilbrio (nota 94). Em outras palavras, as formaes do inconsciente aparecem aqui como algo que est para ser eventualmente produzido, encontrado, articulado, montado e no algo a ser buscado, reencontrado ou recomposto a partir de universais da subjetividade. p.312

nesse sentido que podemos falar de uma espcie de prudncia. No para fazer disso uma categoria moral, geral. Essa questo de prudncia veio, exatamente, em reao s mitologias espontanestas de uma certa poca: no tem nada a ver com o qualquer coisa, com a improvisao, com o libere-se, com o curta o corpo, etc. muito mais a idia de levar em considerao tanto a riqueza quanto a precariedade desses processos. 332 Acho prefervel elaborar o que voc chama de emoo, e eu chamaria de afeto, em funo dos agenciamentos de produo de subjetividade, hoje. Por exemplo: um material resultante das tecnologias modernas, como o walkman, pode ser interpretado de diferentes maneiras. Poderamos dizer que se trata de um instrumento de sujeio dos jovens s msicas e s tecnologias dominantes, ou de uma espcie de droga estticotecnolgica. Mas tambm poderamos consider-lo como a inveno de um outro universo musical, de uma outra percepo. 333 (cf caosmose)

Entrevista a Pepe Escobar para o Folhetim, Folha de S. Paulo (SEMPRE, 05/09/1982)Pepe Escobar - ... Em certos crculos culturais fala-se bastante do saber afetivo, que no passa pela lngua ou pela razo, atravs do qual principalmente os adolescentes se existnciaprimem.

Guattari Penso que existem mltiplos componentes de expresso que no passam pela linguagem tal como fabricada pela escola, pela universidade, pela mdia e por todas as formaes de poder. A expresso do corpo, a expresso da graa, a dana, o riso, a vontade de mudar o mundo, de circular, de codificar as coisas de outro modo, so linguagens que no se reduzem a pulses quantitativas, globais. Constituem a diferena. As geraes jovens, no seu modo de ver, sentir e exprimir, tm cadeias semiticas, sistemas cada vez mais elaborados. Meu av, quando falava ao telefone, no se sentia vontade. Eu tambm no, quando tenho um desses gadgets tecnolgicos nas mos. Para garotos de cinco, seis anos de idade isso no problema. Ou seja, estas formas de linguagem afetiva no so algo parecido com o bom selvagem ou o retorno natureza de Rousseau. P.334 Meu filho faz poltica montando rdios livres uma tcnica altamente especializada e tocando guitarra. Em Nova Iorque, por exemplo, as coisas j acontecem desse ponto de vista a que voc se referia, do conhecimento afetivo, em nvel da sensibilidade inerente ao relacionamento sob uma percepo imediata. P.334 J nos meios ditos culturais, como na Frana, o tdio, no h riqueza de nenhum tipo. Penso que, ao contrrio, no Brasil e em outros pases, h a emergncia de um novo tipo de possvel, que naturalmente recuperado, enquadrado pelas grandes formaes de poder, pela mdia, etc., mas que continua a proliferar por todas as margens. P.335 Sempre me irritou a ladainha em torno do tema da cincia sem conscincia: como seria bom se consegussemos colocar um pequeno suplemento da alma na cincia e na tcnica, e essa coisa toda... Besteira, pois a partir dessa mesma subjetividade, que est indo no sentido de uma degenerao irreversvel, acelerada, que os sistemas maqunicos puderam se desenvolver. E, depois, no um pouco idiota querer melhorar essa espcie humana, que uma das mais vulgares, maldosas e agressivas que existem? Quanto a mim, as mquinas no me do medo, j que elas ampliam a percepo e simplificam os comportamentos humanos. Tenho medo quando elas so reduzidas em nvel da tolice humana. 335 No sou um ps-moderno. No acho que os progressos cientficos e tecnolgicos se acompanham, necessariamente, de um reforo da esquize em relao aos valores de desejo, de criao. Penso, ao contrrio, que preciso utilizar as mquinas, todas as mquinas concretas e abstratas, tcnicas, cientficas, artsticas , para fazer muito mais do que revolucionar o mundo: para recri-lo de ponta a ponta. 335 Sou inteiramente a favor, claro, da defesa do meio ambiente. A questo no essa. S que preciso admitir que a expanso tcnico-cientfica tem um carter irreversvel. A questo consiste em operar as revolues moleculares e molares que possam mudar totalmente suas finalidades, pois preciso repetir essa mutao no tem que ir obrigatoriamente no sentido catastrfico j iniciado. O carter cada vez mais artificial dos processos de produo subjetiva poderia muito bem associar-se a novas formas de sociabilidade e de criao. a que se situa esse cursor das revolues moleculares... 335 O corpo arcaico, por exemplo, nunca um corpo nu, ele sempre um subconjunto de um corpo social, atravessado pelas marcas do socius, pelas tatuagens,

