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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V. 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E DA NATUREZA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA (MESTRADO) LUCIANO VIEIRA DUTRA A REDE DA REDE: TRABALHO, SOCIABILIDADE E TERRITORIALIDADE DOS VENDEDORES DE REDES DE DORMIR DE BREJO DO CRUZ-PB. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Paraíba como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre na área de Geografia, sob a orientação da Profª Drª Doralice Sátyro Maia. João Pessoa – PB Setembro de 2007

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E DA NATUREZA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA (MESTRADO)

LUCIANO VIEIRA DUTRA

A REDE DA REDE: TRABALHO, SOCIABILIDADE E TERRITORIALIDADE DOS VENDEDORES DE REDES DE

DORMIR DE BREJO DO CRUZ-PB.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Paraíba como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre na área de Geografia, sob a orientação da Profª Drª Doralice Sátyro Maia.

João Pessoa – PB Setembro de 2007

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A REDE DA REDE: TRABALHO, SOCIABILIDADE E

TERRITORIALIDADE DOS VENDEDORES DE REDES DE DORMIR DE BREJO DO CRUZ-PB

Dissertação apresentada em ____/____/____ à banca examinadora.

Profª Drª Doralice Sátyro Maia (PPGG/UFPB) Orientadora

Profª Drª Maria Franco Garcia (PPGG/UFPB)

Examinadora

Profª Drª Marilda Aparecida de Menezes (UFCG) Examinadora

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SOU REDEIRO

Compre uma rede Meu bom patrão Sou Paraíba Sou redeiro do sertão É rede boa, tem Tieta E tem jamanta Tem manta crua e bordada Feita de puro algodão Sou um redeiro Vendo em todo lugar To lá no meio da feira Shopping center e beira-mar Tudo o que eu quero É o meu sagrado pão Mais muita gente indecente Pensa que somos ladrões. Compre uma rede Meu bom patrão Sou Paraíba Sou redeiro do sertão É rede boa, tem Tieta E tem jamanta Tem manta crua e bordada Feita de puro algodão A noite chega Tomo um banho para jantar Bato a poeira da rede Fico deitado a pensar Se eu pudesse Ficar lá no meu sertão Juntinho da minha gente Sem pensar na solidão Compre uma rede Meu bom patrão Sou Paraíba Sou redeiro do sertão É rede boa, tem Tieta E tem jamanta Tem manta crua e bordada Feita de puro algodão

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Pra ser redeiro Tem que ser bem radical Falar coisas que nem sei Beber cana e prosear Virá um inferno A vida do cidadão Com a alma e o corpo quente Vendo até um caminhão Compre uma rede Meu bom patrão Sou Paraíba Sou redeiro do sertão É rede boa, tem Tieta E tem jamanta Tem manta crua e bordada Feita de puro algodão Sei que mereço E não há jeito de mudar Foi porque não estudei Pra no futuro brilhar Mais sou honesto Tenho deus no coração Redeiro também é gente É um digno cidadão Compre uma rede Meu bom patrão Sou Paraíba Sou redeiro do sertão É rede boa, tem Tieta E tem jamanta Tem manta crua e bordada Feita de puro algodão (Música de Tihinho Almeida)

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Dedico este trabalho a minha família, assim como a minha noiva, sem dúvida nenhuma, as pessoas mais importantes da minha vida.

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AGRADECIMENTOS

A realização desta pesquisa não foi resultado de um trabalho individual, mas

sim coletivo. Foram várias as pessoas que contribuíram de uma forma ou de outra

para que esta dissertação pudesse ser concluída. Sendo assim, não podemos deixar

de agradecer às seguintes pessoas:

Aos meus pais, Lilia e Lucival, e a minha noiva, Terezinha, pela ajuda em

todos os sentidos, assim como pelo constante apoio.

A minha orientadora, Profª Drª Doralice Sátyro Maia, pelas sugestões para o

trabalho, assim como por sua enorme capacidade de nos motivar e de nos acalmar

nos momentos de aflição.

A todos os professores do PPGG-UFPB, especialmente às professoras Drª

Maria Franco e Drª Emília de Rodat, pelas valiosas contribuições, assim como a

professora da UFCG Drª Marilda Aparecida de Menezes pela ajuda.

Aos colegas de mestrado, Anderson, Emmanuel, Ernani, João Tavares,

Napoleão, Jocélio, dentre outros, pelo companheirismo, amizade, assim como pelos

momentos de descontração e reflexão.

À secretária do PPGG, Sônia, pela paciência, gentileza e atenção com que

nos recebia, quando a requisitávamos.

À secretária de educação de Brejo do Cruz-PB, Aparecida, assim como ao

prefeito “Barão”, pela compreensão e ajuda no que diz respeito à permissão para

nosso afastamento das atividades como professor no município, o que foi de suma

importância para que pudéssemos produzir nosso trabalho.

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Aos colegas Deri, Cláudio, Adriana, Elifram e Josiran, assim como a

Professora Janselice.

Por fim, agradeço a todos os redeiros com os quais tive contato, pela

atenção e gentileza com que nos receberam.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01 Veículo “Mecedinha” no qual foi realizada a viagem de campo aqui descrita

27

FIGURA 02 Grupo de redeiros no interior do caminhão, mostrando a situação na qual viajam dentro do “baú”

27

FIGURA 03 Carros de rede que também partiram no momento da saída da “mecedinha”

28

FIGURA 04 Redes de dormir armadas no posto de combustível na cidade de Patos – PB, primeiro ponto de parada..

29

FIGURA 05 Redeiros dormindo no posto de combustível na cidade de Euclides da Cunha– BA

31

FIGURA 06 Carro de rede proveniente da cidade de Vista Serrana – PB

32

FIGURA 07 Momento da Retirada das mercadorias de dentro do carro de rede

33

FIGURA 08 Mercadorias separadas para serem comercializadas por um redeiro

34

FIGURA 09 Redeiro arrumando seu “mói” no carrinho 35 FIGURA 10 Redeiro proprietário anotando as mercadorias

selecionadas pelo redeiro vendedor

35

FIGURA 11 Redeiro vendedor saindo para o trabalho de venda nas ruas

36

FIGURA 12 Carrinho com a “boca de ferro” 37 FIGURA 13 Redeiro vendedor arrumando seu “mói” em uma rede

depois de um dia de trabalho 38

FIGURA 14 Redeiro vendedor oferecendo as mercadorias a uma pessoa na rua. Autoria

39

FIGURA 15 Carro de rede com o qual nos encontramos em um posto de combustível na cidade baiana de Jacobina

40

FIGURA 16 Redeiros arrumando seus carrinhos na cidade de Xique Xique – BA.

42

FIGURA 17 Redeiros armando suas redes em uma árvore num posto de combustível na cidade de Barra – BA.

43

FIGURA 18 Inicio dos trabalhos na cidade de Barra – BA. Aqui, cada redeiro cuida de arrumar seu “mói” no seu carrinho

44

FIGURA 19 Posto de combustível na cidade de Barreiras – BA onde o grupo de redeiros que acompanhamos se alojou

46

FIGURA 20 Momento no qual alguns redeiros vendedores retiram as mercadorias de dentro do carro de rede.

47

FIGURA 21 Rua do Bairro Jardim dos Buritis onde residem muitos redeiros. È onde se localiza bar/restaurante de “Zé Má”

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FIGURA 22 Bar/Restaurante do “Zé Má”. É nesse local onde os

redeiros mais se encontram e se divertem 52

FIGURA 23 Descarregamento de mercadorias vindas de Brejo do Cruz-PB em um caminhão

53

FIGURA 24 Descarregamento de mercadorias vindas de Brejo do Cruz-PB em um caminhão

53

FIGURA 25 Mercadorias guardadas dentro da casa de um redeiro 54 FIGURA 26 Diagrama representando a organização do processo de

comercialização das redes de dormir e demais mercadorias a partir de Brejo de Cruz-PB

67

FIGURA 27 Veículo D-20 adaptado para a venda de redes. Geralmente os redeiros proprietários desse tipo de veículo usam a “boca de ferro”

68

FIGURA 28 Veículo pampa adaptado para a venda de rede. Os redeiros proprietários desse tipo de veículo costumam usar a “boca de ferro”

68

FIGURA 29 Redeiros dentro do “baú” da “mecedinha 79 FIGURA 30 Redeiros dormindo ao relento debaixo de árvores em um

posto de combustível na cidade de Euclides da Cunha-BA

81

FIGURA 31 Redeiro proprietário no trabalho de distribuição das mercadorias aos redeiros vendedores num pátio de posto de combustível na cidade de Euclides da Cunha-BA

99

FIGURA 32 Paizinho” (de azul), conversando com outro redeiro proprietário num posto de combustível na cidade de Xique Xique-BA

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LISTA DE MAPAS

MAPA 01 Percurso da viagem de campo

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MAPA 02 Localização do município de Brejo do Cruz-PB

25

MAPA 03 Localização do município de Aparecida de Goiânia-GO.

48

MAPA 04 Localização do município de São Bento-PB.

58

MAPA 05 Destinos dos redeiros

72

LISTA DE QUADROS

QUADRO 01 Valores de compra e venda das mercadorias

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RESUMO

O presente trabalho teve o objetivo de analisar o processo de comercialização

realizado pelos vendedores de redes de dormir, também comumente denominados de redeiros, da cidade paraibana de Brejo do Cruz, dando especial destaque à realidade territorial construída por esses trabalhadores no seu processo de trabalho. Estudamos a atividade comercial realizada pelos redeiros migrantes que trabalham de forma itinerante, viajando dentro de veículos de cidade em cidade, vendendo os seus produtos nos locais por onde transitam. Utilizamos duas metodologias qualitativas: entrevistas semi-estruturadas com os redeiros e a técnica de observação participante. Essa técnica de pesquisa foi adotada na viagem feita a bordo de um carro de rede na companhia de um grupo de redeiros. Fizemos uma análise do processo migratório vivenciado pelos redeiros, tencionando com isso, entender alguns aspectos que caracterizam a atividade que aqui estudamos. A compreensão do caráter territorial do comércio de redes foi feito a partir da utilização de dois conceitos: Apropriação e Dominação, sendo esses, formas distintas de relação com o espaço. A análise da rede social criada entre os redeiros, quando estão trabalhando, teve o objetivo de entender a importância da referida rede na construção do território-rede dos redeiros, encarado como um território descontínuo, entretanto, articulado em escala nacional. A pesquisa, além de nos ter possibilitado entender a dimensão territorial do processo de comercialização de redes de dormir, permitiu-nos fazer uma discussão sobre as precárias e difíceis condições de trabalho aos quais os redeiros se submetem quando estão trabalhando.

Palavras-chave: Trabalho, território, rede social, rede de dormir.

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ABSTRACT

The present work had the objective of analyzing process of commercialization accomplished by the hamers salespersons, also commonly denomination hamers salespersons, of the Brejo do Cruz city- Paraíba giving prominence to the reality special built for those territorial workers any his process of work. We studied a commercial activity accomplished by the migrating hamers salespersons that they work in an itinerant way, traveling inside of city vehicles in city, selling their products in places through where. We used two qualitative methodologies: interverviews semi-structured with the hamers salespersons and a technique of participant observation. That research technique was adopted in the done trip a boar of a hamer car in the company of a hamers salespersons group. We made one analyzes do migratory process lived by the hamers salespersons, that of wit of intending, to undertanding makes character does trades of hamers was done a to leave of the territorial use two concepts: appropriation and dominace, being of these, that you form different from relationship with space do. A net of the one it analyzes maid enter in the hamers salespersons when the are social working, he had the objective of understanding an importance of the referred net in the construction hamers salespersons of the one of territory-hamer, this being researches of a, besides having made possible to understand each other a dimension he makes process of commercialization of hamers territorial, he allowed to do us a discussion are on as precarious and difficult work conditions to the which the hamers salespersons submits they are working.

Key Words: Work, territory, social net.

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SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS 14 CAPÍTULO 1- NOS CAMINHOS DA PESQUISA 17

1.1 Os procedimentos metodológicos 17 1.2 A viagem em um carro de rede 23

CAPÍTULO 2- A REDE DE DORMIR E O TRABALHO DOS REDEIROS 55 2.1 A rede de dormir no Brasil: pequeno resgate histórico 55 2.2 Origens do comércio de redes em Brejo do Cruz-PB 57 2.3 O comércio de redes de dormir: o trabalho dos redeiros 62 2.4 Os destinos dos redeiros 69 2.5 O tempo dos deslocamentos dos redeiros 73 2.6 A relação de trabalho entre o redeiro proprietário e o redeiro vendedor

74

2.7 A precariedade do trabalho 79 CAPÍTULO 3- A REDE DA REDE: O PROCESSO MIGRATÓRIO E TERRITORIALIDADE DOS VENDEDORES DE REDES DE DORMIR

86

3.1 O processo migratório 86 3.2 O território: uma introdução conceitual 92 3.3 Dominação e Apropriação: elementos da construção da territorialidade dos redeiros

98

3.3.1 O lugar de apoio: o posto de combustível 98 3.3.2 O Bairro Jardim dos Buritis em Aparecida de Goiânia -GO 104

3.4 Interações sociais entre redeiros nos postos de combustíveis 106 3.5 O território-rede dos redeiros 110

CONSIDERAÇÕES FINAIS 116 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 119 APÊNDICE

126

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O trabalho que ora apresentamos objetiva analisar o processo de

comercialização realizado pelos vendedores de redes de dormir, também

comumente denominados de redeiros, da cidade paraibana de Brejo do Cruz, dando

especial destaque à realidade territorial construída por esses trabalhadores no seu

processo de trabalho.

A idéia de estudar a comercialização das redes de dormir fabricadas na

referida cidade, assim como a realidade territorial construída pelos que trabalham

nesse processo de comercialização, surgiu a partir da nossa vivência na referida

cidade e pelo interesse em desenvolver uma pesquisa no Programa de Pós-

Graduação em Geografia (mestrado) da UFPB.

Percebemos que, apesar de existirem inúmeros trabalhos que trataram do

tema rede de dormir, principalmente no que se refere ao seu processo de produção,

verificamos a escassez de pesquisas que tenham como objeto de análise o

processo de comercialização do referido produto, assim como são poucos os

trabalhos geográficos tratando dessa temática. Nesse sentido, entendemos

estarmos contribuindo com o entendimento de uma realidade pouco estudada, bem

como com o conhecimento geográfico, já que se trata de uma temática até então

não presente nos trabalhos geográficos.

A cidade de Brejo do Cruz, localizada no alto sertão paraibano, tem na

indústria de redes de dormir sua principal atividade econômica, assim como a

atividade comercial a ela relacionada, sendo essa, o nosso objeto de análise. As

duas atividades, a de produção e a de comercialização de redes de dormir, são

responsáveis pela geração de empregos para uma parcela expressiva da população

local, pobre e pouco escolarizada.

Estudamos especificamente a atividade comercial realizada pelos redeiros

que vivem na condição de migrantes, locomovendo-se em veículos, também

chamados de “carros de rede”, de cidade em cidade, vendendo seus produtos nos

locais por onde transitam. Podemos classificar os redeiros de acordo com seu papel

dentro da organização do trabalho. Sendo assim, temos o redeiro proprietário, dono

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do veículo no qual viajam os redeiros, assim como das mercadorias a serem

comercializadas, e o redeiro vendedor, responsável pela venda dos produtos.

Portanto, o principal objetivo de nosso trabalho, é a analise da dimensão

territorial do comércio de redes. Analisamos também o trabalho realizado pelos

redeiros em seus múltiplos aspectos, assim como a constituição de uma rede social

entre esses trabalhadores, quando estão trabalhando e sua importância na

construção daquilo que denominamos território-rede dos redeiros.

A partir do exposto, estruturamos nosso trabalho em três capítulos. O

primeiro capítulo, intitulado nos caminhos da pesquisa, é dedicado principalmente à

explicitação da metodologia adotada na pesquisa, assim como à discussão sobre o

trabalho de campo e o contato com o objeto de análise. Aqui, relatamos a

experiência por nós vivida durante uma viagem na companhia de um grupo de

redeiros. Além disso, descrevemos com detalhes o processo de comercialização

realizado por esses trabalhadores. Na discussão sobre a metodologia e sobre o

trabalho de campo, utilizamos os seguintes autores: Menezes (2002); Baylina

(1997); Maia (1997); Cardoso (1986) e Gondim (1999).

No segundo capítulo, intitulado A rede de dormir e o trabalho dos redeiros,

de início analisamos a origem da rede de dormir no Brasil, assim como o princípio do

processo de comercialização estudado a partir da cidade de Brejo do Cruz-PB. Em

seguida, analisamos alguns aspectos do trabalho realizado pelos redeiros, tais

como: as estratégias de comercialização; os destinos dos redeiros; o tempo dos

deslocamentos; a relação de trabalho entre o redeiro proprietário e o redeiro

vendedor e por fim, discutimos a precariedade do trabalho realizado por esses

trabalhadores. Sobre as origens da produção e comercialização de redes de dormir,

utilizamos como referencial teórico os seguintes autores: Cascudo (2003); Rocha

(1983) e Egler (1984). No que diz respeito à questão do trabalho em seus múltiplos

aspectos utilizamos os trabalhos de: Antunes (2005); Bihr (1998); Marx (2004) e Da

Matta (1990).

O último capítulo, A rede da rede: o processo migratório e territorialidade

dos vendedores de rede de dormir, dedica-se inicialmente à discussão sobre o

processo migratório vivenciado pelos redeiros, buscando desvendar algumas

questões que possam contribuir para o entendimento e para a caracterização do

referido processo de comercialização. Sobre o processo migratório, temos como

principal referencial teórico, os trabalhos de: Santos (2005); Póvoa Neto (1997); Rua

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(2003); Martins (1986) e Sayad (2000). Também analisamos o processo de

territorialização dos redeiros, seja nos postos de combustíveis, principais locais de

apoio durante a viagem, seja no Bairro Jardim do Buritis na cidade de Aparecida de

Goiânia-GO, local visitado durante nosso trabalho de campo. Aqui, utilizamos

principalmente os conceitos de território, apropriação, dominação e cotidiano. Sobre

esses conceitos, nos embasamos nos trabalhos de Machado (1997); Morais (1990);

Haesbaert (2002, 2004, 2005); Souza (2003); Raffestin (1993) e Seabra (1996).

