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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
JOSIANE BROLO ROHDEN
A REINVENÇÃO DA ESCOLA:
HISTÓRIA, MEMÓRIAS E PRÁTICAS EDUCATIVAS NO PERÍODO
COLONIZATÓRIO DE SINOP – MT (1973-1979)
CUIABÁ – MT
2012
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JOSIANE BROLO ROHDEN
A Reinvenção da Escola HISTÓRIA, MEMÓRIAS E PRÁTICAS EDUCATIVAS NO PERÍODO
COLONIZATÓRIO DE SINOP – MT (1973-1979)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação no Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato
Grosso como requisito para obtenção do título de Mestre em
Educação na área de Concentração História da Educação e
Memória, Linha de Pesquisa Cultura, Memória e Teorias em
Educação.
Orientadora: Profª. Drª. Elizabeth Figueiredo de Sá
CUIABÁ – MT
2012
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4
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep: 78060900 -CUIABA/MT Tel : 3615-8431/3615-8429 - Email : [email protected]
FOLHA DE APROVAÇÃO
TÍTULO : "A Reinvenção da escola: História, Memórias e Práticas Educativas no período
Colonizatório de Sinop-MT (1973-1979)"
AUTORA : Mestranda Josiane Brolo Rohden
Dissertação defendida e aprovada em 14/12/2012.
Composição da Banca Examinadora:
______________________________________________________________________________
___________
Presidente Banca / Orientadora Doutora Elizabeth Figueiredo de Sá Instituição : Examinadora Interna Doutora Márcia Dos Santos Ferreira Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Examinadora Externa Doutora Vera Lúcia Gaspar da Silva Instituição : UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA Examinadora Suplente Doutora Elizabeth Madureira Siqueira Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
CUIABÁ,14/12/2012.
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Aos meus dois amores:
Rômulo e Matheus:
Não há poemas, nem poesias, Não há canções ou composições,
Que possam expressar em palavras, O que sinto por vocês dois!
Obrigada por compreender as minhas tantas ausências,
pelo apoio constante, por serem meus
fieis companheiros no decorrer de todo este trabalho.
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AGRADECIMENTOS
Nestes quase dois anos de estudos, é chegada a hora de não apenas agradecer, como
também lembrar e destacar pessoas que compartilharam seus saberes comigo, assim como
estiveram ao meu lado participando ao longo de todo percurso do Mestrado, incentivando-me,
acreditando em mim, talvez muito mais que eu mesma. Por isso, a elas, quero deixar a minha
singela gratidão. Este trabalho é feito de muitas vozes e mãos. Não o fiz sozinha, apenas sou parte
inconclusa da produção. Por essa razão, torna-se difícil encontrar palavras para expressar meus
agradecimentos. Por isso, como não poderia ser diferente, deixo a poesia falar por mim:
É fácil trocar as palavras,
Difícil é interpretar os
silêncios!
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber como se
encontrar!
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração!
É fácil apertar as mãos,
Difícil é reter o calor!
É fácil sentir o amor,
Difícil é conter sua torrente!
Como é por dentro outra
pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro
universo
Com que não há comunicação
possível,
Com que não há verdadeiro
entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no
fundo.
Fernando Pessoa
Diria também que é fácil dizer Obrigado; o difícil é conseguir que o agradecimento toque a
alma daqueles a quem somos tão gratos e da maneira que gostaríamos, afinal, como disse o poeta:
“Nada sabemos da alma, senão da nossa”. Sendo assim, da minha forma, do meu jeito, na
simplicidade da minha alma, insisto em dizer a todos vocês: Obrigada!
À minha querida orientadora e amiga Elizabeth Figueiredo de Sá, que me acolheu no meu
processo de “migração” para a História da Educação, me apontando caminhos, possibilitando que
meu trabalho se tornasse cada vez mais rico com o seu olhar, estimulando minhas produções
científicas, incentivando-me nessa caminhada, sempre generosa, compreensiva e atenta nas mais
diversas ocasiões. Um encontro valioso que a vida me presenteou – Obrigada por tudo!
Ao querido e admirável professor-amigo Silas Borges Monteiro, que primeiramente
oportunizou meu ingresso no Mestrado e a quem sou grata por ter aprendido com ele muitas coisas,
dentre elas, numa perspectiva filosófica, “pensar menos e sentir mais”.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE e que
fizeram parte da minha formação, grandes mestres com quem tive a honra de aprender: Dr. Edson
Caetano, Dra. Andreia Dalcin, Dr. Walter Gomide, Dra. Maria da Anunciação Pinheiro Barros
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Neta, Dr. Nicanor Palhares Sá, Dra. Ozerina Victor de Oliveira, Dra. Rute Cristina Domingos da
Palma, Dr. Silas Borges Monteiro, Dra. Elizabeth Figueiredo de Sá. A todos vocês, obrigado por
superarem minhas expectativas – que eram muitas – e me revirarem do avesso!
À Vera Lúcia Gaspar da Silva, Márcia dos Santos Ferreira, Elizabeth Madureira Siqueira,
pelas preciosas contribuições no momento da qualificação e por aceitarem o convite de fazer parte
dessa minha história.
Sou muito grata também a Claudevânia Barbon Anderle, pelo desafio de apresentar esta
história a partir do seu olhar artístico, deixando marcas no trabalho com suas belas obras de arte
que ‘embelezaram’ cada capítulo e trouxeram a possibilidade da Arte também narrar uma história.
Aos professores Edson Antônio de Souza, Fiorelo Picoli e Vitale Joanoni Neto, por terem
me disponibilizado materiais e também pelas ricas contribuições historiográficas.
A todos os colegas do Grupo de Estudo em História da Educação e Memória (GEM), pelas
muitas contribuições e por terem me recebido como membro do Grupo, com muita gentileza,
solidariedade.
Ao meu esposo Rômulo Rohden, meu filho Matheus Ricardo, minhas irmãs Juliana e
Franciane, e a todos os familiares, pelo incentivo e pela compreensão nos momentos de ausência
durante essa trajetória que exigiu muito de mim, motivo pelo qual precisei me fazer ausente tantas
vezes.
Ao meu saudoso pai Nelsi Brolo (in memorian), por inúmeras vezes ter me dito, quando
criança, que sentia muito orgulho do meu gosto pelos estudos. Palavras simples, presentes ainda na
memória, e que fizeram e me fazem não desistir de querer aprender sempre mais.
À minha mãe Terezinha Brolo, que, mesmo contrariada, porém, muito compreensiva,
permitiu que eu fizesse as refeições sempre à companhia de um livro, durante a minha infância e
adolescência. Além disso, agradeço-lhe por ter me alfabetizado aos cinco anos de idade por meio
de gibis, mesmo não tendo formação ou habilitação para tal. Foi assim que aprendi com ela as
primeiras letras e o salutar hábito da leitura.
À minha amiga-irmã Alessandra Abdala, a quem me falta palavras para agradecer.
Obrigada por compartilhar comigo cada momento do Mestrado, por tantas vezes ter me acolhido
em sua casa e com sua família, por ser mais um presente que a vida me reservou. Ganhei uma
amiga e, de brinde, mais uma família, bem grande por sinal.
Aos grandes companheiros e companheiras de conversas, aprendizagens, trocas e risadas:
Jorge Paredes, Isaias Xavier, Neide Tarsila da Costa, Catiane Peron, Ilza Polini, Rosimeire
Vilarinho e a todos os amigos que tive a honra de conhecer/conviver no decorrer do processo do
Mestrado.
À Iria Loch Rohden e Irenite de Cezaro Chimiti, por terem gentilmente assumido meu
papel de mãe, nas muitas vezes em que estive distante.
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Ao querido professor Josivaldo Constantino dos Santos, orientador da graduação e grande
incentivador para que eu investisse na carreira acadêmica. Obrigada pelas dicas, pelas conversas
sobre Michel de Certeau, pelas longas caminhadas produtivas, nas quais sempre aprendi algo,
especialmente de “ser um poeta da escola”.
À CAPES, que através da concessão da Bolsa de Demanda Social garantiu o suporte
financeiro necessário para o desenvolvimento da pesquisa.
Aos colegas do Projeto Escrileituras CAPES/OBEDUC/INEP – Núcleo UFMT, o qual
participei como membro durante o primeiro ano de mestrado como bolsista. Grupo o qual me
oportunizou perceber a escola como lugar de saber e poder, mas também como um lugar dinâmico,
repleto de texturas, de cheiros, sabores, rizomas, de dores e amores, composto por muitos traços,
por muitas fugas, por muitas cores.
A todos os professores, funcionários do Programa, frisando aqui as dedicadas: Marisa C.
Voltarelli, Luiza Teixeira, Delma Pereira e a atenciosa coordenadora Tânia Lima Beraldo.
Obrigada pela paciência!
A todos aqueles que me receberam nas Escolas Estaduais Nilza de Oliveira Pipino e N. Sra.
do Perpétuo Socorro, na Colonizadora Sinop e no Patrimônio Histórico de Sinop, que me
auxiliaram no encontro com as fontes depositadas nos arquivos públicos.
Em especial, a Terezinha Vandresen Pissinati Guerra, Maria Lúcia de Araújo Bráz, Anízia
Mendes Gobbo, Maria Augusta de Paula, Carla Sprizão Ponce, Dayse Maria Vieira Bérgamo, Soeli
Siaska da Silva, coautoras desta pesquisa, cujas vozes ecoam por todo trabalho.
Sobretudo a Deus, que me concedeu paciência, discernimento, força e coragem para seguir
em frente nos muitos momentos difíceis e principalmente por ter me presenteado com uma vida
que estimula o intenso desejo inacabado de aprender!
Recebam todos a minha gratidão e, que ela, de alguma forma possa lhes tocar a
alma.
Muito Obrigada!
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Que a importância de uma coisa,
não se mede com fita métrica, nem com balanças, nem barômetros etc.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento
que a coisa produza em nós.
Manoel de Barros
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RESUMO
ROHDEN, Josiane Brolo. A Reinvenção da Escola: História, Memórias e Práticas
educativas no período colonizatório de Sinop-MT (1973-1979). 2012. 196 p. Instituto de
Educação. Universidade Federal de Mato Grosso.
A presente pesquisa tem como objeto de estudo a cultura escolar produzida pela
Escola Estadual Nilza de Oliveira Pipino, localizada na cidade de Sinop, estado de Mato
Grosso, lócus desta investigação, eleita como objeto de estudo por ser a primeira escola
instituída nesta localidade durante o processo de colonização da cidade. Representa o
início da implantação de um sistema educacional em um descampado da Floresta
Amazônica e que, portanto, mais que cumprir suas funções educacionais, essa escola e a
educação de forma geral representavam, naquele contexto histórico, instrumento
fundamental para a construção de uma cidade vocacionada para a fixação dos migrantes.
Toma-se, como ponto de referência nessa investigação, os anos de 1973 a 1979. A escolha
e a delimitação do recorte cronológico deve-se ao fato de que a educação, assim como a
cidade de Sinop foram instituídas no ano de 1973 e, ao final da mesma década, em 1979,
ocorreria a emancipação política da cidade, havendo com isso mudanças significativas no
cenário político-social da cidade. No movimento de colonização, milhares de pessoas
deixaram sua terra natal, principalmente oriundas da região sul do país, para ocupar o
espaço em estudo. Dessa forma, fazer um inventário das práticas escolares, dos valores, da
conduta e normas a ser seguidas, dos conteúdos a serem ensinados constitui um campo de
trabalho interessante, pois permite, além de compreender o cotidiano do espaço escolar em
estudo, também discutir as tradições, os costumes trazidos pelos migrantes e que seriam
mantidos e repassados pela escola, além de possibilitar uma discussão re-significando a
história da primeira instituição. Dentre os objetivos da pesquisa, destaca-se a necessidade
de contribuir para compreender como foi organizado o sistema educacional do primeiro
estabelecimento escolar durante o período delimitado e o que ali deveria ser ensinado,
discutindo seus valores e normas, necessários para garantir o processo de escolarização,
inferindo sobre os costumes, práticas, tradições culturais mantidas e repassadas pela escola,
sobretudo, pretende-se destacar as artes de fazer a partir principalmente das concepções de
Michel de Certeau, desde a iniciativa da ‘construção’ da escola pelos próprios migrantes,
como também no que se refere à dinâmica criadora, inventiva e astuciosa daqueles que
participaram do seu cotidiano escolar. Para a construção do objeto e desenvolvimento da
pesquisa, apropriamos de documentos escolares, cadernos de alunos e professores, diários
de classe e fotografias, adquiridos não apenas no espaço escolar, mas também em acervos
particulares e públicos. Ainda na perspectiva da História Oral, entrevistas foram realizadas
com ex-professores e alunos a fim de ‘ouvir’ as vozes daqueles que não tiveram sua
história registrada. A pesquisa sugere discutir o quanto a escola se configura enquanto
lugar de produção de uma cultura específica, em que frequentemente são criadas
estratégias modeladoras e táticas de subversão, além do quanto as relações de poder se
revelam no interior das instituições escolares, enquanto espaço em que se determinam as
relações sociais, ao mesmo tempo em que se constitui como difusora de saberes e
conhecimento.
Palavras-chaves: História da Educação. Colonização. Cultura Escolar. Mato Grosso.
Sinop-MT.
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ABSTRACT
ROHDEN, Josiane Brolo. The reinvention of the school: history, memories and
educational practices in the colonization period of Sinop-MT (1973-1979), 2012. 196
pages. Instituto de Educação. Universidade Federal de Mato Grosso.
This research has as object of study the school culture produced by the Nilza de
Oliveira Pipino State School, located in Sinop, Mato Grosso, locus of this research, elected
as an object of study for being the first school established at this location during the
colonization process of the city. It represents the beginning of an educational system in an
Amazon rainforest wilderness and therefore more than fulfill their educational functions,
this school and education generally represented in that historical context, a fundamental
instrument for the construction of a city dedicated to the establishment of migrants. Take
as a point of reference in this investigation, the years from 1973 to 1979. The choice and
delimitation of chronological cut-off is due to the fact that education, as well as the city of
Sinop were instituted in the year 1973 and, at the end of the same decade, in 1979, would
the political emancipation of the city and with it significant changes in the socio-political
scene of the city. In the colonization movement, thousands of people left their homeland,
mainly from the southern region of the country, to occupy the space under study. In this
way, do an inventory of school practices, values, and standards of conduct to be followed,
the content to be taught is an interesting work because it allows, in addition to understand
the daily life of school space, also discuss the traditions, the customs brought by migrants
and that would be maintained and passed on by the school, besides enabling a discussion
re-meaning the story of the first institution. One of the goals of the research, emphasizes
the need to understand how it was organized the first school's education system during the
period enclosed and that there should be taught, discussing their values and standards
needed to ensure the process of schooling, inferring on the customs, practices, cultural
traditions maintained and passed on by the school, in particular, it is intended to highlight
the arts of making mainly from Michel de Certeau conceptions, since the initiative of the '
construction ' of the school by the migrants, but also as regards the creative, inventive and
astute dynamic, of those who participated in their daily lives in the school. For the
construction and development of research, it was appropriated school documents,
schedules of students and teachers, class diaries and photographs which were acquired not
only in school, but also in private and public collections. Still in the context of Oral History
interviews were conducted with former professors and students to ' hear ' the voices of
those who have not had their recorded history. This research suggests discussing how the
school is configured as a place of production of a particular culture, in that they are often
created shaping strategies and tactics of subversion, and how power relations are revealed
within the educational institutions, as an area in which determine social relationships,
while at the same time constitutes as broadcast knowledge.
Key words: Education History. Colonization. School Culture. Mato Grosso. Sinop-MT.
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LISTA DE FIGURAS E QUADROS
Figuras
Figura 1- Fundação de Sinop, em 14 de setembro de 1974 ................................................36
Figura 2- As primeiras riquezas agrícolas de Sinop apresentadas pelas propagandas.........38
Figura 3- Ruas de Sinop no dia de sua fundação, em 14 de setembro de 1974...................42
Figura 4- Vista aérea da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, 1972 .................................47
Figura 5- Índios Panará na ponte construída para a transposição do Rio Peixoto de
Azevedo – BR-163...............................................................................................................48
Figura 6- Acampamento da empresa colonizadora para abertura de Sinop, 1973 ..............56
Figura 7- Abertura de Sinop pela Colonizadora Sinop, 1972..............................................59
Figura 8- Início dos trabalhos da abertura de Sinop, 1972 ..................................................60
Figura 9- Banda da Polícia Militar de Cuiabá, 1974............................................................65
Figura 10- Missa de fundação de Sinop, 1974.....................................................................66
Figura 11- Almoço de celebração da Fundação, 1974 ........................................................66
Figura 12- Matéria de veiculação nacional sobre Sinop, 2010.. .........................................68
Figura 13- Vista área de Sinop, 2010...................................................................................68
Figura 14- Família em Sinop, 1973......................................................................................71
Figura 15- Mudança de uma família de agricultores chegando a Sinop, 1973....................73
Figura 16- Moradias de famílias em barracões de lona, 1973 .............................................75
Figura 17- Alunos, pais e professores em frente a escola em Sinop, extensão da Escola N.
Sra. do Perpétuo Socorro de Vera-MT, 1975.......................................................................85
Figura 18- Sala de Aula construída pelos migrantes, 1973..................................................91
Figura 19- Desfile cívico em comemoração à fundação de Sinop, 1974.............................97
Figura 20- Escola da comunidade Nanci, 1979...................................................................99
Figura 21- Aluna da Escola Estadual dos índios Koiupanká, 2007...................................102
13
Figura 22- Salas de aula construídas em substituição à primeira, erguida pelos migrantes,
1974....................................................................................................................................105
Figura 23- Vista aproximada das salas construídas pela colonizadora, 1978....................112
Figura 24- Pelotão das alunas uniformizadas, com vestimenta característica do sul do país,
1978....................................................................................................................................115
Figura 25- Alunos em recepção a Júlio César Magalhães no Dia do Trabalho, 1977.......120
Figura 26- Caderno da 1ª série, 1977. ...............................................................................128
Figura 27- Caderno da 2ª série, 1978. ...............................................................................129
Figura 28- Caderno da 3ª série, 1979. ...............................................................................129
Figura 29- Caderno da 3ª série, 1979. ...............................................................................130
Figura 30- Caderno de planejamento da professora para o Ensino Religioso da 2ª série,
1976....................................................................................................................................133
Figura 31- Carta do colonizador Ênio Pipino à Irmã Edita, 1978 .....................................137
Figura 32- 1ª Parte da correspondência enviada pelo colonizador ao secretário de educação
estadual, 1978 ....................................................................................................................138
Figura 33- 2ª Parte da correspondência enviada pelo colonizador ao secretário de educação
estadual, 1978 ....................................................................................................................139
Figura 34- Fanfarra da Escola Nilza de Oliveira Pipino, 1978 .........................................142
Figura 35- Alunos da Escola em comemoração ao Dia dos Soldados, em 25 de agosto de
1979 ...................................................................................................................................145
Figura 36- Alunos representando a cultura do sul do país em desfile cívico
14/09/1978..........................................................................................................................146
Figura 37- Alunos da pré-escola em homenagens a Sinop, 1977. ....................................149
Figura 38- Fanfarra da escola em desfile cívico, em 7 de setembro de 1976....................151
Figura 39- Trabalhos de ornamentação de rua feitos pelos alunos da escola em celebração à
Corpus Christi,1979...........................................................................................................152
Figura 40- Recepção ao colonizador Ênio Pipino em visita a escola, 1978.......................154
Figura 41- Alunos em frente a escola, 1979. .....................................................................159
14
Figura 42- Crianças da Pré-Escola brincando no pátio da escola,
1977....................................................................................................................................168
Figura 43- Criança brincando de fazer bolinhas de sabão em cima de toras de madeira,
1977....................................................................................................................................172
Figura 44- Localização de Sinop em relação a Cuiabá – 500 km......................................196
Figura 45- Vista aérea do Parque Florestal da cidade de Sinop, 2010...............................197
Figura 46- Área de visitação da represa no Parque Florestal da cidade de Sinop, 2010....197
Quadros
Quadro 1. Organização curricular de 1ª a 4ª séries do 1° grau...........................................126
Quadro 2. Organização curricular de 5ª a 8ª séries do 1° grau...........................................127
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BASA Banco da Amazônia S.A.
CODEMAT Companhia de Desenvolvimento de Mato Grosso
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INTERMAT Instituto de Terras de Mato Grosso
PIN Programa de Integração Nacional
SUDAM Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
SUDECO Superintendência para o Desenvolvimento do Centro-
Oeste
POLAMAZÔNIA Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da
Amazônia
PRODOESTE Programa de Desenvolvimento da Região Centro-Oeste
POLOCENTRO Programa de Desenvolvimento dos Cerrados
PROTERRA
SINOP
COBAL
SUCAM
SAQ
FUNDEB
Programa de Redistribuição de Terras
Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná
Companhia Brasileira de Alimentos
Superintendência de Combate à Malária
Sinop Agroquímica
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
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SUMÁRIO
UM INÍCIO.........................................................................................................................18
Os contornos da pesquisa.....................................................................................................18
SINOP: UMA CIDADE-SEMENTE DO GRANDE BRASIL
AMAZÔNICO....................................................................................................................35
1.1.“Cidade Esperança” ......................................................................................................36
1.2. A colonização como prova de brasilidade.....................................................................41
1.3. A missão de construir uma cidade.................................................................................56
1.4. “Vamos embora para o Mato Grosso!” ............................................................ ...........70
SE NÃO HÁ ESCOLA, QUE INVENTEMOS UMA.....................................................84
2.1. Das artes de fazer: a reinvenção da escola...................................................................85
2.2. “Se tem material, vamos fazer uma escola!” ................................................................91
2.3. Dos primeiros tempos: da ‘escola dos migrantes’ a ‘escola-galinheiro’.....................105
A ESCOLA, MESMO DAQUELE JEITO, ERA NOSSA! ERA TUDO!.................119
3.1. Organização e funcionamento da escola: ‘era tudo muito técnico e abstrato’ ...........120
17
3.2. Tramas do real: rezava-se muito e cantava-se com amor, com patriotismo
mesmo!..................................................................................................................................141
3.3 Memórias de um cotidiano: lá vem seu Juca, da perna torta, dançando valsa, com a
Maricota! .....................................................................................................................................159
REFLEXÕES FINAIS.............................................................................................................175
Apenas uma versão....................................................................................................................175
Versos Finais: Escola Reinventada .........................................................................................185
REFERÊNCIAS...............................................................................................................186
ANEXOS...........................................................................................................................195
Anexo 1- Mapa de localização do Município de Sinop no estado de Mato Grosso..........196
Anexo 2-Imagens do Parque Florestal de Sinop................................................................197
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UM INÍCIO
Os contornos da pesquisa...
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Cecília Meireles
É com a sabedoria dos versos da poetiza que me lanço nesta pesquisa para
apresentar minhas reflexões sobre a matéria da vida. Quiçá, seria mais propício dizer
‘vidas’- vidas que se aventuraram a migrar para um local desconhecido em meio à Floresta
Amazônica; vidas que em busca de um futuro mais promissor se submeteram às
dificuldades e perigos; vidas que, no desejo de educar seus filhos, tiveram de ‘reinventar a
escola’; vidas recriadas, arquitetadas num cotidiano de uma história singular incluídas num
sonho coletivo – reinvenções da vida que dão o sentido ao ato de viver, como sugere
Cecília Meireles.
As vidas que me unem ao presente trabalho são as dos professores, alunos e de
todos aqueles que compunham o cenário escolar que escolhi ‘aventurar-me’ a pesquisar. O
espaço que elegi para falar dessas vidas é a Escola Estadual Nilza de Oliveira Pipino, a
primeira instituição escolar da cidade de Sinop, localizada ao norte de Mato Grosso e o
tempo privilegiado foi a década de 70 do século passado – início de tudo, período
colonizatório.
19
São as personagens inseridas nesse tempo-espaço, que possuem em comum um
passado coletivo e ao mesmo tempo singular, que convidei a caminhar comigo durante
todo o percurso da pesquisa-história.
Vidas que, ao ‘reinventar’ os modos de viver, aprenderam a ser o que não se era: “o
filho, que levava jeito com a mecânica dos carros, passou a ser o mecânico da cidade; a
mãe, que levava jeito com os curativos, passou a ser a enfermeira; o pai, que levava jeito
com a argamassa era o mestre construtor; a filha, que sabia ler e escrever, era a professora”
(TOMÉ, 2009, p. 32).
Assim, ‘reinventar’ uma sociedade a partir da intervenção do homem sobre a natureza,
durante a construção de uma cidade, de uma vida social e, em conjunto, a construção de
um sistema educacional em meio a um descampado da Floresta Amazônica, era o que
cabia às vidas que emoldurarão os contornos deste trabalho.
Com isso, faz-se necessário mencionar que a delimitação do período em estudo – entre
os anos de 1973 a 1979, deve-se ao fato de que a cidade de Sinop, bem como o início do
processo de escolarização foram instituídos no ano de 1973 e, ao final da mesma década,
no ano de 1979, ocorreram mudanças significativas no cenário político-social da cidade,
devido a sua emancipação política, visto que até então pertencera ao município de Chapada
dos Guimarães. Esse evento modificou as características do período inicial da colonização,
bem como ocasionou mudanças no cenário educacional.
Estudar a origem de um sistema educacional implementado em pleno processo de
colonização de uma cidade foi o principal desafio da pesquisa, uma vez que a educação
nesse contexto se apresentava indissociável dos reflexos do processo colonizatório. Mais
que debruçar sobre uma história educacional, era preciso compreendê-la também no
cenário do movimento migratório engendrado no interior do processo de colonização no
norte de Mato Grosso.
Faz-se necessário pontuar que o termo colonização desloca nosso olhar a um passado
distante, já que no Brasil a colonização dirigida teve início por volta de 1750, com a
chegada de famílias de açorianos que se fixaram na região de Santa Catarina e Rio Grande
do Sul e, posteriormente, com a vinda da família real para o Brasil, em 1808, essa
20
questão tornou-se mais acentuada, permitindo o acesso à propriedade fundiária a
estrangeiros1:
Diante do modelo fundiário baseado nos grandes latifúndios
baseados na mão-de-obra escrava, o governo imperial viu a necessidade
de implantação de pequenas propriedades com o intuito de serem estas
terras subsidiárias à grande propriedade e não concorrer com a mesma.
O objetivo era criar uma camada social intermediária que figurasse
entre o latifundiário e o escravo. A Coroa Portuguesa viu no processo
imigratório a possibilidade de execução desta política fundiária, ou seja,
além de estabelecer território, o imigrante ocupava a pequena
propriedade criando condições para o surgimento da classe média e
desempenhando papel relevante na vida econômica e social do país.
(ROCHA, 2006, p. 19).
Ainda segundo a autora, após a proclamação da Independência, em 1822, o governo
brasileiro interessou-se em construir núcleos demográficos na região sul do país, com
a doação de terras e subsídios diversos aos colonos imigrantes, com predominância
alemã e italiana. Posteriormente, em 1824, ocorreu uma retomada da política de
imigração que privilegiou a ocupação de terras devolutas, principalmente no sul, onde a
pequena propriedade familiar era tomada como modelar nesse processo: “É preciso não
perder de vista que o objetivo da política de imigração era de fixar povoamento e
território e, talvez, por isso que tenha ocorrido uma associação, quase que
naturalizada, entre imigração e colonização” (ROCHA, 2006, p. 18).
Contudo, na história mais recente do país, de acordo com os estudos de Rocha
(2006) é a partir de 1930 que se pode considerar, no interior da política de colonização
brasileira, o início de um marco mais efetivo no que se refere ao processo colonizatório
interno, pois, se até esse período estimulava-se a imigração europeia para fins de
colonização, o governo de Getúlio Vargas a partir de então, com maior efetividade na
década de 1940, conduziu uma política de colonização orientada para as migrações
internas. Desta forma,
Com o slogan “Marcha para Oeste”, a ditadura Vargas incentivou a
migração interna para o Centro-Oeste brasileiro com a venda ou
doação de terrenos dos núcleos coloniais nacionais com a intenção de
colonizar os vazios demográficos. O Estado brasileiro assumiu a
orientação das correntes migratórias vinculando migração com
colonização cabendo à empresas oficiais ou privadas a organização
1 Cf. Rocha, (2006, p. 19).
21
dos núcleos coloniais, muito embora, essa regulamentação não
impedisse o movimento migratório espontâneo. É importante
destacar que por trás desta política de colonização está a principal
estratégia do governo Vargas, o de enfrentar os problemas agrários e as
consequentes tensões e lutas sociais no campo. (ROCHA, 2006, p. 22)
No entanto, como explica Oliveira (2009, p. 32), no período do Regime Militar
brasileiro, o Estado deu ênfase à colonização dirigida, tomou para si essa responsabilidade,
até o momento em que conseguiu criar condições para a expansão do capital e sua
acumulação na fronteira. A partir de então, os governos geral e estadual estimularam a
colonização particular, transformando parte do controle social do processo à iniciativa de
cunho privado.
É neste contexto que se insere a colonização no norte de Mato Grosso, atendendo as
estratégias governamentais, em especial o processo colonizatório privado da cidade de
Sinop-MT.
No cenário deste processo de colonização que a presente pesquisa se situa, tendo como
objeto de estudo a implantação e funcionamento da primeira escola de Sinop, a ‘Escola
Nilza de Oliveira Pipino’, constituída por um movimento de criação, pelas astúcias e artes
de fazer (CERTEAU, 1998) dos primeiros migrantes que, ao se depararem com a ausência
da educação no novo local que residiriam com suas famílias, se uniram e se organizaram
para ‘fazer’ a escola.
Tendo como objetivos analisar o processo inicial da escola no cenário da colonização,
sobre a produção da cultura escolar produzida pela Instituição em investigação, assim
como sobre as estratégias e táticas existentes na dinâmica do cotidiano escolar, alguns
questionamentos nortearam a pesquisa, dentre eles destaco: Como se constituiu no
contexto da colonização a primeira escola de Sinop? Que conhecimentos, normas, valores,
tradições culturais eram necessários ser mantidos e transmitidos pela escola? Como se dava
a organização e o funcionamento interno da escola? Que práticas educativas enfatizavam
as estratégias de poder e que tipo de táticas ocasionavam supostos modos de subversão?
Assim, para a construção da temática investigada: A Reinvenção da Escola e sua
delimitação: história, memórias e práticas educativas no período colonizatório de Sinop,
intentou-se contribuir para os estudos sobre o processo inicial da formação de um sistema
22
educacional que se instaurou na cidade em construção, de forma a enfatizar as artes de
fazer que culminaram na edificação da escola. A proposta é a de colaborar para uma
discussão da instituição escolar no interior do processo de colonização, oferecendo
vestígios sobre o que deveria ser ensinado pela instituição e, dessa forma, sugerir uma
análise sobre o processo inicial de escolarização, direcionando um olhar privilegiado para
o estudo da cultura escolar produzida no interior do estabelecimento escolar, objeto desta
investigação.
Nesse sentido, a temática de uma pesquisa historiográfica sobre cultura escolar insere-
se na perspectiva da Nova História Cultural - NHC, que aponta para uma história que se
detém nas particularidades e nas culturas.
Assim, num paralelo entre cultura e história, está a Nova História Cultural. De acordo
com Peter Burker (2005, p. 07) a “história cultural [...] foi redescoberta nos anos 1970 [...].
Desde então vem desfrutando de uma renovação, sobretudo no mundo acadêmico.” O autor
citado constata que houve uma redefinição nos estudos históricos e nas abordagens e
discussões teóricas, quando ocorreu a ascensão da História Cultural, por conta de uma
‘virada cultural’, na qual pesquisas de cunho econômico, político e social se aproximavam
de termos e análises culturais. Esta nova abordagem da história revia antigas questões sob
novas denominações, como “cultura da pobreza,” “cultura do medo”, “cultura das armas,”
entre outras.
Em relação à discussão sobre cultura escolar, pode-se inferir que frequentemente os
estudos realizados apresentam tal concepção relacionada a um espaço destinado para a
difusão do conhecimento e de valores transmitidos em um determinado tempo.
Nas palavras de Julia (2001, p. 10), poder-se-ia descrever a cultura escolar como “[...]
um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um
conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação
desses comportamentos”.
Também, com Faria Filho (2007, p. 195) é possível ampliar a discussão, quando o
autor explica que a cultura escolar pode ser entendida como:
[...] a forma como em uma situação histórica concreta e particular são
articuladas e representadas, pelos sujeitos escolares, as dimensões
espaços temporais do fenômeno educativo escolar, os conhecimentos, as
23
sensibilidades e os valores a serem transmitidos e materialidade e os
métodos escolares.
Ainda de acordo com o primeiro autor (1996), a cultura escolar não se articula em
torno do conhecimento, mas da possibilidade de construção de uma instituição que esteve
constantemente ligada a um projeto político e à noção de progresso2. Estudar a cultura
escolar é, portanto, “estudar os processos e produtos das práticas escolares, isto é, práticas
que permitem a transmissão de conhecimentos e a imposição de condutas circunscritas à
escola” (PESSANHA, et al., 2003, p. 3).
Entretanto, a intenção investigativa não foi tomar a cultura escolar como um conceito
previamente definido, mas apontar algumas perspectivas que direcionassem para uma
maior apreensão da categoria em estudo, mesmo porque,
[...] uma definição puramente gnosiológica, pode levar-nos ao equívoco
de, na prática da pesquisa, não conseguir discernir justamente aquilo que
se faz, do meu ponto de vista, a riqueza e a pluralidade das culturas
escolares, que são justamente os sentidos e os significados experienciados
e compartilhados. (FARIA FILHO, 2007, p. 197)
Assim, o exame da história da cultura escolar baseia-se, como qualquer história
cultural, na história de três artefatos indissociáveis: “os objetos em sua materialidade, as
práticas e as configurações dos dispositivos e das suas variações” (PESSANHA, et al.,
2003, p.3). Os artefatos podem ser recuperados apenas quando se encontra com as fontes
primárias. Com isso, para investigar a cultura escolar é necessário “analisar o conjunto das
normas e práticas definidoras dos conhecimentos que aquela sociedade desejava que
fossem ensinados, e os valores e comportamentos a serem impostos” (Ibidem p. 4).
Desta forma, o primeiro desafio para a discussão dos questionamentos que envolviam o
objeto investigado e das novas indagações que surgiram no decorrer da pesquisa em
relação às práticas produzidas pela escola em investigação, foi o de ‘adentrar’ no interior
da mesma, pois, como explica Sanfelice (2007), “no interior das instituições há um quebra-
cabeça a ser decifrado.” Com isso,
Os caminhos para adentrar-se numa instituição são inúmeros. Há, como
em edifícios, subterrâneos, alicerces, portões, portas, janelas, sótãos,
telhados, chaminés... O desafio é entrar na instituição. É pouco relevante,
parece-me, o caminho a ser escolhido. Posso chegar à instituição pela
2 Cf. Julia (2001)
24
legislação educacional, pelo seu currículo, pelo seu quadro de alunos,
pela sua proposta pedagógica, pela sua cultura manifesta, pelos seus
trabalhos escolares, pela arquitetura do prédio, pelos professores que dela
participaram, pelos ex-alunos, pelo mobiliário, pelas memórias, pela
historiografia preexistente ou por arquivos e fontes múltiplas (escritas,
orais, imagens, sons e outras). O que me dá o passaporte de ingresso é o
conjunto de fontes que levanto, critico e seleciono, e nenhum tipo de
fonte deve ser interditado. (SANFELICE, 2007, p. 77)
A partir desta discussão, é pertinente ainda a inferência do autor quando menciona
que “não há instituição escolar ou educativa que não mereça ser objeto de pesquisa
histórica” (SANFELICE, 2007, p. 79).
Foram diversos os caminhos que possibilitaram revisitar, conhecer a história dessa
instituição, bem como verificar e entender suas práticas e a dinâmica do cotidiano da
escola em estudo, encontrados nas fontes historiográficas disponíveis tanto no espaço
escolar quanto em arquivos públicos e acervos particulares. Além disso, relatos orais de
ex-professores e alunos que vivenciaram tal experiência foram apropriados.
O encontro com as fontes possibilitou compreender que:
[...] explicar as maneiras diferenciadas de produção da escola é
inventariar e conhecer as práticas dos atores que participaram dessa
produção, o que não é, sem dúvida, uma atividade das mais fáceis. O que
se pratica no cotidiano, o que se consome nele e o que nele se vive são
questões que somente dizem respeito às dimensões próprias dessa
particularidade. Nele, o sujeito se produz e, ao mesmo tempo, é por ele
produzido. Nele, também, se dá a pluralidade, a complexidade e a
irredutibilidade da realidade concreta. Não é somente o lugar no qual se
dá a repetição e a reprodução da vida social, mas, também, o lugar onde
se cria, onde os usos são praticados de maneira particularizada pelo
sujeito, como nos jogos lance a lance, em que cada ocasião tem a sua
importância, dado o seu aspecto singular. (GONÇALVES, 2004, p. 13)
Deste modo, para discutir as práticas, as artes de fazer dos sujeitos que compunham
a escola e o cotidiano da história da educação que se propôs investigar, os trabalhos
partiram do pressuposto de que “não há instituição sem história e não há história sem
sentido. O desafio é trazer à luz esse sentido [...]” (SANFELICE, 2007, p. 79) Um desafio
que se fez permanente em toda trajetória da pesquisa e que ainda se impõe, é literalmente
‘trazer à luz esse sentido’ para a escrita dessa história específica.
25
Ao pensar em pesquisa pode-se dizer que é possível, concomitantemente, pensar
em caminhos, em travessias. Não em qualquer caminho, que traria em si a certeza do ponto
de chegada, nem tampouco que poderia ser delineado com a precisão de um mapa, uma
vez que se faz necessário “[...] redimensionar e reposicionar todo o espaço de investigação
intelectual, [...], sem andaimes seguros, sem certezas” (COSTA, 2005, p. 212). Mas, num
caminho aventuroso, longínquo, pedregoso, labiríntico, feito de “bifurcações, crises,
surpresas, acasos, desvios, atalhos” (BEDIN, 2006, p. 22). Uma travessia na qual a única
certeza existente era a de que se tratava de um caminho constituído por trilhas
montanhosas, onde havia e ainda há muito a se percorrer, tendo a convicção simples de que
“a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam” (BOFF, 1998a, p. 9) e que, desse modo,
enquanto pesquisadora, teria necessariamente de ser uma ‘exploradora’ audaciosa e curiosa
das terras onde pisaria, trazendo comigo não a aspiração pela descoberta de uma ‘verdade’,
mas tão simplesmente a finalidade de tornar apreensível a realidade pesquisada.
Nesse caminho, mais que andar por ele, era preciso “percorrer o seu contorno”
(BALANDIER 1997, p. 168) para, então, compreender que “uma verdadeira viagem de
descobrimento não é a de encontrar novas terras, mas de ter um novo olhar” (PROUST
apud BEDIN, 2006, p. 22). Desta forma, o interessante da investigação foi construído
durante o percurso, nos contorno da pesquisa, uma vez que, como diria o poeta João
Guimarães Rosa (1994), “o real não está nem na saída, nem na chegada: ele se dispõe pra
gente é no meio da travessia”.
Como explicam Nosella e Buffa (2009, p. 56), “um objeto de pesquisa nunca é
dado; é construído. Ou seja, não é um pacote fechado que o pesquisador abre e investiga. É
um conjunto de possibilidades que o pesquisador percebe e desenvolve, construindo,
assim, aos poucos o seu objeto de pesquisa”.
Com isso, podemos ampliar a discussão em relação à metodologia da pesquisa em
educação: mesmo que o pesquisador tenha um plano a seguir, um trajeto metodológico
delineado, novos caminhos se entrecruzam, escolhas são refeitas, fontes repensadas e
desafios inesperados vão surgindo no decorrer do percurso. E assim foram também os
contornos do presente estudo: repletos de angústias, dúvidas, anseios, de pensar e repensar
fontes, de cruzamento de antigos e novos caminhos para que, então, o real se dispusesse no
meio da travessia!
26
Nessa medida, os contornos dos caminhos que me levaram a revisitar a primeira
escola de Sinop e, com ela, investigar sua história, recuperando memórias e práticas,
configurou-se a partir da perspectiva da pesquisa qualitativa de gênero historiográfico que,
conforme Lang (2005) aponta direções e encaminha possíveis explicações para os
fenômenos sociais em estudo.
Da mesma forma entende-se, com Corsetti (2006), que o debate historiográfico na
perspectiva da pesquisa qualitativa tem desdobramentos significativos para a pesquisa
educacional, uma vez que o significado da educação está intimamente entrelaçado ao
da História. Diante de tal concepção, Saviani (1998, p. 12) acrescenta que:
[...] no âmbito da investigação histórico-educativa essa implicação é
duplamente reforçada: do ponto de vista do objeto, em razão da
determinação histórica que se exerce sobre o fenômeno educativo; e
do ponto de vista do enfoque, dado que pesquisar em história da educação
é investigar o objeto educação sob a perspectiva histórica.
Com Certeau (1982, p.14-15) entende-se que pesquisar a educação dentro de uma
abordagem historiográfica, é preocupar-se com a articulação da realidade investigada e a
escrita que se fará da história, para lhe dar o aspecto de criação e não mais de mera leitura,
uma vez que o passado não pode ser apreendido plenamente, delimitando os limites do
método historiográfico e o lugar de onde o historiador fala.
Assim, a Historiografia, como explica Certeau (Ibidem, p. 6), “quer dizer ‘história’
e ‘escrita’ traz inscrito no próprio nome o paradoxo – e quase o oximoron – do
relacionamento de dois termos antinômicos: o real e o discurso. Ela tem a tarefa de
articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como se os articulasse”.
Na perspectiva de Certeau (Ibidem, p. 56), “a pesquisa historiográfica se refere à
combinação de um lugar social, de práticas científicas e de uma escrita.” Com isso, “o real
que se inscreve no discurso historiográfico provém das determinações de um lugar”
(Ibidem, p.11). Pode-se afirmar que “em história, todo sistema de pensamento está referido
a ‘lugares’ sociais, econômicos, culturais” (Ibidem, p. 55).
Contudo, perceber a história como uma operação constituiu, sobretudo,
27
[...] tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como
a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão,
etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um
texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da "realidade" da
qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada "enquanto atividade
humana", “enquanto prática”. (CERTEAU, 1982, p. 56)
Desse modo, levando-se em consideração que toda pesquisa historiográfica se
entrelaça com um lugar de produção socioeconômico, político e cultural, Certeau (1982, p.
56) orienta que é em função do lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma
topografia de interesses, organizados a partir dos documentos e das questões que lhes serão
propostas. Assim, destacar o lugar de onde o historiador fala, constitui tarefa primordial
numa pesquisa de caráter historiográfico.
Contudo, no que se refere ao trabalho com as fontes, nos apoiamos ainda nos
ensinamentos de Certeau (1982, p. 81), para quem “[...] na história tudo começa com o
gesto de separar, reunir, transformar em documentos certos objetos distribuídos de outra
maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho”.
Assim, o primeiro trabalho não se deu apenas no plano teórico-metodológico da
história oficial, ou seja, exclusivamente baseado nas fontes oficiais escritas, mas se buscou
incorporar a ideia de que a “História se faz a partir de qualquer traço ou vestígio deixado
pelas sociedades passadas e presentes e que, em muitos casos, as fontes oficiais são
insuficientes para compreender aspectos fundamentais” (CORSETTI, 2006, p. 35).
Na intencionalidade de problematizar essas fontes para se ‘fazer história’, partimos
do pensamento de que “o estabelecimento das fontes [...] é o princípio de uma
redistribuição epistemológica dos momentos da pesquisa científica” (CERTEAU, 1982, p.
77). Ainda, Julia (2001) contribuiu de maneira peculiar para que fosse possível pensar o
tratamento das fontes no exercício da análise da cultura escolar, quando nos explica:
[...] recontextualizar as fontes das quais podemos dispor, estar
conscientes de que a grande inércia que percebemos em um nível global
pode estar acompanhada de mudanças muito pequenas que
insensivelmente transformam o interior do sistema; convém ainda não
nos deixarmos enganar inteiramente pelas fontes, mais frequentemente
normativas, que lemos. (JULIA, 2001, p. 15)
28
Nesse sentido, visitei, como pesquisadora-historiadora, alguns acervos que
contribuíram para recontextualizar as memórias e práticas cotidianas da Escola Nilza de
Oliveira Pipino, primeira escola de Sinop, da Escola “N. Sra. do Perpétuo Socorro”, na
cidade de Vera (que inicialmente “acolheu” os primeiros alunos sinopenses como extensão
escolar de Sinop), o Patrimônio Histórico de Sinop, popularmente conhecido como Casa da
Cultura, a Colonizadora Sinop, além de acervos particulares de pessoas que vivenciaram
essa história.
Para a construção do objeto e desenvolvimento da pesquisa, voltamos para as fontes
encontradas nos locais citados, com especial interesse pela documentação escolar:
cadernos e trabalhos de alunos, diários de classe, cadernos de professores, além de fontes
iconográficas que ilustraram o processo de colonização, assim como retrataram o cotidiano
da escola.
Os documentos orais contribuíram muito para a elaboração do texto, tendo sido
construídos “no momento da entrevista, no diálogo estabelecido entre entrevistado e
entrevistador. Para tal, é o produto da interação destes dois sujeitos que emerge como
conteúdo a ser, posteriormente, analisado pelo historiador” (VIDAL, 1990, p. 80). Com
isso, optamos pelos procedimentos da história oral, não com a pretensão de sua utilização
como mera transmissão fatos, uma vez que “[...] nelas ficam impressas as marcas do
narrador como os vestígios das mãos do oleiro no vaso de argila” (BENJAMIN, 1987,
p.211), mas com elas, poder verificar as marcas do invisível, deixadas na história pelos
homens comuns..
Nessa produção, entre aquele que conta e aquele que ouve, a subjetividade do
pesquisador se apresenta em evidência no momento da escrita historiográfica, pois “o
narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes” (BENJAMIN, 1987,
p. 201). Assim, são inevitáveis os traços do pesquisador ao narrar os relatos históricos que
ouviu, o que, de certa forma, descaracteriza uma posição positivista e tradicional de se
fazer história.
Lang (2005), enfatiza que a história oral tem a especificidade de compreender
também uma postura, na medida em que seu objetivo não se limita à ampliação de
29
conhecimentos sobre o passado recente, mas visa conhecê-lo através das pessoas que o
viveram, captada no diálogo entre o pesquisador e o narrador.
Os relatos orais, de acordo com Thompson (1998), podem preencher as lacunas
deixadas pelas fontes tradicionais, uma vez que a história oral é algo tão grandioso que
suas implicações transbordam da história para outras áreas de atuação humana.
