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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE HISTÓRIA BACHARELADO DARLAN RODRIGO SBRANA ENTRE REIS, MORUBIXABAS, PRÍNCIPES E PRINCIPAIS: CHEFES TUPINAMBÁ DO MARANHÃO E TERRAS CIRCUNVIZINHAS NO TEMPO DA ALIANÇA COM OS FRANCESES (1612 1614) São Luís - MA 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

CURSO DE HISTÓRIA BACHARELADO

DARLAN RODRIGO SBRANA

ENTRE REIS, MORUBIXABAS, PRÍNCIPES E PRINCIPAIS: CHEFES

TUPINAMBÁ DO MARANHÃO E TERRAS CIRCUNVIZINHAS NO TEMPO DA

ALIANÇA COM OS FRANCESES (1612 – 1614)

São Luís - MA

2014

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DARLAN RODRIGO SBRANA

ENTRE REIS, MORUBIXABAS, PRÍNCIPES E PRINCIPAIS: CHEFES

TUPINAMBÁ DO MARANHÃO E TERRAS CIRCUNVIZINHAS NO TEMPO DA

ALIANÇA COM OS FRANCESES (1612 – 1614)

Monografia apresentada ao Curso de História da

Universidade Federal do Maranhão, para obtenção

do grau de Bacharel em História.

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Guida Navarro

São Luís - MA

2014

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Sbrana, Darlan Rodrigo Entre reis, morubixabas, príncipes e principais: chefes tupinambá do

Maranhão e terras circunvizinhas no tempo da aliança com os franceses

(1612-1614)/ Darlan Rodrigo Sbrana. – São Luís- MA, 2014.

170 f.

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Guida Navarro Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Maranhão, Curso de História, 2014.

1. Índios tupinambá - Maranhão 2. Maranhão Colonial 3. Aliança Francesa I. Título

CDU 572.95(812.1)“1612/1614”

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DARLAN RODRIGO SBRANA

ENTRE REIS, MORUBIXABAS, PRÍNCIPES E PRINCIPAIS: CHEFES

TUPINAMBÁ DO MARANHÃO E TERRAS CIRCUNVIZINHAS NO TEMPO DA

ALIANÇA COM OS FRANCESES (1612 – 1614)

Monografia apresentada ao Curso de História da

Universidade Federal do Maranhão, para

obtenção do grau de Bacharelado em História.

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Guida Navarro

Aprovada em __/__/__

BANCA EXAMINADORA

Prof. Alexandre Guida Navarro

Doutor em Arqueologia

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

Profa. Marize Helena de Campos

Doutora em História

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

Profa. Antonia da Silva Mota

Doutora em História

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

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Às comunidades da Zona Rural II de São Luís do

Maranhão que, do século XVII até hoje, são espaços de

resistência ao sistema agroexportador colonial

implantado no Brasil.

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AGRADECIMENTOS

Minha presença no Maranhão e no curso de História dependeu de muito mais amigos do que os

nomes que este espaço permite referenciar. Por isso, deixo meus sinceros agradecimentos a

todos aqueles que de algum modo contribuíram para a realização desse trabalho.

Agradeço, primeiramente, ao sujeito anônimo que chegou às quatro da manhã em frente à sede

da polícia de emigração de Faro, Algarve (Portugal), e em seus gritos de desespero (havia

acabado de perder a mãe, como depois nos contou), me fez perceber que após quatro anos e

meio trabalhando na condição de imigrante ilegal, eu deveria recusar a legalização que

finalmente me concediam e retornar ao Brasil o mais rápido possível, o que foi feito pouco

tempo depois.

Aos amigos Fábio, Leandro, Magué, Hugo e Flor, brasileiros que durante aqueles anos nunca

negaram ajuda a desconhecidos em país estranho.

Ao meu primo Felipe, minha tia Márcia e meu tio Antônio por terem ajudado o parente do

interior a recomeçar a vida em São Paulo depois de tantos anos fora. Ao meu tio, agradeço

também pelas orientações e indicações de leituras.

Aos meus colegas e professores do curso de História – Licenciatura da Uninove (SP), os quais

tive que deixar no meio da jornada quando resolvi concorrer à segunda chamada do SISU para

o curso de História – Bacharelado da Universidade Federal do Maranhão, em 2010. Era o início

da primeira geração do ENEM. Meu ingresso na universidade pública, depois de longos anos

inserido nas fileiras do trabalho braçal, deveu-se a décadas de lutas dos movimentos sociais,

transformadas posteriormente em ações do Governo Federal. Mas minha permanência

dependeu de toda sorte de ajuda que se pode imaginar em relação a quem muda de estado, de

uma hora para outra, sem possuir meios que lhe assegurem a permanência.

À dona Dulce, funcionária terceirizada do CCH, que, quando cheguei em São Luís, ofereceu-

me as primeiras informações, o primeiro cafezinho e indicou o lugar onde eu poderia tomar

meu primeiro banho depois de cansativa viagem. Agradeço também ao seu Ribamar, um dos

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melhores trabalhadores que já conheci, e que vive a UFMA mais do que muitos estudantes e

professores.

À Deise Nângela, que ao ver um estranho sentado em uma mala no centro do CCH, foi perguntar

o que fazia ali. Ao saber da minha situação, acolheu-me na casa em que morava com “tia Ana”

e o filho, onde fiquei por quatro dias até que Deise conseguiu que me abrigassem na Residência

Universitária (REUFMA).

Sou infinitamente grato aos moradores da REUFMA, residência estudantil da Universidade

Federal do Maranhão, que mesmo com a falta de espaço e de estrutura concordaram em me dar

acolhimento, dividindo o espaço e a alimentação comigo, até que depois de quatro meses fui

finalmente efetivado como morador pela UFMA. Não fosse a ajuda daqueles estudantes, os

meses de espera me teriam feito retornar a São Paulo. Tenho orgulho de afirmar que participei

assiduamente das lutas estudantis que aqueles moradores vieram travando desde 2010,

iniciando com uma ocupação da reitoria, até os 10 dias de acorrentamentos em greve de fome

de Josemiro, Daniel e Rômulo (aos quais também sou muito grato) que culminaram com a

devolução do prédio construído para ser uma residência estudantil no campus, mas que tivera a

finalidade alterada pela atual gestão. Agradeço especialmente ao Josemiro, ao Eraldo e aos

companheiros Erinaldo Nunes (Poeta Socó) e Sandro Miranda, não só pela amizade de sempre,

mas porque quando adoeci e quase tive que abandonar o curso e o Maranhão, eles me ajudaram

com apoio financeiro, médico, psicológico e moral. Também agradeço ao Bob, que me acolheu

na residência, ao Antônio Marcos e ao Eugênio, que me defenderam mesmo sem me conhecer,

ao Aramis por ter me cedido espaço no quarto, ao Raynere e ao Elisvan que exigiram, cada qual

ao seu modo, que a UFMA me oficializasse como morador e liberasse minha carteira do

restaurante universitário. Agradeço ainda aos ex-moradores Aronilson, Ivo, Ivanilson,

Jefferson, Paiva e Aldinael.

A turma de 2010.1, especialmente ao meu amigo Domingos pelo companheirismo de sempre.

A todos os integrantes do Grupo de Estudos: Desenvolvimento Modernidade e Meio Ambiente

(GEDMMA). Um grupo de estudos que, em 2011, devido a terríveis erros da administração, foi

enquistado no corredor de História, fragmentando as turmas de graduação, mas que sempre

deixou as portas abertas aos estudantes de História. Fui bolsista do GEDMMA durante um ano

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e meio, tempo em que pude conhecer a Zona Rural II de São Luís e os espaços que ainda

guardam muitas reminiscências de ocupações não capitalistas, sejam indígenas, sejam

africanas. Esse grupo de pesquisa me ajudou a lidar com ferramentas metodológicas que, sem

elas, esse trabalho monográfico não seria o que é. Sou infinitamente grato ao Horácio e à

Madian, que juntamente com os moradores da residência estudantil, foram exigir da UFMA

que me garantissem o atendimento médico quando necessitei. Agradeço especialmente ao Bartô

– síntese desse grupo de estudos – que nunca separou a crítica da atuação política, e ao Horácio,

por me ensinar que “revolta sistematizada” também vira Ciência.

Ao grupo de estudos Família e Poder no Maranhão Colonial. À professora Antonia Mota, não

só pela orientação que nunca me negou, mas também pela ajuda e amizade que sempre

concedeu tanto a mim quanto à minha companheira Tayanná, financiando trabalhos e viagem

para seminário acadêmico; dividindo espaço em minicurso; emprestando e oferecendo livros,

sem nunca nos dizer um “não”. Agradeço também ao João Otavio, pela amizade e força de

sempre, pela perspicácia da crítica e pela forma eficiente como sempre revelou seu

conhecimento.

Aos integrantes do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Maranhão (LARQ),

pelas portas abertas que deixaram para que um estudante de História pudesse ajudar e ser

ajudado a partir do diálogo com a Arqueologia. Agradeço ao Helder, museólogo, pelo

companheirismo, pela cordialidade que sempre cultivou naquele espaço, e pelo apoio dado ao

professor Alexandre Navarro na organização do Laboratório, permitindo melhor orientação e

desenvolvimento de nossos trabalhos. Agradeço à Cássia, Karen, Thalisson, Flaviomiro, Tayse

e Helder pela ajuda oferecida nas pesquisas, permitindo que nossos trabalhos pudessem ser

sempre algo coletivo. Agradeço ao professor Alexandre Navarro pela luta descomunal que

empreendeu para criar esse espaço destinado ao estudo dos povos que habitavam o Maranhão

antes da chegada dos europeus.

A todos os professores que fizeram parte da minha graduação. Fiz o possível para tirar deles o

máximo de conhecimento que pude. Flávio Soares, Acildo Leite, Carlão, Evaristo, Rafael

Gaspar, Manuel de Barros (Manuelzinho), João Batista, Marize, Antonia, Regina Faria,

Alexandre Navarro, Maria Isabel, Emanuel, Marcelo, Maria da Glória, Josenildo, Reinaldo e

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Wagner Cabral. Devo ao compromisso desses professores a maior parte dos meus

conhecimentos em História.

Agradeço ao professor Flávio Soares. “Profundidade” é a única palavra que encontro para

resumi-lo. Nunca conheci alguém que mergulhasse tão fundo em temas nos quais outros

perdem-se na superficialidade.

Ao professor Marcelo pela amizade, confiança e apoio que me foi oferecido quando a minha

saúde fraquejou.

À professora Marize, por ter me ajudado nos momentos difíceis em que quase fui forçado a

deixar o Maranhão devido aos já referidos problemas. Essa professora também ajudou

sobremaneira dois companheiros de turma – Domingos e Tayanná – que estavam decididos a

abandonar o curso. Não fosse por ela, pelo menos três estudantes da turma 2010.1 de História

teriam deixado a graduação. A professora Marize orientou meus primeiros trabalhos,

ensinando, corrigindo e até fazendo os primeiros resumos para seminários acadêmicos. Minha

produção acadêmica dependeu muito e continua dependendo de suas considerações. Atrasei a

conclusão do curso e agora adianto, sendo um dos motivos, talvez o principal, vê-la compondo

a banca.

E sou também infinitamente grato à professora Regina, não só pelo companheirismo e

orientação oferecida em minha vida acadêmica, não só pela preocupação que reservou ao “ex-

aluno” em momentos difíceis (Tayanná dizia que era a pessoa que mais a procurava para saber

informações minhas, nos trinta dias que passei no interior de São Paulo em tratamento de

saúde), não só pela erudição que sempre lhe acompanhou, mas pelo trabalho desempenhado

para a manutenção do curso de História. Os livros, as monografias e todo antigo Núcleo de

Memória Histórica Mario Meireles jaziam entulhados em três banheiros do Centro de Ciências

Humanas (CCH) dessa universidade. E graças, principalmente, ao trabalho dessa professora, a

monografia que agora redijo, ficará em local mais apropriado. Ter participado, juntamente com

Tayanná, Mayra e Regina, dessa “estiva intelectual” (como a professora chamava), para mim,

é mais gratificante e muito mais importante do que a conclusão do meu próprio trabalho.

Salvamos, pode-se dizer, trabalhos de Ribamar Caldeira, Flávio Soares, Antonia Mota, Regina

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Faria, Manuelzinho, Wagner Cabral e de grande parte dos estudantes que passaram pela UFMA

entre os anos de 1989 e 2010.

Agradeço ao meu orientador, professor doutor Alexandre Guida Navarro. Sempre tive esse

professor como exemplo pela capacidade de externar um pensamento, pela maneira

incrivelmente didática com que escreve textos e ministra aulas. Alexandre Navarro também me

deu enorme força nos momentos difíceis. Ao saber de meus problemas, dos quais ainda me

recuperava, transformou meu projeto de monografia em plano de estudo de iniciação científica,

mantendo-me mais abrigado do alto custo de vida de São Luís e proporcionando que eu

permanecesse inserido à pesquisa científica. O próprio tema do meu trabalho foi sugerido e

construído juntamente com esse professor. Alexandre Navarro, juntamente com Marize e

Regina, são os professores que mais vi defendendo a Instituição Pública, isso em um momento

em que vira senso comum a argumentação de que “tudo que é público não presta”.

Agradeço à minha companheira Tayanná pelo caminho que sempre trilhamos juntos. Longa

caminhada, abraçados ou de mãos dadas, ela sabe, já precisou fazer-se até de muleta nos dias

em que o simples caminhar me era difícil. Os agradecimentos dados demonstram os duros e

incertos caminhos que fiz para chegar até aqui. Ela esteve sempre ao meu lado. Agradeço de

coração. Tenho que agradecer a Tayanná, ainda, por ter parado seus estudos para corrigir estas

cento e setenta e poucas páginas de texto. Tenho certeza que não foi fácil, mas também tenho

certeza que ela teria feito até mais.

Agradeço aos amigos Rodrigo Cella, Joiner Santiago Ornelas, Giovanni Barbosa e Samuel de

Jesus.

Agradeço aos meus irmãos Christian Sbrana e Alisson Fabiano Sbrana.

E agradeço, por fim, principalmente ao meu pai, José Mauro Sbrana, e a minha mãe, Marilena

de Brito Sbrana. Eles sabem que saí de Araçatuba, interior paulista, depois de não ter

conseguido ingressar no curso de História na Universidade Estadual de São Paulo. Rodei por

infinitos lugares até realizar esse objetivo – esse sonho – aqui no Maranhão. Nessa difícil

caminhada a distância entre nós era encurtada pelo apoio afetivo, financeiro, médico,

psicológico e moral que nunca deixaram de me conceder. O esforço que empreendi ao longo

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do curso não foi apenas pelo fato de ver o dinheiro público e a política pública resgatando para

o “ensino superior” alguém que já estava impedido – sejam por escolhas ou pela falta delas –

de realizar esse sonho, mas também para agradecer a um pai e uma mãe que nunca deixaram de

acreditar no filho. Se tive dificuldades de aprender a “obedecer”, aprendi com eles uma lição

mais honrosa: não me corromper.

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RESUMO

As informações a respeito dos chefes tupinambá, quando observamos de maneira geral o

período que vai desde a chegada dos primeiros navegadores europeus até os estudos

contemporâneos que tratam do tema, revelaram-se sempre um problema cujas soluções – do

“sem fé, sem lei, sem rei”, de Pero de Magalhães Gandavo (2008), aos “monarcas tupinambá”

de André Thevet (1944) – foram as mais diversas. O presente trabalho monográfico apoia-se

em autores do campo da História, da Sociologia, da Antropologia, da Arqueologia e da Filosofia

e tem como objetivo fornecer elementos acerca dos chefes tupinambá que viviam no Maranhão

no tempo da aliança com os franceses. Para tanto, serão apresentadas, a partir das crônicas de

Claude d’Abbeville (2008) e Yves d’Évreux (2007), as características dos chefes tupinambá, as

relações sociais que possibilitavam a reprodução da condição de chefia ao longo do tempo, bem

como as tensões provocadas nessas mesmas relações a partir do contato com os europeus. Como

método, realizamos análise etnohistórica das referidas obras, levantamento de registros escritos

e cartográficos para o cruzamento de dados e revisão bibliográfica de autores como André Prous

(1993; 2006), Florestan Fernandes (1989; 2006), Pierre Clastres (2011; 2013), Carlos Fausto

(1992; 2010) e Renato Sztutman (2012).

Palavras-Chave: Chefes tupinambá; Maranhão Colonial; Claude d’Abbeville; Yves d’Évreux

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ABSTRACT

The information about the tupinambá chiefs, when we observe in general the period from the

arrival of the first European explorers to contemporary studies addressing this issue, have

always proved a problem whose solutions - the "without faith, without law, without a king”, of

Pero de Magalhães Gandavo (2008) and the "tupinambá monarchs" of André Thevet (1944) -

were the most diverse. This monograph draws on authors of History, Sociology, Anthropology,

Archeology, and Philosophy and aims to provide information about the tupinambá chiefs who

lived in Maranhão in time of the French Alliance. To do so, will be presented, from the

chronicles of Claude d'Abbeville (2008) and Yves d'Évreux (2007), the characteristics of

tupinambá chiefs, the social relations that allowed the reproduction of the leading condition

over time and as tensions caused in those relationships from contact with Europeans. As a

method, we conducted ethnographic analysis of these works, lifting written and cartographic

records for passing data and literature review of authors such as André Prous (1993; 2006),

Florestan Fernandes (1989; 2006), Pierre Clastres (2011; 2013) Carlos Fausto (1992; 2010) and

Renato Sztutman (2012).

Key-words: Tupinambá chiefs; Colonial Maranhão; Claude d’Abbeville; Yves d’Évreux.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Diagrama 1 – Atuação da censura em Portugal e na França .................................................... 49

Diagrama 2 – Embaixadas realizadas pelos franceses na Ilha Grande do Maranhão, em 1612

.................................................................................................................................................. 60

Diagrama 3 – Tempos históricos perceptíveis nas obras de d’Abbeville e d’Évreux .............. 68

Diagrama 4 – Cronologia: da formação do “mundo cheio” à destruição do “mundo cheio”... 72

Diagrama 5 – Escala de poder conforme o gênero e a idade dos tupinambá ......................... 119

Diagrama 6 – Características dos chefes tupinambá do Maranhão e terras circunvizinhas ... 135

Figura 1 – Frontispício da obra de Claude d’Abbeville (1614) ................................................ 37

Figura 2 – Filha Primeira da Igreja protegendo os tupinambá debaixo de seu manto ............. 38

Figura 3 – De antropófagos a cristãos ..................................................................................... 38

Figura 4 – Tupinambá que morreram na França antes do cerimonial de batismo ................... 40

Figura 5 – Tupinambá batizados na França ............................................................................. 40

Figura 6 – Levantamento da cruz ............................................................................................ 42

Mapa 1 – Território dos tupinambá do Maranhão e terras circunvizinhas .............................. 52

Mapa 2 – Seleção feita a partir de mapa de João Teixeira Albernaz em que constam as aldeias

da Ilha do Maranhão, em 1640 ................................................................................................. 53

Mapa 3 – Seleção feita a partir de mapa de João Teixeira Albernaz em que constam as aldeias

da Ilha do Maranhão, em 1627 ................................................................................................. 54

Mapa 4 – Reprodução de João Teixeira Albernaz de mapa elaborado em torno de 1613 ....... 54

Mapa 5 – Localização das aldeias tupinambá de Upaon-Açu ................................................. 62

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Principais aldeias e chefes de Tapuitapera a partir da narrativa de Claude

d’Abbeville ......................................................................................................................... 55

Tabela 2 – Principais aldeias e chefes de Cumã a partir da narrativa de Claude d’Abbeville

............................................................................................................................................. 56

Tabela 3 – As aldeias e os chefes da ilha do Maranhão a partir das obras de Claude

d’Abbeville e Yves d’Évreux ............................................................................................. 57

Tabela 4 – Localização das aldeias da Ilha do Maranhão de acordo com a toponímia atual

............................................................................................................................................. 63

Tabela 5 – Homem velho .................................................................................................. 102

Tabela 6 – Dotes oratórios ................................................................................................ 105

Tabela 7 – Pluralidade de mulheres .................................................................................. 106

Tabela 8 – Guerreiro experiente ....................................................................................... 108

Tabela 9 – Modelo exemplar ............................................................................................ 109

Tabela 10 – Vários nomes ................................................................................................. 111

Tabela 11 – Muitos escravos ............................................................................................. 113

Tabela 12 – Bens de prestígio ........................................................................................... 116

Tabela 13 – Demonstrativos de hierarquia ....................................................................... 118

Tabela 14 – Graus de idade entre os tupinambá a partir da obra de Yves d’Évreux ......... 123

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: O PROBLEMA ............................................................................................ 18

1 QUESTÕES PRELIMINARES: AS FONTES, OS RECORTES E O MÉTODO ............... 28

1.1 COMENTÁRIOS A RESPEITO DAS NARRATIVAS .................................................... 28

1.1.1 Ponto de partida: um momento de tensão ........................................................................ 29

1.1.2 Claude d’Abbeville e as tempestades: narrativa como um herói freudiano .................... 33

1.1.3 Ilustrações em Claude d´Abbeville: a propaganda e o discurso harmônico .................... 36

1.1.4 Do “não dito” ao “não circulado”: censurando d’Évreux................................................ 44

1.2 O ESPAÇO FÍSICO ........................................................................................................... 51

1.4 OS TEMPOS ...................................................................................................................... 66

1.5 OS HISTORIADORES ...................................................................................................... 69

1.6 O MÉTODO ....................................................................................................................... 75

2 CHEFES TUPINAMBÁ E SUAS REPRESENTAÇÕES .................................................... 82

2.1 PRIMEIROS CRONISTAS: ONDE ESTÁ O CHEFE? .................................................... 82

2.2 CHEFES TUPINAMBÁ PARA CLAUDE D’ABBEVILLE ............................................ 88

2.3 CHEFES TUPINAMBÁ PARA YVES D’ÉVREUX ........................................................ 90

2.4 CHEFES TUPINAMBÁ EM PESQUISAS INTERDISCIPLINARES ............................. 93

3 TENSÃO NO MUNDO TUPINAMBÁ: CARACTERÍSTICAS DOS CHEFES, RELAÇÕES

SOCIAIS E CONTRADIÇÕES NO TEMPO DO CONTATO. ............................................ 100

3.1 CARACTERÍSTICAS DOS CHEFES TUPINAMBÁ A PARTIR DAS NARRATIVAS DE

CLAUDE D’ABBEVILLE E YVES D’ÉVREUX ................................................................ 100

3.1.1 Thuyuaë: Homem Velho ................................................................................................ 101

3.1.2 Cherecoacatour: oratória, gestos e objetos que acompanham a fala ............................ 102

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3.1.3 Pluralidade de esposas ................................................................................................... 105

3.1.4 Tétantou: o guerreiro experiente ................................................................................... 107

3.1.5 Modelo Exemplar .......................................................................................................... 108

3.1.6 Vários Nomes ................................................................................................................ 109

3.1.7 Muitos escravos ............................................................................................................. 112

3.1.8 Bens de prestígio, de condição social e divisão etária ................................................... 113

3.1.9 Demonstrativos de hierarquia ........................................................................................ 116

3.2 AS RELAÇÕES SOCIAIS ............................................................................................... 118

3.3 ENTRA EM CENA O EUROPEU: TENSÃO NO MUNDO TUPINAMBÁ. ................ 125

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 135

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 143

APÊNDICES .......................................................................................................................... 152

APÊNDICE 1 ......................................................................................................................... 152

Apêndice 2 .............................................................................................................................. 170

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INTRODUÇÃO: O PROBLEMA

A cena é recorrente1. Um velho posiciona-se no centro da aldeia, segura um cachimbo

cheio de petun2 e solta algumas baforadas. Em seguida, em gestos fortes e compassados,

distribui palmadas nas coxas e no peito, ao mesmo tempo em que bate ritmicamente os pés no

chão. No momento seguinte, profere palavras de ordem – “ché, ché, ché aua-etê” 3. Concluído

esse início gestual, principia um discurso à vista de todos.

A descrição do personagem é importante. Trata-se de um indivíduo do gênero

masculino e de idade avançada. O cachimbo também tem o seu papel: é um sinal do prestígio

de quem o carrega naquele momento. E o discurso no centro da aldeia assistido por todos, assim

como o gestual que o antecede, não deixam dúvidas: trata-se de um “chefe tupinambá”, objeto

de estudo da presente pesquisa.

As informações a respeito dos chefes tupi que, entre os séculos XVI e XVII, ocupavam

a costa do território que hoje compreende o Brasil, quando observamos de maneira geral o

período que vai desde a chegada dos primeiros conquistadores europeus na então Terra ou Ilha

de Santa Cruz4 até os estudos contemporâneos de pesquisadores que se debruçam sobre o tema,

revelaram-se, sempre, um problema cujas soluções, como veremos, foram as mais diversas.

Ao tratar dos tupinambá, o termo “chefe” encontra-se, em algumas ocasiões, tão

destituído de poder, que chega ao ponto de tornar-se nulo. Assim, Japiaçu5, maior morubixaba6

1 Para orientar a compreensão do leitor, fazem-se necessárias algumas informações a respeito do estilo textual da

presente monografia. Ora nos aproximaremos mais dos indivíduos e da história narrativa, em geral nos primeiros

parágrafos de determinados tópicos, ora nos aproximaremos mais das coletividades e da história analítica. No

primeiro caso, o termo tupinambá poderá vir no plural, as referências serão citadas em notas de rodapé e a narrativa

estará no tempo presente. No segundo caso, o termo tupinambá virá sempre no singular, de acordo com a

“Convenção para grafia de nomes indígenas” realizada no Rio de Janeiro pela Associação Brasileira de

Antropologia (ABA) e publicada na Revista de Antropologia (Vol. 2. Nº 2. São Paulo, 1954: pp. 150-152), e as

referências virão no corpo do texto. Sobre o debate a respeito da “história narrativa” e “história analítica”, José

Carlos Reis (2004: 134-140). 2 Tabaco. 3 “Eu, eu, eu sou poderoso e valente” (ÉVREUX, 1929; 2007). 4 Na Carta de Pero Vaz de Caminha (CASTRO, 2010), escrita em 1500, temos as duas designações. Em Pero de

Magalhães Gandavo (2008), a “província de Santa Cruz” já era considerada “terra”. 5 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 5. Chefe tupinambá de Juniparã, responsável pela aliança com os franceses.

Japiaçu aparece nas narrativas de Claude d’Abbeville (2008), Yves d’Évreux (2008) e de Diogo de Campos

Moreno (2011). 6 Termo tupi que significa chefe, principal.

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de Upaon-Açu7, mesmo apoiado pela maioria em uma assembleia8, tem a sua vontade anulada,

bastando uma única fala em contrário, argumenta o padre Claude d’Abbeville (2008: 315).

Mas em outras ocasiões acontece o inverso e um chefe é representado com tanto poder

quanto um rei europeu do período absolutista. Assim, o mesmo Japiaçu aparece provido de

tamanha autoridade e poder “que é capaz de comover cinquenta mil almas da sua nação e

aproximá-las do lado para o qual se incline, e isso sem dinheiro, sem soldo, sem recompensa

ou salário”, garante o padre Yves d’Évreux (2007: 95). Essas situações contraditórias que levam

a um mesmo chefe ser considerado desprovido de poder e depois ser comparado a um rei

europeu, dão dimensão do problema chamado “chefes tupinambá”.

Problema que também pode ser verificado ao mencionar os termos utilizados pelos

europeus para designar os chefes. Nas narrativas que nos servem de base para a pesquisa são

utilizados “rei”, “general”, “príncipe”, “soberano”, “capitão”, “maioral”, “chefe” e os mais

corriqueiros “morubixaba” – palavra tupi aportuguesada – e “principal”. Termos esses que

significam, no mais das vezes, “aquele que vai à frente dos demais”, “aquele que fala aos

demais”, “aquele que é exemplo para os demais”.

Entretanto, se para designar os chefes sobram termos, para qualificá-los, faltam. Todos

os cronistas que entraram em contato com os tupinambá9 são categóricos em afirmar que nas

aldeias poderiam ter mais de um chefe, havendo o principal da família, o principal da cabana,

os principais da aldeia e o principal da província10. Porém todos são designados pelos mesmos

termos genéricos: chefe, principal, morubixaba.

As dificuldades impostas pelos termos e pelos fenômenos que eles pretendem

representar, resultam de outras, mais gerais, observadas a partir da própria escrita do

colonizador. Ávidos por adquirir terra, ouro, escravos e, no caso dos clérigos, almas para a

“santa fé”, os cronistas têm a escrita enviesada pelos interesses atinentes ao “projeto colonial”

7 Atual São Luís, Maranhão. 8 Tratava-se de uma reunião no centro da aldeia na qual os chefes e anciãos debatiam assuntos públicos de

interesses regionais, como a guerra, as alianças e o comércio, e de interesses locais, como o novo local de

construção de determinada aldeia. 9 Cita-se Hans Staden (2009), Jean de Léry (1941), André Thevet (1944), Gabriel Soares de Souza (1987), Fernão

Cardim (1980), Frei Vicente do Salvador (1982), Claude d’Abbeville (2008) e Yves d’Évreux (2007). 10 Termo utilizado pelos cronistas para designar um conjunto de grupos locais aliados de determinada região. Como

exemplos temos Ilha Grande, Mearim, Cumã e Tapuitapera.

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(OBERMEIER, 2005; DAHER, 2012; SZTUTMAN, 2012). Pode-se dizer que esse era o sol

que iluminava o discurso dos conquistadores.

Acrescenta-se que, de maneira geral, a própria cosmovisão dos europeus guiava a sua

escrita, e por isso aparece refletida nas representações a respeito dos chefes. Para quem advinha

de uma região na qual o Absolutismo se consolidava, onde para cada povo deveria haver um

único rei, causava estranheza o fato de que entre os tupinambá, para cada aldeia, podia haver

dois, três e até quatro chefes, sendo que estes, diferente do que se verificava entre os europeus,

não apresentavam autoridade cristalizada e tampouco transmitiam seu status

hereditariamente11.

E mais. Não bastasse uma unidade com vários centros, um chefe podia ter vários

nomes, ou – para nos aproximar mais da lógica tupinambá – poderia conter em si mesmo vários

indivíduos12. Assim, Corá-Uaçu, um dos quatro principais de Eussauap13, também poderia ser

chamado de Solá-Uaçu ou de Maari-Uaçu14 (ABBEVILLE, 2008: 192). Como se observa, para

garantir a representação de um chefe, os europeus, em muitas ocasiões, não podiam confiar nem

na segurança de seus nomes.

Mas do que estranheza, tais fatores faziam com que os cronistas se encontrassem

impossibilitados de descrever certas relações sociais, a não ser de acordo com seus próprios

signos, impondo um verdadeiro cipoal a ser desbastado por quem se envereda pelos caminhos

referentes ao problema chamado “chefe tupinambá”15.

Diante do exposto, faz-se necessário acrescentar que ao invés de limitadoras, tais

problemáticas enriquecem os estudos sobre o tema. No presente trabalho, partimos das

11 Autores como André Prous (1993; 2006), consideram que havia transmissão de status entre as famílias de chefes.

Outros, como Carlos Fausto (1992; 2010) e Renato Sztutman (2012), argumentam que a transmissão dependia de

outras questões mais importantes do que o grau de parentesco em relação a um chefe morto. A leitura das obras

de Claude d’Abbeville (2008) e Yves d´Évreux (2007) parece corroborar com a segunda linha de pensamento. 12 A magnificação (SZTUTMAN, 2012), ou o carisma (FERNANDES, 1989; 2006), ou o prestígio (ÉVREUX,

2007; ABBEVILLE, 2008) necessário para alcançar a condição de chefe tupinambá dependia, em grande medida,

da quantidade de crânios esfacelados no campo de batalha ou nos rituais antropofágicos. O esfacelamento de crânio

permitia, entre os tupinambá, a aquisição de novos nomes (CARDIN, 1980; SALVADOR, 1982; SOARES DE

SOUZA, 1987; ÉVREUX, 2007; ABBEVILLE, 2008; STADEN, 2009). 13 Segunda aldeia mais importante da Ilha Grande do Maranhão (ABEVILLE, 2008) também chamada de Migão

Vile e Uçaguaba. Atual Vinhais. 14 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 93. 15 Entre os autores que possibilitam trabalhar com as narrativas de maneira a compreender os filtros que existem

por trás do narrador, cita-se Michel de Certeau (1982), Eni Puccinelli Orlandi (2008) e Andrea Daher (2007; 2012).

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seguintes perguntas: Quem eram os chefes tupinambá? Quais relações sociais permitiam a

reprodução da condição de chefe ao longo do processo temporal? Quais as tensões provocadas

nessas relações sociais a partir do contato com os europeus?

Essas perguntas conduziram a nossa pesquisa, e seus resultados partem do pressuposto

que iluminando os chefes, podemos chegar à sociedade tupinambá e, mais genericamente,

podemos fornecer informações acerca da sociedade maranhense no início do processo de sua

formação. A seguir, abordaremos questões relacionadas ao papel a ser cumprido pelos estudos

referentes aos tupinambá, expondo ainda, uma visão geral das partes que compõem esse

trabalho.

O primeiro e mais fundamental fator a ser exposto em relação aos estudos tratam dos

tupinambá – e de maneira geral dos estudos referentes aos “povos indígenas”16 – quando

partimos do campo da História e, mais especificamente, da história do Maranhão Colonial, é

que tais estudos cumprem uma dupla função. A primeira é relativa ao peso da novidade. Não

que esses estudos faltem na historiografia maranhense. Eles existem17. O problema está na

senhora descontinuidade. É ela que nos dá a impressão de partir sempre do zero, nos fazendo

pensar que por melhor que seja o trabalho, ainda assim, será insuficiente. É contra a

descontinuidade que se deve lutar. E o antídoto, neste caso, está no intenso diálogo com as

demais disciplinas e, fundamentalmente, no trabalho coletivo e continuado.

Nesse sentido, a monografia que o leitor tem em mãos soma-se aos esforços do

Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Maranhão (LARQ/UFMA),

coordenado pelo Prof. Dr. Alexandre Guida Navarro, e objetiva a produção de conhecimentos

acerca dos povos que habitavam estas terras antes da chegada dos europeus, e, como é o nosso

caso, a respeito do conflituoso encontro entre tupinambá e europeus no início da feitura da

sociedade maranhense.

16 A expressão “povos indígenas” além de evidenciar anacronismo (não era a expressão utilizada no período

estudado), é carregada de valores depreciativos. Porém, termos como “índios”, “silvícolas”, “autóctones” e

“nativos” também o são. Tendo isso em conta, como o termo “indígena” foi tomado de empréstimo pela chamada

“Nova História Indígena” – da qual faremos muitas referências –, aquela expressão será mantida, porém, virá

sempre entre aspas. Ressalta-se, contudo, que no Capítulo 3, no qual apresentamos nossos próprios resultados, ela

será sempre evitada. 17 Cita-se o trabalho de Olavo Correia Lima e Olir Correia Lima Aroso (1991); de José Ribamar Caldeira (sem

data); de Alírio Carvalho Cardoso (2002); de André da Silva Lima (2006); e o recém iniciado trabalho de

Alexandre Guida Navarro (2013).

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A segunda função é de ordem ideológica. O manifestado silêncio da maior parte de

nossa historiografia, deve-se, em grande medida, ao violento processo de colonização do

território maranhense. Para não assumi-lo, melhor não dizê-lo. Foram dois milhões de mortos

entre o Maranhão e o Pará, contava o Padre Antônio Vieira (1842)18. Número, acredita-se,

exagerado. Mas levando em consideração a violência efetuada por aqueles que matam sem ver,

os zeros que porventura sobraram no resultado supõem que a intenção, nesse caso, era matar a

todos. Esse silêncio, sejam nas fontes ou seja no discurso historiográfico – e não podia ser

diferente –, denuncia. Pois quase sempre vale a máxima do “quem cala consente”.

No caso da História do Maranhão e, mais especificamente de São Luís, temos duas

correntes que predominam, se não mais na historiografia, ao menos no senso comum que, volta

e meia, adquire tonos ilustrados. A primeira celebra todos os anos e com sacrifício do erário a

“fundação francesa de São Luís”. Nesse caso, o ano de 1612 é o marco fundamental. A segunda

corrente, adversária da primeira, a acusa dizendo que construir um “forte” não é e nem nunca

será fundar uma cidade. Nessa linha de pensamento, o aniversário de São Luís deveria ser

comemorado sim, mas a partir de 1614, ano da chamada “Conquista do Maranhão. Seja como

for, nos dois casos, os tupinambá, quando saem da invisibilidade, são meros coadjuvantes. É

como se dependêssemos sempre da presença alienígena de um herói fundador, seja na figura de

La Ravardière a serviço da França, ou seja na figura de Jerônimo de Albuquerque a serviço dos

povos ibéricos19.

Assim, lançar luz, não nos conquistadores europeus, mas nas representações que os

agentes da Conquista – neste caso, clérigos franceses – fizeram dos chefes tupinambá, serve

para defender que ao longo do processo histórico a cidade ganhou forma a partir das aldeias

tupinambá – seus nomes não permaneceram por acaso em bairros, vilas, lugarejos, rios e

igarapés de São Luís.

Nesse sentido, estudar o processo de formação da sociedade maranhense a partir dos

tupinambá não é, e nem pode ser, contar as almas dos supostos dois milhões de mortos – para

além do coveiro que enterra, se houver mão que exume tantos corpos, não será a do historiador

18 Informação depois repetida por João Felipe Bettendorff (2010: 82). O padre jesuíta Manoel Gomes menciona

30.000 no Pará (CARDOSO, 2001). Simão Estácio da Silveira (2001) computou 500.000 almas entre cativos e

mortos em toda região do Maranhão. Voltaremos a essa questão nas conclusões. 19 Entre os anos de 1580 e 1640, Portugal permaneceu “anexado” à Espanha.

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–, mas sim demonstrar que se alguém vai ao passado em busca de um Adão fundador, quanto

mais recua no tempo, mais encontra o rosto de um jê, de um proto-tupi, de um aruaque, ou de

um Adão tupinambá.

O trabalho está dividido em três capítulos, dos quais faremos breves considerações

para orientar o olhar do leitor.

O capítulo 1, Questões Preliminares, versa a respeito de assuntos que circundam o

tema. O seu primeiro tópico, dividido em quatro partes, trata de questões referentes às narrativas

que nos serviram de base para a pesquisa. O maior objetivo, neste caso, foi o de demonstrar as

contradições em torno da presença francesa no território tupinambá que tendiam a ser

suprimidas e silenciadas no discurso dos padres Claude d’Abbeville (2008) e Yves d’Évreux

(2007).

No segundo tópico é trabalhado o espaço físico do qual partimos, então chamado de

Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas: uma larga faixa territorial ocupada pelos tupinambá

do Maranhão, que podia perpassar os atuais estados do Ceará, Piauí, Maranhão e Pará.

E mais. Tratava-se de um território de fronteira, talvez um dos últimos e certamente o

maior espaço das terras baixas do continente americano em que o sistema agroexportador

colonial ainda não passava por processo de implantação. O espaço físico considerado aqui,

acrescenta-se, eram as últimas áreas litorâneas nas quais os tupinambá podiam habitar da

mesma maneira que vinham fazendo desde um tempo – hoje se sabe – de longa duração20.

Ainda no referido tópico, a ilha de São Luís, então chamada de Upaon-Açu, ganhou

atenção privilegiada por se tratar do espaço central da aliança entre os povos tupinambá e

franceses e, de maneira mais ampla, por se tratar do centro da questão política, econômica e

sociocultural que colocava povos tupinambá e europeus diante de projetos de ocupação

completamente distintos.

Seguindo as pistas deixadas pelos nomes tupi que ainda permanecem, bem como as

cartografias dos séculos XVII e XIX, juntamente com a análise das embaixadas que os franceses

realizaram ao redor da ilha e, de maneira geral, seguindo as narrativas de Claude d’Abbeville

20 Não se trata, especificamente, da ocupação do Maranhão pelos tupinambá, pois essa, bem estudada pelos

pesquisadores (MÉTRAUX,1950; FERNANDES, 1989; SZTUTMAN, 2012) iniciou-se entre os anos de 1560 e

1580.

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(2008), Yves d’Évreux (2007) e João Felipe Bettendorff (2010), traçamos um mapa com a

possível posição das aldeias.

A localização dessas aldeias carece ser relativizada, e de maneira alguma considerada

como pronta e exata. Afinal, fixar aldeias – seja no território, sejam nos trabalhos acadêmicos

– é algo mais próximo do mundo ocidental do que do mundo tupinambá. O posicionamento das

aldeias deve ser considerado como algo aproximativo cuja importância não está na exatidão de

seus marcos territoriais, mas sim nas relações de poder e nas sociabilidades passíveis de ser

apreendidas pelas macrorregiões onde um conjunto de aldeias estava localizado.

Acrescenta-se que por mais que algumas aldeias pudessem ter o nome associado aos

recursos naturais e especificidades locais, elas tendiam a carregar seu nome quando mudavam

de local, como são os casos de Carnaupió e Eucatu, hoje municípios de Cajapió e Icatu, ambos

situados fora da Ilha de São Luís. Assim, em nosso estudo, importou perceber as aldeias sem

limites fixos, afinal, tarefa importante dos chefes tupinambá era decidir em assembleia pública

os novos locais de ocupação. Dessa forma, aldeias próximas – por causa do parentesco ou das

relações de poder constituídas entre os habitantes – poderiam inverter seus limites, dando a

impressão, para quem olha no mapa, que uma ocupava a área que antes era da outra.

Neste mesmo capítulo, o quarto tópico é reservado a apreciações sobre o recorte

temporal. Em linha gerais, devido à determinação das fontes, consideramos os marcos de 1612

(ano da dita fundação francesa) e 1614 (ano da dita fundação portuguesa). Operamos com três

tempos que devem ser pensados como plano de fundo da pesquisa. Em primeiro lugar temos

um tempo de curta duração, chamado de tempo da narrativa. Circunscrito entre os anos de 1612

e 1614, esse marco abarca o período que Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux estiveram no

Maranhão. É desse tempo que devemos partir para posicionar o trabalho em seu contexto

histórico.

A partir do tempo da narrativa, podemos alcançar outro de média duração, chamado

aqui de tempo do contato. Iniciado em 1500, esse tempo abarca também o período da aliança

entre franceses e tupinambá, e é debaixo de suas sombras que saltam todas as contradições que

o trabalho objetivou apresentar.

E ainda pelo tempo da narrativa – se considerarmos que por trás do discurso do

colonizador ainda se pode chegar à cultura tupinambá –, também é possível perceber um tempo

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mais longo, chamado de tempo da cultura, no qual as relações sociais dos tupinambá,

consideradas aqui em toda a sua dinâmica, estavam se consolidando. É necessário ficar atento

a tais relações, bem como às práticas sociais nas quais elas se manifestavam, pois só assim se

pode perceber as contradições verificadas no tempo do contato. Dessa forma, a relação entre os

três tempos deve ser sempre levada em conta para o entendimento do presente estudo.