À guisa de conclusão do capítulo, assim como do trabalho, fazemos uma

análise sobre a rede social construída pelos redeiros nos postos de combustíveis,

bem como sobre a importância da referida rede social na construção do território-

rede dos redeiros em escala nacional. No que diz respeito à questão da rede social,

temos como referência os trabalhos de Menezes (2002); Scherer-Warren (2005) e

Baptista (2003). Por fim, sobre território-rede, amparamo-nos em trabalhos de

Haesbaert (2002, 2004) e Souza (2003).

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CAPÍTULO 1- NOS CAMINHOS DA PESQUISA1 1.1 Os procedimentos metodológicos

O trabalho de campo constitui-se num momento de muita importância da

pesquisa, quando o investigador entra em contato direto com seu objeto de análise.

Nesse momento de encontro, o pesquisador utiliza-se de técnicas de obtenção ou

coleta de informações. Privilegiamos neste trabalho o uso de duas técnicas

qualitativas de pesquisa: entrevistas semi-estruturadas, além daquela que dá maior

ênfase aos sentidos do pesquisador na obtenção das informações, a observação

participante.

Antes de ser um conjunto de técnicas de pesquisa, as metodologias

qualitativas devem ser compreendidas como uma forma particular de encarar o

mundo empírico, a realidade social (BAYLINA, 1997). Sendo assim, a escolha dos

procedimentos metodológicos a serem utilizados se dá em função da temática

estudada, do problema proposto, sendo dessa forma uma escolha consciente, não

por acaso. Optamos pelas técnicas qualitativas de investigação, pelo fato delas se

mostrarem válidas e úteis no tratamento e análise da vida cotidiana dos sujeitos

sociais, assim como no conhecimento direto dos comportamentos sociais. Para

Baylina (1997, p.125) la metodologia cualitativa puede considerarse como una teoría de análisis

que se basa en la investigacíon que produce datos descriptivos para

proceder con su interpretacíon: as propias palabras de las personas,

habladas e escritas, y la conducta observable.

Além da exposição das técnicas de pesquisa utilizadas no trabalho de

campo, entendemos ser fundamental apresentar a discussão sobre os

1 O título deste primeiro capítulo faz referência ao capítulo de mesmo título do livro Redes e Enredos nas trilhas dos migrantes: Um estudo de famílias de camponeses-migrantes, de Marilda Aparecida de Menezes, e que serviu como uma das nossas principais referências teóricas.

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acontecimentos que marcaram as interações sociais entre o pesquisador e seus

entrevistados, quando da operacionalização das referidas técnicas.

No que diz respeito à discussão metodológica do trabalho de campo,

percebemos que há um certo desprestígio em muitos ramos do conhecimento, mas

notadamente na geografia, cujos trabalhos não privilegiam a discussão sobre o

contexto de encontro com o objeto de pesquisa no trabalho de campo (MAIA, 1997).

Sobre essa questão, Marilda Aparecida de Menezes (2002, p. 29) observa que

em geral, os cientistas sociais, ao relatarem sobre o trabalho de campo,

tratam das técnicas utilizadas, mas raramente descrevem o contexto em

que se desenvolveu a pesquisa, bem como os acontecimentos e,

sentimentos que marcaram a relação entre investigador e informantes.

Entendemos que esse desprestígio, já exposto acima, é fruto do fato de que

os pesquisadores, ao interpretaram os dados da pesquisa, buscam “no ponto de

vista do entrevistados” dados que possam dar objetividade a seu trabalho. Nesse

sentido, no momento da interpretação, o cientista social assume sua autoridade

como autor, prioriza dados que garantam a objetividade e a construção de

regularidades, desconsiderando as variações individuais e eventos

esporádicos (MENEZES, 2002, p. 30).

Essa postura metodológica de buscar a objetividade na pesquisa, sem

considerar o contexto que a envolve, é questionada por muitos antropólogos

contemporâneos (MENEZES, 2002). Cremos que o contexto no qual se realiza o

contato do pesquisador com seus informantes influencia nos dados obtidos, fazendo

com que, desta forma, os dados coletados não sejam “‘peças de verdade’, mas

antes, socialmente construídos” (MENEZES, 2002, p. 30).

Com relação a essa questão, é importante que se frise a natureza subjetiva

do conhecimento. Entendemos que o resultado final de uma pesquisa se constitui

como fruto das interpretações do pesquisador e como bem enfatiza Ruth Cardoso

(1986, p.101), “a interpretação que se constrói sobre análises qualitativas não está

isolada das condições em que o entrevistador e o entrevistado se encontram”.

Nesse sentido, a pesquisa não corresponde ao resultado da coleta de dados

dotados de existência própria e que falam por si mesmos, mas sim, ao reflexo da

subjetividade do pesquisador e do contexto em que se realizou o trabalho de campo.

Assim, “o pesquisador é o mediador entre a análise e a produção da informação,

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não apenas como transmissor, porque não são fases sucessivas, mas como elo

necessário” (CARDOSO, 1986, p. 101).

Para melhor expor os contatos que estabelecemos quando do trabalho de

campo, optamos por dividir a exposição em duas partes. Em um primeiro momento,

discutiremos sobre o contato com os redeiros no momento em que foram realizadas

as entrevistas, trabalho realizado na cidade de Brejo do Cruz-PB. Em seguida, em

outro subcapítulo, explanaremos a experiência por nós vivida como acompanhante

de um grupo de redeiros dentro de um carro de rede.

Sobre a técnica de entrevista, Cardoso (1986, p.102) enfatiza sua natureza

intersubjetiva, pois de acordo com a autora, “uma entrevista, enquanto está sendo

realizada, é uma forma de comunicação entre duas pessoas que estão procurando

entendimento. Ambas aprendem, se aborrecem, se divertem e o discurso é

modulado por tudo isto”.

As entrevistas foram realizadas durante os meses de fevereiro e março de

2007. Foram feitas um total de 64 entrevistas, sendo 32 com redeiros proprietários e

mais 32 com redeiros vendedores. Visto o caráter qualitativo de nossa pesquisa,

entendemos que a quantidade de entrevistas realizadas é bastante representativa,

não pelo número de entrevistas em si, mas pelo fato de seguirmos o princípio da

saturação, momento a partir do qual os dados coletados já não trazem novas

informações (BAYLINA, 1997). “En este momento, la muestra con que se trabaja

puede considerarse representativa de un conjunto más amplio, lo cual nos confirma

que este pequeno subgrupo se trata de um grupo homogéneo” (BAYLINA, 1997,

p.126).

Além das entrevistas realizadas com os redeiros que trabalham atualmente,

também entrevistamos 4 antigos redeiros de Brejo do Cruz-PB. As informações

coletadas nessas entrevistas foram de grande valia para o entendimento das origens

da atividade comercial que aqui estudamos na cidade de Brejo do Cruz-PB,

principalmente devido à inexistência de referências bibliográficas sobre o assunto.

A execução deste trabalho deu-se justamente em um período quando a

grande maioria dos redeiros está de retorno a Brejo do Cruz-PB, permanecendo na

cidade geralmente até o final do carnaval. A realização das entrevistas deu-se num

período em que verificamos a saída de muitos redeiros que estavam na cidade

desde dezembro e o retorno de outros, embora em menor quantidade, que estavam,

na sua maioria, trabalhando em cidades litorâneas do sul do País. Sendo assim,

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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tivemos a oportunidade de entrevistar redeiros que mantêm viagens em períodos

diferentes do ano.

De início, precisamos enfatizar a dificuldade para encontrarmos alguns

redeiros proprietários, para que pudéssemos entrevistá-los. Em alguns casos, só

conseguimos encontrar o redeiro depois de muitas idas a sua casa, visto que alguns

estavam nos seus afazeres fora de casa. Outros, mesmo depois de encontrá-los,

pediam para que voltássemos outro dia, pois naquele momento não poderiam nos

receber. Aos poucos, fomos percebendo que alguns desses redeiros proprietários,

na verdade, não queriam ser entrevistados, por isso se mantinham resistentes.

Apesar de em alguns casos, depois de uma certa insistência, termos conseguido

fazer as entrevistas, em outros, acabamos desistindo. Se bem que, em nenhum

momento, qualquer redeiro proprietário se mostrou explicitamente contrário à

entrevista.

No que diz respeito às entrevistas realizadas com os redeiros vendedores,

as dificuldades enfrentadas foram maiores. Não conhecendo pessoalmente a grande

maioria dos redeiros vendedores, nem sabendo onde moravam, recorremos aos

redeiros proprietários, para que nos ajudassem a localizá-los. É prática corrente os

redeiros vendedores irem constantemente á casa de seus patrões, principalmente

no sábado, dia em que normalmente os redeiros recebem o “vale”2 da semana.

Assim, começamos a entrevistar os redeiros vendedores nas casas dos redeiros

proprietários. Isso nos fez incorrer num grave equívoco. Começamos a perceber que

o ambiente da casa dos redeiros proprietários não era o mais adequado, uma vez

que a presença do patrão inibia o redeiro vendedor a falar sobre as relações de

trabalho. Assim, começamos a perceber o quanto “o espaço pode interferir no

processo de entrevista” (MENEZES, 2002, p. 41). Dessa forma, tivemos que adotar

uma nova estratégia: entrevistar os redeiros vendedores em outros locais.

Começamos a entrevistar os redeiros vendedores na rua, ou nas suas próprias

casas. Como já frisamos, o espaço no qual se realiza a entrevista pode influenciar

na mesma, inclusive a própria residência do entrevistado.

Sobre a realização de entrevistas na residência dos entrevistados, Menezes

(2002) ressalta alguns problemas. Apesar de se pressupor que a residência seja um

local que possibilite um ambiente mais agradável para a entrevista, há que se

2 Adiantamento financeiro concedido pelo redeiro proprietário ao redeiro vendedor antes da viagem.

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considerar que “o entrevistado pode ser facilmente distraído pela rotina normal da

casa, especialmente o grande número de crianças gritando, chorando e correndo”

(MENEZES, 2002, p. 41-42). Em alguns casos, a entrevista foi interrompida pelo

filho do entrevistado pedindo algum coisa, pela própria movimentação de pessoas

entrando e saindo, em muitos casos, a procura do redeiro entrevistado, fato esse

que acabava interferindo na entrevista. Em outros casos, o elemento interferente foi

o barulho causado pela televisão, ou por um som ligado em alto volume. Uma

entrevista em particular foi prejudicada pelo som de um bar vizinho à casa onde

estávamos. Tudo isso, se por um lado, contribuiu negativamente com a pesquisa

visto que prejudica a concentração do entrevistado, por outro, oferece ao

pesquisador uma visão da realidade do seu cotidiano.

Outro problema no que diz respeito às entrevistas realizadas na casa do

entrevistado se refere ao fato de que “as relações de gênero na família interferem no

processo de entrevista” (MENEZES, 2002, p. 42). Apesar de a maioria das mulheres

dos entrevistados terem se mantido reservadas, não se manifestando em momento

algum, em certos casos, houve sim algumas interferências. Quando não

complementavam a resposta do marido, antecipavam-se naquelas perguntas em

que o redeiro se mantinha calado no início. Geralmente as respostas dadas pelas

mulheres eram seguidas pelos seus maridos. Isso nos mostrou o quanto as

mulheres dos redeiros conhecem, convivem e partilham da realidade de trabalho de

seus maridos, inclusive das dificuldades enfrentadas, sem falar que algumas

mulheres, ocasionalmente, viajam com seus maridos.

Na maioria das entrevistas, os redeiros se mostraram curiosos em saber o

real significado do estudo que estávamos fazendo. No que se refere às entrevistas

com os redeiros proprietários, percebi que a curiosidade sobre as razões e objetivos

do trabalho, ligava-se, em alguns casos, a um certo receio de que o mesmo pudesse

lhes prejudicar, principalmente no tocante às relações trabalhistas com os redeiros

vendedores.

A segunda parte do trabalho de campo diz respeito à viagem feita na

companhia de um grupo de redeiros a bordo de um carro de rede, momento em que

usamos como principal técnica de pesquisa a observação. A observação, seguida da

descrição, enquanto técnica de pesquisa, foi, pelo menos nos últimos anos, pouco

enfatizada pelos geógrafos no tocante à realização de seus trabalhos. Entretanto, de

maneira contraditória, percebemos que a referida técnica de pesquisa marcou a

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geografia desde seu início, pois assim como enfatiza Doralice Sátyro Maia (1997,

p.21), “a geografia, desde sua origem, ou melhor, tem o seu início nos relatos de

viagens e excursões”.

Assim, desde seu surgimento, a geografia esteve marcada por trabalhos que

se caracterizavam por relatos de viagens e extensas descrições etnográficas,

produzidas não só por autores alemães, como também por geógrafos clássicos

franceses, e, da mesma forma que na antropologia clássica, a descrição etnográfica

era realizada principalmente em obras que tratavam de “‘povos estranhos’,

‘civilizações primitivas’, enfim, do ‘exótico de terras longínquas’”. (MAIA, 1997, p.22).

Contudo, a descrição foi quase que completamente abolida do “receituário”

metodológico dos geógrafos a partir do “momento em que se interiorizou a

renovação do pensamento geográfico” (MAIA, 1997, p.27), quando houve um

rompimento com a chamada geografia tradicional. Nesse sentido, evitando falar do

empírico, os estudos na geografia se furtaram, conforme já exposto acima, à

discussão sobre o contexto de encontro com o objeto de pesquisa.

Dessa forma, resgatamos a tradicional metodologia geográfica, somada à

descrição etnográfica, como parte essencial da técnica de observação. Essa técnica

de pesquisa tem a observação como um elemento fundamental. Sobre a

observação, apoiamo-nos em Cardoso (1986 p.103): “Observar é contar, descrever

e situar os fatos únicos e os cotidianos, construindo cadeias de significação. Este

modo de observar supõe, como vimos, um investimento do observador na análise de

seu próprio modo de olhar”.

Linda Maria de Pontes Gondim (1999, p.10), ao enfatizar a emergência de

novos objetos de análise a partir da década de 1970, “que colocaram na ordem do

dia questões de ordem cultural, ligadas ao cotidiano dos sujeitos sociais”, destaca

que, diante das novas questões surgidas, “o trabalho de campo de caráter

etnográfico revelou-se o método mais adequado, dada a sua ênfase na convivência

intensa do pesquisador com as pessoas pesquisadas, como base para

estabelecerem relações de empatia e confiança” (p.10). Visto isso e de acordo com

os objetivos deste trabalho, entendemos que a observação pode ser de grande

validade.

Sendo assim, como pré-requisito para a observação, sendo essa, condição

fundamental para a descrição, a convivência entre o pesquisador e os pesquisados

é condição essencial nesta metodologia, pois “é nesse encontro entre pessoas que

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se estranham e que fazem um movimento de aproximação que se pode desvendar

sentidos ocultos e explicitar relações desconhecidas” (CARDOSO, 1986, p 103),

assim como desenvolver relações de empatia e amizade entre pesquisador e

pesquisados.

Por fim, destacamos que o fato de ser um pesquisador do sexo masculino

facilitou em muito a realização do trabalho de campo, isso se levarmos em

consideração que o mundo do comércio de redes é predominantemente masculino.

Segundo Menezes (2002, p.34), “as diferenças de gênero são importantes nas

interações sociais no trabalho de campo”. De acordo com essa autora, o fato de ser

mulher serviu como uma barreira nas interações com os migrantes paraibanos nos

alojamentos na zona da mata pernambucana. De forma análoga, Maia (2000), ao

pesquisar os vaqueiros das vaquejadas e os pequenos proprietários de animais na

feira de gado, também afirma as dificuldades encontradas e a necessidade de um

mediador para facilitar a conversa, ou seja, criar a confiança e o respeito

necessários para a entrevista.

2.2 A viagem em um carro de rede

O propósito deste subcapítulo é descrever de forma minuciosa a experiência

vivenciada em uma viagem em um carro de rede, na companhia de um grupo de

redeiros, buscando com isso, analisar o trajeto dos vendedores de redes, o cotidiano

desses trabalhadores, as interações sociais construídas pelos mesmos, assim como

entender melhor de que forma os redeiros se relacionam com seus espaços de

vivência. Sendo assim, decidi por acompanhar um grupo de redeiros dentro de um

carro de rede, ou seja, verificar in loco o deslocamento desses trabalhadores,

concretizando o seu itinerário (ver mapa 01), bem como observando as suas ações,

o seu modo de vida e também a execução deste trabalho tão peculiar.

Para melhor relatar essa experiência por mim vivida, elegi a linguagem

informal, de forma a expressar melhor as minhas observações, mas também os

meus sentimentos e apreensões.

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Mapa 01: Percurso da viagem de campo.

De início, vale registrar que a realização dessa viagem foi algo que até

então nunca havia imaginado. Apesar de ter sempre vivido em uma estrutura social

muito marcada pelo “ramo de rede”, estive boa parte desse tempo um tanto quanto

alheio ao funcionamento dessa atividade na cidade onde vivo e onde ora pesquiso, a

cidade de Brejo do Cruz-PB. Lembro-me, pouquíssimas vezes, de haver entrado

numa fábrica, imagine então entrar em um carro de rede!

O município de Brejo do Cruz, está localizado no sertão da Paraíba, mais

precisamente na microrregião de Catolé do Rocha (ver mapa 02), na zona

fisiográfica denominada “Alto Sertão Piranhas”, no noroeste do estado.

De acordo com o IBGE (2000) o município de Brejo do Cruz-PB possui uma

população de 11868 habitantes. Esta se encontra preponderantemente na zona

urbana, com 8062 habitantes, representando 67.9% do total da população. Já na

zona rural vivem 3806 pessoas, equivalendo a 32.1% de toda a população de Brejo

do Cruz-PB.

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Do ponto de vista das atividades econômicas do município, verificamos que

a atividade de produção de redes de dormir sobressai-se, principalmente por sua

função de gerar emprego e renda para parcela da população local. De acordo com

pesquisa por nós realizada no ano de 20043, verificamos a existência de 27

unidades fabris, empregando 232 pessoas diretamente, trabalhando principalmente

dentro das fábricas.