Importou-me assim, como sugere Benjamin (1987), atribuir a relevância da
narração como possibilidade de preservar a memória daqueles que não tiveram destaque
nos manuais da história oficial; de conservar seus testemunhos e depoimentos, construindo
uma nova história.
Foram colhidas entrevistas na perspectiva da história oral, tendo por base um
roteiro apenas com indicações, utilizado quando necessário, tendo em vista a forma de
narrativa que se pretendeu obter de alguns ex-professores e alunos, que fizeram parte
daquele contexto histórico da escola. Foram entrevistados 4 ex-professores e 3 ex-alunos,
além delas utilizei-me de outras narrativas transcritas, na íntegra, de ex-professores e
alunos, as quais compõem o trabalho acadêmico de Janice Cássia Lando (2002).
A escolha dos entrevistados se deu de forma não aleatória, uma vez que a pretensão
era a de adotar como critério inicial o período de chegada à cidade de Sinop – entre 1973 e
1979. Os recursos para a escolha dos entrevistados puderam ser feitos através de
indicações de pessoas conhecedoras da história local, a partir de produções bibliográficas
que apresentam nomes de pessoas que vivenciaram a mesma trajetória, além do método
conhecido na história oral como ‘sistema de rede’, onde um entrevistado indica outro. Faz-
se necessário mencionar que os colaboradores foram entrevistados em suas próprias
residências, para que pudessem se sentir mais confortáveis em ambientes conhecidos e,
assim, melhor refletir sobre suas lembranças, memórias e histórias.
Junto aos entrevistados se buscou obter documentos pessoais que pudessem se
revelar explicativos, bem como fotos, cadernos, livros, entre outros documentos, uma vez
que estes e outros materiais “consistem em poderoso elemento desencadeador do processo
de rememoração, além das possibilidades de análises que oferecem” (LANG, 2005, p.
145).
30
Contudo, os relatos orais foram utilizados como documentos historicamente
produzidos pelos sujeitos envolvidos na ação, uma vez que as entrevistas foram gravadas e
transcritas, pois na história oral são esses os procedimentos utilizados para documentar as
narrativas.
Finalmente, considerando também que a história oral, assim como qualquer outro
documento histórico, não recupera o passado, mas tem como possibilidade “apresentá-lo
em um discurso que seja inteligível” (SCHNAPPER, apud VIDAL, 1990, p. 82), entende-
se então, que o discurso é responsável por apresentar em sua escrita uma “prática social.”
Como Certeau (1982, p. 90) reitera: “a escrita historiográfica [...], é ela própria é uma
prática social que confere ao seu leitor um lugar bem determinado, redistribuindo o espaço
das referências simbólicas e impondo, assim, uma ‘lição’; ela é didática e
magisterial”.
A partir de tais intencionalidades e da responsabilidade de produzir um discurso
voltado para a prática social, é que me fiz ‘pesquisadora-caminhante,’ disposta a aprender,
a conhecer, caminhar e ‘percorrer o contorno’ desta operação historiográfica.
Assim, para a produção da escrita da história, a presente dissertação está organizada
em três capítulos.
Em Sinop: uma cidade-semente do grande Brasil Amazônico, intento esboçar uma
contextualização do lócus da pesquisa, de modo a fazer alguns apontamentos sobre o
movimento de integração da Amazônia, desde a política lançada por Getúlio Vargas, na
década de 40, como também das estratégias políticas adotadas por ocasião da divisão do
estado de Mato Grosso, intimamente ligadas ao processo de colonização do norte de Mato
Grosso. Nesse capítulo, além de discutir algumas das políticas públicas que influenciaram
a colonização da ‘nova fronteira agrícola do país’, busco apresentar a questão da ‘missão’
da colonização que recaía sobre os ombros dos brasileiros, levando milhares de pessoas a
se deslocar de seus lugares de origem para recomeçar a vida em Sinop, tecendo, também,
algumas considerações sobre os interesses políticos e econômicos que estavam por trás das
propagandas e discursos ufanistas que envolveram todo o processo de integração do ‘novo’
território que seria ocupado principalmente por migrantes sulistas.
31
Ainda nesse item, proponho apresentar algumas considerações sobre o cotidiano
difícil que a população local se deparou naquele momento inicial de construção da cidade,
histórias que não são narradas pela história oficial, uma vez que esta apenas enaltece a
história dos vencedores, onde a imagem do progresso se sobrepõe à história dos tempos
difíceis da vida cotidiana de homens comuns. Com isso, pretendeu-se fazer fulgurar a ‘voz’
dos silenciados, em desafiar as representações da história vulgarmente aceita e
estabelecida, propondo, como já orientava Benjamin (1987), uma história escovada a
contrapelo3.
No segundo capítulo, Se não há escola, que inventemos uma!, procuro
fundamentar, primeiramente, a opção pelo título, ‘a reinvenção da escola’, embasada nos
trabalhos de Michel de Certeau, especialmente em A invenção do cotidiano, discutindo as
astúcias, táticas e artes de fazer dos migrantes que se viram obrigados a criar uma escola,
uma vez que ao chegar a Sinop a escola não existia. Também, apresento considerações
sobre os primeiros tempos da ‘escola dos migrantes’ à ‘escola-galinheiro’ (assim chamada
informalmente pela população devido ao seu formato de sua construção). Intento propor
uma discussão historiográfica sobre os ‘prédios’ escolares – o espaço e o tempo escolar,
sobre os materiais dos alunos e professores, como se constituía o trabalho dos professores
que aprendiam, a seu modo, o exercício da docência, assim como são destacadas as
dificuldades iniciais que cominavam com o contexto social daquele momento histórico.
Almejo discutir o movimento de criação da escola, seu processo de construção, de
criação humana, de intervenções do homem sobre a natureza por um viés culturalista da
história, levando em consideração a negligência do Estado para com a educação naquele
momento fundador, o interesse na fixação dos migrantes naquele espaço específico, assim
como as consequências ambientais que, apesar de não ser o foco direto da pesquisa, não
poderiam deixar de ser mencionadas.
Discutir a história da educação a partir de uma perspectiva culturalista impõe
compreender que:
3 Benjamin (1982, p. 204) apela para que fulgure outra história, impulsionando a “escovar a história a
contrapelo” de modo que se desafie as representações da história usualmente contada e estabelecida
pela narrativa histórica da história oficial.
32
Os culturalistas, [...] seduzidos e aprisionados pelas interessantes e
variadas formas de viver dos homens, comprazem-se na descrição
delas. Para eles, todas as formas culturais são equivalentes, pois o
que importa não é o seu significado histórico, mas unicamente seu
significado de distinção e identidade social. Por exemplo, tanto a
fotografia de alunos descalços de uma escola profissional, como a
de uma aluna de grupo escolar, vestida de azul e branco, numa
escrivaninha, tendo ao lado o globo terrestre, suscitam o mesmo
encantamento, nenhuma indignação. O pesquisador culturalista não
destaca a desigualdade social e escolar expressas nessas imagens, a
ele interessa tão somente o processo de identificação social.
(NOSELLA; BUFFA, 2004, p. 74)
Com isso, intento destacar, neste segundo capítulo, que a comunidade recém-
chegada à cidade teve um papel efetivo na construção e ‘reinvenção’ da escola, pois seria
usual que o Estado assumisse a responsabilidade da escolarização, uma vez que a área já
havia sido ‘limpa’ pelos integrantes da frente de expansão. Entretanto, a escola era apenas
uma de tantas outras ‘promessas’, obrigando que os próprios migrantes assumissem
inicialmente tal responsabilidade, ‘reinventando’ a escola a partir daquilo que tinham em
mente, aos moldes de uma educação com características da cultura sulista, em um território
completamente diferente em plena selva amazônica.
Nesse sentido, ao refletir primeiramente sobre esta construção social, ao me
debruçar sobre a história de Sinop, me aproximo do sentido que a educação produziu para
a cidade - o início de um sistema educacional que pudesse atender as crianças que
chegavam com suas famílias naquele espaço durante o processo migratório, os desafios e
dificuldades de homens e mulheres na construção da estrutura física da escola destinada
aos seus filhos, bem como suas adequações e ‘reinvenções’ na constituição do quadro
docente condizente com a situação imposta pela realidade. “A educação a serviço da
sociedade como instrumento na construção de uma cidade” (TOMÉ, 2009, p. 10) é o que
esta pesquisa intenta enfatizar em suas discussões.
Em A Escola, mesmo daquele jeito, era nossa, era tudo!, busquei direcionar um
olhar mais particular para a instituição escolar, as práticas, ações e o cotidiano, de forma a
abrir a ‘caixa preta’ (JULIA, 2001) da escola, a fim de contribuir para com uma discussão
sobre o que devia ser ensinado durante o processo inicial da escolarização, de forma a
buscar tecer uma discussão sobre a dinâmica escolar daquele cotidiano.
33
A partir das discussões que a presente pesquisa, percebe-se a contribuição para com
a história da educação, tanto na esfera regional quanto nacional, uma vez que a
historiografia brasileira que trata dos movimentos migratórios concentra seus estudos na
região sul do país, os quais, de acordo com Oliveira (2009), destacam as escolas formadas
por imigrantes italianos, poloneses, alemães e outros, evidenciando, portanto, a carência de
trabalhos no país que contemplem a educação durante o processo de avanço da fronteira
agrícola em meio ao período da ditadura militar brasileira.
Além disso, nas palavras de Oliveira (2009), a educação em Mato Grosso, posterior
aos anos 60 do século passado, configura-se ainda como objeto de um pequeno número de
pesquisas. Os estudos sobre a educação mato-grossense limitam-se à primeira República,
estendendo-se, em alguns casos, no máximo à década de 60, como reforça Sá (2005, p.
122): “a produção de Mato Grosso que concentra suas pesquisas no século XIX até meados
do século XX, tende a ampliar seus estudos até os anos de 1960”.
Na perspectiva da presente dissertação, enquanto realizado por mim e
intrinsecamente ligada à minha vivência, ao lugar de onde falo como pesquisadora,
(emprestando-me como historiadora), da minha prática cotidiana de filha de migrantes
sulistas chegados nesta região na década de 80, ainda durante o processo de colonização.
Portanto, a autora vivenciou muito esse processo, daí minha aproximação particular com o
tema. Compartilho com Oliveira (2009. p. 31), que “investigar sobre migração e
escolarização em regiões de colonização recente, é encontrar-me nas fontes”.
A presente investigação, que tem como perspectiva o estudo da cultura escolar, nos
permite compreender o quanto a escola se configura enquanto lugar de produção de uma
cultura específica, em que frequentemente são criadas estratégias modeladoras e táticas de
subversão, enfocando também o quanto as relações de poder se revelam no interior das
instituições escolares, enquanto espaço em que se determinam as relações sociais, ao
mesmo tempo em que se constitui como difusora de saberes e conhecimentos.
Contudo, pretende-se falar de história da educação fazendo uma aproximação com a
poesia e a arte, apoiando-se no que Walter Benjamim (1987) enfatizava em suas obras em
relação ao conhecimento técnico, científico não ser algo fragmentado e absoluto, porém,
um entrelace das áreas do conhecimento com o espírito artístico e poético da vida.
34
Corroboro com Santos (2011, p. 11) quando diz crer na possibilidade de “fazer ciência
com poesia, com suavidade, com leveza, sem perder o rigor e a seriedade”. De acordo com
o autor:
É possível fazer ciência com palavras que, geralmente, não habitam o
vocabulário da ciência. É possível fazer ciência quando se trata os
sujeitos da pesquisa como gente-flor e não como meros objetos de um
olhar distanciado, longínquo. É possível fazer ciência quando o
pesquisador se reveste das qualidades do “boticário” que capta a
fragrância de suas flores, as transforma em essência, mas não as
fragmenta. (SANTOS, 2011, p. 11).
Nesse sentido, houve a preocupação e o cuidado para que tal entrelaçamento da
história e poesia não revestisse o texto de visão ‘romântica’, isto é, procurou-se discutir os
acontecimentos, sem perder a abordagem científica, sem deixar de apresentar com
criticidade as ações que envolveram a educação na escola escolhida e na época em estudo,
a fim de possibilitar que o trabalho possa deixar marcas que incluam uma teoria da
memória e da experiência, sem a pretensão de oferecer uma mera descrição do passado,
mas fazendo “emergir as esperanças não realizadas desse passado, inscrever em nosso
presente seu apelo por um futuro diferente”. (GAGNEBIN, 1982, p. 67)
Finalmente, pode-se inferir que Invenção, Criação, Artes de fazer, que se tornam de
novo ‘Reinvenção’ são palavras que movem a busca de sentidos desta pesquisa, a qual é
enfatizada nos versos iniciais do trabalho, retirados do poema de Cecília Meireles, poetiza
a qual peço licença para destacar seus versos na narração inicial desta história, afinal como
ela mesma insiste em nos dizer, e, que vale a pena reforçar: “a vida só é possível
reinventada”.
35
CAPÍTULO I
Sinop: uma cidade-semente do “grande Brasil Amazônico”
Sinop nascendo para o Progresso. Claudevânia B. Anderle. Acrílico sobre tela painel, 80X60,
2012
36
1.1 “Cidade Esperança”4
Figura 1- Fundação de Sinop em 14 de setembro de 1974
Fonte: Colonizadora Sinop
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!
(...)
Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!
(Fernando Pessoa, O Andaime, 1931)
4 Este título faz uma associação ao depoimento da professora Maria Lúcia Braz, em 08/12/2011, ao se referir
à expectativa de vir morar em um lugar desconhecido. Também faz uma analogia às fontes iconográficas que
trazem imagens das muitas faixas espalhadas pelas ruas de Sinop no dia de sua fundação, em 1974,
estampando frases de incentivo, de esperança, de fé e força, além de enfatizar o orgulho em ‘ocupar’ as
fronteiras, por ‘amor à Pátria’.
37
Nos diversos depoimentos colhidos ao longo desta pesquisa, se fôssemos escolher
uma nomenclatura para definir a cidade de Sinop durante o processo de colonização seria,
sem dúvida, ‘Cidade Esperança’. A esperança que moveu centenas de pessoas a deixar
seu lugar de origem, seus familiares, seu pedaço de terra, a escola dos seus filhos para vir
em busca de um futuro mais promissor, um mundo de terras férteis, de clima bom. Um
lugar onde as mensagens de ‘aqui residem fé, otimismo, esperança e trabalho’ propagavam
por todos os cantos, fazendo emergir a esperança de um futuro, de uma vida melhor. Um
futuro onde colonos poderiam continuar a “dar estudo” aos seus filhos, “em uma escola
igualzinha àquela que eles tinham no Sul” (GUERRA, Depoimento 25/01/2012).
Esperanças de (re)construir sonhos, de (re)construir vidas... como nos versos iniciais do
poeta Que sonhos! O sonho e a vida!
Esperança! ‘Esperanças nevoentas... de um futuro imaginado’, ainda como
completam os versos da poesia inicial. Esperança que impregnava as entrelinhas das
propagandas feitas para atrair pessoas para um descampado da Floresta Amazônica, para
um mundo desconhecido em meio aos perigos da selva, à falta de assistência médica,
social, enfim, era ela - a esperança que fazia vibrar o sonho de encontrar naquele espaço o
local livre de geada, o lugar onde tudo que plantasse se poderia colher. O lugar onde os
migrantes não seriam apenas trabalhadores, mas poderiam ser proprietários de terras. O
espaço sem sofrimentos – o sonhado Eldorado estaria na Gleba Celeste5, a terra em que
brotava “o grande Brasil Amazônico.6” E, isso era muito bem frisado nas propagandas
veiculadas todas as manhãs nas rádios das cidades, principalmente das sulistas, as quais
traziam mensagens como: “Eis que na rodovia Cuiabá-Santarém, surge a Gleba Celeste!
Terra livre de geada, própria para o plantio do arroz, para o plantio do café, onde tudo que
se planta colhe” (BRAZ, Depoimento 08/12/2011).
5 Projeto foi implantado pela Colonizadora Sinop, de propriedade do Sr. Ênio Pipino e João Pedro Moreira de
Carvalho, os quais adquiriram uma área de 645.000 hectares de terras, onde seriam projetadas as cidades de
Vera, Santa Carmem, Sinop e Cláudia - cidades que formariam na chamada “Gleba Celeste.”
De acordo com Souza (2006, p. 128), a Gleba Celeste ocupava terras situadas entre os Meridianos 55º. e
56º. de longitude oeste, sendo cortada ao norte pelo paralelo 12º. de latitude sul, limitada ao sul pela rodovia
MT-225. Localizada à margem direita do Rio Teles Pires - formador do Rio Tapajós (Bacia Amazônica) e à
esquerda do Rio Tartaruga, pertencente à Bacia do Rio Xingu. 6 Palavras deixadas e assinadas pelo ministro da Agricultura do Governo Ernesto Geisel, Alysson Paulinelli,
no livro de visitas da Escola Perpétuo Socorro, em visita à Gleba Celeste, em 1975. (Fonte: Escola Estadual
N. Sra. do Perpétuo Socorro, 2012).
38
Figura 2- As primeiras riquezas agrícolas de Sinop apresentadas pelas propagandas
Fonte: Santos, 2011 – Raízes de Sinop
De acordo com Souza (2006, p. 22), o êxito do processo de colonização na década
de 70, na região norte de Mato Grosso, deu-se, dentre outras estratégias, também a partir
de discursos ufanistas promovidos principalmente nos estados do sul do país, “onde
desenvolveram-se programas de divulgação, incentivando e mobilizando as pessoas para
que viessem para Mato Grosso, projetando o mito da terra boa que tudo produz. Só faltava
a mão do trabalhador (sulista, paranaense), trazendo toda uma tradição de trabalho no
campo”.
O que se consolidava nas propagandas idealizadas era os mitos da terra farta, do
progresso, discursos pontuados e honrados no trabalho, na família, na pátria, na esperança
e no futuro promissor. “Era uma terra de sonho de toda gente, onde se poderia até enricar,
seria só ter força de vontade, fé em Deus e mãos à obra, mãe, pai, filho, que todas as
dificuldades seriam superadas”. (GUIMARÃES NETO, 2002, p. 29, Grifo da autora).
Como sugere Oliveira (1983, p. 74), a nova fronteira surgia como “esperança viva
ao camponês de poder continuar trabalhando e vivendo a terra, isto é, a esperança vem na
frente”.
Em relação ao conceito de fronteira, compreende-se com Martins (1997, p. 13) que
ela, de maneira alguma, se reduz apenas a fronteira geográfica, mas se configura de
diferentes formas. Ela é fronteira de múltiplos aspectos: “fronteira da civilização
(demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e
39
visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da história e da historicidade do
homem. E, sobretudo, fronteira do humano.” Em relação à história do recente
deslocamento da fronteira, entendemos, com o mesmo autor (MARTINS, 1996, p. 26), que
“é uma história de destruição. Mas, é também uma história de resistência, de revolta, de
protesto, de sonho e de esperança”.
Como assinala Martins (1996), na América Latina a última grande fronteira é a
Amazônia, em peculiar a Amazônia brasileira. Segundo o autor, desde o início da
conquista foi ela objeto de diferentes movimentos de penetração: na caça e escravização do
índio, na busca e coleta das plantas conhecidas como “drogas do sertão”, na coleta do látex
e da castanha. Entretanto, foi a partir do golpe de 1964 e do estabelecimento da ditadura
militar, que a Amazônia transformou-se num imenso cenário de ocupação territorial
massiva, violenta e rápida, processo que continuou, ainda que atenuado, com a
reinstauração do regime político civil e democrático, em 1985.
Martins (1996) ainda pontua que a história contemporânea da fronteira brasileira é a
história das lutas étnicas e sociais, uma vez que, entre 1968 e 1987, diferentes tribos
indígenas da Amazônia sofreram pelo menos 92 ataques organizados, principalmente por
grandes proprietários de terra, com a participação de seus pistoleiros armados. No entanto,
diferentes nações indígenas realizaram pelo menos 165 ataques a grandes fazendas e a
alguns povoados, entre 1968 e 1990, usando, muitas vezes, armas primitivas, como
bordunas e arco e flecha. Nessas lutas foram verificadas mortes de ambos os lados,
verdadeiros massacres.
Para tanto, o mesmo autor destaca que o que havia de mais relevante para
caracterizar e definir a fronteira no Brasil era, justamente, a situação de conflito social,
aspecto mais negligenciado entre os pesquisadores que têm tentado conceituá-la. Para
Martins (1996), nesse conflito a fronteira é:
[...] essencialmente o lugar da alteridade. É isso o que faz dela uma
realidade singular. À primeira vista é o lugar do encontro dos que por
diferentes razões são diferentes entre si, como os índios de um lado e os
civilizados de outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado,
e os camponeses pobres, de outro. Mas, o conflito faz com que a fronteira
seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de
desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes
concepções de vida e visões de mundo de cada um desses grupos
humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades
históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente no
tempo da História. Por isso, a fronteira tem sido cenário de encontros
extremamente similares aos de Colombo com os índios da América: as
narrativas das testemunhas de hoje, cinco séculos depois, nos falam das
40
mesmas recíprocas visões e concepções do outro. A fronteira só deixa de
existir quando o conflito desaparece, quando os tempos se fundem,
quando a alteridade original e mortal dá lugar à alteridade política,
quando o outro se torna a parte antagônica do nós. Quando a História
passa a ser a nossa História, a História da nossa diversidade e pluralidade,
e nós já não somos nós mesmos porque somos antropofagicamente nós e
o outro que devoramos e nos devorou. (MARTINS, 1996, p.27)
Por isso, a questão que pretende desconstruir os discursos sobre o mito do
progresso, assinalado nas propagandas que idealizavam o novo ‘Eldorado’, é, como sugere
Barrozo (1992), sinônimo de pesquisa da questão da fronteira. Este autor permite-nos
refletir que no momento em que ‘aquele’ lugar ideal não existindo, surge como
consequência o discurso do progresso para justificar as promessas que haviam sido feitas.
Assim, o lugar ideal é uma construção imaginária e abstrata, relacionada intimamente com
questões de fronteira.
Como, sugere Guimarães Neto (2002, p. 149), os discursos do progresso “era uma
marca indelével, presente em todos os lugares por onde se passava, direcionando condutas
humanas, projetando a esperança no amanhã, refazendo a todo o momento o mito do
possível".
De acordo com Certeau (1998), faz-se necessário desconstruí-los, permitindo neles
perceber as marcas do invisível, das práticas rotineiras, das artes de fazer, privilegiando um
olhar para o anônimo e o cotidiano, “onde zooms destacam detalhes metonímicos – partes
tomadas pelo todo”. (CERTEAU, 1998, p. 57)
E ainda, não apenas conhecer tais práticas, mas, problematizar como elas foram
manuseadas e alteradas, por aqueles que não as produziram, possibilitando, dessa forma,
dar visibilidade à compreensão do modo como os migrantes incorporaram, transformaram
ou resistiram às estratégias e ordens estabelecidas que lhes foram impostas e fabricadas.
Assim,
[...] a presença e a circulação de uma representação, ensinada como o
código da promoção socioeconômica (por pregadores, por educadores ou
porvulgarizadores) não indica, de modo algum, o que ela é para seus
usuários. É ainda necessário analisar a sua manipulação pelos praticantes
que não a fabricaram. (CERTEAU, 1998, p. 41)
Os conceitos de estratégia e tática, tomados de Michel de Certeau (1998, p. 99),
serão discutidos com maior intensidade no decorrer desta pesquisa, visto sua relevância
para com todo o estudo, uma vez que, na ótica desse autor, a estratégia propõe uma ação
41
que presume a existência de um lugar próprio, “como algo próprio a ser a base de onde se
podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças”.
Nesse contexto, Certeau (1998, p. 100) explica que as estratégias exprimem um
direcionamento ao que é exterior a este lugar próprio. Contudo, ao que chama de tática,
esta leva à expressão de uma interioridade, uma vez que se define como:
[...] a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio.
Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia.
A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o
terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha.
A distinção entre os dois conceitos se expõe principalmente no modo de
intervenção que se pode executar. Enquanto as estratégias são as formas capazes de
produzir e impor, as táticas só admitem utilizar, manipular e transformar algo; são como:
[...] trilhas heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboçam
astúcias de interesses e desejos diferentes. “Elas circulam, vão e vem,
saem da linha e derivam num relevo imposto, ondulações espumantes de
um mar que se insinua entre os rochedos e os dédalos de uma ordem
estabelecida”. (CERTEAU, 1998, p. 97)
No entanto, para tecer uma discussão de como as práticas foram incorporadas,
como as ações do “cotidiano” e de como as artes de fazer daqueles que vivenciaram essa
história se ajustaram a determinados saberes de poder e estratégia, assim como o que
levou centenas e milhares de famílias a se deslocar para a cidade de Sinop, lócus desta
pesquisa, se faz necessário situar o processo histórico marcado pelas políticas que
favoreceram a ocupação e a expansão da fronteira Amazônica, à qual Sinop está
diretamente ligada, assim como é relevante fazer uma breve contextualização do momento
político que o país vivia - sob a égide do governo militar.
1.2. A Colonização como prova de Brasilidade7
7 Este subtítulo é inspirado nas mensagens estampadas em faixas no dia de sua fundação de Sinop, em 14 de
setembro de 1974.
42
Figura 3- Ruas de Sinop no dia de sua fundação em 14 de setembro de 1974.
Fonte: Colonizadora Sinop, 2011
Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
(...)
Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
(Vinícius de Moraes, Pátria minha, 1949)
Conquistar e ocupar a região Amazônica na década de 1970 era uma “questão de
Estado”, desde a Era Vargas8, através principalmente da política ‘Marcha para Oeste,
9’
tinha-se como proposta promover o desenvolvimento e o progresso do país. Getúlio
8 A era Vargas é assim conhecida pelo fato do Presidente Getúlio Dorneles Vargas ter governado o país entre
os anos de 1930 a 1945 e posteriormente retornado em um segundo mandato (1950-1954). 9 A Marcha para Oeste foi uma política do governo de Vargas, nascida em 1943 e que incentiva a migração
para a região central do Brasil, na perspectiva de ocupar os “espaços vazios, garantindo a segurança das
fronteiras e gerando riquezas.
43
enfatizava em poucas palavras o sentido de sua concepção sobre o movimento que criara:
“O verdadeiro sentido de brasilidade é a Marcha para Oeste” (VARGAS, 1943).
Como explica Siqueira, Costa e Carvalho (1990, p. 255):
O projeto getulista impunha o estabelecimento de trabalhadores
‘civilizados’, ou seja, desejosos de progredirem. Para isso deveriam
trabalhar de maneira produtiva, ordeira e sem conflitos. Os colonos
preferidos foram os migrantes da região Sul do Brasil, pois possuíam de
acordo com a visão reformista de Vargas, uma mentalidade empresarial,
europeia e, sobretudo, porque estes migrantes, além da experiência que
possuíam no trato com a terra, traziam, quase sempre, um pecúlio que os
auxiliariam na organização inicial do empreendimento.
Com isso, Vargas, “jogando o peso de tal missão nos ombros dos trabalhadores [...],
convocava a nação a participar do esforço heroico da conquista da Amazônia -
ressuscitando-se o ‘espírito do bandeirante’ no corpo do trabalhador brasileiro”
(GUIMARÃES NETO, 2002, p. 49).
Visava-se com tal política a apropriação física e o controle populacional da região
de fronteira10
. Era necessário ‘povoar’ a ‘imensidão verde’, considerada demograficamente
como ‘espaço vazio’ do Brasil, ou seja, desconsiderando qualquer forma de vida na região,
a exemplo da presença de índios, seringueiros e caboclos que habitavam até então o
território mato-grossense. De acordo com Tomé (2005, p. 5), “povoar e ocupar o território
eram questões de soberania da aurora República. Mas, para isso se concretizar, era
necessário atrair os nascentes cidadãos republicanos e democráticos para os distantes lados
deste berço esplêndido Brasil”.
Barrozo (2008) explica que, entre os objetivos explícitos da Marcha para o Oeste,
podem-se destacar a ocupação dos ‘espaços vazios’ do Centro-Oeste e da Amazônia
Meridional, a produção para o mercado nacional e o esvaziamento dos centros urbanos
com maior densidade demográfica, especialmente os localizados no litoral brasileiro.
Dessa forma, analisando-se a história da dinâmica da ocupação Amazônica, pode-se
verificar a possibilidade de pensar as fases11
de sua ocupação, marcadas por momentos
históricos distintos, porém sincrônicos. Contudo, vamos nos ater mais especificamente no
10
Revisão e resumo histórico sobre o século XX na Região Amazônica, a partir das obras de Souza (2006);
Picoli (2005); Tomé (2006; 2009), Barroso (2008). 11
De acordo com Picoli (2005), a ocupação do território amazônico teve início no século XVI, sem, no
entanto, apossar efetivamente da região, sendo uma descoberta espanhola e uma conquista portuguesa, no
intuito de aproveitar o grande potencial de recursos florestais e minerais.
44
período que consideramos de maior relevância, a fim de se compreender a trajetória da
migração para a região em análise.
Conforme Picoli (2005, p. 56), dentre as principais fases de ocupação da Amazônia,
destaca-se o período da mineração do ouro, desencadeando um movimento acentuado de
ocupação devido às descobertas auríferas; o tempo do extrativismo, principalmente do
látex, cujo produto passou a projetar a Amazônia brasileira12
ao mercado mundial, no
momento conhecido como ciclo da borracha13
, tendo este um contínuo aumento desde
1827 e estendendo-se significativamente até 191214
. Outra fase refere-se ao governo
anteriormente citado, de Getúlio Vargas, com o projeto que viria a transformar a Amazônia
numa grande fronteira agrícola. É no contexto dessa movimentação que se insere o
percurso da colonização da região norte de Mato Grosso, em especial da cidade de Sinop,
durante a década de 1970, com o objetivo de ampliar a compreensão do lócus da
investigação, para, posteriormente, tecer um debate sobre a educação no espaço-tempo
escolhido dos anos de 1970.
De acordo com as análises de Souza (2006), a partir da Revolução de 1930 teve
início no país o início um movimento de interiorização, o qual propunha expandir a
fronteira econômica para as regiões menos desenvolvidas, devido principalmente à
modernização do latifúndio e ao grande índice de desemprego ocasionado pela crise
econômica dos anos 30. Com isso, o Governo Federal estimulou a migração objetivando a
ocupação dos espaços demográficos delimitados do Centro-Oeste até a Amazônia. A partir
de então, na década de 1940, com a Marcha para o Oeste, implementada por Getúlio
Vargas, o movimento de interiorização do país, tornou-se mais efetivo, de modo a
ocasionar transformações significativas na sociedade brasileira, principalmente devido à
expansão e modernização fundiária. Mato Grosso foi influenciado pelas políticas de
ocupação, se transformando, então, numa grande fronteira agrícola, passível de receber
parte da população excedente de outras regiões do país, expulsa pela economia rural.
12
Os nove estados que compõem a Amazônia brasileira são: Acre, Rondônia, Amazonas, Pará, Mato Grosso,
Roraima, Amapá, Tocantins, e Maranhão (PICOLI, 2005, p. 17) 13
Segundo Picoli (2005), o Ciclo da Borracha foi um período da história econômica do Brasil marcado pela
grande atividade da extração do látex da borracha nos seringais da Amazônia, cuja produção se voltou para
exportação. Essa atividade atingiu seu apogeu na primeira década do século XX, quando o Brasil era o maior
produtor mundial do látex, responsável por 26% do valor das exportações nacionais. 14
No mais acentuado período extrativista, “a selva Amazônica é invadida por legiões de brasileiros do
Nordeste, flagelados da seca (FERREIRA, 1980, p.34). De acordo com Picoli (2005), foram trezentos a
quinhentos mil nordestinos para a Amazônia como mão de obra extrativista.
45
Os motivos que levariam esse excedente a migrar para Mato Grosso, foram
similares, relacionados ao cultivo agrícola, como explica Barroso (2008), no Rio Grande
do Sul, por exemplo, particularmente em áreas de colonização com imigrantes italianos e
alemães, onde os problemas principais eram o minifúndio e o esgotamento da fertilidade
do solo. Para modernizar a agricultura na região, o governo propôs a saída de milhares de
agricultores, oferecendo-lhes lotes de 100 a 200 hectares, disponíveis nos estados de Mato
Grosso e no território federal de Rondônia. Ainda, de acordo com as análises do autor, com
a partida desses minifundiários as pequenas propriedades foram reagrupadas, viabilizando
a mecanização, uma das condições para a modernização das culturas de trigo e soja. Já no
Paraná, explica o mesmo autor, o problema foi a superprodução do café, cujos preços
estavam caindo no mercado internacional devido ser a oferta superior à demanda. Desta
forma, em meados de 1970, aproveitando uma geada excepcional ali ocorrida e que
danificou uma percentagem muito alta dos cafezais, o governo federal exigiu a erradicação
de milhões de cafeeiros. Com isso, os pequenos proprietários, que complementavam a
renda familiar trabalhando nas fazendas de café, assim como os arrendatários e
trabalhadores das fazendas foram obrigados a se deslocar ou para as cidades do sul ou para
a nova fronteira agrícola aberta em Mato Grosso e Rondônia.
Contudo, a política de interiorização implantada desde a ‘Era Vargas’, cujo maior
intuito era integrar a Amazônia à economia nacional, na expectativa de “impulsionar a
ocupação econômica do território, abrindo fronteiras econômicas e povoando o interior do
país” (DOURADO, 2007, p. 34), foi posteriormente ampliada por Juscelino Kubitschek
que também enfatizou a importância da ocupação territorial, efetivando o processo com a
construção de Brasília, em 195915
, em meio ao cerrado do Centro-Oeste. Além disso, faz-
se necessário pontuar o investimento de seu governo na construção de rodovias inter-
regionais16
e em políticas que favoreciam o desenvolvimento industrial.
Como explica com Barrozo (2008), no final da década de 50 e início dos anos 60, a
construção e posterior transferência da capital federal para Brasília, pelo presidente
Juscelino Kubitscheck de Oliveira, contribuiu para o deslocamento de um grande
contingente populacional para o Oeste do Brasil. Após a conclusão das principais obras
públicas em Brasília, grande parte dos trabalhadores foi dispensada. Assim, milhares
desses trabalhadores seguiram para o Norte, pela rodovia Belém-Brasília, onde foram
15
De acordo com Lobo (1999, p. 707), “Brasília, construída por Juscelino Kubitschek, só se consolidou no
governo Médici, mas o fluxo de migrantes para o Oeste não se interrompeu”. 16
Cf. Barrozo, 1992, p. 7.
46
ocupando terras devolutas e/ou desocupadas nos estados de Goiás e do Pará. Os migrantes
pobres foram seguidos por fazendeiros e madeireiros. E foi essa rodovia, aberta durante o
governo Kubitscheck, assim como as vias que ligam Brasília ao Nordeste os elementos
facilitadores do processo migratório rumo ao Brasil Central e à Amazônia.
Ao longo das décadas de 1960 e 1970, ainda segundo Barrozo (2008), o
Departamento de Terras e Colonização (DTC), a Companhia de Desenvolvimento de Mato
Grosso (CODEMAT) e o Instituto de Terras de Mato Grosso (INTERMAT) efetivaram
projetos de colonização e assentamento. Muitos deles situados, sobretudo, no vale do
Guaporé, Jaurú e na Baixada Cuiabana se restringiram à distribuição de lotes. Sem poder
contar com uma infraestrutura adequada, uma política de crédito e de assistência técnica,
os assentados, com o tempo, foram abandonando os lotes, que passaram a ser explorados
tendo por base a agricultura mecanizada e pastagens. Com isso, na década de 1970 foram
implantados em Mato Grosso grandes projetos de colonização privada, nos quais
predominavam agricultores originários do sul do Brasil. Dentre eles destacam-se os
projetos de Canarana, na região do Araguaia; o de Sinop, na rodovia Cuiabá-Santarém, e o
de Alta Floresta, no vale do rio Teles Pires.
Diante de tais eventos, pode-se inferir que, entre os anos de 1946 a 1964, se
consolidou uma política de interiorização, de valorização da Amazônia e que, a partir de
1964, passou a inserir uma política de maior impacto à integração nacional (1964-1984)17
,
reforçada pelos governos militares, quando foram criadas condições básicas de
infraestrutura. Como exemplo é possível citar a instituição de projetos
desenvolvimentistas, como o Plano de Integração Nacional (PIN) que permitiu a
construção das rodovias Cuiabá-Santarém, a Perimetral Norte, a Transamazônica, além do
oferecimento de grandes incentivos fiscais à indústria e à agricultura, viabilizando “a
continuidade do processo de ocupação das terras e a expansão da agricultura em
Mato Grosso, estreitando as ligações deste Estados com os demais estados da Federação”.
(SOUZA, 2006, p. 40).
De acordo com Souza (2006), a rodovia Cuiabá-Santarém18
, conhecida como
Rodovia de Integração Nacional, tinha por objetivo agregar esse extenso espaço territorial
17
Conforme Picoli (2005, p. 46), pode-se resumir as estratégias do Estado brasileiro para a ocupação da
Amazônia nas últimas décadas, elencando quatro períodos: de 1946-1964: política de valorização da
Amazônia; de 1964-1984: política de integração nacional; 1985 a 1994: política de integração com ressalvas
ambientais; a partir de 1995: política de globalização da Amazônia. 18
Rodovia que corta a cidade de Sinop e que possibilitou o processo de colonização.
47
às demais regiões do país. A partir de sua existência, estimulou-se o desenvolvimento
econômico e permitiu-se que, ao longo de seu trajeto, se instalassem fazendas, surgissem
cidades, o que redundou numa intensificação do processo migratório rumo ao estado de
Mato Grosso, estimulando a expansão da produção agrícola e pecuária Segundo o mesmo
autor, a construção da rodovia era a ‘garantia’ para o escoamento da produção.
Guimarães Neto (2002) enfatiza que a importância de se ressaltar que, desde o
início dos projetos de colonização na parte norte de Mato Grosso, a Cuiabá-Santarém (BR-
163) veio sendo defendida como verdadeiro ‘corredor de exportação’. E pontua que:
E assim as cidades foram recebendo toda ordem de estímulos para
transformarem-se rapidamente em centros de desenvolvimento
econômico e político. [...] o que importava realmente era fazer do norte
de Mato Grosso um novo norte do Paraná. Isto é, enfatizava-se a
necessidade de criar mecanismos que fossem capazes de acelerar o
crescimento das cidade e garantir, como resultado, a utilização eficiente
de modernas tecnologias para que um ‘grande salto’ pudesse ser dado.
(GUIMARÃES NETO, 2002, p. 151)
Figura 4- Vista aérea da BR 163, que liga Cuiabá-Santarém, 1972
Fonte: Santos, 2011
Entretanto, conforme os estudos de Souza (2006), durante o processo de expansão
da fronteira, ocorreu a destruição de matas e cerrados, a expulsão de populações indígenas
que viviam na região, como as nações Kayabi e Panará, que foram levadas para o Parque
48
Nacional do Xingu, pelos irmãos Cláudio e Orlando Villas Bôas, durante a Expedição
Roncador- Xingu (SANTOS, 2006, p. 48).
Todavia, pode-se inferir que nem mesmo esse Parque foi respeitado, como explica
Siqueira, Costa e Carvalho (1990, p. 258):
[...] no momento em que os interesses [...] soaram houve na esfera
nacional uma campanha para que fosse encontrada, no Brasil, uma outra
área para a qual se pudesse transferir estes índios, de preferência que a
mesma se situasse fora dos limites de Mato Grosso. Argumentava-se na
ocasião, que os territórios federais seriam os mais indicados para a
transferência deles. Ao final, o Parque Nacional do Xingu sofreu um
retalhamento: foram vendidas a particulares, extensas áreas indígenas.
Figura 5- Índios Panarás na ponte construída para a transposição do Rio Peixoto de Azevedo
BR 163
Fonte: SANTOS, 2011
Barrozo (1992, p. 45) explica que na Amazônia mato-grossense, acima do paralelo
1619
, havia imensas áreas devolutas e com rarefeita população composta por Caboclos,
índios, garimpeiros, seringueiros, caçadores, pequenos agricultores. A terra para essa
população tinha muito mais que valor comercial, mas era território de trabalho e não de
especulação, para ganhar dinheiro, mas sim para produzir alimentos.
O autor ainda reforça que no discurso do governo a região era um ‘vazio
demográfico’, entretanto, ali habitava e trabalhava uma população nativa que foi expulsa,
19
Segundo Barrozo (1992, p. 45), o paralelo 16 de latitude sul definia a fronteira entre a parte de Mato
Grosso incluída na Amazônia Legal até a divisão do Estado. Após a divisão em duas unidades, todo estado de
Mato Grosso foi incluído na Amazônia Legal.
49
expropriada, ou seja, não computadas no momento da migração no mapa repassado aos
empresários que se estabeleceram na região e até mesmo para muitos órgãos
governamentais. Segundo o autor, no caso das populações indígenas, muitas foram
dizimadas e tomadas suas terras. Houve um processo de expropriação.
Em resumo, a partir de 1964 os governos militares, visando integrar a Amazônia à
economia nacional, sob o lema de “integrar para não entregar”20
, e com o intuito de atenuar
a crise na economia rural que se acentuava principalmente na região sul e resolver o
problema da grande seca do Nordeste, em 1970, para não ter de se responsabilizar com
uma possível reforma agrária, voltam-se para a ampliação de políticas públicas que
pudessem concretizar o processo de ocupação territorial, contudo, sob os mesmos
discursos dos governos anteriores que propagavam a ideia de povoar os espaços vazios,
proteger e proporcionar a segurança nacional e, finalmente, promover as novas fronteiras
agrícolas como os locais propícios para um futuro mais promissor. Contudo, como
discutido anteriormente, as vidas daqueles que habitavam a região foram desrespeitadas.
Os espaços estavam vazios de produção, mas já estavam ocupados por outros agentes,
como explicam Carvalho; Costa; Siqueira (1990, p. 259):
Ocupar os ‘espaços vazios’ existentes na região Amazônica seria uma
boa solução para minimizar os sérios conflitos urbanos e rurais que
explodiam em diferentes pontos do território nacional. Como sabemos, os
espaços estavam vazios, pois neles nada se produzia, porém eles já
possuíam donos.
Entretanto, em nome do ‘progresso’, de acordo com Souza (2006), para efetivar e
acelerar o processo de ocupação da fronteira os militares acrescentaram algumas medidas e
estratégias à Marcha para Oeste, como programas de políticas públicas que tinham como
objetivo principal promover o desenvolvimento da região Centro-Norte do Brasil através
de incentivos fiscais, políticas de créditos, subsídios de infraestrutura que favoreciam as
elites nacional e internacional.
20
De acordo com Boni (2010, p. 9), “integrar” em tese, seria fixar o trabalhador em espaços considerados
“vazios”. A iniciativa pretendia povoar o interior e tornar estes espaços produtivos para impulsionar a
economia do mercado. Com isto, a expectativa era que o Brasil conquistasse maior autonomia econômica e
não dependesse totalmente do mercado externo”. Os slogans “integrar para não entregar” juntamente com
“uma terra sem homens para homens sem terra” foram cunhados e propagados durante o governo
militar brasileiro, tendo à frente o presidente Médici.
50
Para tal finalidade, foram criados órgãos específicos coordenadores da instalação e
implantação de projetos que visavam a expansão da região, dentre eles: Superintendência
para o Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO), Superintendência para o
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAN), Banco de Crédito da Amazônia, (BASA),
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e por outros órgãos
liderados pelo Governo Federal, que incentivavam a aquisição de terras, promovendo o
deslocamento de grande número de trabalhadores migrantes. “Estes migrantes foram
atraídos pela propaganda de terras férteis, de incentivos fiscais e financeiros, justificada
pela suposta necessidade de levar “os homens sem-terra para as terras sem homens21
"
(SOUZA, 2006, p. 48).
De acordo com Barrozo (2008, p. 19), tais políticas visavam viabilizar a ocupação
produtiva e a integração da Amazônia e do Centro-Oeste ao restante do Brasil: “A
concepção do governo era que a Amazônia era desabitada, sendo considerada pelo governo
como um “vazio demográfico”, onde pouco se produzia além de não estar integrada ao
Brasil”.
O autor ainda explica que a SUDAM e o BASA, através de incentivos fiscais e
crédito subsidiado, ofereceram vantagens irrecusáveis para os empresários do sul-sudeste
se instalarem na Amazônia. Nas palavras do autor, “centenas de empresas, atraídas pelos
“incentivos fiscais”, pelas terras abundantes e de baixo custo, e pelo crédito farto e barato,
apresentaram projetos à SUDAM, dos quais muitos foram aprovados”. (BARROSO, 2008,
p. 20).
Ainda nas palavras de João Carlos Barrozo (2008, p. 22), “apenas dois anos depois
da criação do INCRA, o Governo Federal permitiu à iniciativa privada ‘complementar a
ação do INCRA, desenvolvendo projetos de colonização privada na Amazônia”. Em Mato
Grosso, em poucos anos, as empresas de colonização privada se apossaram de milhões de
hectares de terras devolutas. Embora planejada pelo governo federal e ainda que o
território dispusesse de milhões de hectares de terras devolutas, a (re) ocupação de Mato
Grosso, através da colonização foi executada predominantemente por empresas de
colonização privada22
.
Nesse sentido, pode-se inferir a partir das considerações feitas que:
21
Slogan utilizado pelo governo Médici para atrair migrantes para ocupar as terras da região Centro-Oeste do
país e, desse modo, atenuar os conflitos existentes nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, causados pela
economia rural. 22
Cf. Barrozo, 2008.
51
O Estado de forma ditatorial e repressivo orienta a ocupação da nova
fronteira com a finalidade de minimizar os problemas sociais das demais
regiões do Brasil. Este utiliza como estratégia a ocupação da última23
fronteira expansionista do Brasil. (PICOLI, 2005, p. 64)
Guimarães Neto (2002, p. 52) salienta ainda que:
O governo militar nesta perspectiva, se apresenta como o guia maior dos
“modernos bandeirantes” para a efetiva incorporação da Amazônia ao
território nacional, na realização de um “Brasil Grande”. A “vocação de
grandeza”, estigmatizada no governo Médici, “o compromisso com o
desenvolvimento”, a “missão nacional” da qual estava imbuído o regime
militar, exigia, afinal, que todo cidadão assumisse a sua “brasilidade”.
No entanto, as extensas terras da Amazônia deveriam, de acordo com o discurso
oficial vigente, assim como as políticas públicas implantadas para tal atender os pequenos
agricultores do sul, excedentes populacionais daquela região expulsos pela modernização
dos latifúndios, nas décadas de 60 e 70, e os flagelados da grande seca do Nordeste, de
1970, Porém, o INCRA, responsável pela reforma agrária no Brasil, ‘abandonou’ a ideia
inicial do projeto de ocupação das terras pelos pequenos proprietários, concedendo grandes
proporções a grandes empresas nacionais e internacionais, que passaram a investir na
região através de projetos colonizadores, industriais, agropecuários e de mineração. Nesse
contexto, Ianni (1979) explica que a ocupação da fronteira por parte de colonizadoras,
setores madeireiros, empresas mineradoras e agropecuárias caracteriza-se por um
movimento de uma “Contrarreforma agrária”.