No quinto tópico são realizadas considerações a respeito da historiografia. O objetivo

não foi o de enumerar os trabalhos a respeito do tema “chefes tupinambá”, que são quase

inexistentes, mas sim reafirmar o porquê de se estudar as relações sociais que serviam de

manutenção da chefia tupinambá. Partimos de dois silêncios que por muito tempo

predominaram na historiografia brasileira. Tais silêncios não permitiam que se valorizasse ou

sequer considerasse as relações sociais dos tupinambá como passíveis de ser estudadas. Pior

que isso. Faziam com que os tupinambá não fossem considerados como sujeitos de sua própria

história.

Um desses silêncios que convém assinalar desde já advinha da teoria da “ocupação

recente do território”. Por trás dessa hipótese pesava a ideia de que os tupinambá eram povos

de baixa densidade demográfica e que viviam isolados sem outro contato que não fosse aquele

pautado pelas guerras antropofágicas. Por que a língua falada pelos povos tupi da costa da

América Portuguesa era só uma? A resposta era fácil: porque esses povos teriam acabado de

chegar ao litoral.

Porém, descobertas arqueológicas ocorridas a partir da década de 1970 demonstraram

que os povos tupi já haviam chegado ao litoral desde pelo menos o século II de nossa Era.

Pontuar que esses povos já estavam no litoral desde pelo menos mil anos antes da chegada dos

europeus, fez com que os pesquisadores invertessem as considerações que sustentavam a tese

da ocupação recente. Para manter o mesmo idioma por tanto tempo, é provável que se tratasse

de povos com elevada densidade demográfica e em constante contato, seja pela guerra, seja

pelo comércio.

Tais considerações foram fundamentais para a composição do método da pesquisa,

tratado no sexto tópico do primeiro capítulo. Consideramos que se os povos tupinambá já

haviam passado por um processo de etnogênese desde de um tempo comparável ao da

consolidação do Cristianismo na Europa, deve-se dar o devido valor às relações sociais que

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vinham se consolidando entre os tupinambá nesse tempo de longa duração. Não levar isso em

conta seria o mesmo que se propor a estudar o período colonial sem considerar a força que o

pensamento cristão tinha sobre os indivíduos. Assim, decidiu-se buscar as características dos

chefes tupinambá do Maranhão (observáveis a partir das crônicas dos padres franceses) para

alcançar as relações sociais que possibilitavam a sua reprodução.

Para tanto, parte do trabalho consistiu em lançar luz sobre determinadas características

dos chefes tupinambá que acompanhavam a narrativa dos padres franciscanos. O objetivo foi

estabelecer um tipo ideal de chefe – um tipo weberiano –, formulado a partir dos estudos de

Sérgio Buarque de Holanda (1975; 2000). Porém, em nosso entendimento, ao destacar tipos

ideais com a finalidade de analisar as suas diferenças, apesar dos resultados incrivelmente

didáticos, corre-se o risco de apagar outros tipos ideais e, acrescenta-se, de criar, por meio do

discurso historiográfico, distinções e afastamentos que mesmo quando ocorriam, também

apresentavam conexões e possibilitavam permanências.

Assim, em nosso estudo, pontuamos diferenças entre o imaginário tupinambá e

europeu, porém, entendendo que tais diferenças nem sempre se repeliam. No mais das vezes,

ao longo do violento processo de formação da sociedade maranhense, essas diferenças, nos

parece, também se conectaram (SUBRAHMANYAM, 1997). E nesse processo de

circularidade entre as duas culturas (GINZBURG, 2006) é possível perceber a presença de uma

cultura intermediária (FRANCO JR, 2010). A articulação dessas proposições nos permitiu

elaborar o conceito de espaço intermediário: um espaço simbólico que possibilitava a junção

de elementos semelhantes dos imaginários europeu e tupinambá.

No capítulo 2, “Chefes tupinambá e suas representações”, nos aproximamos mais do

nosso tema de estudo. Dividido em quatro tópicos, analisamos, no primeiro momento, as

práticas que os portugueses utilizaram para encontrar a figura dos chefes no início dos contatos

entre os dois povos, bem como o juízo de valor que foi se formando quando tais práticas não

alcançavam o resultado esperado. No segundo momento, partimos das obras de Claude

d’Abbeville (2008) e Yves d’Évreux (2007) para destacar as observações acerca dos chefes

tupinambá que aparecem explicitadas nas narrativas. Por fim, em um terceiro momento,

partimos da revisão bibliográfica de pesquisadores do campo da Arqueologia, da Antropologia,

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da Sociologia e da Filosofia Política para apresentar a forma como os chefes tupinambá

aparecem nesses estudos.

No capítulo 3, “Tensão no mundo tupinambá” apresentamos de fato os resultados da

pesquisa. O capítulo é dividido em três tópicos. No primeiro, destacamos as características dos

chefes tupinambá que apresentavam-se de forma implícita nas narrativas. No segundo,

apresentamos as relações sociais que possibilitavam a reprodução daquelas características. No

terceiro, discorremos sobre as tensões verificadas nas relações sociais dos tupinambá –

especialmente naquelas relativas aos chefes – a partir do contato com os europeus.

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1 QUESTÕES PRELIMINARES: AS FONTES, OS RECORTES E O MÉTODO

1.1 COMENTÁRIOS A RESPEITO DAS NARRATIVAS

As narrativas que nos servem de fontes, juntas, abarcam o espaço temporal de 1612 a

1614, e podem ser consideradas como uma continuidade (OBERMEIER, 2005; DAHER, 2007;

2012). Porém, apresentam suas diferenças. Claude d’Abbeville, ficando por volta de quatro

meses no Maranhão, estava incumbido do registro atento dos fatos. Por isso, a informação vem

aos detalhes. Os tupinambá raramente são descritos sem a companhia dos nomes que os

representam. As aldeias raramente são mencionadas sem a referência de seus chefes.

Na obra de Yves d’Évreux, o mesmo não acontece. Os nomes, excluindo os chefes

tupinambá de mais prestígio, quase nunca acompanham as descrições dos sujeitos. As aldeias

quase nunca são sequer nomeadas21. Esse cronista prefere indicar apenas a região de origem

dos tupinambá que ele descreve. Porém, seus pontos positivos aparecem onde o padre Claude

é menos perspicaz. Por um lado, os anos que d’Évreux ficou entre os tupinambá do Maranhão

o permitiram acumular conhecimento mais bem apurado a respeito dessa sociedade. E ele não

deixava de lembrar esse fato ao leitor no início de sua obra:

Amigo leitor, advirto-vos que não repetirei aqui coisas que o Reverendo Padre Claude

escreveu na sua história. Somente acrescentarei o que a experiência me deu mais do

que a ele, pois eu estive no Maranhão dois anos completos e ele apenas quatro meses

(ÉVREUX, 2007: 11).

Por outro lado, acrescenta-se que o padre Yves, ao contrário de d’Abbeville, não estava

tão comprometido com o projeto colonial francês. Em sua obra, é mais fácil visualizar os

conflitos e as contradições que a outra obra tende a harmonizar. Se na História da missão dos

padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas os tupinambá da Ilha Grande

e das demais regiões eram aliados e formavam uma confederação (ABBEVILLE, 2008: 201),

na Continuação da história das coisas memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos 1613 e

1614 o cenário é bem distinto: “Não há a menor dúvida de que, se os franceses se retiram do

21 Dentre os poucos exemplos, temos Juruparieta, aldeia de todos os diabos, não mencionada por d’Abbeville; e

Ussap: Eussauap descrita por d’Abbeville, e também chamada de Uçagaba e Migão Ville (atual Vinhais).

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Maranhão, todas as nações, antes inimigas, que aí residem promiscuamente, sob a nossa aliança,

devorar-se-ão umas às outras” (ÉVREUX, 2007: 69-70). Embora esse padre franciscano

defenda que a aliança só era mantida graças à presença francesa, o que é questionável, ficam

perceptíveis tentativas de fragmentação no ponto central da aliança, como a de Capitão22, Irmão

de Cachorro Grande – um dos principais chefes da Ilha –, que passava de aldeia em aldeia

defendendo o fim da aliança com os franceses (ÉVREUX, 2007: 33-34).

A seguir, abordaremos tais obras mais de perto. Trataremos, mais especificamente, da

contradição – silenciada pelas narrativas – em torno do território, sobre o qual franceses e

tupinambá fundavam aliança para defendê-lo da presença dos portugueses e espanhóis.

1.1.1 Ponto de partida: um momento de tensão

Estamos no ano de 1612 e um navio aparece no horizonte de Upaon-Açu. A população

da ilha se aglomera ao redor de Jeviree23 e espera ansiosa pela chegada de seus aliados, os

franceses. A expectativa é grande. Com eles virão mercadorias, ferramentas de metal, armas de

fogo e corajosos guerreiros que lhes ajudarão a enfrentar os inimigos. E ainda virão os Paí êtê24,

os padres franciscanos detentores do conhecimento que os tapuitingas25 julgam necessário para

formalizar a aliança entre os dois povos.

Alguns habitantes da ilha, animados com a chegada de seus aliados, vão ao encontro

deles em pequenas embarcações. No navio francês, agora já bem próximo da terra firme, o

entusiasmo também é grande. Aos olhos dos padres franciscanos, os tupinambás26 são como

verdadeiras pedras preciosas – talvez em estado bruto, porém, prontas para serem lapidadas, é

claro, ao melhor estilo francês27.

22 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 1. 23 Aldeia que servia de porto na Ilha Grande onde fora acertado o encontro. 24 “Profetas Verdadeiros”. 25 “Bárbaros Brancos”, no caso, os franceses. 26 Como referido anteriormente (nota 1), nos momentos em que nos aproximamos da narrativa histórica, optamos

por utilizar o termo “tupinambá” no plural. Porém, nos espaços reservados à análise histórica, o termo tupinambá

virá sempre no singular, acompanhando o discurso acadêmico. 27 “Ó França, serás enfeitada com o riquíssimo ornato da glória, tecido com tantas pedrarias e semeado com tantas

joias preciosas quantas forem as almas que tiveres conquistado para Jesus Cristo” (ABBEVILLE, 2008: 31).

“Encontram-se esses selvagens vestígios da natureza como as pedras preciosas se acham nas encostas das

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30

Essa lapidação fazia parte do “projeto colonial” que a Coroa Francesa reservava àquela

imensa quantidade de terra e de gentes ainda livres do sistema agroexportador e escravista

colonial28 que portugueses e espanhóis então implementavam no Novo Mundo29. O processo de

transformação da “matéria bruta” em “pedra preciosa” passava, obrigatoriamente, pela

catequização dos tupinambá e o necessário apagamento dos costumes que mais os

identificavam, entre os quais, a cauinagem30, o ritual antropofágico, a poligamia, a busca da

terra sem mal31 e as guerras intestinas que praticavam entre si32.

Simbolizado pelas águas cristalinas do batismo, esse apagamento idealizado pelos

franceses evidenciava uma contradição em torno do território que agora pretendiam intitular

França Equinocial. A julgar pelas narrativas dos padres franciscanos, já era perceptível aos

tupinambá daquele período que a larga faixa territorial chamada pelos cronistas de “Ilha do

Maranhão e terras circunvizinhas” era uma das últimas, e talvez a maior área litorânea da

América ainda livre da presença dos povos ibéricos e de tudo que eles representavam. As aldeias

que se aliaram aos franceses são as mesmas que vinham se dispersando pelo litoral do

continente americano, rumando cada vez mais para o norte, no tentame de se livrar da influência

avassaladora do sistema agroexportador colonial. Os tupinambá que ficaram no caminho e

foram se inserindo no projeto, agora se uniam aos portugueses e se aproximavam do Maranhão.

Os habitantes da Ilha Grande sabiam do ponto extremo a que chegaram. À frente deles, o grande

oceano; para trás, o “mundo lusitano” e tudo aquilo que eles até então negavam; do outro lado,

montanhas. Seria um louco aquele que quisesse encontrar em seus jazigos os diamantes tão claros e brilhantes,

como quando lapidados e engastados num anel. Provém esta diferença de se acharem tão ricas pedras envolvidas

de jaça sem mostrar o seu valor, de tal sorte que muitos passam e tornam a passar por cima delas, ignorando-as,

sem recolhê-las” (ÉVREUX, 2007: 80). 28 O entendimento acerca do chamamos de sistema agroexportador e escravista colonial advém das obras de Caio

Prado Júnior (1957; 2008), Fernando A. Novaes (1979) e de Jacob Gorender (1980). 29 O termo foi forjado a partir das cartas de Américo Vespúcio e era mencionado para fazer oposição ao que se

considerava Velho Mundo (Europa, África e Ásia). 30 Cauim era uma bebida fermentada que entre os tupinambá do Maranhão era feita de caju, mas também podia

ser feita de milho ou de mandioca. As Cauinagens descritas pelos cronistas eram festas regadas dessa bebida,

ocorridas, por exemplo, após a reunião entre chefes e anciãos ou nos rituais antropofágicos. 31 “Acreditam que suas almas, que sabem ser imortais, ao se separarem do corpo vão para além das montanhas,

onde se encontrar o antepassado, o avô, num lugar chamado Uajupiá [Guajupiá]; aí, no caso de uma vida conforme

aos bons costumes, vivem eternamente suas almas como num paraíso, saltando, cantando e divertindo-se sem

cessar” (ABBEVILLE, 2008: 340). 32 O fator de coesão social do “amar ao próximo como a ti mesmo” nos mandamentos cristãos estava demasiado

distante da lógica tupinambá da vingança, fundadora da guerra entre os tupinambá e talvez o mais forte mecanismo

de coesão social daquela sociedade (CARNEIRO DA CUNHA; VIVEIROS DE CASTRO, 1985; ALMEIDA,

2010; SZTUTMAN, 2012).

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a barreira imposta pelo rio Amazonas (ABBEVILLE, 2008: 282). Chegara o momento decisivo.

Dali em diante, era “tudo ou nada”.

É necessário ressaltar um ponto importante. Eram nas áreas litorâneas e nas

proximidades de grandes rios que os tupinambá reproduziam sua cultura desde um tempo de

longa duração33. A vida nestas áreas teria admitido um adensamento demográfico que, levando

em consideração as técnicas produtivas que então possuíam os tupinambá, ficaria inviabilizado

no interior do território, longe dos recursos naturais que havia litoral. O termo “tapuia”, aqui,

faz todo sentido. De origem tupi, tal termo era utilizado pelos tupinambá para identificar os

povos considerados “bárbaros”, muitos deles expulsos para o interior pelos próprios tupinambá.

Esta oposição entre litoral, da civilização, e interior, da barbárie, que depois seria

emprestada pelo Estado brasileiro no processo de integração nacional, guarda uma simbologia

própria dos povos americanos: a do perspectivismo ameríndio (VIVEIROS DE CASTRO,

2002). Ao contrário do que se verifica no Ocidente – principalmente no adiantar da

Modernidade –, para os povos americanos, o mundo, no início, era composto apenas de seres

humanos, porém, no processo temporal, alguns se desumanizaram, transformando-se em

animais, ou – como o é caso dos povos do interior – em tapuias. Era, acreditamos, a luta contra

essa desumanização, provocada tanto pela fragmentação e pela interiorização quanto pela

inserção no sistema agroexportador colonial, que levou os tupinambá a migrarem para o norte

do território e agora os levava a defender as últimas áreas litorâneas nas quais, segundo

acreditavam, poderiam se reproduzir socialmente.

Longe desse ambiente, esses povos seriam (e foram) obrigados a se fragmentar e

tenderiam a perder (e perderam) os traços que mais os identificavam, passando, se for possível

o neologismo, pelo processo de tapuinização do qual tanto fugiam. Assim, entende-se que a

única maneira de preservar as suas práticas e costumes era garantir a permanência no território.

E é nesse ponto que a contradição, suprimida nas narrativas por motivos óbvios, pode

ser percebida. Se o projeto colonial que os franceses ofereciam aos tupinambá em troca da

defesa do território passava pela inserção dos costumes cristãos e pelo abandono dos costumes

tradicionais, o projeto tupinambá tinha um objetivo claro que ia de encontro aos interesses dos

33 Voltaremos a esse ponto em momento posterior.

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franceses: a permanência no território era a única maneira de garantir a manutenção das práticas

e costumes que orientavam aquela sociedade desde tempos imemoráveis, mas que os franceses

agora os obrigavam a abrir mão em troca de ajudá-los a defender o território.

Frisemos novamente o ponto de tensão – nosso ponto de partida – que queremos

destacar e que tende a ser silenciado nas narrativas. A defesa do território que para os franceses

implicaria na transformação dos tupinambá em cristãos e súditos do Rei da França, para os

tupinambá era a única maneira de preservar seus costumes e práticas tradicionais, mesmo

quando, conscientemente, eles as negavam em benefício da aliança.

Mas a questão em torno do território também apresentava tensões relacionadas aos

franceses e ao mundo europeu. O território no qual agora os franceses tentavam estabelecer

uma colônia, era considerado como domínio dos portugueses e espanhóis desde o Tratado de

Tordesilhas (1494), que contava até com a aceitação do Papa. Para reivindicar a posse das terras,

então consideradas pertencentes à Espanha e Portugal, chegou um rei francês a perguntar sobre

a cláusula do testamento de Adão que teria reservado o mundo unicamente a portugueses e

espanhóis (PADRO JÚNIOR, 2008: 25).

Ademais, quando os padres franciscanos Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux

desembarcaram no Maranhão, os franceses já haviam passado pela experiência do tentame,

malfadado, de implementação de uma Colônia no Rio de Janeiro – a França Antártica. Assim,

já detinham ampla informação apanhada nos registros de Thevet e de Léry, além da tradição

oral acerca dos tupinambá que, ao adiantar dos anos, corria a partir dos portos das grandes

cidades europeias34. E esse era um ponto positivo, contrastado a outro negativo. No tempo do

insucesso da colônia no Rio de Janeiro, embora o católico Villegagnon35 tenha condenado à

morte um grupo de calvinistas, ainda não havia eclodido, na França, o conflito religioso que

34 Essa circulação de ideias deve ser compreendida nos termos formulados por Sanjay Subrahmanyam (1997),

inserindo-se no que se convencionou chamar de História Conectada. Os homens e as ideias circulavam. Muitas

informações contidas nos textos franceses vieram da tradição oral portuguesa. Um exemplo está na oração do “Pai

Nosso” em tupi apresentada por Thevet. Na oração o termo “espírito santo” vem grafado em português

(OBERMEIER, 2005). Os próprios tupinambá que entraram em contado com os franceses, vieram, em grande

parte, de Pernambuco (FERNANDES, 1989; OBERMEIER, 2005), como sugere Claude d’Abbeville (2008: 156),

portanto, de uma história de contato com os portugueses. 35 Nicolas de Villegagnon fora encarregado de fundar a França Antártica no Rio de Janeiro.

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33

tanto influenciaria a política daquele país nos anos seguintes36. Nessa nova experiência, o

projeto colonial seria proposto em uma França dividida pelas guerras religiosas. Porém, esse

cenário não deveria ser projetado no Maranhão, onde França Equinocial seria fundada,

harmoniosamente, por protestantes, como o próprio La Ravardière, e por católicos, como os

padres franciscanos Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux (OBERMEIER, 2005).

É essa contradição, em torno do território – anterior à própria ideia de criação de uma

colônia francesa no Maranhão –, que tende a ser suprimida pelas narrativas de d’Abbeville e de

d’Évreux, mas que, aqui e ali, aparece nas entrelinhas como um dos pontos – talvez o mais

importante – que unificam as duas narrativas. E é ela que deveremos ter em conta para

relativizar a harmonização do discurso de um padre d’Abbeville ou d’Évreux. Harmonização

necessária para a época, pois com a ocupação do território considerada ilegítima, precisavam

se esforçar ainda mais para angariar recursos junto à Igreja, à Coroa Francesa e aos cidadãos de

posses. Assim, os padres franciscanos franceses deveriam realizar a “nobre” missão que até

aquele momento os portugueses fracassavam: “salvar” os tupinambá para a fé cristã

(OBERMEIER, 2005; DAHER, 2012).

1.1.2 Claude d’Abbeville e as tempestades: narrativa como um herói freudiano

Como afirmado acima, os franceses deveriam realizar a nobre missão de salvar os

tupinambá. Missão heroica. E é o heroísmo que dita o tom da narrativa de d’Abbeville37. Ela

inicia e termina com a viagem oceânica, sempre acompanhada das terríveis tempestades. Estas,

não podia ser diferente, eram vistas como uma ação deliberada do Diabo. Depois de expulso

36 Sobre essa experiência no Rio de Janeiro e sua associação aos conflitos religiosos, podemos citar duas

interpretações. A de Andrea Daher (2012: 102-103), para quem, “no interior da colônia, reproduziram-se, em

miniatura, as guerras religiosas que rasgavam a França à época”. E a de Franz Obermeier (2005: 197), que,

tomando como base o relato de Anchieta segundo o qual na França Antártica havia tolerância religiosa, argumenta

que as informações podem ser verídicas, uma vez “que as guerras religiosas na França onde a oposição entre

católicos e ‘huguenots’ não fora ponto central da política interior francesa o que pode ter influenciado, também, a

vida da colônia ao menos depois da partida do chefe Villegagnon”. 37 Para a redação deste tópico foram de suma importância as aulas de Historiografia Maranhense ministradas pelo

professor Flávio Soares. Foi ele quem comparou o mito do herói freudiano ao mito da fundação de São Luís,

deixando assim ferramentas para que pudéssemos propor a narrativa de Claude d’Abbeville como representação

de um herói freudiano.

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para as terras longínquas quando a Cristandade se estendera dominadora na Europa Ocidental,

o Diabo agora se esforçava para manter seu último reino: o Mundo Tupinambá38. Assim, jogava

na viagem oceânica a última carta da manga para frear a expansão da Europa Cristã: a

tempestade.

A viagem de volta seria a mais conturbada. O mar se agita na narrativa do padre

Claude. Mal preparados para resistir à tempestade, os tripulantes, como última alternativa,

ajoelhavam-se, levantavam os olhos ao céu e cantavam ladainhas e outras orações, pedindo à

Virgem Maria que iluminasse suas angústias. Mas o Diabo zombava dos franceses, tentando

sepultar nas ondas o sucesso de suas conquistas. A luta era sobrenatural. À mercê do “elemento

revoltoso”, todos lutavam contra o terrível inimigo e ele – o Diabo – se vingava, vomitando

toda a sua raiva contra os navios franceses. No final, Deus teria permitido a vitória, e os

tripulantes chegaram à França, onde foram recebidos como heróis (ABBEVILLE, 2008: 349-

355).

A forma exaltada como o cronista narra as tormentas em alto mar está associada, em

linhas gerais, como argumenta Jean Delumeau (2009), à falta de técnicas e de meios que

possibilitassem maior segurança nas viagens oceânicas. A ausência técnica transparecia no

medo do mar, no exagero das narrativas relacionadas às tempestades e em sua associação com

o “Diabo”. Sobreviver à tempestade, nesse sentido, era o mesmo que vencer esse senhor do

Inferno.

Acrescenta-se a este sentido que as narrativas, enquanto consideravam as tempestades

como algo sobrenatural, relacionando-as como ação do Diabo, legitimavam a presença da

Igreja, representada pelos padres, nas viagens oceânicas. Presença deveras necessária, pois

eram considerados os únicos que podiam “lutar” contra tão terrível inimigo.

Seja como for, não escapa da psicologia fundamentada por Delumeau – enquanto

criticava Freud e a psicologia tradicional –, a diferenciação entre a “angústia” e o “medo”. A

primeira estaria associada ao desconhecido. O segundo, ao conhecido. Nomear as “angústias”

é tornar conhecido um “medo” e, assim, dar o primeiro passo para superá-lo. “O medo tem um

38 A formulação de que o Diabo fugira para as terras do “Novo Mundo” depois que a Cristandade se expandira

dominadora por toda Europa foi elaborada pelo Padre Acosta (DELUMEAU 2009), de quem os padres

franciscanos franceses eram leitores.

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35

objeto determinado ao qual se pode fazer frente. A angústia não o tem e é vivida como uma

espera dolorosa diante de um perigo tanto mais temível quanto menos claramente identificável”

(DELUMEAU, 2009: 33). Nessa acepção, associar as tempestades ao Diabo ajudava os homens

do tempo das grandes navegações a enfrentá-las e a vencê-las.

Além de um imaginário39 (o medo do mar e sua associação com o Diabo) que

relaciona-se à estrutura material de um período (técnicas incipientes e ainda precárias para

assegurar plenamente as viagens marítimas de longas distâncias), há algo de ficcional que

acompanha as narrativas do período e a forma exaltada como as tempestades são descritas e

situadas no corpo do texto, e isso faz da obra de Claude d’Abbeville (2008) um exemplo

privilegiado para análise.

Neste caso, readmitir Freud é necessário. A narrativa do padre Claude acompanha o

que podemos chamar de “herói freudiano”. Ao analisar o mito de Moisés a partir da psicanálise,

Sigmund Freud (1996) formula um tipo de herói, adotado como método de estudo, não só dos

indivíduos, mas também das sociedades. Todo herói teria um nascimento nobre. Depois, no

decorrer da vida, a situação se inverteria e o herói passaria por um período de grandes provações

e de misérias. Contudo, no fim, retomaria a condição de nobreza. Esse processo que vai da

origem nobre, passa por períodos de grandes provações até reconquistar a condição de nobreza

é que fundamenta o herói freudiano.

E é essa tópica que dita a narrativa de Claude d’Abbeville. Os padres franciscanos

saem da França, a “primeira filha da igreja”, vão à terra dos tupinambá, onde reinaria do Diabo,

e passam por grandes provações, para depois retornarem ao território cristão cheios de glória.

A tempestade que enfrentam no início da viagem, e da narrativa (ABBEVILLE, 2008: 42-45),

marca a passagem entre o que chamamos aqui de “origem nobre” (na Cristandade, então

governada por Deus) e o período de “provações” (no Maranhão, então governado pelo Diabo).

E a tempestade enfrentada na volta (ABBEVILLE, 2008: 549-553) serve de referência para

fixar o “retorno à condição nobre”. A entrada espetaculosa em Paris (ABBEVILLE, 2008: 355)

sela o sucesso da missão. A narrativa seria, enfim, quando observada como um todo, um típico

herói freudiano. Este efeito, produzido de maneira consciente ou não, amplificava o resultado

39 Termo utilizado por Delumeau era mentalidade.

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36

buscado na escrita do cronista, reforçando a harmonização do discurso e os tonos

propagandísticos da obra – nosso próximo ponto.

1.1.3 Ilustrações em Claude d´Abbeville: a propaganda e o discurso harmônico

A nobre e heroica missão de “salvar os tupinambá”, fazendo-os cristãos fica evidente

também nas gravuras que acompanham o original (ABBEVILLE, 1614), e isso desde o

frontispício da obra (Figura 1)40.

A personagem central, alto da ilustração, remonta uma tradição iconográfica medieval

em que “Nossa Senhora” é representada abrindo seu manto sobre os pobres para oferecer

proteção (Figura 2). No lugar da mãe de Jesus, visualizamos a igreja católica francesa, “filha

primeira da Igreja”, como vem grafado embaixo da personagem. E no lugar dos pobres do reino,

visualizamos os tupinambá, prostrados e agradecidos pela proteção à sombra do manto da

“Santa Fé” (OBERMEIER, 2005: 221).

Os tupinambá deveriam passar de “selvagens canibais” a “cristãos”, como se pode

perceber, ainda no frontispício, na diferenciação entre a cena de um ritual antropofágico e a

doutrinação realizada por padres franciscanos (Figura 3). Visualizado à esquerda, na parte

inferior da figura, o referido ritual – cena repetida à exaustão desde as ilustrações das cartas de

Américo Vespúcio – um casal de tupinambá aparece moqueando um corpo humano em uma

grelha. O homem tupinambá ajeita pedaços humanos (uma perna) para ficar mais bem assada.

Ao seu lado, a mulher experimenta um pedaço de carne. Visualizada à direita do ritual

antropofágico, na representação da doutrinação religiosa, os padres franciscanos aparecem em

um campo aberto, ao lado de um grupo de tupinambá. Um dos padres é retratado no ato do

batismo. A imagem dos habitantes do Maranhão ajoelhados aos pés dos religiosos franceses,

como quem aceita de bom grado as águas salvadoras do batismo, é flagrante.

40 Para a redação deste tópico foram de grande importância as aulas de Maranhão I ministradas pela professora

Antônia Mota, bem como a participação no Grupo de Estudos Família e Poder no Maranhão Colonial. Ainda sobre

esse tema, foi apresentado artigo no “XXVII simpósio nacional de história: conhecimento histórico e diálogo social

(ANPUH)” e minicurso no XIII Encontro Humanístico: Multiculturalismo, ambos com a orientação da referida

professora.

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Figura 1

Frontispício da obra Histoire de la mission de Claude d’Abbeville (1614)

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Figura 2

Filha Primeira da Igreja protegendo os tupinambá debaixo de seu manto. Destaque 1 do frontispício de Histoire

de la mission de Claude d’Abbeville (1614)

Figura 3

De antropófagos a cristãos. Destaque 2 do frontispício de Histoire de la mission de Claude d’Abbeville (1614)

A aceitação harmônica do batismo fica evidenciada também no discurso, quando a

“oralidade” dos tupinambá é transformada em “escrita” pelos padres franciscanos41. Tem

exatamente esse objetivo a utilização de trechos em “tupi” retirados da oralidade roubada dos

41 Seguimos aqui a diferenciação proposta por Andrea Daher (2012). Em Claude d’Abbeville (2008) fica mais

evidente o “projeto missionário”. Em Yves d’Évreux (2007) é mais evidente o “projeto colonial”, refletido, por

exemplo, na preocupação desse religioso em propagandear o Maranhão, chamando aventureiros para a empresa e

ainda oferecendo orientações de como os franceses deveriam se conduzir na viagem e no trato com os tupinambá.

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tupinambá e traduzidos para o “francês”. A passagem, sem ruídos, da oralidade “tupi” para a

“escrita francesa”, igualava-se, no discurso, à transformação, pelo batismo, de “selvagens

canibais” em “cristãos” (DAHER, 2012).

E que “harmonia agradável ao criador”, escrevia Claude d’Abbeville neste mesmo

sentido, “não mais cruéis nem bárbaros, porém dóceis e bons”. O que mais repercutia no céu,

continuava, “era a profunda humildade dessas pobres almas diante de tão grandes mudanças;

passavam de lobo a cordeiros, de inumanos a cristãos”. Tais mudanças, simbolizadas pelo

batismo são descritas de maneira tão idílica que merecem, ao menos, ser questionadas (2008:

378).

E as ilustrações, mais uma vez, harmonizam com o discurso. Franz Obermeier (2005:

221) foi bastante perspicaz ao diferenciar as gravuras da obra de Jean de Lery e as de Claude

d’Abbeville. Na obra deste padre franciscano, ao contrario daquela, as gravuras representando

os tupinambá em seu cotidiano e com seus próprios traços culturais deveriam ser evitadas.

Assim, podemos pontuar: a intenção era mostrar, não a cultura tupinambá, mas o tupinambá

aculturado.

A vida tupinambá deveria ser coisa do passado, lembrada nas ilustrações,

acrecentamos, apenas para demarcar a transformação verificada, ao menos no discurso, após se

fazerem cristãos. Nesse sentido, os tupinambá que foram à França, mas morreram antes do

ritual solene do batismo e, por isso, foram batizados in articulos mortis, aparecem representados

ainda nús, com suas penas e suas armas típicas. Seus nomes cristãos – François, Jacques e

Anthoine –, recebidos após a morte, aparecem acompanhados dos nomes tupinambá –

Carypyra42, Patuá43 e Manen44 (Figura 4).

Já os tupinambá que sobreviveram e passaram pelo ritual solene do batismo, são

representados desprovidos de qualquer vestígio de sua vida tupinambá (figura 5). No lugar de

suas armas, levam lírios – símbolo de pureza e símbolo da França. Os pés são calçados e os

corpos recebem roupas ao estilo francês. Os novos nomes também não apresentam qualquer

lembrança dos nomes tupinambá.

42 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 132. 43 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 11. 44 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 136.

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Figura 4

Tupinambá que morreram na França antes do cerimonial de batismo. Histoire de la mission de Claude

d’Abbeville (1614: 347, 355, 358)

Figura 5

Tupinambá batizados na França. Histoire de la mission de Claude d’Abbeville (1614: 361, 363, 364)

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A comparação entre os primeiros tupinambá e os que passaram pelo ritual solene do

batismo, caracterizados como cristãos e súditos da Coroa Francesa não deixa dúvidas: na escrita

dos padres franceses, depois de batizados, os tupinambá se distanciariam da “natureza” e

adquiririam “cultura”45.

Essa transformação representada pelo batismo teria um equivalente no território. O

Maranhão descrito por Claude d’Abbeville (2008) e Yves d’Évreux (2007), antes da chegada

dos franceses, era considerado morada do Diabo. Esse só seria expulso após a implantação da

Cruz. E aí também figura o carater idílico do discurso. Ao contrário da impor a fixação da cruz

como fizeram os portugueses e espanhóis, a cruz francesa seria chantada em comum acordo

entre tupinambá e franceses (Figura 6).

Na ilustração, dois tupinambá, com ajuda de franceses, eregem a cruz, enquanto

enquanto uma multidão encontra-se ajoelhada. A forma como as personagens estão arranjadas

na gravura também evidencia a tentativa de representar tupinambá e franceses como iguais.

Dispostos ao redor da cruz, um agrupamento aparece com as armas ao alto. Outros, com as

mãos postas em sinal de submissão, rezam. Ecce levabo ad gentes manum meam, et ad populus

exaltabo signum meum, diz a inscrição latina que acompanha a imagem, “Eis que levantarei a

minha mão para as nações e arvorarei o meu estandarte para alertar os povos” – um versículo

de Isaías (Cap. 49, verso 22) que também se repete na escrita de Claude d’Abbeville e simboliza

bem a imagem discursiva da Cristandade se expandindo sobre os territórios antes dominados

pelo Diabo.

45 A este respeito, ver também Alfredo Bosi (1992), Tzvétan Todorov (1983) e Michel de Certeau (1982).

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Figura 6

Levantamento da Cruz: Histoire de la mission, de Claude d’Abbeville (1614: 89)

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43

E aqui, mais uma vez, caímos na contradição acerca do território, silenciada no

discurso dos padres franciscanos, mas aparecendo, aqui e ali, sempre como um “não dito”46.

Fixar a cruz, é fixar aldeias, é enrijecer a plasticidade comum da ocupação territorial dos

tupinambá47. E mais. É subverter – como também acontece em relação ao batismo – em um

passe de mágica, a vida material e imaterial dos tupinambá em benefício de um projeto colonial,

com quem subverte a oralidade tupi na escrita francesa. E tudo isso sem que os sentimentos

coletivos – que deveriam acompanhar a simbologia da implantação da cruz – desenvolvidos, na

Europa, ao longo de um processo temporal de mais de mil anos, estivessem igualmente

encravados na alma dos povos que agora se prostravam diante da cruz48.

Os sentimentos coletivos que atuavam nas práticas sociais para manter a sociedade

francesa coesa não faziam sentido para a sociedade tupinambá. Esta, de outro modo, como

veremos posteriormente, estava fundada sob outros sentimentos coletivos que se consolidavam

desde um tempo de longa duração comparável ao processo de consolidação do Cristianismo na

Europa.

Talvez por ironia, a cruz mais importante plantada na Ilha Grande, na aldeia de

Juniparã, não fosse a objeção dos padres franceses, deveria ser retirada sob as ordens de

Japiaçu, maior morubixaba da Ilha, pois dentro de “cinco ou seis luas” a aldeia mudaria de

local, como era de costume49. Após a desaprovação dos padres, aquele chefe decide deixar a

cruz na aldeia abandonada sob a condição de que a próxima cruz seria igualmente benzida e

ficaria fixa, juntamente com a aldeia, que dali em diante, seria mantida no mesmo local

(ABBEVILLE, 2008: 128-129).

O “não dito” que escapou ao discurso é justamente que para os tupinambá a cruz

deixada na aldeia desabitada proporcionava forte contradição. Na cosmovisão dos franceses, a

cruz simbolizaria a salvação após a morte. Mas na cosmovisão dos tupinambá, as aldeias

46 “Não dito” nos termos de Michel de Certeau (1982). 47 Abordaremos esta questão posteriormente. 48 Na perspectiva consagrada por Émile Durkheim (2004), toda sociedade possui sentimentos coletivos anteriores

aos indivíduos e que exercem poder coercitivo sobre eles. Quando melindrados (crime) tais sentimentos precisam

ser restituídos (pena), do contrário haveria o risco da perda de coesão social. 49 As aldeias tupinambá migravam a cada cinco ou sei anos nos limites de sua região. Na Ilha Grande do Maranhão,

a toponímia evidencia que esses limites não eram fixos. Juniparã, Januarem, Carnaupió e Pindotube, por exemplo,

podiam alternar-se em uma mesma região, demonstrando, assim, as relações de parentesco e de poder entre os

habitantes.

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abandonadas significavam exatamente o inverso: local de morada daqueles que, depois de

desencarnados, não conseguiram chegar à “terra sem mal”, uma espécie de Paraíso tupi

(FERNANDES, 1989; ROBRAHN-GONZÁLEZ, 2003; SZTUTMAN, 2012).

1.1.4 Do “não dito” ao “não circulado”: censurando d’Évreux

A contradição em torno do território, desta vez pensada a partir do conflito europeu

concernente a quem tinha ou não legitimidade de estabelecer uma colônia no Maranhão, se

evidencia na obra de Yves d’Évreux, não apenas nos “não ditos” verificados no discurso, tão

manifestos quanto na obra de d’Abbeville, mas também a partir de outra negativa: o fato de que

depois de impressa, a obra não chegou a circular, ficando engavetada até que Ferdinand Denis

a publicasse na segunda metade do século XIX, (ÉVREUX, 1864)50. O motivo para que a obra

caísse no ostracismo está relacionado ao contexto do período. Um ano após a publicação da

obra de Claude d’Abbeville (1614) – um sucesso de circulação –, sua continuação, redigida por

Yves d’Évreux (1615), sofreria censura de mãos desconhecidas e sairia da oficina do impressor

François Huby, não para circular, mas para ficar esquecida em algum canto dos arquivos da

Coroa Francesa.

Para entender melhor o destino desse livro, convém abordar as formas de censura

verificadas nas obras que nos servem de fontes, diferenciando as práticas da censura de Portugal

(conforme estava organizada no século XVI) e da França (conforme estava estabelecida no

início do XVII)51.

Mas antes de adentrarmos nessas particularidades, faz-se necessário contextualizar o

período. Indicaremos, em linhas gerais, três características da época. Em primeiro lugar,

50 Esse tópico foi elaborado a partir de artigo apresentado no “V Encontro Estadual de História da ANPUH-MA:

Em tempos de 400 anos: comemorações, esquecimentos e contradições” sob orientação da professora Marize

Helena de Campos. Também foram importantes as aulas de Paleografia ministradas pelo professor Manuel de

Barros que trabalhou com as páginas de aprovação da obra de Gandavo, e as aulas de Moderna I ministradas pela

professora Maria Isabel que indicou como bibliografia básica grande parte das obras referenciadas no tópico. 51 Não é nossa intenção realizar um estudo comparativo entre as especificidades da censura em Portugal e na

França, o que, por certo, nos obrigaria a relativizar dados que, em nosso trabalho, propomos em suas linhas gerais,

objetivando tão somente contextualizar a censura à obra de Yves d’Évreux.

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destaca-se que a ruptura no Cristianismo ocorrida na primeira metade do século XVI, colocou

a Europa Ocidental sob o signo de duas bandeiras: a do catolicismo e a do protestantismo. Tal

desmembramento trouxe para a Igreja Católica a necessidade de reafirmar seus dogmas e

também de aumentar a vigilância sobre as ideias no seio da Cristandade. Tornava-se imperativo

que a mesma não deixasse espaço para que o Protestantismo – ou qualquer outra “heresia” que

porventura surgisse – viesse a ameaçar novamente seus domínios (GREEN, 1984: 199-221;

DELUMEAU, 1989: 161-174).

Em segundo lugar, é necessário ter em vista que esse período também foi marcado

pelo processo de formação do Estado-Nação em diversos países europeus. Além de não

contrariar a “Santa Fé Católica”, os livros também não poderiam estar em desacordo com os

desígnios do Estado. Ora, no caso de Portugal, uma das características fundamentais da

identidade lusitana, construída a partir da formação do Estado-Nação português, era exatamente

o que a distinguia e a distanciava da cultura espanhola (MATTOSO, 2001: 31-40). Mas agora,

integradas as Coroas (1580 – 1640), a reafirmação dessa característica poderia se tornar um

fator de instabilidade à nova ordem constituída.

Um dos resultados mais visíveis deste momento está na publicação do livro “Os

Lusíadas” de Camões, que na impressão de 1584 – a chamada “edição dos piscos”52 – teve

vários pontos alterados. Nas passagens que na primeira edição (1572) apareciam a expressão

“soberbos castelhanos”, seriam trocadas por expressões como “valentes castelhanos”; as

passagens que apareciam a expressão “soberbas castelhanas”, viriam agora trocadas por “hostes

castelhanas”, aqui, com prejuízo da métrica e do sentido dos versos camonianos (SBRANA;

JESUS, 2013).

Em terceiro lugar, há de se destacar ainda que com a expansão da imprensa, passou-se

a produzir um volume de livros cada vez maior, o que atingia um público cada vez mais

diversificado. Além dos “livros úteis” (de leis ou sagrados), houve uma explosão de “livros

recreativos” (história ou poesia). Estes últimos ameaçavam minar valores socioculturais

secularmente estabelecidos. Por isso, além de não poderem contrariar a santa fé católica e o

52 Essa edição da obra “Os Lusíadas” de Camões (1584) está entre os primeiros livros em língua portuguesa que

trazem notas explicativas. Em uma dessas notas, para explicar o termo “piscosa”, isto é, “abundante em peixes”,

um autor anônimo escreve: “piscosa, pela grande abundância de piscos [aves africanas] que em certa época do ano

ali costuma juntar-se”. A gafe fez a referida edição ficar conhecida como “edição dos piscos”.

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Estado, passou-se a exigir que estes livros também estivessem de acordo com os “bons

costumes” (DARNTON, 1998: 9-15).

Assim, vê-se organizar, no correr do século XVI, em todos os reinos católicos – como

França, Espanha e Portugal – principalmente a partir do Concílio de Trento, um forte aparelho

de controle à informação que circulava nos livros. A partir de então, para serem impressos,

repetimos, não poderiam contrariar os “Bons Costumes”, a “Santa Fé Católica” nem o “Estado”.