Mapa 02: Localização do município de Brejo do Cruz-PB.

Além disso, muitas outras pessoas trabalham no processo de acabamento

das redes, num serviço terceirizado. As pessoas que trabalham no acabamento, na

sua maioria mulheres, popularmente chamadas de “aprontadeiras”, trabalham na

grande maioria das vezes dentro de sua casa, juntamente com sua família.

Creio que fui muito influenciado por uma idéia que me foi repassada de que

a vida do vendedor de rede era muito sofrida e não muito rentável do ponto de vista

econômico. Era muito melhor estudar do que enveredar por esse tipo de trabalho

tão sofrido e pouco recompensador do ponto de vista financeiro.

Durante determinados períodos do ano, principalmente antes das festas de

São João ou do final do ano, ou mesmo de forma menos intensa, antes do período

3 DUTRA, L. V. A indústria têxtil em Brejo do Cruz-PB. Monografia de Graduação, UEPB, 2004.

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eleitoral, ouvia-se falar da chegada de carros de redes. A chegada de algum carro

de rede gerava certa expectativa para muitas pessoas, principalmente dos

familiares. Em boa parte das ocasiões a chegada de alguns carros de rede era

anunciada com fogos de artifício pelos próprios vendedores de redes que chegavam

festejando o seu regresso à terra natal e o fim de um período de trabalho. Apesar de

saber as razões de tais festejos, o interesse por eles só se deu quando o comércio

de redes e o trabalho dos redeiros tornaram-se tema e objeto de pesquisa.

Durante o desenvolvimento deste trabalho, a idéia de fazer uma viagem em

um carro de rede foi, com o tempo, amadurecendo. A partir de um certo momento,

comecei a perceber o quanto era necessário fazer essa viagem de campo, isso se

quisesse apreender de uma melhor forma a realidade estudada.

A viagem que pretendo aqui descrever foi arquitetada mediante a realização

de conversas com vários redeiros. Depois dessas conversas, feitas de um certo

modo informal, cheguei a uma primeira conclusão: parte considerável dos “redeiros”

com quem tinha conversado tinha como destino de suas viagens, o estado de Goiás.

Diante dessa constatação, decidi acompanhar um carro de rede que tivesse como

destino o referido estado.

Acabei por acertar a viagem no carro de um redeiro conhecido como

“Paizinho”, que conheci uns quinze dias antes de partir. Entre o primeiro contato com

“Paizinho” e a viagem, procurei estreitar o máximo possível as relações com o

referido redeiro, conhecê-lo melhor, bem como tentar obter algumas informações

preliminares de como seria a viagem. A princípio, “Paizinho” havia dito que iríamos

viajar a partir do dia 30 de julho de 2006, não sabendo precisamente a data da

partida.

Nos dias que antecederam a viagem, era evidente o nervosismo de

“Paizinho”, principalmente devido a sua árdua tarefa para reunir todos os

vendedores para poder viajar e dos vários compromissos financeiros que tinha que

resolver antes de partir. Percebi, através de conversas com redeiros, que de forma

geral existe uma certa dificuldade por parte dos proprietários de carro de rede em

reunir “seu” grupo de vendedores antes da viagem. Creio que isso se deve ao fato

de muitos vendedores quererem expandir seu período de “férias”, assim como

devido ao caráter forçado da viagem.

Antes da partida fiquei um pouco nervoso, principalmente diante da nova

experiência pela qual iria passar. Dois outros fatos acabaram por aumentar o meu

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nervosismo. Primeiro, no momento em que subi pela primeira vez dentro do “baú” 4

do caminhão chamado de “Mecedinha”4 (Figura 1) e percebi de fato as condições

nas quais cerca de 25 homens iriam viajar: Um local estreito, em torno de 12 metros

quadrados onde os redeiros vendedores teriam que viajar sentados e quase sem

nenhuma alternativa de movimento (Figura 2). O segundo fato que aumentou o meu

nervosismo veio do conselho que recebi de outro redeiro que estava no momento

Figura 01: Veículo “Mecedinha” no qual foi realizada a viagem de campo aqui descrita. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006

de nossa partida. Segundo ele, o veículo no qual iríamos viajar estava muito pesado,

carregando muita mercadoria. “Paizinho” iria me relatar depois que o caminhão

estava com mais ou menos 5.500 quilos, quando na realidade o ideal seria no

Figura 02: Grupo de redeiros no interior do caminhão, mostrando a situação

na qual viajam dentro do “baú”. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006. 4 Tipo de carroceria totalmente fechada. 5 Veículo Mercedes Benz 710.

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máximo 4.500 quilos. Diante disso, o redeiro me perguntou se eu não queria ir em

outro carro que estaria saindo na mesmo hora, evitando dessa forma o perigo que

seria viajar em um caminhão superlotado. Agradeci a oferta, mas diante de todo o

planejamento anterior e do compromisso já firmado, decidi dar continuidade ao

percurso. Depois de reunir todos os redeiros vendedores e de resolver algumas

questões pendentes, finalmente partimos no dia 2 de agosto de 2006 às 20:30

horas, da casa onde mora Paizinho, na Rua Francisco Leandro Vidal.

Assim que saímos da cidade, encontramos outros dois carros de rede, duas

D-20 Chevrollet, que nos esperavam em um posto de combustível na saída da

cidade (Figura 03). Paizinho já tinha combinado com esses dois redeiros no sentido

de sairmos em comboio pelo menos até o estado da Bahia.

Figura 03: Carros de rede que também partiram no momento da saída da “mecedinha”. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

Em função do grande atraso da saída e também como reflexo de um não

planejamento da viagem, acabamos por dormir na primeira noite na cidade de

Patos-PB, que dista de Brejo do Cruz-PB cerca de 150 Km. Quando falo de um não

planejamento da viagem me refiro ao fato de dormirmos em uma cidade

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relativamente próxima de Brejo do Cruz-PB, o que seria desnecessário. O ideal

seria termos adiado a viagem para a manhã seguinte, evitando a viagem à noite e

uma desconfortável dormida fora de casa. De forma geral, essa opinião foi

compartilhada pela maioria dos que viajavam.

Logo que chegamos ao posto de combustível na cidade de Patos, todos

trataram de pegar sua rede e arranjar algum lugar para armá-la (Figura 04). Eu com

minha total inexperiência, fiquei meio que “por fora” acabando por não encontrar

nenhum local onde pudesse armar uma rede. Enquanto alguns foram tomar banho,

eu e outros fomos lanchar no restaurante do posto. Depois do lanche procurei

arranjar um local para dormir. Sem alternativas, acabei por dormir dentro do “baú” do

caminhão entre alguns fardos de redes, numa posição muito desconfortável. Essa

foi, para mim, a pior de todas as noites da viagem que estava apenas começando.

Figura 04: Redes de dormir armadas no posto de combustível na cidade de Patos – PB, primeiro ponto de parada. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

No dia 3 de agosto, logo cedo, partimos em direção a Pernambuco seguindo

pelo município de Teixeira na Paraíba. Na verdade, o percurso mais utilizado pelos

redeiros quando de suas idas para Goiás é a BR 116, ainda no estado do Ceará.

Entretanto, no intuito de se esquivar da fiscalização de um posto da Policia

Rodoviária Federal na cidade de Milagres-CE, Paizinho resolveu viajar por um

trajeto até então pouco utilizado por ele e pelos demais donos de carros de rede.

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Ao chegarmos na cidade de Teixeira-PB, paramos para o café da manhã.

Até esse momento, viajávamos em comboio, no entanto, a partir desse local

perderíamos o contato com os dois outros carros, reencontrando-os novamente uns

5 dias depois, já no estado da Bahia.

Viajamos a manhã toda, até chegarmos por volta do meio dia na cidade de

Salgueiro-PE, onde almoçamos. Em Salgueiro seguimos pela BR 116 até um trevo

que dá acesso à cidade de Petrolina-PE, caminho normal da maioria dos redeiros.

No entanto, Paizinho preferiu seguir direto por uma estrada de mais ou menos 20

quilômetros em péssimas condições de tráfego. Por volta das 17:30 horas, no final

da tarde, chegamos a Ibó–BA, localizado às margens do rio São Francisco.

Esperamos uma hora até ultrapassarmos o rio em uma balsa, enquanto isso,

pudemos ficar apreciando o rio e suas paisagens, principalmente aquela propiciada

por um belo pôr do sol.

Assim que atravessamos o rio São Francisco, seguimos em direção à

cidade baiana de Euclides da Cunha. Foi um trajeto longo, talvez o maior trajeto de

toda a viagem, percorrido em uma estrada semideserta e sem fazermos nenhuma

parada.

O cansaço da viagem foi minimizado pelas conversas muito prazerosas que

tínhamos dentro da cabine do caminhão. Conversas que, muitas vezes,

extrapolavam o tema referente ao “ramo de rede”. É evidente que diante dos meus

objetivos na viagem, procurei sempre escutar mais as conversas. Durante boa parte

da viagem ouvi sobre a vida particular de alguns redeiros, como, por exemplo, sobre

as traições que esses sofriam por parte de suas mulheres. Percebi, logo de início,

que essas conversas servem como um elemento de descontração diante das

agruras pelas quais passam os que trabalham no ramo de rede.

Dentro da cabine, viajávamos eu, Paizinho e também um redeiro vendedor

chamado Alinho. Na verdade Alinho não trabalhava para Paizinho, mas sim para

outro redeiro proprietário, com o qual iria se encontrar na Bahia. Alinho tinha

conseguido essa condição, até certo ponto privilegiada, devido a seu estado de

saúde, pois, dias antes, o mesmo tinha sofrido um acidente de moto, o que lhe

provocou uma grande pancada no pé. Diante de suas dificuldades de locomoção, foi

lhe concedido o direito de viajar dentro da cabine.

Quero frisar que, em nenhum momento, houve qualquer tipo de

descontentamento de algum redeiro vendedor, pelo fato de eu viajar, conforme já

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disse, nessa condição um tanto privilegiada. Sempre fui muito respeitado por todos

eles. Ao final da minha estada no caminhão, tinha conseguido estabelecer fortes

laços de amizade com alguns deles, principalmente com Paizinho. Os que tinham

estabelecido comigo maiores contatos, me chamavam pelo nome, enquanto os

outros me chamavam de “professor”.

Chegamos a Euclides da Cunha-BA, por volta das 23 horas. Logo que

chegamos ao posto de combustível, a grande maioria dos vendedores tratou de

tomar banho, enquanto Paizinho cuidou de encomendar o jantar no restaurante do

posto. Ressalto aqui, o péssimo estado de limpeza do banheiro no qual tivemos que

tomar banho. Essa situação de sujeira iria persistir na grande maioria dos banheiros

que iríamos usar até o final da nossa viagem.

Após tomarmos banho e jantarmos, fomos dormir, já que o dia seguinte

seria de trabalho para os redeiros. Como de costume, cada um tratou de arrumar um

local para armar a sua rede. (Figura 05).

O posto de combustível no qual estávamos de certa forma oferecia uma

melhor condição de dormida, já que possuía muitas árvores no final do pátio, o que

facilitava a armação das redes. Logo percebemos que já se encontrava no posto um

grupo de redeiros que vinha em um carro de rede da cidade paraibana de Vista

Serrana (Figura 06). Esse fato revelou-me o que eu iria perceber durante toda a

viagem: em cada cidade do trajeto existe um “posto do redeiro”. É uma espécie de

ponto de apoio para esses trabalhadores, local onde eles interagem socialmente.

Percebi nos depoimentos de vários redeiros que é comum o encontro com outros

Figura 05: Redeiros dormindo no posto de combustível na cidade de Euclides da Cunha– BA. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

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Figura 06: Carro de rede proveniente da cidade de Vista Serrana – PB. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006. carros de rede por onde eles passam, sempre tendo algum posto de combustível

como ponto desses encontros, assim como para dormida e descanso.

É interessante ressaltar que muitos donos de carro de rede relataram que

existem muitos postos de combustíveis que não permitem a permanência de

redeiros. Isso se deve ao fato de em muitos locais os redeiros serem conhecidos

como “bangunceiros” e “baderneiros”. O problema, segundo alguns redeiros, é que

todos eles acabam pagando pelo que poucos fizeram. Esse fato serve como um

elemento seletivo dos postos de combustíveis nos quais os redeiros param. Tal

seleção não é feita unicamente pela decisão dos proprietários dos carros ou dos

redeiros, mas é preciso haver uma aceitação dos donos dos postos de combustíveis,

portanto, há uma relação preestabelecida.

Assim como na primeira noite de viagem, na segunda enfrentei situações

desconfortáveis no que se refere à dormida. Como todos os redeiros, consegui

armar uma rede entre duas árvores, podendo em seguida descansar um pouco, já

que a viagem tinha se estendido por demais e o dia tinha sido muito cansativo.

Eis que, após conseguir dormir um pouco, acordo por volta de 4 horas da

manhã sentindo um frio terrível e diante de alguns sinais de chuva. Um redeiro

vendedor que dormia ao meu lado disse: “é só um sereno da madrugada”. Enquanto

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muitos redeiros vendedores acordavam, eu torcia para que o redeiro que estava ao

meu lado estivesse certo e a chuva não aumentasse. Em pouco tempo percebi que

minhas expectativas não se concretizaram, pois a chuva aumentou

consideravelmente. Assim como todos os que dormiam debaixo daquelas árvores,

me levantei, desarmei minha rede e, às pressas, corri para dentro do restaurante do

posto. Depois disso, não se dormiu mais.

Logo que o dia amanheceu, ou seja, às 5 horas da manhã, Paizinho iniciou

os preparativos para o primeiro dia de trabalho. Na linguagem dos redeiros, Paizinho

ia “abrir o carro”, ou seja, iniciar os trabalhos de venda. Geralmente a maioria dos

carros de rede “abre” na Bahia. Mesmo tendo como destino, outras regiões do país,

os redeiros iniciam os trabalhos de venda no estado da Bahia, passagem obrigatória

para a maioria deles.

A primeira tarefa a ser realizada, no inicio dos trabalhos, consiste na retirada

e separação das diferentes mercadorias, assim como sua distribuição entre os

redeiros vendedores (Figuras 07 e 08).

Cada vendedor encarrega-se de selecionar as mercadorias que pretende

vender.

Figura 07: Momento da retirada das mercadorias de dentro do carro de rede. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

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Figura 08: Mercadorias separadas para serem comercializadas por um redeiro. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

Depois de arrumar o “mói” no seu carrinho (Figura 09), ou seja, o conjunto

de mercadorias selecionadas, o vendedor dirige-se ao dono do carro para a devida

anotação do que foi pego (Figura 10). Essa é a principal tarefa do dono do carro,

tarefa desgastante, mas muito necessária. Durante boa parte da viagem, prestei

uma espécie de assessoria a Paizinho no que se refere às anotações das

mercadorias que eram pegas no inicio do dia, e à prestação de contas ao final do dia

de trabalho.

Apesar dessa atividade envolver pessoas conhecidas como redeiros, e de ter

a rede de dormir como produto carro-chefe, ela envolve a venda de várias outras

mercadorias. Além da rede de dormir, os redeiros comercializam: mantas, panos de

prato, panos para cobrir sofá, chapéus, capas para celular, além da chamada

muamba6: carteiras e cintos. Essas últimas mercadorias não são produzidas na

cidade de Brejo do Cruz. São adquiridas, na sua grande maioria, na cidade de São

Paulo-SP.

6 Tipo de mercadoria que entra no país sem pagar imposto.

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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Figura 09: Redeiro arrumando seu “mói” no carrinho. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

Figura 10: Redeiro proprietário anotando as mercadorias selecionadas pelo redeiro vendedor. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

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A inserção desse tipo de mercadoria no comércio de redes, iniciou-se há

cerca de 3 anos7, devido à crise que se abateu sobre a comercialização da rede, ao

crescente aumento no preço da principal matéria-prima da rede: o fio. Os custos

adicionais com o fio foram, inevitavelmente, repassados ao preço final da rede de

dormir. Esse fato acabou por aumentar o preço final das mercadorias, provocando

uma diminuição nas vendas. Por conseguinte, muitos redeiros sentiram a

necessidade de encontrar alternativas de venda para manterem a atividade.

Depois de selecionadas as mercadorias e devidamente anotadas pelo dono

do carro, o redeiro vendedor sai pelas ruas para vender a mercadoria no seu

carrinho (Figura 11). Hoje em dia a grande maioria dos vendedores de redes,

trabalha com o auxílio de um carrinho, o que possibilita um aumento da quantidade e

variedade das mercadorias levadas por cada vendedor.

Figura 11: Redeiro vendedor saindo para o trabalho de venda nas ruas. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

Outra forma pela qual se processa o comércio de redes de dormir é aquela

realizada com a utilização de um veículo, como meio de locomoção pelas ruas. Essa

forma de venda, realizada pelos redeiros proprietários, é conhecida como “boca de

7 Coincide com o período de entrada no país de produtos de baixo custo provenientes, na sua maioria, de países asiáticos, e que alimenta o comércio informal.

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ferro”. Esse termo advém do fato dessa modalidade de venda ser feita com o auxílio

de um auto falante, para fazer a propaganda, enquanto se percorrem as ruas. Essa

modalidade de venda é feita, de forma geral, por aqueles redeiros que possuem um

veículo de menor porte, como por exemplo, uma caminhonete.

Essa era a primeira vez que Paizinho viajava com um veículo “mecedinha”.

Suas viagens anteriores se deram em uma caminhonete, e sempre havia trabalhado

com poucos vendedores, priorizando o modelo de venda na “boca de ferro”. Enfatizo

aqui que a venda na “boca de ferro” coexiste com o modelo de venda tradicional, ou

seja, aquele em que o vendedor se desloca a pé pelas ruas.

Tentando se adequar ao modelo de venda na “boca de ferro”, Paizinho

mandou fazer um carrinho muito maior do que os de uso habitual, podendo levar

dessa forma, mais mercadorias. Além disso, colocou um auto falante (boca de ferro)

no referido carrinho (Figura 12). Assim, ele conseguiu adaptar para um carrinho

ambulante o modelo de venda comumente usado em caminhonetes. Essa foi uma

novidade, não só para mim, mas para todos aqueles que viajavam no carro.