Assim, com a inserção das estratégias de incentivo à ocupação da fronteira, o
Governo Federal, através de seus órgãos responsáveis, ofereceram as condições e os
incentivos possíveis para a consolidação do processo de colonização para empresas
privadas, visando, dessa forma, apenas a expansão econômica da região, ou seja,
O projeto de colonização da última fronteira brasileira elaborado pela
ditadura militar, não teve como objetivo assistir o caboclo da região, os
problemas da seca do Nordeste, os problemas sociais do Sul do País,
muito menos beneficiar a grande maioria da população brasileira (...).
Este projeto foi elaborado para beneficiar as grandes empresas nacionais
23
De acordo com Martins (1997) e Picoli (2005), a Amazônia, principalmente a faixa integrante do território
brasileiro, se caracteriza como a última grande fronteira da América Latina.
52
e internacionais. Nasceu com a finalidade de colocar os produtos da
Amazônia no mercado mundial e, por intermédio dos militares
internacionalizar a região com a expansão de grandes conglomerados
capitalistas. (PICOLI, 2005, p. 52)
Guimarães Neto (2002, p. 88) explica que, sob o discurso da necessidade de
“ocupação nacional do espaço amazônico, o empresariado iria apropriar-se de grandes
extensões de terras, assim como usufruir dos benefícios financeiros”. Com isso, a
estratégia política para o controle das terras favorecia nitidamente a colonização particular,
incumbida de “desenvolver a região”. No âmbito dessa política, as regras estavam dadas: a
colonização não deveria limitar-se à ação governamental.
Outra questão que nos parece estar intimamente ligada ao processo de colonização
do norte de Mato Grosso, visto estar relacionada à divisão do Estado, ocorrida no ano de
1977 e efetivada somente em 197924
, pelos fortes indícios de que a cisão territorial atendia
às estratégias do regime militar, de integrar a Amazônia à economia nacional e ‘ocupar’ os
espaços considerados demograficamente ‘vazios’, sendo então, previamente ‘pensada’ nos
anos que sucederam sua divisão oficial, pelo Governo Militar.
Segundo Araújo (2012, p. 124), o jornal Diário de Cuiabá, de 08/05/1977, publicou
um editorial no qual assegurava que “Enquanto estava tudo decidido na esfera federal, o
governador Garcia Neto fazia o povo acreditar na luta que o governo do Estado estaria
travando”. A edição ainda salientava que o governador do estado, Garcia Neto, já sabia da
divisão e teria feito promessas ilusórias ao povo cuiabano, para se transformar no baluarte
do antidivisionismo e o maior líder político do norte pós-divisão. Dessa forma, com essa
postura, teria proibido discussões sobre a divisão e dificultado a formulação de argumentos
contrários.
O principal argumento utilizado para a divisão de Mato Grosso foi a dificuldade em
desenvolver a região diante de sua grande extensão e diversidade. De acordo com Araújo
(2007, p.125):
O norte era visto como vazio demográfico, por seus baixos índices
populacionais, e já vinha recebendo incentivos da Sudam (Pin,
Polamazônia e Proterra), por compor a denominada Amazônia Legal,
acima do paralelo 16. O sul, por seu turno, já estava incorporado ao
Centro-Sul e obteve a colaboração de programas como o Polocentro
24
A assinatura do Decreto que estabeleceu a divisão aconteceu em 11 de outubro de 1977. No entanto, a
criação do novo Estado ocorreu, efetivamente, em 1º de janeiro de 1979. Foi o presidente Ernesto Geisel
quem decidiu pela divisão e assinou a Lei Complementar número 31.
Fonte: http://www.mt.gov.br/index2.php?sid=92
53
(Cerrados) e Prodegran (Grande Dourados) e o Prodoeste, que incluía
áreas não alcançadas pela Amazônia Legal, como o sul de Goiás e Mato
Grosso, e o entorno de Brasília . A especialização das políticas regionais
de desenvolvimento tinha por objetivo, portanto, instrumentalizar melhor
a rearticulação do espaço mato-grossense ao grande capital industrial
monopolista, instalado na região Sudeste.
Barrozo (2008) nos ajuda a ampliar a discussão, ao explicar que havia por parte dos
militares uma preocupação de ordem estratégica na extensa fronteira da Amazônia com os
países vizinhos e territórios coloniais (Guianas). E que até o final da década de 1960 e
início de 1970, a economia da Amazônia continuava sendo predominantemente
extrativista, razão pela qual precisava ser transformada. Assim, entre os objetivos do plano
para ocupar a região podem ser explicitados: a formação de grupos populacionais estáveis,
tendentes a um processo de autossustentação; a adoção de uma política imigratória para a
região, com aproveitamento de excedentes populacionais internos e contingentes externos
selecionados; a fixação de populações regionais, especialmente no que concerne às zonas
de fronteira; a adoção de políticas de estímulos fiscais e de crédito.
Bittar (2012, p. 9) expõe, de forma peculiar, que a divisão do Estado estava
diretamente articulada aos interesses geopolíticos da ditadura militar, assim como às
estratégias políticas que viriam atender a mais um grupo que apoiaria o regime,
fortalecendo-o. Importa ouvi-la:
[...] de cima para baixo, sem consulta às duas populações interessadas –
do norte e do sul – dividiu Mato Grosso. Para o regime militar,
tratava-se de impulsionar o desenvolvimento e a ocupação territorial,
guarnecendo as fronteiras que o estado mantinha com o Paraguai e a
Bolívia. Mas havia também uma razão política: ao criar uma nova
unidade federativa no sul, a ditadura premiava um forte grupo político
que a apoiava, passando a contar com mais uma unidade federativa em
sua base de sustentação. Assim, a divisão de Mato Grosso, em 1977, só
foi possível graças a uma conjuntura que articulou o regionalismo à
geopolítica do regime autoritário. Decidida nos gabinetes da ditadura, a
divisão surpreendeu a todos e nunca se poderá dizer que foi um desejo da
maioria.
Contudo, a história da cidade de Sinop encontra-se nesse processo de ‘ocupação’ do
norte mato-grossense nas décadas finais do século XX, liderada por uma colonização
particular, em parceria com o Governo Federal. Nesse sentido, a década de 70 foi, de modo
54
peculiar, muito relevante para Mato Grosso, um momento em que ele foi dividido em
grandes-pequenos territórios e os mesmos disponibilizados às empresas colonizadoras25
.
De acordo com Tomé (2006), a parceria entre governo e empresas já havia
acontecido ainda durante o governo Vargas, visando equilibrar o crescimento populacional
nos grandes centros urbanos no Brasil. Desse modo, em um país com tantos espaços
geográficos ainda ‘não ocupados’, principalmente no interior Centro-Oeste, e com uma
concentração humana essencialmente litorânea Centro-Leste, estimularam-se ações
empresariais de colonização em direção ao interior desconhecido.
É nesse cenário que nos deparamos com a colonizadora Sociedade Imobiliária do
Noroeste do Paraná (SINOP), de propriedade de Ênio Pipino e João Pedro Moreira de
Carvalho, empresários experientes em colonização no noroeste do Paraná, que,
vislumbrando a possibilidade de adquirir grandes proporções de terras em solo mato-
grossense, obtiveram uma extensa área denominada posteriormente de Gleba Celeste, onde
seria, então, iniciado um novo projeto de colonização.
É interessante pontuar que o ‘colonizador’ Ênio Pipino, filho de imigrantes italianos
chegados ao Brasil no final do século XIX, apesar de residir, quando adulto, no estado do
Paraná e ter uma grande experiência naquela região em ‘construir cidades’, era de origem
paulista, o que nos faz propor uma analogia aos bandeirantes do Brasil colonial do século
XVII e XVIII, como explica Guimarães Neto (2002, p. 84) “os empresários paulistas e o
capital estrangeiro foram, efetivamente, os eleitos pelo regime militar para reencarnar o
autêntico espírito ‘bandeirante’ – conhecedor e explorador dos sertões - , com o fim de
levar adiante os projetos de colonização privada”.
Contudo, o espírito do ‘moderno bandeirante’ paulista, desbravador e corajoso,
precisava da força de trabalho daquele que tinha tradição no campo, os sulistas, na sua
maioria descendente de europeus e com experiência na agricultura, eram, como já
mencionado, os que melhor atenderiam ao perfil para tal ‘missão’, na concepção
governamental. Barrozo (2008) afirma que o governo preferia ocupar a Amazônia com
agricultores do sul, que tivessem “vocação para a agricultura” e que melhor atendessem às
suas expectativas. Assim, os nordestinos, por exemplo, foram assentados em projetos do
INCRA, ao longo da rodovia Transamazônica, quase todos no trecho da estrada entre
Marabá e Itaituba e no território federal de Rondônia, entre Vilhena e Ji-Paraná.
Sobre isso, Guimarães Neto (2002, p. 107), também pondera que:
25
Cf. Tomé (2006).
55
[...] o ‘colono do Paraná’ oferecia as condições ideais para as empresas
colonizadoras: um agricultor habilitado, conhecedor do plantio de
lavouras perenes, em que tal conhecimento é profundamente valorizado e
constitui parte de sua vida; um agricultor que passou pela ‘escola do
Paraná’, dono de um saber sobre a experiência viva de uma fronteira
agrícola; e, ainda um agricultor empobrecido, mas pequeno proprietário,
o qual podia vender sua pequena terra e investir nos lotes que a
colonizadora colocava à venda. (Grifos da autora).
Em resumo, pode-se dizer que “Sinop é um exemplo de colonização numa área de
fronteira de ocupação recente da Amazônia, estabelecida sob o manto do autoritarismo
militar e da expansão do capitalismo hegemônico no Centro-Sul do país” (SOUZA, 2006,
p. 194). Uma colonização seletiva, repleta de estratégias para atender um projeto maior do
regime militar.
Em referência ao subtítulo desta sessão e a partir das discussões apresentadas sobre
as políticas que favoreceram a ocupação territorial da Amazônia, em especial a
colonização do norte de Mato Grosso, a cidade de Sinop, naquele contexto o Brasil,
realmente não pedia, não esperava – ordenava!, cabendo aos migrantes, homens corajosos,
desbravadores por amor à família, a Deus e à Pátria, obedecer. Era preciso construir o
“grande Brasil amazônico,” era preciso expandir as fronteiras do país...
Sob esse discurso, a colonização se revestia, então, do manto da brasilidade,
servindo à “Pátria amada” através de um “povo heroico” que assumia em si a busca de
“conquistar, com o braço forte,26
” com otimismo, fé e trabalho, um Brasil ainda pouco
habitado, mesmo que para isso tivesse de enfrentar situações de miséria, doença, como
malária e outras, e falta de assistência básica para sobrevivência. Além disso, não se pode
negar, mesmo que tais questões não sejam tratadas com maior amplitude nesta pesquisa,
a existência em Mato Grosso de diversos problemas inerentes ao processo colonizatório,
como “o desrespeito às terras indígenas, a devastação ambiental e o efeito predatório
dos garimpos. Estes aspectos constituem elementos importantes que estão relacionados ao
processo de ocupação e expansão da fronteira agrícola no Estado do Mato Grosso”.
(CUNHA, 2006, p. 90).
Contudo, mais uma “cidade-semente”, precisava ser plantada no ‘grande Brasil
Amazônico’ e Sinop, assim como tantas outras cidades, precisava ‘nascer’!
26
As palavras entre aspas são referentes à letra do Hino Nacional brasileiro.
56
Começava-se, então, uma saga de luta, trabalho e amor à Pátria – a mesma Pátria
que “não seria nenhum florão, nem ostentaria Lábaro não”; como diria o poeta dos versos
desta sessão, mas que permitiria cair sobre a face de muitos dos seus filhos “longas
lágrimas amargas”, provindas de muitas dores, de “muitas mágoas”.
1.3. A missão de construir uma cidade
Figura 6- Acampamento da Empresa Colonizadora para abertura de Sinop, 1973.
Fonte: Patrimônio Histórico de Sinop, 2011.
Conto com que todo este progresso,
que derruba o onde eu fui (se ainda levo),
Faça mais fácil o mão-a-mão
De mão a mão distribuir o pão
e que tua gente volte ao “bom-dia”
de quando lá toda se sabia.
(João Cabral de Melo Neto, A escola das facas, 1975)
A partir da contextualização feita anteriormente sobre a ocupação territorial da
Amazônia, nos deparamos com um jornal da época, Folha de Londrina, publicado em
06/11/1974, na cidade de Londrina, estado do Paraná, que trazia como título de capa:
57
“Gleba Celeste: um passo de conquista na Amazônia”. Dentre algumas informações que
esse periódico oferecia aos seus leitores, elencamos algumas que consideramos de maior
relevância para confirmarmos as discussões anteriores:
A integração da Amazônia na dinâmica brasileira está hoje
colocada em termos de imperativo exigido pela consciência nacional e
estimulada pelos interesses dos poderes públicos. A partir deste consenso
impôs-se sempre a busca de fórmulas para atingir-se o objetivo daquela
vastidão. No imenso esforço, procurou-se observar a liberdade da
iniciativa pioneira apoiada por forte complexo de estímulos gerados pelo
Governo Federal, através da construção de infra-estrutura de obras e de
serviços, que já estão se constituindo – em garantias do êxito dessa
dominação territorial.
O decreto estadual do Governo de Mato Grosso, nº 2320, de 20 de
Janeiro de 1956, permitiu a SINOP S.A. adquirir de particulares 369 mil
e 17 hectares em região de florestas do norte mato-grossense. Um pedaço
de papel, com timbre oficial, significava convite à colonizadora para
participar de excitante empreitada. Começou assim a história do maior
empreendimento já visto na imensidão do universo amazônico. (...) A
partir desta verdade, a Sinop27
começou a sentir que na presença do
Governo Federal com obras como a Rodovia Cuiabá-Santarém, a tarefa
que se impunha abria uma clareira de perspectivas animadoras para os
seus propósitos.
No feixe de alternativas de colonização, a Sinop S.A. entendeu
como válida a opção de desenvolver projetos de colonização ao longo
daquela rodovia. Com sua experiência, conhecimento da terra e dos
múltiplos valores que deveriam ser tabulados para que houvesse sucesso-
igual a tantos outros – nesse empreendimento a que se lançava, adquiriu
extensão territorial nas proximidades do quilômetro 500 da Cuiabá-
Santarém.
Dando nome de Gleba Celeste àquela área, cuidou desde logo de
elaborar e apresentar ao Incra um projeto específico de Colonização (...)
que haveria de permitir o acesso a propriedade por parte de pessoas de
pequenas posses, ou então de grandes empresários. (FOLHA DE
LONDRINA, 06/11/1974, p.1-3).
Com essas informações, as discussões anteriormente pontuadas, no que diz respeito
a reocupação28
do território amazônico onde se localiza a Gleba Celeste - tratava-se de
uma parceria firmada entre colonizadora privada e governo federal, sendo este responsável
pelas políticas de incentivos ficais e por oferecer subsídios de infraestrutura básica às
empresas interessadas na colonização da nova fronteira.
27
Empresa Sinop S.A. 28
O uso do prefixo “re” se faz necessário para esclarecer que, antes do processo migratório “oficial”, a região
era habitada por índios, posseiros e seringueiros. De acordo com Souza (2006), essa região era habitada por
índios Kayabi, habitantes da margem direita do rio Teles Pires, entre o Verde e o do Peixe. Os Kayabi foram
transferidos para o Parque Nacional do Xingu pelos irmãos Villas Bôas, auxiliados por seringueiros e
posseiros.
58
Quanto ao conceito de colonização, pode-se dizer que o mesmo possui diferentes
definições, porém, no período do regime militar foi caracterizado por:
[...] toda atividade oficial ou particular destinada a dar acesso à
propriedade da terra e a promover seu aproveitamento econômico,
mediante o exercício de atividades agrícolas, pecuárias e agroindustriais,
através da divisão em lotes ou parcelas, dimensionadas de acordo com
as regiões definidas na regulamentação do Estatuto da Terra, ou através
de cooperativas de produção nela previstos. (BECKER; MACHADO;
MIRANDA, 1990a, p. 65)
Como já pontuado, o processo de ocupação dessa região foi seletivo, o governo
federal tinha preferência pelo sulista devido à tradição de trabalho e o conhecimento que
tinham no cultivo da terra. De acordo com Arruda (1997, p. 36, grifo do autor):
Os empresários do Centro-Sul [...] foram efetivamente os escolhidos pelo
regime militar para reencarnar o espírito bandeirante, conhecedor e
explorador dos sertões, a fim de levar adiante o projeto de colonização
privada, ressuscitando dessa forma o projeto que tinha o propósito de
ocupar e desenvolver os “espaços vazios” da Amazônia, como pontos
avançados de desenvolvimento econômico e social, irradiando progresso
para a região.
Segundo Souza (2006, p. 112), “as terras da Gleba Celeste foram compradas pela
Sinop Terras S.A. em 1971, ano em que o INCRA aprovou o projeto”. De acordo com
Moreno (199b, p. 19, grifo do autor), as terras foram compradas de terceiros, pois o
governo de Mato Grosso já as havia “vendido”, e a atuação do órgão oficial de colonização
foi, por isso, muito restrita.
Desse modo, em 1972 foram iniciados os trabalhos da Colonizadora Sinop S.A para
a abertura de núcleos urbanos da Gleba Celeste, Assim, o processo de ocupação territorial
oficial ocorrido em Sinop, que à época integrava o município de Chapada dos Guimarães,
refere-se a uma colonização particular, a qual obedecia a normas fixadas pelo poder
público de acordo com a legislação que lhe era conferida. Clairay29
(1999, apud SOUZA,
2006, p. 106) explica que:
29
CLAIRAY, M. Transformações dos espaços naturais versus os espaços antrópicos: exemplos de Mato
Grosso/Brasil, 1999. In: ROSA, Deocleciano Bittencourt. (Org.). Um estudo geoambiental comparativo das
características morfoestruturais e morfoescultu-rais nas áreas das bacias do Alto Rio Paraguai e do Rio
Teles Pires no Estado de Mato Grosso. Relatório Bibliográfico - Projeto de Pesquisa. FAPEMAT, CNPq-
UFMT, Cuiabá/MT, 2000, p. 13.
59
A colonização particular se realiza por intermédio de pessoa física ou
jurídica, incluindo-se cooperativas de colonização, registradas como
empresas de colonização no INCRA e que apresentem projetos para
tanto. (...) A colonização pressupõe a criação de uma infra-estrutura
agrária, da qual o “Núcleo de Colonização” é a unidade fundamental para
o estabelecimento de agricultura, caracterizada por um conjunto de
lotes rurais e urbanos, integrados por uma sede administrativa,
serviços técnicos e comunitários (Decreto n. 59. 428, de 27/9/66. art.
8º).
Aos olhos dos que se deparam à primeira vista com essa história, parece algo
‘fabuloso’, que somente aos homens ‘bravos’, ‘desbravadores’ esta ‘missão’ poderia caber,
afinal, abrir picadas em plena selva Amazônica para construir uma30
cidade era desafio
para verdadeiros ‘patriotas’, que sob o lema de “integrar para não entregar”, se
predispunham a colonizar e povoar aquela região...
Figura 7- Abertura de Sinop, pela Colonizadora Sinop. 1972
Fonte: Colonizadora Sinop.
As fontes iconográficas nos evidenciam os trabalhos iniciais de abertura da cidade
e, com ela, a derrubada de matas, destruição das florestas, os muitos povos indígenas que
deixaram de existir, que não foram levados em consideração e que não faziam parte da
história oficial – o progresso acima de tudo! E o triunfo da ‘conquista’ de tais terras, o
30
Uso a maneira singular para se referir à cidade de Sinop, porém, o projeto da Colonizadora fora “abrir”
quatro cidades: Vera, Santa Carmem, Cláudia e Sinop.
60
crescimento acelerado de um progresso avassalador, é a história que se é contada e
ensinada em nossas escolas, reproduzida de geração a geração, muito semelhante à
associação possível se compararmos à história oficial da colonização do Brasil desde a sua
‘descoberta’.
Figura 8- Início dos trabalhos da Abertura de Sinop, 1972
Fonte: Colonizadora Sinop S/A, 2011
Peripolli (2002) orienta que o discurso de progresso era comum ao momento
histórico que o país vivenciava, de um tempo em que se discorria muito sobre civismo,
patriotismo, ordem, progresso:
Que civismo? Que patriotismo? Que ordem? Que progresso? Falsos
conceitos, enganosos, pois milhares de pessoas foram arrancadas de sua
terra natal e levadas por falsas propagandas de uma vida melhor, sonho
de todo migrante, a uma região quase inabitável encontrando ainda mais
pobreza; período em que se falava em respeito às autoridades, que em
outras palavras significava a obediência cega, a submissão, pois as
61
decisões vinham de cima e não podiam ser questionadas. Não fugimos
aos apelos de “amor à pátria.” Que pátria? A pátria só aceitava quem a
amava a maneira dos militares? (“Brasil, ame-o ou deixe-o”). Apelo
enganoso, falso, uma vez que o país estava entregue aos interesses
internacionais (PERIPOLLI, 2002, p.118).
Faz-se necessário pontuar que, para que a missão de ‘construir uma cidade’ pudesse
ser concretizada, a Gleba já havia sido ‘aberta’ e ‘limpa’ pela frente de expansão, isto é,
“uma frente humana que foi desbravando e reconhecendo a região antes da chegada do
grande capital”. (SIQUEIRA; COSTA; CARVALHO, 1990, p. 262). Essa frente,
previamente fez o trabalho de preparar a terra para torna-la propícia à colonização,
eliminando aqueles que não eram ‘desejados’ naquele lugar, para que, então, os ‘espaços
vazios’ fossem ocupados pela frente pioneira, ou seja, pelo próprio processo colonizatório,
que transferiria grande contingente populacional, vindo de outras unidades federativas em
direção às terras preparadas anteriormente pelas frentes de expansão.
Com referência aos conceitos de frente de expansão e frente pioneira, para uma
melhor compreensão, lanço mão de José de Souza Martins (1975):
[...] frente de expansão expressa a concepção de ocupação do espaço de
quem tem como referência as populações indígenas; frente pioneira não
leva em conta os índios e tem como referência o empresário, o
fazendeiro, o comerciante e o pequeno agricultor moderno e
empreendedor [...].Frente de expansão’ é justamente o uso privado das
terras devolutas, em que estas não assumem a equivalência de
mercadoria. Por isso a figura central da frente de expansão é a do
ocupante ou posseiro. (Martins, 1975, p. 152)
O ponto chave da implantação da frente pioneira é a apropriação privada
da terra. Na frente pioneira a terra não é ocupada, é comprada. Desse
modo, a renda da terra se impõe como mediação entre o homem e a
sociedade [...] (Martins, 1975, p. 47).
Martins (1996), em outro trabalho, discutindo a questão da controvérsia sobre o
tempo histórico da frente de expansão e da frente pioneira, enfatiza que:
A distinção entre frente pioneira e frente de expansão é, na melhor das
hipóteses, um instrumento auxiliar na descrição e compreensão dos fatos
e acontecimentos da fronteira. É um instrumento útil quando as duas
concepções são trabalhadas na sua unidade, quando destaca a
temporalidade própria da situação de cada grupo social da fronteira e
permite estudar a sua diversidade histórica não só como diversidade
estrutural de categorias sociais, mas também como diversidade social
62
relativa aos diferentes modos e tempos de sua participação na História.
(MARTINS, 1996, p. 32)
João Mariano de Oliveira (1983), ao fazer um estudo sobre a pequena produção em
Mato Grosso, tendo como enfoque, o caso de Sinop, enfatizou que, se de um lado Mato
Grosso, com a política instaurada em 1964, surge como uma nova fronteira, não importava
que seus ‘desbravadores’ não fossem apenas empresários, fazendeiros, o que importava e
que também era fundamental, que essa frente pioneira fosse composta também por
pequenos produtores, proprietários privados ou não, uma vez que os ‘maiores’ precisavam
do trabalho dos ‘pequenos’. Porém, o autor enfatizou que, para o pequeno produtor
proprietário, que também comprava a terra, o sentido era outro:
Ele compra a terra com o objetivo de poder reproduzir-se como
camponês, com a esperança de que seus filhos possam um dia vir a ser
donos do chão do qual sai o suprimento de suas necessidades básicas, isto
é, tem sempre esperança de não ser um homem sem terra, no futuro.
(OLIVEIRA, 1983, p. 64).
Contudo, a partir abertura prévia de clareiras na grande floresta, com a demarcação
e traçado da cidade de Sinop, com tudo previamente planejado e estudado para o êxito da
empreitada de colonizar a Gleba Celeste, a empresa colonizadora, em 1972, colocou à
venda loteamentos da Gleba Celeste, primeiramente em Vera, Sinop e, posteriormente,
onde seriam instaladas as cidades de Santa Carmem e Cláudia.
Sinop recebeu esse nome em homenagem à empresa colonizadora. Como já dito,
em 1972, com as primeiras ruas abertas, era necessário começar a povoar aquele espaço. O
povoamento de Sinop se fez através da propaganda nas cidades da região norte e noroeste
do Paraná, originária da Colonizadora. Nas zonas rurais sulistas, onde pequenos
proprietários não conseguiam mais se manter, principalmente diante da modernização dos
grandes latifúndios, foi oferecida a proposta de troca de suas pequenas propriedades por
grandes proporções de terra, o que se apresentava, sem dúvida, fascinante e irrecusável.
De acordo com Peripolli (2002, p. 107), “a terra era vendida sob forma de pequenas
propriedades pelo preço à vista e/ou financiada pelo Banco do Brasil, num prazo que ia de
seis meses a dois anos”.
A terra da região norte de Mato Grosso era anunciada pelas propagandas como
adequada à cultura agrícola, sendo que o sonho de melhorar as condições de vida era
garantido. A esperança de encontrar em Sinop o ‘lugar ideal’ se consolidava na aquisição
63
de maior extensão possível de terra ofertadas pela empresa colonizadora. “Mais do que
uma promessa de riqueza, a propaganda da colonização significava àquelas famílias a fuga
da pobreza e da miséria em suas regiões de origem”. (LORD, 2011, p. 179). Nas
lembranças da Profª. Maria Lúcia Braz é possível perceber o quanto os pequenos
proprietários, ou mesmo os colonos31
trabalhadores se vislumbraram com a ideia de trocar
o que tinham por algo muito maior, que poderia gerar lucro certo:
Meu pai ficou entusiasmado com uma mata desta, para quem desbravou o
Paraná, quem chegou ao Paraná na época do mato, ficou todo
entusiasmado, por que lá ele não tinha a terra dele, lá a terra era muito
cara, lá ele abria a terra para os outros. Imagina, ele vendeu uma casinha
lá e comprou 50 alqueires aqui. Era um sonho! (BRAZ, depoimento
08/12/2012)
Diante disto, iludidos por um futuro promissor, por um desejo de conquista de
terras extensas e produtivas na região norte de Mato Grosso, os migrantes iniciaram sua
trajetória em busca daquilo que poderia finalmente ser a ‘Terra Prometida’. Picoli (2010),
metaforizando a busca pela terra sonhada, fez uma analogia da terra ao mel e do silêncio
ao sangue. Importa ouvi-lo:
A procura do “mel” é o objetivo de todos os migrantes, entretanto,
poucos conseguem alcançá-lo, uma vez que é um fruto enigmático. Por
outro lado, o sangue representa os silenciados, os que não conseguiram
vencer por meio do projeto de colonização [...] da Amazônia. Aqueles
que de certa maneira foram derrotados, calados, [...] no entanto, também
tem sua história, mas uma versão diferente, uma fábula raramente
contada pelos vencedores. (PICOLI, 2010, p. 37)
Contudo, o êxito desse processo deveu-se à parceria dos incentivos propostos pelo
governo federal, como também pelas experiências na colonização de várias32
cidades no
estado do Paraná que a Colonizadora Sinop adquirira em décadas anteriores, o que facilitou
certamente os procedimentos de atração e fixação do migrante sulista em solo mato-
grossense. Os empresários sabiam lidar com as estratégias de atração dos migrantes,
impulsionando, desta forma, colonos sem expectativa de melhores condições de vida na
região de origem a migrarem para a área a ser colonizada através, principalmente, de uma
propaganda massificante e enganosa. O ‘comendador’ Ênio Pipino, como era chamado,
31
O conceito de colono refere-se aos “agricultores que migraram para “regiões de fronteira” com o objetivo
de conquistar um pedaço de terra e se reproduzir enquanto categoria social” (ZART, 1998, p. 11). 32
A empresa Sinop S.A. havia colonizado, no estado do Paraná, as cidades de Terra Rica, Iporã, Formosa do
Oeste, Ubiratã, entre outras, nas décadas de 50 e 60.
64
era também conhecido como “Semeador de Cidades” (SANTOS, 2011), por sua
experiência e por ser um empreendedor ‘visionário’ na conquista de novas terras. Sendo,
portanto, um homem que realmente sabia como lidar com os migrantes. Conhecia as
formas e estratégias de como convencê-los a povoar as cidades colonizadas por sua
empresa. Como relata o Prof. José Roveri (depoimento apud LANDO, 2002):
O pior era que as pessoas não percebiam que era uma empresa privada
que estava ganhando dinheiro com isso. [...] Alguns percebiam, e os que
percebiam sofriam muito com isso; os que não percebiam iam na
ideologia de que era um herói33
realmente, que era uma pessoa dotada
de um espírito altruísta muito grande que vinha lá para salvar as pessoas,
que tirava pessoas da fome do sul do país para trazê-los ao eldorado, na
verdade não era nada disso... Não era nada disso. Tiravam-se as pessoas
de um celeiro, dum lugar que tinha uma produção fantástica: como é o
Paraná, o norte, o noroeste, o sudoeste do Paraná, o Rio Grande do Sul,
Santa Catarina; com uma propaganda muito bem engendrada, muito bem
feita, levava-se... vendia-se pedaços de terra para essas pessoas em
Sinop, e quando lá chegavam e tentavam empregar os mesmos métodos
de cultivo do sul, a decepção era terrível, porque em Sinop a terra sem
adubo não dava nada, absolutamente nada34
.
Desse modo, com a intensa propaganda, Sinop foi atraindo centenas de pessoas que
vendiam os poucos bens e posses, adquiridos no lugar onde residiam, e embarcavam
“literalmente em uma viagem onde a maior bagagem era a família e a esperança”. (LORD,
2011, p. 179)
Com o traçado privilegiado da BR-163, que corta a cidade, Sinop se tornou polo da
Gleba Celeste, apresentando crescimento populacional contínuo e elevado. Migrantes
chegavam todos os dias e, sem ter onde morar, permaneciam em barracas de lona até a
madeira ser cortada e construída sua casa.
Havia muito trabalho pela frente, a colonizadora tinha muito a construir e durante
esse momento inicial ficou acampada num barracão, com mais de trezentos homens
trazidos para trabalhar na construção da cidade, máquinas e equipamentos necessários para
a construção da área urbana e rural. Era preciso “erguer” casas, igreja, escola, banco,
correio, pequenos salões comerciais para atender a população que chegava. Ruas e
avenidas em construção - era um verdadeiro ‘canteiro de obras’, e, mais do que isso, era a
‘colonização como missão’ o que cabia àqueles homens.
33
Referindo-se ao colonizador Ênio Pipino. 34
Depoimento do ex-professor José Roveri, concedido a Lando (2002).
65
Em pouco tempo a cidade já poderia ser inaugurada. Assim, em 14 de setembro de
1974 Sinop foi oficialmente fundada.
Para manter as tradições, “repetindo o ritual do processo de ocupação do território
brasileiro, a fundação da cidade foi marcada pela celebração da primeira missa” (SOUZA,
2006, p. 20). Houve no dia um desfile cívico na principal avenida de chão batido, onde
todos os alunos da Gleba Celeste, impecavelmente uniformizados, com vestimenta
providenciada pela colonizadora, trazida diretamente da cidade de Maringá-PR,
marcharam ao som da banda da Polícia Militar de Cuiabá para recepcionar as autoridades
presentes, em frente ao palanque oficial. Os colonizadores Ênio Pipino e João Pedro
Moreira de Carvalho e o representante governo federal, Rangel Reis, ministro do interior.
Dando sequência ao ritual, foi servido “o almoço de confraternização, graciosamente
oferecido pela Colonizadora SINOP – o peão e o diretor sentados lado a lado, davam-se as
mãos e saudavam-se, o sorriso dos vencedores, a igualdade aparente entre as diferenças já-
dadas”. (TOMÉ, 2006, p. 20).
Figura 9- Banda da Polícia Militar de Cuiabá, 1974
Fonte: Colonizadora Sinop, 2012
66
Figura 10 - Missa de Fundação de Sinop, 1974
Fonte: Colonizadora Sinop, 2012
Figura 11- Almoço de celebração da Fundação, 1974
Fonte: Colonizadora Sinop, 2012
Nas palavras da Profa. Terezinha Pissinati Guerra: “Depois da fundação, Sinop
explodiu” (GUERRA, depoimento 25/01/2012), e, realmente, famílias chegavam todos os
dias atraídos pelas propagandas, ou porque ficavam sabendo, por parentes ou amigos, que
67
naquele lugar um futuro próspero lhes era garantido – “meu pai, ouvindo falar que aqui
ganhava-se muito dinheiro, que era muito bom e tal, que a terra era promissora, decidiu:
vamos arrumar as malas e ir para lá!” (PONCE, depoimento 23/01/2012).
Desse modo, o crescimento acelerado e as dificuldades presentes em Sinop,
principalmente pela distância da Capital e do município de Chapada dos Guimarães, à qual
Sinop pertencia, fizeram germinar as primeiras discussões sobre sua possível emancipação
política. Assim, em 29 de junho de 1976, Sinop foi elevada à categoria de Distrito, pelo
então Governador Garcia Neto, através da Lei 3.754, de 29/06/76, passando seus cidadãos
a exercer o direito de escolher os representantes legislativos do município (SANTOS,
2011).
Contudo, em 17 de dezembro de 1979, pela Lei Estadual 4.156, assinada pelo
Governador Frederico Campos, a cidade obteve sua emancipação política, deixando de
pertencer ao Município de Chapada dos Guimarães, que englobaria as localidades de
Santa Carmem, Vera, Cláudia e também Marcelândia (SANTOS, 2011).
Todavia, no discurso oficial sobre os primeiros anos de colonização, todos os fatos
“são como flores”. Histórias gloriosas, triunfantes perpassam décadas, ensinando às novas
gerações que o progresso do presente se deveu tão somente ao ‘espírito bandeirante’ dos
homens do passado, à visão empreendedora dos ‘colonizadores e desbravadores’.
Meios de comunicação em geral, poderes públicos e ainda a própria empresa
colonizadora apresentam Sinop sob os slogans: “a capital do Nortão”, “a futura metrópole
do norte de Mato Grosso”, “uma promessa que já se tornou realidade,” “a cidade do
hoje,”35
entre outras qualificações. Enchendo de orgulho seus cidadãos, difundindo uma
ideia de cidade sem problemas, nem diferenças sociais ou miséria, mantedora dos bons
costumes e tradições sulistas, onde a ‘riqueza’ é usufruída por ‘todos’, porém somente o
branco é o cidadão que aparece.
Essa é a imagem de Sinop propagada no passado que perpetuada no presente – uma
cidade projetada, com largas avenidas, onde os belos edifícios e modernas construções
arquitetônicas expressam uma cidade ‘rica’. O discurso de um futuro promissor, como
anunciado no passado, é ainda garantido para todos aqueles que chegam no presente.
35
Títulos atribuídos a Sinop e divulgados em revistas, jornais e outros meios de comunicação de veiculação
regional, nacional, assim como em alguns casos internacionais.
68
Figura 12- Matéria de veiculação nacional sobre Sinop
Fonte: Revista Veja, Edição n º 2180 de 01/09/2010
Figura 13- Vista área de Sinop, 2010.
Fonte: http://www.visitesinop.com.br
Neste sentido, a história de Sinop estampada ainda hoje é a do discurso oficial,
“cidade menina que em breve se tornará metrópole”36
tem por base a trajetória dos
vencedores, daqueles que tiveram sucesso, cujos filhos mais tarde se tornariam os
“doutores” da cidade - a história contada é a dos “atores de nome próprio e de brasões
36
Revista Notícia do Estado de Mato Grosso. Porto Alegre: PRC LTDA, Ed. 106, Ano XVII, out, 2011.
69
sociais” e não dos “figurantes, da multidão de heróis quantificados que perdem nomes e
rostos tornando-se a linguagem móvel de cálculos e racionalidades que não pertencem a
ninguém” (CERTEAU, 1998, p. 57-58).
Nessa medida, a história dos tempos difíceis é silenciada, fazendo com que na
memória dos próprios migrantes a ‘alegria’ do crescimento da cidade seja maior do que o
sofrimento que eles próprios passaram.
Nos diversos relatos orais percebeu-se que a lembrança dos ‘tempos difíceis’ está
‘escondida’, a memória parece perder-se em relação aos momentos de dificuldades,
incertezas ou frustrações, – “Viemos com tanta vontade de trabalhar, de mudar de vida,
que nada daquilo me assustou, não tenho lembranças ruins”. (GOBBO, depoimento
14/01/2012). Diante disso, pode-se inferir que:
O suporte material das lembranças da chegada não mais existe, a imagem
da cidade, sob o impacto da velocidade das realizações materiais,
substituiu a paisagem que ali haviam encontrado. A “nova terra” não
mais se interessa pelo sofrimento passado, a história presente é a do
triunfo. Ela vem celebrada pelo fervor do progresso. (GUIMARÃES
NETO, 2002, p. 81)
Habitualmente, as situações difíceis ou as condições desfavoráveis e adversas que
foram enfrentadas ficam aquém da memória com o passar dos anos, porém, não são
completamente apagadas, mas reaparecem com saudosismo e até mesmo são lembradas
como marcas de superação, com alegria e bom humor. Isso foi percebido no decorrer do
processo de entrevistas – o esquecimento, como sugere Le Goff (1996), é um dos diversos
“mecanismos de manipulação da memória coletiva”. Assim, diante de uma ideologia que
atenda aos interesses de certos grupos, “essa ferramenta é eficaz a partir do momento que
ameniza os tempos de dificuldades e privações e conserva na memória a lembrança de
conquista de superação”. (BONI, 2010, p. 16).
Nessa direção, Guimarães Neto (2002, p. 163, grifos da autora) enfatiza que as
lembranças dos migrantes, seus desejos e esperanças, medos, revoltas, enfim, as suas
experiências, foram sendo pisoteadas pela marcha do progresso:
O sonho da terra prometida teve seus fragmentos transpostos para um
tempo indefinido, para algum canto de um tempo sem fim. Destituíram os
referenciais que marcaram os “tempos difíceis e instituíram os sinais
codificados de uma história linear, em que cada acontecimento passado é
70
demonstrativo de uma só trajetória: a construção da cidade pelas
aquisições contínuas do progresso.
Com isso, a outra história, a da ‘colonização como missão’ aparece sempre mais
forte e absoluta, impedindo as lembranças da história dos migrantes, como explica
Marilena Chauí (1983, p.19), “as lembranças pessoais e grupais são invadidas por outra
história”, ou seja, “por uma outra memória que rouba das primeiras o sentido, a
transparência e a verdade”.
A memória, então, “designa um ponto de resistência, uma coragem e uma
possibilidade única de redimir o passado, trazer alguma esperança e acordar vozes que uma
história triunfante esmagou”. (GUIMARÃES NETO, 2002, p. 163).
Do lado oficial, para o Estado e para o colonizador, permanece na imagem do
passado, aquilo que caracterizou o início do progresso. Do lado dos migrantes, o
crescimento da cidade leva ao esquecimento “das feridas passadas, que restam apenas
como cicatrizes, sulcos na terra, por onde desabrocham, ou abortam as luzes do progresso”.
(GUIMARÃES NETO 2002, p. 81). Um progresso, que, como temia e já previa o poeta,
derrubou o onde se ia, e fez, com que toda aquela gente desde então, não mais voltasse ao
“bom-dia” de cada dia.
1.4. “Vamos embora para o Mato Grosso!37
”
37
Depoimento Ponce, 2012.
71
Figura 14 - Família em Sinop, 1973
Fonte: Colonizadora Sinop, 2011
Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.
(Cora Coralina, O cântico da Terra, 2004)
Discutiremos neste item a realidade com que os migrantes se depararam e seu
reflexo diante do sonho que haviam projetado. Tal discussão se faz importante, pois
pretende analisar os reflexos que o cotidiano daquela sociedade teve sobre a escola, sobre a
educação dos filhos dos migrantes, sobre as astúcias, as artes de fazer, a invenção e
reinvenção de táticas fabricadas por aqueles sujeitos que buscavam transformar, aos seus
modos, as estratégias que lhes eram impostas, ou seja, a ordem efetiva das coisas.
72
Assim, pôde-se compreender, a partir do diálogo com fontes escritas e orais, assim
como na revisão bibliográfica, que no decorrer dos primeiros anos de colonização, entre
1972 a 1979, os migrantes passaram por muitas situações difíceis, muitos momentos
conflituosos. Trata-se de histórias que não são contadas pela versão oficial, veiculadas nos
materiais didáticos distribuídos e trabalhados nas escolas. Muita informação é omitida,
inclusive histórias que custaram vidas. Entretanto, como nos ensina Certeau (1998, p. 77),
“a vida não se reduz àquilo que se vê”, deste modo, o presente item tem como intuito
propor algumas discussões sobre aquilo que ‘não se vê’ e que ‘não se fala’ em relação à
vida cotidiana dos homens comuns inseridos no tempo-espaço desta pesquisa. Como
menciona Assis (2002, p. 14), “é a vida constituindo-se num outro lugar”.
A imagem ilustrativa da sessão nos faz refletir um pouco sobre as condições que
viviam muitas das famílias migrantes: as crianças descalças, vestidas com roupas
praticamente iguais, feitas de um mesmo tecido. O pai, como chefe da família, era o
modelo de trabalho e coragem para os filhos; a mãe, protetora e companheira, era o
exemplo de fé e perseverança naquele lugar ‘desconhecido’. Dentre as muitas famílias
migrantes no período investigado, a história se repete como a da fotografia: uma jornada
longa, dias de sofrimento na estrada para chegar até o local escolhido para o ‘recomeço’ da
vida; as moradias precárias – barracos de lona, ou casinhas simples de madeira muitas
vezes doada pela própria colonizadora; a falta de alimentos, obrigando-se a “comer, no
café da manhã, no almoço e no jantar, o milho trazido do Paraná, socado com açúcar, pois
era a única coisa que tinham”38
, além dos perigos e doenças às quais estavam expostos ao
meio da floresta. Detalhes invisíveis, que não se contam, mas que se revelam na escrita
desta história.
A começar, pela longa viagem que as famílias precisavam fazer para chegar a
Sinop. A maioria utilizava como meio de transporte o caminhão, como relata o migrante:
“levei oito dias pra vim de Cuiabá com caminhão, (...) era fila de caminhão de 40, 50
caminhões encalhados na BR-163 (MODANESE, depoimento apud LANDO, 2002).
Além da família, traziam os poucos móveis, roupas, mantimentos e, quando
possível, animais domésticos, especialmente aqueles que poderiam garantir-lhes a
sobrevivência, como vacas e galinhas. A viagem levava mais de uma semana e era
desgastante. O cansaço da travessia era adicionado aos receios frente às situações que
podiam encontrar frente ao novo, ao desconhecido. A bagagem principal era, sem dúvida, a
38
Cf. Braz, depoimento em 08/12/2011.
73
fé e a esperança de encontrar naquela desconhecida região a concretização de um sonho, de
uma utopia projetada.
Figura 15- Mudança de uma família de agricultores chegando em Sinop, 1973
Fonte: Patrimônio Histórico de Sinop
Somente em 197639
a empresa de transportes Expresso Maringá passou a fazer o
trajeto Cascavel-Sinop. Assim, muitas famílias que não tinham recursos para vir de
caminhão optavam por fazer a viagem de ônibus, para diminuir os custos da mudança –
“aquele ônibus vinha carregado de galinhas, de tudo que é trem que tinha dentro,
então, era aquela loucura”. (SÃO JOSÉ, depoimento apud LANDO, 2002)
Quando os migrantes chegavam à cidade, após longa e exaustiva viagem,
geralmente não tinham onde morar, sendo necessário se instalar debaixo de barracões de
lona ou se instalar na casa de algum parente ou amigo próximo, até que a madeira fosse
cortada e a casa erguida. Porém, isso não acontecia rapidamente. Muitas vezes duravam
meses ou, em alguns casos, demoravam de dois a três anos, dependendo das condições
financeiras da família para a aquisição da madeira, ou para o pagamento da mão de obra,
apesar de que, na maioria das vezes, o pai, na condição do homem da família, construía a
39
Cf. Souza (2006)
74
moradia, aprendendo as funções de carpinteiro. Contudo, nas narrativas, as condições de
moradia se repetem:
Eu tinha só cinco anos... nós fomos morar na serraria quando chegamos
aqui, a serraria era coberta com lona, tudo bem simples.... tinha um
barracão ao lado que era coberto com Eternit e era de madeira, foi ali que
colocamos a mudança e ficamos naquele barracão até construir a casa.
(PONCE, depoimento 21/01/ 2012)
Fizeram barracos de lona para as três famílias e para mais uma irmã
casada que veio junto, então eram quatro famílias, morando junto, se
instalaram debaixo daqueles barracos por que o financiamento só saía
depois de uma etapa de mata derrubada [...] era preciso derrubar o mato
com machado para cumprir o tanto de alqueires para poder sair o
primeiro financiamento para a aquisição da terra, para então começar a
plantar [...] (BRAZ, depoimento 08/12/ 2011)
Chegamos aqui, nossa casa não estava pronta, tivemos de deixar nossas
coisas na casa do senhor Plínio Calegaro, não tinha nem água... só poço,
tinha de tirar água com o balde puxar com as mãos... água do poço.
(GOBBO, depoimento 14/01/ 2012)
Entretanto, o momento da chegada representava o tempo de maiores sacrifícios,
porém,
[...] sabiam que para fazer parte de uma obra “daquela grandeza” teriam
que enfrentar as adversidades que a floresta oferecia, as doenças e a
fome. Haviam se despojado de tudo e, quando identificavam o fim da
jornada, colocavam toda a sua determinação em ficar e trabalhar...
trabalhar com muita fé. (GUIMARÃES NETO, 2002, p. 72, grifo da
autora)
75
Figura 16- Moradias de Famílias em Barracões de Lona, 1973
Fonte: Colonizadora Sinop, 2011
Outra dificuldade encontrada pelos migrantes estava em relação aos meios de
comunicação. Com exceção da Rádio Nacional de Brasília, não havia outro meio de se
atualizar sobre os acontecimentos nacionais e internacionais, conforme lembra a Profa.