Em Portugal, esse aparelho era representado por três mesas censórias: “Censura do

Ordinário”, o “Conselho Geral do Santo Ofício da Inquisição” e o “Desembargo do Paço”, cuja

finalidade consistia em fiscalizar, aprovar e vetar as publicações. A atuação desses órgãos fica

perceptível na estrutura dos livros, nas páginas reservadas às licenças e nos alvarás que podiam

ser expedidos pelo próprio rei.

A obra “Os Lusíadas”, de Luis de Camões, impressa em 1572, apresenta, antes da

página das licenças, um alvará expedido pelo rei Dom Sebastião. Este documento tinha como

finalidade 1) conceder licença para impressão da obra, 2) determinar o tempo em que ela

poderia circular e ser impressa livremente e 3) exibir a punição para quem descumprisse suas

determinações. Acrescentava ainda que:

Antes de se imprimir53

será vista e examinada na mesa do conselho geral do Santo

Ofício da Inquisição, para com sua licença se haver de imprimir, e se o dito Luís de

Camões tiver acrescentados mais alguns cantos, também se imprimirão havendo para

isto licença do Santo Ofício, como acima é dito (CAMÕES, 1572: 2).

O Alvará, de certa forma, demonstra o tortuoso e longo processo que poderia passar

um livro que se quisesse publicar em Portugal. E comprova, ainda, a importância da Igreja no

controle sobre o que deveria ser ou não impresso.

Já na página de aprovação, na licença do Ordinário, lê-se:

Vi por mandado da Santa e geral inquisição estes dez cantos dos Lusíadas de Luís de

Camões, […] e não achei neles coisa alguma escandalosa, nem contrária à fé e bons

costumes, somente me pareceu que era necessário advertir os leitores que o Autor para

encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos Portugueses na Índia, usa de uma

ficção dos Deuses dos Gentios. […] Todavia como isto é poesia e fingimento […],

não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos Deuses na obra, conhecendo-a por

53 Utilizamos a regras da ortografia atual nas citações do Alvará expedido pelo rei Dom Sebastião e nas páginas

de aprovação da obra de Camões e de Gandavo.

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tal, e ficando sempre Salva a verdade de nossa santa fé, que todos os Deuses dos

Gentios São Demônios. [Grifos nossos] (CAMÕES, 1572: 3).

Alguns anos depois, em 1584, após a anexação de Portugal à Coroa Espanhola, o

mesmo Frei Bartolomeu Ferreira seria encarregado de emitir outra licença do Ordinário à obra

de Camões. Diz a carta de aprovação:

Vi por mandado do Ilustríssimo, e Reverendíssimo senhor Arcebispo de Lisboa,

Inquisidor geral destes Reinos, os Lusíadas de Luís de Camões, com algumas glosas,

o qual livro assim emendado como agora vai, não tem coisa contra a fé, e bons

costumes, e pode-se imprimir. […] Frei Bartolomeu Ferreira (CAMÕES, 1584: 25).

Como se pode perceber, o frei já não precisava advertir aos leitores sobre as fábulas

dos “deuses dos gentios”. Pelo contrário, “o livro assim emendado como agora vai, não tem

coisa contra a fé, e bons costumes, e pode-se imprimir”. Tais “emendas” estão entre as piores

aberrações que a censura já produziu na literatura lusitana, responsável por desfigurar um dos

maiores clássicos da língua portuguesa.

Em relação à “História da Província de Santa Cruz” de Gandavo, no período em que

foi impressa, os livros deveriam conter, após a capa, a página de aprovação, com a licença de

cada uma das três mesas citadas. A primeira licença refere-se ao Conselho do Ordinário, que

estava subordinado ao Conselho Geral da Inquisição. Assim diz:

Vi a presente obra de Pero de Magalhães, por mandado dos Senhores do Conselho

geral da Inquisição, e não tem coisa que seja contra nossa santa Fé Católica, nem os

bons costumes, antes muitas, muito para ler, hoje dez de Novembro de 1575

(GANDAVO, 1576).

Como se pode verificar, e era prática corrente em todas as licenças concedidas no

período estudado, existia uma preocupação por parte dos censores que a informação contida no

livro deveria estar de acordo com a Fé Católica e os Bons Costumes. Logo após a licença do

Ordinário, encontra-se a do Conselho Geral da Inquisição, na qual podemos ler: “Vista a

informação, pode-se imprimir, e torne o próprio com um dos impressos a esta mesa; e este

despacho se imprimirá no princípio do livro com a dita informação”. [Grifos nossos]

(GANDAVO, 1576: 2).

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A licença citada fora assinada no mesmo dia que a licença do Ordinário e como, ao

que parece, era de costume, o censor provavelmente limitou-se a ler apenas a outra aprovação,

sem observar a obra (GANDAVO, 2008: 21).

A partir do enunciado grifado, pode-se notar o rígido controle sobre a circulação da

informação. Depois de impresso o primeiro exemplar, o livro deveria retornar à mesa censória.

Em seguida, se estivesse tudo em conformidade, as demais tiragens deveriam ainda trazer nas

primeiras páginas as ditas aprovações.

Acrescenta-se que assim como os clérigos regulares deveriam ter ainda a permissão

dos superiores da Ordem a que pertenciam, o Conselho da Inquisição estava subordinado à

Mesa do Desembargo do Paço, que naquele período tinham um mesmo senhor: D. Henrique,

intitulado inquisidor-mor por D. João III, desde 1539. A aprovação do Paço viria cerca de três

meses após as outras duas, o que, em certo sentido, demonstra a rigidez do processo. Assinada

por Christovão de Matos, a licença permitia a impressão da obra, “por não ser prejudicial em

coisa alguma, antes mui conveniente para se poder ler” (GANDAVO, 1576: 2).

Em linhas gerais, a maneira como a censura estava organizada em Portugal, operando,

principalmente, na esfera relacionada à produção de informação, e mais especificamente entre

as ações do “autor” e do “impressor”, não chegando a evidenciar maiores preocupações com a

esfera da circulação dos livros54 (Diagrama 1), deve-se às especificidades do território

português. Cravado entre o Oceano Atlântico e a Espanha (onde havia um controle ainda mais

rígido sobre a circulação de ideias), Portugal não teve a necessidade de se organizar de maneira

mais aparelhada para controlar a circulação de livros em seu território, pois a informação era

filtrada antes que as obras chegassem ao público.

54 Preocupação com a circulação das informações, por certo havia, como se pode verificar nas relação dos livros

proibidos, porém, onde o aparelhamento da censura fica mais evidenciado – e os livros desse período guardam as

marcas – são nas referidas mesas censórias.

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49

Diagrama 1

Atuação da censura em Portugal e na França

Em relação à França, observa-se o oposto. Devido às especificidades de sua

localização geográfica, mesmo que a Coroa se esforçasse para barrar a informação no momento

da produção dos livros, a informação proibida poderia entrar, ilegalmente, pelas vastas

fronteiras do território. Pois por mais que a administração do setor livreiro (Direction de la

Librairie) vetasse a circulação de determinado livro, impedindo a sua impressão, a obra podia

ser impressa em outro país e entrar na França pela via do contrabando. Nesse período, surgem

dezenas de editoras junto às fronteiras francesas (DARNTON, 1998).

Por isso, a censura na França se organizou para controlar a informação no momento

de sua circulação. Destacam-se daí os “inspecteurs de la librairie” e a guilda monopólica. Os

inspetores de livros eram comandados pelo chefe da política e atuavam para impedir a

circulação de livros considerados ilegais. A guilda monopólica – corporações provinciais e a

Comunidade de Livreiros e Impressores de Paris –, detentora da maior parte dos privilégios

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reais para impressão dos livros, atuava na inspeção dos carregamentos locais (DARNTON,

1998).

A obra de d’Évreux constitui um caso distinto dos vislumbrados na França e descritos

acima. O motivo, pode-se supor, advém dos interesses contrários a formação de uma França

Equinocial em nome da aliança franco-espanhola prometida pelos casamentos da infanta Ana

d’Austria de Espanha com Luis XIII de França, e de Elisabeth de Bourbon e o infante Felipe,

futuro rei de Espanha (OBERMEIER, 2005: 200; DAHER, 2012: 103). As mãos anônimas que

censuram a obra de Yves d’Évreux, provavelmente, tinham fortes interesses por essa aliança.

No prefácio redigido por Ferninand Denis ou pela dedicatória que François de Razilly

prestou ao rei Luís XIII (ÉVREUX, 2007) podemos perceber como a obra escapou da

destruição. O mesmo Razilly, envolvido com a colonização do Maranhão, teria salvo a obra

parcialmente destruída, acusando o impressor Huby de ter recebido dinheiro para que ela não

fosse publicada. O livro, semidestruído, teria sido entregue nas mãos de Luís XIII,

permanecendo assim nos arquivos reais até o século XIX.

Porém, acrescenta-se que no correr do século XX veio a público outro exemplar da

obra, arquivado na Biblioteca Pública de Nova York. Esse exemplar é mais completo, embora

faltem algumas páginas que também não constam no exemplar dado ao rei Luís XIII. Franz

Obermeier (2005: 200) formula uma hipótese que convém destacar. O exemplar que contém

mais páginas teria sido mantido em uma biblioteca privada, provavelmente do próprio Razilly.

Ele mesmo teria executado algumas censuras no exemplar que entregou ao rei, evitando

prejudicar a sua carreira com possíveis críticas contra os portugueses. Lembra-se que nesse

período as páginas advinham de uma grande folha impressa, a qual, depois de dobrada, formava

as páginas de frente e de verso. Para retirar a informação contida em uma única página, muitas

vezes, era necessário que se destruísse, juntamente, entre oito e dezesseis outras páginas.

A referida obra contém 64 páginas que só chegaram ao público brasileiro muito

recentemente, não tendo assim entrado no campo de observação de grande parte das obras

etnográficas a respeito dos tupinambá, como os estudos de Florestan Fernandes (1989; 2006) e

de Pierre Clastres (2011; 2013). Assim, revisitá-la, juntamente com a obra de Claude

d’Abbeville (2008), mesmo depois de tantos olhares atentos terem se desgastado sobre si, ainda

apresenta um ar de novidade e presta grande serviço ao fornecer conhecimento acerca dos povos

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que habitavam o espaço do Maranhão no princípio da formação da sociedade colonial. O recorte

espacial é nosso próximo ponto.

1.2 O ESPAÇO FÍSICO

O espaço chamado “Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas” pelos padres

franciscanos franceses, como visto anteriormente, eram áreas de fronteiras: uma das últimas

áreas litorâneas ainda livres do sistema agroexportador colonial que portugueses e espanhóis

então implementavam no “Novo Mundo”; e último espaço onde os tupinambá podiam

reproduzir sua sociedade como vinham fazendo desde tempos imemoriáveis.

Assim, o território então chamado de Maranhão e terras circunvizinhas – que

compreende o espaço que vai desde a Serra de Ibiapaba, no atual estado do Ceará, até o rio

Amazonas, no atual estado do Pará – deve ser considerado como o plano de fundo de nosso

trabalho, pois era em seu corpo que, a partir da Ilha do Maranhão, atual são luís, desenrolava-

se a trama geopolítica da aliança entre tupinambá e franceses que visava resguardar o território

do inimigo luso-espanhol. Era, portanto, um espaço de tensão (Mapa 1).

As áreas tupinambá que estavam compreendidas nesse largo território eram

representadas, nas fontes, pela figura de seus chefes – nosso objeto de estudo.

A região do Pará nos é conhecida por um chefe anônimo55 das “mais longas terras dos

tupinambá”, que “percorreu longas distâncias para estabelecer alianças com os franceses”

(ÉVREUX, 2007: 22-23); e também por Uaceté56, tupinambá do rio “Parisop”, nas

proximidades do Pará, que ofereceu mil e duzentos guerreiros para reforçar a tropa dos

franceses na guerra contra dos “Camarapim”, povos que habitavam em casas construídas sobre

as águas (ÉVREUX, 2007: 28-29).

55 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 3. 56 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 4.

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Mapa 1

Território dos tupinambá do Maranhão e terras circunvizinhas. Seleção efetuada a partir do “Pequeno atlas do

Maranhão e Grão Pará”, Albernaz (1629). No canto direito, visualiza-se a região habitada pelos tupinambá do

Pará. No canto esquerdo, a região habitada pelos tupinambá de Ibiapaba. No centro, a região habitada pelos

tupinambá da Ilha do Maranhão, de Tapuitapera, de Cumã e do Mearim.

A região de Ibiapaba é representada pelo chefe “Diabo Grande”57. Esse chefe aparece

na narrativa de Claude d’Abbeville (2008: 98-100) em uma resistência vitoriosa contra os

tupinambá de Pernambuco, liderados por um português. Aparece também na narrativa de Yves

d’Évreux (2007: 144), quando estaria se aliando aos portugueses. Porém, escreve o padre

franciscano que por ser filho de um francês, poderia romper a aliança caso os franceses

fortalecessem os contatos com aquela região58. E aparece ainda na narrativa de Diogo de

Campos Moreno (2011:51). De acordo com esse militar português, Diabo Grande teria se

negado a formalizar alianças com a tropa luso-espanhola, e ainda teria impedido que os homens

de Jerônimo de Albuquerque fossem até a sua aldeia, utilizando a escusa de que todos habitantes

estavam gravemente doentes, por isso, não podiam nem participar da guerra e nem receber

visitantes59.

A área em que estava compreendida a região do Mearim, ocupada por agrupamentos

tupinambá inimigos dos habitantes da Ilha Grande, por isso chamados de Tabajara, já nos

oferece mais dados. Nessa região havia dois agrupamentos de aldeias recentemente tornadas

57 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 26. 58 Entre os seis tupinambá que viajaram para França, estava Itapucu (Vide apêndice 1, Tabela 15, número 35),

filho de chefe, exatamente da região de Ibiapaba, o que demonstra já a tentativa de fortalecer famílias de chefes e,

assim, assegurar as alianças com a referida região. 59 Diabo Grande também é referenciado pelo padre Luís Figueira (LEITE, 1940).

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inimigas, mas que agora voltavam a se reunir em torno da aliança entre tupinambá e franceses,

todos contra os portugueses, então considerados os maiores inimigos. A região é representada

por “Farinha Grossa”60, “homem muito valente na guerra e inclinado ao cristianismo”

(ÉVREUX, 2007: 38-39); e por Thion61, antigo aliado dos franceses (ÉVREUX, 2007: 41).

A região da Ilha do Maranhão, Cumã e Tapuitapera foi largamente retratada, como

podemos visualizar nos mapas 2, 3 e 4, e suas informações nos foram apresentadas em grande

volume por Claude d’Abbeville (2008) e por Yves d’Évreux (2007).

Mapa 2

Seleção feita a partir do Mapa de João Teixeira Albernaz em que constam as aldeias da Ilha do Maranhão, em

1640. Fonte: Bibliothèque Nationale de France, Gallica Bibliothèque Numérique. Disponível em: gallica.bnf.fr

60 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 16. 61 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 15.

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Mapa 3

Seleção feita a partir do Mapa de João Teixeira Albernaz em que constam as aldeias da Ilha do Maranhão, em

1627. Fonte: Bibliothèque Nationale de France, Gallica Bibliothèque Numérique. Disponível em: gallica.bnf.fr

Mapa 4

Reprodução de João Teixeira Albernaz de mapa elaborado em torno de 1613 e que La Ravardière teria dado uma

cópia a Diogo de Campos Moreno (ABBEVILLE, 2008).

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A respeito de Tapuitapera (atual Alcântara), o padre Claude d´Abbeville (2008)

argumenta que havia ainda mais habitantes do que na Ilha do Maranhão, chegando a mencionar

o nome de suas principais aldeias e de seus respectivos chefes (Tabela 1). Já o padre Yves

d’Évreux (2008) refere-se, com mais riqueza de detalhes, a outros chefes. Para representar essa

região podemos citar o chefe Seruê-uê62, responsável pela aliança com os franceses

(ABBEVILLE, 2008: 163), e também Marentin63 – depois batizado com o nome de Martins

François –, chefe e pajé responsável pela conversão dos tupinambá da região e grande aliado

dos franceses (ÉVREUX, 2007).

Quanto à região de Cumá, ou Cumã, que depois seria o principal foco da resistência

tupinambá (BETTENDORF, 2010), sobre a qual d’Abbeville também nos fornece informações

a respeito de seus principais chefes e aldeias (Tabela 2), podemos citar Caruatapirã64, que

aparece nas duas narrativas e foi o responsável pela aliança com os franceses. Essa mesma

região era representada por Pacamão65, não citado por Claude d’Abbeville, mas que segundo

Yves d’Évreux era o “maior e o mais graduado de todos os principais do Maranhão,

especialmente na província de Cumã” (ÉVREUX, 2007: 321).

Tabela 1

Ta

pu

itap

era

(Atu

al

Alc

ân

tara

)

Nº ALDEIA SIGNIFICADO TUPINAMBÁ

1 Tapuitapera Residência dos tapuias Avation

Caí-açu

2 Seri-ieu Caranguejo chato Arari

Uirá-eubucu

3 Jeneupá-eupê Jenipapo Uirá-eubucu

Suaçu-caê

4 Meureutieupê Palmeira Cauim-aguê

5 Caaguira Sombra das árvores Seruêuê

Avation

6 Pindotive Largo de Palmeiras Roronbeuve

7 Arueípe Lugar dos sapos Uiraíve-açu

8 Tapui-tininga Cabelos compridos e secos Itá-onguá

9 Engare-

lequitave Lugar onde arrastam as canoas Uitim

10 Urubutin-

enguuave Lugar onde o urubu vai beber Suaçu-caê

Principais aldeias e chefes de Tapuitapera a partir da narrativa de Claude d’Abbeville

62 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 74. 63 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 34. 64 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 28. 65 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 39.

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Tabela 2

Cu

(Atu

al

Gu

ima

rães

)

Nº ALDEIA SIGNIFICADO TUPINAMBÁ

1 Cumã Lugar onde se pesca peixe Itaoc-Mirim

2 Januacuare Toca do cão Maichuare

3 Tavapiap Aldeia escondida Cuare

4 Cui Ieup Cabeça preparada Inagarobuí

5 Aruipê Lago Tamandauaí

Jura-eutá-uaçu

6 Taevonajo Fruto negro Maracapu

7 Parucipanã Folha de pacuri Caiaeíve

8 Aovajeíve Árvore aquática Tobomá-Açu

9 Maeçã Cabeça de alguma coisa Uirapar-Uçu

10 Curemaetá Nome derivado do rio que se encontra

à entrada de Cumã

Boireapar

11 Jepieíve Árvore do pássaro Uiraruantin

Principais aldeias e chefes de Cumã a partir da narrativa de Claude d’Abbeville

A respeito de Upaon-Açu, ou Ilha do Maranhão (atual São Luís), temos vasta e

detalhada informação, não só das narrativas de Claude d’Abbeville e de Yves d’Évreux (Tabela

3), mas também de Diogo de Campos Moreno (2011) e de João Felipe Bettendorff (2010).

Acrescentam-se ainda as cartografias de João Teixeira Albernaz. Essa variedade de informação,

cruzada com a toponímia dos bairros, povoados e rios, praias e pontos específicos atuais de São

Luís, pode nos fornecer dados a respeito da localização das antigas aldeias e, assim,

proporcionar uma representação mais aproximada do jogo político verificado nas relações

diplomáticas entre franceses e tupinambá – e depois entre tupinambá e portugueses – e também

da atuação dos chefes tupinambá66 da então Ilha Grande do Maranhão67.

A seguir traçaremos algumas informações a respeito dos dados levantados acerca das

aldeias da Ilha do Maranhão, dos seus respectivos chefes e das relações diplomáticas efetuadas

pelos franceses.

66 Embora não seja nosso objeto de estudo, mas aproximado da História Social, as relações de poder, consideradas

na perspectiva da História Política, infelizmente, ainda por se fazer, poderiam oferecer informações de suma

importância para a compreensão do período. Inverter a lógica do que se tem feito na historiografia e lançar luz

sobre Japiaçu ou Momboré-uaçu é ter representação mais completa do que foi o início do processo de formação

da sociedade colonial maranhense, até aqui iluminada quase que exclusivamente pelas figuras de “heróis

fundadores” como La Ravardière ou Jerônimo de Albuquerque. 67 Grande parte dos dados aqui registrado foi gerado pelos estudos do Laboratório de Arqueologia da Universidade

federal do Maranhão (LARQ), no andamento do projeto “Carta Arqueológica dos Sítios Tupiguaranis na Ilha de

São Luís, Maranhão”, orientado pelo prof. Dr. Alexandre Guida Navarro e financiado pela FAPEMA.

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Tabela 3

Up

aon

-Açu

(Atu

al S

ão L

uís)

Nº ALDEIA SIGNIFICADO TUPINAMBÁ

1 Jiroparieta Aldeia de todos os diabos Capitão (irmão de

chefe)

2 Eucatu Água Boa

Cachorro Grande

Louis Coquet (filho de

chefe batizado)

3 Juniparã

Pequeno Deriva de Jenipapo amargo -

4 Juniparã Deriva de Jenipapo amargo

Japiaçu

Tuçã-açu (filho de

chefe)

Luís depois do

batismo

Juí (filho de chefe)

Carlos depois do

batismo

Ana (Filha de chefe)

Nome de Batismo

Maria (filha de chefe)

Nome de batismo

Jacupen – Potiguar

Acaui-mirim (Filho de

Chefe)

Jean depois do

batismo

Tata-Uaçu

Tecuare-Ubuí

Pacquarabeu

5 Januarém Cão fedorento Urubu-Ampã

Taicuju

6 Uarapirã Buraco Vermelho Itapucuçã

7 Coieupe Cabaça que serve de prato Moutin

Uirá-Ecá-Açu

8 Eussauap Lugar onde se comem

caranguejos

Tatu-Uaçu

Corá-Uaçu

Solá-Uaçu

Maari-Uaçu

Taiaçu

Tapire-Evire

9 Maracaná-

Pisip Grande Pássaro

Terere

Ajuru-Uaçu

Uará Obuí

10

Aquetene Lugar dos peixes Tipói-Açu

11 Caranaíve Palmeira Boí

12 Jeviree Nádegas finas Canuá-Uaçu

13 Jeviree-a-

pequena Nádegas finas

Canuá-Mirim

Eunaiuãtin

14 Uri-Uaçu-

Eupê

Lugar onde se encontram

peixes machorãs Ambuá-Uaçu

15 Pacuri-Euve Significa árvore de

Pacuri Tajapuã

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Up

aon

-Açu

(Atu

al S

ão L

uís)

16 Evapar Água torta Tocai-Açu

17 Meuruti-

Euve Bastão ou palmeira Conronron-Açu

18 Carnaupió Carnaúba

Marcoiá Peró

Patuá (Filho e

sobrinho de chefe68

)

Tiago depois do

batismo

Araruçuai

19 Pindotuve69

Lugar onde há pindó Aldeia havia se

juntado à Carnaupió

20 Timboí Raiz de árvore chamada

euve Uarumá-çu

21 Itapari

Viveiro ou camboa de

peixes

Suaçu-Açã

Matarapuá

Avaty-on

22 Euaíve Água velha ou turva Uirá-Uaçu-Pinim

23 Itaendave Largo de pedra Jere-Uçu

Uanhan-Mondeuve

24 Araçuí-

Jeuve

Lugar onde se apanham

caranguejos azuis Tamano

25 Oatimbup Raiz de timbó Uirapuitã

26 Toroiepep Calçado Pirajivá

Taicuju

27 Taperoussou Grande aldeia abandonada70

Cuatiara-Uçu

28 Toroupê Beberagem71

Uirá-papaupe

Carauátá-Uare

29 Maioba Folhas de árvores muito

compridas e largas

Jacuparim

Jaovantim

30 Rasaiup72 - -

As aldeias e os chefes da ilha do Maranhão a partir das obras de Claude d’ Abbeville e Yves d’Évreux

Primeiramente, é necessário delimitar as aldeias visitadas pelo padre Claude

d’Abbeville (Diagrama 2). A embaixada francesa desembarcou em Jeviree (atual São

68 Patuá, um dos garotos tupinambá levados à França. Claude d’Abbeville cita que era filho de Avapirã, “um dos

principais da Ilha”, mas que não teve o nome mencionado na relação que o mesmo cronista faria das aldeias e seus

principais. Na mesma narrativa Patuá aparece como neto e depois como sobrinho de Marcoiá-Peró. 69 Nas traduções em língua portuguesa, essa aldeia vem escrita de forma errada (Indotuve). 70 A interpretação é de Rodolfo Garcia. Julgamos esse significado pouco provável, pois na cosmovisão dos

tupinambá, as aldeias abandonadas tinham significado negativo: seria morada dos indivíduos que não conseguiram

acessar a “terra sem mal”. Esse tabu, “não habitar uma aldeia abandonada”, ao menos, até que ela seja apagada da

memória, consistia, na prática, em recuperar um território desgastado pela ocupação humana. Acreditamos que a

aldeia poderia se chamar “Tapiruçu”, “anta grande”, animal importante na cosmovisão tupinambá (e dos povos do

“Novo Mundo” em geral). Entre os tupinambá, devido à sua associação com ambientes aquáticos, a anta tinha seu

nome em uma constelação que estava relacionada à chuva (ABBEVILLE, 2008). Entre os maias e astecas, o deus

da chuva tinha forma de anta. 71 Rodolfo Garcia traduz como “turu”, animais aquáticos, vermes. 72 Aldeia referenciada por Yves d’Évreux: “Quando andei pelas costas do mar, desde Troou [Turu] até Rasaiup,

em companhia de muitos selvagens. Existe a possibilidade, pela toponímia, da referida aldeia se tratar de

“Araçagi”, porém, resolvemos, mesmo com as devidas ressalvas, computá-la.

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Francisco), aldeia que servia de porto aos tupinambá. Depois seguiu até o Forte (atual Palácio

dos Leões) e até o Convento São Francisco, de onde partiu para realizar as visitas pelas aldeias

da ilha. A primeira aldeia visitada, foi Turoup (atual Turu). A último ponto foi Taperoussou73

(atual Ilha de Tauá-Mirim): aldeia visitada pelo padre Arsênio, estando o padre Claude no Forte

de São Luís após os conturbados acontecimentos ocorridos em Eussauap74.

Ter em vista o mapa dessas embaixadas é importante para desfazer os silêncios do

discurso colonizador. A forma como Claude d’Abbeville escreve tende a igualar os chefes, e

as aldeias em torno da aliança, suavizando, ao máximo, os conflitos. Esses chefes estariam

sempre abaixo da autoridade de Japíaçu que, por acaso, era, na escrita dos padres franciscanos,

a personagem central da aliança entre os tupinambá e os franceses75.

Porém, o trajeto das embaixadas nos fornece uma imagem mais heterogênea. Tudo se

desenvolve em torno de Juniparã (Diagrama 2, número 7), maior aldeia da Ilha. As aldeias

visitadas, são, primeiramente, as que estão no caminho entre o Forte e a referida aldeia, cujo

chefe, Japiaçu, repetindo, era o principal aliado dos franceses. Porém, as visitas são

excludentes. Algumas aldeias não são visitadas no primeiro momento em benefício de outras.

Os caminhos, por certo, aumentavam ou diminuíam a distância entre as aldeias. Porém,

fica evidente a ação de visitar primeiramente aldeias que pudessem reforçar as alianças.

Assim, depois de visitar Juniparã (região da atual Jeniparana), seguiram em direção à

Itapari (atual Itapari), passando por Carnaupió e Uatimbou (atual Timbuba pela toponímia e

pela análise das embaixadas). Na outra margem de Itapari, situava-se Euaive (atual Iguaíba

pela toponímia). Porém, para ser visitada, os franceses primeiro foram para Timboí (região da

atual praia de Panaquatira)76, depois fizeram caminho inverso até Juniparã. Daí, partiram em

direção a Eussauap (atual Vinhais), passando primeiro por Maioba (atual Maioba) e Coieup.

73 Informação retirada dos mapas de Albernaz (mapas 2, 3 e 4). Pela toponímia, “Itaperuçu” hoje se localiza

próximo à referida Ilha. 74 Eussauap, Uçaguaba, Migão Vile (atual Vinhais). 75 Aqui é interessante comparar as duas obras. Mesmo que Japiaçu também seja considerado o maior morubixaba

da Ilha Grande por Yves d’Évreux (2007), nesta obra ele tem pouco destaque. O próprio Grand Bresil (Vide

apêndice 1, Tabela 15, número 23), que não aparece na obra de Claude d’Abbeville (2008) e é quase apagado da

narrativa de d’Évreux, surge, em Diogo de Campos Moreno (2011) como um dos principais, ao lado de um

“xapiaçu”, chefes da Ilha. 76 Dedução feita a partir da rota seguida pelas embaixadas dos franceses. Timboí era uma aldeia, à beira mar,

próxima de Itapari (D´ABBEVILLE, 2008: 132)

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Aquela aldeia, Euaive, mesmo em relativa proximidade de Itapari, só seria visitada no caminho

de volta para o Forte, depois de se retirarem de Eussauap.

Diagrama 2

Embaixadas realizadas pelos franceses na Ilha Grande do Maranhão, em 1612

Eussauap era a segunda maior aldeia da Ilha. Por ela, temos vistas do trajeto

excludente das embaixadas promovidas pelos franceses. Apesar da proximidade em relação ao

Forte77, não fora visitada no primeiro momento. Os franceses preferiram costurar alianças com

aldeias mais próximas de Juniparã, como Januarem (atual Jaguarema) e a já referida

77 Ver localização de “Migão Vile” nos mapas 2 e 3.

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Carnaupió78. Depois de consolidadas as alianças, os franceses apressam-se para chegar até

aquela aldeia, onde encontram problemas e, por isso, resolvem voltar ao Forte. Momboré-

uaçu79, ancião tupinambá de Eussauap havia feito um discurso em que punha em dúvida a

aliança, aproximando a ação dos franceses com a dos portugueses80. Tal acontecimento

provocou desconfianças em toda aldeia e os franceses foram obrigados a abandoná-la

(ABBEVILLE, 2008: 159).

Claude d’Abbeville argumenta que após o ocorrido resolveram voltar ao Forte,

passando pelas aldeias no caminho. Os nomes, com exceção da referida Euaíve, Eucatu (atual

Icatu pela toponímia) e Evapar (atual Guapara pela toponímia) não são mais mencionados.

Provavelmente, os franceses abreviaram o tempo em que ficariam nas aldeias, daí a falta de

detalhes na narrativa. E mais, a distância entre Euaíve e Evapar demonstra que a intenção não

era seguir o caminho até o forte, pois partindo de Eussauap, Euaíve estaria do lado oposto.

Portanto seguiram direção contrária ao destino revelado. Ademais, para chegar à Euapar

partindo de Euaíve, eles teriam que cruzar a Ilha para além do forte. Os franceses, acreditamos,

continuaram circundando as aldeias da Ilha, costurando alianças, enquanto isso, Migan81 –

interprete francês que, provavelmente, vivia entre os tupinambá desde criança82 e que depois

teria seu nome, “Migão Vile”, associado a Eussauap – fora enviado para intervir nessa aldeia

contra Momboré-uaçu. A seguir, fecharemos esse tópico com a apresentação das aldeias

levantadas na pesquisa (Mapa 5).

78 A rotação periódica desses espaços de ocupação tende, muitas a prejudicar o olhar contemporâneo a respeito

das aldeias. Carnaupió, por exemplo, ficava próximo de Juniparã na narrativa de Claude d’Abbeville. Depois,

quando Felipe Bettendorff (2010: 48, 51) escreve, os espaços já se confundiam, e Carnaupió era considerada como

pertencente a Juniparã. Além disso, já se expandia para fora da Ilha. Hoje, na toponímia, temos Cajapió, município

localizado já no continente. A Ilha ainda guarda a toponímia Maracujá (Igarapé Maracujá) advinda, acreditamos

de Marcóia Peró (Maracujá), chefe da referia aldeia. O mesmo teria acontecido com Eucatu. No decorrer do

processo temporal essa aldeia teria mudado para o continente, dando origem ao município Icatu. Seu chefe

“Januare-etê”, ou Cachorro Grande, teria ficado na Ilha em aldeia que, depois da chegada dos Portugueses, seria

conhecida como Aldeia do Cachorro (atual região do povoado Rio dos Cachorros). 79 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 72 80 Momboré-Uaçu, providencialmente, não aparece como chefe no discurso de d’Abbeville, e por motivos óbvios.

O entendimento que os franceses tinham dos chefes ou do poder centralizado o fariam entender que a aliança na

ilha só era assegurada por condições tênues. Seguindo nossa metodologia, como ficará evidente, o referido

tupinambá pode ser considerado chefe, possuía algumas das principais características dos chefes tupinambá. 81 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 19. 82 Os franceses pegavam garotos nos portos franceses e levavam para viver entre os tupinambá, aprender seus

costumes e depois servir de ponte entre os dois povos. Migan foi morto na batalha contra os portugueses

(MORENO, 2011)

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Mapa 5

Localização das aldeias tupinambá de Upaon-Açu. Seleção efetuada a partir do Mappa da Ilha de S. Luiz do

Maranhão levantado por Antonio Bernardino Pereira do Lago (1820).

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Tabela 4

N Localidade A B C D E F Nomes Atuais

* Forte dos Franceses Palácio dos Leões

1 Jeviree X X Praia Grande

2 Jeviree-a-pequena Ponta da Areia

3 Toroup X X Turu

4 Januarem X X Jaguarema

5 Juniparã X X X X X X Jeniparana

6 Uatimbou X X Timbuba

7 Carnaupió X X X X Cajapió

8 Itapari X X X X X X Tapari

9 Timbuí X X Panaquatira

10 Maioba X X X X Maioba

11 Coieup X X Pão de Açucar

12 Eussauap X X X X X Vinhais

13 Maracana-pisip X Maracanã

14 Meurutieuve X X São José dos Índios Mirititua

15 Euaive X X Iguaíba

16 Araçui Jeuve X X X Araçagi

17 Uarapirã X X X X Guarapiranga

18 Euapar X X Guapara

19 Taperoussou X X X X Tauá-Mirim

20 Pacuri-Euve X X Praia do Boqueirão

21 Pindotube X Pindoba

22 Jiroparieta X X Arraial

23 Eucatu X X X Rio dos Cachorros

24 Juniparã pequeno X Jeniparana

Localização das aldeias da Ilha do Maranhão de acordo com a toponímia atual. A coluna “A” representa as

aldeias visitadas por Claude d’Abbeville. A coluna “B” representa as aldeias citadas por Claude d’Abbeville. A

coluna “C” representa as aldeias citadas por Yves d’Évreux. A coluna “D” representa as aldeias citadas por João

Felipe Bettendorff. A coluna “E” representa os a toponímia a partir dos mapas do século XVII, de João Teixeira

Albernaz. A coluna “F” representa a toponímia a partir do mapa do século XIX, de Antonio Bernardino Pereira

do Lago.

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A disposição das aldeias na Ilha do Maranhão foi possibilitada pelo cruzamento de

dados efetuado a partir das narrativas de Claude d’Abbeville (2008), Yves d’Évreux (2007),

Diogo de Campos Moreno (2011) e João Filipe Bettendorff (2010). Também utilizamos as

cartografias de João Teixeira Albernaz (1613; 1627; 1629; 1640) e de Antonio Bernardino

Pereira do Lago (1820). Por fim, utilizamos a atual toponímia dos lugares de São Luís para

apresentar uma imagem aproximativa das aldeias (Tabela 4).

Algumas observações são necessárias. Em primeiro lugar, Claude d’Abbeville

enumera 27 aldeias. Porém, embora mencione Jeviree (1) e Jeviree-a-pequena (2), não

apresenta Juniparã Pequeno (24) que, em sua narrativa, ficava a meia légua de Juniparã (5).

Isso nos faz considerar a existência de mais uma aldeia para além daquelas numeradas pelo

referido cronista.

Em segundo lugar, nota-se que no tempo em que escreve, Pindotuve (21), atual

Pindoba, estava inserida na aldeia de Carnaupió (7). Assim, é necessário assinalar que é preciso

relativizar a localização das aldeias, pois elas não estavam necessariamente ligadas a um espaço

físico em específico, como era o caso referido de Pindotuve, então inserida em Caranupió.

Em terceiro lugar, acrescenta-se que o mesmo padre não mencionou o nome de

Jiroparieta (22), “Aldeia de todos os diabos” situada à beira mar, da qual Yves d’Évreux faz

referência. Em 1820, o nome Jurupary – Diabo em tupi –, de acordo com o mapa de Antonio

Bernardino Pereira do Lago (1820), ainda estava associado a um local à beira mar. Nesse

sentido, é necessário abandonar – ou no mínimo relativizar – a passagem em que d’Abbeville

enumera as 27 aldeias da Ilha Grande, ecoada nos mais variados estudos dessa temática83.

Afinal, como já assinalado, ele não mencionou Juniparã pequeno (24) e nem Jiroparieta (22)84.

Em quarto lugar, acrescenta-se que as aldeias Eucatu (23) e Carnaupió (7), então

situadas na Ilha, mudaram-se para o continente e deram origem aos municípios Icatu e Cajapió.

Quando as aldeias mudavam, levavam consigo seus nomes. E isso explica porque a localização

83 Cita-se as obras de Florestan Fernandes (1989), Jose de Ribamar Caldeira (sem indicação da data), Renato

Sztutman (2012) e Lilia Guedes (2014). As crônicas coloniais, em nosso entendimento, devem ser consideradas

em sua totalidade. Utilizar capítulos específicos para aludir a determinada questão, como é feito quando se pretende

fazer referências às aldeias da Ilha Grande do Maranhão, é arriscar-se ao erro. 84 Além de Jiroparieta, outra aldeia, Arasaiup, foi referenciada apenas por Yves d’Évreux (2007).

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de aldeias como Juniparã, Januarem e Carnaupío, muitas vezes, se confundem. Assim sua

localização no mapa deve ser sempre flexibilizada.

Outro exemplo está na aldeia de Taperoussou (19). No século XVII era representada

no espaço que hoje compreende a ilha de Tauá Mirim (Mapas 2, 3 e 4). Porém, atualmente o

nome Teperoçu faz referência a lugarejo próximo à referida ilha. Nesse caso, mantivemos a

representação dada pelos mapas do século XVII.

A confusão dos nomes e dos territórios representados por eles revela ainda as relações

de poder entre os chefes tupinambá. Eram eles que, reunidos em conselho, decidiam o novo

local de determinada aldeia85. Eram as regras do parentesco e as alianças políticas locais que

possibilitavam que determinada aldeia se mudasse para uma localização que antes estava

associada a outra aldeia. Era também por isso que uma aldeia como Pindotuve, poderia, em

determinado momento, perder sua localização espacial, ficando inserida no espaço de outra

aldeia, no caso, Carnaupió.

Em quarto lugar, acreditamos que Cachorro Grande86, chefe de Eucatu, ou um filho

que carregara seu nome – depois que a aldeia mudou-se para o continente (levando o nome com

ela), possivelmente, após a derrota da aliança entre franceses e tupinambá –, teria ficado na Ilha,

o que demonstraria a necessidade, por parte dos conquistadores luso-espanhóis, de traçar

alianças com os principais chefes de Ilha. Assim, seu território pode ter passado, ainda nas

primeiras décadas do século XVII, a ficar conhecido como “Aldeia do Cachorro” (Mapa 2),

atual povoado Rio dos Cachorros.

O mesmo teria acontecido em relação a Marcoia Peró87, um dos principais chefes da

Ilha, que ainda carrega seu nome, Maracujá, em igarapé e lugarejo de São Luís.

A seguir trataremos do recorte temporal. Partimos das narrativas para demonstrar “três

tempos” que são necessários delimitar para o entendimento do nosso trabalho.

85 Fixa-las, nesse sentido, é tirar importantes atribuições dos chefes. 86 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 2. 87 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 8.

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1.4 OS TEMPOS

Os objetivos desse trabalho não nos permitem um direcionamento mais rígido do

espaço temporal. As duas primeiras décadas do século XVII, podemos dizer, tratam-se de um

momento chave da história não só dos tupinambá, mas também da história do Maranhão e do

Brasil, pois se o massacre, o afastamento e a inserção daquele povo na sociedade colonial veio,

e não podia ser diferente, concomitante à ocupação luso-espanhola do espaço que chamamos

de Maranhão e terras circunvizinhas, foi ainda nesse período que a União Ibérica conseguiu

abrir caminho para a implantação do sistema agroexportador colonial na maior parte do litoral

do território que hoje compreende o Brasil, acrescenta-se, em um processo temporal que

percorreria os séculos sem se completar.

Dessa forma, podemos pontuar que os anos de 1612 a 1614 tratavam-se de um tempo

de extrema tensão, em que os tupinambá se aliavam aos franceses para defender as últimas áreas

litorâneas nas quais poderiam continuar reproduzindo sua cultura longe da presença de tudo

aquilo que eles até então negavam. Porém, além da própria aliança significar a exigência do

abandono de traços culturais enraizados na sociedade tupinambá, portugueses e espanhóis se

aliavam aos povos, também eles tupinambá, de Pernambuco e Ceará para conquistar o território

que julgavam lhes pertencer. É neste tempo de tensão que pululam as contradições que este

trabalho busca alcançar, por isso esse primeiro recorte é fundamental.

Porém, acrescenta-se que tais contradições só podem ser perceptíveis se as colocarmos

em um tempo mais recuado. É necessário historicizar as contradições. E isso nos força a

delimitar, para além dos referidos marcos, um período mais ou menos estabelecido pelo início

do contato entre europeus e tupinambá, o qual podemos perceber vestígios, primeiramente, pela

“Carta de Pero Vaz de Caminha” (CASTRO, 2010)” e pelas as “Cartas de Américo Vespúcio”

(2003), e, em seguida, por narrativas do século XVI, como a de Hans Staden (2009) e a de Pero

Magalhães Gandavo (2008).

Porém, esses dois marcos também não são suficientes para responder com eficácia a

problemática da pesquisa: “quais relações possibilitavam a reprodução da chefia tupinambá e

que entraram em contradição após o contato com os europeus?”.

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Tal questão nos força desacelerar o tempo, pensar para além dos indivíduos e alcançar

um movimento temporal mais lento e elástico, relacionado às coletividades. Para tanto, deve-

se considerar também um tempo mais longo, cujo desenvolvimento histórico recua, como

veremos, pelo menos até o século II de nossa Era. Assim, para compreender aquelas

contradições, precisamos ter em vista esse tempo longo, lento e elástico que acreditamos

também ser possível observar pela análise das referidas crônicas coloniais.

Com essas considerações podemos voltar aos marcos de 1612 a 1614, desta vez, para

pontuar com mais vagar os três tempos passíveis de ser apreendidos nas crônicas relativas à

aliança entre tupinambá e franceses no Maranhão.