Figura 12: Carrinho com a “boca de ferro” (em Detalhe). Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

Enquanto os redeiros vendedores trabalhavam, passei o dia quase todo à

sombra de uns eucaliptos, conversando com Paizinho. Ficaram no posto mais dois

outros redeiros vendedores. Eles iriam de carona no carro ao encontro dos “carros

de rede” aos quais pertenciam.

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A partir das 16 horas, começaram a chegar os primeiros redeiros

vendedores. Paizinho, no intuito de agilizar os trabalhos, logo principiou a fazer as

prestações de contas daqueles que chegavam. Assim que cada vendedor acertava

as contas do dia, tratava de amarrar seu “mói” numa rede e colocá-lo dentro do

caminhão (Figura 13). Essa prática de enrolar o “mói” numa rede serve para facilitar

os trabalhos no dia seguinte com a melhor identificação de cada “mói” por seus

respectivos “donos”.

Após os trabalhos de prestação de contas, o banho e a refeição, às 18:30

partimos em direção a Capim Grosso-BA. Depois de, mais ou menos, 5 horas de

viagem, chegamos à referida cidade baiana.

Assim que paramos em Capim Grosso-BA, percebi que, como as duas

primeiras, a minha terceira dormida durante a viagem não seria nada confortável.

Infelizmente, minhas expectativas se confirmaram.

Figura 13: Redeiro vendedor arrumando seu “mói” em uma rede depois de um dia de trabalho.Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

O posto de combustível no qual nos alojamos, não oferecia boas condições

para a armação de redes, além de não ter qualquer tipo de cobertura sob a qual

pudéssemos nos alojar. Eu, depois da minha primeira experiência de dormida ao

relento, ou seja, ao ar livre, não estava tão apreensivo como na noite anterior. Assim

que desci do caminhão, peguei minha rede e arranjei um local para dormir. Segui a

sugestão de dois redeiros vendedores e armei minha rede entre a “mecedinha” na

qual viajávamos e um caminhão que estava estacionado no pátio do posto. Outros

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redeiros vendedores só conseguiram armar suas redes em locais um pouco distante

de onde eu dormia. Confesso que pensei, antes de armar a rede, em ir tentar

encontrar o dono do caminhão e lhe pedir permissão para que pudesse usar a

carroceria de seu caminhão como armador. Entretanto, naquela hora, já passava da

meia-noite, isso se tornava um pouco difícil. Apesar do receio de ser repreendido

pelo dono do caminhão, consegui dormir. Por sorte ou não, acordei às 6 horas, bem

antes do referido caminhoneiro acordar.

Nesse segundo dia de trabalho, os preparativos iniciais seriam bem mais

fáceis e ágeis, pois, como foi dito, cada vendedor já tinha o seu “mói” feito, cabendo

a cada um, se necessário, fazer um novo pedido, ou seja, pegar novas mercadorias.

Ao contrário do dia anterior, resolvi acompanhar o trabalho de um redeiro

vendedor pelas ruas. Procurei acompanhá-lo de uma certa distância, procurando

dessa forma, não interferir em seu trabalho (Figura 14). Durante o período em que

estive no encalço do redeiro vendedor, ele abordou algumas pessoas na rua, na

tentativa de vender alguma “peça”, porém, enquanto estive acompanhando-o, ele

não conseguiu vender nada.

Figura 14: Redeiro vendedor oferecendo as mercadorias a uma pessoa

na rua. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

Ao fim do dia, após todo o ritual de prestação de contas, partimos em

direção a Irêce-BA. Depois de percorrermos alguns quilômetros de estrada,

chegamos à cidade de Jacobina-BA. A pedido de alguns redeiros vendedores,

paramos em um posto de combustível para que alguns pudessem ir ao banheiro.

Enquanto eu, Paizinho e mais alguns redeiros vendedores estávamos no restaurante

do posto, percebemos a chegada de outro carro de rede da cidade de Brejo do Cruz-

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PB. Eles estavam parando para dormir. No momento em que alguns vendedores

armavam suas redes em algumas árvores (Figura 15), nos aproximamos para

conversar.

Figura 15: Carro de rede com o qual nos encontramos em um posto de combustível na cidade baiana de Jacobina. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

O dono desse carro chamava-se Nascimento, e assim como Paizinho vinha

“subindo” em direção a Goiás. No entanto, tinha vindo por um caminho diferente do

nosso, passando pela cidade de Petrolina, no estado do Pernambuco. Segundo

Nascimento, as vendas em Petrolina estavam boas, por isso, acabou trabalhando

nessa cidade durante uns sete dias. De acordo com o mesmo, havia encontrado

vários carros de rede nessa cidade pernambucana, que assim como ele estavam

“subindo”.

Depois de alguns minutos de conversa, nos despedimos e fomos embora.

Ao chegarmos no caminhão, ouvimos vários redeiros vendedores reclamarem da

demora de Paizinho. A maioria queria chegar o mais breve possível no próximo

destino, para que pudessem ter um mínimo de descanso, depois de um dia de

trabalho e de uma viagem cansativa.

Depois de viajarmos durante um certo período, Paizinho reclamou sentir

sono e cansaço, fato que o forçou a parar no próximo posto de combustível, situado

a uns 20 quilômetros da cidade de Irecê-BA. Assim como o posto no qual ficamos

em Capim Grosso-BA, esse não oferecia boas condições para a armação de redes.

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Assim que chegamos, Paizinho perguntou se eu não queria dormir na

cabine, junto com ele. Ele sempre dormia na cabine numa rede minúscula, armada

em dois armadores dispostos na transversal. Sobraria uma vaga nos bancos. Não

pensei duas vezes e aceitei a sua proposta. Enfim, apenas na quarta noite de

viagem, consegui dormir com um pouco mais de conforto.

No dia seguinte, 06 de agosto, acordamos bem cedo e logo partimos. A

principio, Paizinho tinha planejado trabalhar pelo menos um dia na cidade de Irecê-

BA. Entretanto, logo desistiu dessa idéia, pois vários carros de rede, que também

vinham “subindo”, já teriam passado na referida cidade. Esse fato, na sua visão,

complicaria suas vendas em Irecê-BA, pois a cidade já estaria “saturada” de rede,

devido à passagem dos outros carros.

Mesmo com a decisão tomada de não trabalhar nessa cidade, Paizinho

resolveu passar por ela no intuito de encontrar outro carro que estava indo na nossa

frente. A razão de querer encontrar esse carro de rede era que os dois redeiros

vendedores que vinham de carona, trabalhavam nesse referido carro, e iam, ao

encontro dele.

Após darmos “um giro” pela cidade e depois de passarmos por um posto de

combustível em Irecê-BA, não encontramos o carro de rede que procurávamos.

Assim sendo, seguimos a nossa viagem.

Em torno das nove horas da manhã, chegamos ao próximo destino, a

cidade de Xique Xique-BA. Logo que chegamos, todos os vendedores cuidaram de

arrumar seu carrinho e, partir para o trabalho (Figura 16). Dada a hora avançada,

era necessário agilizar os trabalhos para que pudessem aproveitar o máximo de

tempo possível no dia.

Assim como nas cidades de Euclides da Cunha e Jacobina, encontramos

em Xique Xique outro carro de rede. Seu dono chamava-se Dagmar e “seus”

redeiros já estavam trabalhando na cidade desde cedo. Mais uma vez, o encontro

com outro carro de rede deu-se em um posto de combustível.

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Figura 16: Redeiros arrumando seus carrinhos na cidade de Xique Xique – BA.

Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

Por volta do meio-dia, Dagmar resolveu não mais trabalhar em Xique Xique-

BA, e, resolveu partir em direção a outra cidade.

Ao fim do dia, após o processo de prestação de contas de todos os

vendedores, Paizinho decidiu permanecer pelo menos mais um dia naquela cidade,

devido às boas vendas. Aliás, aquele tinha sido o melhor dia em termos de vendas,

até então.

A dormida na cidade de Xique Xique deu-se sem muitas dificuldades. No

posto em que paramos, havia um enorme caminhão estacionado debaixo de uma

árvore, meio que abandonado. As grades de sua carroceria nos ajudaram bastante

na armação das redes, sem falar na árvore, que nos servia de guarida.

No dia seguinte, logo cedo, Paizinho encaminhou em um ônibus quatro

redeiros vendedores para a próxima cidade, Barra-BA. À noite nos encontraríamos

com eles. Percebi que essa atitude tinha o objetivo de fazer um diagnóstico

preliminar do nível de vendas na cidade em que se iria trabalhar no dia seguinte.

Depois de dois dias de trabalho em Xique Xique-BA, partimos em direção a

Barra-BA. Antes de lá chegarmos, atravessamos mais uma vez o rio São Francisco.

Iríamos nessa noite dormir em um posto de combustível situado a poucos

metros depois do rio. Entretanto, tivemos que ir até a cidade para buscar os redeiros

vendedores que lá estavam e de acordo com o que se tinha combinado, eles

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esperariam na rodoviária local. Feito isso, voltamos ao posto para passarmos a

noite.

Quando chegamos ao posto, percebemos a presença dos dois carros de

rede com os quais havíamos iniciado a viagem e, com eles, ainda no estado de

Pernambuco, tínhamos perdido o contato. Paramos o caminhão junto de várias

árvores, no intuito de facilitar a armação das redes (Figura 17). Pela segunda vez,

dormi na cabine do caminhão.

Figura 17: Redeiros armando suas redes em uma árvore num posto de combustível na cidade de Barra – BA. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

No dia seguinte, antes de irmos para a cidade de Barra, caminhei poucos

metros até as margens do rio São Francisco e pude desfrutar de uma bela paisagem

em pleno nascer do sol.

Depois de todos acordados, partimos para Barra-BA. Após poucos

quilômetros, chegamos à cidade, paramos o caminhão em uma praça central, local

mais adequado para os preparativos iniciais do trabalho (Figura 18).

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Figura 18: Inicio dos trabalhos na cidade de Barra – BA. Aqui, cada redeiro cuida de arrumar seu “mói” no seu carrinho. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

No final do dia, depois de contabilizar os ganhos, Paizinho chegou à

conclusão de que seria melhor termos ficado mais um pouco na cidade de Xique

Xique-BA onde se tinha vendido bem melhor. Ele lamentava dizendo que, quando as

vendas em uma cidade estão muito boas, não se vai embora. É melhor permanecer

na cidade até que o nível de vendas caia.

Apesar de Paizinho ter combinado com os vendedores de irem embora um

pouco mais cedo, devido ao longo percurso que teriam pela frente, até a cidade de

Barreiras-BA, não se conseguiu partir no horário planejado. Quando saímos da

cidade de Barra-BA, já era noite.

Seguimos por um trecho muito longo até a BR 242 que corta o estado da

Bahia no sentido leste-oeste, de Salvador até Luís Eduardo Magalhães, passando

por Barreiras-BA. Essa última cidade seria, a principio, nossa próxima parada.

Entretanto, quando chegamos no entroncamento de acesso à cidade de Barreiras,

Paizinho, depois de consultar todos os redeiros vendedores, resolveu mudar seu

percurso. Decidiu seguir no sentido oposto da cidade de Barreiras-BA e ir trabalhar

na cidade de Ibotirama-BA. Percebi que sua decisão deu-se pela impressão de que

já teria muitos carros de rede na cidade de Barreiras, fato, que prejudicaria suas

vendas naquela cidade. Assim sendo, partimos em direção a Ibotirama-BA, distante

uns 18 quilômetros de onde estávamos.

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Pela terceira vez na viagem atravessamos o rio São Francisco, mas ao

contrário das duas primeiras, essa travessia realizou-se sobre uma ponte.

Logo que chegamos em um posto de combustível, tratamos de tomar banho

para depois jantarmos. Ressalto que, pela primeira vez em toda a viagem,

chegamos a um posto que possuía banheiros com um mínimo de higiene e limpeza,

o que foi, infelizmente, durante toda a viagem, uma verdadeira exceção, diante das

condições precárias dos banheiros dos postos por onde passamos.

Depois de tomarmos banho e jantarmos, fomos dormir. Mais uma vez, os

redeiros vendedores utilizaram o próprio caminhão no qual viajávamos e algumas

árvores que existiam no pátio do posto para armar suas redes. Pela terceira vez,

dormi na cabine do caminhão.

No outro dia acordamos bem cedo, e logo os redeiros vendedores se

prepararam para enfrentar o sexto dia de trabalho desde o início da viagem. Pela

sexta vez cada redeiro vendedor tratou de arrumar seu “mói” em seu carrinho, e em

seguida, seguir para o trabalho na rua. Diga-se de passagem, que a maioria dos

redeiros vendedores saía para o trabalho com apenas o dinheiro do lanche matinal.

Muitas vezes esse dinheiro, em torno de dois reais, era fornecido por Paizinho, que

em seguida, tratava de anotar no caderno de débitos. Em muitos casos, o almoço do

redeiro vendedor ficava sujeito a suas vendas. Em um desses dias de viagem

escutei um relato de um redeiro vendedor dizendo que só conseguiu almoçar às

quatro horas da tarde, logo após vender a primeira “peça” no dia.

Esse relato mostra a realidade da viagem, pelo menos até quando estive na

companhia do grupo de redeiros: o baixo nível de vendas. A grande maioria dos

redeiros vendedores, só tinha conseguido arrecadar o necessário para sua

manutenção, enquanto outros, nem isso. Muitos redeiros vendedores se mostravam

insatisfeitos com Paizinho por ele ainda estar no estado da Bahia, pois, segundo

eles, a Bahia não era um bom estado para vendas. Muitos preferiam que chegassem

logo ao estado do Goiás, considerado bom para se vender.

No decorrer do dia, fui percebendo o quanto Paizinho se decepcionara com

aquela cidade. Isso porque não recebíamos boas notícias de vendas dos

vendedores que encontrávamos na rua. No fim do dia, logo após o processo

corriqueiro de prestação de contas, Paizinho percebeu de fato o quanto errou em ter

mudado de idéia, e ter vindo para Ibotirama-BA, em vez de ir para Barreiras-BA.

Mais uma vez, justificou relatando o fato de terem passado carros de rede nos dias

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que precederam a nossa estada na Cidade de Ibotirama-BA. O dia de trabalho

nessa cidade foi sem dúvida, um dos piores dias de vendas até então.

À noite, mais uma vez, partimos para uma nova cidade. O próximo destino,

agora sim, seria Barreiras-BA. Nessa cidade, ficamos em um posto de combustível

que se localizava na entrada da cidade (Figura 19).

Figura 19: Posto de combustível na cidade de Barreiras – BA onde o grupo de redeiros que acompanhamos se alojou. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

Logo que chegamos no posto, percebemos a presença do carro de rede de

Nascimento, o mesmo que tínhamos visto em um posto de combustível na cidade de

Jacobina-BA, alguns dias antes. O posto estava cheio de caminhões parados,

provocando uma certa dificuldade em se estacionar. Paizinho estacionou o

caminhão em um local que não oferecia condições para a armação das redes dos

vendedores. No intuito de encontrar um local para dormir, os redeiros vendedores

saíram em busca na área do posto. A opção mais fácil era armar as redes entre dois

caminhões estacionados. Dormi pela quarta vez na cabine do caminhão, sem

imaginar que aquela seria a última vez.

No dia seguinte, logo cedo, pude presenciar os preparativos de trabalho dos

redeiros vendedores que trabalhavam com Nascimento. De modo geral, não percebi

nenhuma grande diferença na forma de trabalho. Da mesma maneira que os

redeiros vendedores de Paizinho, os de Nascimento também arrumavam seu “mói”

de mercadorias enroladas em uma rede. Percebi isso, logo quando cheguei no carro

de Nascimento, momento no qual alguns redeiros vendedores retiravam os “mói” de

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dentro do caminhão (Figura 20). Assim que recebia seu “mói”, cada vendedor se

ocupava de arrumar as mercadorias no carrinho.

Figura 20: Momento no qual alguns redeiros vendedores retiram as mercadorias de dentro do carro de rede. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

Depois de arrumarem seus carrinhos, todos os corretores de Paizinho e de

Nascimento saíram para o trabalho na rua.

É necessário nesse momento, fazer alguns esclarecimentos, antes de

começar a relatar aquilo que eu chamaria de segunda parte dessa viagem de

campo.

Antes de iniciar essa empreitada, eu tinha a pretensão de ficar o maior

tempo possível na companhia de Paizinho e seus redeiros vendedores. Tinha a

intenção de viajar com eles até o estado de Goiás, principal destino do referido

redeiro. No entanto, em virtude de alguns contratempos, isso não foi possível, tendo

que deixar aquele caminhão na sexta-feira, dia dez de agosto, depois de oito dias de

viagem. O principal motivo que me fez mudar de transporte e também de grupo está

relacionado à falta de tempo. O período que eu tinha disponibilizado para essa

viagem, estava se esgotando, e eu precisava agilizar a nova etapa do trabalho de

campo, conforme já planejado previamente.

Como já foi dito anteriormente, verifiquei através de um levantamento prévio

junto aos donos de carro de rede, que um dos principais destinos dos redeiros era o

estado de Goiás. Além disso, o principal destino para muitos dos que iam para o

Goiás seria a capital do estado, a cidade de Goiânia. Sabia também da existência de

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uma enorme quantidade de redeiros morando na cidade de Goiânia, mais

precisamente na cidade de Aparecida de Goiânia (Ver mapa 03), na região

metropolitana da capital. Quase todos os redeiros com quem conversei, se referiam

ao local onde moravam vários redeiros de Brejo do Cruz-PB, como Goiânia.

Aparecida de Goiânia está localizada a 25 quilômetros do centro da capital do

estado de Goiás.

Mapa 03: Localização do município de Aparecida de Goiânia-GO.

A grande maioria dos que moram em Aparecida de Goiânia reside em um

mesmo bairro, chamado Jardim dos Buritis. Esse bairro acabou por ser conhecido

como o bairro onde moram os redeiros, pois além de ser a moradia de vários

redeiros e suas respectivas famílias, é um ponto de apoio dos muitos que por ali

passam.