Maria Lúcia Braz: “a gente ficava desinformada da notícias do mundo, só tinha a rádio
Nacional de Brasília, não tinha televisão, jornal, não tinha nada...ficávamos completamente
fora do mundo”.
Segundo Souza (2006, p. 156), o desafio de adaptação ao novo ambiente norte
mato-grossense era grande: após longa viagem até a nova fronteira, a ocupação da área
comprada da empresa colonizadora, as primeiras matas derrubadas, começavam a surgir as
primeiras decepções pelas dívidas contraídas no processo de produção agrícola, saudade
dos parentes, excessivo calor, falta de conforto. Esse cenário provocava situações
conflituosas e duvidosas em relação ao novo lugar escolhido para viver. Entretanto, “o
intenso trabalho foi a maneira encontrada pelos colonos para esquecerem o sul”.
Em relação ao termo ‘saudade’, a antropóloga Gláucia de Oliveira Assis (2002), ao
analisar a experiência de emigração de brasileiros para os Estados Unidos, especialmente a
partir da década de 1980, diz que caracteriza-se por uma expressão que define um estado
d’alma e um sentimento de dor, de angústia, de nostalgia provocado pela distância, pela
ausência, pelo desejo de estar num outro tempo e lugar.
Desta forma, as palavras recorrentes nos depoimentos oferecidos, as quais se
associam à saudade, expressam-se em: familiares, terra fértil, as condições de vida que
76
tinha no sul, a alimentação, o clima, os amigos, a esperança de reencontro com aqueles que
ficaram.
A autora ainda explica que falar da saudade traz o apelo de não ser esquecido e
que descrever esse sentimento é demonstrar que o tempo não passou para aqueles que
ficaram. Dessa forma, o estranhamento e talvez um certo vazio acontecem quando
aquele que migra percebe que os seus próprios sentimentos vão se modificando com o
passar do tempo.
Em relação a essa discussão, Guimarães Neto (2002, p. 65) considera que “os
colonos quando venderam o pouco que tinham, ou simplesmente largaram para trás
coisas que possuíam, lá deixaram partes de si mesmos. As poucas que vinham consigo
eram como lembranças soltas, ou talvez, trapos de lembranças!”
Muitos migrantes, atraídos por uma propaganda ilusória e por um sonho comum,
vinham em busca daquilo que seria a Terra Prometida, juntavam o que era possível trazer
na bagagem, vendiam o que tinham no sul e, com suas famílias, diziam: “Vamos embora
para o Mato Grosso, para ter uma vida melhor!” (PONCE depoimento 21/01/2012).
Ao chegar naquele local desconhecido, era necessário não apenas reaprender a
viver diante das novas circunstâncias da realidade encontrada, mas também aprender a
conviver com os sentimentos de saudade, de recordações de familiares, enfim, com os
“trapos de lembranças”.
Ainda, como mostram os estudos de Tomé (2006, p. 26) e também a partir dos
depoimentos orais de colaboradores desta pesquisa, a sobrevivência no início de
colonização foi seletiva: alguns tiveram de perder suas vidas, outros de sair ou deixar de
comer para que membros da família ou amigos sobrevivessem. Para fazer as derrubadas,
“muitos corriam risco de vida, alguns até morriam embaixo de árvores, outros se
machucavam, quebravam uma perna, [...] às vezes quando a gente lembra assim, até se
emociona”. (SILVA, depoimento apud LANDO, 2002).
As condições mínimas para sobrevivência não foram iguais para todos. A pouca
comida que chegava nas localidades era distribuída entre todos. A venda dos produtos
alimentícios muitas vezes era racionada ou eram eles contados por família, além de serem
muito caros para a época, uma vez que pequenas mercearias locais elevavam os preços
77
devido à sua escassez. A opção era, então, esperar pelas mercadorias trazidas pelos
famosos aviões búfalos40
, distribuídas no armazém da COBAL41
:
E, nós por exemplo, pobres, nós tínhamos direito de uma lata de
azeite, um quilo de farinha de trigo, um quilo de feijão, um
macarrão, tudo um quilo, dava mais ou menos uns doze quilos, mais ou
menos, que podia levar; mais nada! (...) eles te pediam: quem tu era?
quem era teus filhos? Faziam um tipo de cadastro, pra você não mandar
um filho logo depois ou a mulher pra pegar mais. Mas, cada dia eu
chegava em casa e os filhos pediam: ‘pai, eu quero pão’. Mas não tinha
farinha pra fazer. (MODANESE, depoimento apud LANDO, 2002)
Também a madeira cortada deveria servir a todos na construção das casas. As
famílias ajudavam-se mutuamente, tanto de forma material como de forma a compartilhar
com os momentos difíceis. Deste modo, “os poucos recursos, assim como as poucas
facilidades eram motivo de solidariedade entre todos” (TOMÉ, 2006 p. 26).
Nesse contexto, percebe-se nas narrativas o clima de solidariedade entre as
famílias, a receptividade que existia nos primeiros anos de colonização. As pessoas se
reuniam para conversar, para fazer troca de mercadorias, para fazer ‘novenas’42
, para
combinar os trabalhos da igreja, da escola, ou simplesmente para verificar se alguém da
comunidade precisava de algo:
Na cidade era uma cordialidade, uma união, um ajudava o outro. O padre
da época era o Pe. João Salarini. Quando chegava uma família nova ele
vinha falar: olha chegou família tal, vocês já foram visitar? Este era o
papel dele na sociedade de Sinop, ele procurava saber o que a família
estava precisando e ia atrás. Ele ia por estes matos e trazia caju, manga
para as crianças. (GOBBO, depoimento 14/01/2012).
Todos se ajudavam. Como todo mundo se conhecia, era fácil ficar
sabendo quando alguém precisava de ajuda. Era um clima muito bom de
união, dá saudades. (GUERRA, depoimento 25/01/2012).
40
Aviões da Força Aérea Brasileira – FAB. 41
Companhia Brasileira de Alimentos implantada em Sinop em 1975. 42
Termo Religioso para se referir ao período de devoção e oração pública ou particular com a duração de
nove dias. É empregada no catolicismo como um período no qual se obtêm graças especiais. Origina-se do
fato de os apóstolos terem-se reunido para rezar durante os nove dias entre a Ascensão e Pentecostes. Fonte:
http://www.dicio.com.br
78
Com referência, Vitale Joanoni Neto (2012) explica que nas áreas de fronteira a
comunidade de vizinhança foi a forma de organização mais comum entre as pessoas,
fossem pequenos proprietários, posseiros ou colonos:
Foi a reprodução em micro escala, da instância pública. A comunidade é
a tutora do bem comum, através dela direcionam-se os esforços coletivos
para a construção e manutenção de escolas, igrejas, lazer, garantias de
direitos frente ao Estado ou a outros interesses exteriores ao grupo. As
regras de convivência podem variar de acordo com as exigências e os
contextos dados pela situação do grupo, mas de modo geral, o trabalho
em mutirão, o cuidado e a educação dos filhos, o zelo e respeito para com
as famílias, estão presentes nestes grupos como tarefas de todos.
(JOANONI NETO, 2012, p. 8).
O que influenciou seu surgimento foi “a extrema carência daquelas pessoas, a
ausência do poder público e a proximidade física, mas esses fatores não são fixos”. No
caso de Sinop, assim como o da cidade de Juína, citado por Joanoni Neto:
[...] o poder público estava presente, mesmo que precariamente, por meio
da empresa colonizadora, ligada ao governo estadual. As distâncias entre
as pessoas, por vezes resultavam em empecilhos para a agregação. Nesse
momento a Igreja Católica se colocou como elo oferecendo o pretexto
para a constituição dos grupos. As rezas foram inicialmente usadas para a
sua formação, daí seguia-se o trabalho em mutirão para a construção de
escolas, o lazer, a convivência. (JOANONI NETO, 2012, p. 8).
Contudo, outro ponto ‘esquecido’ de ser contado pela história oficial se dá em
relação aos problemas de saúde que a população enfrentava. A falta de água tratada, a
escassez de alimentos, os períodos de estiagem, de poeira, os longos períodos chuvosos, a
ausência de saneamento básico, picadas de insetos ou de animais peçonhentos, os acidentes
na mata, dentre outros, ocasionaram diversos problemas de saúde, sendo esses tratados de
forma precária devido à falta de subsídio que pudessem atender a saúde da população de
forma digna. O hospital mais próximo se localizava na cidade de Vera, a 80 quilômetros de
distância, porém, os casos mais graves somente poderiam ser atendidos na capital, Cuiabá,
a 500 quilômetros de distância (Anexo 1), sendo que, muitos casos graves não se
conseguiam chegar a tempo, devido à distância, como também pelas condições
intransitáveis da estrada, principalmente no período chuvoso, levando a pessoa doente a
óbito a meio caminho.
A incidência da malária também foi significativa, pelo número acentuado de casos,
por ser doença endêmica na região, fazendo muitas vítimas fatais, o que obrigou o governo
federal a instalar na cidade, em 1974, um posto da Superintendência de Combate à Malária
– SUCAM, que ficou em funcionamento até a década de 1980 (SANTOS, 2011).
79
Diante das circunstâncias apresentadas que dificilmente são contadas pela história
oficial, pois o discurso do Progresso se sobrepõe às histórias dos silenciados, daqueles que,
como discutido, enfrentaram fome, perigo, doença, ou daqueles que não suportaram a vida
em Sinop no período inicial, retornando de ‘cabeça baixa’ e como derrotados, de volta para
sua terra natal.
Os migrantes que não conseguiram se adaptar ou que não conseguiram se manter às
novas formas de sobrevivência eram desqualificados pelo discurso oficial, pois nada
poderia atrapalhar o interesse de mostrar a todos o êxito da colonização. Picoli (2005, p.
75), em relação a esta discussão nos diz que:
[...] os colonos fracassados voltavam estrategicamente, no ponto de vista
do Estado [...] como derrotados, incompetentes e sem vontade de
trabalhar. Assim, a história que deveria ser contada à população era a de
sucesso daqueles que ascenderam econômica, política e socialmente. Não
pode ser contada a história dos demais, daqueles que foram calados [...],
ou até mesmo de milhares de trabalhadores e suas famílias que perderam
suas vidas e não estão na história oficial.
Além disso, muitos colonos que haviam adquirido terras com financiamento do
Banco do Brasil não conseguiram saldar suas dívidas devido aos altos juros, às decepções
das colheitas, aos baixos preços dos produtos no mercado, não restando alternativa a não
ser passar suas terras adiante para aqueles que detinham maiores bens, partindo, então,
outra vez em busca de um novo ‘lugar ideal’, deixando Sinop e indo em direção aos
estados Rondônia, Acre, Amazonas, ou mesmo voltando para o lugar de origem, sob o
‘estigma’ de incompetentes e fracassados. Assim, “a modernização da agricultura no sul
do país já havia expulsado esses agricultores e o aceno de um futuro melhor que lhes fôra
dado pelos projetos de colonização, no Mato Grosso deixava-os novamente na estrada, sem
rumo”. (PERIPOLLI, 2002, p. 108).
Contudo, o objetivo da colonização esteve desde o início ligado ao cultivo do café,
que na época era o principal produto de exportação do Paraná, de onde precedia a sede da
colonizadora, porém, a iniciativa não deu resultado, levando muitos colonos à falência,
quando as plantações foram totalmente erradicadas devido à baixa produtividade, às terras
pobres, às doenças e ao clima adverso (PERIPOLLI, 2002), como recordam a Profa.
Terezinha Pissinati Guerra e o Prof. José Roveri:
80
[...] nas propagandas tudo dava...o meu sogro plantou milho e morreu
tudo! O pasto morria tudo [...], a única coisa que deu no início foi um
pouco de café, mas logo depois não dava mais, depois a mandioca que
até fizeram o negócio da agroquímica, mas não deu nada...então, como
não dava nada a agricultura, foi onde o povo partiu para as
madeireiras...tinha muita floresta, a madeira tinha preço, tinha saída,
exportação... assim, todo mundo partiu para a madeira...grandes
madeireiros hoje chegaram aqui sem nada! Como muitos não podiam
voltar, ou trabalhava com a madeira ou voltava, mas era difícil para
voltar, [...] foi muito difícil! (GUERRA, depoimento 25/01/2012)
Tinha um café perto do cemitério, chamado café do seu Germino, onde a
colonizadora pagava pra que ele adubasse aquilo, de uma maneira
assim... exageradamente, tinha meio metro de serragem enterrada,
esterco de [...] natureza, pra que o café crescesse. Primeira coisa que se
fazia ao chegar o incauto comprador de terra era leva-lo ao café do
Sr. Germino, pra mostrar que aquilo era uma maravilha, e filmava-se,
tirava-se fotos, colocava em jornal, em televisão, uma propaganda
massificante, terrivelmente massificante, de modo que as pessoas
achavam que estava aqui realmente... é... a terra abençoada por Deus, né?
E a nível de fertilidade do solo não era nada disso. A dificuldade
naquela época era terrível, era inimaginável. (ROVERI, depoimento
apud LANDO, 2002)
Os colonos, desiludidos com a inviabilidade da lavoura, já não se sentiam
propensos a plantar e muitos deles desistiram, deixaram seus sonhos agrícolas para trás e
buscaram outras alternativas, vendendo sua força de trabalho no setor madeireiro de Sinop
e da região (SOUZA, 2006).
Assim, a tentativa frustrada na década de 1970, em terras do norte de Mato Grosso
fez com que muitas pessoas que não tinham condições de voltar para seu lugar de origem,
ou mesmo tentar a vida em outro Estado, passassem a trabalhar com a madeira,
significando assim, uma nova chance de, naquele momento, continuar a viver em Sinop. A
cidade foi então, “ocupada rapidamente por serrarias que foram sendo montadas. O que fez
da região um grande polo econômico, tendo como base da sua economia, a indústria
madeireira”. (PERIPOLLI, 2002, p. 107).
Vale ressaltar que, como explica Pereira (2007, p. 29), “essa caracterização
extrativista de madeira é um marco presente em nosso país, pois o Brasil tem a sua
história colonial marcada por grande extração de pau-brasil”. A autora ainda pontua
que “atualmente, essa atividade é representada pela retirada de outras espécies
reivindicadas pelo mercado, como mogno, cedro, peroba, angelim”. Contudo, “essas
81
ações contribuem com a descaracterização ambiental, gerando riquezas momentâneas
com grandes prejuízos futuros”.
Souza (2006) explica que muitas madeireiras se implantaram na região para atender
ao ideário militar de colonização e ocupação ao longo das rodovias federais recém-
implantadas, incentivando a ‘ocupação’ da terra e a exploração da madeira
disponíveis naquelas áreas. Desse modo, a indústria madeireira se firmou como polo
econômico da cidade a partir de 1980.
No processo produtivo de sua extração, a família foi o centro estratégico da
colonização norte mato-grossense. Como relata Lord (2011), o homem assumia o papel
principal na oferta da mão de obra, sendo obreiro e produtor da transformação e domínio
humano sobre a natureza local. A mulher ocupava o espaço do lar, cabendo-lhe o cuidado
com os filhos e a proteção e alimentação do marido, que acordava cedo para enfrentar a
derrubada da mata. Assim, o migrante que veio para o norte de Mato Grosso com o
objetivo e o sonho de melhorar a vida através da agricultura, precisou aprender a lidar com
o trabalho de extração da madeira, “ou trabalhava com a madeira, ou voltava” como nos
lembra a Profa. Terezinha Pissinatti Guerra (depoimento 25/01/2012).
Nas palavras de Ivelise Cardoso Pereira (2007, p. 37):
O caminhar, o tempo, a extração da madeira, a forma como Sinop se
constitui, transforma o espaço da floresta, e as grandes árvores
tombam como tombam sonhos, histórias, vidas. A floresta ganha um
novo pulsar, uma forma diferente de viver e progredir. Homens e
mulheres redirecionam o caminhar da floresta.
E, nas recordações do ex-professor José Roveri43
, naquele cenário os migrantes
eram movidos simultaneamente por sentimentos de esperança e desesperança:
Então, curiosamente, era uma cidade de muita esperança e de muita
desesperança, que vivia de momentos de injeção de ânimo do
colonizador, de autoridades que lá vinham, prometiam (...). Mas havia
uma desesperança muito grande, aí de vez em quando; quando a coisa
estava muito brava, vinha o colonizador, dava uma injeção de ânimo.
“Não, vocês se acalmem, que daqui uns tempos vai vir, que mês que
vem eu vou trazer ministro, vou trazer presidente da república”. Então
lá se torcia pra tudo: torcia pra chegar uma televisão; torcia pra ter água
encanada; torcia pra ter energia; torcia pra ter a ponte do Teles Pires;
torcia pra um dia ter asfalto; torcia pra vir mais uma serraria, pra
dar emprego; torcia pra descobrir uma variedade de semente que
produzisse, (...). E, vivia-se de novas injeções psicológicas, o povo
precisava ser constantemente alimentado por uma nova, uma nova
43
Cf. Depoimento concedido a Lando (2002).
82
ideia que viesse salvá-los de uma situação difícil. (ROVERI,
depoimento apud LANDO, 2002).
Em resumo, de acordo com Joanoni Neto (2012, p. 6), essa migração para o Centro-
Oeste foi, para muitos lavradores, uma peregrinação em busca da terra prometida, isto é, da
solução para seus problemas. “Sua chegada ao novo destino foi o ingresso ao lugar do
sonho, da utopia, constituído dos anseios que carregavam: possuir a terra, trabalhar para si,
fugir da proletarização, mas a propaganda que afirmava serem esses os locais onde a
concretização desse sonho seria possível”.
Há ainda que se referenciar as questões ligadas à educação, sendo esta, na visão dos
migrantes, o principal pilar do ‘futuro promissor’ a ser oferecido a seus filhos naquele
lugar desconhecido. Para tanto, quando chegaram em Sinop existia somente a promessa do
colonizador sobre a escola. Tiveram, assim, que construí-la com as próprias mãos e entre
eles mesmos decidir inicialmente sobre o direcionamento da escola. Entretanto,
abordaremos com maior ênfase esse assunto mais adiante, pois trata-se do momento em
que entra em cena a escola e com ela seus atores: alunos e professores, temática que desejo
pesquisar, como ‘colcha de retalhos’ que pretendo tecer através de um emaranhado de fios
guardados, esquecidos, em um tempo-espaço da história da cidade de Sinop.
Desse modo, frustrações, incertezas, desencontros e outros tantos sentimentos e
experiências marcaram o cotidiano daqueles homens comuns, ordinários44
. O confronto
com o desconhecido e estratégias que lhes foram fabricadas, fez com que aos seus modos
incorporassem práticas, manipulassem táticas, transformassem o meio, se adaptassem à
realidade, culminando, muitas vezes, na criação de novas regras, de novos meios de
convivência com o outro, de novas maneiras que possibilitassem a sobrevivência a partir
de uma perspectiva comum e coletiva.
Entende-se, assim, que “algo essencial se joga nesta historicidade cotidiana,
indissociável da existência dos sujeitos que são os atores e autores de operações
conjunturais”. (CERTEAU, 1998, p. 82)
Nesse sentido, Certeau (1998, p. 38) elucida que a base da vida cotidiana não está
na individualidade, mas sim no convívio social, nas regras e práticas sociais. O importante
nesse caso está nas relações sociais em si e não apenas na soma de individualidades. “A
44
O Termo ordinário se refere, para Certeau, ao homem comum.
83
questão tratada se refere a modos de operação ou esquemas de ação e não diretamente ao
sujeito que é o seu autor ou seu veículo”.
Desse modo, “[...] num processo de colonização supõe-se um desejo e uma
esperança. O desejo é socialmente produzido e a esperança é posta à prova dia a dia [...]
(SANTOS, 1993, p. 200). Tal afirmação nos faz refletir sobre os desejos projetados e
socialmente produzidos diante da realidade vivenciada por aqueles migrantes que
reproduziram a vida cotidiana na qual estavam inseridos.
Seus desejos eram simples e as esperanças grandes. Desejavam algo comum, num
contexto social em construção - um pedaço de terra, poder plantar e poder colher. E, assim
seguiam, mesmo diante das adversidades - recriavam os modos de viver na tentativa de
escapar das teias da conformação, da ordem estabelecida. Inventavam, transformavam a
realidade pela via das artes de fazer. Seus sonhos não eram o somatório de sonhos
individuais, mas constantemente refeitos em meio às relações sociais no convívio com o
outro. Desejavam não muita coisa: manter a família, dar de comer aos filhos, e “quem
sabe” ser “dono da terra” ou, tão somente, plantar a roça, lavrar a gleba, cuidar do ninho
[...] ter muita fartura, ser dono de sítios, ser simplesmente felizes45
. E, assim, continuar
vivendo - na invenção e reinvenção do cotidiano.
45
Cf. Versos de Coralina (2004)
84
CAPÍTULO II
Se não há escola, que inventemos uma!
Escola dos Migrantes. Claudevânia B. Anderle. Acrílico sobre tela painel, 80X60, 2012.
85
2.1 Das artes de fazer: A Reinvenção da Escola
Figura 17- Alunos, pais e professores em frente à escola em Sinop,
extensão da Escola N. Sra. do Perpétuo Socorro de Vera-MT, 1975
Fonte: Colonizadora Sinop
Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é
relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a
vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é
imaginação, é correr o grande risco de se ter a
realidade.
(Clarice Linspector, em A paixão segundo G.H, 1964)
A palavra ‘reinvenção’, aqui adotada, não pretende ser uma maneira ‘romântica’ ou
quiçá meramente poética para mencionar a escola, objeto da presente pesquisa. A
reinvenção é pensada como sinônimo de criação, revelando a capacidade inventiva do
homem sobre seu meio, suas artes de fazer.
‘Reinvenção’ deriva da palavra ‘invenção’ e, essa, em seu sentido etimológico, tem
origem do latim, invenire, que significa ‘conhecer’; ‘obter’, ‘adquirir’; ‘encontrar’, ‘vir
86
sobre alguma coisa’ (no sentido de que a invenção não vem do acaso, mas é como um
inédito que sobrevém de coisas que ali estavam ou restavam)46
.
Em consulta a um dicionário filosófico, encontramos a seguinte definição para a
palavra invenção:
INVENÇÃO: "Inventar alguma coisa" - Tradicionalmente, a capacidade
inventiva denomina-se gênio (v.). Os problemas relativos à Invenção
assumem aspectos diferentes nos vários campos: na lógica, têm sido
por vezes debatidos a propósito da tópica ou da intuição; na arte, a
propósito do gênio. (ABBAGNANO, 2007, p. 584)
Todavia, não se tem como pretensão definir esse conceito em único sentido, mesmo
porque nos apoiamos nas discussões pós-modernas47
que destinam um ‘novo’ olhar sobre
as questões definidoras dos conceitos com exatidão, considerando a polissemia das
palavras, a binaridade conceitual, a instabilidade da linguagem, a multiplicidade de
sentidos que um determinado signo pode conter. Ocorre, de acordo com Silva (2000), que
a linguagem, como sistema de significação é, ela própria, uma estrutura instável. É
precisamente isso que teóricos pós-estruturalistas, como Jacques Derrida (1930-2004),
orientam em suas obras – “A linguagem vacila”. Na ótica da filosofia proposta pelo autor,
pode-se dizer que o signo não é uma presença, ou seja, a coisa ou o conceito não estão
presentes no signo48
, ou ainda, como alerta o filósofo Gilles Deleuze49
, “as palavras nos
escapam”, afinal, “não dominamos com o olhar o uso de nossas palavras”.
(BOUVERESSE, 1971, apud CERTEAU, 1998, p. 69)50
. Nesse sentido, pode-se inferir em
relação à linguagem que:
[...] raras vezes a realidade da linguagem foi tão rigorosamente levada à
sério, isto é, o fato de ela definir a nossa historicidade, de nos superar e
envolver sob o modo ordinário, que nenhum discurso pode portanto “sair
46
Cf. MARTINEZ; CECCIN, (2011). 47
Nomenclatura primeiramente utilizada por Lyotard (1993; 2002) e Peters (2000). A pós-modernidade é
entendida neste contexto não como um “novo” tempo que surge porque o outro anterior se findou, mas como
um novo ‘olhar’, um novo ‘questionamento’ sobre a realidade que sempre nos foi posta. Para a história, a
pós-modernidade “trouxe questionamentos sobre a validade do método histórico, sobre os limites entre a
verdade e a ficção e reconduziu para o centro dos debates a questão da escrita da história”. (MASSARÃO,
1999). 48
Cf. SILVA, 2000 49
DELEUZE, 1988. 50
BOUVERESSE, Jacques. La parole matheureuse – Langage ordinaire et philosophie. Paris: Minuit, 1971,
p. 9.
87
dela” e colocar-se à distância para observá-la e dizer seu sentido.
(CERTEAU, 1998, p. 69)
Desse modo, se as palavras e seus sentidos já não admitem na contemporaneidade
definições fixas, ou seja, se eles ‘nos escapam’, se ‘não os dominamos com nosso olhar’,
elejamos então, na presente pesquisa-história, uma ‘didática da invenção’51
para pensarmos
o sentido de ‘reinventar’, de fazer e refazer o cotidiano a partir das necessidades humanas,
ou ainda, a partir das bricolagens, astúcias humanas de produzir e recriar a partir de um
produto que lhes fôra imposto, Certeau (1998) nos alerta que, a partir da inventividade
criadora que não apenas imagina, mas que ao imaginar, ao inventar, se busca correr o
grande risco de se ter a realidade. Com isso, peço licença à poetiza dos versos
introdutórios, para acrescentar que o risco corrido não se limita a ter apenas a realidade,
arriscando dizer que ‘criar é correr o risco de reinventar tal realidade!’ Realidade que
ousaremos chamar de lugar e espaço.
É esse assunto que desejamos neste momento discutir a partir do olhar que Certeau
direciona para o que considera lugar/espaço. Para ele, há uma dinâmica entre espaço e
lugar, declarando lugar como uma configuração instantânea de posição, sugerindo uma
indicação de estabilidade, sendo concebido o espaço como o lugar praticado,
havendo continuamente interatividade entre os dois termos52
. “Habitantes a todo
instante transformam lugares em espaços e espaços em lugares”. (MORAES, 2011, p.
49). Contudo, mesmo existindo essa influência de um sobre o outro, Certeau (1998) coloca
uma distinção entre espaço e lugar:
Um lugar é uma ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem
elementos nas relações de coexistência. Aí se acha, portanto, excluída
a possibilidade, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí
impera a lei do ‘próprio’: os elementos considerados se acham uns ao
lado dos outros, cada um situado num lugar ‘próprio’ e distinto
que o define. [...] O espaço é o cruzamento de móveis. É de certo
modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram.
Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o
circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em
unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades
contratuais. (CERTEAU, 1998, p. 201-202)
51
Manoel de Barros, poeta mato-grossense, com sua didática da invenção nos orienta a ‘desaprender’ as
coisas que aprendemos como únicas, como verdades absolutas. O poeta nos ajuda a repensar através de sua
poesia que desobedece à ordem estabelecida, que na medida em que os saberes modernos não são suficientes
ao homem, este precisa (re)inventar, ludibriar a realidade e criar versos que alarguem seu mundo, numa clara
tentativa de dar sentido a sua existência. 52
Cf. MORAES, 2011.
88
Nesse contexto, pode-se finalmente inferir que, para Certeau (1998), tanto as
noções de lugar (espaço próprio), como de espaço (lugar praticado) participam de um
mesmo processo. “Um lugar é, portanto, uma configuração de posição; ao mesmo
tempo, esse lugar, espaço ocupado, carrega consigo as relações entre os indivíduos que
ali convivem, fazendo dele um lugar praticado”. (MORAES, 2011, p. 50).
Desta maneira, neste ‘lugar que ao mesmo tempo é espaço’- a cidade de Sinop-MT,
é possível perceber o quanto as práticas cotidianas do homem ordinário estavam e se
faziam presentes, o quanto as relações entre os homens, seus encontros e trocas,
transformavam a todo instante seus espaços ocupados em lugares praticados e vice-versa.
A isso, que chamaremos aqui de cultura, nomearemos também de uma “incessante
aventura de invenção e reinvenção da qual somos ao mesmo tempo herdeiros e
propagadores”. (GIL, 2009, p.1).
Todavia, a palavra cultura caracteriza-se como um termo polissêmico, complexo,
uma vez que vem sofrendo modificações de utilização em diversos sentidos, pelas mais
variadas áreas do conhecimento. Além de polissêmica, cultura é também polifônica, pois,
ao se falar dela, diversas vozes são trazidas ao debate, ecos da antropologia, da sociologia,
da história ressoam entre si, convergindo na incompletude, na inexatidão de atribuir a ela
significados.
Nesse sentido, retornando à ideia de que não se pretende na investigação definir
conceitos em sua rigidez, ressalto as palavras de Morin (2003, p. 75) em relação a esta
palavra:
Cultura: falsa evidência, palavra que parece uma, estável, firme, e, no
entanto é a palavra armadilha, vazia, sonífera, minada, dúbia, traiçoeira.
Palavra mito que tem a pretensão de conter em si a completa salvação:
verdade, sabedoria, liberdade, criatividade [...]
Contudo, entende-se que em qualquer trabalho de pesquisa acadêmica o
posicionamento teórico e sua fundamentação são de extrema relevância, uma vez que o
pesquisador precisa saber dizer do objeto que pesquisa para melhor se posicionar frente aos
questionamentos que surgem no decorrer do processo investigativo. Desta forma, busco em
Certeau (1995; 1998) algumas considerações para discutir esta ‘palavra armadilha’, a qual
se atende por ‘cultura’.
89
Certeau (1995; 1998) entende a cultura como prática das pessoas comuns, modos
de fazer que, majoritárias na vida social, não aparecem muitas vezes senão a título de
resistência ou inércia em relação ao desenvolvimento da produção sociocultural. Para este
autor, a cultura é um processo coletivo e incessante de produção de significados que
configura as relações sociais, que ‘dá forma’ à experiência social.
Tal discussão nos faz chegar ao ponto que intencionamos abordar: a cultura como
processo coletivo de produção, de construção, de astúcias e táticas humanas de ‘invenção’.
A cultura, como “um modo próprio de sentir, pensar, ser, interagir, atribuir valor e
comunicar”. (GIL, 2009). Como “um conjunto de símbolos, criações, sonhos. Vários
modos, na verdade, sempre interligados, sempre inacabados, sempre imperfeitos. E, até o
fim dos tempos, em permanente processo de invenção e reinvenção”. (Ibidem, p.1).
Assim, a cultura que destacamos neste trabalho, sob a ótica de um ‘processo
permanente de invenção e reinvenção’, é diametralmente oposta ao que sempre nos foi
posto por uma ordem estabelecida, também em meio às minúsculas situações do cotidiano,
nas entrelinhas da vida comum, rompendo, desta forma, com o mundo tranquilo das
certezas que desde sempre nos foram impostas por uma ordem cuja ‘cultura’ seria apenas
‘uma’ – àquela conferida por um lugar de poder.
Nossa intenção é destacar as ‘maneiras de fazer cotidianas’ das massas anônimas.
Do ‘minúsculo’, do ‘banal cotidiano’ vivido pelos sem nomes, pelos homens comuns. “Do
mundo diário – mundo de profusão de gentes, falas, gestos, movimentos, coisas – que
abriga táticas do fazer, invenções anônimas, desvios da norma, do instituído, embora sem
confronto, mas não menos instituintes”. (SOUZA FILHO, 2009, p. 3)
Enfatizamos nesta pesquisa-história as artes de fazer dos migrantes que chegaram
em Sinop durante o processo inicial de colonização da cidade, mais precisamente entre os
anos de 1973 e 1979.
Dentre as artes de fazer que “constituem as mil práticas pelas quais usuários se
reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural” (CERTEAU,
1998, p. 41), elencamos uma em particular diante daquela sociedade que se formava – das
‘artes de fazer uma escola’ ou seja, a ‘reinvenção da escola’. A fotografia que ilustra o
início deste item nos mostra alguns pais, alunos e professores, aparentemente ‘felizes’, em
90
frente uma pequena escola. É provável que um pouco da alegria daquelas pessoas comuns
estampadas na imagem se dava, dentre outros fatores, também pela conquista da presença
de uma escola naquele lugar, uma vez que a maioria dos migrantes veio para Sinop com a
certeza de que encontrariam escola para seus filhos, conforme anunciavam as propagandas
que lhes atraíram, e que ao contrário, quando no local chegaram, a educação era apenas
mais uma promessa, assim como tantas outras. A fotografia apresenta a alegria da
conquista da escola, que não se deu tão facilmente – precisou ser conquistada, precisou ser
inventada pelos próprios migrantes a partir das suas artes de fazer.
O que se configurou naquele momento inicial de construção de uma cidade, é que
sem a ‘Terra Prometida’, como observado no capítulo anterior, e sem a ‘escola’ para os
filhos, chegara o momento de, entre os próprios migrantes, tomar decisões – sair dos seus
espaços e jogar com suas astúcias sutis, com seus golpes e táticas de resistências no
campo do outro - no lugar da ordem e, desta forma, transformar e reinventar a vida diária
a partir das ações próprias dos que conseguem, mesmo estando dentro de um
espaço normatizado, driblar a vigilância53
.
“Se não há escola, que inventemos uma” (GUERRA, depoimento 25/01/2012),
diziam os migrantes que se juntaram em regime de mutirão para erguer a primeira unidade
escolar local. E, dessa forma, a partir de ações próprias, uma pequena sala de aula foi
edificada para atender aos filhos daqueles homens ordinários que tinham em comum o
sonho de um futuro próspero - da conquista da terra - que significava uma vida melhor para
a família e, dar escola aos filhos constituía a possibilidade de um ‘destino’ mais promissor,
com oportunidades melhores das que os pais tiveram no passado.
Neste cenário, as artes de fazer uma escola, ou a reinvenção dela - a qual tomamos
aqui como ação-criação dos migrantes não conformados com a ausência da escola –
prometida, mas não cumprida pela colonizadora, se constitui em assunto que desejamos
discutir, temática que aspiramos delinear, pois,
Saberes e artes de fazer que irritam e estimulam a domesticação,
mas também anunciam e apelam à criação engenhosa, dando
esperanças de que, nos interstícios dos códigos impostos, toda uma
série de táticas subterrâneas possa dar vida a ações sem autores e sujeitos
sem nome, demolindo as verdades de discursos morais, políticos e
53
Cf. CERTEAU, 1998.
91
tecnocráticos que intentam fabricar o conformismo. (SOUZA FILHO,
2009, p. 6).
Assim, frente a um lugar que intentava estabelecer o conformismo, foi necessária a
criação engenhosa, a que cria sobre a vida, que não é imaginação, mas que se busca o
grande risco de se ter a realidade – tê-la e reinventá-la.
2.2 A reinvenção da escola: “se tem material, vamos fazer uma
escola!54
”
Figura 18 - Sala de Aula construída pelos migrantes em 1973
55
Fonte: Patrimônio Histórico de Sinop, 2011
A escola da Mestra Silvina...
Tão pobre ela. Tão pobre a escola...
Sua pobreza encerrava uma luz que ninguém via.
Tantos anos já corridos...
Tantas voltas deu-me a vida...
(...)
54
Palavras dos migrantes ao responsável pela colonizadora que doaria a madeira para construir a escola
(Depoimento da Ex-professora Terezinha Pissinati em 25/01/2012) 55
Esta foto foi tirada alguns anos após a fundação de Sinop, quando a pequena sala de aula já havia deixado
de ser o ‘prédio’ da escola.
92
Toda pobreza da minha velha escola
se impõe
(...)
Estão presentes nos seus bancos
seus livros desusados, suas lousas que ninguém mais vê,
meus colegas relembrados.
(Cora Coralina, Mestre Silvina, 2004)
Nos versos de Cora Coralina, encontramos semelhanças entre a ‘escola da Mestra
Silvina’ com a da escola que propomos investigar. Tão pobre a escola que sua pobreza
encerrava uma luz que ninguém via. Todavia, mesmo frente a um percurso marcado por
tantas deficiências e dificuldades diante da pobreza de sua estrutura física e materiais,
trata-se de uma escola ‘especial’ – “A escola, era tudo, era um lugar especial” (BRAZ,
depoimento 08/12/2011). Digo especial, a partir das narrativas, que oportunizaram
perceber nas falas de ex-professores, de ex-alunos e de pessoas comuns, recordações de
uma escola, cuja história continua presente na memória daqueles que a vivenciaram - uma
história singular, construída em coletivo, a partir das relações de troca, encontros e de
criação conjunta frente ao desejo de se ter uma escola. Trata-se de uma história, cujas
lembranças, como diria a poetiza, ainda se faz presente nos seus bancos, nos seus livros
desusados, nas suas lousas que ninguém mais vê, nos inúmeros colegas relembrados.
A escola, que nos dispusemos discutir, é também ‘especial’ porque, como já dito, é
resultado das astúcias humanas, das táticas que os primeiros migrantes lançaram mão para
impor o desejo coletivo de se ter uma escola diante de uma sociedade em construção. Em
consequência, a primeira escola partiu de um movimento próprio realizado num espaço
onde as ações se desdobravam, onde criação e invenção eram nomes próprios, vistos pela
ótica das artes de fazer.
Assim, é a partir desse movimento de transformação, de criação, de invenção do
cotidiano que destinaremos nosso olhar para discutir a instituição da educação nos anos
iniciais do processo de colonização da cidade de Sinop.
Como apresentado no capítulo anterior, a maioria dos migrantes chegada a Sinop
era oriunda do sul do país e os colonizadores sabiam que os migrantes sulistas tinham na
educação um referencial, “que a escola fazia parte da sua cultura, que ‘mandar’ os filhos
para a escola era uma obrigação da família, e, portanto, caberia aos pais fazê-lo”
(PERIPOLLI, 2002, p. 121). Nas palavras da ex-professora Anísia Mendes Gobbo
93
(depoimento 14/01/2012), “mesmo os pais vindo para aquele fim de mundo, [...] eles
queriam ver seus filhos estudando [...] a educação era o futuro”.
Utilizando-se da representação da educação para aquelas pessoas, a empresa
colonizadora anunciara em suas propagandas, além da terra farta, “que tudo dava56
”,
também a promessa de escola aos filhos:
O Seu Ênio, quando recebia as pessoas na Colonizadora para comprar
terras, ele fazia propagandas, [...], ele falava muito sobre educação, sobre
a escola. Para seu Ênio a escola era tudo, então ele incentivava muito as
pessoas que vinham aqui, ele falava: “Não, pode vir, seu filho vai ter
escola, vai estudar.” Ele prometia muito escola, então o pai já vinha
ciente de que o filho não ia ficar sem estudar. (GOBBO, depoimento
14/01/2012)
Contudo, mais uma vez as ‘promessas eram muitas’, mas a realidade encontrada era
outra. Muitos dos migrantes, na certeza de que haveria escola para seus filhos em Sinop, a
partir do que lhes fora prometido, esperaram chegar o mês de julho de 1973, para se
deslocar de suas cidades de origem, a fim de não prejudicar os estudos de seus filhos, visto
que aquele mês seria destinado às férias escolares, e, então, quando chegassem em Sinop,
apenas dariam continuidade aos estudos:
A colonizadora havia prometido para os pais que teria escola a partir de
julho de 1973, então muitos pais deixaram para vir para Sinop neste mês,
porque então, já teria escola. Mas, chegaram aqui e não tinha escola. A
colonizadora prometeu que haveria, mas a escola mais perto era em Vera.
(GUERRA, depoimento 25/01/2012)
Quando os migrantes chegaram na ‘cidade’, tudo estava em construção, era um
espaço conformado num verdadeiro ‘campo de obras’ – tudo estava por fazer, inclusive a
escola. A instituição escolar mais próxima, como pontuado no depoimento acima, se
localizava na cidade de Vera, distante 80 quilômetros de Sinop, cuja única estrada de
acesso não era pavimentada, ficando intransitável no período chuvoso, ou seja, naquele
restante de ano, provavelmente, não haveria possibilidades de que seus filhos pudessem dar
continuidade aos estudos.
56
Palavras utilizadas pela professora Terezinha Pissinati ao se referir, em seu depoimento, às propagandas
feitas pela colonizadora em relação à promessa da terra fértil.
94
Foi então, que fugindo das teias da conformidade, os migrantes se organizaram
para ‘fazer a escola’ e reinventar, ao seu modo, o início de um ‘sistema escolar’ em meio
àquele campo aberto na floresta Amazônica ainda pouco habitado.
Organizados, os migrantes solicitaram à colonizadora, que lhes havia feito tantas
promessas, a construção de uma escola, considerando que não tinham acesso ao governo
estadual, e o poder municipal se localizava em Chapada dos Guimarães, também distante
500 km, cuja rodovia BR-163, que ligava as cidades na época, também sem pavimentação
asfáltica, dificultava demasiadamente o trânsito, além disso, a ausência de meios de
comunicação impossibilitava qualquer contato.
Nas recordações da professora Terezinha Pissinati Guerra (depoimento
25/01/2012), “os pais começaram a pressionar a colonizadora, os próprios migrantes
começaram a correr atrás, eles diziam: ‘vamos fazer a escola’, ‘quem faz o quê’, ‘quem vai
dar aula’, ‘precisamos arrumar professor’”.
Insistindo no sonho de construir a escola, os migrantes recorreram à colonizadora
que lhes forneceu os materiais para a edificação de uma sala de aula. De acordo com os
depoimentos, a colonizadora propôs uma troca – forneceria a madeira, telhas Eternit e
outros materiais, enquanto aos pais-migrantes caberia a mão de obra.
Não houve outra opção, “se não há escola, que inventemos uma! Pois, se tem
material, vamos fazer uma escola” (GUERRA, depoimento 25/01/2012), diziam os
migrantes. Assim, em regime de mutirão,
[...] juntaram-se uma turma de homens, [...] uma turma de gente, e ali
construíram a escola, poucos dias e a escola estava de pé, só que não
tinha cimento para fazer o piso, então ficou na terra mesmo, piso de chão
batido como alguns falam, se molhava - virava barro, aquele barro
branco, grudento; se deixava seco - era aquela poeira. As carteiras
foram feitas de tábua bruta, daquelas de sentar de dois, tudo foram os pais
que fizeram. Lembro que eram muito pesadas, não tinha como tirar do
lugar. E foi assim que tudo começou. (GUERRA, depoimento
25/01/2012)
95
A pequena sala de aula – ‘a escola dos migrantes57
’, construída para atender as
crianças do povoado, ilustrada no início desta sessão, era “como uma casa de madeira, com
quatro janelas, uma porta e só... não tinha mais nada”. (GUERRA, depoimento
25/01/2012). Assim que ficou pronta, além de funcionar como escola, “passou a funcionar
como igreja, como salão de encontros, reuniões, para tudo servia o mesmo prédio”
(ibidem).
Sobre essa primeira sala, a Revista Sinop – Edição Histórica, publicada em 1994,
trouxe a informação de que:
Era uma simples sala de aula, construída em madeira, utilizada também
para reuniões comunitárias e eventos religiosos. Todo material para a
construção da sala, inclusive o terreno foi doado pela colonizadora Sinop,
mas a construção foi feita em regime de mutirão pelos pais dos alunos
que eram coordenados pelo pioneiro Braz Claro dos Anjos. (REVISTA
SINOP, 1994, p. 44)
Com a sala de aula construída, era preciso encontrar alguém que pudesse ‘ensinar’
as crianças. Mais uma vez os migrantes se organizaram e era preciso escolher os mais
instruídos para tal exercício. Nas lembranças da primeira professora, Terezinha Pissinati,
ao recordar de quando a procuraram para ser a professora, a mesma diz que aceitou tal
pedido devido à insistência dos pais. A professora mencionada tinha estudado até a sexta
série, no Paraná, não tendo tido qualquer experiência no magistério, mas as crianças
precisavam estudar, foi então que decidiu ajudar, se tornando a professora da ‘escola dos
migrantes’. Foi contratada para tal função pela empresa colonizadora.
Além disso, a ‘professora dos migrantes’ desempenhava outras atividades além de
exercer a docência, pois trabalhava na escola como faxineira e merendeira, o que
certamente a sobrecarregava: “Nos primeiros tempos, naquela primeira salinha era só eu:
fazia merenda, limpava a escola, fazia as matrículas, dava aula, era só eu aqui!”
(GUERRA, depoimento 25/01/2012).
Contudo, mesmo diante das dificuldades, tanto a professora como algumas mães de
alunos sentiam a preocupação de ‘formalizar’ a educação da pequena escola. Assim, para
que atividade escolar fosse institucionalizada, a ‘professora’, com auxílio da colonizadora
se dirigiram à cidade de Vera-MT, onde já funcionava, na Gleba Celeste, a Escola
57
Este termo foi o modo que encontrei para me referir à pequena sala de aula construída pelos migrantes.
96
Estadual N. Sra. do Perpétuo Socorro, a fim de solicitar que a pequena sala de aula de
Sinop pudesse ser uma extensão da referida escola. Assim, com a solicitação formal junto à
Delegacia de Educação e Cultura do Estado de Mato Grosso, a pequena sala de aula foi
autorizada a funcionar como extensão da escola supracitada.
Saviani (2007) explica que, para satisfazer necessidades humanas, as instituições
são criadas como unidades de ação e que se constituem como um sistema de práticas com
seus agentes e com os meios e instrumentos por eles operados, tendo em vista as
finalidades por elas perseguidas. Contudo, esse processo de atendimento às necessidades
do homem primeiramente acontece de forma espontânea, não se distinguido os elementos
constitutivo, mas, a partir de certo estágio de desenvolvimento, exige-se a intervenção
deliberada, identificando-se as características específicas que diferenciam a atividade
realizada pela instituição das demais, às quais se encontrava ligada: “É a partir daí que
determinada atividade se institucionaliza, isto é, cria-se uma instituição que fica
encarregada de realizá-la. (SAVIANI, 2007, p. 5)
Assim, para atender suas necessidades, parte dos próprios migrantes a iniciativa de
criar uma instituição e, num segundo momento, entre os mesmos se percebe a exigência de
uma intervenção determinada, o que ocasiona a reivindicação por uma escola
‘institucionalizada’, uma vez que pretendiam não apenas ‘dar escola’ aos filhos, sendo
preciso que a escola ‘existisse’ legalmente. A pequena ‘escola dos migrantes’ ficou, deste
modo e desde seu início, vinculada à Escola de Vera, o que foi constatado pela
documentação encontrada da Escola Sinop, como livros de matrícula, diários de classe, ata
de resultados finais de exame, dentre outros, estar a mesma vinculada à Escola Estadual N.