Como nos referimos em tópico anterior, a obra de Yves d’Évreux (2007) fora escrita

para ser continuação da obra do padre Claude d’Abbeville (2008), chamando, não por acaso,

“Continuação da história das coisas mais memoráveis acontecidas no Maranhão...”. Juntas,

elas formam o recorte temporal do qual partimos: os anos de 1612 a 1614. E é a partir desse

recorte ditado pelas narrativas que podemos encontrar os três tempos – chamemos de tempos

braudelianos (BRAUDEL, 1983) – importantes para a compreensão do período estudado.

Em primeiro lugar, temos o tempo de curta duração, chamado aqui de “tempo da

narrativa”. Ele refere-se aos eventos presenciados pelos cronistas entre 1612 e 1614, e pode ser

vislumbrado na enxurrada de acontecimentos que vão desde as embaixadas que os franceses

promoveram nas aldeias tupinambá, das quais d’Abbeville nos oferece notícias, aos diálogos

com os chefes e pajés narrados por d’Évreux.

É pelo tempo da narrativa que podemos perceber a tentativa de expandir as alianças

entre franceses e tupinambá, que, partindo da “Ilha do Maranhão”, chega à Tapuitapera e à

Cumã, e posteriormente expande-se à região do Mearim, chegando, por fim, à região do Pará,

de um lado, e à região da Serra de Ibiapaba, do outro (Mapa 1).

Em segundo lugar, a partir do tempo da narrativa, podemos chegar a outro, de média

duração, que vamos chamar aqui de “tempo do contato”. Considerado nesta pesquisa pelo

espaço temporal que inicia-se com o marco de 1500 – representado pelo relato de Caminha –,

perpassando os anos de 1612 a 1614 – representados pelos relatos de d’Abbeville e d’Évreux –

e ainda os anos de 1615 em diante, quando inicia-se o extermínio, a fragmentação e a dispersão

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dos tupinambá para os interiores do território. É esse período que apresenta as contradições que

buscamos na pesquisa, pois é em seu rastro que os imaginários dos europeus e dos tupinambá,

a despeito de suas oceânicas diferenças, começam a se conectar, como vermos posteriormente,

a partir de elementos semelhantes, criando o que iremos chamar de espaço intermediário entre

os imaginários dessas duas sociedades.

Para compreender tais contradições precisamos considerar, em terceiro lugar, outro

tempo perceptível na narrativa: um tempo de longa duração, que chamaremos aqui de “tempo

da cultura”. Alcançável se considerarmos as narrativas como fonte etnohistórica, é a esse tempo

que devemos fazer referência ao avaliar os traços característicos da sociedade tupinambá que

depois seriam colocados, frente a frente, a outros traços culturais, dos europeus (Diagrama 3).

Assim, temos três tempos que servem de base para esse trabalho. O tempo da cultura

é importante para compreendermos as relações sociais que depois entrariam em contradição no

tempo do contato. E o tempo da narrativa deve ser entendido como ponto de partida para

chegarmos, não só as relações sociais, mas também, as contradições.

Diagrama 3

Tempos históricos perceptíveis nas obras de d´Abbeville e d’Évreux: (1) Tempo da Narrativa, (2) Tempo do

Contato e (3) Tempo da Cultura

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1.5 OS HISTORIADORES

Antes de tratarmos do método será necessário antecipar parte de nossa revisão

bibliográfica, mais especificamente, o diálogo com a historiografia88. Nesse tópico, faremos

considerações a respeito de como os povos originários da América apareciam nos estudos até o

último quartel do século XX. Como veremos, nosso método advém de um “silêncio

historiográfico” que nos obrigou a um intenso diálogo com estudos do campo da História, mas

também da Sociologia, da Antropologia, da Filosofia Política e da Arqueologia.

O intuito foi valer-se de contribuições teóricas fundamentais dessas disciplinas e

mobilizá-las na interpretação de problemas históricos. O tópico será dividido a partir de dois

pontos-chave: 1) estudos centrados nas relações sociais dos tupinambá, e 2) estudos que buscam

compreender o contato entre tupinambá e europeus. Em torno desses pontos estão duas visões

da historiografia tradicional que durante muito tempo pairaram sobre a escrita dos historiadores,

mas foram, contudo, superadas por novas interpretações das quais faremos referências.

A respeito das “relações sociais dos tupinambá” – nosso primeiro ponto-chave –, uma

contribuição de suma importância vem do campo da Arqueologia. Descobertas ocorridas a

partir da década de 1970 modificaram uma das interpretações que mais influenciavam os

historiadores desde o século XIX: a da ocupação recente do litoral.

Baseados nos estudos de Carl Friedrich Philippe von Martius (1982), durante muito

tempo se propôs que os povos tupi que entraram em contato com os europeus no século XVI

falavam a mesma língua devido à ocupação recente do litoral.

Essa hipótese influenciou os estudos de pesquisadores como Alfred Métraux (1950),

Florestan Fernandes (1989; 2006) e Pierre Clastres (2011; 2013), resvalando, a partir daí, em

importantes obras da historiografia. “Eram recém chegados à Costa”, argumenta Berta Ribeiro

(2009: 17). A população “encontrava-se no litoral não fazia muito tempo”, acrescenta Ronaldo

88 Para elaboração desse tópico, os estudos efetuados no Laboratório de Arqueologia da UFMA (LARQ) foram

fundamentais.

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Vainfas (1995: 13). A dispersão “teria ocorrido um pouco antes da Conquista”, concorda Maria

Celestino de Almeida (2010: 33)89.

Por trás do argumento da ocupação recente do litoral, construído por pesquisas como

a de Betty Meggers (1977), estava a teoria de que os tupinambá eram povos seminômades que

não possuíam cerâmica, com baixa densidade demográfica, e que viviam praticamente isolados,

sem outro contato que não fosse aquele ditado pelas guerras intestinas que travavam entre si, o

que legitimava a expressão “Descobrimento” cunhada pelos conquistadores europeus.

Mas essa visão recebeu críticas de grande parte dos pesquisadores a partir do último

quartel do século XX. Esses estudos, a despeito de suas divergências, sugerem um processo

bem diferente (PROUS 1993; ROOSEVELT, 1992; NOELLI 1996; HECKENBERG; NEVES;

PETERSEN, 1998; ROBRAHN-GONZÁLEZ, 2003).

Em linhas gerais, podemos afirmar, a partir daqueles pesquisadores, que os

tupiguarani90 passaram por uma formação comum na Amazônia, provavelmente, em áreas

próximas ao Rio Madeira, principiada há cinco mil anos.

O movimento de expansão teria se iniciado há aproximadamente 2500 anos, de

maneira lenta e contínua. Nesse processo, os povos que depois seriam designados como

tupinambá encontraram um caminho densamente povoado. Os antigos habitantes do território

tendiam a ser tupinizados. Alguns, como os povos sambaquieiros, desapareceram. Outros,

como os do tronco linguístico Jê, foram empurrados para os interiores do território que hoje

compreende o Brasil.

No século II de nossa Era, os tupiguarani teriam atingido o litoral e, a partir daí, se

expandido sem nunca sair das áreas litorâneas. A rota de expansão é alvo de polêmica.

Pesquisadores como Francisco da Silva Noelli (1996) defendem a validade da teoria da pinça,

segundo a qual os povos tupiguarani teriam se dividido ainda no interior da Amazônia, em dois

grupos. Os povos que dariam origem aos guarani teriam rumado às áreas litorâneas ao sul do

89 Para não prejudicar o valor desses trabalhos historiográficos, fundamentais para essa pesquisa, pontua-se que

apesar de manterem a tese da ocupação recente sem problematizar o que ela trazia consigo, eles já apresentam um

cenário bem distinto daquele traçado pela historiografia tradicional. 90 Denominação utilizada pelos arqueólogos para definir uma tradição cerâmica caracterizada pela policromia,

comum a todos esses povos.

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território. Já os tupinambá teriam contornado o litoral pelo norte. No período em que os

europeus começaram a desembarcar no “Novo Mundo”, tupinambá e guarani estariam se

encontrando próximo à Iguape, no sul do atual estado de São Paulo.

No entanto, a tese mais aceita atualmente, e que corrobora com as crônicas coloniais,

é a de que os tupiguarani teriam migrado para o sul do território. Parte desses povos, os guarani,

teriam se fixado nessa região. Outra parte, os tupinambá, teriam continuado o movimento de

expansão para o norte do território, povoando toda faixa costeira até o atual estado de

Pernambuco.

De qualquer forma, considera-se que no período da dispersão os povos tupiguarani já

seriam agricultores e, assim, possuiriam cerâmica. O motor principal para a “expansão” teria

sido a pressão demográfica causada pelo contínuo aumento da população, gerado, por sua vez,

pelo eficiente aproveitamento dos recursos naturais.

Assim, ao contrário de um território de ocupação recente e quase despovoado, a

imagem mais próxima do cenário que foi visualizado pelos europeus, quando chegaram no

litoral do território que hoje compreende o Brasil, é a de um “mundo cheio”91. Um mundo cheio

constituído graças ao sucesso obtido por aqueles povos em se fixar em determinado ambiente

e, a partir dele, se expandir. A inteligibilidade econômica garantida por uma agricultura

eficiente e pelo subsequente adensamento demográfico teria propiciado frentes de expansão

sem que os antigos territórios fossem abandonados.

Esse “mundo cheio”, de traços culturais enraizados desde um tempo de longa duração,

começaria a esvaziar-se a partir da chegada dos europeus, graças não só à guerra e ao extermínio

engendrados ou exacerbados após o início do contato, mas, fundamentalmente, graças às

doenças, à fome e à morte que vinham concomitantes à cruz e ao diabo trazidos pelos europeus,

evidentemente mortais para a cultura tupinambá.

Mas é à imagem do “mundo cheio” que devemos nos referir ao tratar do início do

período de contato entre europeus e tupinambá: um território densamente povoado, em

91 Expressão emprestada de Emmanuel Le Roy Ladurie (2007). “A destruição do ‘mundo cheio’” é a forma que

este historiador encontrou para descrever o cenário demográfico proporcionado pela “peste” na França. Em nosso

caso, a “formação do mundo cheio” e a “destruição do mundo cheio”, servirão de marcos para descrever a sorte

das populações tupiguarani antes e depois do contato com os europeus.

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constante contato, e com tradições culturais enraizadas por um período de longa duração,

comparável ao processo de consolidação do Cristianismo na Europa. Foi esse cenário que os

europeus encontraram quando desembarcaram no território que hoje constitui o Brasil

(Diagrama 4).

Diagrama 4

Cronologia: da formação do “mundo cheio” à destruição do “mundo cheio”. Ponto (1):formação do tronco

linguístico e matriz cultural tupi. O ponto (2): início da dispersão dos povos tupi. Ponto (3): povos tupiguarani

chegam ao litoral do continente. Ponto (4): início do contato entre tupinambá e europeus. Ponto (5): Povos

tupinambá ocupam a Ilha do Maranhão (atual São Luís) e iniciam trocas comerciais com os franceses. Ponto (6):

Franceses desembarcam na ilha e formalizam alianças com os tupinambá. Ponto (7): Os franceses são expulsos

por portugueses e espanhóis aliados a povos tupinambá. Ponto (8): Os tupinambá são praticamente dizimados e

se dispersam pelo interior do território.

Falar em tradições culturais enraizadas é pontuar a importância de relações sociais que

os tupinambá vinham desenvolvendo ao longo do tempo e que atuavam para manter a coesão e

as características identitárias daquela sociedade. Práticas como a cauinagem, a poligamia, a

antropofagia e a busca da “terra sem mal” estariam se reproduzindo havia mais de mil anos –

um espaço temporal comparável, repetimos, ao do processo de consolidação do Cristianismo

na Europa.

Essas relações sociais, que não devem ser consideradas fora de seus contextos

históricos, são fundamentais para identificar as especificidades dos chefes tupinambá, bem

como para compreender por que as descrições que os europeus faziam desses chefes eram tão

contraditórias. Assim, para adquirir erudição em torno das relações sociais dos tupinambá, fez-

se necessário mobilizar contribuições de pesquisadores de diversos campos disciplinares, como

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Florestan Fernandes (1989; 2006; 2009), Pierre Clastres (2011; 2013), Eduardo Viveiros de

Castro (1986; 2002), Mércio Pereira Gomes (2012), Renato Sztutman (2012), André Prous

(1993; 2003) e Carlos Fausto (1992; 2010). Voltaremos a esse ponto ao tratar do Método.

Em relação aos estudos que tratam do contato entre tupinambá e europeus – o nosso

segundo ponto-chave –, outra contribuição importante advém da chamada “Nova História

Indígena”. Os estudos que partiram dessa perspectiva superaram outra hipótese da

historiografia tradicional, também ela, advinda dos estudos de von Martius (1982): era a teoria

de que os “indígenas brasileiros” – seja pela transmissão de doenças que continuavam a dizimá-

los, seja por sua inserção na sociedade nacional – seriam extinguidos em breve espaço de tempo.

No campo da Antropologia, sob essas influências, a cultura desses povos era

considerada estática e inferior, pronta para ser perdida aos primeiros contatos com a sociedade

nacional. No campo da História, os “indígenas” – considerados povos sem história – nunca

eram vistos como sujeitos autônomos, responsáveis também pela composição das relações

coloniais das quais participaram (MONTEIRO, 2001; CARVALHO JÚNIOR, 2005;

ALMEIDA, 2010).

Essa teoria, em linhas gerais, determinou observações inferiorizantes e silêncios

verificados em grandes obras da historiografia brasileira, incapacitada, em seu tempo, de

posicionar os “povos indígenas” em seu devido lugar na história do Brasil. Para Francisco

Adolfo de Varnhagen (1980), tais povos não tinham história e estavam na “infância” da

civilização. Capistrano de Abreu (1998), talvez porque ainda não encontrasse “razão humana”

nos “indígenas brasileiros”, dividia esses povos em dois tipos de sociedades: as “tribos” que

“comiam os inimigos” e as que “comiam parentes e amigos” – uma espécie de orgia

antropofágica. Gilberto Freyre (2003), considerando esses povos como “uma das populações

mais rasteiras do continente”, colocou no título de seu trabalho a “casa-grande” e a “senzala”,

mas não encontrou motivos para acrescentar a “oca”. Caio Prado Júnior (2008), fazendo uso de

expressões como “civilização muito primitiva” e – talvez por defender que desde o período

colonial o Brasil já tivesse características capitalistas – parecia esperar do “indígena” ações de

um trabalhador assalariado. E o que se dirá a respeito de Sérgio Buarque de Holanda? Em

estudo clássico acerca da formação do povo brasileiro, comparou o “tipo” português com “tipo”

espanhol, ficando o “tipo indígena” fora das raízes do Brasil (HOLANDA, 1975).

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Filhas de seu tempo, tais obras não devem ser situadas fora dele. A partir dos anos de

1980, tais proposições sofreram duras críticas e acabaram abandonadas por uma historiografia

interessada em destacar a ação dos “povos indígenas” na feitura da sociedade brasileira. A

mudança nos rumos da historiografia processou-se a partir de dois fatores: 1) aumento do

diálogo entre historiadores e antropólogos, e 2) percepção das lutas políticas travadas pelos

“povos indígenas” e evidenciadas pela sociedade brasileira a partir do último quartel do século

XX.

A intensificação do diálogo entre historiadores e antropólogos possibilitou que ambas

as disciplinas passassem a considerar os “povos indígenas” a partir de uma perspectiva

totalmente nova. Os antropólogos perceberam que seus “objetos de estudo” não eram imutáveis.

Assim, passaram a se interessar pelos processos de mudança social. Os historiadores

começaram a aplicar aos “povos indígenas” estudos sobre comportamentos, crenças e

cotidianos dos homens comuns, que antes eram considerados irrelevantes para história

(ALMEIDA, 2010).

Essas novas abordagens possibilitam pensar para além da dilapidação das “sociedades

indígenas” do período pós-conquista, de maneira a alcançar novos tipos de sociedades que

surgiram após o contato com os europeus (CARVALHO JÚNIOR, 2005). Nesta perspectiva,

portanto, ao invés de se pensar o processo de “destruição” desses povos, passou-se a considerar

a sua “transformação” no processo temporal.

Antecipando-se ao novo olhar historiográfico, os “indígenas”, além de não

desaparecerem como preconizava a historiografia tradicional, fizeram-se sujeitos de sua história

antes que os historiadores o fizessem (ALMEIDA, 2010; SZTUTMAN, 2012). No decorrer da

década de 1980, com o esgotamento da ditadura civil-militar, tornou-se cada vez mais

perceptível a luta travada pelos “povos indígenas” para preservar seus territórios e adquirir

direitos políticos. Em 1988, eles tiveram seus direitos garantidos pela Constituição. E isso deve

ser levado em conta ao se pensar o que teria possibilitado o advento dessa nova maneira de

abordar a “história indígena”.

Assim, é a partir desses dois fatores que situa-se o que se convencionou chamar de

“Nova Historia Indígena”. Entre esses estudos, podemos referenciar autores que pensaram, cada

qual ao seu modo, o contato entre tupinambá e europeus a partir dessa perspectiva. São eles:

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Ronaldo Vainfas (1995), Maria da Glória Kok (2001), John Monteiro (2001), Maria Celestino

de Almeida (2010), Almir Diniz de Carvalho Júnior (2005), André da Silva Lima (2006) e

Rafael Ale Rocha (2009; 2013).

Referidas as duas teorias da historiografia tradicional suplantadas no final do século

XX, podemos tratar do método.

1.6 O MÉTODO

Como observado anteriormente, o cenário constituído a partir de descobertas

arqueológicas do último quartel do século XX mudou completamente o perfil das interpretações

acerca dos tupi que habitavam o litoral do continente americano quando os europeus

começaram a estabelecer contato92. Ao refutar a hipótese da “ocupação recente”, datada agora

desde pelo menos o século II da nossa Era, tais estudos conduzem a uma primeira assertiva da

qual deveremos partir: para o idioma ser mantido o mesmo durante tanto tempo, é necessário

vislumbrar uma população densa e em constante contato93.

E mais. A longa permanência no litoral – de mais de mil anos – somada a permanência

de traços culturais mais próximos daqueles do interior da Amazônia do que dos traços

característicos das áreas litorâneas (FAUSTO, 2010: 69; SZTUTMAN, 2012: 151), nos dirigem

a uma segunda consideração que completa a primeira: deve-se dar a devida importância às

relações sociais que propiciavam a reprodução da sociedade tupinambá ao longo do tempo.

Tais relações, no período de contato entre tupinambá e europeus, abarcavam um

espaço físico e uma duração temporal comparáveis, repetimos novamente, ao Cristianismo na

Europa.

Essas relações não devem, portanto, ser consideradas, de forma alguma, em separado

da análise acerca das características dos chefes tupinambá. Pois era somente a partir delas que

a condição de chefia se reproduzia no tempo, compreendido aqui em sua longa duração.

92 Para elaboração desse tópico, as aulas do professor Marcelo Araújo foram de grande valia. Também foi

importante a participação em três grupos de Estudos: GEDMMA, Família e Poder e LARQ. 93 Contato marcado pela troca: de mulheres, de bens de prestígio e de “vingança”.

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Fixar estas relações em seu tempo e problematiza-las é aproximar a interpretação do

campo da História. Eis então a nossa problemática: caracterizar os chefes tupinambá e visualizar

as relações que possibilitavam a manutenção da condição de chefia ao longo do tempo, para, a

partir daí, destacar os pontos de tensão surgidos após o contato com os europeus.

Para atingir os objetivos, partimos da seguinte premissa: Na produção social de sua

existência, os homens desenvolvem, coletivamente, relações que independem da vontade

particular dos indivíduos.

Essa formulação é efetuada a partir dos estudos de Karl Marx (2008). E seu uso

necessita de algumas observações. Poder-se-ia, com certa razão, questionar a utilização de Marx

em estudos relacionados aos tupinambá. Afinal, esse pensador viveu e efetuou suas pesquisas

em uma sociedade fragmentada, urbanizada e europeia. As críticas de Pierre Clastres (2011;

2013) são pertinentes. Como pensar as relações de produção em uma sociedade “anti-

produtiva”?

Entretanto, devemos acrescentar que Marx, antes de tudo, estudava uma sociedade em

transição, que passava do que se poderia chamar de “Antigo Regime” para o “Regime

Capitalista”. É esse processo, essa ideia de movimento temporal que faz com que seus estudos

sejam pertinentes à História e que autoriza seu uso na presente pesquisa. Não se trata, aqui,

apenas de estudar os povos ditos “indígenas”. Trata-se, diferentemente, de estudar a

transformação do meio de vida tupinambá a partir do contato com os europeus. Em linhas

gerais, esse é um estudo a respeito do processo de formação da sociedade colonial do Maranhão.

Porém, ainda assim, fazem-se necessárias algumas ressalvas. A primeira é que na obra

referenciada, o pensador e ativista político alemão fazia referência especificamente às “relações

de produção”, generalizadas aqui apenas por “relações”. Não se trata de “engessar” o processo

temporal da “dialética materialista” proposta por Marx. Trata-se, de outro modo, de mudar a

direção do olhar. As forças transformadoras referidas por Marx94, por certo, ainda são passíveis

de se observar no período de contato entre europeus e tupinambá, seja na transformação da mão

de obra verificada quando a “produção familiar” foi cedendo lugar à “produção em grande

94 Resumidamente, Marx entendia que a sociedade se modificava devido a “evolução” das “forças produtivas”.

Estas provocariam transformações nas “relações de produção”, forçando, a partir delas, transformações no meio

social (MARX, 2008: 47).

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escala” exigida pelo “sistema agroexportador colonial”, ou seja na alteração do meio de vida

tupinambá ocorrida com a inserção das “ferramentas de metal”, proporcionando a diminuição

do tempo de produção e a concomitante liberação de braços do cultivo da terra.

Tal método encontraria, neste sentido, campo fértil. Mas as ferramentas de metal, por

exemplo, mesmo diante do seu caráter transformador visivelmente perceptível entre os

tupinambá do período95, eram inseridas no meio social sem resistência. A resistência é

verificável com mais força quando trata-se daqueles traços culturais desenvolvidos em um

processo de longa duração. É aí que estoura a contradição entre as duas sociedades, da qual a

sociedade colonial do Maranhão seria síntese.

E assim chegamos ao ponto chave onde estoura a contradição. O projeto colonial

francês, do qual d’Abbeville e d’Évreux dão notícia, consistia em transformar o tupinambá em

“súdito do rei da França” e em “cristão”, tudo isso em um processo de curta duração – um passe

de mágica – simbolizado pelas “águas cristalinas do batismo”. É em torno dessa questão que o

presente estudo se concentra.

Por isso, embora não se possa perder de vista aqueles fatores relativos às chamadas

“forças produtivas”, nosso interesse está centrado, primeiramente, nos traços culturais mais

rígidos, nas relações que haviam proporcionado a reprodução da sociedade tupinambá por um

longo período de tempo e que agora entravam em contradição com o “Projeto Colonial”

europeu, por isso precisavam ser subvertidas, silenciadas, esquecidas e apagadas da sociedade

tupinambá.

E é necessário, assim, acrescentar, acompanhando as críticas de E. P. Thompson

(1981), que Marx, talvez induzido pelos debates de sua época, dera pouca atenção ao que

chamava de “moral”, “estrutura política”, “estrutura jurídica”96, enfim, aos “caracteres culturais

da sociedade”. Entendemos que estes caracteres, que moldavam a sociedade tupinambá ao

longo do tempo, devem ser pensados como produto dinâmico, flexível e, portanto, passível de

ser estudado a partir de suas transformações no tempo.

95 E isso não passava despercebido e até era utilizado pelos padres Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux. 96 Trata-se aqui dos livros de “Economia Política”, como o Capital. Seria incorreto levar a mesma crítica para obras

mais próximas de sociologia, como o 18 Brumário.

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Tratando-se dos tupinambá a partir dessa linha de pensamento, defendemos que não

se deve considerar sua cultura como “essência”, mas sim como produto multifacetado da

experiência humana, pressupondo que quando novas questões se apresentavam àqueles povos,

era fazendo uso da experiência – adquirida a partir de relações sociais que se estabeleceram ao

longo do tempo – que os indivíduos buscavam respostas. Nesse sentido, as relações sociais que

possibilitavam a reprodução dos chefes tupinambá – até aqui desconsideradas pela

historiografia97 ou avaliadas como a-históricas por antropólogos – devem ser colocadas em seu

tempo.

Acrescenta-se, para reforçar a problemática dessa pesquisa, que além do caráter

coletivo das relações, deve ser somada, a partir de Émile Durkheim (2010), outra

especificidade: as relações sociais são anteriores aos indivíduos, exercem um poder coercitivo

sobre eles e corroboram para manter a coesão do meio social. E mais. As relações estão bem

gravadas em todas a consciências (ao menos na maior parte delas) de maneira que não se pode

afetá-las sem que melindre, ao mesmo tempo, sentimentos coletivos que atuam para manter a

coesão do grupo (SBRANA; JESUS, 2013).

Durkheim, analisou o problema98 chamado “divisão do trabalho social” utilizando

como fonte o código jurídico. Dessa forma, buscava atingir, a partir de um modelo ideal

impossível de ser verificado na prática, o que considerava a moral da sociedade.

Em nossa pesquisa, não encontramos fontes escritas tão bem dispostas quanto os

códigos jurídicos foram para aquele sociólogo. Nossa base está nas narrativas dos padres

franciscanos franceses que entraram em contato com os tupinambá do Maranhão. Assim,

embora não corremos o risco de dar a entender que em nossas fontes estão refletidas de maneira

pronta a “moral” de uma sociedade, deve se considerar, de início, que a despeito de todos os

filtros que se colocaram diante do narrador (ou do leitor) – sejam àqueles proporcionados pelo

projeto colonial francês, ou sejam aqueles referentes à cosmovisão europeia – e mesmo diante

do fato de que a oralidade do tupinambá jaz perdida na escrita colonizadora, mesmo diante do

97 Resquícios da historiografia tradicional. Ao considerar a ocupação tupinambá do litoral como algo recente,

desconsidera-se que a cultura desses povos já poderia estar se consolidando desde um tempo de longa duração,

como dito acima, comparável ao processo de consolidação do cristianismo na Europa. 98 Chama-se atenção para esse trabalho de Durkheim, principalmente para o que ele conceitua como problema,

pois foi a partir de sua teorização que algumas décadas depois Marc Bloch e Lucien Febvre criariam o que se

convencionou chamar de “História Problema”. Nesse sentido, a História Problema já havia sido inaugurada desde

o século XIX, por um sociólogo.

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fato de que entre o leitor e o tupinambá estava o truchement99, o padre franciscano, o impressor,

o censor, os tradutores das versões em português, enfim, mesmo diante de tais questões de

ordem muito séria, considera-se que as referidas narrativas, ainda assim, são passíveis de análise

etnohistórica. Ao desbastar esse denso cipoal, acreditamos, chega-se aos tupinambá. Vejamos

agora as considerações tocantes ao caminho que empreendemos na pesquisa.

Escolhemos tratar das contradições entre europeus e tupinambá a partir da condição

de chefe tupinambá. Para caracterizar os chefes, além das obras de Claude d’Abbeville (2008)

e Yves d’Évreux (2007), utilizamos pesquisadores do campo da História, da Arqueologia, da

Filosofia Política, da Sociologia e da Antropologia, apoiando-nos ainda nas cronistas coloniais

do século XVI.

Mas as características dos chefes não estão transparentes, nem nas obras utilizadas,

como, por certo, também não estavam no cotidiano vivenciado pelos cronistas. Assim a

narrativa foi cortada, separada, redistribuída e organizada para atender os objetivos da pesquisa.

Esse procedimento nos permitiu lançar luz sobre determinadas características dos chefes

tupinambá e extrair um tipo ideal de chefe. Um tipo weberiano (LALLEMENT, 2003; WEBER,

2012).

Dessa forma, as características não podem ser vislumbradas a partir de representações

referentes a um único chefe. Porém, esse chefe ideal foi caracterizado a partir das passagens de

Claude d’Abbeville e de Yves d’Évreux relacionadas, necessariamente, a chefes tupinambá. O

trabalho consistiu em converter fenômenos narrados pelos cronistas em dados para a pesquisa,

categorizando eventos históricos de maneira a criar unidades não-históricas100 a respeito das

quais as predições e explicações podem estar baseadas.

Acrescenta-se que esse procedimento não consistiu em criar um “Todo”, como o chefe

tupinambá, para simplesmente comparar ou opor a outro “Todo”, como o europeu, o francês

ou o cristão. Tal artifício foi efetuado, com importantes resultados, nos estudos clássicos de

Sérgio Buarque de Holanda (1975; 2000). Esse historiador utilizou o método weberiano para

criar o “tipo ideal português” e o “tipo ideal espanhol” e depois poder compará-los.

99 Tradutor. Entre os portugueses era chamado de “língua”. 100 Como veremos as unidades nem sempre foram “não-históricas”. Quando trata-se de características diretamente

referenciadas pelos cronistas, como a relativa à oratória ou aos dotes guerreiros ou à idade do chefes, utilizamos

termos retirados dos próprios cronistas, muitas vezes escritos em tupi.

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Em nossos estudos, procuramos não seguir esse procedimento. Por um lado, porque

corre-se o risco de excluir arbitrariamente outros “Todo” – o tipo ideal tupinambá, por exemplo.

Por outro lado, porque embora tal método consiga demonstrar com muita consistência as

diferenças entre estes tipos ideais, não é a melhor maneira de perceber as conexões existentes

entre dois “Todo” que, ao longo do processo histórico, muitas vezes se constituem mutuamente,

fazendo das distinções apenas discursos historiográficos101.

Assim, apesar de termos utilizado o tipo ideal, de certa forma, inspirados nos trabalhos

de Sérgio Buarque de Holanda, não o fizemos para comparar o tipo tupinambá com o tipo

europeu. Mas sim para destacar certas características dispersas ao longo das narrativas e lançar

luz sobre as relações sociais que lhes davam sustentação.

Deste modo, acreditamos que essas relações sociais, desenvolvidas a partir de

diferenças oceânicas em relação à cosmovisão europeia, mesmo com todo processo violento do

encontro, mesmo com o grande abalo que lhes propiciou a inserção do Cristianismo e, de

maneira geral, mesmo diante do que significou para o povo tupinambá a inserção do sistema

agroexportador e escravista colonial, ainda assim, elas, além de se repelirem, se conectaram

(SUBRAHMANYAM, 1997).

Para compreender o relacionamento, muitas vezes contraditório, entre as lógicas

tupinambá e europeia, deve-se considerar, como plano de fundo, o conceito de Circularidade

Cultural, de Carlo Ginzburg (2006). Na referida obra, esse historiador partiu de processo

inquisitorial contra o moleiro Menocchio para perceber a circularidade entre a cultura letrada e

a cultura popular.

Partiremos, de outro modo, das representações que cronistas europeus fizeram dos

chefes tupinambá, a fim de apreender a circularidade entre caracteres dessas duas culturas,

observáveis nas resistências, nas ressignificações, nas conexões e nos apagamentos ocorridos

ao longo do processo temporal coberto pelas fontes. Nesse sentido, acrescenta-se que ao

contrário do que ocorre com a distinção entre as culturas “popular” e “letrada”, difícil de

101 A respeito dessa discussão, ver: Serge Gruzinski (2001). Entre os trabalhos a respeito de história conectada,

cita-se o já referenciado Sanjay Subrahmanyam (1997) e Giuseppe Marcocci (2010; 2011).

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estabelecer de antemão102, a articulação entre cultura tupinambá e europeia pode ser efetuada a

partir matizes bem definidas.

Outra colaboração importante para elaboração de nosso método, está no conceito de

cultura intermediária formulado por Hilário Franco Jr. Ao tratar da articulação entre a cultura

erudita e popular na Europa Medieval, esse historiador defendeu que a cultura intermediária era

um conjunto coerente de elementos comuns presentes tanto na cultura erudita quanto na cultura

popular, “na qual clérigos e leigos encontravam e criavam elementos compreensíveis aos dois

grupos, apesar de todas suas diferenças sociais, econômicas, políticas e funcionais”. Tais

elementos comuns estariam fundamentados pela visão analógica do mundo. (FRANCO JR,

2010: 96).

Utilizaremos, a partir desse estudo, o conceito de espaço intermediário, por considerar

que, ao contrário dos leigos e clérigos que já estavam em intenso contato antes mesmo de se

reconhecerem enquanto europeus, tupinambá e europeus passariam a se relacionar sem que uma

matriz cultural comum aos dois povos estivesse definida. Aqui, de outro modo, haveria um

espaço simbólico vazio – o espaço intermediário – a ser preenchido com elementos que se não

eram exatamente comuns, eram semelhantes. São nestes termos que podemos avançar no estudo

dos chefes tupinambá.

102 Sobre a crítica a respeito da relação entre cultura popular e letrada em Carlo Ginzburg, ver Ciro Flamarion

Cardoso e Ronaldo Vainfas (1997: 153).

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2 CHEFES TUPINAMBÁ E SUAS REPRESENTAÇÕES

2.1 PRIMEIROS CRONISTAS: ONDE ESTÁ O CHEFE?

O estudo dos primeiros cronistas103, mesmo quando carecem de informações mais

diretas acerca dos chefes tupinambá, para esta pesquisa, são de suma importância, pois, por

eles, podemos perceber, por um lado, a necessidade que havia entre os primeiros viajantes de

encontrar a figura de um chefe com quem pudessem efetuar os primeiros contatos104. Por outro

lado, podemos apreender quais práticas eram utilizadas para descobrir o chefe de determinado

povo, bem como juízo de valor que foi se formando quando tais práticas resultavam ineficazes.

Para a formulação deste tópico foram utilizadas, dentre o material levantado, a obra “Os

Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões (1572; 2011)105, a “Carta de Pero Vaz de Caminha”

(CASTRO, 2010), as “Cartas de Américo Vespúcio” (2003), a “História da província de Santa

Cruz”, de Pero de Magalhães Gandavo (2008).

Ao desembarcarem no “Novo Mundo”106, os europeus traziam consigo técnicas e

práticas que já vinham desenvolvendo desde o início das “Grandes Navegações” e cujo intuito

era orientar os primeiros contatos com povos distantes e ainda ignorados. Parte relevante dessas

práticas107 consistia em tornar aparente o líder da expedição, ao mesmo tempo em que se

buscava encontrar, entre os povos visitados, um chefe com quem pudessem estabelecer contato

inicial e traçar as primeiras alianças, visando, quase que exclusivamente, relações comerciais

entre as duas regiões.

103 A respeito deste tópico foi elaborado um artigo para o Encontro Humanístico de 2013, seminário promovido

pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). A disciplina de História da África, ministrada pelo professor

Josenildo, e a de Historiografia Brasileira, ministrada pela professora Marize, também foram de suma importância

para construção do tópico. 104 O chefe ideal, neste caso, seria aquele que pudesse representar um grupo. 105 O poeta português, também ele navegador, revela em sua obra práticas utilizadas pelos portugueses aos

primeiros contatos com povos africanos. 106 A designação de “Novo Mundo” começa a ser difundida depois da divulgação impressa das cartas de Américo

Vespúcio (2003). 107 A Carta de Caminha, nesse sentido, oferece um bom campo de análise. E a obra “Os Lusíadas” de Luis de

Camões (1572) pode, neste caso, ser utilizada para traçar conexões com a experiência narrada por Caminha, tanto

quanto para a percepção das referidas práticas.

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Um exemplo de tais práticas encontra-se na obra “Os Lusíadas”. Seguindo a narrativa

camoniana, a armada liderada por Vasco da Gama, depois de circundar o continente africano

pelo Oceano Atlântico, encontrava-se em algum ponto do Oceano Índico, entre Madagascar e

Moçambique. Foi “quando o mar, descobrindo, lhe mostrava novas ilhas que em torno cerca e

lava”. O capitão não encontrou razão para ali se deter, “pois inabitada a terra lhe parece”108.

Entretanto, quando se decidiu avançar para além das ilhas, “não lhe sucedeu como cuidava” e

os portugueses tiveram uma feliz surpresa. Pequenos bateis109 vindos das ilhas e carregados de

presença humana entraram em cena e coloriram a imaginação dos tripulantes. E enquanto os

povos de Moçambique se aproximavam, as primeiras indagações que faziam os portugueses

entre si eram “que costumes, que Lei, que Rei teriam?” [grifos nossos] (CAMÕES, 2011: 31).

Essa parte da narrativa é de bom valor para o presente estudo. Ao se questionar sobre

um “rei”, entende-se que para os portugueses a sua existência era dada como certa. Neste

mesmo sentido, também assinala o quanto a presença de um poder centralizado era de

fundamental importância para as futuras relações que se estabeleceriam entre os dois povos.

Indicativo indireto dessa importância nos oferece o próprio Camões, quando descreve, na

estrofe seguinte (Canto 1, Estrofe 46), as embarcações utilizadas pelos povos de

Moçambique110. Eram elas “muito velozes estreitas e compridas” (CAMÕES, 2011: 31)111.

Tais embarcações descritas pelo poeta português nos colocam diante de duas técnicas

de navegação distintas. Uma desenvolvida na Europa e outra desenvolvida na África. As dos

povos africanos eram praticamente as mesmas encontradas em toda costa continental.

Comumente feitas de apenas um tronco de árvores tropicais, eram longas e baixas. E movidas

geralmente por remos, suas manobras independiam dos ventos e das correntes marinhas.

108 Se por um lado a Cruzada contra os “infiéis” animou a ida dos portugueses às terras longínquas (BOXER,

2002), a lamentação de um “Américo Vespúcio” – para quem nas terras brasileiras não havia nada que se pudesse

aproveitar (PRADO JÚNIOR, 2008: 24), e a narrativa de Camões – para quem nas terras desabitadas não havia

razão para se deter (CAMÕES, 2011: 31) sugerem, por outro lado, que as possibilidades de lucro com o comércio

foram fator decisivo para as grandes navegações. Sobre esse debate historiográfico, ver John Kelly Thornton

(2004: 65 – 76). 109 Embarcações de pequeno porte. 110 Lembra-se que Camões estivera, ele próprio, envolvido em expedições levadas a cabo nesta mesma região. Por

isso a descrição pode estar associada à própria experiência vivida pelo narrador. 111 O que se pretende pontuar aqui é que as incertezas do sucesso em campanhas guerreiras obrigaram os

portugueses a buscar meios para estabelecer relações pacíficas com os povos africanos. Tais relações eram

forçadas, em grande parte, pelas embarcações desses últimos que, como veremos, conseguiam defender de forma

eficiente as suas localidades.

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Acrescenta-se ainda que elas deslocavam pouca água e por isso podiam operar na costa, nos

rios e também nos estuários e lagoas do interior das localidades. Essas características dão conta

de embarcações que, vis-à-vis com as armadas europeias, constituíam-se em alvos pequenos,

velozes e difíceis de ser acertados. Ademais, podendo carregar até cem arqueiros, as

embarcações africanas configuravam-se em um eficiente aparato de defesa (THORNTON,

2004: 81).

Nesse sentido, assinala-se que se a conquista das Canárias resultou de ações militares

movidas para se apossar de territórios e escravizar populações, em relação à costa africana, essa

tradição estaria barrada por uma cultura marítima bem desenvolvida e satisfatoriamente

organizada para proteção de suas águas. Não foram poucas as tentativas de conquista

fracassadas112, até que, em 1556, a Coroa Portuguesa se viu obrigada a negociar tratados de paz

e comércio em relação de igualdade com os governantes da costa africana. (THORNTON,

2004: 81-82).

Assim, a partir de 1500, ao desembarcar no “Novo Mundo”, cuja imensidão era ainda

desconhecida113, os portugueses já vinham experimentados por práticas adquiridas nos contatos

– que passariam de belicosos a pacíficos – com as populações da costa africana. Tais práticas

indicam a necessidade de realizar alianças com os povos visitados, a fim de cumprir a razão

mais imediata das viagens oceânicas: adquirir lucros com o comércio. Para essa finalidade – a

experiência já havia demonstrado –, era necessário o reconhecimento da liderança local, a fim

de que se pudessem estabelecer as primeiras relações. Entende-se assim as indagações da

narrativa camoniana sobre os costumes, a lei e o rei de determinado povo cuja existência era,

até então, ignorada.

Na continuidade dos versos de Camões, nota-se que Vasco da Gama, para receber o

povo ainda desconhecido, havia ordenado que se criasse um cenário apropriado para o

momento. Nesse sentido, é feito um arranjo com mesas cheias de alimentos e de muito vinho

para que todos pudessem aproveitar. Assim, o capitão da expedição recebe os africanos em seu

112 Cita-se dois exemplos: 1) a expedição de Nuno Tristão que, em 1446, tentou desembarcar uma tropa armada

em Senegâmbia e foi atacado por navios africanos que mataram quase todos os invasores; 2) a expedição de Valarte

que, em 1447, foi assassinado com quase toda sua tribulação quando foi atacado por embarcações africanas perto

da ilha de Gorée. 113 O desconhecimento relacionado ao continente americano fica evidente na própria carta de Caminha, que inicia

chamando o território de “terra” e finaliza o nominando por “ilha”.

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navio e estes não recusam nada do que é oferecido. “Enchem vasos de vidro, e do que deitam

os de Fáeton queimados nada enjeitam” (CAMÕES, 2011: 32).

Estamos diante de uma prática utilizada pelos portugueses para que pudessem assinalar

aos povos estranhos a figura de seu líder (no caso, o Vasco da Gama), tanto quanto para que

tais povos pudessem também indicar a figura sobre a qual estava representado o poder político

local. Esta “relação diplomática” era essencial para afirmar a relação que se estabeleceria entre

os dois povos distantes, se pacífica ou belicosa.

A Carta de Pero Vaz de Caminha oferece indícios de evento semelhante – embora com

algumas variações –, ocorrido também logo nos primeiros contatos com os tupinambá da costa

americana114. Depois que a tentativa de estabelecer comunicação com os tupinambá –

excetuando uma primeira troca de bens – resultou infrutífera115, o Capitão da Armada, Pedro

Álvares Cabral, ordenou que o piloto Alfonso Lopes, “por ser homem vivo e competente para

isso” sequestrasse dois tupinambá e os trouxesse para o navio, o que se cumpriu habilmente. O

referido piloto partiu com um esquife116 e começou a “sondar o porto por todas as partes”, até

que “tomou, então, dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos que estavam

numa almadia117”. Os tupinambá foram então levados “até o Capitão, em cuja nau foram

recebidos com muita festa” (CASTRO, 2010: 91)118.