Esse fato acabou despertando minha atenção e fazendo com que eu

elegesse o bairro dos redeiros em Aparecida de Goiânia para dar continuidade a

minha pesquisa, principalmente por se referir a uma realidade diferente vivida pelos

redeiros. Assim, desloquei-me até Aparecida para poder estudar in locco aquilo que

antes sabia por meio de relatos.

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Diante dos fatos expostos acima, deixei o caminhão de Paizinho já na

cidade de Barreiras-BA. Logo no início do dia que passamos nessa cidade, comecei

a estudar a melhor alternativa de ida até Aparecida de Goiânia-GO. A princípio, eu

pretendia prosseguir no mesmo caminhão até a próxima cidade, Luiz Eduardo

Magalhães-BA. Lá, provavelmente, eu conseguiria uma passagem mais barata até

Goiânia. No entanto, um fato novo iria mudar meus planos.

Durante o contato que mantive com Nascimento e seus redeiros vendedores

no início do dia, fiquei sabendo que esse redeiro proprietário estava à espera de

uma entrega de mercadorias vindas de Brejo do Cruz-PB. Nascimento me disse que

já tinha combinado por telefone que ficaria em Barreiras-BA, à espera do caminhão

que trazia as mercadorias, e que muito provavelmente o caminhão prosseguiria para

Goiânia. Haveria uma possibilidade de carona para mim no caminhão, desde que

houvesse uma vaga disponível na cabine.

Com essa informação, passei a pensar se valeria a pena esperar esse

caminhão ou não, sabendo do risco de não haver possibilidade de carona. Depois

de passar o dia inteiro pensando, tomei a decisão momentos antes da partida de

Paizinho de seus redeiros vendedores. Decidi ficar com Nascimento e seus redeiros

vendedores e esperar o caminhão de mercadorias vindo de Brejo do Cruz-PB.

Confesso que essa decisão foi um pouco difícil, não só pela

imprevisibilidade da carona, mas também pelo fato de já estar acostumado ao

convívio com o grupo anterior.

Nesta noite fiquei por um bom tempo conversando com alguns redeiros

vendedores que trabalhavam com Nascimento até o momento de irmos dormir.

Acordamos no outro dia bem cedo, por volta das 05:30 da manhã, ao som

da buzina do caminhão que trazia a entrega para Nascimento. Levantei-me da rede

onde dormia, ansioso por saber da possibilidade de carona até Goiânia. Quando

perguntei ao motorista sobre a carona, ele me respondeu aquilo que eu não queria

escutar: não tinha como eu ir com ele, pois já trazia duas pessoas na cabine. Assim,

não tive outra alternativa senão pegar um ônibus até Goiânia.

Nascimento resolveu ir até outro posto de gasolina que se localizava no

outro extremo da cidade para que se descarregasse a mercadoria do caminhão que

acabara de chegar. Nesse posto havia um espaço maior para a realização deste

serviço. Ao saber que o referido posto se localizava em frente à rodoviária, tratei de

pegar uma carona no caminhão de Nascimento. Neste posto presenciei o

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descarregamento de algumas mercadorias, como redes e mantas, depois, despedi-

me de todos que ali estavam e fui para a rodoviária, no intuito de pegar o próximo

ônibus para Goiânia.

Cheguei na rodoviária por volta das 07:00h da manhã. Depois de verificar

preços e horários em várias empresas, deparei-me com o fato de que o próximo

ônibus para Goiânia só sairia às 18:30h. Sem outra alternativa, tive que esperar o

dia inteiro na rodoviária até o horário de saída do ônibus.

Depois de muita espera, parti para Goiânia em um ônibus da empresa Novo

Horizonte no horário já referido. Após pouco mais de quatorze horas de viagem,

cheguei à capital do estado de Goiás.

Antes de iniciar essa viagem, tive o cuidado de obter as informações

necessárias de como eu chegaria ao “bairro dos redeiros”, depois que já estivesse

em Goiânia. Graças a isso, não tive a menor dificuldade para chegar ao referido

local.

Após descer na Praça do Bíblia, peguei um ônibus com destino à Aparecida

de Goiânia em um terminal rodoviário localizado bem próximo da praça mencionada.

Foi-me passada a informação de que eu teria que ficar na parada mais

próxima de um posto de combustível chamado Santo Antônio, sendo esse, o

principal ponto de referência do “bairro dos redeiros”. Na verdade, além de ser ponto

de referência para o “bairro dos redeiros”, o posto Santo Antonio está intimamente

ligado ao processo de fixação de vendedores de redes naquela área. Inicialmente,

os redeiros utilizavam o posto Santo Antonio como ponto de parada e apoio, da

forma como os redeiros que vivem em constante mobilidade fazem normalmente,

conforme já exposto anteriormente. Acontece que a partir de um certo momento, a

direção do posto passou a não mais aceitar os redeiros. Esse fato fez com que

alguns redeiros começassem a se fixar nos arredores do posto. Nesse sentido, a

origem do processo de fixação de redeiros no bairro jardim dos Buritis em Aparecida

de Goiânia, remete, necessariamente, ao processo de fixação de redeiros no posto

Santo Antonio.

Um fato interessante a ser destacado é que, durante o trajeto de ônibus até

o posto Santo Antonio, conversei com um senhor que também vinha no ônibus.

Durante a conversa, expus o motivo que me fazia estar ali naquele momento, ao

mesmo tempo que perguntei se estávamos muito longe do meu destino. Durante a

conversa, fomos interrompidos por um senhor que dizia conhecer o local de morada

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dos redeiros e que ia descer justamente na parada mais próxima do local. Quando

descemos do ônibus, o referido informante indicou-me o caminho por onde eu

poderia seguir até o local de morada dos redeiros. Diante de tanta informação,

consegui chegar ao meu destino sem muitos problemas.

Assim que cheguei ao bairro (Figura 21), logo fui visto por um redeiro

proprietário chamado Albertino, com o qual já tinha mantido contato antes da viagem

e que me convidou para ir até sua casa. Ele já sabia dos motivos de minha vinda,

pois eu já lhe tinha informado quando estávamos em Brejo do Cruz-PB. Sabendo de

minha intenção de estudar a vida dos redeiros naquele local, Albertino tratou de

apresentar-me aos redeiros que ali moravam, levando-me até suas casas.

Depois de conhecer algumas casas de redeiros, todos eles provenientes

de Brejo do Cruz-PB, conheci a “casa-restaurante” de “Zé Má” (Figura 22), uma

espécie de ponto de encontro de todos eles. Ao chegar nesse local, tive a impressão

de haver uma espécie de comemoração devido a minha chegada. Iniciaram um

churrasco, começaram a beber e a bater papo em volta de uma mesa, enquanto

Figura 21: Rua do Bairro Jardim dos Buritis onde residem

muitos redeiros. È inclusive nessa rua que se localiza o bar/restaurante de “Zé Má”. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

alguns jogavam baralho. Nessas conversas, alguns redeiros me disseram que esse

tipo de reunião festiva entre eles acontecia periodicamente. Eles constantemente se

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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reúnem no restaurante de “Zé Má” para almoçar, conversar, beber ao som de forró.

Nesse sentido, o restaurante de “Zé Má” pode ser considerado o principal ponto de

encontro entre os redeiros que moram em Aparecida de Goiânia.

“Zé Má”, na verdade, não trabalhava vendendo rede, ele foi para lá com o

objetivo de cozinhar para alguns redeiros que ali moravam. E, como era de se

esperar, o restaurante de “Zé Má” é especializado em comidas nordestinas.

Figura 22: Bar/Restaurante do “Zé Má”. É nesse local onde os redeiros mais se encontram e se divertem. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

Através de um levantamento preliminar, percebi a existência de pouco mais

de vinte casas onde moravam redeiros provenientes de Brejo do Cruz-PB. No

tocante ao total de pessoas, não tive como obter um número preciso, mas levando

em consideração as informações que recebi, posso dizer que pelo menos 120

pessoas, entre homens, mulheres e crianças, ou seja os redeiros e suas famílias

provenientes de Brejo do Cruz moram no Bairro Jardim dos Buritis.

Muitos dos redeiros que moram em Aparecida são “moeiros”, ou seja, não

possuem carro de rede, mas trabalham por conta própria, principalmente na cidade

de Goiânia. Alguns donos de carro de rede mantêm casas com vários redeiros

vendedores, trabalhando um período em Goiânia e outro no interior do estado do

Goiás. Muitos não se encontravam em Aparecida no período de minha estada, pois,

assim como muitos diziam, eles estavam “dando um balão”, ou seja, estavam

durante um certo período no interior do estado de Goiás, trabalhando.

Outros donos de carro de rede trabalham em Goiânia durante a maior parte

do ano, partindo em dezembro para as praias do sul do país, principalmente para o

estado de Santa Catarina, aproveitando desta forma, o período de veraneio.

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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Muitas vezes, o “bairro dos redeiros” acaba sendo muito mais um ponto de

apoio ou ponto de recebimento de mercadorias para aqueles redeiros que vivem se

deslocando de cidade em cidade do que precisamente um local de moradia desses

trabalhadores.

Durante o segundo dia no “bairro dos redeiros” presenciei a chegada de um

caminhão de mercadorias proveniente de Brejo do Cruz/PB (Figuras 23 e 24). As

mercadorias a serem comercializadas são guardadas dentro das próprias casas

onde moram os redeiros (Figura 25).

Figura 23: Descarregamento de mercadorias vindas de Brejo do Cruz-PB em um caminhão. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006

Figura 24: Descarregamento de mercadorias vindas de Brejo do Cruz-PB em um caminhão. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

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Figura 25: Mercadorias guardadas dentro da casa de um redeiro. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006

Foi o mesmo caminhão que havia encontrado dois dias antes na cidade de

Barreiras na Bahia. Além de transportar mercadorias para alguns redeiros, esse

caminhão trazia comidas da região a pedido de muitos redeiros, inclusive “Zé Má”, o

ponsável pelo restaurante anteriormente citado.

Depois de passar pouco mais de um dia no “bairro dos redeiros” tive que

retornar a Brejo do Cruz-PB, no domingo, dia 13 de agosto. Expresso aqui a forma

cordial e gentil com que a grande maioria dos redeiros e seus familiares me

receberam no bairro. Tenho certeza de que isso contribuiu em muito para o bom

andamento do trabalho de campo.

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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CAPÍTULO 2: A REDE DE DORMIR E O TRABALHO DOS REDEIROS

2.1 A rede de dormir no Brasil: pequeno resgate histórico

A origem da rede de dormir no Brasil antecede à ocupação portuguesa,

sendo já amplamente utilizada entre os povos indígenas antes do processo de

colonização. Segundo Luís da Câmara Cascudo (2003), a carta de Pero Vaz de

Caminha para o rei de Portugal, quando de sua chegada ao Brasil, datada em 27 de

Abril de 1500, já faz referência à rede utilizada pelos indígenas. Caminha descreve a

nova terra então descoberta e também os usos e os costumes da gente que aí vivia.

Assim, faz referência a um objeto utilizado pelos indígenas para dormir. De acordo

com Cascudo (2003, p.22), a referida carta “é o primeiro registro em língua

portuguesa da rede de dormir: uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam”.

A atribuição do nome “rede” deu-se “pela semelhança das malhas com a

rede de pescar” (CASCUDO, 2003, p.22). Na verdade, a rede então “descoberta”

pelos portugueses era algo tosco, “formado por fios torcidos de algodão com

algumas travessas que serviam de reforço e coesão, lembrando visivelmente uma

rede de pescaria” (ROCHA, 1983, p.33).

Percebemos que foi rápida a incorporação da rede de dormir pelos

portugueses, pois no que diz respeito ao seu uso, “pouco mais de meio século

depois do descobrimento era popular o uso pelo lavrador e pelo missionário da

companhia de Jesus”, assim como, “depois da farinha de mandioca a rede foi o

primeiro elemento de adaptação, de acomodação, de conquista do português”

(CASCUDO, 2003, p.24).

Muito depressa também foi a influência portuguesa na produção artesanal

de redes-de-dormir, pois a rede tosca, produzida até então pelos indígenas, foi

pouco a pouco sendo modificada pela habilidade da mulher portuguesa. Essa

incorporou novas técnicas de confecção, utilizando os teares, passando a tecer a

rede de forma muito mais ampla e compacta. Assim, houve um aperfeiçoamento da

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rede de dormir, “ampliando-a, enfeitando-a, dando-lhe as franjas, varandas,

tornando-a mais macia, confortável, ornamental” (CASCUDO, 2003, p.25).

A rede de dormir passou, com o tempo, a ser utilizada não apenas para

dormir, mas também como meio de transporte, principalmente para as classes mais

abastadas. Servia para transportar doentes, feridos, além de mortos, quando estes

eram sepultados. Sobre a variedade de utilidades da rede, tomemos uma passagem

em que Gilberto Freyre (2004) comenta sobre as múltiplas funções da rede na vida

do senhor de engenho na época colonial: Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de

engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor

descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, como o senhor em

viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, como

o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o

escravocrata para dar suas ordens aos negros; mandar escrever suas

cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com algum parente ou

compadre. De rede viajavam quase todos – sem ânimo para montar a

cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher.

Depois do almoço ou do jantar, era na rede que eles faziam longamente o

quilo [...] (FREYRE, 2004, p.518).

Apesar da rede de dormir encontrar-se durante muito tempo disseminada

pelo território brasileiro, verifica-se que a partir de um certo momento, o uso da rede

passa a predominar nos estados das regiões Norte e Nordeste. A respeito disso,

Cascudo (2003, p. 36) aponta algumas razões. Com o lento enfraquecimento do artesanato doméstico as redes

diminuíram, enquanto a facilidade do fabrico de leitos e de camas-de-vento

crescia com o aumento de carpinteiros atraídos pelo desenvolvimento das

vilas que gravitavam ao derredor das cidades grandes, Rio de Janeiro e

São Paulo. A influência das modas de França, depois de 1830, vulgarizava

os leitos e era fácil o reproche de ainda manter-se uma tradição indígena,

uso de ‘bárbaros’ em pleno regime de ‘civilização’.

Além desses fatores, ressaltamos que o não desenvolvimento do hábito do

uso da rede no sul do país se deve, em grande parte, ao clima mais frio dessa

região. Segundo Cascudo (2003, p. 33), “para as raias de Santa Catarina, Paraná e

Rio Grande do Sul, o clima não favorecia o embalo e sim a dormida fixa”.

A produção artesanal de redes de dormir tornou-se uma tarefa que utilizava

mão-de-obra basicamente feminina e essencialmente doméstica, realizando-se nas

fazendas e nas unidades familiares, na grande maioria somente para uso, tendo

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dessa forma, o objetivo quase que exclusivo de prover a demanda das populações

locais por esse artigo. Sobre isso, Cascudo (2003, p. 25-26) destaca que “quem

viveu no sertão do nordeste até 1910 sabe perfeitamente que rara seria a fazenda

onde a rede fosse objeto de compra. Era uma indústria doméstica e tradicional”.

Como era uma atividade tipicamente feminina, destacavam-se as “redeiras”,

mulheres que cuidavam da produção, destinada preponderantemente, conforme já

dito, ao consumo doméstico. A rede-de-dormir era um dos inúmeros artigos

produzidos nas fazendas do interior do Nordeste, onde se realizava todo o processo

produtivo utilizando as várias matérias-primas locais, como o algodão, couro, fibras

vegetais, madeira, cipós, etc.

Assim, a rede de dormir tornou-se um artigo de uso comum no Nordeste e

Norte brasileiro, não somente das classes populares, mas da população em geral,

como também permaneceu sendo de uso dos povos indígenas.

2.2 Origens do comércio de redes em Brejo do Cruz-PB.

A partir do exposto no tópico precedente, tencionamos discutir sobre as

origens do processo de comercialização de redes de dormir na cidade de Brejo do

Cruz-PB, nosso objeto de análise. Nesse sentido, achamos oportuno, de início,

resgatarmos a origem da produção e comercialização de redes de dormir na região

de Brejo do Cruz-PB, mais precisamente no município de São Bento-PB (Ver mapa

04), visto que é justamente nesse município onde a referida atividade comercial tem

início na microrregião de Catolé do Rocha-PB.

Em trabalho sobre a evolução histórica da produção e comercialização de

redes de dormir no município de São Bento-PB, Rocha (1983) estuda a referida

atividade a partir das primeiras décadas do século XX. Segundo esse autor, em seu

início, a atividade produtiva de redes-de-dormir em São Bento-PB não se

diferenciava muito de todo o processo produtivo existente no restante do país, ou

seja, era uma atividade doméstica e feminina, assim como já exposto anteriormente

com base em Cascudo (2003).

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Mapa 04: Localização do município de São Bento-PB.

Sendo assim, a produção de redes em São Bento-PB nas primeiras

décadas do século XX, possuía, em linhas gerais, as mesmas características da

atividade praticada em várias outras regiões do país, principalmente no Nordeste, ou

seja, era uma atividade doméstica e realizada por mulheres, sendo exercida em

“teares de três panos”.8 Apesar do caráter de produção como valor de uso, “havia,

por outro lado, um pequeno comércio excedente nas feiras periódicas” (ROCHA,

1983, p.40).

Entretanto, a partir da década de 1930, a produção artesanal da rede de

dormir passou por grandes transformações. A primeira deu-se com a introdução do

fio industrializado. A utilização desse fio, que era adquirido em cidades como

Campina Grande-PB, Natal-RN, Fortaleza-CE e João Pessoa-PB, proporcionou um

aumento significativo na produção desse artigo, pois, a partir desse momento, o

trabalho destinado ao processo de fiação manual, existente até então, deixou de ser

necessário. Nesse sentido, o tempo de trabalho antes destinado ao processo de

8 Esse primitivo tear, recebeu esse nome, devido a sua pequena largura, que permitia tecer um pano com no máximo 60 cm. Devido ao fato de a rede necessitar de pelo menos 1, 50m de largura, era necessário 3 panos do antigo tear, que eram emendados e assim formavam uma rede.

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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fiação manual passou a ser utilizado em outras atividades dentro do processo

produtivo das redes, proporcionando dessa forma, um aumento na produção.