Sra. do Perpétuo Socorro.
No entanto, em Sinop os migrantes chamavam informalmente a pequena sala de
aula por eles construída de Grupo Escolar Sinop, como foi constado nos depoimentos e nas
fontes encontradas, provavelmente por razão de que muitos dos migrantes tiveram tido
acesso a um Grupo Escolar ou simplesmente por se referir ao modelo de escola que eles
tinham presente em sua memória, já que esse termo já não mais era usado na década de
1970. A fotografia a seguir refere-se ao dia da Fundação de Sinop, 14 de setembro de
1974, quando os alunos da escola de Sinop representavam a extensão da Escola Estadual
N. Sra. do Perpétuo Socorro.
97
Figura 19- Desfile cívico em comemoração à fundação de Sinop, 1974.
Fonte: Santos, 2011.
Contudo, há que se destacar o quanto o estado e o governo federal foram
negligentes para com a situação educacional durante o processo inicial de colonização no
norte mato-grossense. Percebeu-se, durante a investigação que, para que o processo de
ocupação da ‘nova’ fronteira se consolidasse, o Estado não poupou políticas públicas que
viabilizasse infraestrutura necessária, além da oferta dos incentivos fiscais e políticas de
crédito que estimulasse parte elite nacional e internacional a investir na região Centro-
Norte do país. Entretanto, o setor educacional não recebeu igual importância.
A promessa de ‘escola’ veiculada pelas propagandas da colonizadora sempre esteve
presente, mesmo por que a educação fazia parte do projeto colonizador, pois ia de encontro
aos interesse de manter e fixar o migrante naquelas terras, ou seja, a educação estava
certamente “a serviço da sociedade como instrumento na construção de uma cidade”
(TOMÉ, 2009, p. 10).
Pôde-se perceber que, posteriormente, a iniciativa dos migrantes de construir com
as próprias mãos a pequena sala de aula, contou com uma parceria entre colonizadora e
governo de Mato Grosso. Este último se fez presente quando ao autorizar o funcionamento
98
de qualquer nova ‘escola’ que pudesse atender crianças das novas comunidades rurais que
surgiam a cada dia em Sinop, todas elas, assim como a ‘escola dos migrantes’, eram
pertencentes à escola do estado na Gleba Celeste, até 1976, a Escola N. Sra. do Perpétuo
Socorro da cidade de Vera.
Nos depoimentos, pode-se observar nitidamente isso:
Em março de19 75 o Osvaldo Sobrinho era secretário de educação, ele
veio para cá com duas técnicas para orientar todo o trabalho da região, aí
fomos todos para um encontro em Vera, e, ele falou com estas palavras,
“onde tiver dois ou três alunos e puder fazer uma escola de pau-a-pique
eu autorizo o funcionamento e contrato o professor” ele falou assim para
todos os pais, imagina a cidade estava começando, todos os pais se
sentiram seguros. (Depoimento Braz, em 08/12/2011)
Um ex-aluno descreveu a escola que estudou quando chegou em Sinop, uma escola
de comunidade rural no ano de 1976:
[...] a escola que eu estudei quando nós chegamos aqui, em outubro de
1976, praticamente no quarto bimestre, era um galpão, feito de pau a
pique, coberto de tabuinhas, e era uma sala só para atender as quatro
turmas: primeira, segunda, terceira e quarta série; era um professor só,
também. Então, aí depois, com o passar dos anos, depois, os pais se
reuniram com a colonizadora, com o prefeito na época, que nem
prefeito aqui não existia, tinha um administrador [...]. para construir
uma escola na comunidade. Daí foi construído, foi através da
colonizadora, que foi construída a escola, que até hoje ela tem o mesmo
nome, [...] a Escola Roberta [...]. E professor nós só tínhamos um
naquela época. Ele morava longe da escola, ele vinha a pé para a escola.
Ele morava a uns cinco quilômetros da escola [...], nós estudávamos a
tarde. E ele não era um professor formado, ele estudava na época,
ele fazia a oitava série. (SILVA, depoimento apud LANDO, 2002)
Desse modo, a preocupação não estava relacionada à qualidade do ensino,
tampouco à formação docente ou à aprendizagem dos alunos. Do que se pode inferir que o
importante era cumprir a promessa de ‘dar escola’ aos filhos daqueles migrantes, em
qualquer que fosse o espaço, mesmo que para isso não contassem com profissionais
habilitados. Assim, a cada nova comunidade que surgia, cujos alunos não pudessem
frequentar a sala de aula construída na cidade, devido à distância, improvisava-se um
espaço e escolhiam-se ‘os mais instruídos’ para exercer a docência. “E assim era: onde
tivesse 6, 7 alunos, misturava tudo e dava aula aonde fosse, podia ser na própria casa do
professor, já contratava o mais instruído, e funcionava ali uma escola”. (BRAZ,
depoimento 08/11/2011)
99
Nas recordações da Professora Maria Augusta de Paula:
Com o fluxo de pessoas, devido o processo de colonização, vinha muita
gente todos os dias. E, para o S. Ênio era obrigatório, não podia ninguém
ficar fora da escola, pois era um comprometimento dele - como ele ia
vender as áreas, estabelecer o povo aqui e não oferecer a escola? Então,
se não tivesse escola para os filhos o povo não ficava. Na época isto tudo
era prometido, tinha que ‘dar escola’ porque senão como este povo iria
vir e não ter escola, e, o comércio do seu Ênio dependia disto. Também,
como ele vendia os lotes não só na cidade, como também fora, na área
rural, muita gente comprava estes lotes e ia para o sítio, as comunidades
iam se formando e com elas várias escolinhas iam se formando, porque
não podia deixar ninguém sem estudar, porque senão tivesse escola o
povo não ficava. (PAULA, depoimento 02/02/2012)
A imagem a seguir é ilustrativa de uma das tantas escolas de comunidades rurais ou
de madeireiras, que funcionava na casa do professor contratado e escolhido entre os mais
instruídos da comunidade para exercer a docência:
Figura 20- Escola da comunidade Nanci, 1979
Fonte: Acervo Particular Prof. Maria Lúcia Braz
Faz-se necessário mencionar que a legislação educacional da época, Lei Federal n.º
5.692/71, trazia logo no artigo 2°, a seguinte definição:
Art. 2º O ensino de 1º e 2º graus será ministrado em estabelecimentos
criados ou reorganizados sob critérios que assegurem a plena
utilização dos seus recursos materiais e humanos, sem duplicação de
meios para fins idênticos ou equivalentes.
100
Com referência à formação dos professores, a mesma Lei menciona, especialmente
em seus Artigos 29° e 30° que:
Art. 29. A formação de professores e especialistas para o ensino de 1º e 2º
graus será feita em níveis que se elevem progressivamente,
ajustando-se as diferenças culturais de cada região do País, e com
orientação que atenda aos objetivos específicos de cada grau, às
características das disciplinas, áreas de estudo ou atividades e às fases
de desenvolvimento dos educandos.
Art. 30. Exigir-se-á como formação mínima para o exercício do
magistério: a) no ensino de 1º grau, da 1ª à 4ª séries, habilitação
específica de 2º grau; b) no ensino de 1º grau, da 1ª à 8ª séries,
habilitação específica de grau superior, ao nível de graduação,
representada por licenciatura de 1° grau, obtida em curso de curta
duração; c) em todo o ensino de 1º e 2º graus, habilitação específica
obtida em curso superior de graduação correspondente a licenciatura
plena.
Entretanto, a mesma legislação faz uma ressalva no Art. 77, parágrafo único:
Parágrafo único. Onde e quando persistir a falta real de professores, após
a aplicação dos critérios estabelecidos neste artigo, poderão ainda
lecionar: a) no ensino de 1º grau, até a 6ª série, candidatos que hajam
concluído a 8ª série e venham a ser preparados em cursos intensivos;
b) no ensino de 1º grau, até a 5ª série, candidatos habilitados em exames
de capacitação regulados, nos vários sistemas, pelos respectivos
Conselhos de Educação;
Contudo, naquele momento de ‘construção’ da cidade de Sinop, a “escola dos
migrantes” assim como as escolas das comunidades rurais que surgiam diuturnamente, não
obedeciam as prescrições higiênicas previstas em Lei, como também, no que se refere à
formação docente, porque principalmente nos dois primeiros anos do processo colonizador
(1973-1974) não havia pessoas licenciadas para tal atividade, o que veio ocorrer apenas a
partir de 1975, quando que a colonizadora começou a trazer professores com as
habilitações exigidas pelo preceito legal. Naquele momento inicial o importante para o
êxito do projeto de colonização era fixar o migrante que chegava com sua família e, este,
de acordo com os depoimentos obtidos, não permaneceria se não houvesse escola para os
filhos. Os migrantes, principalmente os sulistas, concebiam a educação formal como sendo
responsável pelo futuro de seus filhos, visto que a mesma representava a oportunidade que
muitos deles não haviam tido, mas que os filhos teriam garantido um futuro promissor com
101
a formação escolar. Portanto, sem escola, a permanência daqueles que vieram para
construir com seu trabalho corria perigo.
Essa breve avaliação se fez importante para apresentar quais interesses estavam
intrínsecos à educação naquele momento inicial: em meio a tantas dificuldades de
sobrevivência em um lugar desconhecido, expostos aos perigos da floresta, à falta de
infraestrutura, adicionados à saudade dos amigos, parentes e da própria terra natal, a
possibilidade de os migrantes retornarem para seus lugares de origem era grande. Nessa
medida, a escola, assim como a igreja serviu como instrumento que alimentava o sonho
daquelas pessoas: a escola representava o sonho de um futuro melhor aos filhos e a igreja
era o lugar da fé, o lugar de conforto e renovação da esperança daquelas pessoas para que
tivessem ‘força’ para permanecer naquele local.
Contudo, a não fixação do migrante colocava em risco não só projeto de
colonização, que almejava êxito do seu ‘negócio’, mas também a política do Governo
Federal, que tencionava, sobretudo, agregar os espaços amazônicos à economia nacional,
assim como, com ele, oferecer alternativa para vazão dos problemas e conflitos sociais
ocorridos no Sul e no Nordeste do país. Nesse cenário, a escola era um forte componente
na fixação dos colonos, migrantes trabalhadores, mesmo que esta fosse de ‘pau-a-pique.’
E, assim, eram erguidas pequenas escolas em torno da cidade de Sinop – partidas das
iniciativas dos migrantes e, uma vez autorizadas e feitas as contratações, o apoio do
governo estadual com a colonizadora, cenário que permaneceu até 197658
, todas vinculadas
à Escola N. Sra. do Perpétuo Socorro e institucionalizadas.
Dessa forma, unidades escolares eram criadas a cada comunidade rural que surgia
na cidade, cenário que, infelizmente, ainda não foi superado em muitos espaços no país,
em pleno século XXI: locais improvisados, estruturas precárias, falta de merenda escolar,
de materiais, entre outros problemas, como nos mostram os trechos de matérias
jornalísticas de vinculação nacional, produzidas recentemente em diferentes estados
federativos:
Inhapi, Alagoas:
Alunos da 1ª à 4ª séries dividem o mesmo espaço - e que espaço!
Nenhuma autoridade apareceu na escola estadual dos índios koiupanká.
58
A partir de 1976, a escola em Sinop foi oficialmente instituída enquanto instituição estadual.
102
“Não, ninguém procurou”, diz a professora Maria de Lurdes dos Santos.
Este ano, Inhapi recebeu do Fundeb, o Fundo da Educação Básica,
exatamente R$ 3.178.887,00. Em nota, a Secretaria Estadual de Educação
informou que já foram abertos processos para reforma e ampliação das
escolas, e construção de novos prédios. Enquanto isso não acontece, a
aluna Valdirene da Conceição vai continuar sonhando: “Uma escola
espaçosa que tenha a parte da 1ª série, da 2ª , da 3ª e 4ª série,
(Fonte: Site Fantástico, 2007. Edição do dia 18/11/2007)
Figura 21- Aluna da Escola Estadual dos índios Koiupanká
Fonte: Site Fantástico, 2007. Edição do dia 18/11/2007
Caxias, Maranhão:
Em Caxias, alunos têm aulas embaixo de uma mangueira, onde as
mangas servem de merenda escolar. Ainda em Caxias: uma escola
municipal que não pode funcionar à noite, por falta de energia elétrica.
Nós encontramos a professora dando aula no quintal da casa de uma
aluna. “O jeito da gente é estudar assim, não tem como estar lá no escuro,
a gente não enxerga de noite”, queixa-se a aluna Elisângela Conceição. A
energia elétrica está a apenas 50 metros da escola.
Fonte: Site Fantástico, 2007. Edição do dia 18/11/2007
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,MUL697894-
15605,00.html
Distrito de Pedra Miúda, Município de Capoeiras, Pernambuco:
A única escola do distrito de Pedra Miúda está sem telhado. A professora
tinha 19 alunos. Parte da turma arranjou vaga numa escola, distante dez
quilômetros. Para não deixar as outras crianças fora da escola, a
professora decidiu dar aulas no município vizinho. Para chegar à escola
de Bezerros, são dois quilômetros à pé. Só que no meio do caminho fica a
barragem do rio Ipojuca. É sobre a murada da represa, alagada, que a
professora e oito crianças atravessam todos os dias. “Tem que prender os
pés na barragem para não escorregar”, disse um aluno. Cinco alunos da
professora estão sem aulas porque os pais não permitem que elas
atravessem o rio.
103
Fonte: Site Jornal Hoje, edição do dia 31/05/2005
http://g1.globo.com/jornalhoje/0,,MUL1148233-16022,00-
CONDICOES+PRECARIAS.html
No entanto, tais apontamentos servem para evidenciar o descaso, as desigualdades
que estão a exigir uma discussão mais aguçada sobre políticas públicas educacionais, o que
não será refletido neste trabalho, por estar delimitado aos estudos da cultura escolar da
primeira instituição educacional de Sinop, eleita como objeto da presente pesquisa.
Todavia, não poderíamos deixar de mencionar sobre a formação dessas outras escolas que
surgiam em comunidades distantes da cidade, as quais estavam todas vinculadas à ‘escola
dos migrantes’, e que também integraram a história que emolduram o recorte cronológico
em estudo.
Entretanto, é interessante perceber que na história da educação a questão da
precariedade material da escola, vem há muito tempo sendo tema de discussão. Faria Filho
e Vidal (2000) nos ajudam a compreender que a realidade material da escola brasileira já
era ainda tema de debate no século XIX. Os autores pontuam que na década de 1870, os
diagnósticos elaborados por diferentes profissionais que atuavam na escola ou na
administração dos serviços da instrução ou ainda políticos, eram unânimes em afirmar a
precariedade dos espaços ocupados pelas escolas, sobretudo as públicas, defendendo a
urgência de se construir espaços específicos para a realização da educação primária.
Assim, os autores nos informam que, na forma de denúncia, circulavam nos jornais
matérias que caracterizavam o ensino primário por sua precariedade, citando, para isso, um
editorial de A Província de São Paulo de 1876:
Como o professor é pobre e escasso o ordenado, instala a escola numa
saleta qualquer, contando que seja barata e lhe não absorva o ordenado. A
título de mobília procura dois ou três bancos de pau, uma cadeira para si,
uma mesa onde ao menos possa encostar os cotovelos e tomar notas, um
pote e uma caneca, e aí temos armado o alcatifado palacete da instrução.
Agrupam-se aí dentro 20, 30 ou 40 crianças, tendo por único horizonte as
frestas sombrias de uma rótula e durante quatro ou cinco horas diárias
martirizam os ouvidos e as cordas vocais da laringe em insólito berreiro,
respirando ar viciado e poeira, arruinando a saúde, cansando a
inteligência, matando a vontade de aprender, a natural curiosidade infantil
e a paciência [...]. O resultado é tornar-se a escola o mau sonho das
crianças. (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 13/01/1876, apud FARIA
FILHO; VIDAL, 2000, p. 23)
104
Vários aspectos usados pelos críticos à escola oitocentista resumiam-se nos
escassos salários dos professores, na falta de prédios apropriados ao ensino, na pobreza
material e metodológica das aulas e na ausência de observância às prescrições higiênicas.
No entanto, esse cruzamento entre o passado e o presente do que se refere à questão
infraestrutural da escola, permite-nos perceber o quanto ainda é instigante tal situação –
foram e ainda são as muitas ‘reinvenções’ de escolas Brasil, até se conseguir minimamente
acesso à educação.
As muitas escolas das comunidades rurais que surgiam em Sinop, ao arremedo da
‘escola dos migrantes’, eram a cada dia reinventadas: com alunos das mais diferentes
idades e séries ocupando um único espaço, com professora que ‘aprendera’ a ‘ensinar’,
com seus pais que viam na profissão a oportunidade do futuro melhor para seus filhos, com
seus materiais improvisados, como cadernos inventados de papel de embrulho, enfim, com
suas marcas tatuadas num passado não tão distante. A ‘escola dos migrantes” mesmo com
o descaso do estado e com tantas dificuldades, e após tantos anos já corridos, tantas voltas
que deu a vida, mesmo e ainda assim, toda pobreza daquela velha escola ainda se impõe59
.
Impõe-se através de uma história singular e única que se materializa numa história maior,
universal.
Nessa ótica, a história ‘micro’ que estamos discutindo se reflete numa história
‘macro’, universal, todavia, não na perspectiva de progresso, de absoluto, narrada pelo
discurso habitual dos “vencedores”, como nos ensina Walter Benjamin em suas teses
críticas, mas pensada pela sua origem60
, com uma certa embriaguez61
que possibilite
entendê-la a partir dos inúmeros significados de se ver/conceber o mundo, uma vez que
para este autor não é preciso se pensar “para além do mundo”, como propõe a Filosofia,
mas, entender que o mundo que se procura é a entrelinha da própria vida cotidiana, e é este
cotidiano de uma ‘escola reinventada’ pelas mãos dos próprios migrantes, pelas vias das
artes de fazer, que nos propomos a narrar.
59
Cf. versos de Coralina (2004) 60
A origem, na concepção de Benjamin (1987), é profundamente histórica, uma vez que a restauração da
origem não pode cumprir-se através de um suposto retorno às fontes, mas, pelo estabelecimento de uma nova
ligação entre o passado e o presente. 61
Benjamin utiliza o termo embriaguez, no texto O Surrealismo: o último instantâneo da inteligência
europeia (1987), no sentido de encorajamento que o ser humano precisa entender, ver o mundo livre de
amarras que nos são impostas pela sociedade em geral.
105
2.3. “Só tinha giz e quadro62
”: da “escola dos migrantes” a “escola-
galinheiro”63
Figura 22 - Salas de aula construídas em substituição à primeira sala de aula feita pelos migrantes,
1974
Fonte: Patrimônio Histórico de Sinop. 2011.
Minha escola primária...
Escola antiga da antiga mestra.
Repartida em dois períodos
para a mesma meninada
(...)
A casa da escola inda é a mesma.
- Quanta saudade quando passo ali!
Rua Direita, nº 13.
Porta da rua pesada,
Escorada com a mesma pedra
da nossa infância.
Porta do meio, sempre fechada.
Corredor de lajes
E um cheirinho de rabugem
62
Subtítulo baseado nas palavras da professora Terezinha Pissinati (Depoimento 25/01/2012) 63
Maneira com que todos se dirigiam à escola construída pela colonizadora em 1974, devido ao formato de
suas paredes semelhantes a um galinheiro.
106
Dos cachorros de Samélia.
(...)
À direita – sala de aulas.
Janelas de rótulas
Mesorra escura
Toda manchada de tinta
das escritas.
(Cora Coralina, Mestra Silvina, 2004)
Nos fragmentos do poema de Cora Coralina é possível perceber que a poetiza, ao
recordar de sua escola, prende-se em detalhar espaço e tempo escolar por ela
experienciados.
Os versos permitem-nos associar às recordações de ex-professores e alunos que
vivenciaram a escola a qual me propus investigar, uma vez que em todas as narrativas
pode-se observar a descrição precisa dos espaços e da organização do tempo escolar,
entrelaçados às lembranças dos trabalhos escolares, dos nomes dos colegas, enfim, do
cotidiano escolar. Como no poema de Coralina, “as marcas espaciais e temporais da
memória ressurgem inscrevendo as experiências escolares da infância entre as horas do
relógio e as paredes da casa”. (FARIA FILHO; VIDAL, 2000, p. 19)
Viñao Frago e Escolano (2001) explicam que qualquer atividade humana precisa de
um espaço e de um tempo determinado e que, portanto, isso também acontece com a
educação, que possui uma dimensão espacial onde espaço e tempo constituem a atividade
educativa.
No entanto, os autores acrescentam que:
A ocupação do espaço, sua utilização, supõe sua constituição como lugar:
O ‘salto qualitativo’ que leva do espaço ao lugar é, pois, uma construção.
O espaço se projeta ou se imagina: o lugar se constrói. Constrói-se ‘a
partir do fluir da vida’ e a partir do espaço como suporte; o espaço,
portanto, está sempre disponível e disposto para converter-se em lugar,
para ser construído. [...] A escola, pois, enquanto instituição, ocupa um
espaço e um lugar. Um espaço projetado ou não para tal uso, mas dado
que está ali, e, um lugar por ser um espaço ocupado e utilizado. (VIÑAO
FRAGO; ESCOLANO, 2001, p. 61-62)
Um lugar que para Certeau (1998) é transformado a todo instante em espaços
praticados e vice-versa, um lugar que sugere um jogo, uma dinâmica onde seus
‘habitantes’ transformam, criam e recriam os seus modos de viver.
107
Faria Filho e Vidal (2000), ao analisar os tempos e espaços escolares no processo
de institucionalização da escola primária no Brasil, reportam-se às contribuições de
Agustín Escolano (1998)64
, o qual entende que nem o espaço e nem o tempo escolar são
dimensões neutras do ensino, simples esquemas formais ou estruturas vazias da educação.
Oposto a isso, afirma que operam como uma espécie de discurso que institui, em sua
materialidade, um sistema de valores, um conjunto de aprendizagens sensoriais e motoras e
uma semiologia que recobre símbolos estéticos, culturais e ideológicos:
O espaço comunica; mostra, a quem sabe ler o emprego que o ser
humano faz dele mesmo. Um emprego que varia em cada cultura; que é
um produto cultural específico, que diz respeito não só às relações
interpessoais – distâncias, território pessoal, contatos, comunicação,
conflitos de poder -, mas também à liturgia dos objetos e dos corpos –
localização e posturas – à sua hierarquia e relações. (VIÑAO FRAGO;
ESCOLANO, 2001, p. 64).
Contudo, reforçando essa análise com Sá (2007) é possível destacar, no que se
refere ao tempo e espaço escolar, que eles estão intimamente relacionados à construção da
identidade dos alunos:
Os calendários, horários e a ordem espacial das instituições permanecem
espelhados nos trabalhos e nos dias das crianças e dos professores, assim
como boa parte dos parâmetros que delimitam a cultura da escola e as
relações desta com a comunidade em que se insere. (SÁ, 2007, p. 131)
Nesse momento pretende-se discutir sobre os aspectos iniciais da organização do
tempo e do espaço escolar, essa operação ‘discursiva’ relacionada à distribuição e
utilização que eles são capazes de instituir em sua materialidade, uma vez que nos detemos
de narrativas que demonstram o quanto pedagogicamente, “tanto o espaço quanto o tempo
escolar ensinam, permitindo a interiorização de comportamentos e de representações
sociais”. (FARIA FILHO; VIDAL, 2000, p. 20).
Assim, voltando ao enfoque da organização inicial do tempo e espaço escolar,
destacamos que a ‘escola dos migrantes’ entrou em funcionamento no dia 5 de setembro de
1973 e as aulas permaneceram ali até o final do primeiro semestre de 1974.
64
ESCOLANO, Agustin. Arquitetura como programa. Espaço-escola e currículo. In: ESCOLANO, A.;
VIÑAO FRAGO. A. Currículo, espaço e subjetividade. A arquitetura como programa. Editora. Tradução
Alfredo Veiga-Neto. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
108
Nas recordações de ex-professores e alunos sobre esse espaço escolar, destacamos
alguns depoimentos que revelam detalhes daquele primeiro momento da escola, que se
assemelham às particularidades destacadas nos versos de Coralina:
[...] a escola ficava ali na Rua das Aroeiras, na esquina [...] onde hoje é a
casa do Toninho do Machado [...], era ali que funcionava a escola.
(GUERRA, depoimento 25/01/2012)
Não tinha nenhum conforto, era tudo adaptado [...], a própria professora
que fazia o lanche com ajuda de algumas mães, era uma casa, construída
tudo improvisado, não tinha piso, era chão batido. Lembro que as
carteiras da sala eram aquelas de sentar em dois, eram pesadas, foram os
pais que fizeram, senão, não teríamos onde sentar. (SILVA, depoimento
07/02/2012)
A escola, uma pequena casa, como já dito, fora improvisada pelos próprios
migrantes, o que nos possibilita discutir que, desde o século XVIII, não é novidade para a
instituição escolar no Brasil improvisar salas de aula. Como reforçam Faria Filho e Vidal
(2000, p. 21),
O período colonial legou-nos um número muito reduzido de escolas
régias ou de cadeiras públicas de primeiras letras, constituídas, sobretudo,
a partir da segunda metade do século XVIII. Com professores
reconhecidos ou nomeados como tais pelos órgãos de governos
responsáveis pela instrução, essas escolas funcionavam em espaços
improvisados, como igrejas, sacristias, dependências das Câmaras
Municipais, salas de entrada de lojas maçônicas, prédios comerciais, ou
na própria residência dos mestres65
.
Dessa forma, a ‘improvisação’ da educação parece não ter sido superada no
decorrer dos séculos, uma vez que ainda hoje, em muitos lugares, ainda se improvisam
escolas e professores. Contudo, tal crítica nos obrigaria a rever muitas outras questões
político-sociais, mas apenas faço para destacar as muitas falhas na educação que persistem
ao longo da história, assim como o descaso para com que a educação de Sinop desde os
primeiros anos de colonização, precisando ser ‘improvisada’ pelos migrantes preocupados
para com a educação de seus filhos.
Entretanto, centremos a discussão nos detalhes que conseguimos perceber em
relação à organização da escola, do início do processo de escolarização em Sinop.
65
Faria Filho e Vidal, para tal explanação, citam Barbanti, 1977, e Hilsdorf, 1986.
109
Em relação aos materiais, inicialmente foram doados pela colonizadora: “só tinha
giz e quadro” (GUERRA, depoimento 25/01/2012) e, os alunos recebiam apenas os
básicos, como caderno, lápis e borracha: “Se precisava fazer um cartaz, não tinha material,
às vezes tinha papel de embrulho, mas até este era difícil de conseguir naquele começo”.
(GUERRA, depoimento, em 25/01/2012).
Contudo, a Escola de Vera, N. Sra. do Perpétuo Socorro, que a sala de Sinop estava
vinculada, era dirigida por irmãs católicas da congregação Santo Nome de Maria, vindas
da Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, para a cidade de Maringá-PR, e
posteriormente convidadas e trazidas pelo colonizador Ênio Pipino para direcionar os
trabalhos educacionais e sociais da Gleba Celeste.
De acordo com depoimentos, as irmãs providenciavam tudo o que estivesse ao seu
alcance. Traziam de Maringá, do Colégio Santo Inácio, materiais, como livros, cartilhas,
giz, cadernos, entre outros, que pudessem dar o apoio básico à primeira professora:
O que vinha para nós era de Maringá, o que as irmãs usavam lá no
Colégio Santo Inácio, era mandado para cá. Aí, quando o Seu Ênio vinha
com o avião, então as irmãs de lá mandavam as coisas pra cá. Então o
material que a gente tinha era este – primeiro vinha pra Vera e então eles
mandavam um pouquinho pra cá, e a gente se via com este material.
(GUERRA, depoimento 25/01/ 2012).
Nós tínhamos o básico de tudo, não tinha nenhuma diversidade – era o
lápis, a borracha e o caderno. Alguma coisa era comprada, mas a maioria
era doada, vinha da Alemanha, que as irmãs conseguiam e traziam para
cá. (SILVA, depoimento 07/02/ 2012).
Há que se referenciar ainda que a pequena sala de aula em Sinop, durante todo seu
tempo de seu funcionamento (de setembro de 1973 a julho de 1974), trabalhava em regime
de classe multisseriada, onde os alunos de 1ª a 4ª séries estudavam todos juntos na mesma
classe e regidos pela mesma professora.
As disciplinas trabalhadas nesse regime se dividiam em: Comunicação e Expressão,
Matemática e Ciências, Integração Social, com mais exigência para com o ensino da leitura
e do cálculo. Para a organização das disciplinas, era utilizado o mesmo quadro de horários,
110
grade curricular e calendário letivo da Escola N. Sra. do Perpétuo Socorro, elaborados
pelas irmãs66
.
Assim, desde o início do processo de escolarização de Sinop, houve a preocupação
de se organizar o tempo escolar. De acordo com Sá (2007, p. 143):
Essa preocupação com o tempo e a sua utilização, escolar ou não, está no
cerne da modernidade, e não poderia deixar de ser um aspecto central no
interior dos processos de escolarização, onde as crianças precisam
aprender a ler e a entender o sistema de relógios e calendários.
Contudo, a opção pelo ensino em classe multisseriada deu-se para que, naquele
momento inicial, todas as crianças da comunidade tivessem acesso à escola, No início, com
poucos alunos, funcionava apenas no período matutino, mas logo, com o aumento diário da
demanda, outra turma fora formada no período vespertino, visto que a sala de aula era
muito pequena para abrigar muitos alunos. Contudo, o trabalho em regime multisseriado
não foi uma experiência fácil, nas recordações da primeira professora:
As turmas eram misturadas - as quatro turmas juntas, eu tinha que dar
aula para quatro turmas, aí eu pensava: “nossa, eu nunca dei aula antes e
dar aula para quatro turmas em uma só sala”. [...] as crianças eram muito
curiosas, às vezes você estava dando um conteúdo para a 3ª e para a 4ª, os
alunos da 1 ª e da 2ª ficavam perguntando: “por que isto? Por que
aquilo?” Então, tinha que falar: “olha, você cuida da sua parte, que agora
é a parte dos outros, você vai chegar lá daqui mais uns anos” [...]. Tinha
que passar matéria para a primeira série, depois para a segunda, depois
para a terceira e por último para a quarta série.
[...]
A gente não tinha uma biblioteca, não tinha nada. Então, você muitas
vezes perdia horas sem saber por onde começar. Lembro-me que eu
falava: e amanhã o quê que eu vou dar? O quê eu vou fazer? Você
não podia pegar a matéria de 2ª série para dar numa 3ª, [...] você tinha
que ver o quê ia dar, e não tinha de onde tirar, as vezes você trabalhava
até altas horas da noite para preparar, as vezes tirando da própria
cabeça, lembrando daquilo que você aprendeu no passado, pra poder
ter alguma coisa pra trabalhar com o aluno, então, não era fácil não! (GUERRA, depoimento, 25/01/2012)
Nesse contexto, tais particularidades comprometiam o processo de ensino-
aprendizagem. Além da precariedade da estrutura física da escola, as dificuldades
relacionadas à falta de material, além do agravante de contar com alunos de diferentes
66
Cf. GUERRA, depoimento 25/01/2012.
111
idades e diferentes níveis de aprendizagem reunidos em uma só classe, caracterizaram as
primeiras escolas de Sinop.
Contudo, em julho de 1974, devido à migração acentuada com aumento do número
de alunos, a colonizadora, com a finalidade de cumprir com a promessa de ‘dar’ escola aos
filhos dos migrantes e visando manter o êxito do projeto de colonização, construiu três
novas salas de aulas, transferindo duas das irmãs católicas, de Vera para Sinop, para atuar
junto às escolas.
Assim, a pequena sala de aula, a originária ‘escola dos migrantes’, deixou de
funcionar, sendo, então, os trabalhos desenvolvidos no ‘novo prédio’ a partir de julho de
1974, porém, mantendo-se enquanto extensão da Escola N. Sra. do Perpétuo Socorro, sob o
regime de classes seriadas, de 1ª a 6ª série, contando com o trabalho mais efetivo da
congregação cristã.
De acordo com os depoimentos colhidos, a ‘nova’ escola, apresentava um design
arquitetônico diferente – era de madeira, suas paredes feitas de ripas, guardando espaço
entre as mesmas para a entrada da luz do sol e para arejar, já que não havia energia elétrica
e o calor no período de seca intensa tornava difícil a adaptação daqueles que vinham do
sul, acostumados com um clima mais fresco.
Por seu formato ‘diferente’, à nova sede da escola ficou conhecida como ‘escola-
galinheiro’, de acordo com lembranças de ex-professoras e alunos:
A escola era um modelo inclinada e na frente e atrás eram feitas com
aquelas ripas que pareciam mesmo um galinheiro! (BRAZ, depoimento,
08/12/2011)
Eram umas salinhas que o povo chamava de ‘galinheiro’ por que as
paredes eram de ripas, distantes umas das outras. (GUERRA,
depoimento 25/01/2012)
Era salinhas de madeira que a Irmã Edita chamava de galinheiro e aí
pegou, todo mundo chamava de escola galinheiro, foi construída pela
colonizadora. (DE PAULA, depoimento 02/02/2012)
A escola daqui era naquele formato engraçado, com aqueles pilares
vermelhos, pintada toda de azul, era muito limpa, não tinha uma sujeira
se quer! (BÉRGAMO, depoimento 17/01/2012)
A fotografia a seguir estampa os detalhes da escola chamada informalmente de
‘galinheiro’:
112
Figura 23 - Vista aproximada das salas construídas pela Colonizadora, 1978
Fonte: Patrimônio Histórico de Sinop, 2011
O problema da nova construção ocorria no período chuvoso, quando durante seis
meses as chuvas são intensas. Conforme os entrevistados, as salas ficavam alagadas devido
aos espaços deixados entre as ‘ripas’ que compunham a parte dianteira e traseira das salas
de aula:
Acho que foi construída daquele jeito para passar a luz do sol, para arejar
e para iluminar, mas, por causa daqueles espaços entre as ripas, quando
chovia molhava tudo e eram seis meses só de chuva, imagina como era,
tinha que encaixar os alunos tudo num canto só, para não molhar eles.
(BRAZ, depoimento 08/12/2011)
Contudo, entendemos com Sá (2007, p. 131) que:
A arquitetura se apresenta enquanto modo de representação das intenções
culturais que a ela mesma subjazem. Os lugares construídos alicerçaram
os tempos educativos, isto é, os ritmos que regularam a dinâmica da
escola e os comportamentos das pessoas que protagonizaram as
experiências de escolarização.
O processo de migração da cidade, após a fundação em 1974, foi intenso. O número
de famílias que chegava todos os dias era grande e, com elas, novos alunos requeriam lugar
na escola da cidade.
Assim, gradualmente, de 1975 até 1979, foram sendo construídas mais salas de
aulas no mesmo estilo das outras três. O total de salas chegou a sete, além daquelas
improvisadas na igreja, visando atender a todos os alunos:
[...] uma vez nós não tínhamos salas suficientes para atender todos os
alunos, nós atendemos, acho que mais de um ano, [...] no barracão da
113
igreja Santo Antônio [...]. Então eram umas mesas improvisadas com
banquinhos, aí uma vez nós levamos o Osvaldo Sobrinho lá pra
ver a realidade, ele viu. Aí, nós tínhamos instruído alguns alunos já para
fazerem o pedido pra ele, das carteiras, que ele estava vendo a situação, e
na ocasião os alunos então fizeram o pedido, e tal. E ele mandou depois
as carteiras, então nós ganhamos as carteiras, eu sei que funcionou um
bom tempo, afinal nós não tínhamos um local para atender, sei que não
ficava criança de fora, sem estudo não. (SÃO JOSÉ, depoimento apud
LANDO, 2002)
Além disso, a ‘escola-galinheiro’ passou a funcionar em três períodos, sendo um
deles chamado de intermediário, entre o período matutino e vespertino, uma vez que a
noite não era possível seu funcionamento devido à ausência de energia elétrica:
[...] por muitos anos a gente tinha o período assim: das 6 :30 às 10:30, das
10:30 às 14:30 que era o intermediário, depois das 14:30 até 18:30...por
que a demanda era muito grande e a noite não tinha energia
elétrica...sempre foi um crescimento acelerado, até me assusta! Me parece
que Sinop não nasceu, ela explodiu! (BRAZ, depoimento 08/11/2011)
Como já dito, observou-se que desde a pequena ‘escola dos migrantes’ sempre se
teve uma preocupação com a organização do tempo e espaço escolar, com o currículo, com
o que seria importante ensinar, com o que era necessário manter em relação aos costumes e
valores trazidos da cultura sulista, sendo que esta, desde os primórdios da colonização
sofrera influências culturais alemãs, italianas, polonesas, entre outras culturas europeias, e
que no cenário mato-grossense, certamente sofreria alterações.
Em referência à organização do tempo escolar, corroboro com as concepções de
Faria Filho e Vidal (2000, p. 33) ao explicar que:
A distribuição do tempo escolar em aulas, períodos, anos e cursos indica
também uma concepção sucessiva e parcelada do ensino. Segmentados,
os conhecimentos se acumulam, sem necessariamente se relacionar. O
tempo escolar se associa às horas em que se permanece na escola,
contabilizadas em sinetas, recreios, cadernos, da mesma maneira que nos
ponteiros do relógio. O que se faz durante esse tempo é o objeto em
disputa. Como se gasta ou usa o tempo de estada no espaço escolar é o
que cada vez mais se põe em xeque à medida que se alteram as demandas
sociais.
Em relação às influências culturais, mais especificamente na educação de Sinop,
desde seu início foi marcante a influência das irmãs católicas que, como já dito, eram de
origem alemã, vindas do estado do Paraná. De acordo com os documentos escolares
114
encontrados, como diários de classe, fotografias, calendário escolar, além dos próprios
depoimentos colhidos, é possível compreender a influência dos trabalhos das irmãs na
inculcação de normas, valores e juízos sob a ótica da cultura a qual faziam parte,
fundamentados pelos os princípios educacionais europeus e cristãos, que determinavam
todas as decisões desde a ‘escola dos migrantes’ à ‘escola galinheiro’.
Entretanto, a manutenção desses costumes e normas trazidos de outro local se
realizava em um espaço muito diferente, uma vez que a realidade vivenciada pelos alunos
naquele momento era outra: em meio a um descampado da Floresta Amazônica, uma ‘casa
estranha’ de madeira que não tinha forma de escola e onde faltava praticamente tudo, ainda
assim eram mantidos os costumes do Colégio de Maringá de onde as freiras advieram.
Essas religiosas se responsabilizavam desde a escolha de materiais a serem utilizados pelo
professor, planejamentos de aulas e até a definição do uniforme escolar, feito com um
tecido de tergal, considerado ‘quente’ para ser usado na região norte mato-grossense,
recordado por uma ex-aluna:
[...] era camisa branca, saia azul com duas pregas na frente e duas atrás.
Aquelas pregas tinham de ser frisadas, ‘aí’ de você se chegasse na escola
sem as pregas frisadas! [...] era de tergal, imagina aquele tecido no calor
de Mato Grosso! Era por que era coisa que se usava lá no Sul. Nós
usávamos também meia ¾ e conga ou 'kichute' azul, todos iguaizinhos!
(BÉRGAMO, Depoimento 17/01/ 2012)
De acordo com a fonte iconográfica de um desfile cívico em que os alunos
tradicionalmente participavam, é possível constatar o relatado:
115
Figura 24- Pelotão das alunas uniformizadas, com uniforme característico do Sul do país, 1978
Fonte: Santos, 2011
Tais particularidades culturais nos permite fazer uma análise de que não era
‘qualquer’ escola que fôra prometida àquela gente, mais do que isto, a intenção era
reproduzir uma escola ‘igual’ à do Paraná67
, reconhecida por seu ensino, sua rigorosidade
na cobrança do aprendido, mesmo porque a possibilidade de fixação do migrante-
trabalhador fosse maior, além disso, o colonizador se utilizava da escola como proposta de
atrair os migrantes, assim, nada mais atraente do oferecer uma com as características de
uma escola que no sul, que era particular e muito bem reconhecida. Porém, muitos
daqueles migrantes não teriam condições de pagar e, ali naquele ‘Eldorado’, a colonizadora
oferecia-lhes de ‘graça’. Assim, não só o sonho da terra alimentava a esperança dos
migrantes, mas o sonho de uma escola de qualidade que, no sul, eles não teriam condições
de manter seus filhos, mas, naquele novo espaço ela representava mais um ‘sonho’ que se
concretizaria.
67
O Colégio Santo Inácio tem sua origem no Brasil da década de 50, quando os padres jesuítas que se
instalaram na cidade de Maringá-PR, trouxeram as Irmãs Missionárias do Santo Nome de Maria, sediadas até
então na Alemanha, para atender as necessidades da comunidade. O colégio Santo Inácio tem como
mantenedora a Sociedade Cultural Santo Inácio, constituída pelos membros da Congregação das Irmãs
Missionárias do Santo Nome de Maria. A congregação foi fundada na Alemanha pelo bispo de Osnabruck,
D. Wilhelm Berning, em 25 de março de 1920, com a finalidade de preservar e propagar a fé católica no
norte da Alemanha e além fronteira. O serviço de evangelização se estendeu por cidades da Alemanha,
Suécia, Paraguai e Brasil. Fonte: http://www.colegiosantoinacio.com.br.
116
Nesse sentido, uma escola semelhante à escola do Sul, com as características de um
ensino ‘rigoroso’, ‘tradicional’ e fundamentado numa filosofia cristã, garantiria a
‘qualidade’ da educação, mesmo em meio à floresta:
A colonizadora tinha apoio da Alemanha. O pessoal da Alemanha
mandava materiais para Maringá no Colégio Santo Inácio e a D. Nilza
trazia de avião para cá. O planejamento das aulas as irmãs seguiam mais
ou menos o do colégio Santo Inácio. Elas davam tudo pronto no começo
por que tinha professor que não tinha formação nenhuma, então para ficar
tudo igual elas entregavam tudo pronto. (BRAZ, depoimento 08/11/2011)
As irmãs traziam muita coisa da escola de Maringá, praticamente tudo
que tinha mesmo sendo pouco, era de Maringá. Tudo que era trabalhado
era baseado nos livros que as irmãs traziam de lá, ai tinha a parte de
geografia do estado que era daqui de Mato Grosso. [...] Era uma escola
muito exigente: tinha reunião todo final de mês, a gente tinha de prestar
contas para as irmãs, tinha que explicar o porquê das notas dos alunos e
os alunos tinham que ter as notas para passar de ano, não tinha conversa,
senão não passava mesmo! [...] O Colégio Santo Inácio de Maringá era
um colégio bem puxado. Como as irmãs vieram de lá, trouxeram muito
materiais, como elas davam aula lá, elas queriam que a gente ensinasse
meio parecido aqui. (GUERRA, depoimento 25/11/2012)
A opção encontrada pela professora no início e, posteriormente, pelos novos
professores que chegavam à cidade, era seguir os livros didáticos, as cartilhas, os
planejamentos elaborados pelas irmãs católicas, assim como as orientações pedagógicas
concedidas pelas mesmas, o que, de certa forma, impunha um currículo deslocado da vida
e da cultura local, visto que os materiais, os conteúdos trabalhados, assim como os
costumes, eram inspirados no modelo da escola do Paraná.
Para tanto, fundamentamo-nos na ótica de Certeau (1998), para quem não se pode
deduzir diretamente sobre o uso dos produtos que são fabricados e impostos por um lugar,
mas o modo com que eles e suas práticas são incorporados por aqueles que não as
produziram, que transformam aos seus modos as ordens estabelecidas. Tomou-se o
cuidado para perscrutar nos depoimentos obtidos, na materialidade das fontes, aquilo que
não se foi percebido, visto que, por mais que se intentasse implantar um sistema
educacional culturalmente paranaense isso era ‘escapável’ à ordem, primeiro porque
pessoas de outras regiões do país começavam a migrar para Sinop, como do sudeste e
nordeste, e também pelo fato de que a realidade mato-grossense era completamente
diferente. Nas palavras das primeiras professoras, é possível verificar alguns detalhes que
117
nos fazem entender que era preciso incorporar a nova realidade à vida dos alunos, mesmo
sendo impostas outras escolhas na esfera do ensinar:
Eu fazia perguntas para eles do tipo: Qual o seu estado? Em que cidade
você mora? Qual é a capital do estado? Que país você mora? A capital do
país, o nome da cidade, o nome do prefeito- que não tinha, porque era em
Chapada e ninguém o conhecia, daí então, pedia quem era o dono da
colonizadora? Quem é o comandante da cidade? Porque daí eles
aprendiam que o dono da colonizadora era o seu Ênio e o que comandava
a cidade era S. Ulrich68
, assim era feito os estudos sociais, mas mais
regional. (GUERRA, depoimento 25/01/2012)
Eu tinha que associar a realidade do que a gente estava vivendo com as
minhas aulas, então a minha metodologia era adaptada assim: para
ensinar uma letra eu associava a mata, a floresta, o rio. Então, eu fiz meu
método! Eu associava à nossa realidade, não tinha outro jeito, por que
senão era difícil para ensinar. (BRAZ, depoimento 08/11/2011)
Com o passar do tempo, particularmente a partir de 1976, quando a escola torna-se
oficialmente uma escola estadual, muitas características começaram a ser modificadas.
Novos professores com formação para o exercício da docência integraram o corpo docente,
novos alunos começam a chegar de outras regiões, porém, o trabalho dirigido pelas irmãs
ainda impunha.
A escola começou a ter maior influência na organização do espaço e do tempo
escolar mato-grossense. Os livros, cartilhas, os materiais básicos para o trabalho docente
começaram a ser enviados pela administração estadual, assim como as carteiras
individualizadas. Mesmo continuando no mesmo espaço arquitetônico até o final da década
que estamos investigando, assim como sob o mesmo direcionamento pedagógico das
irmãs, um trabalho mais efetivo entre colonizadora, igreja e estado começou a ser feito nas
escolas, até então centralizado pela igreja e a colonizadora.
Neste sentido, ao analisar o processo de escolarização durante o período de
colonização de Sinop, torna possível identificar e interrogar sobre as mudanças e
permanências que envolveram o processo escolar, contribuindo, assim, “para descobrirmos
infinitas possibilidades de viver e, dentro da vida, formas infinitas de fazer a e do fazer-se
da escola e de seus sujeitos”. (FARIA FILHO; VIDAL, 2000, p. 21).
68
O Sr. Ulrich Grabert foi o topógrafo responsável por demarcar o projeto de colonização da Gleba Celeste
em 1971 e, posteriormente, responsável pela equipe de trabalho que abriria as áreas onde seriam implantadas
as cidades do projeto colonizador.