A cena que se segue não difere muito da narrativa anterior realizada por Camões. Pedro

Álvares Cabral havia preparado um minucioso cenário para receber os dois jovens tupinambá

que foram capturados exatamente com esse intuito. Quando eles vieram a bordo, o capitão, na

tentativa de demonstrar uma diferenciação hierárquica em relação ao resto da tripulação, tal

como um rei no trono, estava “sentado em uma cadeira, com um colar muito grande no pescoço,

114 O contato entre Camões e Gandavo é certo, já que ambos tiveram suas obras impressas pela mesma tipografia,

tendo o poeta português redigido dois poemas na “História da Província”. Mas em relação à “Carta de Caminha”

o contato é improvável, pois tal documento, no tempo em que Camões escreve, jazia esquecido nos arquivos da

Coroa Portuguesa. 115 No primeiro momento, Caminha apontava o “barulho das ondas batendo na costa” como impedimento para

estabelecer comunicação. No segundo momento, acusava os povos tupi de barbaria, pois para o escrivão da Coroa

Portuguesa, os tupinambá não eram compreendidos por falarem todos ao mesmo tempo. Em momento posterior,

percebe-se que os tradutores não compreendiam o Tupi por se tratar de um idioma desconhecido. 116 Embarcação de pequeno porte utilizada pelos portugueses. 117 Embarcação de pequeno porte, comprida e estreita. 118 Como as práticas diplomáticas estabelecidas entre portugueses e africanos ainda eram desconhecidas pelos

tupinambá, estes tiveram que ser levados à força para o navio em que se encontrava Cabral, líder da Expedição e

único tripulante que poderia estabelecer uma relação oficial em nome da Coroa Portuguesa.

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e tendo aos pés, por estrado, um tapete”. Também havia a representação de uma Corte. “Sancho

de Tovar, Simão Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correa e todos nós outros que nesta nau

vamos com ele, ficamos sentados no chão pelo grande tapete” (CASTRO, 2010: 92). O sentar-

se ao chão é uma representação importante, pois demarca bem a diferenciação entre o capitão,

sentado na cadeira, e os outros tripulantes119.

Contudo, se a narrativa de Camões mostra que Vasco da Gama, depois de reconhecida

a sua liderança, recebe os convidados e lhes oferece um extraordinário banquete, em relação a

Cabral, mesmo com o impressionante cenário elaborado para indicar a sua liderança – um

cenário com direito a “trono”, tapete, tochas acesas, fartura de alimentos e vinho –, a mesma

diplomacia não traria resultado algum. Escreve Caminha que os dois tupinambá “entraram sem

qualquer sinal de cortesia ou de desejo de dirigir-se ao Capitão ou a qualquer pessoa presente

em especial” (CASTRO, 2010: 92). Não reconheciam, neste primeiro momento, a

hierarquização social e a centralização de poder como eram compreendidos no “Velho

Mundo”120.

Os signos que orientavam os portugueses e os tupinambá não permitiram uma primeira

comunicação entre os povos, que em relação aos lusitanos, repetindo, objetivava demonstrar a

figura do líder para que se pudesse estabelecer o tipo de relação que então se formaria entre

eles.

E as práticas que regiam os dois povos se mostravam ainda mais conflitantes em

relação ao banquete. Os povos de Moçambique da narrativa camoniana pareciam comer e beber

alegremente. Já no relato deixado por Caminha, a situação era bem outra. “Deram-lhes de

comer: pão e peixe cozido, confeitos, bolos, mel e figos passados”. Porém, os tupinambá

recusavam quase tudo e “se provavam alguma coisa, logo a cuspiam com nojo”. Ofereceram-

lhe uma taça de vinho, mas depois de provar o sabor, “imediatamente demonstraram não gostar

e não mais quiseram”. Até em relação à água – a bebida universal –, quando lhes trouxeram em

um jarro, “não beberam, apenas bochechavam, lavando as bocas, e logo lançavam fora”

(CASTRO, 2010: 93).

119 É necessário reter essa informação, pois voltaremos a ela em momento posterior. 120 Termo utilizado aqui para englobar a “Europa”, a “África” e a “Ásia”, onde, devido ao contato constante entre

os povos, supõe-se que aquelas mesmas “relações diplomáticas”, no período das Grandes Navegações, deveriam

ser facilmente reconhecidas.

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Houve ainda outro momento na narrativa de Caminha, cuja tentativa de demonstrar a

liderança de Cabral fica muito evidente. Os portugueses, já em terra firme, começaram a

atravessar um rio, e “o Capitão fez que dois homens o tomassem no colo, passou o rio e fez

tornar a todos”. Ser carregado no colo, no “Velho Mundo”, também deveria ser sinal facilmente

perceptível de que se tratava da figura de um líder, ou de alguém com status social diferenciado.

Mas Caminha é categórico em afirmar que novamente a tentativa de mostrar a liderança de

Cabral fracassara. Escreve que quando o capitão se aproximou dos demais portugueses,

chegaram-se alguns tupinambá junto de si, “não porque o conhecessem por senhor, pois me

parece que de uma tal posição não tenham entendimento, nem disso tomavam conhecimento,

mas porque a nossa gente já passava para aquém do rio” [grifos nossos] (CASTRO, 2010:

101)121.

Quanto mais as referidas práticas – como a formação de uma Corte e o oferecimento

de banquete –, desenvolvidas, por certo, nos contatos com os povos africanos, não surtiram,

entre os tupi da costa, o efeito esperado, deixando momentaneamente sem resposta a importante

pergunta camoniana – “que costumes, que ley, que Rei teriam?”122 –, ao invés de se perceber a

ineficácia do método aplicado, foi se formando um juízo de valor depreciativo a respeito dos

povos americanos123.

Na narrativa de Pero Vaz de Caminha (CASTRO: 2010, 104), a aparente inexistência

de chefes entre os povos do “Novo Mundo”, ajudava a transformá-los em “gente bestial”,

comparada a “animais monteses” ou a “pardais”. Nos escritos de Américo Vespúcio (2003:

43, 185), não se enxerga, entre os tupi, características fundamentais da natureza humana: “não

têm bens próprios”, “vivem ao mesmo tempo sem rei e sem comando”, “não têm templo”,

“vivem sem nenhuma lei”. No texto de Pero de Magalhães Gandavo (2008 [A]: 122), o discurso

depreciativo já se encontra mais bem organizado. E na impossibilidade de reconhecer as

121 Também retornaremos a esse ponto em momento posterior. 122 No “Canto Primeiro, estrofe 45”: Eis aparecem logo em companhia/ hus pequenos bateis, que vem daquella/

Que mais chegada a terra parecia,/Cortando o longo mar com larga vella:/ A gente se aluoroça, et de alegria/ Nam

sabe mais que olhar a causa della:/ Que gente sera esta, em si diziam;/ Que costumes, que ley, que Rei teriam?

[grifos nossos] (CAMÕES, 1572). 123 É preciso relativizar a ideia de que os portugueses eram mais eficientes do que os espanhóis devido ao já longo

trato com povos distantes, como se depreende ao generalizar os escritos de Sergio Buarque de Holanda (2000).

Em relação as práticas utilizadas para descobrir o chefe com quem pudesse iniciar contato, a experiência adquirida

com povos da África e das Índias Ocidentais, ao menos nos primeiros momentos de contato, resultaram-se, entre

os povos americanos, infrutíferas a ponto de desvirtuar e prejudicar o olhar dos “experientes” portugueses.

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especificidades indagadas nos versos heroicos de Camões, surgiria a famosa ideia de que por

toda a costa da América Portuguesa o idioma dos “povos autóctones” careceria de três letras: o

“f”, o “l”, e o “r”, “coisa digna de espanto”, continuava Gandavo, “porque assim não tem Fé,

nem Lei, nem Rei” [grifos nossos]124.

Como veremos, no século XVII, os chefes tupinambá já eram bem conhecidos. As

estratégias para denunciar a presença de um “líder” já era percebida pelos tupinambá tanto

quanto pelos europeus. A tópica do “sem fé, sem lei e sem rei”, mesmo que apareça aqui e ali

nas narrativas de Claude d’Abbeville (2008) e Yves d’Évreux (2007), ia, aos poucos cedendo

espaço para descrições e diálogos com grandes morubixabas. O chefes tupinambá já apareciam

como representantes de um grupo local ou de uma região e passavam a ser fundamentais para

direcionar o contato entre os dois povos. A seguir, destacaremos as passagens que esses dois

padres franciscanos fizeram, de maneira direta, aos chefes tupinambá.

2.2 CHEFES TUPINAMBÁ PARA CLAUDE D’ABBEVILLE

Na obra de Claude d’Abbeville há um único capítulo específico acerca dos chefes

tupinambá: “leis e policiamento entre os índios tupinambás”. Para o referido cronista, os

tupinambá “sem fé nem sombra de religião, jamais tiveram lei, nem policiamento fora da lei

natural”. Continua o padre franciscano:

Em verdade, são os índios tão ciosos do que pertence a cada um que se alguém

prejudica a outrem deve pagá-lo pela pena do talião. Assim uma bofetada é paga com

outra; se alguém quebra um braço ou qualquer outro membro de um companheiro,

terá também a mesma pena; e se mata, tem algumas modificações, porquanto o direito

natural é imutável [...]; mas não praticam a justiça com formalidades e autoridade

pública, porém tão somente de fato e na própria intimidade (ABBEVILLE, 2008:

345).

124 Tais juízos depreciativos formulados por conquistadores leigos como Caminha, Vespúcio e Gandavo foram

ressignificados pelos clérigos (d’Abbeville e d’Évreux são exemplos elucidativos), e os tupinambá adquiririam

novamente o status de humanos, porém, de humanos em “estado natural” (e não cultural) e dominados pelo Diabo.

Tal tendência legitimou, pela conversão, o projeto colonizatório europeu.

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Pode-se perceber, por um lado a permanência da velha pergunta camoniana – a fé a lei

e o rei que, para Gandavo, não existiriam entre os tupinambá. Mas em d’Abbeville, se os

tupinambá permanecem ainda como um povo “sem fé e sem religião”125, a “lei” passava a ser

vislumbrada. Porém, pelos menos do ponto de vista de um padre franciscano da França no

século XVII, sem os atributos da cultura, a lei dos tupinambá era relegada à esfera da natureza.

Quanto ao “rei” da pergunta camoniana, vejamos o que diz o padre Claude:

Cada aldeia tem um chefe ou principal. É, em geral, o mais valente capitão, o mais

experimentado, o que maior número de proezas fez na guerra, o que massacrou maior

número de inimigos, o que possui maior número de mulheres, maior família e maior

número de escravos, adquiridos graças ao seu valor próprio, é o chefe de todos; o

principal; não eleito publicamente, mas em virtude da fama conquistada e da

confiança que nele depositam [grifos nossos] (ABBEVILLE, 2008: 345).

Guardemos as partes grifadas, pois voltaremos a elas em momento posterior. Por ora,

destaca-se que aquele chefe, “não eleito publicamente”, e que precisava conquistar a confiança

dos demais para legitimar a sua condição, tinha uma autoridade limitada. Vejamos o que diz

novamente o padre d’Abbeville:

Limita-se o poder do chefe à orientação dos demais por meio de conselhos,

principalmente nas reuniões que fazem todas as noites na Casa Grande do centro da

aldeia. Depois de aceso um grande fogo, utilizando à guisa de candeia para fumar,

armam suas redes de algodão e, deitados cada qual com seu cachimbo na mão,

principiam a discursar, comentando o que se passou durante o dia e lembrando o que

lhes cabe fazer no dia seguinte a favor da paz ou da guerra, para receber seus amigos

ou ir ao encontro dos inimigos, ou para qualquer outro negócio urgente, o que

resolvem de acordo com as instruções do principal em geral seguidas à risca

(ABBEVILLE, 2008: 346).

Em mais dois momentos da narrativa Claude d’Abbeville refere-se diretamente aos

chefes tupinambá. No primeiro, ao tratar da poligamia, vejamos o que diz o referido cronista:

A pluralidade de mulheres lhes é permitida; podem ter quantas desejam […].

Entretanto, embora a poligamia seja permitida, os homens, satisfazem-se eles, em sua

maioria, com uma só mulher. Somente a fim de ganhar certo prestígio tomam muitas

mulheres; são nesse caso julgados grandes homens e se tornam os principais das

aldeias [grifos nossos] (ABBEVILLE, 2008: 300).

125 “Não há, penso eu, nenhuma nação no mundo que não tenha uma religião. Todos adoram um deus, salvo a dos

tupinambás que não adora nenhum, nem celeste nem terrestre, que não idolatra nem o ouro nem a prata, nem as

madeiras, nem as pedras preciosas, nem qualquer coisa. Não tinha, até a nossa chegada, religião; portanto, não

tinha sacrifícios, nem sacerdotes, nem ministros, nem altar, nem templos ou igrejas. Nunca souberam os índios

tupinambás o que fosse nem prece, nem ofício divino, nem oração pública ou particular” (ABBEVILLE, 2008:

339)

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Assim, percebe-se novamente que para Claude d’Abbeville, uma das características

ou privilégios dos chefes era ter várias mulheres. E o faziam, segundo o cronista, para adquirir

prestígio.

No segundo momento, esse cronista refere-se à guerra. Vejamos o que ele diz:

Escolhem para chefe o que julgam mais hábil e valente, e este vai de cabana a cabana

exortando os homens e, com grandes gritos, dizendo-lhes como se devem preparar

para a guerra. Mostra-lhes também que é importante se apresentar com coragem, pois

pela covardia perderiam, para sua desonra, a reputação guerreira da nação conquistada

pelos antepassados na matança e esquartejamento dos inimigos. Tais discursos e

encorajamento, que duram não raro três a quatro horas, os animam de logo se meterem

a preparar as armas, a farinha e demais provisões necessárias à guerra (ABBEVILLE,

2008: 309).

Tal passagem nos permite reforçar outra especificidade dos chefes tupinambá sugerida

por d’Abbeville: a forte relação que eles tinham não apenas com comando ou com preparação,

mas com todas as questões relativas à guerra.

A seguir, consideraremos as passagens em que Yves d’Évreux descreveu a figura do

chefe tupinambá.

2.3 CHEFES TUPINAMBÁ PARA YVES D’ÉVREUX

Yves d’Évreux (2007) trata dos chefes tupinambá de maneira mais detalhada em dois

capítulos: “Regras e meios puramente naturais, observados pelos selvagens, pelos quais eles

levam uma vida muito doce e prazerosa” e em outro intitulado “Da economia dos selvagens”.

Nesse segundo, o cronista descreve como as aldeias eram governadas. Vejamos:

As aldeias são divididas em quatro habitações, sob o governo de um muruuichaue,

para o temporal, e um pagy-uaçu, isto é, um feiticeiro para as moléstias e bruxarias.

Cada habitação tem o seu Principal: estes quatro principais estão sob as ordens do

maioral da aldeia, o qual conjuntamente com outros de várias aldeias, obedecem ao

principal soberano da província (ÉVREUX, 2007: 104 – 105).

D’Évreux acrescenta que nas habitações moravam cada família sob o comando de um

pai de família, “e todos os pais de família de cada cabana reconhecem o Principal da mesma

cabana”. A família era dividida em três: “mulher, filhos e escravos”. E todos reconheciam o pai

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de família como chefe, “e é ele que dá as ordens em suas diversas ações”. Se algo de novo

acontecia, argumenta o padre, “o Soberano Principal de toda a província avisa os Principais das

aldeias sobre o ocorrido, e estes comunicam aos Principais das cabanas, e estes aos outros”. Se

não havia nada além do corriqueiro, “o Principal da aldeia ordena, à noite, no Carbet126, aquilo

que deve ser feito no dia seguinte”. Assim, os chefes “principais das cabanas” levantavam-se

pela manhã antes de todos e percorriam sua cabana de uma ponta a outra, duas ou três vezes,

declarando em voz alta o que os demais deveriam fazer durante o dia (ÉVREUX, 2007: 105).

Esse padre franciscano destaca, ainda nesse capítulo, qual era a hierarquia entre os

tupinambá. Em primeiro lugar vinha o “morubixaba da província”. Depois, o “morubixaba de

cada aldeia”. Em seguida, o “morubixaba de cada cabana”. Estes eram seguidos pelo “chefe de

cada família” e pelas “mulheres”, “crianças” e “escravos”, nessa ordem (ÉVREUX, 2007: 105).

Já no outro capítulo de que fazemos referência, esse cronista descreve quais eram as

características da autoridade dos morubixabas e como o poder do chefe funcionava na prática.

Vejamos:

Os mourouuichaues, isto é, os principais destes selvagens, conduzidos somente pela natureza,

não se valem de qualquer gravidade, palavra arrogante ou de comando. Não desprezam

nenhum de seus inferiores, escutam o conselho de todos aqueles que chegaram ao grau de

idade dos anciãos, e não tapam os ouvidos a ninguém (ÉVREUX, 2007: 94).

Novamente a natureza, e não a cultura, conduz o poder político dos tupinambá. E

percebe-se, tal como fora com d’Abbeville, a presença dos anciãos como limitadora do poder

de um chefe. E d’Évreux acrescenta que mesmo quando a Ilha do Maranhão estava sob cerco

dos portugueses e eram necessárias medidas mais urgentes, antes que algo fosse executado,

Japiaçu127 precisava propor aos anciãos da Ilha, nas casas grandes, aquilo que se desejava fazer.

Assim, ele e os outros principais tinham que ir de aldeia em aldeia a convocar reuniões com os

anciãos a fim de expor as decisões. E continua d’Évreux: “não há nada que eles desprezem mais

do que quando um dos seus principais toma uma decisão sem comunicar a questão aos anciãos

da nação em pleno Carbet e diante de todos aqueles que ali se encontram” (ÉVREUX, 2007:

94).

126 No tempo do contato com os franceses, os tupinambá erguiam casas grandes, também chamada de Carbet, no

centro das aldeias, locais em que ocorriam as reuniões de anciãos, cauinagens, rituais antropofágicos. Era o local

dos eventos políticos e públicos. 127 Apêndices, Tabela I, número 5.

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Nesse mesmo capítulo, os principais tupinambá são igualados aos demais das aldeias.

E esse padre também tece considerações a respeito do poder e da autoridade que um chefe

poderia atingir. Vejamos:

Os principais não se vestem melhor que os outros, nem são mais ricos, e não são como

nós que prezamos e respeitamos, não o valor nem a virtude, mas somente os bens e as

riquezas […]. Vocês ouviram falar e leram várias vezes sobre Japiacu, o primeiro do

Maranhão e principal dos principais. Porém, se vocês o vissem com seus próprios

olhos, nu e franzino como os outros, indagariam: “É este o grande de quem tanto se

falou?” Entretanto, este selvagem, pobre quanto aos bens exteriores, é tão rico de

autoridade e de poder entre os seus, que é capaz de comover cinquenta mil almas da

sua nação e aproximá-las do lado para o qual se incline, e isso sem dinheiro, sem

soldo, sem recompensa ou salário (ÉVREUX, 2007: 95).

Ao final da passagem referida, d’Évreux compara os chefes tupinambá aos reis das

demais partes do mundo:

Quem é o monarca das três velhas partes do mundo, Ásia, África e Europa, que pode

fazer isso? [...] É que a natureza conservou muito dos seus traços e características

intactos nestas nações solitárias, os quais foram corrompidos no Velho Mundo pela

ambição e avareza. Deste modo, a inclinação natural de seguir um chefe pela proteção

do que é público cria naqueles selvagens aquilo que, neste mundo corrompido, a

autoridade dos príncipes soberanos não pode fazer com seus súditos, que se não fosse

pela tendência natural a se conservar que têm, assim como os animais e os brutos, não

se organizariam em tropas seguindo seu chefe (ÉVREUX, 2007: 95).

Por fim, o referido cronista acrescenta outras particularidades acerca da postura dos

chefes e assinala qual seria a diferença entre as formas de “dominação” europeia e tupinambá.

Estes principais não são rudes na fala, não repreendem vigorosamente, comportam-se

de maneira bastante simples nas tropas, bebem e comem dos mesmos víveres, sentam-

se sobre a terra, assim como os mais pobres. Enfim, vocês não notam neles, nem em

seus gestos, qualquer presunção de sua grandeza, honrando, deste modo, a virtude

natural que está dentro deles, por desempenhá-la em seu comportamento. A mesma

virtude leva os inferiores a respeitá-los e reverenciá-los. Esta é a grande diferença

entre a dominação destes selvagens e a dominação dos príncipes da Europa, para

aquele que queira pensar com atenção sobre o assunto, pois a dominação dos

selvagens provém da virtude natural e só se conserva por esta, e a dominação da maior

parte dos grandes da Europa vem da sucessão e se conserva pelo poder, deixando à

parte a regulamentação e a providência divina, dos quais procedem e descendem todas

as soberanias, autoridades e poderes (ÉVREUX, 2007: 95-96).

Parece haver, para este cronista, uma distinção – também perceptível na narrativa de

Claude d’Abbeville – entre a sociabilidade dos europeus como algo adquirido pela cultura, e a

sociabilidade dos tupinambá, como uma permanência da natureza. E isso fica claro em relação

à autoridade do poder, advinda, no caso dos franceses, pela tradição da sucessão, e, no caso dos

tupinambá, advinda pelo o que d’Évreux chamava de “virtude natural”.

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Em linhas gerais, essas informações, oferecidas pelos cronistas de maneira mais direta,

nos são de suma importância, pois, a partir delas, podemos conduzir os objetivos de nossa

pesquisa, a saber: apreender as características dos chefes tupinambá e as relações sociais que

possibilitavam a sua reprodução e lhes serviam de manutenção ao longo do tempo, para, a partir

daí, evidenciar os pontos de tensão ocasionados na sociedade tupinambá no período de contato

com os europeus e, mais especificamente, no tempo da aliança entre os tupinambá do Maranhão

e os franceses. Voltaremos a elas em momento posterior. No próximo tópico, serão destacados

os principais trabalhos que levantamos acerca do problema chamado “chefe tupinambá”.

2.4 CHEFES TUPINAMBÁ EM PESQUISAS INTERDISCIPLINARES

Partindo do campo da Arqueologia, para André Prous (1993: 416), entre os tupinambá

haveria uma ausência completa de poder político coercivo. Os homens seriam iguais em direito,

o que não impediria a existência de diferenças de influências pessoais, verificando-se inclusive

a ocorrência de uma hierarquia, dividida por esse pesquisador em três.

A primeira seria a “hierarquia de paz”, através da qual os anciãos se reuniriam em

conselho toda vez que uma decisão importante deveria ser tomada. Vejamos o que diz Prous:

Entre os ‘anciãos’ destaca-se um ‘chefe’ ou ‘principal’, que pertence sempre a uma

mesma linhagem: é filho, ou irmão, ou parente do chefe anterior, a não ser que não

haja ninguém de prestígio suficiente na família deste; neste caso, escolhe-se em outra

linhagem (PROUS, 1993: 416).

Para esse pesquisador a sucessão de chefia ocorreria em uma “transmissão familiar”.

E o papel do chefe seria o de encarnar a “tradição tribal”. E isso era feito através de discursos

e do exemplo das “virtudes tradicionais”. Independente da hierarquia, completa, um homem se

destacaria por sua coragem física, “avaliada pelo número de prisioneiros que fez ou que matou

ritualmente (PROUS, 1993: 416).

A segunda seria a “hierarquia de guerra”, considerada por esse arqueólogo a mais

importante, devido, explica, ao número de expedições que eram organizadas. Vejamos suas

considerações:

Como estavam organizadas por várias aldeias aliadas, havia necessidade de ser

escolhida uma autoridade por assim dizer ‘federativa’. De fato, Soares de Sousa

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sugere que a proposta inicial [de guerra] pode ser feita por um chefe de aldeia ao

conselho, e os proponentes tinham a incumbência de armazenar as provisões

necessárias, o que limitava os candidatos ao círculo dos indígenas mais importantes,

dispondo de uma clientela de genros. A chefia das expedições deve ter sido cada vez

mais reservada a uma categoria ainda mais restrita, baseada no prestígio pessoal, no

início, porém com tendência a ser hereditária como a chefia da aldeia. E eram essas

pessoas que congregavam os exércitos aliados e que os europeus chamaram de ‘reis’.

Em todo caso, é notável a resposta que os indígenas brasileiros deram ao filósofo

Montaigne, que perguntava qual era o privilégio de seus reis: “Andar os primeiros no

combate”. Durante as operações, não parece ter havido maior hierarquia, a não ser a

mesma que regia os contatos ‘civis’, os genros tendo o dever de proteger seu sogro

(PROUS, 1993: 417)

Por fim, haveria, uma terceira “hierarquia religiosa”. Essa diferenciava-se dos “pajés”,

que seriam simples curandeiros e exerceriam, fora de suas atividades especializadas, funções

semelhantes as de todo o grupo. Já os “caraíbas” seriam bem diferentes. Vejamos os argumentos

de Prous:

Os caraíbas gozavam de um status mais alto, profetizavam, interpretavam os sonhos

relacionados com as questões de interesse geral e, ao que parece, dirigiam cerimônias

coletivas. Alguns caraíbas mais famosos não tinham residência fixa, mais iam

sozinhos ou em pequeno grupo de aldeia em aldeia, onde atendiam a congregações

numerosas que vinham das redondezas [...]. Portanto, deveria tratar-se de

“especialistas” que não gastavam mais o tempo para procurar seu sustento, o qual

recebiam de seus hóspedes (PROUS, 1993: 417).

Levando em conta a sua argumentação, é necessário destacar que Prous considera as

hierarquias em separado, como se ocorresse a existência de três tipos diferentes de chefes128.

Para além disso, esse arqueólogo nega a existência de poder coercitivo entre os tupinambá e

considera a existência de uma transmissão sucessiva da condição de chefia entre os familiares

de um chefe.

Pierre Clastres, partindo do campo da Filosofia e da Antropologia, concorda que os

chefes de guerra e de paz, entre os “indígenas brasileiros”, costumavam mesmo ser duas pessoas

distintas. Porém, visualiza um poder coercitivo na figura do chefe guerreiro. Vejamos o que diz

esse filósofo antropólogo:

Durante a expedição guerreira, o chefe dispõe de um poder considerável, às vezes

mesmo absoluto, sobre o conjunto dos guerreiros. Mas, com a volta da paz, o chefe

de guerra perde toda a sua potência. O modelo do poder coercitivo não é então aceito

senão em ocasiões excepcionais, quando o grupo se vê diante de uma ameaça externa.

Mas a conjunção do poder e da coerção cessa desde que o grupo esteja em relação

128 No Maranhão, as evidências nos levam ao sentido oposto. Poderia haver chefes que eram guerreiros e pajés ao

mesmo tempo. O chefe e pajé de Tapuitapera, por exemplo, lembrava a Yves d’Évreux (2007: 36) que “minhas

feitiçarias concorreram menos para granjear autoridade do que muitas vezes manifestei na guerra”.

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somente consigo mesmo. Assim, a autoridade dos chefes tupinambá, incontestada

durante as expedições guerreiras, se achava estreitamente submetida ao controle do

conselho dos anciãos em tempo de paz (CLASTRES, 2013: 49).

A respeito das características dos chefes, esse pesquisador aponta quatro traços

distintos. Um chefe deveria ser, primeiramente, um “fazedor de paz”. Sua tarefa era a da

manutenção da paz e da harmonia no grupo. Ele deveria também apaziguar disputas e regular

divergências. E tudo isso, “usando de uma força que ele não possui e que não seria reconhecida,

mas se fiando apenas nas virtudes de seu prestígio, de sua equidade e de sua palavra”

(CLASTRES, 2013: 49).

A segunda característica dos “chefes indígenas” seria a “generosidade”, considerada

por Clastres como uma espécie de servidão. “A obrigação de dar, à qual o chefe está preso”,

escreve ele, “é de fato vivida pelos índios como uma espécie de direito de submetê-lo a uma

pilhagem permanente. E se o infeliz líder procura frear essa fuga de presentes, todo prestígio,

todo poder lhe são imediatamente negados”. Citando Claude Levi-Strauss, Clastres argumenta

que a generosidade desempenharia um papel fundamental para determinar o grau de

popularidade de um chefe. E completa: “avareza e poder não são compatíveis, para ser chefe é

preciso ser generoso” (CLASTRES, 2013: 49-50).

A terceira característica seria o “talento oratório”: “uma condição e também um meio

do poder político”. Para Clastres, uma das características, ou função, dos “chefes indígenas” da

América do Sul seria a obrigação de efetuar todos os dias, no amanhecer ou no final da tarde,

um discurso edificante às pessoas do seu grupo. “Exortam todos os dias o seu povo a viver

segundo a tradição”. A temática desses discursos estaria estritamente ligada à função de

“fazedor de paz” (CLASTRES, 2013: 50).

A quarta característica seria a “poligamia”. Quase todas as “sociedades indígenas”

reconhecem a poligamia, porém, argumenta esse filósofo antropólogo, “quase todas também a

reconhecem como um privilégio mais frequentemente exclusivo do chefe” (CLASTRES, 2013:

51). Esse seria o caso dos guerreiros tupinambá. Os mais felizes no combate, argumenta,

poderiam possuir esposas secundárias, geralmente prisioneiras advindas dos grupos vencidos

(CLASTRES, 2013: 54).

Acrescenta-se que Pierre Clastres considerava a característica de “fazedor de paz”

como algo fora da esfera estritamente política. As outras três características seriam fundadas

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em uma espécie de troca, em que o chefe disponibilizava ao grupo a “oratória” e a

“generosidade” e o grupo lhe disponibilizava as “mulheres”. Era essa relação de troca que

fundava o campo político entre os “indígenas brasileiros” (CLASTRES, 2013).

Destaca-se ainda que Clastres considerava os tupinambá como exceção das

“sociedades indígenas brasileiras”. Conhecendo um adensamento demográfico seguido do

princípio de estruturas hierarquizantes, os tupinambá, desde o século XVI poderiam estar em

vias de transformação de uma “sociedade primitiva” para uma “sociedade com Estado”

(FAUSTO, 1992; SZTUTMAN, 2012).

O antropólogo Carlos Fausto (1992; 2010) discorda de muitas das proposições dos

autores citados. Para ele não haveria estrutura hierarquizante, não havia a semente clastreriana

do “Um”. Tampouco, como veremos na sequência, se poderia falar de sucessão familiar de

chefia. Vejamos os argumentos desse pesquisador, primeiramente a respeito da organização

política das aldeias:

Aldeias, ligadas uma a uma, formavam “conjuntos multicomunitários” com limites

flexíveis e, sobretudo, sem centro. A ideia de uma aldeia principal, originária, central,

onde residiria o chefe supralocal é estranha à organização sócio-política tupinambá.

Alguns autores confundiram o prestígio de certos chefes, cuja a fama e renome

ultrapassavam os limites de sua aldeia, com um “soberano da província” (FAUSTO,

1992: 389).

Nesse sentido, um chefe como Japiaçu, referenciado por d’Abbeville, d’Évreux e

Diogo de Campos Moreno, podia até gozar de maior prestígio, obtendo maiores oportunidades

de mando e de liderança militar. Porém, completa Carlos Fausto (1992: 389), estaria muito

longe do que se poderia compreender como “soberano de província”.

Em relação à estrutura da chefia propriamente dita, ela seria tão difusa quanto a das

unidades sociais. Vejamos suas considerações acerca das características dos “principais”:

Era alguém que conseguira reunir em torno de si uma grande parentela. O processo

de constituição da unidade residencial dependia da capacidade de um homem de atrair

o maior número possível de genros e, ao mesmo tempo, reter alguns dos seus filhos

de sexo masculino. [...] Como indica Viveiros de Castro, este “atrator uxorilocal (e o

serviço da noiva a ele associado) era um efeito do sistema político, e não uma regra

mecânica: “o acesso a chefia implicava escapar do ‘campo gravitacional’ da

uxorilocalidade129, por meio de estratégias matrimoniais (poligamia e avunculato),

129 Uxorilocalidade é um costume institucionalizado em que os cônjuges moram na casa da mulher, ou no seu

povoado, após o matrimônio.

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mas também da fama guerreira”. [...] Todo chefe, além de sogro, era um grande

matador e líder de um grupo de guerreiros (FAUSTO, 1992: 389).

Como se vê, o grande guerreiro e o sogro fazedor da paz, diferentemente das avaliações

de Prous e de Clastres, estariam ou poderiam estar associados a uma mesma pessoa. Carlos

Fausto discorda também daqueles pesquisadores em relação à sucessão. Seria inexato afirmar

que entre os tupinambá haveria uma sucessão de chefia hereditária. Vejamos:

Na verdade, ser filho de chefe não era senão um ponto de partida para reivindicar essa

condição – não era, porém, nem condição necessária, nem suficiente. Era preciso ser,

como relata Abbeville, o mais valente, o que mais proezas fez na guerra, o que mais

massacrou inimigos, o que possui maior família, maior número de mulheres, maior

número de cativos. Não há um “organograma da chefia”. A estrutura do poder

depende do evento, da circunstância, dos caprichos do acontecimento. Esse é o caráter

performativo da estrutura tupi [...]: em vez de exorcizar o evento, faz dele uma

variável estrutural, preservando sempre um resíduo de incerteza – não redutível à

distinção norma e prática – que aponta para um noção não elementar de “regra” [...].

Esse intervalo, esse “resíduo de incerteza”, é justamente o espaço do político na

sociedade tupinambá (FAUSTO, 1992: 390)

Florestan Fernandes (1989; 2006) parte do campo da Sociologia para estudar a

sociedade tupinambá. Ao tratar dos atributos básicos para aquisição de prestígio entre esses

povos, enumera três princípios. O primeiro, considerado o mais significativo estaria associado

ao parentesco. A importância da “árvore genealógica” e a “extensão do grupo de indivíduos

ligados entre si por laços de parentesco” concederiam aos indivíduos uma posição bem definida

na hierarquia tribal. Os outros dois princípios funcionariam de modo concomitante e estariam

associados ao “sexo” e à “idade” dos indivíduos. Vejamos como esse pesquisador fundamenta

a questão (FERNANDES, 1989: 266):

Uma das funções destes dois princípios consistia no propiciamento ou no alargamento

das condições em que o critério de parentesco devia ser empregado. Todavia, também

forneciam distinções básicas mais amplas, por meio das quais a população era dividia

em duas camadas, de acordo com o sexo, e estas em diversas categorias, conforme às

variações limites, de idade.

Partindo destes princípios, os tupinambá se esforçariam para elevar ao máximo as

possibilidades de aproveitamento de qualidades pessoais, socialmente apreciadas e desejadas.

As considerações coletivas a respeito dos sucessos ou insucessos cotidianos repercutiriam

“automaticamente” no prestígio e no status social de um indivíduo.

Dentre os meios pelos quais um tupinambá poderia ampliar seu prestígio, o primeiro

referenciado por Florestan Fernandes está relacionado às aptidões reveladas nos trabalhos

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agrícolas. “Dificilmente”, argumenta, “um indivíduo poderia aumentar o seu prestígio sem que

possuísse realmente grande capacidade de trabalho” (FERNANDES, 1989: 266).

Outro símbolo de elevação do status social estava associado ao número de mulheres

de um indivíduo. Vejamos o argumentos desse pesquisador:

Embora os guerreiros excepcionais recebessem com frequência mulheres de presente

e ofertas de novas alianças, a conservação das mulheres em sua companhia

subordinava-se à sua capacidade de provê-las razoavelmente de alimentos de

procedência masculina. Por isso, o aumento do grupo de mulheres se processava na

velhice do homem: então podia contar com a cooperação dos filhos e, muitas vezes,

também com a cooperação dos genros. Os que malogravam, nesse sentido,

conservavam-se monógamos (FERNANDES, 1989: 266)

A condição social de um tupinambá também estaria expressa em seus bens pessoais.

Ornamentos de penas, pedras altamente reputadas socialmente e colares de dentes dos inimigos

indicariam o status de um indivíduo. Os tembetás de pedras verdes eram um desses ornamentos.

Privativos dos grandes guerreiros, os “indígenas jovens” construíam os seus de madeira, de

caramujo ou de ossos bem polidos. E o tamanho de tal ornamento indicaria também o grau de

prestígio (FERNANDES, 1989: 268)

A capacidade discursiva, para esse pesquisador, também oferecia reputação a um

indivíduo. “Os grandes oradores eram chamados de “senhores da fala”, e tornavam-se líderes

eventuais de grandes ações coletivas. “Ouviam-nos com prazer, durante uma noite inteira e

adotavam com facilidade os pontos de vista ou as decisões por eles enunciados”. Para

Fernandes, a seleção dos oradores se processava com certo rigor, pois os tupinambá formavam

“grupos de discussão” cujos membros procurariam derrotar seus adversários (FERNANDES,

1989: 267)

Florestan Fernandes também considera as atividades de um “xamã” – ou “caraíba” –

como uma fonte de elevação de status. Todavia, tais atividades não estavam separadas daquela

que esse sociólogo considerava a maior fonte de prestígio de um tupinambá: os feitos guerreiros

(FERNANDES, 1989: 268). O “chefe de religião” visualizado por Prous deveria, antes, se

destacar como um “chefe de guerra”. Vejamos os argumentos de Florestan sobre os dotes

guerreiros enquanto condição necessária de um chefe tupinambá:

As indicações dos cronistas revelam, de fato, que as aptidões guerreiras e as

qualidades belicosas (presumivelmente de organização) se colocavam entre os

atributos básicos dos principais. [...] “É, em geral, o mais valente capitão, o mais

experimentado, o que maior número de proezas fez na guerra, o que massacrou o

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maior número de inimigos” [...]. “Este principal há de ser valente homem para o

conhecerem como tal” [...]. “E o mais valente e aparentado”; “aquele que entre eles

se mostra mais feroz e fala mais alto é mais temido e obedecido por todos”

(FERNANDES, 2006: 259-260).

Mas as aptidões guerreiras, por si só, não bastavam. O “sistema de promoções sociais”

dos tupinambá funcionava de maneira a impedir que os fracassados nos empreendimentos

guerreiros chegassem ao cargo de chefia. Contudo, processo de aquisição de “prestígio”130

exigia não só os feitos guerreiros. O indivíduo tinha que ser ele próprio, um guerreiro capaz de

agir como um “forte” em todas as circunstâncias previstas de contato à mão armada com os

inimigos. Haveria, por fim, uma espécie de peneiramento, e o indivíduo só se tornava um

“morubixaba” depois de uma grande intensificação de suas capacidades (FERNANDES, 2006:

195).

A revisão bibliográfica nos possibilitou não só o fundamental apoio na caracterização

dos chefes tupinambá, mas também serviu de base para o entendimento do funcionamento

daquela sociedade. É a partir da das considerações efetuadas pelos referidos pesquisadores e do

cruzamento de dados com a crônicas do século XVI que podemos iniciar a análise das obras de

Claude d’Abbeville (2008) e de Yves d’Évreux (2008). No próximo capítulo responderemos as

três perguntas fundamentais desse trabalho. Quem eram os chefes tupinambá? Quais as relações

sociais que asseguravam a reprodução da condição de chefe ao longo do tempo? Quais as

tensões evidenciadas depois do contato entre tupinambá e europeus?

130 Termo utilizado pelos cronistas. Florestan Fernandes, a partir de categorias weberianas, também utilizava

“carisma”. Renato Sztutman (2012) utiliza a expressão “magnificação” que, ao contrário das outras categorias,

demonstra o movimento do processo.

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3 TENSÃO NO MUNDO TUPINAMBÁ: CARACTERÍSTICAS DOS CHEFES,

RELAÇÕES SOCIAIS E CONTRADIÇÕES NO TEMPO DO CONTATO.

3.1 CARACTERÍSTICAS DOS CHEFES TUPINAMBÁ A PARTIR DAS NARRATIVAS DE

CLAUDE D’ABBEVILLE E YVES D’ÉVREUX

Chegamos ao momento de expor os dados da pesquisa. A informação será dividida por

temas, segundo as nomenclaturas criadas para designação das características dos chefes

tupinambá. O objetivo é organizar os dados e facilitar a compreensão do texto.

O procedimento para chegarmos aos resultados abaixo organizados consistiu, em um

primeiro momento, em sistematizar toda informação referente aos chefes tupinambá contida

nas obras de Claude d’Abbeville (2008) e de Yves d’Évreux (2007). Em um segundo momento,

partimos dessa sistematização para elaborar uma tabela em que constam todos os tupinambá

citados pelas referidas narrativas (Apêndice 1, Tabela 15). Em um terceiro momento, os dados

sobre os chefes tupinambá possibilitaram a formulação de outra tabela que apresenta as

principais características desses chefes, bem como as relações que serviam de manutenção da

condição de chefia ao longo do tempo (Apêndice 2, Tabela 16).

Acrescenta-se que depois da apresentação de cada característica, constará a sua

localização tal como encontra-se na última tabela referenciada. Poderá ser observado nessas

referências, além das características citadas, as relações sociais ou demais fatores que estavam

conexos à elas. Por exemplo, a aquisição de “vários nomes”, característica dos chefes

tupinambá, virá associada com o “esfacelamento de crânios”, com os “rituais antropofágicos”

e a “escarificação do corpo”, pois todos estavam relacionados, acreditamos, ao mesmo processo

de aquisição de prestígio.

Somado a isso, destaca-se que tais características não devem ser pensadas em uma

escala de importância. Afinal, é de se esperar, por exemplo, que um padre franciscano fizesse

mais referências à poligamia, tão comum aos chefes tupinambá quanto odiada pelos clérigos,

da mesma forma que seria de esperar que um La Ravardière, caso nos chegassem os seus relatos,

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fizesse mais referências à guerra. E neste mesmo sentido, pontua-se que a característica mais

comum a todos os chefes – necessariamente homens de idade avançada – e prontamente

verificada quando o narrador encontrava-se lado a lado a um chefe tupinambá, podia passar

despercebida – e geralmente passava – pelo simples fato de que as coisas mais corriqueiras

tendem a não ser notadas e por isso deixam de ser mencionadas131.

A seguir, apresentaremos as principais características dos chefes tupinambá.

3.1.1 Thuyuaë: Homem Velho

As duas primeiras características dos chefes tupinambá estão orientadas de acordo com

as categorias de gênero e idade. Apenas os tupinambá do gênero masculino e de idade avançada

poderiam alcançar a condição ou status de morubixaba.

Claude d’Abbeville, apesar do evidente exagero no que se refere à idade desses chefes,

é categórico. Japiaçu, chefe da aldeia Juniparã132 e principal liderança de toda Ilha Grande do

Maranhão (atual São Luís), embora surgisse ao missionário francês como alguém “tão bem

disposto quanto na primavera da vida”, teria aproximadamente “cem anos” (ABBEVILLE,

2008: 112). Marcóia Peró133, chefe da aldeia de Carnaupió134, situada novamente na Ilha,

contaria, também ele, com “cerca de cem anos de idade” (ABBEVILLE, 2008: 131). Vejamos

como esse cronista descreve outro Chefe, Su-assuac135, da aldeia Coieup136:

Logo ao chegarmos à aldeia de Coieup, visitando o Sr. de Razilly as choupanas foi ter

à casa de um velho chamado Su-assuac, dos principais e mais antigos aí, pai da

mulher de Japiaçu, de quem já falei como sendo o maior morubixaba do Maranhão.