Outra grande transformação ocorreu devido à introdução do chamado “tear

batelão”, um tear maior, mais largo e que possibilitava a tecelagem do pano na

largura apropriada para uma rede-de-dormir. Segundo Rocha (1983), parece haver

uma relação entre a introdução do “tear batelão” e a inserção da mão-de-obra

masculina no processo de produção de redes de dormir. Pois sendo o “tear batelão”

um tear maior, mais pesado, exige um maior esforço físico para a sua operação, o

que favoreceu a inserção do homem no processo de tecelagem da rede. Com isso, a

mão de obra feminina foi passando cada vez mais às atividades de acabamento das

redes: A força de trabalho feminina permaneceu encarregada das tarefas mais

diretamente ligadas à reprodução - cuidado dos filhos, reparação das

roupas, transformação dos alimentos, conservação da casa, etc; também,

como já foi dito, ficou com o acabamento das redes (ROCHA, 1983:41)

Todas essas transformações no processo produtivo de redes de dormir no

município de São Bento-PB, fruto de modificações técnicas, influenciaram no

processo de comercialização desse produto. Se antes a comercialização se dava no

âmbito local, principalmente nas feiras periódicas, ocorre agora em uma escala mais

ampla, devido ao aumento da produção. A esse respeito, Rocha (1883, p.43)

ressalta que

A ampliação do excedente já havia forçado a transformação das formas de

comercialização; no início da década de 50 começaram as viagens para

alguns estados do norte para a venda de redes, e a área de

comercialização já se havia alargado, penetrando no Rio Grande do Norte,

Ceará e passando a incluir uma área maior do próprio estado da Paraíba.

Percebemos que a necessidade de ampliar a circulação da mercadoria, pois

já não se tratava de um objeto de uso doméstico, mas sim de uma mercadoria, faz

com que não só os produtos se transladem, mas também os homens passam a se

deslocar da cidade, lugar da produção para outros núcleos onde possam realizar a

venda, em outras palavras, precisavam realizar o capital. Assim, podemos afirmar

que o início do deslocamento das pessoas da cidade de São Bento-PB em veículos

para comercializar redes em outras regiões do país remonta à década de 1950.

A princípio, a venda era feita, na sua maior parte, em grosso, ou seja, em

grandes quantidades, principalmente a proprietários de lojas ou depósitos de redes.

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Somente na década de 1960, através do senhor Manoel Lúcio, proprietário da

primeira manufatura de rede inaugurada em São Bento-PB em 1958, inicia-se o tipo

de comercialização que, segundo Rocha (1983, p.47) “iria se vulgarizar depois”.

Essa então nova forma de comercialização, e que pouco a pouco passou a

predominar, foi aquela caracterizada pela Venda direta, a varejo, efetuada com o uso de veículos das próprias

fábricas ou de autônomos da própria cidade ou de cidades próximas (como

Brejo do Cruz e Patos), que saem como ambulantes, oferecendo o produto

em feiras, fazendas, postos de gasolina, reservas indígenas .(ROCHA,

1983, p.115).

Ainda de acordo com o autor supracitado, o comércio era feito

principalmente em veículos conhecidos localmente por “mecedinhas”9. Esses

veículos sofriam “alguma adaptação para alojar não só a carga de redes, como

também os chamados “corretores” (ROCHA, 1983, p.115). Esse tipo de

comercialização era responsável pela venda de 60% de toda a produção de redes

de São Bento-PB, nos fins da década de 1970, época em que Rocha realiza seu

trabalho.

Ainda sobre a comercialização das redes de dormir fabricadas em São

Bento-PB, Egler (1984) assinala a existência nessa cidade daquilo que ele denomina

de “viajantes” sendo sua função, “levar os produtos a grandes distâncias (Maranhão,

Pará, Acre, Goiás, Mato Grosso, um caso extremo como foi contado por um

entrevistado até a Bolívia) onde se encarrega da comercialização”. De acordo com

esse mesmo autor, o “viajante” “é em si um resultado da produção em maior escala”

(EGLER, 1984).

O tipo de comercialização descrito por Rocha (1983) e por Egler (1984), que

parece ser predominante ainda hoje em São Bento-PB, foi aos poucos sendo

reproduzido por pessoas de Brejo do Cruz-PB, devido ao sucesso alcançado em

termos de venda pelos vendedores de São Bento-PB.

A primeira viagem de um vendedor de redes da cidade de Brejo do Cruz-PB

num carro de rede, data de 1968, realizada pelo senhor Ivandi Melquíades de

Sousa, até então comerciante de cereais na cidade. Ressaltamos que as primeiras

viagens realizadas pelo referido comerciante aconteceram antes mesmo de ser

instalada a primeira fábrica de redes no município, fato acontecido no ano de 1972.

9 Ver nota 5, p. 28.

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Sendo assim, o senhor Ivandi comprou durante um certo tempo as redes que eram

produzidas na cidade de São Bento-PB. Algum tempo depois da primeira viagem,

fundou a sua própria fábrica, aliando, desta forma, a produção à comercialização de

redes de dormir.

Segundo o próprio Sr. Ivandi, sua incursão nessa atividade deu-se por

acaso. A sua primeira viagem ocorreu por ocasião da ida de uma pessoa conhecida

em um caminhão para o estado do Mato Grosso. Tendo por objetivo aproveitar a

viagem do caminhão vazio até o referido estado, ele teve a idéia de acompanhar o

dono do caminhão, levando consigo redes de dormir, com o objetivo de vendê-las no

estado de destino. Essa idéia nos explica ele mesmo, deu-se por escutar sobre a

existência desse tipo de atividade em São Bento-PB, resolvendo então

experimentar. As redes levadas nessa primeira viagem foram compradas na cidade

paraibana de Boqueirão, visto que, conforme já dito, não existia produção de redes

na cidade de Brejo do Cruz-PB.

Diante do sucesso alcançado na viagem inaugural, pois conseguiu vender

toda a carga de rede muito rapidamente, Sr. Ivandi decidiu dar continuidade à

atividade de venda de redes, comprando, depois da primeira viagem, seu próprio

caminhão. Assim, a partir do ano de 1969, começou a realizar viagens periódicas

para a região norte do país, principalmente para o estados de Rondônia e Acre,

passando a comprar as redes ao senhor Manoel Lúcio, renomado produtor e

comerciante de redes de dormir na cidade de São Bento-PB. A venda era feita a

varejo, principalmente nas praças e feiras das cidades por onde passava, ou em

grosso, aos donos de lojas. Ele mesmo vendia as redes, não havendo até então o

auxílio de vendedores.

Acreditamos que a atitude do senhor Ivandi pode ser considerada o marco

inicial dessa atividade, ou seja, do deslocamento de pessoas de Brejo do Cruz-PB

para outras regiões do país para comercializarem as redes de dormir fabricadas seja

em São Bento-PB, seja, cada vez mais na própria cidade de Brejo do Cruz-PB.

No ano de 1972 sai o primeiro carro de rede com redeiros vendedores. O

proprietário desse veículo, o senhor Agamenon Dantas da Silva, era sócio de um

proprietário de fábrica de redes, que fornecia as mercadorias a serem vendidas. O

Sr. Agamenon trabalhava com aproximadamente 15 vendedores e viajava

principalmente para os estados do Maranhão e Pará, pois era nesses estados onde

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se encontravam as maiores facilidades para a venda do produto, já que são regiões

onde se costuma dormir em redes e onde não há grandes produtores.

Sendo assim, podemos afirmar que a atividade comercial de redes de

dormir através dos vendedores ambulantes inicia-se na cidade de São Bento-PB,

propagando-se posteriormente para outras localidades como Brejo do Cruz-PB. A

referida atividade expandiu-se a ponto de, na atualidade, verificarmos a existência

de mais de 50 carros de rede na cidade de Brejo do Cruz-PB, que se deslocam

periodicamente para diversas regiões do Brasil e que utilizam a mão de obra de

centenas de trabalhadores.

2.3 O comércio de redes de dormir: o trabalho dos redeiros

A fim de analisar o trabalho realizado pelos redeiros de Brejo do Cruz-PB,

partimos do pressuposto de que o trabalho é um elemento central na vida desses

trabalhadores, como dos homens de forma geral, pois é por meio dele que

conseguem reproduzir sua existência material e social, além de ser a dimensão que

põe esses homens na itinerância e que, por conseguinte, constrói a sua

territorialidade10.

O trabalho configura-se como elemento central na vida dos homens, visto

que é por meio dele que os seres humanos conseguem promover a produção e

reprodução de sua existência. Além de ser um elemento inerente à existência

humana, o trabalho torna-se aquilo que diferencia o ser humano dos demais seres

vivos, pois, assim como Ricardo Antunes (2005, p.67) destaca, “é a partir do

trabalho em sua realização cotidiana, que o ser social distingue-se de todas as

formas pré-humanas”. È o agir consciente que qualifica o trabalho como atividade

humana. No sentido de destacar o agir consciente como elemento definidor do

trabalho humano, tomemos a famosa passagem em que Marx diferencia o pior

arquiteto da melhor abelha: Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha

envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de

10 Essa questão será melhor abordada no capítulo 3

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suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor

abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em

cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no

início deste existiu na imaginação do trabalhador, e, portanto idealmente.

(MARX, 2004, p.36).

Com efeito, é por meio do trabalho consciente que os seres sociais se

humanizam, definindo-se como seres humanos. “O trabalho mostra-se, então, como

momento fundante de realização do ser social, condição para sua existência; é, por

isso, ponto de partida para a humanização do ser social”(ANTUNES, 2005, p.68). O objeto de nosso trabalho como já tantas vezes ressaltamos, refere-se à

atividade comercial realizada pelos redeiros itinerantes, que trabalham se

deslocando, em veículo, de uma cidade para outra, vivendo deste modo em

constante mobilidade, vendendo as mercadorias na rua, de forma ambulante.

Apesar da referida forma de comercialização se mostrar preponderante

entre os redeiros de Brejo do Cruz-PB, ressaltamos que outros redeiros, sendo que

em menor número, trabalham em um único local, aí fixando-se por um determinado

período. Dentre esses redeiros, podemos destacar os chamados “moeiros”11. Os

“moeiros”, por não possuírem veículo ou trabalharem em veículo de outrem, alugam

casas nas cidades onde trabalham, preferencialmente nos grandes centros urbanos,

inclusive em capitais estaduais.

Também verificamos alguns casos, embora também menos freqüentes, em

que alguns redeiros proprietários de veículos se fixam em determinados lugares,

pelo menos em determinados períodos, assim como os “moeiros”. Para isso,

alugam casas, optando, assim como os “moeiros”, pelas maiores cidades, devido ao

maior mercado consumidor. Por não estarem naquele momento se deslocando de

cidade para cidade, preferem alugar uma casa por oferecer melhores condições de

estada.12

No entanto, conforme já explicitado, diante à necessidade de definirmos de

forma mais precisa o nosso recorte empírico, optamos por privilegiar o estudo do

processo de comercialização realizado por aqueles redeiros que trabalham de forma

11 Moeiro é uma denominação dada aos redeiros que, geralmente, trabalham sozinhos, por conta própria, entretanto, sem possuir carro de rede. Por essa razão os moeiros trabalham de forma fixa em determinadas cidades. 12 Abordaremos essa diferente realidade vivenciada pelos redeiros no terceiro capítulo, tratando-a como uma outra forma de territorialização e tendo como referencial empírico, a realidade por nós vivenciada no Bairro Jardim dos Buritis, localizado na cidade de Aparecida de Goiânia-GO.

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itinerante, vivendo em constante mobilidade, percorrendo estradas e cidades no

interior de caminhões. O trabalho inicia-se já nas primeiras paradas, portanto os

redeiros vendedores trabalham em várias cidades durante seu percurso. O nosso

propósito é, então, procurar desvendar a realidade territorial construída por esses

trabalhadores.

Através da nossa pesquisa empírica – já anteriormente descrita -

verificamos que, durante as estadas nas cidades por onde passam, quando estão

trabalhando, os redeiros utilizam os postos de combustíveis como principal ponto de

apoio.13

Assim como já exposto, a atividade comercial aqui estudada, envolve dois

principais sujeitos sociais, diferenciado-se de acordo com o papel exercido por cada

um dentro da organização do trabalho. Dessa forma, podemos identificar dois tipos

de redeiros: o redeiro proprietário, dono do veículo no qual viajam e das mercadorias

a serem vendidas e o redeiro vendedor, também conhecido como “corretor”, sendo

este o que de fato vende as mercadorias.

No processo de trabalho realizado pelos redeiros, o redeiro proprietário

repassa em consignação para o redeiro vendedor seus produtos para que o último

os venda por um determinado preço. Em troca do trabalho de venda dos produtos do

redeiro proprietário, o redeiro vendedor recebe um determinado valor por cada

produto ou peça vendida. Esse valor, também chamado por todos os redeiros de

“registro”, pode variar conforme o valor do produto comercializado, no entanto, a

maioria dos redeiros proprietários paga R$ 2,50 por cada peça vendida. Vale frisar

que, se porventura o redeiro vendedor conseguir vender uma mercadoria por um

preço acima do valor estipulado, a diferença entre esse e o valor final passa a ser

seu.

Além disso, verificamos que antes da viagem o redeiro proprietário firma

com o redeiro vendedor um acordo em torno do valor do “vale”. O “vale” é um

adiantamento financeiro feito pelo redeiro proprietário ao redeiro vendedor antes da

viagem. De forma geral, o valor do “vale” concedido ao redeiro vendedor varia de

acordo com dois fatores: Primeiro, de acordo com o nível de vendas do redeiro

vendedor; Segundo, de acordo com a responsabilidade do referido trabalhador.

13 No capítulo 3 abordaremos mais detalhadamente a estada dos redeiros nos postos de combustíveis

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Nos dias atuais, conforme já exposto no relato do trabalho de campo, a

comercialização dos produtos têxteis realizada por redeiros de Brejo do Cruz-PB,

não é específica desses produtos, ou seja, não se restringe à venda de produtos

fabricados a partir do algodão, como a rede, a manta e o pano de prato. Esse

processo de comercialização também envolve a venda de diversos outros produtos,

tais como: toalha de mesa, toalha de banho, chapéu, além daqueles produtos

comumente chamados de muamba: cinto e carteira.

No que diz respeito à diferença entre o valor pago por cada mercadoria

comprada pelo redeiro proprietário e o valor de venda estipulado, verificamos uma

certa diferença entre os ganhos do redeiro proprietário e os ganhos do redeiro

vendedor por cada peça vendida, conforme exposto no quadro abaixo:

Quadro 01: Valores de compra e venda das mercadorias

Mercadoria Valor de compra da

mercadoria Valor de venda da

mercadoria Rede pequena R$ 5,00 R$ 10,00

Rede média R$ 7,50 R$ 15,00

Rede grande R$ 20,00 R$ 30,00

Manta grande R$ 18,00 R$ 25,00

Manta pequena R$ 05,00 R$ 10,00

Pano de prato14 R$ 5,00 R$ 10,00

Toalha de mesa R$ 6,00 R$ 10,00

Toalha de banho R$ 10,00 R$ 15,00

Cinto R$ 4,50 R$ 10,00

Carteira R$ 4,50 R$ 10,00

Fonte: Pesquisa empírica, janeiro-fevereiro de 2007.

De fato, existe um maior percentual de ganho para o redeiro proprietário por

peça vendida em alguns produtos, como por exemplo, a rede média e grande.

Peguemos o exemplo da rede média, visto que é uma das peças mais vendidas: se

essa mercadoria é comprada pelo redeiro proprietário por R$ 20,00 e é vendida pelo

redeiro vendedor por R$ 30,00 concluímos que houve um ganho de R$ 10,00 sobre

o preço da mercadoria. Se subtrairmos R$ 2,50 do registro pago ao redeiro 14 Conjunto com sete panos de prato, conhecido por “semaninha”, pelo fato de cada pano de prato corresponder a um dia da semana.

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vendedor temos que o lucro do redeiro proprietário é de R$ 7,50, um valor

equivalente a três vezes o ganho do redeiro vendedor.

No que se refere à obtenção desses produtos por parte dos redeiros

proprietários, verificamos que os produtos feitos a partir do algodão são adquiridos

nas fábricas existentes na Cidade de Brejo do Cruz-PB, sendo que, de forma geral,

cada redeiro proprietário compra de um determinado produtor. Já a chamada

“muamba”, é comprada pelos donos de carro de rede, na maioria das vezes na

cidade de São Paulo-SP. No tocante à obtenção da muamba, verificamos que

algumas pessoas, originárias de Brejo do Cruz-PB, trabalham na cidade de São

Paulo, tendo como função enviar para os redeiros proprietários as mercadorias

solicitadas. Essas pessoas, que trabalham dessa forma como intermediários, enviam

a “muamba” depois de solicitadas via tefefone, para os locais onde os redeiros

proprietários estiverem, por meio de transportadoras ou, na maioria das vezes, em

ônibus de linhas regulares.

Quanto à obtenção de mercadorias produzidas na cidade de Brejo do Cruz-

PB pelos redeiros, quando estão viajando, destacamos a existência de um sistema

de fretamento. Nesse sistema, o redeiro proprietário solicita por telefone a um

determinado produtor as mercadorias desejadas. Sendo assim, os redeiros recebem

as mercadorias, mediante o pagamento de frete, nas regiões onde estejam.

Verificamos que, na maioria das vezes, existem determinados pontos, pré-

estabelecidos, de recebimento das mercadorias enviadas, geralmente sendo nas

maiores cidades, ou em outros casos, em locais situados ao longo das rodovias.

Esses, muitas vezes, são locais de passagem obrigatória para os caminhões que

levam os produtos enviados. A título de ilustração podemos dar o exemplo do estado

do Goiás, onde o recebimento de mercadorias vindas de Brejo do Cruz-PB acontece

principalmente em duas cidades: Aparecida de Goiânia, mais exatamente no Bairro

Jardim dos Buritis e a cidade de Anápoles, na Churrascaria Catarinense.

A partir do exposto, percebemos que o processo de comercialização

realizado pelos redeiros de Brejo do Cruz-PB envolve a ação conjunta de diversos

sujeitos, cada qual cumprindo uma função, conforme representado na figura a seguir

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Figura 26: Diagrama representando a organização do processo de comercialização das redes de dormir e demais mercadorias a partir de Brejo de Cruz-PB. Fonte: Pesquisa empírica, 2006 – 2007.