118
Finalmente, de acordo com as análises de Viñao Frago e Escolano (2001, p. 63),
pode-se considerar que:
São muitas as influências e entrecruzamentos entre o espaço e tempo.
Mas ao menos em relação ao passado, não captamos a duração em si
mesma; podemos medi-la, segmentá-la, mas carecemos de memória
acerca da duração. O que recordamos são espaços que levam dentro de si,
comprimido, um tempo. Nesse sentido a noção de tempo, da duração, nos
chega através da recordação de espaços diversos ou de fixações diferentes
de um mesmo espaço. De espaços materiais visualizáveis. O
conhecimento de si mesmo, a história interior, a memória em suma, é um
depósito de imagens. De imagens que, para nós, foram, alguma vez e
durante algum tempo, lugares. Lugares nos quais algo de nós ali ficou e
que, portanto, nos pertencem; que são, portanto, nossa história.
Desse modo, as marcas deixadas pela organização escolar através dos espaços e
tempos, se apresentam na presente pesquisa nos detalhes micros, nas percepções
encontradas sejam nos documentos escolares ou nas ‘entrelinhas’ das fotografias, ou ainda
nas recordações dos ‘depósitos de imagens’ de alunos e professores que vivenciaram tal
história. Para eles, a imagem do presente se sobrepõe à história de dificuldades do passado,
atenuando as lembranças ruins, ou qualquer adversidade que tenham experimentado. Os
relatos ‘saudosistas’ dos sujeitos dessa história constituem tramas de boas recordações, da
escola da meninada, escorada com a mesma pedra daquela infância, possibilitando ainda
sentir um cheirinho de rabugem69
, e fazendo sentir saudades toda vez que um deles passa
ali!
Entretanto, não poderíamos reduzir a presente investigação em uma simples
narrativa saudosista ou ‘romantizada’ da história, daí a importância de estarmos
apresentando a ‘outra’ versão da história, aquela cuja experiência foi vivida pelos heróis
sem nome, e que, por conseguinte, se mostram por vestígios deixados por uma história-
acontecimento significada pelos sujeitos que a construíram, que com suas artes a fizeram
acontecer, e que, apesar de no presente estes já não mais perceberem as dificuldades, os
tempos sofridos história e suas marcas ainda são perceptíveis, passíveis de discussão,
estando ainda toda manchada de tinta das escritas.
69
Cora Coralina, ao dizer do que sente sobre sua escola primária, se recorda até mesmo do cheiro de
rabugem dos cachorros dos colegas, ou seja, rabugem como uma doença similar à sarna, que a poetiza
relembra com boas recordações, nos mostrando que a imagem do presente atenua as difíceis situações do
passado.
119
CAPÍTULO III
A escola mesmo daquele jeito, era nossa! Era tudo! 70
Escola Galinheiro – Nilza de Oliveira Pipino. Claudevânia B. Anderle. Acrílico sobre tela painel,
80X60, 2012
70
Depoimento Ponce, 2012.
120
3.1. Organização e funcionamento da Escola: ‘era tudo muito técnico e
abstrato’71
Figura 25 - Alunos em recepção a Júlio César Magalhães, no Dia do Trabalho, 1977.
Fonte: Acervo Particular Maria Lúcia Braz, 2011
Tal como a chuva caída
Fecunda a terra, no estio,
Para fecundar a vida
O trabalho se inventou.
Feliz quem pode, orgulhoso,
Dizer: “Nunca fui vadio:
E, se hoje sou venturoso,
Devo ao trabalho o que sou!”
É preciso, desde a infância,
Ir preparando o futuro;
Para chegar à abundância,
É preciso trabalhar(....)
(Olavo Bilac, O Trabalho em Poesias, 1888)
71
BÉRGAMO, Depoimento 17/01/2012.
121
Os versos da poesia de Bilac expõem objetivismo e racionalismo, traços
característicos do Parnasianismo72
. O tom imperativo do poeta faz alusão de que é pelo
trabalho que alguém se torna o que se é e, por isso, é preciso que seja ensinado desde a
infância, para ir preparando o futuro, e, então se chegar à abundância.
A poesia, apesar de ter sido escrita no final do século XIX, pode ser trazida à
discussão para que possamos também pensar a escola de Sinop, na década de 1970 do
século XX, devido à educação se voltar para o trabalho, para a qualificação técnica, para a
formação dos cidadãos aos moldes do Estado, imperando no interior da escola a ordem, o
civismo, o silêncio, a obediência, a disciplina, a preparação para o trabalho.
Desta forma, para a análise da organização e funcionamento da escola em estudo,
cujas maiores intenções podem ser expressas pela poesia de Bilac, a formação para o
trabalho, voltamos para uma discussão das características que predominavam na Educação
da década estudada, de modo a tecer uma reconstituição de uma história em sua
especificidade, em trazer a cena um projeto diferente de escola que conviveu numa mesma
temporalidade Brasil afora73
com outros projetos de escola pública, o que possibilita, desta
forma, a emergência de se pensar cada Instituição Escolar na sua singularidade, na
intimidade de cada história.
Assim, neste momento, este trabalho sugere uma discussão sobre o discurso
nacional no que se refere ao contexto educacional na tentativa de romper com a ideia de se
ter “diferentes projetos de escolarização ancorados num discurso nacional que insiste em
homogeneizar, seja nas estatísticas, seja nas propostas pedagógicas” (SILVA, 2012, p. 2),
uma vez que pretende-se enfatizar a singularidade da Instituição em estudo, o que nos
permite contrapor ao discurso da existência de uma escola brasileira ‘única’, afinal, “hoje,
não é possível mantermo-nos encerrados no interior de uma visão unificada,
uniformizadora, do ensino e da pedagogia. Precisamos de abrir a escola (as escolas) a
uma diversidade de práticas e de realidades” (NÓVOA, 2012, p.13).
72
Foi um movimento essencialmente poético que reagiu contra os abusos sentimentais do Romantismo.
Teve início na França, em 1866, com a publicação de O Parnaso, que fazia referência a uma montanha
existente na Grécia onde, segundo a lenda, moravam o deus Apolo (da luz e das artes) e as musas
inspiradoras das artes. No Brasil surgiu no fim do século XIX, quando da publicação de Fanfarras,
de Teófilo Otoni. Os principais autores do movimento foram Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e
Raimundo Correia. Fonte: http://nelsonsouzza.blogspot.com.br/2010/11/um-poeta-olavo-bilac.html. 73
Cf. Silva (2012).
122
Contudo, faz-se necessário discutir o contexto histórico que o país vivia na década
de 1970 assim como o discurso pedagógico oficial, para que possamos aguçar a questão
proposta. De acordo com Germano (2011, p. 160), nesta década o clima em que o país
vivia se caracterizava, ao mesmo tempo, “por uma combinação de medo da repressão do
Estado e de euforia em decorrência do crescimento econômico”. (grifos do autor).
Dessa forma, no que se refere à educação, de acordo com o discurso nacional era
preciso, adequar a escola para esses fins – era necessário instrumentalizar, preparar desde a
infância os cidadãos para que se tornassem futuros trabalhadores habilitados a receber um
país em acelerado crescimento econômico/industrial que dependeria de muita ‘mão de
obra’.
Mesmo porque, naquele momento, a política educacional, segundo Germano
(2011), estava incompatível com a ideia de “Brasil-potência”, de acordo com o próprio
ministro da educação da época, Jarbas Passarinho, visto que em 1971, quase 30% das
crianças de 7 a 14 anos não tinham acesso à escola; a evasão e a repetência assumiam
dimensões alarmantes: para cada mil crianças que entravam na 1ª série do primário, em
1961, menos da metade (446) chegava à 2ª série e somente 56 ingressavam no ensino
superior; em 1972, a taxa de perdas era da ordem de 76%, só no primário. Dessa forma, o
Brasil ficava atrás de países como a República da África Central, Congo, Gabão, Mali, sem
contar a ‘distância’ de países como a União Soviética, os Estados Unidos, Canadá, entre
outros.
Segundo Germano (2011), tratava-se de um quadro que não poderia continuar, pois,
à medida que o sistema escolar se expandia os empregadores tendiam a exigir uma
elevação dos requisitos educacionais da força de trabalho e, nas palavras de Passarinho
(1985, apud Germano 2011, p. 168), “era um dever de Estado, a democratização do ensino
era um duplo imperativo: um imperativo ético e um imperativo político”.
De acordo com Chaddad (2010), em virtude da expansão da economia monopolista
americana para o mundo e, especificamente, para a política externa do Brasil, exigia-se
transformações no âmbito da política educacional, o que implicaria em mudança na
legislação que regularia o setor. A partir dessas transformações ocorridas no âmbito da
política educacional, buscou-se a criação de uma mão de obra técnica que suprissem o
mercado de trabalho nas áreas industriais em expansão.
123
Com isso, a chamada Reforma do Ensino de 1º e de 2º graus, oficialmente
denominada de Lei Federal n.º 5.692/71, foi fruto das reformas que marcaram as
décadas de 1960 e 1970, período do regime militar. Ocorreu a criação de convênios
de cooperação e apoio técnico entre o Ministério da Educação e Cultura do Brasil e a
Agency for International Development dos Estados Unidos, identificados pelas siglas
MEC-USAID.
De acordo com Mimesse (2008), tanto a Reforma Universitária, ou Lei Federal de
n. 5.540/68, e a Reforma do Ensino de 1º e de 2º graus foram produzidas em decorrência
desses convênios de cooperação, que tinham a pretensão de reorganizar e desenvolver o
sistema educacional brasileiro de tal modo que ele fosse adequado ao modelo de
modernização das indústrias, que requeriam mão de obra barata com um mínimo de
qualificação. Dessa forma, instituíram o ensino profissional obrigatório nas séries do
ensino médio, criaram as Licenciaturas Curtas e inseriram, obrigatoriamente, novas
matérias nas grades curriculares das séries do 1º e do 2º grau.
Germano (2011, p. 180) explica que a Lei 5.692/71, ao ser sancionada, assumia
uma configuração radical com a relação à preparação para o trabalho, visto sua
consonância com as necessidades do mercado. Para tanto, o Artigo 5°, parágrafo 2°, alínea
a, referente à formação especial prevista pelo currículo, “terá o objetivo de sondagem de
aptidões e iniciação para o trabalho, no ensino de 1° grau, e de habilitação profissional, no
ensino de 2° grau”.
Segundo Saviani (2001) o governo militar não intencionou criar uma nova Lei
de Ensino, mas apenas ajustar a que estava em vigor – Lei nº 4.024/61. Dentro desse
enfoque, foram elaboradas as reformas do ensino superior – Lei nº 5.540/68 – e dos
ensinos: primário e médio – Lei nº 5.692/71. Nesse período, inaugura-se a fase tecnicista
da educação, combinando com a política desenvolvimentista adotada pelo Brasil – a
qual, se constituía dependente da economia externa.
Assim, os reflexos de uma sociedade que necessitava de uma educação que fosse
consoante com o momento político que o país vivia, resultaram nas Reformas
Educacionais do ensino primário e secundário, cujo principal objetivo formar ‘cidadãos’
aos padrões do governo vigente e trabalhadores qualificados, uma vez que o ensino deveria
estar totalmente voltado para o tecnicismo.
É possível perceber logo no objetivo geral do ensino de 1º e 2º graus, da Lei
5.692/71, que a educação se fundamentava nacionalmente naquele momento histórico em:
124
Art. 1º - (...) proporcionar ao educando a função necessária ao
desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto–
realização, qualificação para o trabalho e preparo consciente da
cidadania.
Acredito ser relevante trazer à leitura, uma entrevista concedida ao Jornal da
Unicamp de agosto de 2006, pelo educador José Claudinei Lombardi, na ocasião
Coordenador-executivo do HISTEDBR – Grupo de Estudos e Pesquisas História,
Sociedade e Educação no Brasil, onde o mesmo tece algumas críticas sobre o velho
discurso que rege a história da educação brasileira. Dentre algumas concepções do
educador, elenco alguns trechos da entrevista que considero de maior relevância para a
discussão pontuada, em relação ao discurso nacional homogeneizador de conceber uma
escola única, voltada para solucionar todos os problemas da sociedade:
O discurso da educação como panaceia para todos os males é muito
antigo. Ele nasceu com a sociedade capitalista, como parte de um
discurso ideológico produzido para atribuir à escola um papel central no
cuidado com a infância, com a transmissão dos saberes considerados
socialmente relevantes, com a formação do cidadão e com a qualificação
do trabalhador. Apareceu já com essa característica geral, abstrata, a-
histórica, como se essa escola sempre tivesse existido, cumprindo um
papel central no desenvolvimento e na vida dos indivíduos. No Brasil isso
não foi diferente, pois desde o Império esse repetitivo discurso de que “a
educação é fundamental para ...” sempre esteve presente, sendo acionado
para justificar a diferença de desenvolvimento econômico e social, em
comparação com os chamados países desenvolvidos.
[...]ele, (o discurso), muda na aparência, mas permanece a mesma coisa
na essência, obedecendo aos preceitos liberais. A educação é colocada
como fundamental para o desenvolvimento econômico e social – tanto do
indivíduo, como da sociedade; se isto não ocorre, a culpa ou a
responsabilidade recai sobre a escola, sobre o currículo, sobre os métodos
pedagógicos, sobre os professores ou sobre os indivíduos que não
souberam aproveitar as oportunidades abertas pela educação. De um
ponto de vista histórico, trata-se de um discurso reincidente, presente em
praticamente todas as justificativas das reformas educacionais brasileiras.
[...] Ele, (o discurso), é sempre reducionista. Reduz todas as mazelas a
um único “remédio” – a educação – o que é absolutamente equivocado.
Sabemos muito bem que a educação não tem todo esse poder de
determinar os rumos da sociedade. Reduz tudo a um aspecto,
ideologicamente escamoteando que sem uma profunda transformação
econômica, política e social, pouco avançaremos na resolução dos graves
problemas gestados pelo próprio desenvolvimento da sociedade burguesa
– como a miséria, as guerras, a destruição do meio ambiente, o
desemprego estrutural e outros.
Como não interessa desvelar as bases estruturais que provocam os
desequilíbrios sociais, a culpabilidade acaba recaindo sobre a própria
sociedade, entendida como somatório dos indivíduos que a compõe. A
educação aparece, assim, nos mais diferentes momentos históricos, como
125
a principal possibilidade de promover uma reforma moral e intelectual
dos homens. Qual o instrumento usado pelos jesuítas para civilizar os
nativos das terras recém-descobertas? Por Pombal para implementar o
desenvolvimento liberal necessário a Portugal? Qual o remédio apontado
pelo imperador para os males que afligiam a recém-independente nação
brasileira? Ainda hoje o discurso é que só a educação possibilita um
choque de desenvolvimento ao Brasil. Sob formas e aparentes discursos
diferenciados, historicamente a educação é que tem sido apontada como a
solução salvadora para os males da sociedade (JORNAL DA UNICAMP,
p. 4-5, 2006).
Contudo, a máxima adotada neste trabalho é de que cada Instituição Escolar é
única, singular, e, portanto merecedora de ser objeto de estudo74
, o que desta forma, propõe
romper com os discursos nacionais que generalizam a escola brasileira, sem levar em
consideração a forma como historicamente se constituiu e se constitui diuturnamente cada
uma delas. É certo de que a Lei em vigor na década estudada pretendeu constituir de modo
generalizador a organização e o funcionamento das escolas, porém, os impactos, a forma
como cada escola lidou com a Reforma de Ensino só é possível de análise mediante à
estudos particularizados de cada uma, o que nos impede de tecer uma discussão que ajude
a “implodir a ideia de existência de uma escola brasileira” (SILVA, 2012, p. 2) – única e
redentora de todas as soluções para os problemas político-sociais, mesmo porque, “no
Brasil nunca se conseguiu oferecer à população uma escola ‘única’. As disparidades são
marcantes e cada vez mais precisam ser evidenciadas para que possamos superar o vício de
falar de um modelo de escola para tratar de modelos de escola que coexistem (SILVA,
2012, p.4), há, como nos alerta Nóvoa (2012, p.16) “a necessidade de abrir as escolas à
diferença, a uma pluralidade de pontos de vista e de projectos educativos, rompendo
com a indesejável uniformização que tem marcado a sua vida há mais de cem anos”.
Com isto, corroboro com Souza (2008), quando nos chama a atenção sobre o fato
de que as mudanças na organização do trabalho escolar costumavam ocorrer de modo lento
e imperceptível e somente a história das instituições pode revelar os desafios, os
enfrentamentos do cotidiano nas mudanças ocorridas, além disso, a forma como os
produtos fabricados foram incorporados pelos sujeitos, muitas vezes não nos são
perceptíveis ao ‘olhar’ como alerta Certeau (1998), e, por isto, cada escola revela um
cotidiano diferente, cada cotidiano composto por sujeitos diferentes, e por ser diferente,
são merecedores de um estudo particular, que não o reduza a um único discurso.
74
Cf. Sanfelice (2007).
126
Para tanto, sem a pretensão de reduzir esta pesquisa em conformidade com um
discurso pedagógico legitimador e generalizador, nos manteremos a analisar como estava
organizada e de que modo funcionava a escola em estudo, mantendo nosso olhar para o
cotidiano desta escola - seu cotidiano e suas reinvenções.
De acordo com as fontes compulsadas na Escola, a exemplo das grades curriculares
referentes ao período em análise, pôde-se constatar que o conteúdo foi dividido em quatro
partes: a primeira correspondia a um núcleo comum, a segunda abrangia as matérias
obrigatórias constantes no art. 7º da Lei 5692/7175
; a terceira era formada pela parte
diversificada e a última constituída das matérias destinadas às habilitações profissionais do
Ensino de 2º grau.
O núcleo comum era composto de três disciplinas com suas respectivas
particularizações: Comunicação e Expressão (Língua Portuguesa), Estudos Sociais
(Geografia e História e Organização Social e Política do Brasil), Ciências (Matemática e
Ciências Físicas e Biológicas).
Na Escola em investigação, encontramos fontes76
que nos informam sobre sua
organização e funcionamento. No primeiro ano (1973-1974) fazia-se necessário pontuar
novamente que a pequena escola, a ‘escola dos migrantes’, funcionava em regime
multisseriado, de agosto 1974 a 1979, passando a trabalhar em regime seriado. Contudo, a
organização curricular do 1º Grau, dava-se da seguinte maneira:
Quadro 1. Organização Curricular de 1ª a 4ª séries do 1° Grau
Fonte: Escola Nilza de Oliveira Pipino, 2011
1ª a 4ª séries do 1º Grau
Comunicação e Expressão
Iniciação à Ciência
Integração Social/Estudos Sociais
75
O artigo 7° da Lei em discussão traz a seguinte menção: Art. 7º Será obrigatória a inclusão de Educação
Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programa de Saúde nos currículos plenos dos
estabelecimentos de 1º e 2º graus, observado, quanto à primeira, o disposto no Decreto-lei no 869, de 12 de
setembro de 1969. Parágrafo único. O ensino religioso, de matrícula facultativa constituirá disciplina dos
horários normais dos estabelecimentos oficiais de 1º e 2º graus. 76
Grades curriculares, atas de resultados finais, cronograma de aulas, encontrados na Escola N. Sra. do
Perpétuo Socorro na cidade de Vera e na Escola Nilza de Oliveira Pipino, em Sinop.
127
Quadro 2. Organização Curricular de 5ª a 8ª séries do 1° Grau
Fonte: Escola Nilza de Oliveira Pipino, 2011
5ª a 8ª séries do 1º Grau
Núcleo Comum: Artigo 7º: Formação Especial:
Comunicação e Expressão
Ciência
Estudos Sociais
Educação Moral e Cívica
Educação Física
Educação Artística
Programa de Saúde
Ensino Religioso
Língua Estrangeira: Inglês
Práticas Agrícolas
Práticas Industriais
Práticas de Comércio
Práticas Integradas do Lar
Quanto ao 2º Grau, que funcionou após 1978 com autorização de funcionamento no
Diário Oficial somente em janeiro de 1979, estava organizado de acordo com as
Habilitações Específicas em Comércio, Magistério e Química, sendo estes compostos pelo
núcleo comum, disciplinas obrigatórias previstas pelo art. 7º, e das disciplinas mínimas a
serem exercidas na atividade profissional.
Na escola em análise é possível perceber um ensino voltado para a prática da
repetição, para a técnica da memorização e para o silêncio. Além disso, “os conteúdos
privilegiavam o sentimento de amor e respeito para com o próximo, ressaltando o modo de
agir e tratá-lo com civilidade, preparando a criança para a vida individual e coletiva”. (SÁ,
2007, p. 168).
Nas séries iniciais, da 1ª a 4ª série do 1º grau foi possível verificar que as
atividades trabalhadas eram compostas principalmente por ‘leituras silenciosas’, cópias,
ditados, tabuadas, as chamadas contas matemáticas de ‘arme e efetue’, entre outros
exercícios mecânicos onde o aluno escrevia, inúmeras vezes, letras, sílabas, palavras ou
números, conforme recordado em alguns depoimentos:
Tinha muito ditado e cópia, se resumia muito em quadro e caderno então
era copiar, copiar! Lembro nos ditados que se a gente errava alguma
palavra, tinha de escrever ela inúmeras vezes, e, se durante a reescrita
você errasse de novo, você escreveria tudo de novo muitas vezes [...].
Também tinha que saber a tabuada ‘salteada’ , era um sofrimento, eu
tremia! Você não sabia se você tremia por que estava com medo ou se era
porque não sabia mesmo. (BÉRGAMO, depoimento 17/01/2012).
128
As crianças precisavam aprender escrever, copiar das duas formas da
letra de ‘forma’ e a outra cursiva, eles primeiro aprendiam as vogais o A,
E, I, O, U, depois o alfabeto. Eles tinham que saber ler o que eles
estavam escrevendo: TATÁ, TATU, BOLA, BEBÊ, etc. Primeiro tudo
com letras minúscula para depois aprender em letras maiúsculas...para
então depois aprender ler no livro. Na primeira série era cartilha que
vinha de Maringá no começo e depois o Estado mandava para Vera e de
lá vinha um tanto para cá. (GUERRA, depoimento 25/01/2012).
No que se refere aos cadernos de uma aluna77
da época, constatamos as práticas
narradas pelos sujeitos da pesquisa, a fim de fazer uma reflexão diante da bibliografia
estudada, no que se refere ao um ensino repetitivo, instrumental e mecânico:
Figura 26- Caderno da 1ª Série, 1977.
Fonte: Acervo Particular Carla Sprizão Ponce
77
Cadernos de diferentes séries cursadas pela aluna Carla Sprizão Ponce. Fonte: Acervo Particular Ponce,
2012.
129
Figura 27- Caderno da 2ª Série, 1978.
Fonte: Acervo Particular Carla Sprizão Ponce
Figura 28- Caderno da 3ª Série, 1979.
Fonte: Acervo Particular Carla Sprizão Ponce
130
Figura 29- Caderno da 3ª Série, 1979.
Fonte: Acervo Particular Carla Sprizão Ponce
Outra prática comum na 1ª série do 1º grau era a cobrança da Leitura. Todos os
alunos, ao final do ano letivo, eram submetidos aos exames de leitura, os quais as irmãs
chamavam aluno por aluno para ler em voz alta. Segundo depoimentos, os alunos que
obtivessem nota satisfatória em outras matérias, mas que não conseguissem sucesso no
teste de leitura não seria aprovado para a série seguinte. Algumas narrativas interessantes
dizem por elas mesmas:
Na 1ª série, no 4º bimestre a criança tinha que ler, tinha exame de leitura,
se não soubesse não passava de ano! Não tinha conversa! (GUERRA,
depoimento 25/01/2012).
No teste da leitura era uma expectativa. Era uma tensão, era como um
vestibular hoje, por que não era a professora que te acompanhou o ano
todo que pedia para você ler, eram as irmãs que tomavam. (SILVA,
depoimento 07/02/2012).
Além dos testes de leituras que as irmãs católicas faziam ano final do ano letivo,
outros exames também eram aplicados no decorrer do ano letivo. A partir da 2ª série do 1º
131
grau, por exemplo, testes de tabuadas eram exigidos com rigor e de forma muito abstrata, o
que se consolidava um ensino pouco efetivo:
Não tinham nada de concreto, nada que facilitasse a aprendizagem. Em
matemática, desenhava-se bolinha, pauzinho na folha para dividir, mas na
cabeça de uma criança era difícil fazer isto, era tudo muito abstrato! Eu
tinha de aprender tudo na decoreba mesmo. Eu olhava o amigo que era
bom em matemática fazer os exercícios, aí eu decorava todo o exercício
na minha cabeça, então, quando eu tinha de ir para a lousa eu ficava
torcendo para ser aquele exercício que eu havia decorado, para colocar
todos os números certinhos, no lugar certinho, como eu havia decorado.
Mas nem sabia o que aquilo significava! (BÉRGAMO, depoimento
17/01/ 2012)
Assim, percebemos que as ações voltadas para a prática de leitura ‘das palavras’,
para a escrita, como também os cálculos eram mais exigidos no interior da sala de aula,
desde os anos iniciais da escolarização, o que demonstra a supremacia da Língua
Portuguesa e da Matemática no interior desta Instituição.
O núcleo comum, segundo exemplos apresentados nos cadernos e nas narrativas
comentadas, naquele contexto histórico, simplificava o currículo da escolarização básica,
oferecendo o mínimo necessário para que os sujeitos se adequassem à formação técnica,
exigidas pelo mercado de trabalho.
Além das disciplinas do núcleo comum, cujos objetivos implícitos era
instrumentalizar o cidadão, as matérias obrigatórias previstas pelo Art. 7º da Lei em
discussão, a partir da 5ª série, como a Educação Moral e Cívica, Educação Física,
Educação Artística, Programa de Saúde e Ensino Religioso, estavam voltados para a
transmissão de valores e juízos morais, para o civismo e “para a inculcação da ideologia
política do regime militar” (SOUZA, 2008, p. 272), além de ser uma forma de introduzir
com essas disciplinas a “ideologia de segurança nacional”. (GERMANO, 2011, p. 168)
Desse modo, constatamos nos diários de classe e em caderno de planejamento de
uma professora, que estas matérias fixadas pelo Art. 7º se ligavam entre si no que diz
respeito ao cultivo das boas maneiras, ao amor ao próximo e à Pátria, à devoção à Igreja
Católica.
Também nos depoimentos colhidos, referentes ao que era ensinado, é possível
pontuar que as aulas de Educação Artísticas, por exemplo, além de trabalhos manuais,
como bordar e tricotar, as aulas também ensinavam técnicas de desenho que ilustrariam a
132
rua para a celebração de Corpus Christi, para os ensaios de desfiles cívicos ou para
apresentações de jograis, músicas, poesias que elevassem a Pátria, ou expressassem
orgulho, agradecimento na recepção de alguma autoridade, especialmente quando se
tratava do colonizador Ênio Pipino, que costumava visitar a escola quando estava em
Sinop.
Outros vestígios encontrados se referem às aulas de Ensino Religioso, que na Lei
em vigor fixava matrícula facultativa que constituía de disciplina dos horários normais dos
estabelecimentos oficiais de 1º e 2º graus78
. No entanto, a grande maioria dos migrantes
professava a religião Católica, então, acreditamos que praticamente todos os alunos,
durante o período investigado, provavelmente participavam das aulas. Alguns depoimentos
fazem menção ao respeito à opção religiosa, contudo, nos registros de matrícula e nas atas
de resultados finais de exame, que tivemos acesso, não constatamos a existência de alunos
que não participaram das aulas, os registros não trazem qualquer informação.
O Ensino Religioso era constituído da catequese oferecida na Igreja Católica, mas
as aulas aconteciam dentro da escola, segundo as narrativas, primeiro porque eram as irmãs
que ministravam tais aulas, depois, pelo fato de as crianças da escola serem as mesmas que
frequentariam a catequese, além do agravante da Igreja não dispor, até então, de espaço
físico. Assim, a catequese acontecia durante as aulas do Ensino Religioso e por isso seguia
seu trabalho conforme o calendário da Igreja em Campanhas, como as da Fraternidade,
Missionárias, além de missas semanais realizadas na própria escola ou fora dela, quando os
alunos saíam todos juntos e iam caminhando até a igreja para participar do evento.
Uma das fontes encontradas nesta pesquisa refere-se a um caderno de planejamento
de uma professora da disciplina de Ensino Religioso, correspondente à 2° série do 1° grau.
Ali, as atividades elaboradas se destinam a ‘moldar’ o comportamento da criança,
transmitir valores e juízos religiosos, além de tarefas que buscavam fazer com que o aluno
‘decorasse’ orações e cânticos religiosos, copiasse orações e passagens bíblicas, dentre
outras atividades de memorização. Das aulas planejadas destacamos uma em particular, a
qual tinha como objetivo trabalhar de forma ‘harmoniosa’, que convinha com os ideais da
cristãos, através da convivência com o outro na escola, o compromisso em ‘imitar’ Jesus
Cristo no que se refere ao comportamento escolar, com professores e colegas:
78
Cf. Art. 7 da Lei 5692/71.
133
Figura 30- Caderno de Planejamento da Professora para o Ensino Religioso da 2ª série, 1976
Fonte: Patrimônio Histórico de Sinop, 2011
Ainda, em relação ao que foi tratado, existem alguns relatos interessantes que se
fazem necessários pontuar:
134
A catequese era na escola, era a mesma disciplina de ensino religioso, se
tinha alguém de outra religião não era obrigatório, mas para nós que
éramos católicos tínhamos que fazer todos os sacramentos. E, era parte do
ensino religioso a participação na comunidade, participar da missa, tudo
que acontecia na cidade a escola sempre estava lá. A gente participava
junto com a igreja, tinha essa ligação. Tinha missa semanal na escola, às
vezes o padre ia fazer confissão na escola. (SILVA, depoimento 07/02/
2012)
Íamos à missa toda a semana. Cada professor juntava sua turma, colocava
em fila, ficava um olhando para a cabeça do outro e saíamos da escola
para ir à missa. Mas eu adorava, era um momento de sair da escola! Eu
adorava o externo, mas era tudo robozinhos. (BÉRGAMO, depoimento
17/01/2012)
Ao relacionar o cotidiano da escola em investigação no que se refere à influência da
Igreja em consonância com o Estado, Germano (2011), nos esclarece que a experiência
militar, a exemplo do aprendizado da ‘arte da guerra’, incorpora uma fundamentação cristã
na defesa de uma profissionalização. Assim, intelectuais militares e eclesiásticos unem-se
em torno dos mesmos propósitos. Germano, cita o parecer n. 45/1972 (apud Germano,
2011, p. 180-181), escrito pelo Padre José Vieira, membro do Conselho Federal de
Educação, desde 1962 e integrante do Grupo de Trabalho da Lei 5692/71, quando faz
referência à nova Lei:
A nova Lei tem, pois, na insistência por uma educação mais técnica, uma
das suas notas dominantes. Significa esta premissa ruptura com as
tradições educacionais cristãs do Brasil? Uma antinomia, entre tecnologia
e humanismo? Reduz o sentido formador e a substância espiritualista do
trabalho do educador? Tende a fazer do aluno peça de uma máquina
maior a serviço do desenvolvimento) tomado apenas em sentido material)
do País? Apresso-me a responder que não. [...] O mal-entendido é julgar
que o cristianismo se oponha à educação tecnológica, como se ela fosse
uma espécie de paganismo, em contraposição com a cultura clássica, que
seria a cristã [...]
Para Germano (2011), ficam claras as justificativas de ordem moral com base na
preservação dos valores cristãos, sob um discurso legitimador do Estado e uma educação
que superasse as desigualdades sociais.
Contudo, retornando às práticas investigadas na Escola em estudo, em relação às
que envolviam o cuidado com o corpo, com a Higiene, além dos valores familiares e
sociais que exaltassem o regime militar, eram relembrados cotidianamente, seja nas aulas
específicas de Programa de Saúde, Educação Física, Educação Moral e Cívica ou nos
momentos anteriores à entrada para a sala de aula, nos quais as irmãs, principalmente a
135
Irmã Edita, diretora da escola, que fazia questão de reunir todos os alunos em fila para,
após cantar o hino e fazer a oração diária, pronunciavam discursos que faziam alusões aos
valores, normas e juízos que eram necessários ser mantidos na escola, na família e na
sociedade.
Quanto às disciplinas que compunham a parte da Formação Especial, ministrada a
partir da 5ª série, eram divididas em Práticas Agrícolas, Práticas Industriais, Práticas de
Comércio e Práticas Integradas do Lar, onde os alunos eram instruídos a lidar com o
trabalho, aprendendo técnicas de plantio, colheita, economia doméstica rural, organização
industrial, contabilidade e, no caso das meninas, Práticas do Lar: cuidados com a casa,
pregar botões, bordar e cozinhar. Como recorda uma ex-aluna, “aprendíamos a bordar, a
costurar e a cozinhar, e lembro também que aprendíamos sobre o plantio. Graças à escola,
eu aprendi pregar botão, a fazer uma barra na calça!” (BÉRGAMO, depoimento
17/01/2012).
Um ponto interessante que a investigação nos apresentou foi quanto à interferência
não somente da Igreja, como também da colonizadora, como já dito, principalmente no que
se refere às decisões educacionais. Vários ofícios dirigidos à Delegacia Estadual de
Educação de Mato Grosso, foram emitidos pelo próprio colonizador, Sr. Ênio Pipino. Em
um deles em especial, o colonizador solicitava à implantação de um curso técnico, com
habilitação em Análises Químicas, em 1978, pois, estrategicamente, na década de 1980,
um novo empreendimento da Colonizadora Sinop viria a se concretizar: a Sinop
Agroquímica (SAQ).
De acordo com Oliveira (1983), a Sinop Agroquímica tratava de uma indústria que
se destinava diretamente à produção de álcool anidro proveniente da mandioca. Segundo o
autor, a opção da Colonizadora Sinop pela implantação da indústria de álcool de mandioca
se deveu ao fato de ser um produto pouco exigente em termos de solo e clima. O início da
construção da SAQ data de 1975, quando começaram os trabalhos de reunir forças,
tecnologia e recursos financeiros para concretização do empreendimento. O objetivo da
SAQ era promover a industrialização dos produtos agrícolas para atender não somente o
mercado local, como também os mais distantes.
Nesse sentido, era viável para o êxito do projeto contar com mão de obra
qualificada, habilitando os próprios alunos para, posteriormente, trabalhar na empresa.
O curso de Habilitação Básica em Química iria funcionar junto ao Centro
Educacional de Sinop (Escola Nilza de Oliveira Pipino, já elevada 2° Grau e contando com
136
quadra poliesportiva) justificada pelo colonizador como a ‘necessidade’ de formar mão de
obra qualificada na própria região e que daria abertura aos ‘quadros humanos’ existentes a
perspectiva de contar com um ensino qualificado e mais ‘aprimorado’.
Assim, no ano de 1979 a solicitação do colonizador foi atendia, pelo então
Secretário de Educação do Estado, Salomão Baruki, iniciando com as ofertas do Ensino de
2° Grau em Sinop, através dos cursos com habilitação em Comércio, Magistério e
Química, como já pontuado.
As cartas a seguir se referem à notificação que o colonizador Ênio Pipino fez à Irmã
Edita, responsável pela educação de Sinop e da Gleba Celeste, anunciando sua solicitação
ao Secretário de Educação sobre o curso de Habilitação Básica em Química, o qual
atenderia às expectativas do seu novo empreendimento na cidade: a Sinop Agroquímica79
:
79
De acordo com Pereira (2007), com a crise do álcool, na década de 1980, os planos da Sinop
Agroquímica, cuja pretensão era produzir 50 milhões de litros de álcool por ano, foram obstaculado.
137
Figura 31- Carta do Colonizador Ênio Pipino à Irmã Edita, 1978
Fonte: Escola Estadual Nilza de Oliveira Pipino, 2011
138
Figura 32- 1ª Parte da correspondência enviada pelo Colonizador ao Secretário de Educação do
estado, 1978
Fonte: Escola Estadual Nilza de Oliveira Pipino, 2011
139
Figura 33 - 2ª Parte da correspondência enviada pelo Colonizador ao Secretário de Educação do
estado, 1978
Fonte: Escola Estadual Nilza de Oliveira Pipino, 2011
De acordo com Oliveira (1983), o discurso oficial do colonizador sobre a criação da
SAQ era “uma resposta do espírito de iniciativa de nossa gente no sentido de que o país
possa continuar na sua luta para superar nossas carências de energia carburante. E, para
efetivação desse empreendimento, precisamos agradecer aos Ministros da Indústria e
Comércio, Presidente do Banco do Brasil e Superintendente da SUDAM” (O
SINOPEANO, 1979, apud OLIVEIRA, 1983).
140
Outro fato instigante é que a empresa colonizadora, após a instituição da escola em
Sinop, utilizou da própria educação em suas propagandas para continuar a atrair migrantes.
Nos versos escritos por Ênio Pipino, em uma revista encomendada pela colonizadora e
divulgada principalmente na região Sul, a escola servia de instrumento que envolvia e
seduzia o migrante a deixar sua terra de origem e vir em busca de um futuro promissor,
além de relacioná-la ao progresso ‘célere’ da Gleba Celeste. Nas palavras do colonizador:
A Gleba Celeste era um mundo verde, dormindo, na solidão da
Amazônia. Transformamos o seu rosto, abrindo clareiras e picadas na
mata virgem.
E nasceram os primeiros povoados, esperançosas cidades de hoje,
crianças ainda, mas correndo, céleres, para o progresso.
E lavradores enfeitaram de roças novas as terras.
E templos de fé passaram a glorificar a Deus.
E o comércio se tornou forte e a indústria já anuncia rolos de fumaça nas
chaminés e gritos de sirenes acordando a distância.
E neste novo mundo, esperançoso e feliz, crianças aprendem as suas
primeiras letras e os jovens conquistam bancos colegiais.
Como é bom alargar fronteiras de nossa Pátria!
Como é dadivoso o ideal que se enfeita de realizações!
Agora, a Gleba Celeste acena para o Brasil como novo mundo de
riquezas e civilização - prêmio maior ao nosso ideal de plantar cidades,
vendo a terra abrir-se em floradas e anunciar milagres da colheita.
(UM PASSO DA CONQUISTA DA AMAZÔNIA, 1979)
Nesse sentido, percebeu-se que a educação em Sinop, com a constante influência da
colonizadora, buscava aos seus modos, de alguma forma, atender os propósitos nacionais
de uma política social fundamentada pela ideologia tecnicista, para a formação para o
trabalho, com o objetivo de ‘educar’ mentes e corpos que fossem viáveis às expectativas
do Estado. Com isso, torna-se evidente que a seleção e a produção do conhecimento
sempre estiveram repletas de intencionalidades e de algum modo intimamente ligadas à
necessidades e interesses “políticos80
.
Com os versos de Olavo Bilac, trazidos no início, nos permite pensar sobre as
estratégias dos que ocupavam um lugar próprio – era necessário ‘treinar’,
instrumentalizar, aqueles que na escola estavam na categoria dos ‘sem vozes’, dos homens
comuns, para que eles se tornassem trabalhadores, conscientes de que para fecundar a
vida - o trabalho se inventou. E, que portanto, sendo trabalhador servil, obediente à Pátria
80
Cf. Godson, 2008.
141
e a Deus, poderiam trazer o pão de cada dia para mesa de suas famílias. Podendo, no
futuro, mostrar aos filhos feliz e orgulhoso que a vadiagem nunca ali habitou, e, então ,
poder dizer venturoso: Devo ao trabalho aquilo que sou!
Contudo, como estes modelos fabricados para os ‘sem vozes’ foram incorporados,
devemos refletir, na perspectiva da cultura escolar, como “apropriação criativa de
modelos, baseada na relação entre determinantes sociais e históricas e as urgências
próprias da organização e do funcionamento dos escolares” (VIDAL, 2005, p. 19), o que
discutiremos com mais amplitude no último item desse capítulo, partindo do pressuposto
de que:
Conhecer as táticas de apropriação implica conhecer também as
estratégias de imposição, isso pelo fato de que, para se saber o que é
apropriado pelos sujeitos escolares, é preciso saber antes o que será
prescrito nas normas que regerão as difusões e circulações das
imposições que serão postas pelos sistemas de normatização e de
regulamentação dessas práticas.
(GONÇALVES, 2004, p. 17).
3.2. Tramas do Real: Rezava-se muito e cantava-se com amor, com
patriotismo mesmo!81
81
Depoimento Gobbo, em 14/01/2012.
142
Figura 34- Fanfarra da Escola Nilza de Oliveira Pipino, 1978
Fonte: Colonizadora Sinop, 2011
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha...
Quem com seu suor a fecunda e umedece,
Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!
Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!
(Olavo Bilac, A Pátria- Poesias Infantis, 1888)
Novamente a poesia de Olavo Bilac parece expressar de forma sucinta as ações
sutilmente praticadas e produzidas pela educação de Sinop durante o processo de
colonização e construção da cidade, desde a pequena sala de aula improvisada pelos
migrantes à escola institucionalizada. Desta, vez, tomamos a poesia A Pátria, pensada para
143
ensinar à criança os valores patrióticos, o amor à nação, o valor do trabalho, a imitação da
grandeza da terra natal.
Dessa forma, naquele contexto era preciso ensinar àquelas crianças a servir à Pátria
e à Igreja, com amor, fé e orgulho, desde a tenra idade. As ações de uma sociedade civil
obediente, desbravadora, de um povo heroico o brado retumbante82
, refletiam no interior
da escola investigada.
Entre aquilo que era ensinado e trabalhado na unidade escolar, previsto pelo
currículo, estavam as práticas que docilmente apareciam sob a forma de festividades,
cultos religiosos e rituais cívico-patrióticos que se inseriam por meio de culto à bandeira,
desfiles cívicos, canto do Hino Nacional, oração pela Pátria, declamações de poesias
relacionados ao país, além de comemorações aos heróis consagrados pela história oficial
ou que simbolizavam os ‘verdadeiros’ patriotas da Nação.
De acordo com Sá (2007, p. 168), “através das festas cívicas, pretendia-se formar
cidadãos patriotas, utilizando-se de recursos mais informais e agradáveis que envolviam
todos os alunos e famílias, não restringindo-se a uma mera preparação intelectual”.
Assim, é relevante enfatizar que se tratava de uma década onde o regime militar
instaurava conceitos que buscavam promover o civismo e o patriotismo na tentativa de
mobilizar o povo brasileiro, de fazer com que o pensamento de ‘amor à Pátria’, de
obediência, de ordem e progresso atenuassem as imagens de torturas, de censura, enfim, de
conflitos políticos e sociais.
Desta forma, a importância para que esses rituais tomassem forma através dos atos
cívicos, festas e comemorações onde fosse possível visualizar os feitos de grandes heróis
constituíam formas que o poder utilizava para que a ordem social fosse mantida. E a
escola, nesse cenário, era local propício para se cultivar os valores determinados pela elite
que governava o país.
No calendário escolar de Sinop, durante o período delimitado, percebe-se que além
dos dias letivos, do calendário de provas e reuniões pedagógicas ocorriam os feriados em
consonância com as comemorações sacras da Igreja Católica, assim como os dias
destinados a demonstrar o respeito e a gratidão à Pátria.
82
Palavras inspiradas na letra do Hino Nacional Brasileiro.
144
Entre as datas em questão, podemos destacar conforme os calendários e registros de
atividades escolares83
, a seguinte relação das festividades e cultos cívicos que eram
trabalhados:
Março/Abril – Semana Santa/Sexta-feira Santa/Páscoa
Março- Início da Campanha da Fraternidade
19 de Abril- Dia do Índio
21 de Abril – Dia de Tiradentes
22 de Abril – Descobrimento do Brasil
1 de Maio – Dia do Trabalho
2º Domingo de Maio – Dia das Mães
13 de Maio – Abolição da Escravatura
Maio ou Junho – Corpus Christi
13 de Junho – Dia do Padroeiro da Cidade Sto. Antônio
2º Domingo de Agosto – Dia dos Pais
25 de Agosto – Dia do Soldado
01 de Setembro- Início da Semana da Pátria
07 de Setembro – Dia da Pátria
14 de Setembro – Aniversário de Fundação de Sinop
12 de Outubro – Dia de Nossa Senhora Aparecida, Dia das
Crianças
15 de Outubro – Dia do Professor
02 de Novembro – Feriado - Dia dos Finados
15 de Novembro – Proclamação da República
19 de Novembro – Dia da Bandeira84
Tais festividades eram trabalhadas na escola com muito fervor e contava com a
participação de todos os alunos, professores e funcionários. De acordo com os relatos orais
obtidos na pesquisa, eram planejados com muita antecedência, ensaiados com os alunos
para que tudo saísse conforme planejado.
Além disto, a cidade toda esperava por esses momentos. A população parava para
assistir os desfiles cívicos, assim como as festividades patrióticas e religiosas. Era um
orgulho para aquele povo ver seus filhos marchando devidamente uniformizados nos
desfiles cívicos ou fazendo parte da fanfarra da escola, ou hasteando as bandeiras,
cantando em alto e bom som o Hino Nacional; era compensador ver seus filhos
declamando poesias que exaltassem a Pátria e o novo lugar onde residiam, mesmo que isso
acontecesse em meio à selva amazônica. Entretanto, provavelmente as pessoas não viam
83
Foram analisados calendários letivos, diários de classe, fontes iconográficas encontrados na Escola
investigada durante o período delimitado, além de narrativas colhidas de ex-professores e alunos da época. 84
Fonte: Arquivo da Escola Estadual Nilza de Oliveira Pipino, 2011.
145
pela ótica de uma selva, mas quiçá se tornasse menos doloroso para elas assumir a visão do
poeta e pensar pela ótica de que se tratava apenas de uma grande extensão de matas, onde
imperava, fecunda e luminosa a eterna primavera!
Ainda, as datas aos heróis nacionais eram comemoradas na própria escola,
incorporando poesias, músicas, dramatizações, e em algumas vezes, quando possível,
através das vestimentas representativas de soldados, índios ou trabalhadores que saiam às
ruas segurando nas mãos bandeirinhas do Brasil, para que a população local pudesse
contemplar os trabalhos realizados. Além disso, quando possível, ‘vestiam’ os alunos com
trajes sulistas nas apresentações culturais e desfiles cívicos, a fim de recordar e manter as
origens culturais dos migrados. O interessante é que, mesmo que a família não tivesse
condições de adquirir as roupas para os desfiles, as Irmãs ‘davam um jeito’ com a ajuda da
colonizadora que fazia as doações necessárias, tudo para que ‘aparentemente’ mostrasse
uma imagem esteticamente padronizada e perfeita. As fontes iconográficas analisadas
colaboram com um melhor entendimento de tais colocações:
Figura 35-Alunos da Escola em comemoração ao dia dos Soldados em 25 de Agosto de
1979
Fonte: Acervo Particular Professora Maria Lúcia Braz, 2011
146
Figura 36- Alunos representando a cultura do Sul do País- Desfile Cívico 14/09/1978.