Esse índio tinha cento e sessenta e tantos anos e já pouco enxergava por causa da

velhice. De aspecto venerável, grave, sereno, amável, ainda se mostrava firme no

andar [grifos nossos] (ABBEVILLE, 2008: 149).

131 Exemplo dessa situação é narrado por E. P. Thompson (1998), ao tratar da venda de esposas. 132 Inniperan ou Ianiparana para João Felipe Bettendorff (2010: 12). 133 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 8. 134 Carnapijó para João Felipe Bettendorff (2010: 12). 135 Vide apêndice 1, tabela 15, número 70. 136 Coinep ou Coimpê para João Felipe Bettendorff (2010: 12).

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102

D’Évreux também argumenta no mesmo sentido. Quando visita a aldeia de Thion137,

chefe dos tupinambá da região do Mearim, refere-se a ele por “grande capitão, velho chefe de

sua nação” (ÉVREUX, 2007: 63). Ao citar um pajé138, chefe de Tapuitapera (atual Alcântara),

entre as suas características estava o fato de ser “velho” (ÉVREUX, 2007: 336).

A velhice de um homem era fator fundamental para aquisição de prestígio. Vejamos

como esse cronista descreve o grau de ancião:

É o [grau] mais honroso de todos, que coroa de respeito e veneração os soldados

valentes e os capitães prudentes. […] os selvagens quando chega a estação da velhice

são honrados pelos que têm menos idade. Aquele que ocupa esta classe chama-se

Thuyuaë, quer dizer “ancião ou velho” (ÉVREUX, 2007: 78)

Assim, quando um europeu se colocava diante de um chefe tupinambá, a primeira

especificidade deste era “ser homem de idade avançada”.

Tabela 5

DEFINIÇÃO ABBEVILLE ÉVREUX TOTAL

Chefe ancião 112; 131; 140; 147;

149; 343 63; 78; 336 09

Controle social exercido

pelos anciãos

288-290; 308-309; 315;

335; 340

43; 73-74; 76; 77; 78;

94; 95 12

Conselho dos anciãos

75; 109-110; 111; 113;

126-127; 148; 156;

161; 180-182; 362

94-95; 337-338 12

Homem velho

3.1.2 Cherecoacatour139: oratória, gestos e objetos que acompanham a fala

Outra característica dos chefes tupinambá que colore a narrativa dos padres

franciscanos e que era comum e necessária para alcançar a condição de chefe tupinambá está

fundada nos dotes oratórios. Todos os grandes líderes tupinambá deveriam ser necessariamente

137 Vide apêndice 1, tabela 15, número 15. 138 Vide apêndice 1, tabela 15, número 42. 139 “Eu sou afável, doce e suave na minha fala”.

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103

bons oradores. Na narrativa de Claude d’Abbeville, o maior exemplo está em Japiaçu, para

quem, somando-se às inúmeras passagens nas quais explora a oratória desse morubixaba,

dedica um capítulo inteiro ao seu “notável discurso” (ABBEVILLE, 2008: 85-92). Quanto a

d’Évreux, quem recebe mais atenção por causa do discurso é Pacamão140, que “somente com a

palavra tem movido todos habitantes”. A ele são dedicados dois capítulos (ÉVREUX, 2007:

320-332).

Ao referir-se a Japiaçu, Claude d’Abbeville (2008: 112) o caracteriza como “um

homem inteligente, de muito tino e prudência, de bom conselho e belas palavras”. Quando esse

principal elabora a defesa para o “crime” de homicídio do qual era acusado, lembrava aos

franceses que sua “eloquência” fora fundamental para convencer os tupinambá a estabelecerem

aliança entre os dois povos (ABBEVILLE, 2008: 182).

Ao visitar a aldeia de Maioba, esse padre referia-se ao principal141 como “um bom

velho” e “grande discursador”, que “quando encontra ouvidos, mostra prazer em passar a noite

discorrendo sobre os mais variados assuntos” (ABBEVILLE, 2008: 147). O contato com os

chefes tupinambá que o referido cronista teve enquanto acompanhava a embaixada francesa em

visita às aldeias da “Ilha do Maranhão”, o fez considerar que eram “grandes discursadores”,

que mostravam “grande prazer em falar”. Tais discursos, acrescentava, duravam “duas a três

horas seguidas, sem hesitações, revelando-se muito hábeis em deduzir dos argumentos que lhes

apresentam as necessárias consequências” (ABBEVILLE, 2008: 330). Para esse padre

franciscano, quanto mais alta é a condição social de um tupinambá, mais magnânimo ele deseja

mostrar-se nos discursos (ABBEVILLE, 2008: 338).

Um escravo de d’Évreux, filho de um grande principal, quando lembrava que seu pai

era homem temido, que “todos o rodeavam para escutá-lo quando ele ia à casa grande”,

lamentava a sua condição e preferia ser morto (ÉVREUX, 2007: 53). Esse mesmo cronista

descrevia “Arraia Grande”142, principal tupinambá, como alguém muito estimado pelos seus,

“de bom conselheiro, e de tal influência que os companheiros o seguem, trabalham e abraçam

inteiramente as suas ideias” (ÉVREUX: 2007: 136)

140 Vide apêndice 1, tabela 15, número 39. 141 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 68. 142 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 25.

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104

Ao referir-se a outro principal chamado “Grand Bresil”143, o padre Yves sugere que

os dotes oratórios, ou a falta deles, podiam proporcionar a ruína e o prestígio de um chefe.

Grand Bresil argumentava que a desonra que acabara de suportar – sendo “preso como mulher”

e virando “motivo de chacota entre os seus” – era algo ocasionado pelas “más palavras” que

havia pronunciado. Porém, concluía afirmando que depois do caso, havia voltado a fazer “bons

discursos”, assim deveria novamente ter merecimento entre os seus e os franceses (ÉVREUX,

2007: 90).

Nas duas narrativas podemos perceber todas as práticas que acompanham o discurso

dos chefes, bem como o que se esperavam deles. Nas reuniões os morubixabas se posicionavam

no centro da aldeia (ou da casa grande). Ficavam ao seu redor, primeiramente, os outros chefes

e, depois, os demais participantes (ABBEVILLE, 2008: 85). Pode-se dizer que a fonte de poder

de um chefe, nesse momento, era ser escutado por todos (ÉVREUX, 2007: 53).

No momento do discurso, a fala era pronunciada “com emoção integral de seus corpos,

batendo-se nas nádegas e no peito tanto quanto eles podem bater em cada momento de sua fala”.

E os chefes insistiam na suspensão da voz para “levar-nos a compreender e escutar melhor o

que dizem” (ÉVREUX, 2007: 111). E assim também acontecia quando um grande guerreiro

falecia. O principal, depois de muitas lamentações, fazia um “grande discurso muito

comovente”, assim, “batendo muitas vezes no peito e nas coxas”, contava as façanhas e proezas

do morto (ÉVREUX, 2007: 132).

Pode-se perceber que o discurso de um chefe era antecedido por palavras de ordem e

por gestos. E costumava também ser acompanhado pela presença do cachimbo de petun. Tal

objeto funcionava, nestes casos, como um bem de distinção social e aparece nas narrativas em

companhia dos chefes tupinambá, quase sempre antecedendo os discursos. Vejamos as

considerações de d’Abbeville:

Depois de aceso um grande fogo, utilizando à guisa de candeia para fumar, [os

chefes] armam suas redes de algodão e, deitados cada qual com seu cachimbo na mão,

principiam a discursar, comentando o que se passou durante o dia e lembrando o que

lhes cabe fazer no dia seguinte a favor da paz ou da guerra, para receber seus amigos

ou ir ao encontro dos inimigos, ou para qualquer outro negócio urgente, o que

143 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 23.

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105

resolvem de acordo com as instruções do principal em geral seguidas à risca [grifos

nossos] (ABBEVILLE, 2008: 346)

Yves d’Évreux argumenta que os tupinambá acreditavam que a erva e a fumaça do

Petun os tornavam sensatos, judiciosos e eloquentes. Vejamos o que esse padre franciscano diz

a respeito dessa crença:

Não me parece que essa opinião seja tão supersticiosa, porque há nela uma razão

natural: eu mesmo a experimentei, e reconheci que a sua fumaça desanuvia o

entendimento, dissipando os vapores dos órgãos do cérebro, fortalece a voz secando

a umidade e escarros da boca, permitindo assim facilidade à língua para bem exercer

suas funções (ÉVREUX, 2007: 117).

Por isso, concluía Yves d’Évreux, os chefes tupinambá jamais começavam algum discurso sem

a companhia do cachimbo e do petun.

Tabela 6

DEFINIÇÃO ABBEVILLE ÉVREUX TOTAL

Oratória

Gestos e objetos que

acompanham o discurso

85-86; 86-89; 112;

116-117; 147; 180-182;

309; 330; 338; 345

32-34; 53; 78; 90; 96;

111; 117; 132; 136; 227;

252; 306; 321; 321-323;

334

25

Dotes oratórios

3.1.3 Pluralidade de esposas

A pluralidade de esposas era outra característica perceptível nas narrativas. Quando

um tupinambá é polígamo, trata-se sempre de um principal ou, ao menos, de alguém que busca

alcançar a condição de chefia. Claude d’Abbeville observa que somente os chefes possuíam

grande número de mulheres. Segundo esse padre, a maioria dos homens contentava-se com

apenas uma mulher, e “somente a fim de ganhar certo prestígio tomam muitas mulheres; são

nesse caso julgados grandes homens e se tornam os principais das aldeias” (ABBEVILLE,

2008: 300).

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106

Em outro momento confirma novamente: o principal tupinambá era, geralmente, quem

possuía “maior número de mulheres” (ABBEVILLE, 2008: 345).

O padre Yves d’Évreux (2007: 63), quando visitou Thion, já referido chefe do Mearim,

foi conduzido por “uma de suas mulheres”. Seguindo a narrativa de d’Évreux, em outra ocasião,

“Cachorro Grande”, principal da Aldeia “Ecatu”144 na Ilha Grande do Maranhão, justificava

que deveria ter uma mulher francesa. Acompanhemos o discurso desse chefe tupinambá:

Prometeram-me uma mulher francesa, que desposarei pela mão dos padres, e me farei

cristão como fiz meu filho Louis Coquet, e quero ter em pouco tempo um filho

legítimo. Minha primeira mulher está velha, e por isso não precisa mais de marido, e

as outras oito, ainda moças, as darei por esposas a meus parentes, e ficarei só com a

mulher de França, e minha velha mulher para nos servir (ÉVREUX: 2007: 227).

Nove mulheres era o número de esposas de Cachorro Grande. Já Marentin145, depois

batizado com o nome de “Martins François”, chefe e antigo pajé de Tapuitapera, prometeu a

d’Évreux que, para ser batizado escolheria “uma das suas três mulheres, com certeza a mãe do

seu filho, se ela quisesse ser cristã como ele” As outras, ao invés de oferecer como esposas aos

parentes, como prometera “Cachorro Grande”, conservaria como “servas” (ÉVREUX 2007:

244). Já Pacamão, chefe pajé e mais importante principal tupinambá de Cumã, quando foi

visitar o padre Yves d’Évreux, apareceu carregado por uma de suas mulheres, “a mais forte e

vigorosa”. Conta-nos o mesmo padre que o número de mulheres de Pacamão chegava a trinta

(ÉVREUX, 2007: 321)146.

Tabela 7

DEFINIÇÃO ABBEVILLE ÉVREUX TOTAL

Várias esposas

Poligamia

91-92; 136-137; 137;

300; 345; 389-390

63; 227; 240; 244; 284;

321; 336 13

Importância do parentesco

na formação de alianças 149; 300 42; 48-49, 55, 78; 227 07

Pluralidade de mulheres

144 Água boa. 145 Vide apêndice 1, tabela 15, número 34. 146 Décadas depois, quando João Filipe Bettendorff escreve, utiliza-se o termo “mancebas” em contradição à esposa

principal. O “amancebamento”, geralmente, vem relacionado ainda aos “principais”.

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107

3.1.4 Tétantou147: o guerreiro experiente

Uma das principais características dos chefes tupinambá estava relacionada à guerra.

Só alguém que obtivesse consecutivos sucessos na guerra poderia almejar a condição de

principal. Os dois padres franceses tendem muitas vezes a utilizar o termo guerreiro juntamente

como o de chefe ou principal.

Nesse sentido, ao referir-se a Ybuira Puitan148, Yves d’Évreux o trata como um

“guerreiro Principal da Ilha do Maranhão” (2007: 52).

Em outro momento, o mesmo padre afirma que uma das maiores paixões dos

tupinambá é a de se destacar como grande guerreiro (ÉVREUX, 2007: 110). Assim, o já referido

pajé principal de Tapuitapera argumentaria que “minhas feitiçarias concorreram menos para

granjear autoridade do que muitas vezes manifestei na guerra” (ÉVREUX, 2007: 336).

E o mesmo cronista menciona que quando os tupinambá foram atacados pelos

tremembé, o exército149 formado para vingar os mortos era conduzido pelo próprio Japiaçu,

principal chefia da aliança com os franceses (ÉVREUX, 2007: 145).

No mesmo sentido, Claude d’Abbeville (2008: 309) afirma que os chefes tupinambá

são escolhidos entre os mais hábeis e valentes na guerra. Em outro momento, ao tratar das leis

e do governo entre os tupinambá, o padre franciscano pontua novamente que o chefe é, em

geral, “o mais valente capitão, o mais experimentado, o que maior número de proezas fez na

guerra, o que massacrou maior número de inimigos” e, complementando a caracterização geral,

“o que possui maior número de mulheres, maior família e maior número de escravos adquiridos

graças ao seu valor próprio, é o chefe de todos, o principal” (ABBEVILLE, 2008: 345).

Quando esse cronista faz referência à embaixada enviada a Cumã, não deixa de

mencionar que o chefe Caruatá-Pirã150 teve acolhimento especial devido a “autoridade que era

grande” e por causa da “valentia e de suas proezas” (ABBEVILLE, 2008: 164).

147 “Corajoso, que nada teme, que é o primeiro nos golpes, que toma a frente na batalha, que caminha de cabeça

baixa sob as chuvas de flechas”. 148 Vide apêndice 1, tabela 15, número 17. 149 Termo utilizado por d’Évreux. 150 Cardo Vermelho. Vide apêndice 1, tabela 15, número 28.

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Esse cronista também faz alusão a uma guerra sangrenta cujo referido chefe voltara

vitorioso e cheio de prestígio, com direito à entrada honrosa na aldeia (ABBEVILLE, 2008:

165). E Japiaçu, no já referido caso de homicídio, termina sua defesa dizendo que a experiência

que ele tinha como guerreiro vitorioso na defesa de seu povo deveria servir para que fosse

perdoado (ABBEVILLE, 2008: 182).

O referido padre ainda argumenta que os tupinambá julgam-se “tanto mais gloriosos

quanto o número de homens que mataram na guerra e de inimigos que comeram”. Em todos os

empreendimentos, os tupinambá guiavam-se pelos “conselhos dos antigos que em seu tempo

se mostraram valentes na guerra” (ABBEVILLE, 2008: 308-309).

Tabela 8

DEFINIÇÃO ABBEVILLE ÉVREUX TOTAL

Guerreiro experiente;

À frente da guerra

147; 164-165; 173;

180-182; 190;

289-290; 293;

308-309; 309; 345; 372

38-39; 52-53; 63; 78;

110; 136;

143-145; 333-334; 336

20

Guerreiro experiente

3.1.5 Modelo Exemplar

Essa característica não é apresentada por Claude d’Abbeville. E isso pode ser

explicado pelo fato de que embora o referido cronista tenha estado constantemente na presença

dos “principais” tupinambá, não tenha ficado tempo suficiente em uma aldeia para conseguir

reparar no cotidiano dos chefes. Já Yves d’Évreux, que, por sua vez, ficou cerca de dois anos

na “Ilha Grande do Maranhão”, pode referenciá-la com relativo destaque. Vejamos o que o

referido cronista narra sobre os trabalhos necessários para a construção do Forte:

De todas as aldeias uma após outra vinham os selvagens com mulheres e crianças,

trazendo víveres necessários para o tempo que calculavam demorar-se no trabalho, e

sob as ordens dos seus principais, costume que observam em seus empreendimentos,

vindo esses chefes sempre à testa do grupo, como se a natureza os fizesse saber que

o exemplo dos superiores anima infinitamente os inferiores [grifos nossos] (ÉVREUX,

2007: 19).

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109

Em momento posterior, ao referir-se aos tupinambá do Mearim, o padre franciscano

conta que “seus Principais trabalham tanto quanto os subordinados de menor representação”

(ÉVREUX, 2007: 42). Ao perguntar ao principal Thion o porquê disso, ele obtêm a seguinte

resposta:

Os rapazes observam minhas ações e praticam o que eu faço; se eu ficasse deitado na

rede a fumar o petun, eles não quereriam fazer outra coisa; quando me veem ir para o

campo com o machado no ombro e a foice na mão, ou tecer rede, eles se envergonham

de nada fazer. Jamais me senti tão recompensado (ÉVREUX, 2007: 63).

Ao referir-se aos tupinambá em geral, esse padre chegaria à conclusão de que os mais

velhos trabalhavam com o objetivo de servir de exemplo para a mocidade (ÉVREUX, 2007:

78). Mas o exemplo a ser seguido não se dava apenas aos trabalhos do cotidiano. O já

referenciado Pacamão, principal chefia de Cumã, ao pedir que d’Évreux o batizasse, justificava

que “quando meus semelhantes virem que sou filho de Deus, todos desejarão sê-lo e vão querer

seguir o meu exemplo”, caso contrário, completava que “se eu não me fizer lavar, muitos não

o farão e dirão: esperemos que Pacamão seja Caraíba, e depois nós o seguiremos” (ÉVREUX:

2007: 323).

Tabela 9

DEFINIÇÃO ABBEVILLE ÉVREUX TOTAL

Modelo exemplar

À frente dos trabalhos -

19; 42; 63; 78;

321-323; 333-334 6

Modelo exemplar

3.1.6 Vários Nomes

Ter vários nomes, característica fundamental para se alcançar ao posto de principal, só

surge nas narrativas de forma muito indireta151. Afinal, os europeus necessitavam de um chefe

representando o território e, a segurança de um “nome”, muitas vezes, era a única coisa que eles

podiam se agarrar. Mas e se nem isso fosse assegurado?

151 Tal característica fora assinalada também pelos cronistas. Entre eles, cita-se Hans Staden (2009), Gabriel Soares

de Souza (1987), Fernão Cardin (1980) e Frei Vicente Salvador (1982). Entre os pesquisadores, cita-se Florestan

Fernandes (1989) e Renato Sztutman (2012).

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110

Neste caso, temos exemplo. Ao visitar as localidades tupinambá da Ilha do Maranhão,

Claude d’Abbeville se esforçava para apresentar os nomes dos chefes das respectivas aldeias.

Não bastasse o fato, estranho a ele, de que em cada aldeia tivesse dois, três e até quatro chefes,

deparou-se ainda com chefes com três nomes. Como foi o caso da aldeia “Eussauap”152, onde

entre os quatro principais havia um chamado “Corá-Uaçu”153, mas que também atendia por

“Solá-Uaçu”, ou, às vezes, por “Maari-Uaçu”, nome de um grande pássaro branco

(ABBEVILLE, 2008: 192).

Esse padre afirmava que o prestígio reservado a quem capturava um inimigo no campo

de batalha e, depois, no ritual antropofágico154, era simbolizado na aquisição de novos nomes.

Vejamos:

Como o que pegou na guerra conquistou um título de valor, [no ritual antropofágico]

o que assim o agarra é julgado um dos mais valentes e adquire também um título com

a proeza, título que conserva durante toda a sua vida. Tais ações são consideradas

heroicas, bem como o encargo de matar o prisioneiro (ABBEVILLE, 2008: 311).

Outro exemplo estava em um escravo que, acreditamos, devia ser um chefe tupinambá

capturado em combate. Seu nome, Carypyra155 (Figura 4), tirado do “pássaro tesoura”, seria

usado apenas para distingui-lo entre os seus. Além desse nome, esse tupinambá, com cerca de

“setenta anos”, adquirira outros “em batalhas contra os inimigos de sua nação”. Teria ganhado

“novos nomes e sobrenomes”. Assim, continua:

[Ele] podia vangloriar-se de vinte e quatro nomes, verdadeiros títulos de honra,

comprobatórios de sua presença em vinte e quatro honrosas batalhas. Seus nomes

eram acompanhados de elogios, verdadeiros epigramas escritos não no papel, nem no

bronze, nem na casca das árvores, mas na própria carne. Rosto, ventre e coxas eram o

mármore e o pórfiro sobre os quais mandara gravar a história de sua vida, com

caracteres e figuras estranhas; e a sua pele mais parecia, assim, uma couraça

adamascada, como se pode ver de seu retrato. Ao redor do pescoço, idênticos sinais

formavam um colar, de maior valor para um guerreiro do que quaisquer pedras

preciosas. Feito prisioneiro de guerra pelos maranhenses, entre eles residiu dezoito

anos, praticando muitas e afamadas proezas [grifos nossos] (ABBEVILLE: 2008: 362).

152 Lugar onde se comem caranguejos. Atual Vinhais Velho. Chamada por Bettendorff de Onçacap. Nos mapas de

Albernaz aparece como Minguão Ville. 153 Vide apêndices, tabela I, número 94. 154 No ritual antropofágico era simulada uma batalha na qual o inimigo deveria ser novamente capturado. 155 Vide apêndice 1, tabela 15, número 133

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111

D’Abbeville completa que esse tupinambá, batizado no momento de sua morte,

recebeu seu vigésimo quinto nome: François (ABBEVILLE: 2008: 365).

E ainda aparece outro tupinambá, cujas vitórias no campo de batalha lhe deram direito

à honra de novos nomes. Itapucu156 tinha “mais de dez outros nomes comemorativos das

batalhas travadas contra seus inimigos e nas quais se comportou valentemente”. “Em seu andar

e suas palavras”, completa d’Abbeville, “revela-se o soldado e mostra-se a firmeza de seu

espírito. Compraz-se grandemente em fazer discursos e não se cansa jamais de falar a respeito

de seus feitos guerreiros e de nossa fé” (ABBEVILLE, 2008: 372).

Já Yves d’Évreux, talvez depois de ler a informação deixada pelo padre d’Abbeville,

concorda que as vitórias no campo de batalha acarretavam em novos nomes, como títulos de

honra. Porém, discorda que um tupinambá conseguisse adquirir um grande número de nomes.

Vejamos seus argumentos:

Eles são grandes admiradores de nomes honrosos, que envolve em si certa grandeza,

majestade e coragem, e não há nada que façam de grande e notável pelo que não receba

a imposição de um nome novo; mas com esta diferença, que é bem significativa: que

uma coisa é impor-se nomes e outra é receber nomes. Todos podem se dar quantos

nomes queiram, até trinta, quarenta ou cinquenta, e aqueles que o fazem são de

ordinário escravos, covardes e insensatos. Eu já vi uma infinidade de pessoas

comportando-se dessa maneira (ÉVREUX: 2007: 111).

E conclui: “Quanto aos bravos guerreiros, se eles têm quatro ou cinco nomes já é muito, e

mesmo se lhes são postos com o seu consentimento, pois para um homem não é pouco ter

conseguido quatro ou cinco vitórias” (ÉVREUX: 2007: 112).

Tabela 10

DEFINIÇÃO ABBEVILLE ÉVREUX TOTAL

Aquisição de prestígio –

ritual antropofágico

86-89; 137; 178; 308-

309; 315 38-39; 339-340 07

Esfacelamento de crânio –

ritual de troca de nome;

escritura na pele

10; 192; 293; 311; 362;

372

52-53; 53;110; 111-112;

112; 143; 145; 234; 253 15

Vários nomes

156 Vide apêndice 1, tabela 15, número 136

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112

3.1.7 Muitos escravos

Característica pouco referenciada pelos cronistas, ter muitos escravos era

consequência direta de outra característica dos chefes tupinambá: ser bem sucedido na guerra.

Assim, geralmente, as referências a principais com elevado número de escravos vinham

associadas à guerra. Vejamos novamente a referência a Cardo Vermelho, ou Caruatapirã:

Caruatapirã voltava de uma guerra sangrenta que durara seis meses e da qual

trouxera onze escravos de diversas nações, em virtude do que fez em Cumá uma

entrada solene à moda do país. A fim de mostrar a amizade que tinha aos franceses,

reservara-lhes alguns desses escravos originários do rio Amazonas e que anualmente

co-habitavam com as amazonas; e os havia trazido expressamente para que os

franceses pudessem, por intermédio deles, não somente se estabelecer no país, como

tanto desejavam, mas ainda nas terras vizinhas [grifos nossos] (ABBEVILLE, 2008:

165).

Como se pode perceber, os escravos capturados na guerra agora serviriam de moeda

de troca para fortalecer as alianças com os franceses. E, é claro, os padres não recusavam, como

se verifica no já referenciado escravo do padre d’Évreux.

Já Yves d’Évreux (2007: 52), nesse mesmo sentido, narra que quando “Ybuira Puitan”,

“um guerreiro principal”, voltava da guerra, trazia consigo alguns escravos. E esse mesmo padre

não deixaria de aconselhar a quem se aventurasse em uma viagem ao Maranhão, que procurasse

se acomodar com os morubixabas, porque esses tinham escravos para garantir a subsistência

dos franceses (ÉVREUX: 2007: 52).

Por fim, quando d’Abbeville caracterizou os chefes, não deixou de considerar o

indicativos dos escravos. Voltemos à sua caracterização:

Cada aldeia tem um chefe ou principal. E, em geral, o mais valente capitão, o mais

experimentado, o que maior número de proezas fez na guerra, o que massacrou maior

número de inimigos, o que possui maior número de mulheres, maior família e maior

número de escravos, adquiridos graças ao seu valor próprio, é o chefe de todos [grifos

nossos] (ABBEVILLE, 2008: 345).

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113

Tabela 11

DEFINIÇÃO ABBEVILLE ÉVREUX TOTAL

Possuidor de escravos;

inimigos capturados na

guerra

156; 164-165; 302;

345

29; 37-38; 52-53;

104-105; 336 09

Muitos escravos

3.1.8 Bens de prestígio, de condição social e divisão etária

O já referido “cachimbo de petun” funcionava como um bem de distinção social,

sempre em companhia dos chefes na hora do discurso. Também as penas e os demais apetrechos

que os tupinambá utilizavam, serviam como um bem de prestígio e de distinção social.

Rememoremos a fala de um dos escravos de Yves d’Évreux157:

Quando penso que sou filho de um dos grandes da minha terra, que meu pai é homem

temido, que todos o rodeavam para escutá-lo quando ele ia à casa grande, vendo-me

agora escravo, sem pintura no corpo, sem cocar, sem enfeites nos braços, e nem nos

pulsos, como acontece aos filhos dos grandes nas nossas terras, antes queria ser morto

[grifos nossos] (ÉVREUX, 2007: 53).

A partir dessa narrativa, podemos fazer uma divisão social em relação a tais bens.

Escravos sem bem algum. Filhos dos principais, sempre bem aparamentados.

Mas há outro bem considerado aqui como bem de prestígio que talvez simbolizasse

ainda mais a figura do principal: a “pedra verde”158. Para Claude d’Abbeville (2008: 117), era

uma “jaspe verde de que fazem pedras para os lábios”.

Em relação à pedra verde cabem algumas considerações acerca do imaginário159 dos

povos europeus e tupinambá. Carregada de valor sobrenatural, a pedra verde exercia uma

157 Vide apêndice 1, Tabela 15, número 18. 158 A associação entre as “pedras verdes”, chefes tupinambá e prestígio foi observada por diversos cronistas. Cita-

se “Francisco Pinto” (SZTUTMAN, 2012), Hans Staden (2009), Gabriel Soares de Souza (1987) e Mauricio de

Heriarte (1874). Entre os pesquisadores, cita-se Florestan Fernandes (1989); André Prous (1993) e Renato

Sztutman (2012). 159 Nos termos de Hilário Franco Jr (2010), mentalidade seria um conjunto de automatismo, de comportamentos

espontâneos, de heranças culturais profundamente enraizadas, pensamentos registrados há centenas de milhares

de anos e que são comuns a todos indivíduos, alheios às condições sociais, políticas e econômicas. Já o imaginário

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atração de longuíssima duração nos dois povos. Porém, a conexão entre o valor sobrenatural

que a pedra verde desempenhava entre os tupinambá e os cristãos era um tanto distinta. Sergio

Buarque de Holanda (2000: 86), ao mencionar as virtudes sobrenaturais que as pedras verdes

exerciam sobre os europeus desde uma “tradição imemorial” – a qual deixou rastros durante

toda Idade Média, influenciando posteriormente a ambição profana dos conquistadores –,

lembrava a “Crônica de Dom João II”. De acordo com a historieta, quando rei Dom Afonso

entrou na casa da rainha para iniciar um relacionamento amoroso, ela, Dona Isabel, teria

esquecido que levava um anel de esmeralda. E tão logo iniciaram o intercurso sexual, a pedra

do anel partiu-se em pedaços.

Esse historiador utiliza a referida passagem para pontuar que na Europa medieval, as

pedras verdes – e as esmeraldas em geral – significavam “castidade” e, em um tempo de

longuíssima duração, vida eterna (HOLANDA, 2000: 86-87).

Para os povos tupinambá e, de maneira geral, para uma tradição pan-americana, a

pedra verde estava associada à vegetação e às águas e, por isso, simbolizava também a vida,

porém, diferente de “castidade”, fazia referência à “fertilidade”. Era geradora de vida. Assim,

entre os astecas, contas desse material eram colocadas na boca dos mortos como um substituto

do coração, ou dadas de presente às jovens recém casadas para garantir a concepção (FRANÇA,

2000). Vejamos como a pedra verde apresentava-se entre os tupinambá.

De acordo com o padre Claude, quando jovens, os tupinambá furavam os lábios no

quais enfiavam “dentro do buraco, um pedaço de pau ou um caramujo, muito bem polido em

roda, por fora do lábio e compridos ou ovalados por dentro, de modo a se conservarem no

lugar”. Mas ao se casarem ou atingirem a idade de casar, passavam a utilizar “pequenas pedras

verdes que muito apreciam”. Algumas dessas pedras, conta-nos, eram “maiores de uma

polegada e não raro mais compridas do que um dedo, o que fazia com que lhes caísse o beiço e

o que lhes dificultava a fala” (ABBEVILLE, 2008: 290).

Lembremos as considerações de Florestan Fernandes (1989: 269), para quem os

tembetás de pedras verdes eram privativos dos grandes guerreiros. Os tupinambá mais jovens

– este sim influenciado por aquelas condições – seria um sistema de imagens e de signos construtor de identidade

coletiva que aflora e historiciza sentimentos profundos do substrato psicológico de longuíssima duração.

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115

construíam os seus de madeira, caramujo ou osso que iam aumentando de tamanho conforme

aumentavam seu prestígio e, acrescentamos, sua idade.

Yves d’Évreux (2007: 40-41) faz melhor distinção desse bem de prestígio. As pedras

verdes eram “dotadas de muitas propriedades, especialmente contra doenças do baço e da

corrente sanguínea”. Os tupinambá buscavam as pedras verdes “tanto para colocá-las nos

lábios, como para negociar com as nações vizinhas”, porque, explica, “os tupinambás e os

tapuias têm muito apreço por estas pedras”. Vejamos duas experiências narradas pelo padre

Yves para exemplificar o valor que as pedras verdes tinham entre os tupinambá:

Eu mesmo vi um tupinambá dar a um mearinense, em nossa casa de São Francisco,

do Maranhão, por uma pedra para o beiço, mais de vinte escudos de mercadorias.

Um certo cabelo-comprido veio ter conosco, ornado com seus enfeites mais lindos,

que consistiam em dois chifres de bode e quatro dentes de veado, muito compridos,

em vez de brincos, de que muito se orgulhava por havê-los elaborado com arte, ao

passo que era comum, especialmente entre as mulheres, trazê-los de madeira,

redondos, bem grossos, com dois dedos de diâmetro: calculai o buraco que fazem nas

orelhas. A maior parte de suas ostentações era uma destas pedras verdes, de

comprimento, pelo menos, de quatro dedos. Perguntei-lhe o que queria que lhe desse

por esta pedra; respondeu-me: “Dê-me um navio de França, carregado de machados,

de foices, de roupas, de espadas e de arcabuzes [grifos nossos] (ÉVREUX, 2007: 40-

41).

Em outro exemplo a pedra verde estava associada a um tupinambá de idade avançada.

Vejamos:

Outro tupinambá, já muito velho, trazia uma pedra destas no lábio inferior: era oval e

tão larga como o côncavo da mão, e como a tivesse trazido por muito tempo aí sem

nunca tirá-la, estava como que encaixada no seu queixo, já tendo a carne dobrado

sobre os bordos da pedra e tomado a sua forma (ÉVREUX, 2007: 40).

Após o contato com os franceses surgiria outro bem de distinção social: os casacos

azuis de general dados aos principais. Nos atos públicos, os chefes tupinambá “vestiam belos

casacos azuis celeste, com cruzes brancas por diante e por trás, e que lhes haviam sido dados

pelos loco-tenentes-generais”. Assim o foi na cerimônia de implantação do estandarte da

França. Vinham os principais, todos eles “vestidos com os seus casacos azuis com cruzes

brancas na frente e nas costas e carregando aos ombros o estandarte” (ABBEVILLE, 2008:

113).

A associação que os chefes tupinambá passavam a fazer entre o casaco e sua condição

de chefia fica evidente quando nos referimos, mais uma vez, ao julgamento de Japiaçu.

Vejamos:

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116

“Confesso”, continuou, “que fiz mal; devia ter comunicado o fato aos chefes e deixar-

lhes a punição. Mas quererão os chefes, por esse crime, desautorizar-me, tirar-me o

cargo de principal e o casaco que me deram? Fariam isso a mim que há trinta anos

venho sustentando os franceses aqui e com minha coragem e eloquência impedido

[sic] que os índios abandonem esta região como o teriam feito com receio dos perós?

Parece-me que estas considerações, bem como as batalhas de que participei

valentemente, deveriam fazer com que me perdoassem. Caso contrário, tirem-me a

vida antes do que a honra” [grifos nossos] (ABBEVILLE, 2008: 182).

Outro bem de distinção comum aos principais, assim considerado após o contato com

os europeus, eram as “canastras a que chamam patuá, recebidas dos franceses em troca de

gêneros do país, e nelas guardam as coisas mais preciosas” (ÉVREUX, 2007: 304).

Tabela 12

DEFINIÇÃO ABBEVILLE ÉVREUX TOTAL

Bens de prestígio, de

condição social e divisão

etária

103; 128; 166-167;

180-181; 217-218;

289-290; 304

40-41; 41; 53; 117 11

Bens de prestígio

3.1.9 Demonstrativos de hierarquia

Nos dados reunidos nessa pesquisa ainda pode ser verificada outra característica

relativa aos principais tupinambá, os “demonstrativos de hierarquia”. Na obra de Claude

d’Abbeville isso fica bem perceptível, por exemplo, nos atos de implantação da “Cruz” e do

“Estandarte da França”. Nos dois casos os principais, sempre apresentam-se em posição

diferenciada aos demais das aldeias. Para beijar a cruz, alinharam-se primeiramente os

principais com seus casacos azuis. Depois “seguiram-se imediatamente os velhos e anciãos e

afinal todos os índios presentes, todos em ordem, sem confusão, uns após outros ajoelhando-se

de mãos postas diante da cruz, como nos haviam visto fazer”. Como no campo de batalha,

seguir na frente dos demais, também aqui, era signo de poder (ABBEVILLE, 2008: 103).

Outro demonstrativo de divisão hierárquica era a maneira que os tupinambá se

posicionavam no pátio central, nas reuniões públicas. Os principais e anciãos armavam as redes

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117

no centro da aldeia, e os demais sentavam-se ao chão para assistir o conselho (ABBEVILLE,

2008: 85-86).

Outro costume dizia respeito à conduta dos principais quando a aldeia recebia um

convidado. Se no encontro com o inimigo no campo de batalha, como nos referimos a pouco,

os chefes iam à frente dos demais, quando a situação se invertia e um amigo vinha lhe visitar

no espaço da aldeia, o chefe deveria ser o último a recebê-lo. Vejamos.

De acordo com o costume tupinambá, enquanto os visitantes aliados eram recebidos

com as lágrimas das mulheres e o contentamento dos demais, o chefe permanecia como se não

estivesse notando a sua presença. Só depois desse primeiro momento o chefe se apresentava e

cumprimentava o visitante. O costume era seguido de tal forma, que quando algum principal

não observava, o ato não passava despercebido pelos cronistas (ABBEVILLE, 2008: 306).

Assim, ao visitar Carnaupió, o padre Claude nota que Marcoia Peró, chefe tupinambá

dessa aldeia, “contra o costume da tribo, veio ao nosso encontro de braços abertos e abraçou-

nos cordialmente, testemunhando-nos grande afeição” (ABBEVILLE, 2008: 131).

Após os cumprimentos, surge outro demarcador de distinção hierárquica: ter os

convidados acolhidos ao seu redor. Vejamos a narrativa:

Depois dos cumprimentos costumeiros, feitos por todos uns após os outros, mandou

o principal armar nossas redes ao lado da sua, dentro da cabana em que morava com

sua família. Não foi ele o único a fazer-nos essa gentileza. Todos os principais das

aldeias aonde chegávamos faziam o mesmo; consideravam grande honra hospedar-

nos em sua casa e tomavam por afronta a recusa ou a escolha de outro aposento [grifos

nossos] (ABBEVILLE, 2008: 110).

Yves d’Évreux, a partir de seu diálogo com Pacamão, nos oferece outro demarcador

de distinção hierárquica: “ser carregado no colo”. Vejamos:

Ordenou à sua mulher que se preparasse para carregá-lo até à casa do governador, e

foi obedecido prontamente, escanchando-se na cintura dela à maneira das índias

quando carregam os filhos; e assim entrou no Forte, e dirigiu-se ao dito senhor. Sua

mulher era negra como um belo Diabo, pintada da planta dos pés até a cabeça com

suco de jenipapo. Pensai antes de continuar com outro assunto se era possível aos

presentes conter o riso, ao ver um dos príncipes do Brasil montado em tão belo cavalo

(ÉVREUX, 2007: 321).

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118

Tabela 13

DEFINIÇÃO ABBEVILLE ÉVREUX TOTAL

Demonstrativos de

hierarquia

81-82; 85-86; 103;

109-110; 112; 128;

138-139; 139;

166-167

42; 76; 78; 143-145;

321; 332 15

Demonstrativos de hierarquia

Após estas considerações referentes às características dos chefes tupinambá,

passaremos a discutir as relações sociais que as possibilitavam.

3.2 AS RELAÇÕES SOCIAIS

As características dos chefes tupinambá referenciadas no tópico anterior dependiam e

resultavam das relações sociais daquele povo. Eram essas relações que possibilitavam a

manutenção e reprodução ao longo do tempo da condição de “chefe tupinambá”. Partiremos

das relações sociais que estavam por trás das características da chefia tupinambá relacionadas

principalmente 1) às categorias de gênero e de idade, 2) à pluralidade de esposas; e 3) ao chefe

como um guerreiro experiente, pois julgamos que aí estavam os traços mais definidores, não só

dos chefes tupinambá, mas também de toda aquela sociedade.

Afirma-se novamente que os chefes eram, de maneira geral, homens de idade

avançada. E isso só era possível porque havia entre os tupinambá um forte controle social

exercido pelos “mais velhos”. Desse controle resultavam dois cortes na sociedade tupinambá.

Um vertical, diferenciando, em escala de poder, os homens das mulheres. E outro horizontal,

diferenciando a escala das possiblidades de poder conforme a idade (Diagrama 5).

Essa tendência fazia com que os homens mais velhos assegurassem apenas entre eles

todas as possibilidades de atingir a condição de chefe. Acompanhemos Florestan Fernandes:

Graças à correlação existente entre o tempo necessário para corresponder

satisfatoriamente as provas tribais de peneiramento e a elevação de status, os velhos

concentravam em suas mãos todas as possibilidades de mando. Na sociedade

tupinambá, os velhos apresentavam-se não só como os únicos portadores qualificados

dos conhecimentos e tradições tribais, mas, ainda como as únicas pessoas que tinham

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larga experiência prática sobre a eficácia de tais conhecimentos e um seguro

tirocínio160 sobre a conveniência da observância das tradições e ritos tribais (1989:

276).

Diagrama 5

Escala de poder conforme o gênero e a idade dos tupinambá. As possibilidades de acesso à condição de chefe

tupinambá estavam fechadas às categorias representadas pelo ponto (A), relacionado aos homens de idade

avançada.

O padre Yves d’Évreux (2007: 73) notou bem como isso se processava. “O que mais

me impressionou e admirou, durante os dois anos em que estive entre os selvagens”, escreve,

“foi a ordem e o respeito observados inviolavelmente pelos moços para com os mais velhos”.

E acrescenta que os tupinambá faziam cada um “o que permite a sua idade sem cuidar daquele

que se acha no mais alto ou mais baixo grau” (Tabela 14).

160 Prática de determinadas funções como exercício preliminar para o desempenho delas; experiência.

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120

Não fazer aquilo que a idade não permitisse, impossibilitava, por exemplo, que um

tupinambá, pelo menos até os 25 anos, começasse a galgar o status necessário para chegar à

condição de chefia. Era um processo longo, cujo prestígio necessário para fazer-se chefe só

começava a ser alcançado por volta dos 40 anos. Acompanhemos com mais vagar a divisão

etária descrita por Yves d’Évreux (2007).

Primeiramente, considera-se que os tupinambá distinguiam suas idades por

determinados graus, “e cada grau tem no frontispício de sua entrada seu nome próprio, que

adverte ao que pretende entrar em seu palácio ou em seus jardins e alamedas, a sua ocupação,

e isso por enigmas, como eram outrora os hieróglifos dos egípcios” (ÉVREUX, 2007: 73-74).

O grau que dava mais poder ao tupinambá era o sexto, relativo aos anciãos, homens

de mais de 40 anos. Vejamos o que escreve d’Évreux:

[Era] o mais honroso de todos, que coroa de respeito e veneração os soldados valentes

e os capitães prudentes. […] os selvagens quando chega a estação da velhice são

honrados pelos que têm menos idade. Aquele que ocupa esta classe chama-se

Thuyuaë, quer dizer “ancião ou velho”. Não pode como os outros ser assíduo no

trabalho: trabalha como quer, e bem à sua vontade, mais para exemplo da mocidade;

é ouvido em silêncio na casa grande, fala grave e pausadamente usando de gestos

simples, que explicam bem o que ele quer dizer e o sentimento com que fala. Todos

lhe respondem com brandura e respeito, os jovens olham-no ouvindo-o com atenção:

quando vai à festa das cauinagens é o primeiro que se assenta e é servido; entre as

moças que distribuem o vinho aos convidados, as de maior consideração o servem, e

são as parentas mais próximas de quem fez o convite. No meio das danças entoam

cantos; dão-lhe o tom, principiando por uma voz muito forte, baixa; mas grave,

crescendo gradualmente até chegar quase à altura da nossa música. Suas mulheres

cuidam deles, lavam-lhes os pés, aprontam e trazem-lhes a comida (ÉVREUX, 2007:

78).