Além de utilizarem os redeiros vendedores no processo de comercialização,

alguns redeiros proprietários adotam uma segunda estratégia de venda, aquela por

eles denominada de “boca de ferro”. O processo de venda com a chamada “boca de

ferro”, conforme já descrito15, é praticado principalmente por redeiros proprietários

de veículos de pequeno porte, como Chevrollet D-20 (Figura 27) ou Pampa (Figura

28). Esses redeiros proprietários trabalham, geralmente, com um número reduzido

de redeiros vendedores.

Quando indagados sobre o porquê de trabalharem com o uso da “boca de

ferro”, muitos redeiros proprietários mencionaram as dificuldades financeiras de

trabalhar com vendedores. Muitos que trabalham com a “boca de ferro” disseram

não ter condições de “bancar” financeiramente as despesas próprias de quando se

trabalha com vendedor, principalmente no que se refere ao “vale”, conforme já

mencionado. Diante da necessidade de se realizar, muitas vezes, um elevado

investimento com os vendedores antes da viagem, muitos redeiros proprietários,

dispondo de poucos recursos, preferem trabalhar com poucos vendedores,

15 Vide capítulo 1.

Redeiro proprietário

Redeiro Vendedor

Intermediário 1: em São Paulo

Produtor das redes

Intermediário 2: fretamento

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Figura 27: Veículo D-20 adaptado para a venda de redes. Geralmente

os redeiros proprietários desse tipo de veículo usam a “boca de ferro”. Autoria: Luciano Dutra, setembro de 2007.

Figura 28: Veículo pampa adaptado para a venda de rede. Os

redeiros proprietários desse tipo de veículo costumam usar a “boca de ferro” (em detalhe). Autoria: Luciano Dutra, setembro de 2007.

privilegiando o trabalho com a “boca de ferro”. Já outros disseram trabalhar com a

“boca de ferro” pelo fato dessa modalidade possibilitar melhores vendas, uma vez

que com o som da “boca de ferro”, faz-se uma maior divulgação dos produtos,

fazendo com que as pessoas que não se encontrem nas ruas por onde eles estejam

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passando possam saber da passagem do carro de rede pela rua. Outros redeiros

proprietários admitem que, em alguns momentos, param seus veículos em um ponto

central da cidade, a fim de expor os produtos aos possíveis compradores que

transitam por aquele local. No entanto, a grande maioria dos redeiros proprietários

não trabalha na venda dos produtos, restringindo-se à gestão do negócio.

2.4 Os destinos dos redeiros

No que diz respeito aos locais de destinos dos redeiros de Brejo do Cruz-

PB, verificamos uma grande diversidade de lugares no conjunto do território

brasileiro16. Apesar de nos referir apenas aos locais onde os redeiros proprietários

dizem trabalhar na atualidade, muitos afirmaram já terem trabalhado em vários locais

do Brasil. É o que se revela no seguinte relato: Já fui até Manaus, já fui em Boa Vista, já fui em Porto Velho, Santa

Catarina, Paraná, é [...] Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, do norte, já

andei uns pouco, Maranhão, essa região eu já andei muito. (redeiro

proprietário, Fevereiro de 2007).

Apesar dos redeiros pré-definirem antes da viagem os locais de destino,

assim como seus itinerários, muitas vezes não concretizam o percurso planejado.

Isso pode ser explicado pelo fato de que o nível de venda é o fator determinante na

definição do tempo de permanência dos redeiros em determinada cidade, assim

como do trajeto percorrido pelos mesmos. De forma geral, enquanto os redeiros

estiverem vendendo bem em uma cidade não saem dela, a menos que as vendas

diminuam. Por outro lado, apesar dos redeiros proprietários mostrarem a intenção

de trabalhar em um determinado local, os mesmos também afirmaram que, caso as

vendas não sejam satisfatórias no local preestabelecido, saem para outros locais em

busca de melhores vendas. Nesse sentido, os itinerários dos redeiros são dotados

de uma certa imprevisibilidade no que se refere aos locais percorridos.

16 Apesar de sabermos que muitos redeiros, principalmente moeiros, se deslocam para outros países, assim como já enfatizado por Egler (1984) em relação aos redeiros de São Bento-PB, não verificamos em nossa pesquisa a existência de redeiros que se desloquem para países vizinhos.

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Outro fator que determina o tempo de permanência dos redeiros numa

cidade, além do nível de vendas, é o tamanho da mesma, por existir uma variação

do mercado consumidor disponível de acordo com o porte da cidade. Enquanto que

nas pequenas cidades o tempo de permanência varia de 1 a 2 dias, nas maiores, a

exemplo das capitais, o tempo de permanência costuma ultrapassar 3 dias.

Conforme exposto no mapa 05, verificamos um grande deslocamento de

redeiros para o estado de Goiás, sendo que 47% dos entrevistados, quase a

metade, disseram ter o referido estado como um dos seus destinos, ou como o único

em suas viagens. Com relação aos que têm o estado de Goiás como destino,

quando indagados sobre em quais cidades daquele estado eles passavam mais dias

trabalhando, foram citadas: Goiânia, Anápolis, Rio Verde, Porangatu, Minaçu e

Itumbiara. Além de ser o estado do Brasil preferencialmente escolhido por muitos

redeiros proprietários, o estado de Goiás é, para muitos outros, ponto obrigatório de

passagem, principalmente para aqueles que se deslocam para os estados de Mato

Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia. Percebemos então que o estado de Goiás

é o estado brasileiro com maior incidência de redeiros de Brejo do Cruz-PB, seja

como local de destino de suas viagens, seja como ponto de passagem. A menor

fiscalização por parte das prefeituras, o melhor tratamento recebido pela população

local, assim como o conhecimento já adquirido sobre os pontos de apoio, seriam os

atrativos desse estado.

Depois de Goiás, os estados preferencialmente escolhidos pelos redeiros

proprietários como destino de suas viagens, são: Mato Grosso do Sul e Minas

Gerais. Quanto ao primeiro, muitos redeiros proprietários se mostraram dispostos a

trabalhar lá, principalmente aqueles que viajam para Goiás, entretanto, só no caso

das vendas nesse estado ficarem fracas. No estado de Mato Grosso do Sul, as

cidades onde mais trabalham são: Coxim, Campo Grande, Três Lagoas, Dourados e

Ponta Porã.

Com relação ao estado de Minas Gerais, notamos uma preferência por

parte dos redeiros proprietários pela região do Triângulo Mineiro, particularmente

pelas cidades de Uberlândia, Uberaba e Ituiutaba.

Em seguida, destaca-se o estado de Santa Catarina como o quarto estado

mais visitado. Nesse estado, os redeiros preferem trabalhar em cidades litorâneas,

como Florianópolis, Barra Velha e Itajaí, aproveitando o movimentado período de

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veraneio. Nesse estado, por trabalharem em uma única localidade por um

determinado período, os redeiros normalmente alugam casas para lá se

hospedarem.

Outros estados que foram apontados como locais onde os redeiros de

Brejo do Cruz-PB mais trabalham são: no Paraná, principalmente nas cidades de

Ponta Grossa, Londrina e Campo Mourão; no Mato Grosso, na capital Cuiabá; no

Ceará, destaca-se a cidade de Quixadá; no Espírito Santo, na cidade de Vitória; no

Rio Grande do Norte, na cidade de Mossoró e no estado de São Paulo,

principalmente na cidade de São José do Rio Preto.

Com relação ao trabalho dos redeiros no estado de São Paulo,

verificamos que as principais cidades indicadas pelos redeiros proprietários situam-

se ao longo de importantes vias que cortam o estado, particularmente no sentido

norte-sul. Esse detalhe aliado às informações repassadas por alguns redeiros

proprietários nos ajuda a compreender porque os redeiros trabalham em cidades do

estado de São Paulo, como São José do Rio Preto. A explicação está no fato destas

cidades serem caminho obrigatório de muitos redeiros que vão para o sul do país, e

não por ser destino de suas viagens. Muitos redeiros proprietários afirmaram não

permanecer no estado de São Paulo devido à fiscalização severa na maioria das

cidades paulistas, o que dificulta seu trabalho.

Há também alguns redeiros que se deslocam para o Distrito Federal,

trabalhando principalmente nas cidades satélites, onde residem muitos nordestinos.

Outros estados ainda apontados pelos redeiros são: Rondônia e Maranhão. Nesses

dois últimos estados, não foi possível perceber uma cidade de destaque dentre as

que os redeiros trabalham, visto a variedade de pequenas cidades mencionadas.

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Mapa 05: Destinos dos redeiros.

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2.5 O tempo dos deslocamentos dos redeiros

Outra questão que merece destaque em nosso trabalho é a que diz

respeito à periodicidade das viagens realizadas pelos redeiros em seus veículos. A

grande maioria desses trabalhadores realiza duas viagens por ano, cada uma com

duração de quatro meses em média, sendo uma no primeiro semestre, com início

nos meses de fevereiro ou março, geralmente após o carnaval, outra no segundo

semestre, iniciada após as festividades de São João, principalmente nos meses de

julho e agosto. Verificamos então a existência de dois principais períodos de retorno,

os dois ligados aos períodos festivos: no mês de dezembro, para as festas de final

de ano, acrescida em Brejo do Cruz-PB das festas em comemoração à padroeira

local e no período que antecede ao São João.

Entretanto, outros redeiros realizam suas viagens em períodos

diferentes. Exemplo disso são aqueles que têm como destino o estado de Santa

Catarina. Como o principal objetivo desses redeiros é aproveitar o período de

veraneio, eles só retornam a Brejo do Cruz-PB após os meses de fevereiro ou

março, principalmente depois do carnaval, diferenciando-se dos anteriores.

No entanto, apesar de os redeiros viajantes manterem uma certa

periodicidade no que se refere a suas saídas e retornos, percebemos que o fator

“vendas” também influencia na determinação do período de retorno dos redeiros.

Vale registrar também o fato de que por dificuldades financeiras, muitos redeiros

demoram mais do que o previsto nas suas viagens, alguns chegando a passar mais

de um ano viajando. Tal fato ocorreu com o Sr. Paizinho, o mesmo redeiro

proprietário com o qual realizei o trabalho de campo. Ao viajar no mês de agosto

(após o São João) para o estado de Goiás, ele tinha a pretensão de retornar no mês

de dezembro, como de habitual. Entretanto, isso não foi possível, conforme seu

depoimento, em virtude de problemas financeiros, ocasionados pelas dívidas de

alguns redeiros vendedores, que abandonaram este proprietário em plena viagem,

sem antes quitar suas dívidas, aquelas contraídas na forma de vale. Em razão de

problemas dessa natureza, os redeiros preferem permanecer trabalhando até que as

condições melhorem e decidem voltar somente após resolverem essas dificuldades.

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As viagens realizadas pelos redeiros que se deslocam para os estados

do Ceará e Rio Grande do Norte são bem mais curtas. Por se tratar de estados mais

próximos, os redeiros retornam com mais freqüência. Todos os redeiros que têm

como destino os referidos estados, realizam viagens mensais, tendo o início do mês

como o período de saída, retornando depois de quinze a vinte dias.

Normalmente, as viagens são feitas em um espaço de tempo que

compreende os primeiros quinze dias do mês, uma vez que nesse período há uma

maior circulação de dinheiro nas cidades por onde passam, principalmente por se

tratar da época de pagamento de funcionários estaduais, municipais, além das

pessoas que recebem benefícios da previdência social. Depois de transcorrida a

primeira metade do mês, eles dizem já não ser vantajoso permanecer vendendo:

“terminou os pagamentos, pode vir embora, pois não vende mais nada” (redeiro

proprietário, Fevereiro de 2007).

A maioria dos redeiros que se desloca para os estados do Ceará,

trabalhando principalmente no interior do estado e para o Rio Grande do Norte, mais

exatamente para a cidade de Mossoró, utiliza veículos de pequeno porte,

principalmente a “pampa”. O predomínio de veículos com capacidade de carga

menor, dentre os que viajam para os referidos estados, deve-se, à menor

quantidade de mercadorias que os redeiros levam, em função do pouco tempo que

permanecem viajando.

2.6 A relação de trabalho entre o redeiro proprietário e o redeiro vendedor

Pretendemos aqui discutir a relação de trabalho estabelecida entre o redeiro

proprietário e o redeiro vendedor, não perdendo de vista que a referida relação

social é melhor compreendida se encarada como sendo determinada por relações

capitalistas.

As relações sociais, e não só as de trabalho, estão submetidas à lógica de

reprodução do capital, produzindo uma sociabilidade, um modo de vida social de

forma a atender aos interesses dessa reprodução. Assim, as relações tendem a se

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tornar cada vez mais reificadas e autonomizadas. As relações sociais são tecidas

sob a lógica da “racionalidade instrumental, forma de inteligibilidade e da prática

operatórias, dominadas pelo interesse somente na eficácia e no êxito, à qual a razão

instrumental tende a se reduzir sob o capitalismo” (BIHR, 1998, p. 145, grifo do

autor).

Portanto, a apropriação capitalista da práxis social, produz a expropriação

dos homens em relação ao controle de suas ações e práticas sociais,

transformando, dessa forma, “a imensa maioria dos homens em simples executantes

de práticas cujos pormenores tornam-se obscuros ou opacos para sua consciência”

(BIHR, 1998, p. 148).

Além de definir a constituição das relações sociais, o sistema capitalista

modifica a configuração original do trabalho. Tem-se, portanto, o trabalho concreto e

o trabalho abstrato. O trabalho concreto diz respeito “ao caráter útil do trabalho,

intercâmbio metabólico entre os homens e a natureza, condição para a produção de

coisas socialmente úteis e necessárias” (ANTUNES, 2005, p.69). Assim, o trabalho

concreto se refere ao trabalho original, útil e significativo para aquele que realiza,

sendo anterior ao capitalismo.

O trabalho abstrato, por contraste, se refere ao trabalho existente sob a

vigência do sistema capitalista, caracterizado pela propriedade privada e pela

separação do trabalho. O trabalho abstrato é determinado pelas relações capitalistas

e está voltado “para o mundo das mercadorias e da valorização do capital”

(ANTUNES, 2005, p.69).

Sabe-se que o modo de produção capitalista, como bem nos esclareceu

Karl Marx, é fundado na relação proprietário dos meios de produção versus

trabalhador. Com base no exposto, analisamos a relação entre os dois principais

sujeitos sociais, o redeiro proprietário e o redeiro vendedor, a partir da posição que

cada um assume dentro do processo de trabalho. Muito embora não se trate de um

proprietário dos meios de produção, já que não estamos analisando a produção da

rede, mas sim a sua comercialização, ou seja, o processo de circulação da

mercadoria, nesse, os dois sujeitos ocupam posições sociais distintas. O primeiro é

o proprietário das mercadorias e, portanto do capital. Já o segundo, muito embora

não receba um salário, vende sua força de trabalho ao primeiro e é pago a partir do

lucro que o primeiro recebe. Nota-se que a clássica exploração senhor (proprietário)

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x trabalhador permanece, muito embora transvestida de outras formas de submissão

e de exploração.

Uma das principais características do processo de trabalho, como consumo

da força de trabalho pelo capitalista, diz respeito ao fato de que “o trabalhador

trabalha sob o controle do capitalista a quem pertence seu trabalho” (MARX, 2004,

p.47). Dessa forma, o trabalho realizado pelo redeiro vendedor encontra-se

inevitavelmente subordinado aos interesses e controle do redeiro proprietário. Além

disso, entendemos que esse estado de subordinação intensifica-se devido à dívida

do redeiro vendedor junto ao redeiro proprietário contraída na forma de vale.

A maior parte dos redeiros vendedores viaja já comprometido

financeiramente junto ao redeiro proprietário. São poucos os casos em que o redeiro

vendedor consegue quitar sua dívida durante a viagem, e quando o faz, é obrigado a

pegar uma nova quantia ao redeiro proprietário assim que retorna a Brejo do Cruz-

PB, visto que precisa de dinheiro para se manter, assim como sustentar sua família

no período em que não está trabalhando.

Além disso, muitos redeiros proprietários atribuem as dívidas de alguns

redeiros vendedores aos exagerados gastos que eles têm com “farras”, festas e

bebidas durante o período em que estão de retorno a Brejo do Cruz-PB.

Entendemos que essas “farras” são os momentos de descontração e de ludicidade

dos redeiros que procuram aproveitar ao máximo o período em que estão de “férias”.

Todos os redeiros vendedores disseram trabalhar todos os dias da semana,

inclusive aos sábados, domingos e feriados. Esse intenso ritmo de trabalho é a única

forma que eles têm para compensar os baixos valores de registro, assim como sanar

as dívidas contraídas junto ao redeiro proprietário.

O fato de algum redeiro vendedor decidir, por algum motivo, não trabalhar

num certo dia, gera, segundo os redeiros vendedores, um aborrecimento por parte

do redeiro proprietário, fazendo com que ele passe a pressionar o redeiro vendedor

para que trabalhe, principalmente se sua dívida for muito alta.

Nesse sentido, percebemos que os redeiros vendedores mais endividados

são pressionados pelos redeiros proprietários para que trabalhem mais, para que

com isso, possam pagar sua dívida. Esse fato aumenta os laços de dependência do

redeiro vendedor em relação ao redeiro proprietário, já que o trabalho do primeiro se

encontra subordinado aos interesses do segundo.

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Muitos redeiros vendedores demonstraram estar cientes dos “efeitos

nocivos do vale”, como se pode ver no relato de um redeiro vendedor, quando

indagado sobre o que deveria mudar no seu trabalho: “Rapaz, eu achava assim, que o trabalho do redeiro precisava de mudar,

assim, esse negócio de dinheiro adiantado no ramo de rede, é o que acaba

mais com o ramo, sabe? [...]todo patrão é bom, por que tem um negócio de

redeiro dizer que o patrão é ruim, não existe patrão ruim não, é ruim porque

o cara ta devendo, aí o cara chega, você... tem que trabalhar dia de Sábado,

dia de Domingo, chovendo, feriado, tá chovendo e os patrão solta o mói de

rede, eu quero que ele não esteja devendo ao patrão!..... pode ser o que for,

tá chovendo, vou pegar o mói não, “não vai pegar por que”?, porque eu não

vou pegar, eu vou pegar chovendo!, “você tá me devendo, agora é o

seguinte, você vai trabalhar, você tá me devendo”. Isso aí é uma coisa que

devia mudar no ramo de rede, não existir vale não no ramo, isso aí era uma

coisa pra mim era pra mudar”. (redeiro vendedor, Março de 2007).