Fonte: Colonizadora Sinop, 2011.
A ‘reinvenção da escola’ e daquela comunidade de forma geral se dava por ser o
universo cultural o mesmo trazido por aqueles migrantes, porém, geograficamente em
outro lugar, ou seja, os padrões culturais e sociais migrados se projetavam com força,
reinventando valores culturais e sociais como uma estratégia de (re) territorialização.
Como explica Borges (2000, p. 58),
Quando não há, nos espaços de chegada dos migrantes, lugares possíveis
para ancoramento, as referências e os locais de origem continuam a
representar a fonte estruturante de identidades, mediante um resgate
constante dos lugares do passado. Temos aí a perspectiva de vidas
com significados que podem acabar permanecendo no tempo perdido
das lembranças, nos “lugares de memória” distantes de novos sentidos.
Nas recordações do ex-professor José Roveri (depoimento apud LANDO, 2002), no
que se refere ao ‘ancoramento’ cultural sulista no solo mato-grossense, o mesmo diz:
[...] um fato que agora me lembro, e que chamava a atenção, quando
vinha uma autoridade educacional de Cuiabá, que chegava, que entrava
na sala de aula, levava um choque! Porque só via cabecinha branca,
loirinhos. Era uma realidade diferente do Mato Grosso, não era Mato
Grosso mesmo falando a verdade, territorialmente era, mas
culturalmente não era, as pessoas muito diferentes dos habitantes de
Cuiabá, então levava-se um choque e perguntava-se: “Quem é do
Paraná?” Erguia 70%... “Quem é de Palotina?” “Quem é de
Marechal Candido Rondon?” “Quem é de Medianeira85
?”... Aí quase
85
Nomes de cidades do estado do Paraná.
147
levantava todo mundo, é incrível a quantidade de pessoas que foram pra
lá, [...].
De acordo com os geógrafos Gerd Kohlhepp e Markus Blumenschein (2000), a
formação de uma “diáspora sulista” no Centro-Oeste brasileiro destacou-se também em
diferenças socioculturais em relação à população tradicional, observadas até mesmo nos
chapadões além dos limites do Centro-Oeste. Essas diferenças manifestam-se em conflitos
culturais com uma respectiva ‘exibicionista’ da própria identidade regional (população
tradicional versus “gaúcha”, ou seja, “sulista”) Os autores ainda pontuam que os sulistas
também trouxeram, com a migração, seus costumes e tradições, como a difusão de CTGs
(Centros de Tradições Gaúchas), igrejas luteranas, emissoras de rádio e programas de
televisão locais com música gaúcha para o Centro-Oeste do Brasil.
No período cronológico em estudo, (e, ainda nos dias de hoje), era e é ainda muito
forte a presença cultural sulista. Nos diários de classe encontrados na escola investigada
não se encontrou qualquer registro de aula ou alguma atividade que apresentasse aos
alunos costumes e tradições mato-grossenses. Dificilmente algum aluno da época (e talvez
muitos ainda hoje!) sabia dizer o que era ‘siriri’86
, ‘cururu’87
, ou tenha visto uma ‘viola de
coxo’, ou mesmo ouvido falar de uma comida chamada ‘maria isabel88
’, as lembranças que
ainda traziam na memória e que faziam sentir saudades, naquele momento inicial, no
‘novo’ e ‘desconhecido’ lugar não mais ter, era de poder comer ‘cuca com churrasco’, pão
com chimia89
, ouvir e dançar música gaúcha, e ver seus pais, logo ao amanhecer, tomar o
chimarrão antes de ir para a ‘lida’.
No entanto, com o passar do tempo os migrantes sulistas ‘reinventando’ o Sul em
outro lugar, foram formando grupos, efetivando costumes, como a criação de um CTG na
cidade, tornando a erva-mate mais acessível e mesmo os ‘não sulistas’ que iam chegando,
foram aprendendo a ‘prosear’ em companhia do chimarrão, em pleno calor de Mato
Grosso.
86
Dança típica Mato Grosso, o siriri é dançado por homens, mulheres e crianças. Possui uma coreografia em
roda ou fileiras formada por pares que se movimentam ao som da viola de cocho, mocho e ganzá. 87
Outra dança folclórica do Estado, executado especialmente por homens, que dançam e cantam em louvor
aos santos de devoção, citando passagens da Bíblia, saudando pessoas da comunidade ou fazendo referência
aos acontecimentos políticos. 88
Prato típico da culinária mato-grossense, cujos principais ingredientes são arroz e carne seca. 89
No Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná é comum se chamar a geleia de passar no pão, de
chimia. O termo vem da palavra alemão schmier e o doce foi trazido para o Brasil pelos imigrantes,
popularizando-se devido à sua boa aceitação.
148
Na dissertação de mestrado intitulada “Em qualquer chão, sempre gaúcho”, de
Betty Nogueira Rocha (2006), cujo lócus de investigação foi a cidade de Lucas do Rio
Verde, cidade próxima a Sinop, também de colonização sulista ‘recente’, ao questionar
uma estudante, natural de Mato Grosso, mas residente desde que nasceu nesse meio
cultural sulista, sobre o que ela se considerava ser ‘mais mato-grossense ou mais gaúcha’, é
interessante a resposta concedida à autora:
Mais gaúcha, porque pra mim a cultura de Mato Grosso é de
Cuiabá porque é que mais a gente tem acesso, então eu sei que tem o
chanchado, aquelas dança do... sabe...o peixe essas coisas, mas se você
me perguntar eu não sei. Agora do sul eu sei. Se você me perguntar eu sei
que a Guerra dos Farrapos durou 10 anos, eu sei quem foi o
primeiro autor do tradicionalismo, eu sei sabe...tudo isso. Então eu
acho que me considero mais gaúcha pelo fato de eu saber mais coisas,
porque se eu soubesse mais coisas daqui eu acho que eu iria me
considerar mais mato-grossense, entendeu?”(COLUSSI, depoimento
apud ROCHA, 2006)
Contudo, o trabalho em cultivar as tradições sulistas, assim como o orgulho, amor e
a gratidão à Pátria e àquela pequena ‘vila sulista’ em construção, era feito de acordo com
os relatos orais, principalmente na Igreja, local onde todo povoado se encontrava, e
também na escola, local de formação dos ‘futuros’ cidadãos, que deveriam, assim como
seus pais, reconhecer que “quem com seu suor fecunda a terra e umedece, vê pago o seu
esforço, e é feliz, e enriquece!”
As dramatizações, jograis, poesias declamados pelos alunos procuravam
constantemente enaltecer a Pátria e a própria cidade em construção, uma maneira de
conformar os alunos a se adaptar à nova escola, em meio àquela floresta – uma realidade
muito diferente das escolas sulistas a que estes frequentaram antes de migrar com suas
famílias para aquela região até então desconhecida. Dessa forma, era preciso que aquelas
crianças se acostumassem, se conformassem aos novos modos de vida; era preciso que elas
percebessem que a natureza, ali, perpetuamente em festa, era um seio de mãe a
transbordar carinho.
Nesse contexto, durante os vários relatos sobre as poesias, jograis, músicas ou
dramatizações encenadas na escola e reproduzidas pelos alunos, elencamos uma em
especial, que consideramos interessante para a análise em questão. Trata-se de um jogral
apresentado diversas vezes pela pré-escola, a partir de 1977, em ocasiões ‘especiais’,
principalmente para recepcionar alguma autoridade em visita à cidade. No jogral, as
149
crianças seguravam letras para formar um acróstico que correspondia ao nome da cidade e
com a inicial de cada letra, um verso era declamado:
Símbolo de esperança!
Inspiração para os poetas!
Namorada de todos os visitantes!
Oásis para os deserdados!
Promessa para um futuro brilhante!(BRAZ, depoimento, 2011)
Ao final, “cantavam uma musiquinha que era parte do primeiro hino de Sinop,
antes do hino oficial, que foi composto por uma das Irmãs: ‘A ti Sinop, meiga e gentil,
nosso pleito, nossa ovação. Tu és semente de mil progressos, és futuro da nação’” (BRAZ,
depoimento, em 08/12/ 2011).
A fonte iconográfica a seguir está relacionada à atividade mencionada, exibida
pelos alunos da pré-escola, em constantes homenagens apresentadas à sociedade e às
autoridades que se faziam presentes em ocasiões políticas, como, por exemplo, as variadas
inaugurações que aconteciam regularmente na cidade em construção.
Figura 37- Alunos da Pré-Escola em homenagens à Sinop, 1977.
Fonte: Patrimônio Histórico de Sinop, 2011.
Outra prática frequente diz respeito ao hasteamento da bandeira e o canto do Hino
Nacional, apresentados com muita frequência, sendo nos primeiros anos quase que
150
diariamente. De acordo com os depoimentos, depois dos rituais tradicionais de formar fila,
tomar distância, se pôr em posição de sentido, fazia-se uma espécie de “revezamento” de
hinos, um dia cantava-se o Hino Nacional, no outro o Hino à Bandeira, ou o Hino de Mato
Grosso, ou o Hino de Sinop.
Os alunos precisavam saber todos os hinos, cantar com muita entonação,
demonstrando o amor e o respeito à Pátria:
O hino?! Cantava-se com maior orgulho, as crianças sabiam de cor [...] e,
cantavam com empolgação, [...] eles cantavam com amor, com
patriotismo, com orgulho mesmo! (GOBBO, depoimento 14/01/2012).
Eu lembro que as irmãs insistiam mais em cima dos hinos, todos os
hinos: o hino nacional, por exemplo, era perfeito: todos os tons, tudo! O
nível, a tonalidade de voz! Era um momento que a gente tinha que se
reunir na frente da escola, todas as turmas, a gente formava filas e antes
de entrar para a sala [...] cantávamos todos os hinos: nacional, da
bandeira [...] nós repetíamos inúmeras vezes até cantar certo, lembro que
se alguém cantava alguma palavra errada tinha de repetir todo hino de
novo, e, não importava se estava muito sol, não interessava - você tinha
de estar na fila, bonitinho, tomado a distância, na sua posição, do menor
para o maior [...] e, cantando. [...]Ninguém queria errar para não ter que
cantar de novo [...].Não tinha aparelho de som, era na voz das irmãs, elas
cantavam e a gente tinha de acompanhar [...] então pensa: se errar –
cantar tudo de novo! (BÉRGAMO, depoimento 17/01/2012).
De acordo com as análises de Souza (2008), o cultivo dos valores cívico-patrióticos
foi reforçado, nas escolas públicas e privadas nos anos 70, em concordância com a
ideologia do regime militar. “Práticas de hasteamento da bandeira e canto do Hino
Nacional nas escolas foram revalorizadas. Os desfiles cívicos foram enaltecidos e
incentivados pelos poderes públicos de grande visibilidade social”. (SOUZA, 2008, p. 282)
Há que se referenciar também que em muitas escolas esse foi um período de
“intensa mobilização dos alunos em torno das fanfarras e bandas marciais, competições
esportivas [...]. Nas solenidades e comemorações cívicas era exigido o comparecimento de
todos os professores, alunos e funcionários da escola”. (SOUZA, 2008, p. 282)
De acordo com as narrativas, podemos reforçar as análises da autora supracitada:
Quanto aos desfiles cívicos, era tudo muito bem feito, naquela época,
nada se fazia mal feito com os alunos, não tinha esta história de faltar
151
alunos. Toda vez que tinha um evento maior, os alunos tinham de
desfilar, marchando, atrás da fanfarra [...] todos participavam, as irmãs
sempre direcionava, a sociedade em peso prestigiava (GOBBO,
depoimento 14/01/2012).
[...] quando chegava os dias dos desfiles já estava tudo pronto, nós já
estávamos lá na fila, tudo durinhos como uns robozinhos, cantando
afinadamente, [...] íamos para a rua, todos na sua posição, tomava
distância, marchávamos no ritmo certo, com o uniforme impecável
naquela poeira, a estrada era fofa, chegava afundar, lembro que quando
virava uma curva tinha que ir tudo no mesmo compasso, parecia uma
escola de samba (BÉRGAMO, depoimento 17/01/2012).
Figura 38- Fanfarra da Escola em Desfile Cívico de 7 de Setembro de 1976
Fonte: Colonizadora Sinop, 2011
Ainda podem ser destacadas as festividades da escola investigada em consonância
com as comemorações de cunho religioso, aliás, torna-se relevante salientar que o
calendário letivo seguia o calendário da Igreja Católica e, desta forma, os cultos e rituais
ligados à campanha da Fraternidade, aos dias Santos, às homenagens ao dia de Corpus
Christi eram também trabalhados na escola:
Dia de Corpus Christi? Estava todo mundo lá para enfeitar a rua. Cada
turma tinha seu pedaço na rua para enfeitar (GOBBO, depoimento
14/01/2012).
152
Tínhamos que enfeitar as ruas para Corpus Christi, era feito com o
mesmo amor que tínhamos pela escola, era muito bonito. Só tinha a igreja
Santo Antônio. A Irmã determinava o pedaço que cada classe iria enfeitar
e todo mundo ia, tudo bonitinho... tudo certinho [...] todo mundo ia
participar, até os pais compareciam para ajudar! (BRAZ, depoimento
08/12/2012).
Tinha também o trabalho na escola com a Campanha da Fraternidade.
Além de trabalhar a campanha da Fraternidade na sala de aula, a gente
ainda recolhia ajuda junto às crianças. Além da Campanha da
Fraternidade tínhamos em outubro a Campanha Missionária, era um meio
de ensinar a criança a ser solidária, a fazer sacrifícios, ensinar a reduzir o
lanche, colocar aqueles centavinhos [...] para ajudar o próximo (Braz,
depoimento 08/12/2012).
Figura 39- Trabalhos nas ruas feitos pelos alunos da Escola em celebração à Corpus Christi, 1979
Fonte: Acervo Particular Maria Lúcia Braz, 2011
Faz-se necessário mencionar que tanto a escola quanto a igreja eram os pilares
que fortaleciam a permanência dos migrantes naquele solo. Deste modo, Joanoni Neto
(2012), explica que a Igreja Católica teve um papel fundamental no processo
colonizatório, estendendo sua presença por Mato Grosso, de acordo com o surgimento
de novas cidades e a fixação de milhares de pessoas naqueles locais. O autor revela-nos
que:
153
A fé acompanhou os lavradores em sua migração. As empresas
colonizadoras e o governo fizeram farta propaganda da Amazônia, como
sendo região de terra em abundância, fértil, sem geadas (um problema
gravíssimo para os colonos do sul). Essa propaganda somou-se à imagem
da floresta amazônica, gravada no senso comum, como sendo o eldorado,
terra de belezas e de fartura, distante e inóspita. Essas características
somadas, mundo distante e ao mesmo tempo terra de fartura, facilitaram a
conexão entre a paisagem e o sagrado. A santidade natural-mágica
incorporada pela floresta amazônica e a crença do indivíduo culminaram
por fixar nela um poder santificador e de atração sobre o crente, levando-
o a peregrinar em busca da redenção o que o levou a recriá-la com outro
significado, ou seja, esse espaço deixou de ser um local concretamente
existente e passou ser outro, ligado a valores imateriais presentes no
imaginário daquela pessoa (JOANONI NETO, 2012, p.5).
Nesse sentido, o papel desenvolvido pela Igreja Católica na escola de Sinop, na
figura das Irmãs, foi, sobretudo, o de transmitir, através da fé, valores morais e
religiosos, um ‘conforto’ para aquelas crianças que naquele local desconhecido
chegavam, assim como enaltecer a figura do colonizador como um ‘herói’, responsável
pelo futuro promissor daquelas famílias. Se na Igreja o padre, por meio de suas
homilias, transmitia a mensagem de fé, perseverança aos pais e de exaltação ao
colonizador, na escola tal mensagem era reforçada, aos filhos, pelas freiras.
Como relata o professor José Roveri (depoimento apud LANDO, 2002):
[...] no início do ensino em Sinop, era uma influência, [...] fortíssima,
determinante da igreja católica [...], e aí quem é que conseguia dar aula,
praticamente: era quem era amigo do padre, quem era muito amigo das
freiras, quem ia na missa todo domingo, enfim, era a pessoa tida certinha
para aquela realidade, naquele momento da vida de Sinop.
Ainda, em outro momento o mesmo professor salienta:
[...] o padre era empregado do colonizador Ênio Pipino, na verdade
acho que até era mesmo, porque ele andava com o carro da
colonizadora. Quando o colonizador chegava à Sinop de avião, e ia
assistir a missa, se colocava o casal de colonizadores, que hoje já
falecidos, né? E não vai aqui nenhum demérito a eles, simplesmente é a
constatação de uma realidade. Se colocavam os dois na frente, marido e
mulher, e o sermão da igreja, o sermão evangélico, era totalmente
dirigido a tecer elogios [copiásticos] ao casal como sendo pessoas
heroicas, quase uma divindade mesmo. E, a escola ia nesta esteira
também; colocava os alunos, coitados dos alunos, crianças ainda, no sol
quente, duas três horas perfilados, esperando a divindade chegar de avião,
para que fosse ovacionada. [...] pra que fosse cantados hinos previamente
154
preparados, de elogios, e, também o hino de Sinop, faz uma referência a
isso, “Ênio Pipino, novo heroico, bandeirante”. Então, e as crianças
tinham o Ênio Pipino como Deus realmente, um Deus que chegava de
avião e quatro, cinco, meia dúzia de horas depois ia embora também de
avião, e deixava os simples mortais lá, entregues a uma sorte terrível na
época. (ROVERI, depoimento apud LANDO, 2002)
Figura 40- Recepção ao colonizador Ênio Pipino em visita à escola, 1978
Fonte: Santos, 2011
Nos estudos de Kreutz (2000) sobre as escolas comunitárias de imigrantes no
Brasil, em particular a dos imigrantes vindos da Alemanha, o autor relata que o Projeto de
restauração religiosa, a partir de 1864, teve fortes repercussões entre os imigrantes
católicos no Brasil, podendo se perceber claramente nessa dinâmica toda a tensão entre
ideário liberal e restauração religiosa, especialmente por parte da Igreja Católica, que foi
recebendo expressivo número de religiosos e religiosas provenientes diretamente da tensão
ideológica na Europa.
De acordo com o autor (2000 p.165), vários fatores contribuíram para a vinda de
religiosos para o Brasil, dentre eles podem- se realçar especialmente:
a) a presença dos imigrantes no Brasil, o que motivou as ordens religiosas
dos respectivos países a assistirem a seus emigrados;
155
b) os problemas entre Estado e Igreja em países europeus (Kulturkampf),
perda dos Estados Pontifícios, disputa sobre o direito à educação e
outros), levando muitas congregações e ordens religiosas a procurarem
países com melhores condições de expansão;
c) a expulsão de ordens e congregações de alguns países europeus,
motivando a vinda de religiosos/as de grande liderança, sendo-lhes
confiada especialmente a pastoral junto aos imigrantes. Todo um
conjunto de congregações masculinas e femininas, vindas no período e
marcadas pelas fortes tensões entre Igreja e Estado, dedicou-se ao projeto
de Restauração (Romanização) da Igreja no Brasil.
Nesse contexto, nos deparamos, em Sinop, com o trabalho desenvolvido pelas
religiosas da Congregação Santo Nome de Maria. Em levantamento feito sobre essa
congregação e como as religiosas chegaram à cidade, nos deparamos com a questão dos
conflitos existentes nos países europeus com o Estado, apontados por Kreutz (2000), pós-
Primeira Guerra Mundial. Em pesquisa sobre a congregação em questão, verificamos que a
das Irmãs Missionárias do Santo Nome de Maria foi fundada em 25 de março de 1920,
pelo Arcebispo Dom Wilhelm Berning, bispo de Osnabrück, Alemanha.
Dom Wilhelm, frente à difícil situação social e religiosa após a Primeira Guerra
Mundial, sentia a necessidade da presença de Irmãs em sua Diocese para auxiliar os
sacerdotes na pastoral paroquial; dedicar-se às crianças, aos doentes e aqueles em perigo
ou extraviados, testemunhar e anunciar o evangelho na diáspora e nas missões90
. Nesse
período, entre 1912 e 1914, ao eclodir a guerra em 1914, um grupo de religiosas
alemãs encontrava-se no noviciado das Irmãs Missionárias Maristas, em Lyon, França, e
tiveram que retornar à Alemanha. Sem qualquer expectativa de retorno, o grupo decidiu
buscar orientação do Bispo Diocesano de Osnabrück, D. Berning, que formou com o
grupo uma nova congregação. E assim, em 25 de março de 1920 nasceu a nova
Congregação Santo Nome de Maria, inspirada por uma orientação missionária-mariana
para colaborar na conservação e propagação da fé católica nos territórios da diáspora da
Diocese e também em missões estrangeiras.
As seis primeiras Irmãs Missionárias do Santo Nome de Maria chegaram ao Brasil
no dia 12 de julho de 1956, pós-Segunda Guerra Mundial, para cumprir com as ‘missões
estrangeiras’ e, certamente, a buscar, em países com melhores condições de expansão, o
fortalecimento da Congregação, tendo em vista ainda o conflito entre Igreja e Estado
europeu.
90
Fonte: http://www.pbmariamissionaria.com.br/historico.html, acesso em 12/10/2012.
156
Desta forma, a Congregação foi convidada ao trabalho missionário no Brasil pelos
padres jesuítas que trabalhavam na Paróquia São José Operário, em Maringá, no Paraná.
As Irmãs fixaram residência na Paróquia São José Operário, tendo como objetivo principal
o trabalho pastoral paroquial, enfermagem e educação91
.
Assim, na década de 1950, quando os padres jesuítas se instalaram na cidade de
Maringá, convidaram as Irmãs Missionárias do Santo Nome de Maria, sediadas até então
na Alemanha, para atender as necessidades da comunidade. A princípio, iniciaram com um
‘Jardim de Infância’, numa casa pobre e pequena, ao lado de sua residência. No ano de
1957, o Jardim de Infância oficializou-se como ‘Escola Paroquial Santo Inácio’, entidade
para educar e realizar um processo de evangelização cristã92
.
Nesse cenário, nos deparamos com o colégio Santo Inácio de Maringá, de onde
algumas das religiosas vieram para Sinop, a convite do colonizador Ênio Pipino, na década
de 1970. Em carta concedida a um historiador local, em 1999, a irmã Edita, diretora das
escolas da gleba, escreveu alguns apontamentos sobre sua biografia e dos trabalhos
realizados em Sinop e na gleba. Destaco alguns trechos da carta que considero de maior
relevância para enfatizarmos o início da história da educação em Sinop, dita por quem
efetivamente direcionava todos os trabalhos:
Meu nome é Marta Magdalena Gawel (Irmã Edita), sou irmã
missionária do Santo Nome de Maria, nasci em 23/07/1925 em
Schomberg, Kreis Beuthen, Alemanha. Minha Terra- Natal pertence hoje
à Polônia, pois na Unificação da Alemanha, o Chanceler Kohl disse que
nunca vai reclamar a terra de Oder/ Neisse.
Cheguei à Gleba, à Mato Grosso em março de 1974. [...] cheguei
ao Brasil em 1959. [...] No começo, Sinop era ligado à Escola de Vera, a
Escola do Perpétuo Socorro. [...] Não tínhamos muitos professores e os
professores antigos [...], ainda hoje lembram dos cursos que dei nas
férias, para que os professores ao menos dominassem a matéria que
estavam dando aos alunos.
[...] em Sinop o que a escola promovia era apreciado. Só tinha a
Escola e a Igreja, que se preocupava com a cultura. [...].
Gostei de trabalhar em Sinop, na Gleba, sobretudo do povo, dos
alunos que eram carentes, mas sempre prestes em aceitar. [...] No tempo
pioneiro um conhecia ao outro e valorizava o que a Escola e a Igreja
promoviam.
(Carta escrita pela Irmã Edita, em 1999, antes do seu retorno à
Alemanha)
Fonte: Patrimônio Histórico de Sinop, 2011
91
Fonte: http://crbmaringa.blogspot.com.br/2011/10/congregacao-das-irmas-missionarias-do.html, acesso em
12/10/2012 92
Fonte: http://www.colegiosantoinacio.com.br/institucional.php?cat=2, acesso em 12/10/2012
157
Na carta, a religiosa não apresenta muitos detalhes sobre as dificuldades, sobre a
precariedade material da escola, talvez pelo fato de ter sido escrita muitos anos depois do
período dos acontecimentos que investigamos e sabemos ser a memória refém do tempo
presente. No entanto, diante dos depoimentos obtidos dos atores, percebeu-se que de forma
unânime não foram poupados elogios ao trabalho desenvolvido pelas irmãs católicas, elas
faziam tudo o que precisasse, “eram bastante enérgicas para os alunos, mas no fundo
tinham o coração muito bom, além disto eram muito competentes”. (BRÁZ, depoimento
08/12/2011)
Diante das questões apresentadas, pode-se inferir que a história da educação em
Sinop, fazia parte, obviamente, de um projeto maior que era o da colonização, porém
também de um projeto da Igreja Católica em sua expansão territorial no país.
E o cenário colonizatório do norte de Mato Grosso era propício para tal ação de
expansão da Igreja, pois,
Para o fiel, o sagrado é bastante real e não exige provas para ser crível.
Os migrantes que reocuparam o norte de Mato Grosso acreditaram
encontrar ali a redenção material e espiritual e isso lhes deu forças para
suportarem as dificuldades. Os momentos ruins vividos no início da
estada nos locais de chegada foram sublimados. A memória guardou
apenas as boas lembranças, ou as guardou como se fossem boas.
(JOANONI NETO, 2012, p.6).
Contudo, retornando à discussão sobre os valores morais e cívicos marcados pelas
festividades, pelos rituais religiosos e patrióticos realizados na escola, podem ser
destacados os princípios do amor ao trabalho, da obediência à Pátria. Além do tradicional
culto à bandeira, ao canto dos hinos, às homenagens aos heróis nacionais, à oração,
também se consolidava em um dispositivo de inculcação de valores morais. Entre as
orações do cotidiano da escola pesquisada, além do Pai Nosso, Ave Maria, entre outras,
destacamos a Oração pelo Brasil, a qual ‘rogava’ pela ‘ordem’ e pelo ‘silêncio’ da Pátria:
Oh, Deus onipotente,
Princípio e fim de todas as coisas,
Infundi em nós brasileiros,
O amor ao estudo e ao trabalho,
Para que façamos da nossa Pátria,
Uma terra de paz, de ordem e de grandeza,
Velai Senhor pelos destinos do Brasil! (PONCE, depoimento
23/01/2012).
158
Desse modo, é possível inferir que, na instituição estudada, a educação era vista,
como um fator de transformação e de conformação social. Era necessário que ela
inculcasse normas, princípios e valores nos alunos, a fim de discipliná-los, ajustando-os ao
mundo do trabalho e ao modelo de sociedade que se pretendia construir – visando a ordem
e o progresso nacional.
O caráter tecnicista do ensino se misturava aos aspectos dos princípios religiosos,
os quais demonstravam a preocupação com a disciplina e a formação moral, bastante
presente na concepção de educação voltada para a formação cristã, cujo eixo norteador era
“formar o cidadão via conhecimentos científicos e valores morais e cívicos, de sorte que
todos fossem instrumentalizados e imbuídos de amor à Pátria”. (SÁ, 2010, p. 224)
Com isso, as práticas cívico-patrióticas em voga na escola “atendiam assim, a
múltiplos propósitos: fosse a perpetuação da memória histórica nacional, a exibição das
virtudes morais e cívicas inscritas na obra formativa escolar, a ação educadora da escola
para o conjunto da sociedade”. (SOUZA, 2000, p. 116)
Sobretudo, concordamos com Souza (2000) quando nos explica que “civismo,
patriotismo, nacionalização” eram os ideais que expressavam as tentativas inolvidáveis,
porém nem sempre bem sucedidas, de se transformar a escola em agência de civilização
das massas.
Em resumo, as práticas mencionadas e a cultura produzida pela escola se voltam
para o que Julia (2001) define como um conjunto de normas que determinam
conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, um conjunto de práticas que permite a
transmissão desses conhecimentos e a incorporação de comportamentos.
Um conjunto de práticas, normas, conhecimentos e condutas, aparentemente
‘normais’, porém repletas de intencionalidade, de estratégias que buscavam moldar a
criança para que, futuramente, assim como seus pais, se comportassem de forma a provar o
sentimento de brasilidade, o temor a Deus e à Pátria, a fim de que futuro novas missões
pela Nação pudessem recair também sobre seus ombros. Por isso a importância da
orientação que compõe os versos do poeta, a qual associa à história das práticas da escola
em questão, e que vale à pena recordar: Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! Não verás nenhum país como este! Imita na grandeza a terra em que nasceste!
159
3.3. Memórias de um cotidiano: “Lá vem Seu Juca, da perna torta,
dançando valsa, com a Maricota!”
Figura 41- Alunos em frente à escola, 1979.
Fonte: Santos, 2011.
Deito-me ao comprido na erva.
E esqueço do quanto me ensinaram.
O que me ensinaram nunca me deu mais calor nem mais frio,
O que me disseram que havia nunca me alterou a forma de uma coisa.
O que me aprenderam a ver nunca tocou nos meus olhos.
O que me apontaram nunca estava ali: estava ali só o que ali estava.
(Alberto Caeiro, Heterônimo de Fernando Pessoa, 2006)
A partir das discussões que pontuamos até o momento, reconhecendo as estratégias
de imposição e a lógica do jogo vindo de um lugar, assim como as relações de poder que
se configuravam no contexto da escola em análise, partimos do pressuposto de que, sendo
a escola um lugar de produção de uma cultura específica, onde ressoavam as mais
diferentes experiências cotidianas, havia algo no cotidiano dela que constituía de maneira
160
singular a experiência da escolarização de cada sujeito, mesmo diante dos discursos
ordenadores e reguladores daqueles que detinham o poder, da imposição do silêncio, do
controle da disciplina, do aprendizado dos conteúdos difundidos na escola, dentre outras
ações que constituíam o conjunto de práticas intencionalizadas por um lugar próprio.
A partir desse olhar, reconhecemos na cultura escolar produzida pelos sujeitos da
instituição a possibilidade de concebermos a história de um cotidiano marcado pela
criação, invenção e reinvenção daquilo que os sujeitos faziam com os produtos que lhes
eram fabricados. As estratégias de práticas intencionais estavam em conflito com as
táticas de subversão e a escola, bem ou mal, lidava com este processo de tensão, pois não
conseguia manter rigorosamente tudo à maneira que lhe convinha, fazendo-se presentes as
práticas desviantes que fugiam, escapavam às normas e, muitas vezes, talvez na maioria
delas, não eram percebidas, ou simplesmente eram vistas como banais, rotineiras, sem
‘periculosidade’.
Assim, a escola se configurava como um lugar praticado onde:
[...] práticas foram inventadas, ou reinventadas, gerando não somente
as ações passivas de reprodução das imposições formais dos
regulamentos e programas prescritos, mas, sobretudo, desenvolvendo
uma relação complexa de astúcias com tais imposições, com tramas de
sociabilidades entre os atores e seus pares e com outros sujeitos
implicados nas relações mais extensas, seja no seio familiar,
comunitário ou outros. Relações amplas de negociações, de
conflitos, de burlas, de transgressões, de criação e de resistência,
que fazem parte do constituir-se da escola no período que está sendo
estudado. (GONÇALVES, 2004, p. 13)
O Estado, a Igreja, a Colonizadora acreditavam que a escola era o cenário ideal para
a formação da massa, aliás, concepção que ainda circula na educação do nosso país nos
dias atuais. Como já dito, a concepção de que um modelo arquitetônico é capaz de manter
o controle, disciplinamento e a ordem entre os sujeitos, mesmo porque “o espaço escolar é
um elemento curricular que proporciona a aprendizagem de um conjunto de valores,
normas e estímulos que não são determinados pelo currículo formal, mas que fazem parte
de uma forma silenciosa de ensino”(SÁ, 2007, p 132), portanto, “o espaço escolar não é
neutro, sempre educa”. (VIÑAO FRAGO; ESCOLANO, 2001, p. 75).
A tal modelo arquitetônico Michel Foucault (2009) chama de ‘panóptico’ na sua
obra Vigiar e Punir, visto constituir-se em local onde todos os controlados e vigiados são
sujeitados ao disciplinamento dos corpos, afinal, como ironiza o próprio autor: “Um corpo
161
disciplinado é a base de um gesto eficiente [...] a disciplina define cada uma das relações
que o corpo deve manter com o objeto que manipula”. (2009, p. 147).
Para Viñao Frago e Escolano (2001), uma determinada leitura da citada obra
caracteriza a escola, sobretudo, enquanto um espaço limitado, fechado, junto a outras
instituições disciplinares de dominação e controle, como por exemplo quartéis, hospitais,
cárceres, entretanto, para os dois autores essa concepção por si só é insuficiente, pois não
contempla as diferentes funções que o espaço escolar desempenha ou deveria
desempenhar, pois a escola é um espaço demarcado, porém a análise dele enquanto lugar
só é possível a partir da consideração histórica daquelas camadas ou elementos que o
configuram e definem.
Para tanto, o ‘panóptico’ que se intentava impor à escola em estudo não contava
que teria de lidar com a maneira incisiva da cultura como criação, com as práticas
diferenciadas de apropriação desses modelos, os quais resistiam sutilmente,
‘dobravam-se sem quebrar’93
e, que então, reinventavam aos seus modos o sentido de
estar naquele meio – dito por Certeau (1998), podem ser explicadas enquanto táticas,
encontradas por aqueles sujeitos para serem usadas como suas armas de combate – a
arte do fraco, que “fingia obediência aos poderes estratégicos, mas não se
iniciava uma guerra explícita contra esses”. (AZEVEDO; ARAÚJO, 2011, p. 483)
Desse modo, se restringíssemos o presente trabalho numa análise das práticas de
poder que aconteciam no interior da escola, poderíamos resumir que um dia rotineiro no
seu cotidiano era marcado frequentemente pelas mesmas práticas, por um trabalho rígido
desenvolvido pelas irmãs católicas em concordância com a metodologia tradicional, de
cunho moralista, patriótico e técnico, reflexo externo vindo do momento em que o país
vivia:
Como as irmãs eram de tradição alemã, (...) elas tinham muito daquela
coisa de trabalhar o patriotismo dos alunos, de cantar o hino nacional, a
criança tinha de saber cantar todos os hinos: nacional, da bandeira, enfim,
todos! E fazer filas para entrar na sala, tomar distância, ficar retos, isto
sempre foi muito exigido, desde 73. As irmãs exigiam muita disciplina,
tinha que ter disciplina. Elas não aceitavam nenhum tipo de indisciplina,
de forma alguma. Elas colocavam ordem: ou você é aluno e se comporta
ou chamava os pais na escola. (GUERRA, depoimento 25/01/2012)
Assim, de acordo com o depoimento e a partir das outras declarações semelhantes,
um dia na escola era regido pela exigência de extrema disciplina, desde a entrada para a
93
Cf. Azevedo; Araújo, 2011.
162
sala, quando os alunos se organizavam em filas, tomavam distância, ficavam em posição
de sentido para, então, rezar, hastear a bandeira nacional e cantar os hinos, ouvir os
chamados ‘sermões’ da irmã diretora, rigidez que se mantinha até a saída da escola. A
entrada na escola somente era permitida se o aluno estivesse impecavelmente
uniformizados, com a camisa branca estampando no bolso o brasão da escola “trazido do
Paraná, só para pregar no bolso da camisa” (BÉRGAMO, depoimento 17/01/ 2012), e as
meninas de saia de pregas e meias ¾ brancas e os meninos de calça, todos calçados com o
chamado kichute azul.
Durante a aula, o silêncio tomava conta da escola: “ninguém desobedecia, ninguém
falava nada, era um silêncio total, a gente ouvia só o barulho dos sapos na época da chuva,
porque as crianças era todas quietinhas”. (BÉRGAMO, depoimento 17/01/2012)
A organização do espaço na sala de aula, como ensino de caráter tradicional era
também em filas, “as filas deviam ser muito retas, [...] sempre eram organizadas por ordem
de tamanho: do menor para o maior, aí ficavam sempre aquelas filas do mesmo tamanho,
organizadas, arrumadinhas, [...] não podia ficar virando para trás para ficar conversando ou
olhando para os lados. Era ali: a lousa e muito silêncio! Era um comportamento total!”
(PONCE, depoimento 23/01/2012).
Devido à metodologia tradicional que se consolidava em sala de aula, percebemos,
a partir das fontes analisadas e dos depoimentos colhidos, que, aparentemente, os alunos
eram obedientes e servis, mesmo porque a sociedade se comportava dessa forma, refletindo
diretamente no contexto escolar.
Outra prática constatada pelas estratégias de poder verificadas pela pesquisa é a
questão dos castigos que nos depoimentos de ex-alunos, eles aparecem, seja sob forma
física ou psicológica, chegando a casos extremos na expulsão do aluno, entretanto, este
último era muito raro, primeiramente porque os alunos tinham muito receio dos
professores, das irmãs e dos pais, mas também pelo fato de que se deixassem de frequentar
a escola não teriam para onde se transferir: a escola era única, local de encontro com os
amigos para conversar e brincar, mesmo que fosse por alguns minutos durante o momento
do recreio.
Por outro lado, um repensar sobre todo esse panóptico criado para disciplinar e
formar os cidadãos aos moldes que se eram exigidos, é possível perceber as marcas de um
cotidiano onde os ‘supostos assujeitados’ refaziam, recriavam o lugar em momentos
163
passados imperceptíveis, como já mencionado, em simples situações consideradas banais,
ordinárias.
Em depoimento citado, onde a aluna com dificuldades em matemática olhava
escondido o exercício do colega que ‘era bom’ nessa matéria e então decorava número por
número, vírgula por vírgula antes de ir ao ‘quadro-negro’ para fazer o exercício na frente
de toda a classe, e, com êxito, saia contente por ter conseguido, mesmo que tivesse
‘colado’ do colega, mesmo sob toda a vigilância do professor.
Tantas outras histórias que burlavam a ordem estabelecida compunham o cotidiano
da escola, dentre muitas, elencamos algumas que consideramos interessantes, para
perceber como as táticas moviam os sujeitos nas suas artes de fazer, ambíguas, sem
localização própria, surgidas das contingências da situação, de modo a aproveitar as
brechas do sistema, foram improvisadas, fruto da “inteligibilidade criada no aqui e
agora, exigindo inteligência viva, parecendo desprezar modelos
preestabelecidos, estando constantemente apreendendo a situação e agindo sobre ela
improvisando saídas94
:
[...] como o uniforme era muito cobrado, aquela camisa de tergal branca,
saia azul com duas pregas na frente e duas atrás. Aquelas pregas tinham
de ser frisadas, ‘aí’ de você se chegasse na escola sem as pregas frisadas!
Quando você sentava, as pregas saiam, as irmãs chamavam atenção [...].
Quando a irmã passava todos ficavam retos, já olhava para a saia para
arrumar a prega, se a prega estivesse desarrumada, tentava rapidamente
esconder para ela não ver. Então, era difícil elas conseguir controlar todas
as pregas! [...]
Nos desfiles chegavam pessoas passar mal, desmaiavam, não interessava
se estava sol ou não. As irmãs sempre orientavam para você tomar café
em casa e tal, mas imagina: os homens95
lá demoravam a chegar, o voo
era aquela coisa: ficávamos horas, horas, no sol, na poeira, [...] tinha que
aguentar, era uma prova de resistência... mas valia ponto, ninguém ia para
ver a autoridade, ou para agradar alguém, a gente ia mesmo pelos pontos,
ai todo mundo ia, era coisa bem significativa na nota, as vezes a pessoa
precisava de um pontinho - imagina eu! Eu queria desfilar todo dia!
(BÉRGAMO, depoimento 17/01/ 2012)
Devido tanta imposição de disciplina, tinha muita gente que tinha muito
medo das irmãs, principalmente os meninos que faziam muita bagunça.
Tinha uns que levavam reguada das professoras, mas não adiantava.
94
Cf. Azevedo; Araújo 2011. 95
Referência às autoridades que vinham de avião a Sinop, em ocasiões especiais e que os alunos precisavam
fazer a recepção com desfiles, apresentações.
164
Ficavam de castigo no milho, tinha que colocar o joelho em cima do
milho e não adiantava [...]
Lembro que certa vez, uma menina levou um puxão de orelha, a
professora puxou e disse: “copia, tá todo mundo fazendo!” E ela não
copiava, ficava para lá e para cá. Aí, ela não queria fazer e mostrou a
língua para a professora, a professora pegou na orelha dela e puxou, ela
abriu a boca e gritou: vou contar para a minha mãe, foi um fuzuê na sala,
porque os pais já não toleravam mais, este comportamento do professor
poder ter autoridade para bater. (PONCE, depoimento 23/11/2012)
Eu lembro que eu gostava muito de ler gibi. Minhas tias, meu pai traziam
pra gente ler. Aí a gente trocava muito gibi na escola embora fosse
proibido pelas irmãs. (BÉRGAMO, depoimento 17/01/2012)
A brincadeira do elástico era a preferida, mas teve uma época que as
irmãs proibiram porque diziam que era perigoso, mas sempre alguém
dava um jeito de levar. Também jogávamos bola apesar das irmãs não
gostarem muito para não entrar na sala suados, mas a gente brincava por
mais que fosse pouco tempo, aproveitava aquele tempinho para brincar.
A gente construía brinquedos, fazia bola de meia para arremessar no
palhaço, era sempre a criatividade da gente, porque não tinha outras
coisas. (SILVA, depoimento 07/02/ 2012).
Em declaração interessante em relação à cobrança das professoras, no que se refere
ao capricho nos cadernos e livros, uma ex-aluna diz:
Elas exigiam muito na questão do capricho, para não fazer orelha no livro
ou no caderno. Eu lembro que elas orientavam para passar até ferro. Elas
falavam muito: cuidem do caderno, cuidem dos livros. Eu lembro que na
1ª série nós tivemos a cartilha e depois no segundo semestre nós tínhamos
o livro-texto, para retirar este livro texto tinha que entregar a cartilha, ai
eu lembro que na minha cartilha tinha uma folha que eu tinha rabiscado,
no dia da entrega, eu fiquei morrendo de medo, de vergonha que ela não
fosse me entregar o livro-texto porque eu não cuidei bem. A pessoa, não
lembro se era a diretora, mas a responsável em recolher a cartilha, quando
eu entreguei ela folhou, página por página para ver se eu tinha cuidado ou
não. Ai ela fez uma cara de quem não gostou, me deu uma olhada, fiquei
numa expectativa, mas daí ela me deu. (PONCE, depoimento
23/01/2012)
Esse fato, mesmo que ‘aparentemente’ insignificante, nos faz perceber um desejo,
mesmo que inconsciente da criança, de mostrar que teria ‘forças’ para ‘afrontar’ o lugar de
poder, porém de uma forma sutil, aparentemente ‘inocente’, conforme sua mobilidade
tática, mas com intencionalidade de deixar marcas de sua autoria, de sua existência diante
daquele lugar. Como nos explica Certeau (1998, p. 94), “uma criança ainda rabisca e suja
o livro escolar; mesmo que receba um castigo por este crime, a criança ganha um espaço,
assina aí sua existência de autor”.
165
Assim, a partir dos exemplos citados e de muitos outros que dispomos em nossas
fontes, entendemos que associar as contribuições de Certeau (1998) para conhecer as
relações e as práticas no espaço escolar “nos permite ver a escola em toda a sua
complexidade, e não como simples reprodutora de imposições e regras dos sistemas de
ensino e do sistema social mais amplo”. (MONTEIRO, CANEN, FONTOURA, 2010,
p. 4).
Nesses exemplos percebemos que existia, sim, o ‘receio’ da punição, mas em
contrapartida se revelava o jogo, que vencia o medo e encontrava nas ‘falhas’ que iam
abrindo brechas na vigilância do poder, promovendo “mobilidade, mas numa docilidade
aos azares do tempo, para captar, no vôo, as possibilidades oferecidas por um instante”
(CERTEAU, 1998, p. 100) as astúcias, golpes, artes de fazer se faziam presentes, em micro
detalhes. Como diria Certeau (1998, p. 101), “Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue
estar onde ninguém espera. É astúcia”.
Para o mesmo autor, toda atividade humana pode ser considerada cultural, desde
que a prática tenha significado para quem a realiza. Assim, não apenas nos depoimentos
dos alunos, mas também dos próprios professores percebemos as ‘fugas’, as diferentes
tentativas de lidar para se ajustarem às políticas que lhes eram impostas, indo, dessa forma,
reorganizando o cotidiano de suas práticas:
Imagina, aquele lugar diferente, aquelas cartilhas diferentes, alunos
diferentes a cada dia, eu precisava ser artista mesmo! Não tinha material,
o estado não mandava, eu tinha que usar era a criatividade. Eu tinha que
encontrar uma maneira de ensinar aqueles conteúdos, então eu tentava
associar a realidade do que a gente estava vivendo com as minhas aulas,
então a minha metodologia era adaptada assim: para ensinar uma letra eu
associava a mata, a floresta, os rios, os macacos, até o avião que vinha
aqui. [...] Quando o estado começou a mandar cartilha, era eles que
escolhiam, a gente não podia escolher com o que queria trabalhar, então
eu fazia assim: as minhas aulas eu fazia sempre como uma história, eram
como novelas, todo dia um capítulo porque daí o aluno tinha interesse em
vir para a escola e saber o que ia acontecer com o personagem que eu
inventava, mexia com a curiosidade deles. [...] As provas vinham prontas.
Eram as irmãs que elaboravam, a gente corrigia, mas tinha um modelo
com os valores para as correções de cada questão. Não podia deixar os
alunos usar borracha no dia da prova. A primeira série não podia usar a
borracha. Sabe por quê? Por que elas ficavam desconfiadas que algum
professor mudasse a resposta do aluno ou falasse que estava errado e
ensinasse o certo. Eu achava um absurdo, meus alunos da primeira série
166
do jeito que fez tinha que deixar. Era ordem da irmã Edita. Parecia um
concurso, que não podia errar...Isto foi por uns dois anos, acho que até
77, aí começamos a reclamar [...] e isto foi mudando, mas quem pegou
estes primeiros anos, passou por uma escola da vida [...]
A irmã Edita dava um visto no plano diário de cada professor, quando ela
estava em outra cidade, a irmã Lídia dava o visto no plano de cada um,
era muita exigência mesmo! Elas queriam ver se estava dentro daquilo
que compunha o planejamento anual. Mesmo porque eram elas que
elaboravam tudo, até as provas, por isso a gente tinha que dar conta
daquele planejamento porque eram elas que elaboravam as provas. Era
uma maneira delas cobrar do professor trabalhar bem e de cumprir todo
planejamento. Não era nada didático, mas como tinha professores de
todos os níveis, então elas precisavam manter um controle. (BRAZ,
depoimento 08/12/ 2011).