Passemos agora para o caminho necessário para que um tupinambá pudesse chegar à

condição de Thuyuaë, idade em que se detinham todas as possibilidades de mando.

O primeiro grau, entre os homens, era o de peitan, isto é, “menino saído do ventre de

sua mãe”. O segundo grau chamava-se kunumy-miry e abrangia as idades de 7 ou 8 anos. Entre

os 8 e 15 anos abrangia o terceiro grau, nomeado por kunumy (ÉVREUX, 2007: 74-76).

O quarto grau etário, que ia dos 15 aos 25 anos, era o kunumy uaçu, “ou seja, ‘meninos

grandes’ ou ‘homens jovens’”. Nesta época, diz o padre franciscano, os tupinambá “podem

conversar livremente com os mais velhos, exceto na casa grande, onde só escutam, e servem

também os mais velhos” (ÉVREUX, 2007: 76).

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Pode-se perceber aqui um ponto importante: o direito à fala em reuniões públicas só

era possível após os 25 anos. Os dotes oratórios, característica fundamental dos chefes

tupinambá, nunca poderiam ser demonstrados antes dessa idade.

Yves d’Évreux ainda assevera que nesta época, dos 15 aos 25, os tupinambá tinham

outro modo de vida. “Entregam-se com todo esforço ao trabalho, acostumam-se a remar, e por

isso são escolhidos para tripularem as canoas quando vão à guerra” (ÉVREUX, 2007: 76).

Reparemos novamente na questão. Remar as canoas não era, de forma alguma,

participar diretamente dos combates, o que só seria possível no próximo grau de idade. E isso

significava portas fechadas para ascender à condição de chefe.

Participar nos combates, ainda que com importantes limitações, era permitido a partir

do quinto grau, chamado aua. Este grau abrangia entre os 25 e os 40 anos de idade. Escreve

esse padre que “nessa ocasião, como guerreiros são bons para combater, porém nunca para

comandar. Buscam casar-se nesta época”. Porém acrescenta: “mesmo casados o homem e a

mulher não ficam livres da obrigação natural de proteger os pais e ajudá-los a fazer suas roças”

(ÉVREUX, 2007: 77).

Nota-se que a partir dos 25 anos – e só a partir dessa idade – um tupinambá poderia

falar em assembleia, casar e participar efetivamente dos combates. Assim as características

relativas aos chefes que abrangiam a “oratória”, a “pluralidade de esposas” e o “andar à frente

no combate” só podiam ser galgadas a partir dessa idade. E mesmo assim, muito lentamente,

afinal, em primeiro lugar, como propunha Yves d’Évreux (2007), o tupinambá com mais de 25

anos já poderia participar da guerra, mas nunca no comando.

Em segundo lugar, a “ordem” e o “respeito” a ser observados inviolavelmente faziam

com que os jovens tupinambá ficassem proibidos de contrair casamento – e assim estabelecer

as primeiras alianças centradas na parentela –, o que só era permitido depois dos 25 anos. E

mesmo assim, fica perceptível na narrativa desse cronista que o recém casado deveria prestar

trabalho para o sogro. Nas regras de matrimônio tupinambá, os maridos iam morar na casa das

esposas. Um dos maiores objetivos de um indivíduo que buscasse a condição de chefe era

escapar dessa obrigação, ao mesmo tempo em que deveria atrair “genros” para sua influência

(PROUS, 1993; FERNANDES, 1989, 2006; SZTUTMAN, 2012). E isso, é claro, custava

tempo.

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122

Florestan Fernandes (1989) e Renato Sztutman (2012) também argumentam, a partir

das fontes quinhentistas portuguesas, que um indivíduo só poderia casar e ter filhos com uma

parceira fértil161 depois dos 25 anos, mas, acrescentam, só após ter capturado e depois

sacrificado um inimigo em um ritual público. O sacrifício ritual, pouco vislumbrado pelos

padres franciscanos que estiveram no Maranhão, marcava a idade em que um tupinambá podia

exercer os dotes oratórios, ser considerado guerreiro e estar liberado para casar e ter filhos162.

A partir desse momento, um tupinambá que galgasse a condição de grande morubixaba

poderia costurar as primeiras alianças. Nesse sentido, a poligamia era fundamental

(FERNANDES, 1989; PROUS, 1993; CLASTRES 2003; SZTUTMAN 2012). Casar com uma

mulher tupinambá significava contrair aliança com seus parentes. Quanto maior o número de

mulheres, maior a parentela e o contingente de aliados de um tupinambá (seja de dentro ou de

fora da aldeia163). Não era a poligamia em si a fonte de prestígio de um homem, como queria o

padre d’Abbeville, mas sim as alianças que estavam por trás dela.

Mais que isso. A poligamia possibilitava um maior número de filhos. E um tupinambá

bem sucedido, repetimos, era aquele que conseguisse casar o maior número de vezes sem

precisar prestar serviço na casa de seu sogro, ao mesmo tempo em que procurava casar seus

filhos, para estabelecer alianças com outros sogros, e suas filhas, para atrair genros ao seu

comando (FERNANDES, 1989; PROUS, 1993; SZTUTMAN, 2012).

161 A união entre a sobrinha e o tio materno constituía o matrimônio ideal entre os tupinambá. 162 Antes dessa idade, os tupinambá mais jovens podiam até ter parceiras sexuais, contudo, tratava-se de mulheres

idosas que não podiam mais ter filho. Ter filho nessa situação era considerado algo extremamente vergonhoso

(SZTUTMAN, 2012). 163 Yves d’Évreux descreve que um dos primeiros atos efetuados na aliança entre tupinambá e tabajara do Mearim

(anteriormente inimigos) foi contrair casamento.

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Tabela 14

Graus de Idade Característica

Peitan

(recém nascido)

Não há diferença entre gênero masculino e feminino e vive aos cuidados da

mãe

Kunumy-miry

(7 a 8 anos)

Não se separam da mãe.

Meninos ganham pequenos arcos e flechas proporcionais à idade

Kunumy

(8 a 15 anos) Acompanham os pais nos trabalhos cotidianos, caçam e pescam

Kunumy uaçu

(15 a 25 anos)

São escolhidos para remar as canoas quando vão á guerra, porém não

participam. Podem conversar livremente com os mais velhos, porém, não no

conselho de anciãos

Aua

(25 a 40 anos)

Adquirem o direito de casar após esfacelar o primeiro crânio em ritual

antropofágico; podem falar no conselho dos anciãos; podem participar no

combate, porém, nunca no comando

Thuyuaë

(Mais de 40 anos)

Podem alcançar a condição de chefe se tiverem sucesso na costura de alianças

intermediada pela poligamia, se possuírem boa oratória para convencer os

aliados no conselho de anciãos e se, principalmente, tiver alcançado sucesso

no campo de batalha. Só nessas condições um tupinambá pode ficar à frente

no campo de batalha e assim exercer a condição de chefe

Graus de idade entre os tupinambá a partir da obra de Yves d’Évreux (2007)

Seguindo o processo de feitura desses “grandes homens”, a magnificação164 de um

tupinambá dependia necessariamente do sucesso alcançado na guerra. Repetindo Claude

d’Abbeville, o chefe era “o que maior número de proezas fez na guerra, o que massacrou maior

número de inimigos” [grifos nossos] (ABBEVILLE, 2008: 345).

O massacrar o maior número de inimigos não é mencionado sem motivos. Quando um

tupinambá atingia a já referida idade de 25 anos e sacrificava o primeiro inimigo em um ritual

público no centro da aldeia, recebia outro nome (FERNANDES, 1989; SZTUTMAN, 2012).

Sua magnificação estaria na repetição desse ritual. Para cada inimigo sacrificado ou, para ser

mais exato, para cada crânio de inimigo esfacelado, adquiria-se um novo nome, novas incisões

e uma nova subjetividade. E quanto mais nomes um tupinambá adquirisse, mais honras teria

(SZTUTMAN, 2012).

164 Ou o prestígio para d’Abbeville, ou o carisma para Florestan Fernandes.

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Yves d’Évreux faz algumas considerações nesse mesmo sentido, admitindo até, como

veremos no próximo tópico, que um novo nome poderia advir do esfacelamento do crânio de

um inimigo (2007: 111-112).

Sobre o processo de magnificação do tupinambá, o padre afirma também que “não há

nada que façam de grande pelo que não receba a imposição de um nome novo”. Ao tratar dos

“bravos guerreiros”, argumenta, como já mencionado em tópico anterior, que eles tinham

quatro ou cinco nomes, o que já era muito, pois, completa o padre franciscano, “para um homem

não é pouco ter conseguido quatro ou cinco vitórias” (ÉVREUX, 2007: 112)165.

Assim, pontua-se de forma mais incisiva que as características primeiras dos chefes

tupinambá – todos igualmente homens e anciãos – estavam asseguradas por um forte controle

social exercido pelos mais velhos. Era garantido que um pretendente a chefe tupinambá só

poderia iniciar o processo de magnificação (necessário para transformá-lo em morubixaba)

depois dos 25 anos.

Nesse sentido, só a partir dessa idade se poderia buscar importantes características de

um grande chefe. Uma delas: a poligamia, necessária para a aquisição de alianças e, o que dá

no mesmo, extensão da parentela. Outra: a permissão para se falar em reuniões públicas e assim

exercer a habilidade oratória, por sua vez, igualmente necessária para garantir a costura de

alianças. Mais outra: a possibilidade de sucesso no campo de batalha, fundamental a todo chefe

tupinambá. E ainda outra: a contínua aquisição da subjetividade do “outro”166 toda vez que um

inimigo capturado era sacrificado e tinha o crânio esfacelado em um ritual público.

O chefe tupinambá, sujeito magnificado, era aquele que conseguisse atrair para si

outros homens, outras incisões no corpo, outras subjetividades e outras marcas ao sacrificar os

inimigos em rituais antropofágicos ou na guerra, o que ocasionava uma expansão de sua pessoa

e o tornava, pode-se dizer, um “grande homem”. Ampliemos mais esse sentido, considerando

por magnificação o processo de atrair para si, literalmente, outros homens, porém, não só pela

guerra ou pelo sacrifício ritual (fundamentais no processo), mas também pelas alianças

165 Essa parte da narrativa de d’Évreux é de suma importância, pois não havia nas traduções baseadas na edição de

Ferdinand Denis, como a utilizada por Florestan Fernandes. 166 Ou a capacidade para saciar o espírito dos antepassados e assim garantir a coesão do grupo como pretendia

Florestan Fernandes (1989; 2006).

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conquistadas com a poligamia, com o casamento de seus filhos e filhas e com dos dotes

oratórios.

Atrair para si outros homens – seja em um ritual antropofágico a partir do nome tirado

ao inimigo, seja pelas alianças conquistadas com a poligamia, seja pelo convencimento de

outros homens a partir da capacidade oratória –, eis a principal porta de acesso à condição de

chefe tupinambá.

Daqui em diante, serão consideradas as tensões ocasionadas nessas relações sociais a

partir do contato com o europeu.

3.3 ENTRA EM CENA O EUROPEU: TENSÃO NO MUNDO TUPINAMBÁ.

As relações sociais que criavam e possibilitavam a manutenção das referidas

características dos chefes tupinambá, ao ser confrontadas com o homem europeu – advindo de

uma região cujas relações sociais eram bem outras –, pode-se dizer, sofreram graves tensões.

Nesse momento serão consideradas as tensões originadas pela presença de relações sociais que,

por um lado, eram necessárias para aquisição de poder político entre os tupinambá e, por outro

lado, eram inadmissíveis para a formalização da aliança com os franceses.

A união entre os dois povos não estaria concluída apenas com a imposição das leis

francesas aos tupinambá, tampouco com a implantação dos estandartes da França na Ilha

Grande do Maranhão (ABBEVILLE, 2008: 166-175). Iniciada a partir do implante da cruz, a

condição fundamental para que os tupinambá se tornassem de fato súditos do rei da França

estava centrada no batismo. Porém, ao mesmo tempo em que esse sacramento possibilitava –

em um espaço simbólico que chamaremos aqui de espaço intermediário – um elo de ligação

entre as cosmovisões dos dois povos, entrava também em choque com relações sociais

enraizadas que vinham possibilitando, ao longo do processo temporal, o acesso à condição de

morubixaba tupinambá.

É a partir dessa tensão, devemos ressaltar, que podemos vislumbrar uma contradição

fundamental na aliança entre franceses e tupinambá. Por um lado, fica evidente, a partir da

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escrita de Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux, que a aliança entre os dois povos dependia da

presença dos chefes tupinambá. Estes quase se confundiam com o território que representavam.

Essa dependência pode ser vislumbrada até nas questões mais práticas e fundamentais,

por exemplo, na própria estadia dos franceses no Maranhão. Por isso, o padre Yves d’Évreux

(2007: 215-220), como já referimos, aconselhava que os franceses, tão logo chegassem à Ilha,

deveriam procurar estabelecer contato com os morubixabas, porque estes eram os únicos com

muitos escravos e que, por isso mesmo, podiam garantir a sua subsistência. Porém, para

completar a aliança, com a exigência do batismo, deveriam ser fechadas as principais portas de

acesso para que um tupinambá chegasse à condição de chefe.

A primeira dessas portas seria a poligamia. Claude d’Abbeville (2008: 300) narra que

“mais de uma vez fizemos-lhes ver que Tupã167 não quer que o homem tenha mais de uma

mulher e que os que têm muitas não podem ser seus filhos e permanecem filhos de Jurupari168”.

Uma dessas vezes que os padres franceses fizeram os tupinambá enxergar as

“vontades” de Tupã, talvez tenha sido no debate entre Japiaçu e Yves d’Évreux, narrado por

aquele mesmo padre. Depois de explicar que os padres não podem casar, d’Évreux teria

asseverado ao chefe tupinambá que “se algum de vós deseja ser filho de Tupã e receber o santo

batismo, é preciso que se resolva a deixar a pluralidade de mulheres permitida entre vós”

(ABBEVILLE, 2008: 92).

Em outro momento, o padre Claude explicava por que o batismo, mesmo sendo a porta

da salvação, não era oferecido aos chefes tupinambá. Vejamos:

Embora estivessem bem instruídos e desejassem ardentemente o batismo, não estavam

todos ainda habilitados a recebê-lo e nem o poderíamos dá-lo a todos os que pediam,

principalmente aos que eram casados à sua moda, porque sendo-lhes proibida a

pluralidade de mulheres, coisa muito comum entre eles como veremos era a nossa

obrigação cuidar de separar as mulheres do marido e este delas (como devíamos fazer

ao batizá-los), tudo dentro das normas exigidas, de receio que da precipitação

resultasse algo prejudicial à glória de Deus; à implantação do cristianismo e à salvação

de todos, o que equivaleria a um perigo maior ainda. Era, portanto, melhor não batizá-

los do que, batizando-os, faltar às determinações mais essenciais da Igreja de Deus

(ABBEVILLE, 2008: 136).

167 Termo tupi que os europeus traduziam por “Deus”. 168 Termo tupi que os europeus traduziam por “Diabo”.

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Claude d’Abbeville argumenta que por causa da pluralidade de esposas, eles passaram

a batizar em primeiro lugar as crianças e os que não eram casados. A finalidade era mostrar aos

outros as obrigações que deveriam seguir depois de cumprido o ritual de batismo. Afinal,

conclui o padre Claude: “Deus quer que cada homem se contente com uma só mulher para que

possa ser batizado e se tornar seu filho, por isso, quando assim pensassem e resolvessem afastar

livremente tais impedimentos, seriam batizados de bom grado” (ABBEVILLE, 2008:136-137).

A diferenciação é clara. E por mais que o discurso dos padres franciscanos dê

contornos idílicos para a cristianização dos tupinambá, com a necessidade do batismo, ficam

delimitados dois extremos: casamento monogâmico e indissolúvel como algo relacionado a

Deus, e casamento poligâmico e reversível169 como algo relacionado ao Diabo.

Com esse mecanismo, a ascensão à condição de chefe ficaria prejudicada, pois

impossibilitaria que um tupinambá traçasse, pela poligamia, as alianças necessárias para aquele

fim. Em seu lugar, os franceses tentavam garantir uma sucessão familiar170. Tornar chefe o filho

de chefe e, ao mesmo tempo, barrar a poligamia (e a costura de alianças que ela significava) era

controlar o acesso à condição de chefe tupinambá a partir do beneficiamento de determinadas

famílias já aliadas dos franceses.

Acrescentamos que, tal qual a poligamia, o ritual antropofágico, fundamental para

consagrar um indivíduo como guerreiro experiente171, sempre fora perseguido pelos cristãos,

chegando os portugueses a proibir oficialmente o costume de comer carne humana em uma lei

estabelecida em 1558 (KOK, 2001: 93-94) .

169 “E como o casamento é fácil, igualmente fácil é desmanchá-lo. [...] Se lhe apetece, o marido expulsa a mulher,

e a repudia se o ofende; por seu lado, se a mulher se sente farta do marido e lhe diz não mais querê-lo ou desejar

outro, responde-lhe o esposo sem se perturbar: Ecoain, isto é, ‘vá para onde quiser’. A mulher pode então entregar-

se a outro homem sem inconvenientes. E pode largar o segundo, como fez com o primeiro, o mesmo sendo

permitido ao homem” (ABBEVILLE, 2008: 300). 170 Como veremos, não é sem motivo que se batizavam primeiro os filhos de chefes, tendo como padrinhos os

generais franceses. 171 Os prisioneiros mortos em um ritual antropofágico eram inimigos capturados no campo de batalha. A

magnificação necessária para que um tupinambá se tornasse chefe, repetimos, estava na quantidade de crânios

esfacelados nos rituais ou no calor da batalha, resultantes, por sua vez, da experiência e do sucesso na guerra e

perceptíveis, acrescenta-se, pelas marcas no corpo e pelos nomes adquiridos nesse lento processo de aquisição de

prestígio.

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No período do contato com os franceses, esse ritual, quando acontecia, era às

escondidas, para despistar os padres e os agentes coloniais172. Contudo, ainda que os rituais

antropofágicos tivessem mesmo cessado, há fortes indícios de que o esfacelamento do crânio

dos inimigos – fonte de magnificação – continuasse a ocorrer.

Yves d’Évreux narra que quando os escravos se encontram doentes e, por isso,

privados de uma morte honrosa, “isto é, serem mortos e comidos publicamente”, eram levados

para o mato e “lá partem-lhe a cabeça, espalham o cérebro, e deixam o corpo insepulto e

entregue a certas aves grandes […] que os comem” (ÉVREUX, 2007: 52).

Nas ocasiões em que os escravos já encontravam-se mortos, eles eram jogados no chão

e arrastados pelos pés até o mato, “onde lhes quebram a cabeça […], o que já não se pratica na

Ilha e nem em suas circunvizinhanças, senão raras vezes e ocultamente” (ÉVREUX, 2007: 53).

Apesar de ser prática dita oculta, em pelo menos três momentos o padre Yves indica

ocasiões em que as cabeças dos inimigos continuavam sendo esfaceladas. E isso, por um lado,

é sinal de resistência em se abandonar as práticas tradicionais173. E, por outro lado, também

evidencia a ocorrência de elementos semelhantes desses imaginários tão díspares que no correr

do que estamos chamando de tempo do contato, começavam a se conectar em um espaço

intermediário engendrado entre a cultura tupinambá e europeia.

No primeiro momento, narra que quando os tupinambá, sob a liderança de Japiaçu,

foram dar guerra aos tremembé para vingar seus parentes mortos em uma emboscada,

encontraram apenas os corpos de seus companheiros, todos com as cabeças esfaceladas

(ÉVREUX, 2007: 145)174.

172 Temos apenas um exemplo dado por Claude d’Abbeville de maneira direta, no qual Japiaçu teria ordenado que

uma de suas “escravas” fosse sacrificada em uma reunião pública, sendo seu corpo despedaçado e dividido entre

os participantes (ABBEVILLE, 2008: 171-182). 173 Na narrativa de Diogo de Campos Moreno, ao final da batalha não deixava de mencionar que os tupinambá

“andavam encarniçados em quebrar cabeças e despir os mortos” (2011: 77); ou que os tupinambá festejavam ao

seu modo, com “bailos e cantos toda a noite, e as mulheres, apregoando pelo quartel, andavam cantando das

proezadas de seus maridos e publicando os nomes dos homens de guerra que haviam tomado nos contrários,

quebrando-lhes as cabeças: cerimônia notável e de muita graça, pelo fervor com que as mulheres índias de aquelas

partes dão à execução este rito” [grifos nossos] (2011: 81). 174 Faz-se necessário destacar que muito embora estamos diante de um esfacelamento de crânio relacionado aos

tupinambá, neste caso fora efetuado pelos Tremembé. O costume dos tupiguarani relacionado a povos de outra

matriz cultural pode indicar não só um traço cultural comum entre os povos, mas também o já referido processo

de tupinização dos inimigos.

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No segundo momento, uma “escrava”, depois de ser morta por violenta febre e

sepultada “à maneira dos cristãos”, alguns “malvados filhos de Jurupari, que nunca foram

descobertos, senão porém seriam punidos, foram à noite desenterrá-la, quebraram-lhe a cabeça

e roubaram o pano de algodão de sua mortalha” (ÉVREUX, 2007: 234).

No terceiro momento, fica visível o quanto o esfacelamento do crânio do inimigo fazia

parte de um processo de magnificação do indivíduo que, após o ato, passava por um ritual e

recebia um novo nome. Conta-nos o padre Yves d’Évreux que em excursão ao Mearim, região

dos tabajara175, um tupinambá encontrou uma velha carcaça de homem, aproximou-se dela e

iniciou um ritual. Acompanhemos a cena:

Ele começa a se aquecer, pega sua espada de madeira, bate nas nádegas e no peito, vai

e vem de um lado a outro, dizendo aos que estão assistindo: “Eu sou valente e grande

guerreiro, quero mostrar agora, vou destruir a cabeça do nosso inimigo”; e após essas

palavras, aproxima-se daquela cabeça, avançando e recuando, dando volta e torno de

si com a espada, repetindo frequentemente as palavras: “Ché aiuca, Ché aiuca, eu vou

matá-lo, eu vou matá-lo”, que é uma cerimônia de guerra praticada entre eles. Em

seguida, batendo forte e firmemente naquela cabeça seca como linho, ele deixou-a em

pedaços e, de novo, quebrando esses pedaços, reduziu o todo a pedacinhos. Tendo

feito isto, voltou-se para o grupo sem forças, o suor escorrendo-lhe pelo corpo

copiosamente. Então ele se deitou na sua cama plana, esperando que os Principais

viessem buscá-lo para, segundo o costume, conferir-lhe um novo nome, em memória

e lembrança do feito heroico. Mas como ele viu que ninguém vinha, ele levantou-se e

foi encontrá-los, pedindo-lhe a honra do triunfo, e a aposição de um novo nome.

Começando todos a rir, ele viu que zombavam dele, e não deixou de tomar ele próprio

um nome dizendo-lhes: “Já que vocês não querem me dar um, eu tomo um novo

nome” (ÉVREUX, 2007: 112).

Apesar da cena ser narrada em tom de escárnio176, fica evidente que o esfacelamento

do crânio de inimigo poderia acarretar em novo nome a um tupinambá. E adquirir um novo

nome, como apontado em tópico anterior, era indicativo de poder político e sinal de prestígio.

Esse fator – aquisição de novo nome como fonte de prestígio – deixa transparecer outra

contradição entre tupinambá e europeus. Pois o batismo, ao mesmo tempo em que impunha, no

caso da poligamia, um distanciamento intransponível entre as duas sociedades, proporcionava

175 Esse termo utilizado pelos tupinambá em relação ao inimigo, mas que também significava cunhado – daí o

cuidado que se deve tomar ao traduzir literalmente “tabajara” por “escravo” como fizeram os cronistas. O que eles

chamavam de escravos eram, de outra forma, o inimigo tornado cunhado que antes de ser morto em ritual público,

passava a fazer parte da esfera da família. 176 “Uma coisa é impor-se nomes e outra é receber nomes”, argumentava, como já nos referimos, Yves d’Évreux,

“todos podem dar quantos nomes queiram, até trinta, quarenta e cinquenta, e aqueles que o fazem são de ordinário

escravos, covardes e insensatos” (2008: 111).

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também, por intermédio daqueles elementos semelhantes aos dois imaginários, uma conexão

entre elas.

Afinal, esse sacramento, tal como o esfacelamento de crânio, também resultava na

aquisição de um novo nome. Eis aqui o elemento semelhante que aflorava no espaço

intermediário: adquirir pelo batismo um novo nome ou adquiri-lo depois do esfacelamento de

crânio.

Assim aconteceu com o já citado caso de Marentin, chefe e pajé que depois de batizado

passou a se chamar Martin François, bem como os também já referenciados Carypyra, Patuá e

Manen, chamados sequencialmente após o batismo François, Jacques e Anthoine. Mas as

semelhanças não param por aí. Quando ocorria o esfacelamento do crânio de um inimigo, o

ideal era que um morubixaba desse um novo nome para o matador. No caso do batismo, o

padrinho que dava um novo nome ao tupinambá era escolhido entre os generais da França.

Dessa forma, Marentin pode ter como padrinho o senhor Pesieux – um dos principais generais

franceses.

Pode-se dizer que havia um distanciamento entre dois lados diferentes de uma mesma

moeda – casamento monogâmico e indissolúvel relacionado ao Deus cristão; casamento

poligâmico e reversível relacionado ao Diabo cristão – e uma aproximação entre dois lados

iguais de moedas diferentes – aquisição de novo nome após o esfacelamento de crânio do

inimigo; aquisição de novo nome após o batismo.

E não poderia ser diferente. A determinação do batismo como fundamento necessário

para estabelecer de fato a aliança entre os dois povos, não seria almejada pelos tupinambá se

apenas incorresse em fenômenos cujos elementos fossem totalmente distintos de sua

cosmovisão. A circularidade cultural engendrada no que chamamos de tempo do contato criou

um espaço intermediário entre as culturas no qual, por trás da violência de quem sufoca uma

cultura, também havia conexões.

Seja como for, não é sem motivo que, por exemplo, Pacamão, o maior morubixaba de

Cumã – e, segundo d’Évreux, de todo Maranhão –, buscasse também essa fonte de prestígio,

para que todos seguissem seu exemplo. Mas no caso do referido morubixaba fica perceptível

que o batismo também poderia servir de acesso à outra permanência de costumes entre os

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tupinambá: a tão repudiada antropofagia. A diferença agora era que o sacrificado não seria mais

o corpo do inimigo, mas o próprio Cristo, filho de Deus.

E isso fica perceptível, mesmo que de maneira indireta, na narrativa do padre Yves

d’Évreux. Quando uma mulher tupinambá que depois de batizada iria receber o “Corpo de

Cristo” consagrado na hóstia, o padre franciscano conta que ela – como quem tenta se livrar do

costume de comer carne humana – “perturbou-se muito e não a pode engolir a ponto de querer

tirá-la [da boca] com a mão” (ÉVREUX, 2007: 317)177.

Em outro momento, conversando com Pacamão, o padre Yves argumentava que o

sangue de Cristo era a garantia de que os cristãos iriam diretamente para o “Céu” – como quem

fosse para a “terra sem mal” dos tupinambá, acessada com o sangue do inimigo.

Acompanhemos a narrativa:

Com a proteção deste corpo [de Cristo] os nossos [corpos] depois de mortos,

ressuscitarão e serão carregados para o Céu pelos anjos, isto é, nós que somos lavados

com o sangue derramado de suas chagas. Vossos corpos e os de vossos pais irão ter

com Jeropari e arder em fogos eternos, se não fordes lavados com este sangue

(ÉVREUX, 2007: 328).

Depois de ouvir com atenção as palavras do padre franciscano, o velho pajé replica:

“É necessário correr muito sangue de seu corpo, e que vós o guardeis com todo o cuidado para

lavar tanta gente” (ÉVREUX, 2007: 328)178. O espaço intermediário permitia, assim, uma

aproximação entre o corpo e o sangue de Deus simbolizado na hóstia, e o corpo do inimigo que

alimentava a lógica da vingança em um ritual antropofágico. Afinal, se corpo do inimigo

proporcionava, entre os tupinambá, a certeza de alcançar a terra sem mal, o corpo de Cristo,

prometiam os padres franciscanos, propiciaria, com a mesma certeza, o acesso ao Paraíso.

Mas não nos enganemos. O ato de engolir a hóstia – o corpo de Cristo – e o ato de

engolir o corpo de um inimigo sacrificado em um ritual antropofágico até podiam significar

conexões e permanências em um espaço intermediário. Porém, ao mesmo tempo, significavam

também uma terrível ruptura. Por trás do batismo e da pregação cristã, havia o “amar ao

próximo como a ti mesmo”. Tal mandamento, sob uma perspectiva durkheimiana

177 Fica evidente na narrativa do padre franciscano uma diferença entre a cosmovisão dos dois povos. O que para

os europeus já se reconhecia cada vez mais como uma “representação”, para os tupinambá era o próprio “ser”. 178 E se para d’Évreux, ser lavado com o sangue que corre das chagas de Cristo era condição de acesso ao Paraíso

cristão, entre os tupinambá, os recém nascidos costumavam ser lavados com o sangue dos inimigos mortos em um

ritual antropofágico, no sentido de prepara-los para guerra – coisa essencial para que alcançassem seu próprio

Paraíso: a terra sem mal.

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(DURKHEIM, 2010), respondia a sentimentos comuns gravados na consciência coletiva dos

europeus desde um tempo de longa duração. Já os sentimentos coletivos dos tupinambá,

também engendrados em um longo processo temporal, respondiam a outros estímulos

emocionais que, se melindrados, colocavam em risco a coesão daquela sociedade.

E, nesse caso, os sentimentos coletivos fundados na “vingança” preconizavam que, ao

contrário da pregação cristã, era importante que o próximo também pudesse ser odiado. Afinal,

o maior inimigo do tupinambá sempre fora outro tupinambá ou, ao menos, gente passível de

ser tupinizada – tabajara, além de inimigo, significava cunhado. A vingança, enfim, alicerçada

no ódio ao próximo, atuava para manter a sociedade coesa, da mesma forma que o “amar ao

próximo” o fazia entre os franceses.

Seja como for, se o batismo preconizava a extinção da poligamia e dos rituais

antropofágicos, o esfacelamento do crânio dos inimigos e a lógica da vingança continuariam

imponentes nesse espaço intermediário engendrado pelas práticas sociais que se modelaram a

partir do contato entre as duas sociedades. E os europeus, conscientemente ou não, tirariam

bom proveito das guerras intestinas que os tupinambá travavam entre si. Afinal, se a

antropofagia deixaria de alimentar os ditos “selvagens” pela oposição que os europeus faziam

dela, a carne humana dos inimigos capturados no campo de batalha não seria desperdiçada e

passaria a alimentar um ser coletivo com muito mais fome de gente: o sistema agroexportador

e escravista colonial.

Mas se a troca de nome proporcionada pelo batismo representava uma continuidade

nas práticas tupinambá que permitiam aquisição do prestígio necessário para se galgar a

condição de chefia, representaria também graves rupturas, a ponto de subverter por completo

relações sociais consolidadas desde um período imemorável. E o maior exemplo disso está no

abalo que esse sacramento cristão significava às duas características fundamentais de todo chefe

tupinambá, a saber: ser homem de idade avançada. Vejamos com vagar.

Pontua-se, em primeiro lugar, que os homens eram “guerreiros” e só os grandes

guerreiros tinham a possibilidade de acessar diretamente a “terra sem mal” (ou o Paraíso

cristão), o lugar além das montanhas onde dançam seus antepassados e onde todos são alegres

para sempre. As mulheres, ou a maior parte delas, ficariam pelo caminho, residindo,

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presumimos, nas antigas aldeias onde eram enterradas. Vejamos o que d’Évreux diz a respeito

das mulheres:

Quando morrem não são muito choradas e nem lamentadas, porque os selvagens

creem supersticiosamente terem as mulheres, depois de mortas, muita dificuldade de

encontrar o lugar onde, além das montanhas, dançam seus antepassados, e acham que

muitas ficam pelos caminhos [grifos nossos] (ÉVREUX, 2007: 84).

Em momento posterior, ao mencionar que os tupinambá acreditavam na existência de

uma alma imortal, o padre Yves volta a tratar do tema:

Creem que só as mulheres virtuosas têm alma imortal, segundo o que pude

compreender de vários discursos deles e de muitas perguntas que lhes fiz, pensando

que estas mulheres virtuosas devem ser postas ao lado dos homens, vistos terem todos

almas imortais depois da morte. Quanto às outras mulheres eles duvidam que elas

tenham alma. Pensam, e muito naturalmente, que as almas dos maus vão ter com o

Jeropari, que são elas que os atormentam com o próprio Diabo, e que vão residir nas

antigas aldeias onde foram enterrados seus corpos [grifos nossos] (ÉVREUX, 2007:

271).

Em segundo lugar, acrescenta-se que o controle social exercido pelos mais velhos

assegurava que só a partir dos 25 anos um tupinambá – após passar por um ritual antropofágico

seguido do esfacelamento do crânio de um inimigo capturado na guerra – tivesse a honra de

receber outro nome e, a partir daí, casar, manifestar-se em uma assembleia pública, ter filhos e,

enfim galgar posições de prestígio que lhe garantiriam a estadia na “terra sem mal”. O batismo

viria romper com tudo isso, pois ofereceria, sem distinção de gênero ou de idade, a passagem

direta para o Paraíso (ÉVREUX, 2007: 240, 250-252).

Para demarcar o batismo como representação da possibilidade de salvação para todos

os tupinambá, nada mais significativo do que a pergunta retórica formulada pelo padre Claude

d’Abbeville (2008: 123-124):

Como esses infelizes canibais e antropófagos que havia tantas centenas de anos só

respiravam a carne e o sangue, o assassínio e a carnificina, fartando-se com a própria

carne de seus inimigos, poderiam confessar publicamente e em altas vozes a crença

em um Deus trino em pessoa e único na essência, se não tivesse o Espírito Santo

descido em suas almas, iluminado seus pensamentos e abrasado suas vontades ao fogo

de seu amor, para levá-los a pedir o batismo como a porta da salvação eterna tão

ardentemente desejada? [Grifos nossos]179.

179 Mais uma vez o espaço intermediário possibilitava uma conexão, desta vez, entre a representação do “Paraíso

cristão” e a “Terra sem mal dos tupinambá”.

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Em relação às mulheres, aquela ruptura ocorria toda vez que uma delas era batizada.

Como foi o caso de uma “moça”180 que, ao ser batizada, agradecera pela possibilidade de Tupã

“ter lhe propiciado nascer neste século para tirá-la do meio de tantas almas perdidas de sua

nação e conceder-lhe o gozo do Paraíso”181 [grifos nossos] (ÉVREUX, 2007: 233).

No caso do batismo das crianças – aquele que sempre foi o ideal em toda história do

contato entre europeus e tupinambá – era ainda mais contraditório, pois propiciava a aquisição

de um novo nome ainda nos primeiros anos de vida, o que antes do contato só era possível

depois dos já referenciados 25 anos de idade.

E a tensão que disso resultava não passava desapercebida pelos tupinambá. É o que se

evidencia na lamentação de Jacupen182, “um dos principais da tribo dos canibaleiros”183. Ao

apontar a contradição que existia no fato de seu filho ser batizado primeiro do que ele, indaga:

“Não tenho pesar e nem inveja, que meu filho, que aqui está, se batizasse primeiro do que eu.

Mas dizei-me: não é coisa nova, que ele seja filho de Deus antes de mim, seu pai, e que eu dele

aprenda o que devia ensinar-lhe?” [grifos nossos] (ÉVREUX, 2007: 339).

E assim ia a sociedade tupinambá no tempo da aliança com os franceses. O espaço

intermediário que se constituía entre os imaginários daqueles dois povos, permitia que o ritual

antropofágico se aproximasse do ritual da comunhão. Permitia também que a Terra Sem Mal

guardasse as suas semelhanças com o Paraíso Cristão. Permitia ainda que a troca de nome

proporcionada pelo esfacelamento do crânio de um inimigo se aproximasse da troca de nome

propiciada pelo batismo. Porém, ao mesmo tempo, fazia com que relações sociais consolidadas

desde um tempo de longa duração sofressem tamanho abalo a ponto de dar a impressão, para

um velho chefe tupinambá, de que o mundo estava, concluímos, de “pernas para o ar”.

180 Évreux não menciona o nome da tupinambá. 181 E além das mulheres e, como veremos, das crianças, o batismo proporcionava a salvação também para aqueles

que eram (pelo menos depois do contato com os europeus) considerados incapazes de chegar à “terra sem mal”,

como foi o caso de um tupinambá punido com pena de morte depois de ter realizado relações homoafetivas.

Caruatapirã, chefe tupinambá encarregado da execução, por acreditar que após o batismo o condenado iria direto

para o Paraíso, dizia a ele para pedir que Deus, na próxima encarnação, o fizesse nascer com cabelos e corpo de

mulher (ÉVREUX, 2007: 252). 182 Vide apêndices, tabela 1, número 47. 183 “Canibaleiros” era a forma como os franceses referiam-se aos tupinambá potiguar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desse trabalho nos foi possível alcançar algumas percepções que merecem

ser relacionadas aqui como considerações finais. Passemos a elas.

A forma como os chefes foram analisados a partir de suas características nos permite

desanuviar o olhar ante as narrativas coloniais e lançar luz sobre aspectos da sociabilidade dos

tupinambá colocados dentro de seus contextos históricos. Vejamos primeiro as características

para, depois, tratar desses dois pontos: 1) “olhar ante as narrativas” e 2) “sociabilidade dos

tupinambá em seu contexto histórico”.

Para analisar os chefes tupinambá, partimos das narrativas dos padres franciscanos e

apresentamos dez características (Diagrama 6), definindo, a partir delas, um tipo ideal de chefe.

Diagrama 6

Características dos chefes tupinambá do Maranhão e terras circunvizinhas

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Em linhas gerais, os chefes eram 1) homens de 2) idade avançada. Tinham, nos

exagerados números do padre Claude, oitenta, cem, cento e sessenta anos de vida.

E mais. Todos os chefes se destacavam pelos 3) dotes oratórios. Com a fala afável,

doce e suave, ou com os gestos fortes, ritmados com palmadas no peito, nas pernas e nas

nádegas, eles comoviam e convenciam todos os seus. Todos esses chefes podiam ser

reconhecidos também pela 4) pluralidade de esposas – fator importantíssimo para aquisição

das alianças necessárias para qualquer tupinambá que se propusesse a representar, como líder,

sua aldeia.

Além disso, todos eles necessitavam se mostrar 5) grandes guerreiros. A experiência

no combate conquistada nas seguidas vitórias ante os inimigos era um caminho obrigatório para

chegar a condição de chefe tupinambá. No final do percurso, o chefe seria reconhecido tanto

pelos 6) vários nomes inscritos na pele, tirados dos inimigos após o esfacelamento de seus

crânios, quanto por seus 7) muitos escravos: na verdade, capturados na guerra que antes

passavam por um processo de familiarização (tupinização) na aldeia para depois ser

sacrificados, mas que agora, cada vez mais, seriam oferecidos aos europeus, em um jogo de

poder que, aos poucos, mudava de peças e de regras.

Tais chefes, além da experiência adquirida fora do convívio familiar (nas guerras)

também deveriam se mostrar como 8) modelos exemplares dentro das aldeias. Nesse sentido,

deveriam trabalhar tanto quanto os que estavam abaixo de si para dar exemplo. Só assim,

questões do cotidiano, como a escolha de um novo local a ser habitado ou o comando sobre as

tarefas a serem cumpridas ao longo do dia, eram mantidas ao seu controle.

Por fim, os chefes tupinambá do Maranhão e terras circunvizinhas também podiam ser

reconhecidos pelos 9) bens de prestígio carregados de simbologia que possuíam: sejam por suas

penas e pelos cachimbos que lhes acompanhavam nos discursos, sejam por seus casacos azuis

com cruzes brancas, na frente e nas costas, que os franceses costumavam lhes oferecer, sejam

pelos tembetás de pedra verde que levavam encravados nos lábios; e pelos 10) demonstrativos

de hierarquia perceptíveis, por exemplo, na fingida irrelevância que demonstravam aos

convidados nos primeiros momentos que estes chegavam em suas aldeias.

Tais características permitem – nosso primeiro ponto – chegar às narrativas com olhar

mais acurado. Assim, podemos, por exemplo, voltar à Carta de Caminha para propor algumas

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considerações acerca de possíveis chefes que os “experimentados portugueses” (HOLANDA,

2000) não conseguiram enxergar, ao menos nos primeiros momentos desse “eufemismo

envergonhado”184 que chamamos de “encontro”.

Quando partimos das referidas características, a figura do chefe tupinambá pode ser

evidenciada em diversas passagens da narrativa de Caminha. Se em alguns momentos da Carta

é possível fazer apenas inferências a tupinambá de idade avançada exercendo seus dotes

oratórios, em outros, é apresentada de forma mais evidente a presença desses anciãos, ou

portando uma pedra verde, ou exercendo os dotes oratórios.

Em um dos casos, depois da realização dos cultos cristãos (sempre acompanhados de

perto pelos tupinambá) realizados após plantarem a cruz e as armas de Portugal na terra dos

tupinambá, “um homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos […] juntava aqueles que ali

tinham ficado, e ainda chamava outros” e no momento desse provável discurso aos demais que

ali estavam após o seu chamado, “acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo

para céu”. O interesse despertado pelo tupinambá de idade avançada foi grande, mas não por

reconhecer nele uma possível diferenciação hierárquica, mas apenas por causa do referido ato,

que mereceu até a oferta de uma “camisa mourisca” (CASTRO, 2010: 113-114).

Em outro caso, Caminha narra que o Capitão português, depois de caminhar ao longo

de um rio, esperou por um velho com quem travou a tentativa de um diálogo. O referido

tupinambá trazia “o lábio inferior tão furado que lhe cabia pelo buraco um grande dedo polegar

e trazia metido no buraco uma pedra verde”. Porém, tanto o velho, por não ser compreendido,

quanto à pedra, por ser considerada de pouco valor, desta vez, não despertaram interesse algum

por parte dos portugueses. Ao analisar o encontro, depois que eles trocaram a pedra verde por

um “sombreiro velho” e depois que Cabral deu ao referido tupinambá uma carapuça vermelha,

Caminha escreve que o velho partiu para não mais retornar. Ao ver que o capitão, mais uma

vez, não teve reconhecida a sua liderança e tão pouco reconhecera a liderança entre os

tupinambá, o escrivão português conclui que se tratava de “gente bestial e de pouco saber”

(CASTRO, 2010: 103-104).