pele iniciao, etc. Esse corpo no comporta rgos individuados: ele prprio atravessado pelas almas, pelos espritos que pertencem ao conjunto dos agenciamentos coletivos. 336 J em nossas sociedades, as grandes fases de iniciao da infncia aos fluxos capitalsticos consistem, exatamente, em interiorizar a seguinte noo de corpo: voc tem um corpo nu, um corpo vergonhoso, voc tem um corpo que tem de se inscrever num certo tipo de funcionamento de economia domstica, de economia social. O corpo, o rosto, a maneira de se comportar em cada detalhe dos movimentos de insero social sempre algo que tem a ver com o modo de insero na subjetividade dominante. 336 (cf 341) Se Gilles Deleuze e eu tomamos o partido de praticamente no falar em sexualidade, e sim em desejo, que consideramos que os problemas da vida, da criao, nunca so redutveis a funes fisiolgicas, a funes de reproduo, a alguma dimenso particular do corpo. Eles sempre envolvem tanto elementos que esto alm do indivduo no campo social, no campo poltico, quanto elementos que esto aqum do indivduo. esses elementos no so to captveis quanto pensaram os psicanalistas com sua noo de complexos esteriotipados, estruturas gerais, universais: nessa vertente, aqum do indivduo e do corpo, existem singularidades complexas que no podem ser rotuladas. 338 Isso pode parecer um tanto fantasioso se partirmos da idia da psicanlise de que os fenmenos que ela chama de superego seriam da natureza de uma instncia intrapsquica. Mas se considerarmos tais fenmenos como constituindo, na verdade, uma certa micropoltica da subjetividade, entenderemos por que essas relaes de tipo edipiana que mencionei so micropolticas especficas e na a encarnao de modelos pretensamente universais. 339 No interessa desprezar pessoas que adotam drogas para se proteger sejam drogas conjugais ou no. O importante que em toda situao resta metodologicamente, em princpio a possibilidade de tentar. 340 A nova suavidade faz parte desse tema que estamos discutindo o tempo todo, que o da inveno de uma outra relao com o corpo, por exemplo , relao esta presente nos devires-animais. Sair de todos esses modos de subjetivao do corpo nu, do territrio conjugal, da vontade de poder sobre o corpo do outro, da posse de uma faixa etria por outra, etc. Portanto, para mim, a nova suavidade o fato de que, efetivamente, um devir-mulher, um devir-planta, um devir-animal, um devir-cosmos podem inserir-se nos rizomas de modos de semiotizao, sem por isso comprometer o desenvolvimento de uma sociedade, o desenvolvimento das foras produtivas e coisas assim. Quero dizer que, antes, as mquinas de guerra, as mquinas militares, as grandes mquinas industriais eram a nica condio para o desenvolvimento das sociedades. ... Mas hoje em dia as margens (os Marginati), as novas formas de subjetividade, tambm podem se afirmar em sua vocao de gerir a sociedade, de inventar uma nova ordem social, sem que para isso, tenham de nortear-se por esses valores falocrtico, competitivos, brutais, etc. Elas podem se expressar por seus devires de desejo. 341-2

O capital inflacionou nosso jeito de amar: estamos inteiramente desfocados. 342 Em um dos extremos, o medo da desterritorializao que sucumbimos: nos enclausuramos na simbiose, nos intoxicamos de familialismo, nos anestesiamos a toda sensao de mundo, endurecemos. No outro extremo quando j conseguimos no resistir desterritorializao e, mergulhados em seu movimento, tornamo-nos pura intensidade, pura emoo de mundo , um outro perigo nos espreita. Fatal agora pode ser o fascnio que a desterritorializao exerce sobre ns: ao invs de viv-la como uma dimenso imprescindvel da criao de territrios, ns a tomamos como uma finalidade em si mesma. E, inteiramente desprovidos de territrios, nos fragilizamos at desmanchar irremediavelmente. (Rolnik, Uma Nova Suavidade p. 342) Eu sou francs, trabalho h muito tempo no campo da psiquiatria, sou psicanalista e administro uma clnica psiquitrica a 120km de Paris. No trabalho na universidade e, alis, no gosto, nem tenho vocao para isso. Desde a adolescncia, me interessei por movimentos sociais, por movimentos reivindicatrios. Eu sempre continuei interessado nisso, o que pode ser um trao de infantilidade, de imaturidade, pois geralmente estas coisas param com uma certa idade. 363-4 Eu participo de um grupo de pesquisa que est tentando definir um novo modo de financiamento para a investigao nas cincias sociais. Estamos tentando criar caminhos novos para o desenvolvimento do que chamamos de 3 setor, o setor associativo (tudo o que no nem Estado, nem capitalismo privado, nem cooperativas). Efetivamente, tenho amigos no poder atual, o que no quer dizer que eu seja socialista. Se eu fosse aderir a um partido hoje seria o PT e no o Partido Socialista Francs. 365 Deleuze um filsofo, eu no sou filsofo. Eu monto sinais referenciais, eu ensaio golpes como quem tenta dar golpes em bancos me aventuro em manobras de expresso num determinado contexto, numa determinada situao. Depois, abandono tudo isso e vou fazer outra coisa. P.370 Essa preponderncia dos fluxos capitalsticos e do inconsciente capitalstico j aconteceu. J aconteceu essa mutao. P.372 A partir da, se voc considera o que se passa nos sistemas devastados pelo modo de produo da subjetividade capitalstica a comear pelos Estados Unidos , evidente que essa vitalidade da economia de desejo se encontra antes de mais nada entre os negros, os portorriquenhos, os chicanos, etc. p.372-3 E no h um destino de esmagamento pois, ao contrrio, na prpria razo da difuso dos sistemas maqunicos de toda natureza, eles inventam e conjugam instrumentos, corpos, dados de expresso, um certo tipo de afetividade, de relaes humanas, com o maquinismo mais moderno. Ento, so eles os verdadeiros inventores da subjetividade dos mutantes nos Estados Unidos. Inclusive os Burroughs, os Ginsberg, etc., participam de um devir-negro, de um devir