Às vezes eu pensava se precisava tudo aquilo, se tudo aquilo não era
muito rigoroso, mas o que eu podia fazer se eu também recebia ordens!
(PAULA, depoimento 02/02/ 2012).
Pelos pequenos exemplos, ditos por ex-professoras, é interessante “perceber que as
posições de ‘forte’ e ‘fraco’ podem mudar constantemente, sendo, por exemplo, um
professor ‘forte’ frente ao aluno, mas ‘ fraco’ diante da gestão ou ao sistema de ensino”.
(MONTEIRO, CANEN, FONTOURA, 2010, p. 4 - Grifos das autoras).
Nesse contexto, compartilhamos das ideias de Julia (2001, p. 10), quando nos diz
que:
[...] normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o
corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas
ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de
facilitar sua aplicação, a saber os professores primários e os demais
professores.
Outra questão observada, era a auto-organização dos próprios alunos nos momentos
que não estavam sob vigilância, trazendo novamente Julia (2001, p. 10) para o debate, “por
cultura escolar é conveniente compreender também, quando é possível as culturas infantis
(no sentido antropológico do termo) que se desenvolvem nos pátios de recreio e o
afastamento que apresentam em relação às culturas familiares”, por isso, é possível inferir
que a cultura produzida na família e na sociedade se difere daquela produzida na escola,
pelo fato de haver ideias, símbolos, valores que lhes são próprios:
167
O horário do recreio era o horário de brincar e de comer o lanche. Não
era recreio dirigido, então a gente aproveitava para brincar bastante, de
correr, mas a irmã não gostava muito porque suava, mas o pátio era
grande, ela nem via. Também gostávamos de brincar de 3 mocinhas da
Europa: lembro-me ainda hoje: Somos 3 mocinhas da cidade, O que
vieram fazer? Muitas coisas! Então faz para nós ver! Então isto era o que
mais nós gostávamos de fazer! [...] Brincávamos muito de roda: de
Terezinha de Jesus, passava o recreio rodando, tinha aquela cantiga: A
menina que tá na roda: A menina que tá na roda, é uma gata espichada,
tem a boca de jacaré e a saia remendada! Depois, trocava, ia outra criança
no meio. Fazíamos muita brincadeira de roda, eram momentos
maravilhosos! (PONCE, depoimento 23/01/2012)
No recreio a gente brincava muito de pega-pega, [...] brincadeiras antigas.
Lembro das cantigas: Tenho 7 namorados, mocinhas da cidade, marcha
soldado, ciranda-cirandinha, Terezinha de Jesus, aquela que falava poesia
no meio da roda, gato-rato. Era a escola toda numa roda só brincando de
gato-rato, ou todas as meninas brincando de ciranda-cirandinha.
(BERGAMO, depoimento 17/01/2012)
É interessante relacionar que enquanto professores e direção da escola buscavam
encontrar formas de devolver a harmonia facilitadora e ‘apaziguadora’ da ordem,
os alunos pareciam compreender (e assim se organizavam!)96
que silêncio e barulho
conviviam juntos, ordem e desordem não se excluíam,97
trazendo outras possibilidades de
mover-se no mesmo espaço, tornando aquele lugar, de fato, num lugar praticado.
“O recreio que parecia ser o fim do trabalho pedagógico [...] era o inicio da
auto-organização” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 41) daquelas crianças e jovens, “era o
início da negociação de regras em torno de um objetivo comum, era o início de uma
convivência social qualitativamente superior” (Ibidem) daquela imposta em sala de aula.
96
Cf. Albuquerque, 2006. 97
Cf. Morin, 2004.
168
Figura 42- Crianças da Pré-Escola brincando no pátio da escola, 1977
Fonte: Acervo Particular Maria Lúcia Braz
Com bolas de meias, latas de óleo e tacos de madeiras para jogar bets98
, elásticos e
qualquer outro artefato que pudesse virar brinquedo, aquelas crianças reinventavam jogos e
brincadeiras. E, assim, jogavam com as possibilidades; enquanto a ordem via apenas do
alto do seu panóptico a disciplina e o silêncio, as crianças utilizavam-se do que lhes era
oferecido para recriar a seu modo, o próprio espaço na escola, o que lhes garantiam a
possibilidade de ocupação em terras alheais e, portanto, nos momentos de conflito e de
combate, as suas vozes se faziam ouvir pelas artes de fazer. Nas palavras de Certeau: “Eles
metaforizavam a ordem dominante: faziam-na funcionar em outro registro.
Permaneciam outros, no interior do sistema que assimilavam e que os assimilava
exteriormente. Modificavam-no sem deixá-lo”. (1998, p. 95).
Com isso, se fazia uma cultura criada e recriada no espaço escolar, entre trocas,
encontros, situações conflituosas, práticas desviantes, não planejadas e muitas vezes
ignoradas, onde imperava o silêncio, mas também sutilmente ressoavam as vozes que
98
O jogo de Bets ou Tacos é um esporte de rua, que descende do "cricket" britânico. O objetivo principal do
jogo é rebater a bola lançada pelo jogador adversário, sendo que durante o tempo em que este corre atrás da
bola, a dupla que rebateu deve cruzar os bets, também chamados de tacos ou remos, no centro do campo,
fazendo, assim, dois pontos cada vez que cruzam os tacos.
169
cantavam juntas: “Lá vem seu Juca-caca, da perna torta-tata, dançando valsa – sa, sa, com
a Maricota-ta ta”. (PONCE, depoimento 23/11/2012).
O momento em que aqueles alunos se viam livres da vigilância era o espaço onde
conseguiam recriar, “negociar e lutar por sua felicidade, pelos seus desejos, se
apropriando de cada fenda, de cada canto, de cada brecha, se esgueirando,
escorregando, deslizando”. (ALBUQUERQUE, 2006, p. 40). Cada um, à sua maneira,
exercia como ninguém suas artes de se fazer sujeito, cada qual com a singularidade que lhe
era própria e, isso, “sem sair do lugar onde tem (tinha)99
que viver e que impõe (impunha)
uma lei, ele aí instaura (instaurava) pluralidade e criatividade. Por uma arte de
intermediação ele tira (tirava) daí efeitos imprevistos”. (CERTEAU, 1998, p. 93)
Nesse contexto, corroboro das ideias de Azevedo e Araújo (2011, p. 481), quando
explicam que:
O ser humano comum é capaz de inventar táticas buscando escapar
das teias da conformação, mesmo enredados no poder do
inconsciente – como um “lugar” em nós mesmos que não temos
domínio – e no poder das ideologias dominantes – que nos forçam a
pensar como pensamos e agir como agimos – os seres humanos
ordinários são capazes de criar e recriar maneiras de viver sonhos e
realidades indo além da submissão pela via da arte do fazer.
Contudo, redes de vigilância não faltavam na instituição, entretanto, o que me
chamou atenção é que os sujeitos que colaboraram com a pesquisa, compartilham da ideia
de que, mesmo diante de tanto rigor e tanto disciplinamento, a escola se tornava um lugar
de lazer, o espaço de encontrar os amigos, visto que na cidade era a única coisa que existia:
Para mim naquela época tudo era festa, era criança, não entendia aquelas
práticas, hoje eu vejo diferente, mas na infância, a escola era uma festa!
(BÉRGAMO, depoimento 17/01/2012).
O que mais me lembro da escola era as brincadeiras no recreio, os
professores, eu gostava muito da escola, não tinha outro lazer, era como
se a escola fosse o lugar de lazer, mesmo com todos estas características
da época de imposição, de tradicionalismo, de silêncio, de total
disciplina, mesmo diante de tudo isto ainda era uma delícia ir para a
escola porque em casa a gente não tinha nada, [...] a escola mesmo
daquele jeito, com tantos defeitos, era nossa, era a tudo! (PONCE,
depoimento 23/01/ 2012).
99
As palavras entre parênteses foram adicionadas por mim, pelo fato de a concordância do verbo no passado,
tempo em que discorro sobre as minhas reflexões.
170
Diante disso, se faz relevante a reflexão de que redes de vigilância não faltavam na
Instituição, precários eram os materiais, a estrutura física, porém a vigilância jamais deixou
de existir. No lugar da ordem, o fazer de seus sujeitos era visto como obediência e
servilidade, mas na visão daqueles que realizavam esses fazeres, na verdade, o faziam até
onde lhes interessava, caso contrário, formas de escapar e de burlar o sistema eram
encontrados e, então, facilmente aqueles fazeres eram esfacelados. “Uma arte
surpreendente, onde obrigados a fazer o que não queriam, faziam desfazendo-o”.
(ALBULQUERQUE, 2006, p. 43)
Como reforçado por Certeau (1998, p. 41):
Se é verdade que por toda parte se estende e se precisa a rede da
“vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma
sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares
(também “minúsculos” e cotidianos) jogam com os mecanismos da
disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim
que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos
consumidores (ou ‘dominados’?), dos processos mudos que organizam
a ordenação sócio-política”.
Finalmente, se a escola focava na ordem e disciplina, por outro lado seus atores
buscavam criar, recriar os modos de se viver naquele espaço. Assim, ao direcionarmos um
olhar para a cultura escolar no interior de sua prática, nos lançamos a uma possível
compreensão da experiência concreta da vida da escola. Sendo essa experiência
compartilhada entre todos que compunham a instituição em investigação, mas
diferenciando-se na maneira como cada um incorporou tal experiência.
Contudo, há que se referenciar que as mil práticas de fazer (CERTEAU, 1998) não
se restringiam aos alunos circunscritos ao espaço escolar, mas se estendia ao ‘privado’, de
seus lares, sob outra espécie de ‘vigilância’, no caso, a família. Havia sob ‘normas e
regras’ vindas de um lugar, o espaço de fazer, os modos de proceder da criatividade
cotidiana, as burlas, as fugas, onde as múltiplas invenções e criações davam espaço para
uma infância constantemente reinventada, uma verdadeira arte de fazer e de ser criança.
A mata, por exemplo, era irresistível aos olhos de uma criança, um mundo que se
desvelava cheio de surpresas, de imaginação, um espaço ideal para a inventividade. Apesar
171
de ser ‘interditada’ devido aos perigos, as táticas “aproveitavam ‘ocasiões’ sem a
necessidade para estocar benefícios, aumentavam a propriedade e previam saídas”.100
Nas
recordações da infância de ex-alunas pode-se perceber o ‘mundo’ que a criança constrói
para si, a partir do simples, do banal, do cotidiano:
Eu não entrava na mata, tinha medo e minha mãe não deixava. Mas, uma
vez entrei na mata com meus primos, só um pouquinho, mas este pouco
nós chegamos a nos perder, quando você está na mata você não tem
noção de direção, era uma mata muito alta, fechada! (PONCE,
depoimento 23/01/2012)
[...] onde eu morava quando cheguei à Sinop, atrás da casa era tudo mato.
Era um mato que já estava aberto, por que eles estavam abrindo para
construir. [...] eu era muito criança, achava lindo aquela natureza! Tive
oportunidade de viver uma infância em meio à natureza, tive toda esta
liberdade de mexer com barro, tomar banho de chuva, subir em árvore - a
coisa mais fácil era achar uma árvore com cipó, era puro Tarzan mesmo!
Passar com cipó pelas poças d’água grandes, que agora vejo que não
eram tão grandes, mas quando crianças pareciam rios, imaginava maior
ainda. (BÉRGAMO, depoimento 17/01/2012).
Nas sábias palavras de Walter Benjamin (2009, p.104):
As crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo
inserido no grande. Dever-se-ia ter sempre em vista as normas desse
pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianças e
não se prefere deixar que a própria atividade – com tudo aquilo que é nela
requisito e instrumento – encontre por si mesma o caminho até elas.
Diante disso, entende-se, com o filósofo, o quanto a escola e a sociedade, seja no
passado ou no presente, deve ser repensada sob formas de atuar com este ‘pequeno
mundo’. Mundo onde as coisas são vistas pela ótica da criação, da vida em constante
movimento, para que, então, se possa evitar que as coisas ensinadas não perdessem o
encantamento, para que o aprender não se restringisse a moldar o corpo e a mente e,
consequentemente, para que o processo de escolarização não se tornasse empobrecido,
como nos versos do poeta mato-grossense Manoel de Barros, em sua Didática da
Invenção:
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
100
Cf. Certeau (1998, p. 100)
172
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
(BARROS, 2008, p. 45)
Figura 43- Criança brincando de fazer bolinhas de sabão em cima de toras de madeira, próximo à
mata, 1977
Fonte: Acervo Particular Carla Sprizão Ponce, 2012
Entretanto, aquela ‘imensidão verde’ da floresta, atualmente, já não existe mais,
quando se descobriu que mata era sinônimo de riqueza, a imagem ficou empobrecida,
parafraseando os versos do poeta. Pereira (2007, p. 30) nos fala que hoje “é uma região
comprometida ambientalmente, embora no passado apresentasse uma mata exuberante,
com uma vegetação composta de árvores de grande porte, que se enfileiravam entremeadas
de cipós e gramíneas, local de abrigo de inúmeras espécies”.
A autora ainda pontua tratar de uma área que fez e faz parte da Amazônia Legal e
que, por isso, constitui espaço ambicionado por várias nações, por representar patrimônio
173
de vida. “No imaginário que se constrói, tendo como exemplo o fragmento urbano do
Parque Florestal de Sinop101
(ANEXO 2), percebe-se ainda a presença de matas, com
árvores imensas e sinuosos riachos, e tem-se a sensação de estar no coração de Sinop, antes
do caminhar humano”. (PEREIRA, 2007, p. 30)
Naquela gleba, para aquelas crianças, a floresta era só uma mata cheia de diversão,
a serraria do pai local de brincar nas ‘montanhas’ que o pó de cerra formava, a madeira
cerrada era motivo de ‘achar o tesouro perdido’, no caso o tesouro era apenas uma tábua,
mas não qualquer uma, a melhor de todas, para brincar de pular tábua, bem alto; quanto
mais alto melhor, os tocos de madeira se transformavam em grandes cidades, os
brinquedos eram inventados e por isso tinham grande valor, era a própria imaginação a
empresa fabricante e a escola era propícia para que, em casa, a criança pudesse brincar de
faz de conta. Desse modo, “[...] a ação de criar e recriar nasce dos nossos desejos e muda a
face do mundo”. (AZEVEDO; ARAÚJO, 2011, p. 8)
Mundo plural daquelas crianças, espaço onde criar, inventar e reinventar eram
verbos conjugados nas práticas de fazer. Espaço tomado pela imaginação, que docilmente
sabia lidar com qualquer estratégia de lugar, “[...] jeitos de artistas [...]. “Corre, corre o
furão: mil maneiras de ‘fazer com’”. (CERTEAU, 1998, p. 91):
Imagina chegar aqui e morar numa casa de madeira que lá de onde eu
vim não existia, num lugar cheio de barro, sem asfalto, poder andar a
vontade na rua, se sujar, era a maior festa! Brincava de pedalar no barro,
de pega-pega, de esconde-esconde, de cipó! [...] lembro-me de ter de
aprender sob a luz do lampião, [...] adorava pular tábua: quanto mais alto,
melhor [...] tinha as tábuas especiais, os toquinhos, reunia todo mundo
para pular tábua, corria, brincava mesmo, espaço não faltava, brincava de
casinha, apesar de não ter as coisas nós inventávamos, só tinha uma
boneca que havia trazido junto, a bicicleta era para cinco usar, cinco mais
os amigos. [...] brincávamos um monte! Era diversão intensa na selva!
(BÉRGAMO, depoimento 17/01/2012).
[...] os nossos brinquedos, eram tudo nós que criávamos. Nós tínhamos
algumas bonecas que trouxemos lá do Paraná, aqui tudo era muito caro e
também nem tinha. No começo então nós tínhamos os brinquedos do
Paraná, mas com o tempo estes brinquedos foram estragando, ficando
velhos, então nós inventávamos, pegávamos toquinhos da serraria,
montava casinha, cidadezinha, eu gostava de brincar de carrinho. Eu
gostava de andar de bicicleta, [...] só tinha uma para eu e minha irmã,
então a gente brincava, se revezava, brincava de pó de serra, hoje a gente
101
O Parque Florestal de Sinop é uma das áreas ambientalmente preservadas e localizado dentro da cidade,
previsto no projeto de colonização.
174
sabe do perigo do pó de serra mas, na época, nem pensávamos. Também
brincávamos de escolinha, tinha uma lousa pequenininha, minha irmã era
professora, eu era aluna e tinha mais um monte de alunos invisíveis. Aí
minha irmã reproduzia muito bem as professoras, ela dizia: Silêeeencio!
Ela imitava as professoras - uma coisa legal quando nós brincávamos de
escolinha: antes de entrar para a sala fictícia nós tínhamos que formar a
fila, igual na escola de verdade, formar fila, tomar distância, ficar em
posição de sentido, mas só tinha eu na fila, o resto era tudo invisível, mas
a minha irmã ficava gritando: “arruma esta fila, que esta fila está torta”...
“enquanto não endireitar a fila ninguém entra”, mas só tinha eu na fila!
(PONCE, depoimento 23/01/2012).
Nesse sentido, a escola, a infância e a pequena cidade que se formava deixavam
marcas de invenção e reinvenção do cotidiano. A sobrevivência pedia isso! Homens,
mulheres e crianças produziam, aos seus modos, uma história com significados próprios,
deixando inscritas no passado marcas de uma história-arte.
Contudo, o que se intentou nesta investigação foi contribuir para “compreender a
escola com base em seu funcionamento interno e nas práticas que disseminou com o intuito
de responder às demandas do fazer ordinário da classe, isto é, do trabalho cotidiano em
sala de aula, e da relação que estabelecia com a sociedade na qual estava inserida”.
(VIDAL, 2005, p. 166)
Muito embora a escola estivesse voltada para a transmissão de saberes, de juízos,
valores e normas a inculcar, para a manutenção da ordem, para a imposição do silêncio e
da disciplina, não saberemos o que essa experiência causou em cada um dos sujeitos que
dela e nela participaram. Cada aluno, cada professor, cada pessoa que vivenciou aquele
cotidiano, sabe apenas falar por si, somente ela sabe dizer que ensinamentos lhe foram
úteis e os que nunca lhe serviram.
Podem ainda, simplesmente, assim como o poeta do início, terem se esquecido do
quanto lhes ensinaram, pois talvez aquilo tudo nunca lhes causara mais calor nem mais
frio, ou ainda, muito do que lhes haviam dito nunca alterara a forma de uma coisa. Ou
simplesmente pelo simples fato de que o quê lhes aprenderam a ver nunca lhes tocaram os olhos.
Talvez, aquilo tudo que rigorosamente, ordenadamente lhes apontaram nunca estava ali: estava ali
só o que ali estava102
102
Cf. versos de Pessoa (2006, p. 130)
175
REFLEXÕES FINAIS
Apenas uma Versão...
Tudo que não invento é falso.
Manoel de Barros
À primeira vista, iniciar uma reflexão final com tal epígrafe poderia levar o leitor a
ter a impressão de que tudo o que foi tratado nesta dissertação seja apenas uma invenção da
autora, uma simples história-ficção. Contudo, declaro que realmente trata-se de uma
pesquisa-invenção. Entretanto, uma invenção não no sentido de escrever uma história com
falsos vestígios ou algo parecido, visto que não teria tal desrespeito a todos que
contribuíram para com o trabalho, para com o leitor e para com a própria pesquisa
acadêmica, que exige rigor e seriedade. A palavra ‘invenção’ assume, aqui, como em todo
decorrer do trabalho, o sinônimo de criação e das artes de fazer do humano.
Parafraseando Manoel de Barros, tenho a convicção de que tudo o que não crio, que
não deixo as minhas marcas no fazer, o que, portanto, não ‘invento’ e que não tem
significado pessoal, é superficial e falso – “Eu me interrogo sobre o que fabrico, pois o
‘sentido’ ali está, escondido no gesto, no ato de escrever”. (CERTEAU, 1998, p. 298- grifo
do autor).
A minha preocupação principal durante toda a escrita da história foi esta: conseguir,
mesmo que minimamente, tomada por uma perspectiva culturalista, escrever uma versão
da história que atribuísse a ela uma história significada pelos sujeitos que a produziram,
uma história em que o fazer humano fosse enfatizado, uma história que direcionasse seu
olhar para as coisas minúsculas, cotidianas, consideradas banais para a história oficial, mas
176
repleta de sentidos, valores, alegrias e dores dos ‘heróis sem nomes’ que não tiveram seus
rostos mostrados pela história vista de cima. E por isso, uma história-inventada, história-
arte, história-criação, sem compromisso de apresentar uma verdade única, absoluta, a qual
a modernidade sempre exigiu dentro de uma perspectiva positivista, até então revestida por
uma totalidade inquestionável no ‘enquadrar’ da pesquisa científica, mas de fazer uma
história repleta de vestígios, traços, linhas e marcas de uma produção humana, criada e
recriada a golpes sutis, dentro de um jogo astucioso, de estratégias versus táticas, de lugar
versus espaço, onde um incorpora o outro, numa dinâmica transformada em prática, em
ação, em artes de fazer. Mesmo porque, esta é uma das premissas da Nova História
Cultural:
[...] no campo da História Cultural, o historiador sabe que a sua
narrativa pode relatar o que ocorreu um dia, mas que esse mesmo fato
pode ser objeto de múltiplas versões. A rigor, ele deve ter em mente
que a verdade deve comparecer no seu trabalho de escrita da História
como um horizonte a alcançar, mesmo sabendo que ele não será
jamais constituído por uma verdade única ou absoluta. O mais certo seria
afirmar que a História estabelece regimes de verdade, e não certezas
absolutas (PESAVENTO, 2005, p. 51).
Neste momento, de volta ao começo, relembro cada fase da pesquisa, me parecia
tudo tão distante, um caminho tão longo até chegar a estas reflexões finais (se assim se as
pode chamar) – um processo literalmente gestacional: com direito a mudanças de humores,
hormônios à flor da pele, cansaço, angústias, dores, noites sem dormir, mas também
alegrias, momentos prazerosos – prazer em perceber cada parte do trabalho ganhando
forma, sendo nutrido pelas múltiplas possibilidades de se tornar mais ‘forte’ a cada dia,
para que no futuro, com novos estudos, segmentos de novas pesquisas, venha, então,
tornar-se um ‘adulto’. Concordo com as palavras de Albuquerque (2006, p. 27), quanto ao
processo de pesquisa quando nos diz:
Processo de gestação, onde se sente o desconforto de se estar crescendo
demais dentro de um espaço seguro e acolhedor onde nos encontramos
protegidos, mas onde o tempo implacável não nos permite mais viver. De
onde saltamos para o desconhecido novo mundo, cheio de palavras
misteriosas e silêncios assustadores. Onde a vida recomeça de outra
maneira.
Contudo, acredito se fazer necessário ainda dizer, o que esta pesquisa, enquanto
realizada por mim, contribuiu para ressignificar o meu olhar para com a história da
educação: a ‘minha história’ com a ‘história’, foi particularmente um processo de
177
migração neste trabalho - me senti migrante em diferentes aspectos: primeiramente, pelo
fato de ser também migrante do Sul para a Gleba Celeste, na década de 1980, e por isso
sentir os reflexos de muitas das histórias que ouvi, na minha própria história. Além disso, o
desafio de ser migrante na história da educação, vinda de outro campo de trabalho, senti no
‘meio do caminho’ a trajetória de ‘ser migrante’, adaptando-me às novas leituras e
métodos, reinventando-me como historiadora da educação, tarefa difícil, uma espécie de
arqueologia combinada com sociologia, antropologia, filosofia, enfim, tarefa plural, onde
ecos de diversas áreas do conhecimento se entrecruzaram no desafio de trazer à luz um
discurso compreensível sobre um ‘morto’ (CERTEAU, 1982), versão de uma reconstrução
do passado sob a dimensão de refletir este passado a partir do presente – “O tempo é o
senhor da História e, por isso, o conceito-chave do ofício do historiador. Conhecer e
compreender os traços de cada época, talvez seja um dos seus maiores desafios, e o seu
tempo, por excelência, é o passado, embora não deva se desobrigar de entender o
presente”. (BITTAR, 2012, p. 7).
História. Tempo. Passado. Migração. Colonização. Educação. Um conjunto de
palavras que exigiram rigor, compromisso para mapear, em meio às muitas peças de um
quebra-cabeça, a escrita desta história. Neste universo onde o historiador junta as peças
para apresentar uma versão compreensível da realidade pesquisada, aprendi nesse meu
‘processo migratório’ (o que para um historiador pode ser óbvio) que deveria adotar novas
posturas diante do que para mim naquele momento era novo: como, por exemplo, que
deveria olhar para uma fonte escrita não mais como um mero papel antigo, com marcas
amareladas do tempo, mas como vestígios de produção humana; percebi ainda que
precisava ver nas fotografias mais do que simples imagens, mas registro de vidas que, de
certa forma, pareciam ainda pulsar e que queriam me dizer algo, sobretudo diante das
fontes orais, quando aprendi que deveria ‘sentir’ as vozes daqueles que vivenciaram tal
experiência. Digo sentir, pois, mais do que ‘ouvir’, senti no olhar de cada colaborador, no
gesto encenado a cada conversa, na expressão de cada face, nas lágrimas e risos de cada
lembrança o quanto o documento oral é rico aliado para o entendimento da história, tem
um valor muito significativo, talvez pelo simples fato de ser construído em conjunto: no
momento da entrevista, entre aquele que conta e aquele que ouve, para que depois possa
ser narrado por este último, deixando à mostra sua subjetividade na própria autoria, o que
me fez ser tomada por curiosidade e certa emoção, que me permitiram “ler a história
178
passada, revisando-a, passando-a a limpo e reescrevendo-a”. (ALBUQUERQUE, 2006, p.
27)
Assim, na tentativa de ‘delinear’ um caminho para percorrer o seu contorno optei
por iniciar com uma contextualização histórica do lócus da investigação, bem como do
processo de migração. A partir do referencial teórico adotado, das fontes encontradas, dos
relatos dos migrantes entrevistados, percorri um caminho (não linear e tampouco tranquilo,
como dito no início!) que possibilitasse o entendimento desta história como
‘acontecimento’ narrado pelos sujeitos que a produziram.
Assim, quanto aos movimentos deste estudo, pode-se dizer que o projeto de
colonização de Sinop fazia parte de um projeto maior, promovido pelo Estado, sob um
discurso legitimador de ocupar os espaços considerados ‘vazios’ demográficos na
Amazônia, fortalecer a segurança nacional e resolver conflitos em alguns estados
federativos, devido principalmente à modernização latifundiária.
Sob esse discurso, o governo militar, a partir de 1964, utilizou estratégias políticas,
criando órgãos responsáveis para tal favorecimento do projeto, beneficiou empresários
com incentivos fiscais, forneceu ampla infraestrutura, como a construção de rodovias
federais, favoreceu empresas privadas a assumir projetos de colonização, uma vez que em
décadas anteriores tentativas frustradas de colonização estatal haviam sido realizadas.
Além disso, com uma forte ideologia, alimentava o processo de migração como prova de
brasilidade, marcada por uma intensa propaganda que ‘mitificava’ a Amazônia e a ‘nova
fronteira agrícola’ como um novo ‘Eldorado’, a verdadeira ‘Canaã’ – Terra do sonho de
toda gente!
Nesse cenário, a Empresa Colonizadora Sinop adquiriu uma extensa área de terra
ao Norte de Mato Grosso, onde daria início ao projeto colonizatório da Gleba Celeste, da
qual nasceriam quatro cidades: Vera, Sinop, Carmem e Cláudia.
O processo dos trabalhos da Colonizadora Sinop teve início, primeiramente, na
cidade de Vera e, em 1973, em Sinop, datando sua fundação em 1974.
No projeto colonizador de Sinop, assim como de toda Gleba Celeste, foi utilizada
marcante propaganda nos estados do Sul do Brasil e em algumas cidades de São Paulo. As
propagandas eram ambiciosas, provocavam sonhos, desejos de um futuro mais promissor:
promessa de terra fértil, de um clima bom e sem geadas, promessa de um lugar ideal onde
o colono sulista poderia sonhar em um dia tornar-se grande fazendeiro e seus filhos teriam
um futuro melhor que aquele que os pais tiveram no passado. Promessas, sonhos,
179
esperanças, ilusões atraíram milhares de migrantes, principalmente sulistas, em especial do
estado do Paraná, a ingressar numa ‘aventura’ rumo à ‘Selva Amazônica’ em busca de um
‘mundo novo’, da ‘Terra Prometida’.
Mal sabiam os migrantes o que lhes esperava. Desilusões, frustrações, sofrimento,
doenças, miséria, saudade dos que ficaram e muito, muito trabalho para fazer: uma cidade
precisava ser construída, tudo estava por ser feito e cabia ao suor daqueles trabalhadores tal
projeto – “A propaganda garantia terras férteis, falava das possibilidades de progresso e
lucros. O que a propaganda não falava era que a região estava, em alguns casos, mal
cortada por “picadões”, trilhas nas quais só se passava a pé, sem nenhuma estrutura de
apoio aos colonos como postos de saúde, escolas para as crianças, estradas para o
escoamento da produção”. (JOANONI NETO, 2012, p. 2).
A terra era diferente das propagandas veiculadas no Sul, não era fértil e precisava
de estudos, investimentos, para que pudesse dar frutos. Muitos não resistiram, retornaram
para seus locais de origem ou para outros locais, porém ‘rotulados’ de fracassados, e os
que ficaram, na sua grande maioria, passaram a aprender a lidar com a madeira, uma vez
que a região era composta por milhares de espécies de árvores de grande valor comercial.
Entretanto, o que me instigou ao analisar as memórias dos migrantes que entrevistei
nesta pesquisa e ao ter contato com outras entrevistas já realizadas, é o quanto a imagem
do presente se sobrepõem às dificuldades e aos sofrimentos do passado, fazendo com que
os momentos vividos e superados influenciem hoje no progresso da cidade, reforçando
sobretudo, não a saga, as lutas, mas sim a ‘vitória’. Como nos diz Joanoni Neto (2012, p.
3), “a memória é refém do tempo presente. Os sucessos ou insucessos alcançados nessas
novas terras, as percepções e questionamentos sobre a experiência vivida, influenciam na
presentificação da memória, na sublimação ou destaque dos momentos vividos”. Como
diria Certeau (1998, p. 162), “Como os pássaros que só põem seus ovos no ninho de outras
espécies, a memória produz num lugar que não lhe é próprio”.
Contudo, os migrantes quando chegaram a Sinop, além da promessa da ‘terra
ideal’, contavam também com a promessa de escola para os filhos, uma vez, que tinham na
educação escolar a ferramenta que garantiria um futuro melhor para seus filhos. E os
colonizadores, cientes dessa convicção dos migrantes, não poupavam garantias de
educação naquele ‘novo’ território, isso na propaganda veiculada.
Entretanto, a educação naquele momento inicial não recebera os mesmos
investimentos e incentivos, tampouco a mesma ‘atenção’ recebida do Estado pelo processo
180
de integração à ‘nova’ fronteira. Apesar de a escola ter sido uma promessa para atrair os
migrantes, quando estes chegaram ela não existia sendo que a mais próxima estava
localizada a 80 km de distância, e para se chegar até ela enfrentava-se estrada sem
pavimentação, o que ocasionava perigos na época da poeira103
e tornava-se intransitável na
época chuvosa.
Dessa forma, inconformados com tal situação, partiu dos próprios migrantes a
iniciativa de juntar-se e construir a escola, assim como decidir os primeiros rumos que a
educação de seus filhos receberia, escolhendo dentre eles ‘os mais instruídos’ para exercer
a docência na pequena Escola Sinop, inicialmente extensão da Escola Estadual N. Sra. do
Perpétuo Socorro, de Vera-MT.
Numa pequena ‘sala’ de madeira, que parecia mais um casebre, com estrutura
material precária, onde o chão era a própria terra, as primeiras crianças que chegaram a
Sinop estudavam todas reunidas sob o regime multisseriado, sob a orientação da
‘professora dos migrantes’, que mesmo não tendo habilitação para exercer a docência, se
sentiu no desejo de ‘ajudar’ aquelas crianças que não teriam onde continuar seus estudos.
A ‘saleta’ de madeira, cujos materiais para sua construção foram doados pela colonizadora,
fora improvisada pelos migrantes, que fugindo das teias da conformação, não suportaram a
ideia da propaganda falsa da escola, pois seus filhos tinham de alguma forma que estudar.
Assim, a sala improvisada da Escola Sinop (chamada informalmente pelos
migrantes de Grupo Escolar Sinop), pertencia à Escola Estadual N. Sra. do Perpétuo
Socorro, que tinham Irmãs católicas trazidas do Paraná pelo colonizador para direcionar os
trabalhos sociais e educacionais. Dessa forma, a Escola Sinop sendo uma extensão da
escola de Vera, desde seu início também foi direcionada pelos trabalhos cristãos
desenvolvidos pelas Irmãs da Congregação Santo Nome de Maria.
Nesse contexto, a Igreja Católica, juntamente com a colonizadora, desenvolvem na
escola um trabalho conjunto, onde a religião, a obediência, o silêncio, a idolatria à Pátria
constituíam as bases que fundamentavam os princípios educacionais.
Com a demanda de migrantes que chegavam todos os dias, a pequena sala não era
suficiente para atender aos alunos; assim, em 1974, ano da fundação de Sinop, a
colonizadora construiu três salas de aula, com um design diferente, vista por muitos como
103
O clima ao Norte de Mato Grosso é dividido em dois momentos: seco e chuvoso, a “estação seca” é
conhecida popularmente como ‘época da poeira’, devido ao grande período de estiagem, provocando muito
pó e baixa umidade do ar, a ‘estação seca’ que ocorre entre final do mês de abril estendendo-se até início de
outubro.
181
bonitas e ao mesmo tempo engraçadas, pois popularmente foram apelidadas de ‘escola
galinheiro’, devido ao formato similar. Nesse processo, onde famílias chegavam todos os
dias, a escola foi crescendo, os professores foram chegando em Sinop (muitos deles
convidados pelo próprio colonizador).
Contudo, em 1976 a Escola Sinop tornou-se oficialmente Escola Estadual de 1°
Grau Nilza de Oliveira Pipino, nome escolhido pelas próprias professoras da época para
homenagear a esposa do colonizador, que “muito ajudava a escola em tudo que esta
precisasse104
”. Nesse momento, Mato Grosso começava a ter uma relação mais efetiva na
escola em estudo, contando ainda com a influência direta da colonizadora e da Igreja
católica, através dos trabalhos desenvolvidos pelas Irmãs.
Durante o período cronológico em estudo, pôde-se verificar que a organização e o
funcionamento da escola em questão tinha como critério seguir os preceitos da educação
estabelecida pela Lei Federal 5.692/71, a qual definia um ensino técnico e mecanicista,
visando a preparação do cidadão para o trabalho e em consonância com os interesses do
Estado militar, instaurando naquele contexto histórico uma educação moldada às
perspectivas do novo cenário urbano-industrial que se constituía no país.
Dessa forma, na documentação encontrada, nos diversos depoimentos orais
coletados e nas fontes iconográficas foi possível perceber as marcas de um ensino onde as
atividades estimulavam a memorização e a repetição, onde o silêncio predominava na sala
de aula, onde a Pátria era exaltada todos os dias na tentativa de ‘docilizar’ mentes e corpos,
uma educação embasada na religião, cujos princípios inculcavam valores e juízos morais,
enaltecendo com ‘glórias’ a ‘nova’ cidade, com o intuito de apresentar na fé o refúgio de
consolação e a esperança de dias melhores.
Há ainda que se destacar a predominação da cultura e das tradições sulistas, que nos
primeiros anos de colonização emergiram com muita força, não considerada como mera
reprodução, mas uma ‘reinvenção’ de tudo aquilo que os migrantes tinham por definidos
no Sul, ‘reinventados’ aos seus modos em outro lugar, totalmente diferente, mas que não
deixavam de ser refeitos, na maioria das vezes, sem os mesmos materiais, sob ‘outras’
aparências, mas com valores que resignificavam os valores identitários daquelas pessoas,
daqueles alunos, daquela escola, reforçando os costumes - a produção cultural de um Sul
‘reinventado’ no Norte de Mato Grosso.
104
Cf. depoimentos obtidos nesta pesquisa.
182
Contudo, ao que se refere ao ‘panóptico’ instituído na escola para controlar,
disciplinar, silenciar - “uma prática panóptica a partir de um lugar de onde a vista
transforma as forças estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar,
portanto, e ‘incluir’ na sua visão” (CERTEAU, 1998, p. 100), havia também, na dinâmica
da sala de aula, uma produção cultural específica, onde os ‘fracos’ jogavam sutilmente
com os ‘fortes’, sem entrar em confronto direto, sem ser necessária a imposição dos
‘fracos’, mas aos seus modos, aos seus jeitos de fazer e com suas mobilidades táticas
fazendo aparecer suas artes de fazer, conseguiam estar onde ninguém esperava105
,
mobilizando as estratégias do forte, fazendo daquele lugar um espaço, tornando-o, então,
um lugar praticado - lugar que movia-se, lugar que se escondia e aparentemente dominado,
porém conquistado, recriado e transformado em espaço no mundo106
daqueles que nele
habitavam.
Propomos um olhar para esse lugar: escola, como espaço onde uma produção
cultural específica era criada, recriada, reinventada, em que habitualmente nessa dinâmica,
nesse jogo de ‘fortes e fracos’ instituíam-se estratégias modeladoras e táticas de subversão.
Nesse cenário, as relações de poder se revelavam no interior daquela instituição escolar,
enquanto lugar-espaço onde foram estabelecidas relações sociais e concomitantemente se
difundiam saberes e conhecimento. Contudo, utilizando-me das conclusões de Gonçalves
(2004, p. 13), foi neste contexto dentro do período estudado que:
[...] essa realidade, que essas práticas foram inventadas, ou
reinventadas, gerando não somente as ações passivas de reprodução das
imposições formais dos regulamentos e programas prescritos, mas,
sobretudo, desenvolvendo uma relação complexa de astúcias com tais
imposições, com tramas de sociabilidades entre os atores e seus pares e
com outros sujeitos implicados nas relações mais extensas, seja no
seio familiar, comunitário ou outros. Relações amplas de
negociações, de conflitos, de burlas, de transgressões, de criação e
de resistência, que fazem parte do constituir-se da escola.
Diante disso, acredito que com a presente pesquisa ter contribuído para propor uma
discussão sobre como foi instaurado o sistema educacional de Sinop, assim como
apresentar as práticas, normas, o que se era preciso ensinar, que valores, juízos inculcar no
processo de escolarização naquele contexto histórico escolar. Além disso, me propus a
travar uma discussão a partir das concepções de Michel de Certeau, que promovesse uma
105
Cf. Certeau (1998, p. 101) 106
Cf. Albuquerque, 2006.
183
reflexão sobre as apropriações feitas pelos sujeitos no cotidiano da escola e com isso
produzir uma história das memórias e práticas escolares, ou seja, conhecer e refletir sobre a
produção da cultura escolar.
O conceito de cultura escolar adotado na pesquisa, apoiado na ótica de Julia (2001),
pressupôs conhecer a escola no seu cotidiano interno, um olhar para seu interior, ou seja,
‘compreender o que ocorria naquele espaço particular’. (JULIA, 2001, p.13).
Contudo, a ‘escola reinventada’ a que propus direcionar o meu olhar, deixaram
naquelas paredes marcas escritas da sua história, e, mesmo que aqueles ‘prédios’ hoje
foram substituídos e, portanto, já não existem mais, ainda perdura em outro espaço uma
escola que, assim como tantas outras em nosso país, é cotidianamente ‘reinventada’,
vivamente inserida na história, produtora de cultura, de fazer humano diante da ‘ordem
efetiva das coisas’ (CERTEAU, 1998).
Com a presente pesquisa acredito que talvez tenha assumido, assim como muitos
outros trabalhos, ‘um risco’ de contrapor ao discurso acadêmico tradicional, creio que
influenciada por Michel de Certeau, utilizando das minhas táticas para ‘fugir’ dos padrões
estabelecidos de uma linguagem tão técnica, estrutural que há muito tempo ainda resiste na
academia. Busquei encontrar na arte e na poesia possibilidades de união com a história
(área já tão múltipla do conhecimento), para que, assim, ‘escapasse’ de apresentar sua
escrita por um caminho uno, absoluto, mas que possibilitasse ao próprio leitor refletir sobre
ela, sobre os efeitos que ela pode fabricar em cada um, na tentativa de, desta forma,
construir novos olhares sobre a história da educação, em especial a história educacional
que esta investigação se dirigiu, de modo a “mergulhar em uma infinidade de cores e tons
que eram imperceptíveis à distância, impostos pela forma de se entender e de se fazer
ciência” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 26), movida por esta razão que entendo e denomino
como sendo “apenas uma versão”.
Para tanto, minha tentativa de unir traços de arte e poesia com a história foi o de
fazer emergir uma linguagem diferenciada, múltipla, e de, assim como Santos (2011), agir
como uma pesquisadora que também sente, que também sonha, afinal,
Poetas sonham palavras, o pesquisador também pode sonhar suas
palavras, sonhar com a linguagem com as quais irá se colocar diante dos
sujeitos de sua pesquisa. Essa preocupação com as palavras, com a
linguagem, remete a uma relação diferenciada entre pesquisador e
pesquisado; uma relação que transcende à concepção dualista sujeito e
objeto. (SANTOS, 2011, p. 10).
184
Contudo, assim como Oliveira (1983, p.139), “creio ter deixado de forma modesta,
a contribuição que pretendia”, entretanto, ainda não como trabalho finalizado, mas
composto por muitos espaços, por reticências a requerem mais aprofundamento, mais
pesquisa – “Meus limites não foram superados, acredito que mudaram de lugar”. (Ibidem).
Com isso, faço minhas as palavras de Albuquerque (2006, p. 27):
Volto-me para a história passada sem, no entanto, desabitá-la. Ela segue
em mim como um livro que não se encerra na última linha, não se decifra
na primeira leitura. Uma história que cada vez que escrevo e leio,
conto e reconto, ganha novos significados, uma história que
reconstruo, de memória em memória, de lembrança em lembrança.
Nessa história há ainda muito por se dizer, por se contar. Há muita coisa para se
pensar, para se discutir, para que se possa contribuir ainda mais no presente e no futuro a
partir do passado. A sensação é de não querer colocar um ponto final, mas apenas deixar
um degrau que, então, se houver de alguma forma um desejo da autora a ser deixado neste
degrau, gostaria apenas que toda essa história pudesse ser vista pela ótica das artes de
fazer, para que sua importância não possa, como dito pelo poeta do início desta pesquisa:
“ser medida com fita métrica, nem com balanças, nem com barômetros etc.. Mas que sua
importância e seus significados possam ser medidos pelo encantamento que a história
possa de alguma maneira ter produzido em cada um de nós”.
185
VERSOS FINAIS
E, tudo começou ali,
Na salinha de chão batido.
Uma escola em meio à floresta
Que se via tudo pelas frestas
Construída pelos migrantes
Era o orgulho da cidade
O sonho de um futuro brilhante
Para as crianças, para a sociedade
Escola-vigilante
Alunos- astuciosos
Que juntos viviam
Um cotidiano fascinante
Escola Reinventada
A cada dia, a cada hora
Obediência e silêncio
Era o que a escola determinava
Mas havia também outro lado,
O da criatividade que imperava
Onde os alunos cantavam cirandas
E brincadeira-inventada não faltava
Era assim o cotidiano
Da pequena sala da floresta
Visto pela criança da janela
Tudo como uma grande festa.
Josiane Brolo Rohden, Sinop-MT, 2012.
Escola Reinventada
Sala de Aula construída pelos migrantes em 1973
Fonte: Patrimônio Histórico de Sinop, 2011
186
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Depoimentos:
BÉRGAMO, Dayse Maria Vieira. Entrevista concedida no dia 17/01/2012, em Sinop-MT.
Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.
BRAZ, Maria Lúcia de Araújo. Entrevista concedida no dia 08/12/2011, em Sinop-MT.
Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden
GOBBO, Anízia Mendes. Entrevista concedida no dia 14/01/2012, em Sinop-MT.
Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.
GUERRA, Terezinha Vandresen Pissinati. Entrevista concedida no dia 25/01/2012, em
Sinop-MT. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.
PAULA, Maria Augusta de. Entrevista concedida no dia 02/02/2012, em Sinop-MT.
Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden
PONCE, Carla Sprizão. Entrevista concedida no dia 23/01/2012, em Sinop-MT.
Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden
SILVA, Soeli Siaska da. Entrevista concedida no dia 07/02/2012, em Sinop-MT.
Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden
BRUN, Marisa Lucia, Entrevista concedida no ano de 2002, em Sinop-MT.
Entrevistadora: Janice Cássia Lando
MODANESE, Reinaldo Domingos, Entrevista concedida no ano de 2002, em Sinop-MT.
Entrevistadora: Janice Cássia Lando
194
ROVERI, José. Entrevista concedida no ano de 2002 em Sinop-MT. Entrevistadora: Janice
Cássia Lando
SÃO JOSÉ, Maria Augusta Paula. Entrevista concedida no ano de 2002, em Sinop-MT.
Entrevistadora: Janice Cássia Lando
SILVA José Carlos da, Entrevista concedida no ano de 2002, em Sinop-MT.
Entrevistadora: Janice Cássia Lando
Documentais
Arquivo Público: Escola Estadual Nilza de Oliveira Pipino, 2011.
Arquivo Público: Escola Estadual N. Sra. do Perpétuo Socorro, 2012.
Arquivo Público: Patrimônio Histórico de Sinop, 2011.
Acervo Particular: Colonizadora Sinop, 2011
Acervo Particular: Maria Lúcia Braz, 2011.
Acervo Particular: Carla Sprizão Ponce, 2012.
Iconográficos
ANDERLE, Claudevânia B. Sinop nascendo para o Progresso. 2012. Acrílico sobre tela painel,
80x60.
ANDERLE, Claudevânia B. Escola dos Migrantes. 2012. Acrílico sobre tela painel, 80x60.
ANDERLE, Claudevânia B. Escola Galinheiro – Nilza de Oliveira Pipino. 2012. Acrílico sobre
tela painel, 80x60.
195
ANEXOS
196
Anexo 1- Mapa de localização do Município de Sinop no Estado de Mato Grosso
Figura 44- Localização de Sinop em relação à Capital Cuiabá – 500 km
Fonte: www.visitesinop.com.br
197
Anexo 2- Imagens do Parque Florestal de Sinop
Figura 45– Vista aérea do Parque Florestal da cidade de Sinop, 2010
Fonte: www.visitesinop.com.br
Figura 46 – Área de visitação da represa no Parque Florestal da cidade de Sinop, 2010.
Fonte: www.visitesinop.com.br