Mas se a caracterização dos chefes tupinambá efetuada em nossa pesquisa nos permite

observar possíveis lideranças que passaram despercebidas pelos portugueses, permite também

184 Expressão cunhada por Manuela Carneiro da Cunha (1992).

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que possamos situar as mesmas caracterizações – e as relações sociais que estavam por trás

delas – em seu contexto histórico, nosso segundo ponto. Vejamos.

Partimos da narrativa de Camões – também ele um navegador – com o propósito de

demonstrar práticas sociais que os portugueses utilizaram na África para estabelecer as

primeiras relações diplomáticas com povos distantes cuja existência ainda era ignorada. Uma

das finalidades de tais práticas, como vimos, estava em tornar conhecida, tanto para os

portugueses quanto para os povos visitados, a figura de seus chefes. Os versos heroicos de

Camões narram uma dessas práticas: o banquete oferecido por Vasco da Gama aos povos de

Moçambique. E Caminha relata que Pedro Álvares Cabral também intencionou utilizar-se da

mesma estratégia. O resultado não teve o mesmo êxito do que aquele obtido pelo Capitão da

poesia camoniana, porém, vale retornar a um de seus aspectos.

Depois de ordenar que os portugueses levassem, compulsoriamente, dois tupinambá

até a sua embarcação, Pedro Álvares Cabral aparece aos dois “convidados” sentado em uma

cadeira com o restante da tripulação sentado no chão (CASTRO, 2010: 92). Mesmo com tal

arranjo, os tupinambá – nesses primeiros momentos – não reconheceram em Cabral a figura do

Chefe. Porém, no tempo da aliança com os franceses, os chefes tupinambá, para simbolizar o

poder que possuíam, quando realizavam uma assembleia ou uma cauinagem, sentavam-se em

suas redes, fincando os demais habitantes da aldeia sentados no chão. Voltemos à Carta de

Caminha.

Outra estratégia que os portugueses utilizavam para demarcar a presença de um chefe

e que, naquele período, devia ser reconhecida em todo Velho Mundo, foi a de carregar Pedro

Álvares Cabral no colo. Mas o ato também não surtiu efeito, levando Caminha a concluir que

os tupinambá não faziam ideia do que significava a condição de Chefe (CASTRO, 2010: 101).

Porém, um século depois, ao narrar o encontro com Pacamão, talvez o maior morubixaba de

todo Maranhão, Yves d’Évreux conta que uma de suas mulheres o carregara no colo até a casa

do governador. “Pensai antes de continuar com outro assunto”, zombava o narrador, “se era

possível aos presentes conter o riso, ao ver um dos príncipes do Brasil montado em tão belo

cavalo” (ÉVREUX, 2007: 321).

Esses dois exemplos nos fazem perceber o quanto as relações dos tupinambá não eram

alheias ao contar do tempo, ainda mais quando esse tempo era marcado pela presença de

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situações completamente novas como as que se verificam no início do contato com os europeus.

E se havia características fundamentais definidoras dos chefes – como a pluralidade de esposas

e o prestígio adquirido após sucessivos esfacelamentos de crânios dos inimigos – que vinham

se consolidando através de um tempo de longa duração, outras se desenvolviam ao sabor de

novas práticas que chegavam à experiência dos homens. Sentar-se na rede – como o rei que

senta-se ao trono – enquanto os outros sentavam-se no chão e ser carregado no colo pelos

subordinados, tornavam-se, após o contato com os europeus, símbolos de hierarquização social

também entre os tupinambá.

Ademais, demonstramos também, nos resultados da pesquisa (Capítulo 3), o quanto

essas relações sociais que possibilitavam a reprodução da condição de morubixaba se tornaram

um dos principais pontos de tensão surgidos após o contato com os europeus. Se esse contato

possibilitou a manutenção e o surgimento de novas práticas, por meio das quais se podia

identificar a forma como o poder hierárquico estava fundamentado entre os chefes tupinambá

do Maranhão, também fechou as portas de acesso para outras práticas fundamentais à aquisição

de prestígio necessário para que um tupinambá se fizesse chefe.

O batismo necessário para efetivar a aliança, por exemplo, exigia o fim da poligamia

entre aqueles povos. A proibição da pluralidade de esposas, exigência que a pregação

franciscana passava a fazer para abrir, por meio do batismo, as portas do Paraíso Cristão, virava

condição também, no espaço intermediário, para que os tupinambá – depois, é claro, de

batizados – acessassem seu tão sonhado Paraíso: a terra sem mal, anteriormente acessível só

para os grandes guerreiros.

Vimos também que esse sacramento cristão não seria requisitado pelos chefes

tupinambá se, ao mesmo tempo, não proporcionasse – nesse local simbólico que chamamos de

espaço intermediário – uma conexão entre elementos semelhantes das cosmovisões tupinambá

e europeia, permitindo, pela troca de nome proporcionada pelo batismo, o acesso a uma antiga

fonte de magnificação. Era um jogo de permanências e rupturas, em que a troca de peças – da

antropofagia à comunhão – permitia que as portas da salvação abrissem não mais apenas para

homens tupinambá de mais de 25 anos. Mais democrático, a honra do novo nome, bem como o

acesso direto ao Paraíso, viria a todos, é claro, pelo menos no discurso dos conquistadores.

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E chegamos ao momento de concluir. Cientes de que alcançamos nossos objetivos,

podemos voltar ao início. A cena era recorrente. Um velho posicionava-se no centro da aldeia,

segurava um cachimbo cheio de petun e soltava algumas baforadas. Em seguida, em gestos

fortes e compassados, distribuía palmadas nas coxas e no peito, ao mesmo tempo em que batia

ritmicamente os pés no chão. No momento seguinte, proferia palavras de ordem: “ché, ché, ché

aua-etê185”. Concluído esse início gestual, principiava um discurso à vista de todos.

A descrição do personagem é deveras importante. Esse era um chefe tupinambá.

Sempre um homem de idade avançada, guerreiro experiente que conquistara status no campo

de batalha, com as quais adquirira nomes, marcas e prestígio depois de sucessivos

esfacelamentos de crânios de seus inimigos, geralmente, outros tupinambá.

No lábio, ia uma pedra verde de quatro dedos de comprimento – bem de prestígio que

valia mais do que um navio da França carregado de machados, de foices, de roupas, de espadas

e de arcabuzes.

Era um indivíduo magnificado, cheio de prestígio adquirido também pelas alianças

que estavam por trás de suas inúmeras esposas. Às vezes, nove, às vezes, trinta – os padres

franciscanos se indignavam, mas não perdiam a conta.

Esse chefe era um ancião que carregava consigo, não só os nomes escritos no corpo,

mas também um grande número de escravos e de parentes. Era um sogro cheio de poder sobre

os genros que lhe deviam trabalho e fidelidade.

Esse chefe também era o sujeito que conquistara o direito (e o dever) de representar

seu povo ante os aliados no conselho de anciãos, juntamente a outros chefes iguais a ele. No

momento da assembleia pública, estando os demais tupinambá de cócoras, atentos ao redor do

pátio da aldeia, o chefe dirigia-se ao centro, pegava o seu cachimbo, dava umas e outras

baforadas, e regia o povo com discursos, “a favor da guerra ou a favor da paz”.

Tais características estavam asseguradas por relações sociais que os tupinambá iam

desenvolvendo desde tempos imemoriáveis – mais de mil anos sobre um mesmo território: as

áreas litorâneas. Essas relações garantiam a manutenção e a reprodução da condição de chefe

tupinambá. Era o prestígio adquirido nos rituais antropofágicos, nos contínuos esfacelamentos

185 “Eu, eu, eu sou poderoso e valente” (ÉVREUX, 1929; 2007).

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de crânios dos inimigos, na poligamia, nas guerras intestinas que fomentavam entre si e no

controle social exercido pelos mais velhos – assegurando-lhes não só as mulheres férteis, mas

também o direito à fala em assembleia e a posição privilegiada de andar à frente nos combates

– que possibilitavam a efetivação de tais características.

Tudo isso entrou em xeque após os contatos com os europeus. O “amar ao próximo”

era incompatível com a ética de guerrear o tupi ou tupinizar o inimigo. O “Paraíso” prometido

a todos os cristãos era incompatível com aquele dos tupinambá, ao qual só teriam acesso os

guerreiros valentes, ainda mais quando sepultados no estômago do inimigo. Provar do “corpo

de Cristo”, embora tenha seus elementos que lembram a “antropofagia”, nunca teria o mesmo

sentido – e nem o mesmo sabor – do que provar do corpo do inimigo ou, que seja, virar alimento

dele.

O casamento indissolúvel e monogâmico dos cristãos fechava as portas à poligamia e

à aquisição de alianças necessárias para que um tupinambá se elevasse à condição de chefe. O

batismo já nas primeiras idades proporcionava outro nome ao tupinambá, o que só ocorreria,

segundo a tradição, por volta dos 25 anos, e com isso – juntamente com outra ética de

matrimônio que permitia o casamento entre jovens, tirando as mulheres férteis do controle dos

mais velhos – ajudava solapar, de um só golpe, o controle social exercido pelos anciãos.

O chefe tupinambá, depois do contato com os europeus e da implementação do Projeto

Colonial, daria lugar ao “protetor”, e depois ao “meirinho”. Esvaziado de poder e autoridade,

seria chefe, mas não mais um chefe tupinambá. E os tupinambá, arrastados por esse mesmo

processo, dariam lugar ou se converteriam na sociedade colonial, e depois no povo maranhense.

Mas este quiproquó de nomes – tupinambá, sociedade colonial, povo maranhense –

não se faria sem violência. Os tupinambá, povos que habitavam a costa de quase todo território

que constituía a América Portuguesa, diante das tensões ocasionadas a partir do contato com os

europeus, optavam entre três alternativas. Ou 1) mantinham o contato e a aliança com os povos

ocidentais e com isso perdiam traços importantes de sua cultura, ou 2) optavam entre o

enfrentamento do inimigo e 3) a fragmentação do grupo, garantidores que eram da preservação

de seus costumes.

Essa última escolha, a fragmentação, advinda do seio da própria cultura tupinambá,

continuou ocorrendo – e foi estimulada ainda mais – no período de contato com os portugueses,

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quando iniciava-se a implantação do sistema agroexportador colonial. E isso engendrava novas

alianças. Depois novas guerras, seguidas de novas fragmentações e, em um movimento cíclico,

novas migrações pelo território. Contudo, no momento em que este estudo se concentra, já não

havia mais espaços para continuar migrando, sendo o território que os franceses chamavam de

Maranhão e terras circunvizinhas, talvez o último reduto de resistência e preservação de seus

traços culturais.

E o desfecho da História é bem conhecido. Os portugueses, fazendo uso da “Razão de

Estado” (MORENO, 2012), massacraram centenas de milhares de tupinambá e demais povos

que encontraram no caminho. O padre jesuíta Manoel Gomes menciona 30.000 no Pará

(CARDOSO, 2001). Simão Estácio da Silveira (2001) computou 500.000 almas entre cativos e

mortos em toda região do Maranhão. Os padres Antônio Vieira (1842) e João Felipe Bettendorff

(2010) falam em dois milhões de mortos entre o Maranhão e o Pará. O restante, ainda optando

pela fragmentação, dispersou-se para os interiores do território que hoje constitui os estados do

Maranhão, do Pará e do Tocantins, o que resultou, dessa vez, no apagamento de importantes

traços culturais dos tupinambá. Mas esse não foi o fim. Pelo contrário, tal processo de violência

extremada deu início à formação da sociedade colonial maranhense.

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152

APÊNDICES

APÊNDICE 1

Tabela 15: Nomes, localização e caracterização dos indivíduos

NÚMERO NOME LOCALIZAÇÃO QUALIDADE ÉVREUX ABBEVILLE

1 CAPITÃO

Ilha Grande do

Maranhão

“Foi para aldeia de

Jiroparieta, quer dizer,

aldeia de todos os

diabos, ao pé da praia”

Meio irmão do

Principal Cachorro

Grande; Pajé;

Contra os

franceses;

33 – 34

Discurso; Pajé; Mobilizou os

Tupinambá para saírem da Ilha (possível

“movimento messiânico”)

-

2

CACHORRO

GRANDE

Ianuara-uaeté

Januare-Avaetê

Januare-etê

Eucatu, água boa;

Ilha Grande do

Maranhão

Principal;

33 – 34

Amigo dos franceses;

142: foi buscar um feiticeiro a pedido

dos franceses;

227: nove mulheres, filho batizado.

164: Um dos principais da Ilha e grande

amigo dos franceses. Foi enviado a Comá

para estabelecer aliança;

167: Participou da implantação do

estandarte da França; considerado um dos

cinco principais abaixo de Japiaçu;

casaco azul como bem de distinção

social;

179: Organizou o julgamento de Japiaçu

e foi favorável a sua condenação;

193: “Bom índio, grande amigo dos

franceses”.

3 SEM NOME

Acima do Rio

Amazonas;Nas mais

distantes terras dos

Tupinambá

Principal 28 – 29: Estabeleceu alianças com

franceses. -

4 UACETÉ OU

UACUAÇU

Rio Parisop –

proximidades do Pará Principal

30: Alianças; Ofereceu 1.200 homens

para a tropa dos franceses -

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153

5 JAPIAÇU

Juniparã

Ilha grande do

Maranhão

Principal

Principal da

Confederação

tupinambá

30

Repreendeu o “pajé” Capitão;

94

Referência à necessidade de consultar os

anciãos;

95

Capaz de levar 50 mil homens para o

combate;

143

Comandou o exército para dar guerra

aos tremembés

284 – 285

Querela entre Japiaçu e o feiticeiro

principal de Tapuitapera

85 – 89: Primeiros contatos, discurso,

chefe como ancião, oratória

91 – 92: Principal como ancião,

poligamia

112: Principal como ancião; dom da fala

Japiaçu: “Nunca empreendem coisa

alguma importante sem consultá-lo”

128: Uso do casaco; primeiro a beijar a

cruz;

137: Batizou os quatro filhos;

178 – 179: Manda assassinar uma escrava

pega em adultério;

180 – 182: Oratória, casaco como bem de

distinção social, chefe como guerreiro

experiente;

191: Maior morubixaba de toda a Ilha

315: Ancião são iguais em poderes; poder

coercitivo dos costumes dos

antepassados;

334: “Discurso”

342: Após a morte de filho do principal

Timboú, pajé pediu que todos se

lavassem para não contrair o mesmo mal.

Japiaçu foi um dos primeiros a se lavar.

6

Tuçã-açu

Chamado Luís

depois do

batismo

Juniparã Filho mais velho

do principal -

122 Participou da primeira doutrinação;

137 e 139 Batizado; padrinho Razilly.

7

Juí

(Carlos depois

de Batizado)

Juniparã

Ilha Grande

Filho do Principal

Japiaçu -

102: Filho de Japiaçu, oferecido a Razilly

como parte da formalização de alianças;

troca de nome depois de batizado

122: Tinha 15 ou 16 anos

137 e 139

Batizado

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154

8 Marcoia Peró Carnaupió

Ilha Grande Principal -

102

Um dos maiorais do lugar

131: Cerca de cem anos de idade

167

Participou da implantação do estandarte

da França; considerado um dos cinco

principais abaixo de Japiaçu; casaco azul

como bem de distinção social;

182

Indício do mecanismo de atrair genros

para compor alianças e aumentar a

parentela, agora relacionado à atração de

franceses;

189: Um dos dois chefes de Carnaupió;

190

Habitantes de Pindotuve vivem em

Carnaupió sob a liderança de Marcoia-

Peró.

9

Araruçuai

Carnaupió

Ilha Grande Principal -

189

Um dos dois chefes de Carnaupió;

10 Avapirâ Ilha Grande Principal Pai de Patuá, garoto que foi à França

11 Patuá Carnaupió

Ilha Grande

Filho do principal

Avapirã

Neto de principal

Marcoia Peró

-

102

Neto de Marcoia Peró, oferecido como

parte da formalização de alianças; foi a

França onde morreu; troca de nome

depois de batizado;

131

Sobrinho de Marcoia Peró

349

Um dos seis índios que viajaram para

França (referência indireta)

367

Morre na França

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155

12

PIRAIUUA

Pirajuva

Pirajivá

Pirá-Jivá

Touroiepep

Ilha grande do

Maranhão

Principal 30: Repreendeu o pajé Capitão;

163

Foi enviado a Tapuitapera para

estabelecer aliança com os franceses e os

Tupinambá a Ilha;

167

Participou da implantação do estandarte

da França; considerado um dos cinco

principais abaixo de Japiaçu; casaco azul

como bem de distinção social;

179: Evitou que os pedaços do corpo de

uma escrava de Japiaçu continuasse a ser

distribuído; organizou o julgamento de

Japiaçu e foi favorável a sua condenação

191

Um dos dois principais de Toriepep;

13 Avapã

Touroiepep

Ilha grande do

Maranhão

Principal - 191

Um dos dois principais de Toriepep;

14 Martim Soares

Moreno Português

35

Tomou posse da ilha de Santana e

principiou a formação de alianças;

-

15 Thion Tabajara - Mearin Principal

37 – 38: Responsável pela aliança com

os franceses

41: referência à aliança anterior com os

franceses

63: poligamia; chefe como exemplo;

284: Thion adoece ao chegar à Ilha

Grande e acredita ser devido à ação do

Pajé do Mearim

-

16 Farinha Grossa Tabajara - Mearin Principal

38 – 39

Homem valente na Guerra, alegre e

muito inclinado ao cristianismo (Thion

havia se desmembrado dessa aldeia)

-

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156

17

Uirapirã

Uirapuitã

Ybuira Puitan

Uatimbu

Ilha Grande

Principal

“Chefe do lugar”

48 – 49

Perdoou a mulher pega em adultério em

virtude da quantidade de parentes

52

Chefe guerreiro, retornou da guerra com

escravos

131

“Verificamos que o chefe do lugar partira

para a guerra antes de nossa chegada ao

Maranhão. Por isso, não paramos”;

190: Grande guerreiro muito amigo dos

franceses;

18 Escravo

Capturado pelos

tupinambá de Cumã,

escravo de D´Évreux

Filho de um

Principal

53: Lamentava não ser comido pelos

inimigos como acontecera com seus

pais.

-

19 Migan Francês, de Diepe Intérprete

58: Principal ponte entre os Tupinambá

e os franceses

240: (Diálogo entre Marentin e

d’Évreux)

325: (Diálogo com Évreux e Pacamão –

trocas comerciais, casamento como

aliança, necessidade do batismo para

formalizar aliança)

85 - Foi enviado por Japiaçu para fazer a

intermediação nos primeiros contatos

entre franceses e Tupinambá

159 - Foi até Eussauap para convencer

Momboré-uaçu e o restante da aldeia da

aliança com os franceses

163 – Foi enviado a Tapuitapera para

estabelecer aliança com os franceses e os

Tupinambá da Ilha

20 Ana (nome de

Batismo) Juniparã, Ilha Grande

Filha mais Velha

de Japiaçu

77 – Ameaçou abandonar o marido se

ele não prestasse serviços ao seu pai

140 – batizada (padrinho: Razilly)

141 – casa-se com Sebastião

21 Maria (nome

de batismo) Juniparã, Ilha Grande

Filha mais nova de

Japiaçu - 140 Batizada (padrinho: Launay)

22 Sebastião

Não mencionado

Juniparã depois de

casado

- 277

Casado com a filha de Japiaçu

118: participa da primeira doutrinação na

aldeia de Juniparã, como interprete

131: Fica em Juniparã para doutrinar os

Tupinambá

141: Casa-se com Ana, filha mais velha

de Japiaçu

23 Grand Bresil Um dos principais do

Maranhão Principal

90: Queixa-se de tentarem prendê-lo

igual fizeram com um intérprete,

argumenta que já casou uma filha sua

com um francês.

-

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157

24 Itaiuua, braço

de ferro -

Tradutor;

Intérprete 90: Preso -

25 Arraia-Grande Caietés (Pernambuco) Principal

146: Responsável pela aliança com os

franceses, foi à frança.

138 Discursos nas aldeias

-

26

Jeropariaçu

Ou

Jurupari (O

Diabo)

Ceará

Ibiapaba Principal

144

Aliado dos Portugueses, mas

possivelmente romperia a aliança por ser

filho de um francês

98 – 100

Faz resistência contra os Tupinambá de

Pernambuco e o Português que os

conduzia

27 Sem nome Ibiapaba – Ceará Filho de Principal -

100

Filho de Jeropariaçu (Jurupari),

assassinou, com flecha, o personagem

português que conduzia os Tupinambá

desde Pernambuco

28

Caruatapirã,

Caruatá-Pirã

Cardo

Vermelho

Cumã Principal

145

Mostrou a d’Évreux o machado que os

tremembés utilizaram para esfacelar o

crânio de um tupinambá

253

Encarregado de sacrificar um “índio”,

prestígio após o ato;

164: Responsável pela aliança com os

Tupinambá da Ilha Grande e com os

franceses.

165: Voltava de uma guerra sangrenta

com 11 escravos de diversas nações;

ofereceu escravos aos franceses.

29 Januarã Principal 145: Teve um filho morto pelos

tremembés -

30

Sem nome

Cabelo

Comprido

400 ou 500 léguas a

oeste da Ilha Grande

Principal

(rei)

147

Enviou uma comitiva para estabelecer

contato com os franceses

-

31

Sem nome

Cabelo

comprido

400 ou 500 léguas a

oeste da Ilha Grande Principal

147:

Foi até a Ilha estabelecer alianças com

os franceses a mando de seu “rei”

-

32 Sem nome

Não mencionada,

possivelmente na Ilha

Grande

Principal

226 – 227:

Discurso, sobre o matrimônio com

mulher francesa, gestual que acompanha

o discurso.

-

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158

33 Louis Coquet

Não mencionado,

possivelmente em Ecatu,

Ilha Grande

Filho do Principal

Cachorro grande 227: Filho de Ianuara-uaeté batizado -

34

Maretin

(depois

chamado por

Martins

François)

Aldeia em Tapuitapera Principal e

feiticeiro

239

Tinha três mulheres antes de ser

batizado; recebeu novo nome de seu

padrinho.

306

Após tentativa de fragmentação em

Tapuitapera, os franceses ordena que os

Tupinambá se aproximem de Martin

François;

337

Encarregado de converter os filhos do

principal de Tapuitapera

389-390

Um dos principais de Tapuitapera;

poligamia; batismo;

35 Gregório Ussap, Ilha Grande Tupinambá cristão,

Genro do Principal

277

Casou com a filha do Principal de Ussap

(Essauap)

-

36 Sem nome Mearim; uma das

aldeias aliadas a Thion

Pajé e Principal

Tabajara

283 – 284

Resistia à aliança entre os Tupinambá

do Mearim e os Tupinambá da Ilha

Grande e Franceses

287 – 288

Tentativa de fragmentação e resistência

á aliança;

-

37 Sem nome

Mearim; uma das

aldeias aliadas a Farinha

Molhada

(pagiaçu) Pajé e

Principal Tabajara

292

Orientou os seus para que vestissem

roupas francesas com o intuito de

convencer os tabajaras aliados a Thion a

se entregarem

-

38 Sem nome

Aldeia situada no

caminho de volta do

Pará

Chefe

294

Guardou um relógio esperando que nele

houvesse um espírito

-

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159

39 Pacamão Cumã Pajé e principal

chefia da província

299

Exercia domínio sobre as aldeias de

Cumã.

321

“quem não o conhece não faria caso

dele. Porém é o maior e o mais graduado

de todos os principais do Maranhão,

especialmente na província de Cumã.

Goza entre eles de tal poder, que

somente com sua palavra tem movido

todos os habitantes, e é extremamente

temido”.

321

Dom da fala, atributos que acompanham

o discurso, chefe como exemplo.

-

40 Acaiuí

(ou Acajuí) Mearim Principal

301

Construiu sua casa nas proximidades do

forte

117

“Acajuí, pai do menino de que já falei,

disse que queria dar esse filho juntamente

com os outros aos Paí êtê”

140: Batismo do filho;

331

Disse que seu filho não iria furar o lábio

como de costume;

41 Sem nome Tapuitapera -

306

Tentou fragmentar a aldeia atacando o

Cristianismo;

Oratória.

-

42 Sem nome Tapuitapera Principal de toda

província, Pajé

333

Aliado dos franceses; chefe como

modelo exemplar.

-

43 Sem nome Tapuitapera Intérprete 337: Seduziu os filhos do principal de

Tapuitapera a abandonar o cristianismo -

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160

44 Sem nome Tapuitapera Filho do principal 337: Foi convertido por Martin François -

45 Sem nome Tapuitapera Filho do principal

337: Foi convertido por Martin François

-

46 Chenambi Tapuitapera Filho mais velho

do principal

337 – 338: Foi mandado pelo pai para

selar aliança com os padres franceses,

prometeu continuar casado apenas uma

vez para poder ser batizado.

-

47 Jacupen

ou Jacopém Potiguar – Canibaleiro Principal

339

Foi conduzido para Ilha pelo Senhor de

La Ravardiere; cedeu um filho para os

padres franceses.

117 – 118: Jacopém, disse que no dia

seguinte iria à mata cortar uma grande

árvore para fazer a cruz a ser chantada em

Juniparã; que ele e seus filhos tomavam a

cargo a feitura da mesma, sem auxílio de

mais ninguém; o que fez de fato no dia

seguinte;

140: Filho batizado

191

Primeiro dos quatro principais abaixo de

Japiaçu em Juniparã

192

Referência indireta à fragmentação dos

Tupinambá que levou a aldeia de Jacupen

a buscar a Terra Sem Mal.

48 A

A

Carlos

Nome de

batismo

Filho de principal

Jacopém -

140

Batizado

48 B

B

Acaui-miri,

Jean depois de

batizado

Canibaleiro Filho do Principal

Jacupen 339 -

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161

48 C

C

Acajuí

mirim186

João depois de

batizado

Juniparã (embora seja a

aldeia do contato, não se

pode dizer que o garoto

era dessa aldeia)

Filho do principal

Acajuí -

113: “Esse menino, de 9 a 10 anos de

idade, […] mostrava uma mentalidade tão

admirável para a sua idade que sempre

acreditei tê-lo preparado Deus, de há

muito, para grandes coisas”.

118: Refuta os argumentos de “Taquara

Verde” em uma reunião dos anciãos

119: Participa da primeira doutrinação

pública na aldeia de Juniparã;

137 e 140: Batizado com nome de João;

331: Não teria os lábios furados como era

de costume porque contrariava os

franceses;

343 – 344: Zombava os pajés imitando-os

49 Sem nome Potiguar – canibaleiro Feiticeiro 340: Convenceu a tribo de Jacupen (ou

Jacopem) a buscar a “terra sem mal”

343: Referência indireta ao pajé que

conduziu os potiguares á busca da Terra

sem mal.

50 Sem nome Francês

341: Depois de querela com o principal

dos potiguares, convenceu os

Tupinambá a matarem dos índios

daquela nação

-

51 Sem nome Tupinambá, Urobutin Principal 345: Aliado dos franceses; veio oferecer

os filhos para os franceses cristianizar. -

52 Aua Thion - Principal 345: Citado pelo principal de Urobutin -

53 Onda Cumã

Cumá Principal

349: Aliados dos franceses em Cumã;

ofereceu um filho para os franceses

cristianizar; Chefe ancião.

-

54 Tapitapucu Pernambuco Principal -

98 (discurso)

Passava de aldeia em aldeia fazendo

discursos para convencer os Tupinambá a

se renderem

186 Provavelmente era o mesmo tupinambá referido acima por Yves d’Évreux, porém esse o nomeia por Jean, filho de Jacupen, e Abbeville nomeia por João, filho de Acajuí.

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162

55 Uirá-papeupe Toroup – Touroupê

Ilha Grande Principal -

109 – Recebeu os franceses; reuniu um

conselho de anciãos;

193 Um dos dois principais de Toroupê;

56 Carauátá-Uare Toroup – Touroupê

Ilha Grande Principal -

193

Um dos dois principais de Toroupê;

57 Tave Avaetê Januarem, Ilha Grande Mulher -

111

Levou a filha, depois chamada por Maria,

para ser batizada

58 Avati-on

Alpiste preto Itapari, Ilha Grande Principal - 188: um dos principais.

59

Metarapuá

Tembetá

redondo

Itapari, Ilha Grande Principal

36 - Suspeito de traição contra os

franceses ao estabelecer contatos com os

portugueses

132: “Principal do lugar é um bom amigo

dos franceses”

167

Participou da implantação do estandarte

da França; um dos cinco principais

abaixo de Japiaçu; casaco azul; 188: um

dos principais.

60 Sem nome

Escravo

Timboí (cabelo

comprido)

Escravo do

principal -

133

Foi avisar o principal da morte de um dos

seus filhos que fora enviado para um pajé

curá-lo.

61 Moissobuí Principal - 140

Batismo do filho

62 Pedro Filho de principal - 140

Batizado

63 Avaraí Principal - 140

Batismo de um filho e uma filha

64

Adriano

Nome de

batismo

Filho de principal - 140

Batizado

65 Pedro Provavelmente

Juniparã

Filho de uma

Tapuia -

140

Batizado

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163

66 Mairata Provavelmente

mulher de Avaraí - 140 - Batismo de uma filha

67 Esteva Filha de Avaraí e

Mairata - 140 – Batizada

68

Jacupari

Jacuparim

Faisão Adunco

Maioba – Ilha Grande

Situa-se a três léguas do

Forte (Évreux)

Principal

55: Fez a casa dos franceses

57: Construiu a casa dos padres; queria

casar suas filhas com os franceses.187

147: Ancião, oratória, guerreiro

experiente, modelo exemplar;188

179: Defendeu que Japiaçu deferia ser

punido por mandar assassinar uma de

suas escravas pega em adultério; 195.

69

Jeovantim

Maioba – Ilha Grande Principal -

195: Um dos principais de Maioba

70 Su-assuac Coieup – Ilha Grande Principal -

149 – 154: Principal, pai da mulher de

Japiaçu, ancião, oratória.

71

Sem Nome

Juniparã – Ilha Grande Mulher do

Principal -

149: Indício de especificidade dos

principais, no caso, de Japiaçu: não ser

atraído para a casa do “Sogro” após

matrimônio.

72 Momboré-uaçu Eussauap Ancião -

156 – 161: Questionou a aliança com os

franceses em um discurso na casa grande.

Ancião, dom da fala.

73 Quatiara-Uçu

Cuatiara-Uçu

Tapi Tuçu

Tapiruçu, Taperuçu –

Ilha Grande

Principal - 161; 193

74 Seruêuê Caaguira

Tapuitapera Principal -

163: Principal em Tapuitapera;

Responsável pela aliança com os

franceses e Tupinambá da Ilha;

197: Um dos dois principais da aldeia

187 Entendemos ser Jacupari, pois é o principal mais citado. Os franceses contaram com ele, quando decidiram julgar Japiaçu. 188 Entendemos ser jacupari.

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164

75 Avation189 Caaguira

Tapuitapera Principal - 197: Um dos dois principais da aldeia

76 Januaresic Cumã

Principal

Irmão de Cardo

Vermelho

- 164 – temido pelas proezas na guerra

77 Uaviru190 Ilha Grande Principal -

167 – Participou da implantação do

estandarte da França; considerado um dos

cinco principais abaixo de Japiaçu;

casaco azul como bem de distinção

social;

78 Suaçu

Suaçu-Açã

Timboí

Ilha Grande Principal -

133: Cerca de 100 anos de idade;

152: Pediu para ser batizado;191

179: Foi chamado para o Julgamento de

Japiaçu, mas não compareceu;

188: Um dos dois principais da aldeia;

79 Uarumá-çu Timboí, Ilha Grande Principal - 188: Um dos dois principais da aldeia;

80 Uirá-Uaçu-

Pinim Euaíve – Ilha Grande Principal - 189: Um dos principais de Euaíve

81 Jere-Uçu Euaíve; Ilha Grande Principal - 189: Um dos principais de Euaíve

82 Uanhan-

Mondeuve

Itaendave

Ilha Grande Principal - 190;

83 Tamano

Pedra morta

Araçuí-Jeuve

Ilha Grande Principal - 190;

84 Tata-Uaçu192 Juniparã

Ilha Grande Principal -

191: Um dos quatro principais abaixo de

Japiaçu em Juniparã

189 Nome repete-se em pelos menos três ocasiões. 190 Apesar de ser considerado um dos cinco principais abaixo de Japiaçu, Uaviru não aparece relacionado a nenhuma aldeia. 191 Inferimos ser Suaçu-Açã por ser o mais citado. 192 Utilizou-se Tata (grafado no original) para não confundir com Tatu (tradução), nome que se repetiria no principal de Eussauap: Tatu-uaçu.

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165

85 Tecuare-Ubuí Juniparã

Ilha Grande Principal -

191: Um dos quatro principais abaixo de

Japiaçu em Juniparã

86 Pacquarabeu Juniparã

Ilha Grande Principal -

191

Um dos quatro principais abaixo de

Japiaçu em Juniparã

87/88

Urubu-Ampã

Ou

Taicuju

Januarem – Januaré

Ilha Grande Principal -

109 – 100

Recebeu os franceses; mandou armar as

redes dos franceses ao lado da sua

87 Urubu-Ampã Januaré (Cão fedorento)

Ilha Grande Principal -

191

Um dos dois principais de Januaré

88 Taicuju Januaré (Cão fedorento)

Ilha Grande Principal -

191

Um dos dois principais de Januaré

89 Itapupuçã

Itapucuçã

Uarapirã

Ilha Grande Principal -

179

Foi chamado para o Julgamento de

Japiaçu, mas não compareceu

192

Principal da aldeia

90 Moutin Poieupe

Ilha Grande Principal -

192: Um dos dois principais da aldeia

Poieupe

91 Uirá-Ecá-Açu Poieupe

Ilha Grande Principal -

192: Um dos dois principais da aldeia

Poieupe

92 Tatu-Uaçu Eussauap

Ilha Grande Principal -

192: Um dois quatro principais de

Eussauap

93

Corá-Uaçu,

Solá-Uaçu

Maari-Uaçu

Eussauap

Ilha Grande Principal -

192

Um dois quatro principais de Eussauap;

Principal com vários nomes

94 Taiaçu Eussauap

Ilha Grande Principal -

192

Um dos quatro principais de Eussauap;

95 Tapire-Evire Eussauap

Ilha Grande Principal -

192

Um dos quatro principais de Eussauap;

96 Terere Maracaná-Pisip

Ilha Grande Principal -

192 – Um dos três principais de

Maracaná-Pisip;

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166

97 Ajuru-Uaçu Maracaná-Pisip

Ilha Grande Principal -

192 Um dos três principais de Maracaná-

Pisip;

98 Uará Obuí Maracaná-Pisip

Ilha Grande Principal -

192: Um dos três principais de Maracaná-

Pisip;

99 Tipói-Açu Aquetene

Ilha Grande Principal - 193: principal da aldeia

100 Boí Caranaíve

Ilha Grande Principal - 194;

101 Canuá-Uaçu Jeviree – Juiret

Ilha Grande Principal - 194;

102 Canuá-Mirim Jeviree-a-pequena

Ilha Grande Principal -

194

Um dos dois principais da aldeia;

103 Eunaiuãtin Jeviree-a-pequena Principal - 194: Um dos dois principais da aldeia;

104 Ambuá-Uaçu Uri-Uaçu-Eupê

Ilha Gradne Principal - 194;

105 Tajapuã Pacuri-Euve

Ilha Gradne Principal - 195;

106 Tocai-Açu Evapar

Ilha Grande Principal - 195;

107 Conronron-

Açu

Meuruti-Euve

Ilha Grande Principal - 195;

108 Avation193 Tapuitapera

Tapuitapera Principal - 197: Um entre os dois principais da aldeia

109 Caí-açu Tapuitapera

Tapuitapera Principal -

197

Um entre os dois principais da aldeia

110 Arari Seri-ieu

Tapuitapera Principal - 197: Um entre os dois principais da aldeia

193 O nome repete-se em pelo menos três ocasiões.

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167

111 Uirá-eubucu Seri-ieu

Tapuitapera Principal -

197

Um entre os dois principais da aldeia

112 Uirá-eubucu Jeneupá-eupê

Tapuitapera Principal -

197

Um entre os dois principais da aldeia

113 Suaçu-ceê Jeneupá-eupê

Tapuitapera Principal -

197

Um entre os dois principais da aldeia

114 Cauim-aguê Meureutieupê

Tapuitapera Principal - 197;

115 Ruronbeuve Pindotive

Tapuitapera Principal - 198;

116 Uiraíve-açu Arueípe

Tapuitapera Principal - 198;

117 Itá-onguá Tapui-tininga

Tapuitapera Principal - 198;

118 Uitim

Farinha Branca

Engare-lequitave

Tapuitapera Principal - 198;

119 Suaçu-caê Urubutin-enguave

Tapuitapera Principal - 198;

120 Itaoc-Mirim Cumá – Cumã Principal - 199;

121 Maichuare Januacuare

Cumá Principal - 199;

122 Canuare Tavapiap

Cumá Principal - 200;

123 Inagarobuí Cui Ieup

Cumá Principal - 200;

124 Tamanduaí Aruipê; Cumá Principal - 200;

125 Jura-Eutá-

Uaçu

Aruipê

Cumá Principal - 200;

126 Maracapu Taevonajo

Cumá Principal - 200;

127 Caiaeíve Pacuripanã – Cumá Principal - 200;

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168

128 Tubomá-Açu Aovajeíve

Cumá Principal - 201;

129 Uirapar-Uçu Maecã

Cumá Principal - 201;

130 Boireapar Curemaetá

Cumá Principal - 201;

131 Uiraruantin Japieíve

Cumá Principal - 201;

132

Caripira;

Fancisco

depois de

batizado

Rairi – Mearim;

Escravo possivelmente

em Eussauap

Tabajara

Prisioneiro de

Guerra

-

293

Incisões por todo (honra); 349: viajou

para França; 362: Morre; vários nomes;

365 - Adquirira outro nome após o

batismo

133 Timboú Principal - 342 – Estava em Juniparã quando morreu

um menino seu filho.

134 Uará-uaçu Ibiapaba Principal – Caietê - 349 – Teve um de seus filhos enviados a

França

135

Itapucu;

Itapuiçã;

Luís Maria

depois de

batizado

Ibiapaba

Filho de Uará-

uaçu, principal

Caietê

-

349:Um dos seis índios que viajaram para

França (referência indireta)

357: Discursou para o Rei da França;

363: Depois de Caripira, era o mais velho

dos cinco tupinambá que foram à França;

Diálogo com Caripira quando este pedira

o batismo;

372: Tinha mais de 10 nomes

comemorativos das batalhas que venceu;

guerreiro; discursos; tinha trinta e oito

anos

136

Maném

Antônio depois

de batizado

Próximo ao Rio Pará Cabelo Comprido -

349 - Um dos seis índios que viajaram

para França (referência indireta)

368 – 369: Foi à França, onde morreu

137 Uirau Pinobuí Mocuru Principal - 373 - Enviou um filho à França

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169

138

Uaiaeiró

Mocuru

Mulher do

principal

Uirau Pinobuí

- 373

Teve um filho enviado à França

139

Uaruajó

Luís Henrique

depois de

batizado

Mocuru Filho do principal,

Uirau Pinobuí -

373

Enviado a França e batizado com o nome

de Luís Henrique

140 Tangará Ilha Grande - -

374

Pai de garoto, Japuaí, enviado á França

141 Cunhã-uaçu-

teinhê Ilha Grande -

374

Mãe de garoto, Japuaí, enviado à França

142 Japuaí Ilha Grande -

374

Enviado a França e batizado com o nome

de Luís de São João.

143 Sem nome Ilha Grande,

provavelmente -

150 – 153

Índio sacrificado por Cardo Vermelho,

provavelmente, por manter relações

homossexuais; Batismo como salvação

da alma.

390: Batismo com porta de acesso ao

paraíso.

-

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170

Apêndice 2

Tabela 16: Características e relações sociais relacionadas aos chefes tupinambá a partir das

crônicas de Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux.

DEFINIÇÃO ABBEVILLE ÉVREUX TOTAL

Oratória

Gestos que acompanham o

discurso

85-86; 86-89; 112; 116-

117; 147;

180-182; 309; 330; 338;

345

32-34; 53; 78; 90; 96; 111;

117; 132; 136; 227; 252;

306; 321; 321-323; 334

25

Chefe ancião 112; 131; 140; 147; 149;

343 63; 78; 336 09

Controle social exercido

pelos anciãos

288-290; 308-309; 315;

335; 340

43; 73-74; 76; 77; 78; 94;

95 12

Conselho dos anciãos

75; 85; 109-110; 111; 113;

126-127; 148; 156; 161;

180-182; 362

94-95; 337-338 12

Poligamia 91-92; 136-137; 137; 300;

345; 389-390

63; 227; 240; 244; 284;

321; 336 14

Importância do parentesco

na formação de alianças 149; 300 42; 48-49, 55, 78; 227 06

Aquisição de prestígio –

ritual antropofágico

86-89; 137; 178; 308-309;

315 38-39; 339-340 07

Esfacelamento de crânio –

ritual de troca de nome;

escritura na pele

10; 192; 293; 311; 362; 372 52-53; 53;110; 111-112;

112; 143; 145; 234; 253 15

Modelo exemplar

À frente dos trabalhos -

19; 42; 63; 78;

321-323; 333-334 6

Guerreiro experiente

À frente da guerra

147; 164-165; 173; 180-

182; 190; 289-290; 293;

308-309; 309; 345; 372

38-39; 52-53; 63; 78; 110;

136;

143-145; 333-334; 336

20

A frente da fragmentação do

grupo e da formação de

aldeia

172; 341-342

22-24; 38-39;

94-95; 136; 283-284; 287;

389-390

09

Chefe sogro 84; 91-92; 141 55; 77; 90 06

Chefe pajé 343

338-246; 281; 282; 284-

285; 288; 228; 293-294;

333-334

09

Bens de prestígio, de

condição social e divisão

etária

103; 128; 166-167; 180-

181; 217-218; 289-290;

304

40-41; 41; 53; 117 11

Demonstrativos de

hierarquia

81-82; 85-86; 103; 109-

110; 112; 128; 138-139;

139; 166-167

42; 76; 78; 143-145; 321;

332 15

Possuidor de escravos;

inimigos capturados na

guerra

156; 164-165; 302; 345 29; 37-38; 52-53; 104-

105; 336 09

Troca de nome pelo batismo 102; 106; 136; 365 233 – 246, 250; 321; 323;

339 -340 09