O relato acima reflete a opinião de alguns redeiros vendedores sobre o

“vale”. Entretanto, conforme exposto no relato, o redeiro vendedor isenta o redeiro

proprietário da situação de dependência na qual se encontra, afirmando que “todo

patrão é bom”.

Embora a pressão exercida pelos redeiros proprietários seja perfeitamente

previsível, devido à situação de dependência citada anteriormente e apesar de

muitos redeiros vendedores afirmarem que essa é uma prática constante na

atividade que realizam, principalmente com aqueles redeiros vendedores que devem

muito aos seus patrões, a grande maioria dos redeiros vendedores entrevistados

não admitiu ser pressionado por seus patrões no sentindo de ser obrigado a

trabalhar mais e todos os dias.

Muitos também afirmaram não haver qualquer tipo de problema quando

decidem não trabalhar durante um determinado dia, contudo, essas situações

mostram-se associadas às ocasiões em que os redeiros vendedores não devem ao

redeiro proprietário, ou mais freqüentemente, ao fato de existirem maiores laços de

amizade entre os dois. Em um caso específico, um redeiro vendedor afirmou que,

apesar de viajar em um veículo de propriedade de outro redeiro, trabalha vendendo

suas próprias mercadorias. Tal fato é uma exceção, sendo possível devido aos

estreitos laços de amizade existentes entre ele e o redeiro proprietário. Observa-se

aqui que em uma relação de trabalho, há interferências pessoais, ou seja, dos

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personalismos, do privilégio tão comum e já bastante ressaltado por diversos

autores, dentre eles, Da Matta (1990).

De acordo com o referido autor, a influência das relações informais,

marcadas por vínculos pessoais, sobre as relações de caráter impessoal como, por

exemplo, as de trabalho, é uma característica marcante da sociedade brasileira. Da

Matta enfatiza a existência em nossa sociedade de dois universos sociais: o das

pessoas, onde imperam as relações pessoais, e o dos indivíduos, marcado pela

prevalência de relações impessoais e pela lei como elemento universalizante e

igualitário. Sendo assim, as pessoas seriam aquelas que desfrutam de regalias em

relação ao conjunto da sociedade. De fato, muitas pessoas usufruem de tratamento

especial devido a serem bem relacionadas e manterem contatos sociais

privilegiados, por exemplo, junto a órgãos públicos. Já os indivíduos são aqueles

que estão sujeitos às leis e normas estabelecidas, às relações de caráter impessoal,

assim como as relações de trabalho. Assim, verificamos que no Brasil se institui um

“sistema de relações pessoais como um dado estrutural da sociedade” (DA MATTA,

1990, p.192).

Outro aspecto gerador de conflitos entre o redeiro vendedor e o redeiro

proprietário, diz respeito aos momentos de lazer dos redeiros vendedores, quando

estão trabalhando. De acordo com alguns redeiros proprietários, uma das coisas

ruins do trabalho que realizam ou o que chamam de a “dor de cabeça” decorre do

fato de alguns redeiros vendedores fazerem “farras”, ou quererem beber muito

durante a viagem, prejudicando, dessa forma, seu trabalho.

Uma idéia que permeia o relato da maioria dos redeiros, principalmente

dos proprietários, é a de que, quando eles se encontram trabalhando, estão ali para,

de fato, trabalhar, e só isso. Os redeiros proprietários enfatizaram que o momento

de “farras” é quando estão em Brejo do Cruz-PB. De fato, os redeiros vendedores

que gostam das “farras” e bebidas durante a viagem são severamente reprimidos

pelo proprietário. Pudemos comprovar esse fato empiricamente durante a nossa

viagem anteriormente relatada. Dois redeiros vendedores começaram a beber com

oito dias de viagem, quando estávamos na cidade baiana de Xique Xique, fato que

desagradou o proprietário do veículo no qual viajávamos.

Esse tipo de comportamento por parte dos redeiros vendedores

desagrada os redeiros proprietários, visto que seu lucro depende das vendas dos

primeiros. Ao beber ou “farrar”, o redeiro vendedor deixa de trabalhar, podendo até

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mesmo, gastar o dinheiro porventura ganho durante o dia de trabalho. Já o redeiro

proprietário normalmente priva-se das já mencionadas “farras”, para também dar

exemplo a “seus” redeiros vendedores. Esse tipo de comportamento mostrou-se de

forma bem clara nas atitudes tomadas por Paizinho, redeiro proprietário com o qual

realizamos nosso trabalho de campo.

2.7 A precariedade do trabalho

Outro aspecto que caracteriza o trabalho realizado pelos redeiros, e que por

isso merece nossa atenção, diz respeito às precárias condições de trabalho às quais

estão submetidas esses trabalhadores.

De início, vale destacar as péssimas condições enfrentadas por esses

trabalhadores quando das viagens dentro dos caminhões. Os redeiros vendedores

viajam no baú do caminhão (Figura 29), portanto, de maneira completamente

inadequada e até desumana. O baú de um caminhão é um depósito para transportar

mercadorias. Nesse caso, transportam as mercadorias e os vendedores de

mercadorias. Tal situação é bastante representativa da subordinação e da

exploração do trabalhador que se confunde com as mercadorias, mas também não

podemos esquecer que a sua força de trabalho também é uma mercadoria.

Figura 29: Redeiros dentro do “baú” da “mecedinha”. Autoria: Luciano

Dutra, agosto de 2006.

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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Muitos redeiros vendedores relataram sobre as condições de trabalho,

afirmando que uma das piores é mesmo a precariedade da viagem, principalmente

quando fazem longos percursos. É grande e até mesmo desumano o desconforto

por eles enfrentado no interior do baú do caminhão ou camionete, um pequeno

espaço onde se sentam uns colados nos outros. Além disso, muitos redeiros

vendedores também demonstraram receio com relação a acidentes nas estradas,

principalmente diante das condições de superlotação em que viajam muitos carros

de rede.

A viagem com um elevado número de redeiros dentro dos caminhões, além

de representar desconforto e perigo para aqueles que viajam, infringe as leis de

trânsito. Este é um outro problema enfrentado pelos redeiros durante suas viagens:

a fiscalização da polícia rodoviária federal. Além do problema relacionado ao

transporte de pessoas no baú, o que é ilegal, verificamos que muitos carros de rede

trafegam irregularmente no que diz respeito tanto à quantidade de mercadoria

permitida, quanto a não existência de notas fiscais das mercadorias, ou pelo menos

de parte delas. Essas dificuldades enfrentadas pelos redeiros, produzem alguns

artifícios utilizados por eles, tais como: a adoção de um percurso, muitas vezes mais

longo, mas que desvia dos postos da polícia rodoviária federal, além do também

praticado desvio moral e ético de alguns policiais rodoviários que aceitam a

denominada propina.

A precariedade do trabalho dos redeiros também pode ser constatada nas

péssimas condições de estada, ou seja, nos postos de combustíveis, principal local

de parada dos redeiros nas cidades onde trabalham. A dormida foi um dos aspectos

mais citados pelos redeiros para se referirem às condições negativas do trabalho

que realizam: “Rapaz, o que acho mais ruim no ramo de rede é...,é na dormida, tem

canto que você não tem apoio para dormir, tem canto que não dorme direito, você

acorda de madrugada com água no espinhaço...,não tem muito apoio para dormir,

tem canto que tem.”(redeiro vendedor, Fevereiro de 2007). Ou ainda: “mais ruim? É

quando a gente chega num canto para dormir que não tem galpão começa chover

de madrugada ou chega num canto, aí o dono não aceita a gente” (redeiro

proprietário, Fevereiro de 2007).

Dormindo ao relento nos pátios dos postos de combustíveis (Figura 30), os

redeiros, sem qualquer conforto, são obrigados a suportar uma eventual noite de frio

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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ou chuva. Essa situação é amenizada quando dormem em postos de combustíveis

que oferecem locais cobertos onde possam buscar guarida.

Figura 30: Redeiros dormindo ao relento debaixo de árvores em um posto de combustível na cidade de Euclides da Cunha-BA. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

De fato, apesar de passar por muitas dificuldades, o redeiro proprietário

dispõe de melhores condições de trabalho, inclusive de dormida, visto que ele

geralmente dorme na cabine do caminhão, local mais agradável para dormir e que

possibilita uma maior proteção em relação às intempéries, como a chuva, o vento e

o frio.

Outro problema enfrentado pelos redeiros nos postos de combustíveis diz

respeito às péssimas condições de manutenção e higiene dos banheiros dos postos.

Salvo exceções, os banheiros existentes nos postos de combustíveis encontram-se

em péssimas condições de uso.

Ainda sobre a estada dos redeiros nos postos de combustíveis,

destacamos o maior grau de exposição à violência ao qual esses trabalhadores se

submetem dormindo nesses locais. Apesar de muitos postos manterem vigilantes

durante a noite, o que oferece um pouco mais de segurança aos redeiros, muitos se

encontram abandonados e sem nenhuma proteção. Apesar dos riscos enfrentados

nos postos, a precariedade do trabalho e a baixa remuneração exigem que busquem

abrigo de forma gratuita.

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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Sobre essa questão da insegurança nas estradas, Luciene dos Santos, em

estudo sobre a atividade realizada pelos caminhoneiros no Brasil, enfatiza a

exposição dos motoristas de caminhão ao roubo de cargas nos postos de

combustíveis, pois como afirma a autora, “nem mesmo nos postos de estrada a

segurança é total. Poucos estabelecimentos dispõem de vigias contratados para

oferecer certa comodidade aos seus clientes” (2004 p. 328).

Além das precárias condições enfrentadas pelos redeiros durante a viagem,

como nos postos de combustíveis, ressaltamos que a remuneração é bastante

precária, assim como a jornada de trabalho muito longa, o que fortalece a

exploração do trabalho. Os redeiros vendedores, conforme já exposto, ganham em

média R$ 2,50 por peça vendida. Ao serem indagados sobre o que deveria mudar

para que melhorassem suas condições de trabalho, eles responderam, na sua

maioria, que deveria aumentar o valor do “registro”, ou seja, o valor pago por peça

vendida, considerada pela maioria dos redeiros vendedores como muito baixo.

Levando em consideração o baixo valor do “registro”, além do fato da

necessidade de se pagarem às dívidas contraídas junto ao redeiro proprietário na

forma de vale, os redeiros vendedores despendem mais tempo no trabalho,

diminuindo desta forma, o tempo para descanso ou lazer. Todos os redeiros

vendedores entrevistados, conforme já exposto anteriormente, disseram trabalhar

todos os dias da semana, independentemente de domingo ou feriado, salvo os dias

chuvosos, aqueles em que estão doentes, ou em que, ocasionalmente, não desejem

trabalhar.

Procuramos saber a quantidade de peças em média vendidas por cada

redeiro vendedor por dia de trabalho, porém isso não foi possível visto que eles, na

sua maioria, não souberam responder. Alguns responderam vender entre 10 e 15

peças por dia, no entanto, enfatizaram que a quantidade de peças vendidas pode

variar bastante. Sendo assim, torna-se difícil precisar um número. O certo é que,

para que a atividade se torne viável para o redeiro vendedor, ele precisa ganhar por

dia um valor superior ao gasto diário com despesas de alimentação, valor que varia

em torno de R$ 15,00 o que equivale ao valor ganho na venda de 6 peças.

Em alguns casos, o excesso de trabalho por parte dos redeiros vendedores

também resulta da “pressão” exercida pelo redeiro proprietário, para que eles

trabalhem mais, conforme já exposto anteriormente.

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Mesmo mostrando-se cientes das dificuldades inerentes à atividade que

realizam, assim como das precárias condições de trabalho às quais estão sujeitos, a

maioria dos redeiros, seja proprietários ou vendedores, demonstrou gostar do

trabalho, apesar de, contraditoriamente, nutrir expectativas quanto à saída dessa

atividade.

Para que possamos melhor compreender essa contradição exposta no

relato da maioria dos redeiros, é preciso que recorramos a uma melhor análise das

respostas desses trabalhadores quanto ao porquê de gostarem da atividade. Nas

falas, notamos o predomínio de um certo conformismo no relato dos trabalhadores.

Ao expressarem que gostam da atividade, expõem que, diante da realidade

econômica de Brejo do Cruz-PB, o trabalho que realizam torna-se uma das poucas,

senão única alternativa de emprego. Nesse sentido, o que percebemos é que, na

verdade, os redeiros gostariam de trabalhar em outra atividade, com melhor

remuneração, melhores condições de trabalho e perto da família, entretanto, dadas

às circunstancias, o trabalho de vender rede é um dos poucos à disposição, sendo,

portanto, “uma coisa boa”. Boa no sentido de ser o meio através do qual os redeiros

conseguem se manter materialmente, assim como sustentar suas famílias, ou seja,

se reproduzirem. Os relatos a seguir são bastante ilustrativos: Eu acho bom, rapaz... eu acho bom, (...), aqui em Brejo, eu mesmo não

tenho como viver aqui em Brejo, sabe? O ramo de rede pra mim, eu arrumo

um dinheiro, é sofrido mais sempre eu ganho um dinheiro..., alguma

besteira que eu tenho foi no ramo de rede( redeiro vendedor, Março de

2007)

é, pra quem dizer que o emprego é difícil hoje em dia, é melhor, pra nós é,

que vive aqui, sem estudo, o ramo de rede é uma salvação, pra nós é um,

é um, é um ouro( redeiro vendedor, Fevereiro de 2007)

é bom – por que é bom? – por que aqui não tem outro meio de vida pra

ficar (redeiro proprietário, Fevereiro de 2007)

gosto – por que você gosta? – por que é onde a gente tem a sobrevivência

mesmo né? Antes eu já achei mais ruim, mais hoje já estou acostumado,

vai se acostumando também, cada dia que passa o cara vai se

acostumando cada vez mais, aqui em Brejo também não tem outra

sobrevivência a não ser isso aí, o cara tem que correr atrás mesmo do

ramo de rede (redeiro proprietário, Fevereiro de 2007)

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Assim, acreditamos que os redeiros falam que gostam da atividade por

estarem conformados com a única, ou pelo menos, com uma das poucas

oportunidades de trabalho que possuem.

Além disso, também ficou evidente através dos relatos dos poucos redeiros

que disseram não ter pretensões de sair da atividade, o conformismo já frisado

anteriormente, “pois como pensar em sair diante das poucas ou inexistes

expectativas de arranjar outro emprego?”.

Apesar da grande maioria dos redeiros ter pretensão de sair da atividade no

futuro, as dificuldades para que isso ocorra são muitas. Dentre esses empecilhos,

podemos destacar: a dificuldade de conseguir outro trabalho em Brejo do Cruz-PB; o

baixo nível de escolaridade dos redeiros ; além, é claro, dos compromissos

financeiros assumidos na forma de “vale” perante os redeiros proprietários.

No que diz respeito ao nível de escolaridade dos redeiros vendedores,

constatamos que 28% dos entrevistados eram analfabetos, em torno de 41%, a

grande maioria, tinha o ensino fundamental incompleto. Dentre todos os

entrevistados, apenas 1 redeiro vendedor, que representa 3% dos entrevistados,

possuía o ensino médio completo. Com relação ao nível de escolaridade dos

redeiros proprietários, a realidade não é muito diferente: 22% dos entrevistados

eram analfabetos, a maior parte tinha o ensino fundamental incompleto, totalizando

53% e apenas 3% possuíam o ensino médio.

Já no caso dos redeiros proprietários, alguns afirmaram não poder sair da

atividade devido aos investimentos financeiros realizados. Sobre isso, segue o relato

de um redeiro proprietário quando indagado sobre as dificuldades encontradas para

sair da atividade: “é difícil sair do ramo por causa dos vendedores, principalmente,

né? A pessoa tem muito dinheiro empregado nas mãos deles, para sair tem de

arrecadar primeiro esses dinheiro para poder sair” (redeiro proprietário, Fevereiro de

2007).

Não obstante os redeiros trabalharem em situações de extrema

precariedade, isso acontece à margem das leis trabalhistas, sem nenhum tipo de

garantia ou benefício legais, visto que o acordo firmado entre o redeiro vendedor e o

redeiro proprietário não apresenta nenhuma oficialidade, como o registro em carteira

de trabalho. Por isso, trata-se sim de um trabalho informal. A informalidade, que é

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característica do trabalho realizado pelos redeiros, pode ser detectada no mercado

de trabalho através de um conjunto de fenômenos, dentre os quais:

Maiores taxas de desemprego; maior intermitência entre inatividade e

participação no mercado de trabalho; maior participação das mulheres e

adaptação e surgimentos de ocupações que lhes são adequadas; novas

modalidades de contrato coletivo e individual para a mão de obra

assalariada; práticas de sub-contratação ou terceirização por meio de contratos comerciais; contratos não registrados – verbais acordados à

margem das leis trabalhistas; [...] (CACCIAMALI, 2001, p. 79, grifo nosso). Percebemos que quando indagados sobre o que deveria mudar para

melhorar o seu trabalho, apenas um redeiro vendedor mostrou-se espontaneamente

indignado com o fato dos redeiros vendedores trabalharem sem carteira assinada,

ficando assim, desprovidos de vários direitos. Apesar de alguns se mostrarem sem

resposta diante dessa pergunta, a maior parte respondeu desejar que houvesse um

aumento no valor do registro. Entretanto, quando abordávamos diretamente a

questão da carteira de trabalho, todos os redeiros vendedores mostraram-se a favor

dela, devido aos benefícios que poderia trazer para eles.

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CAPÍTULO 3 - A REDE DA REDE: O PROCESSO MIGRATÓRIO E TERRITORIALIDADE DOS VENDEDORES DE REDES DE DORMIR

3.1 O processo migratório

O termo migração refere-se, a principio, à mobilidade ou movimento de

populações no espaço, como se verifica na etimologia da palavra. Segundo Santos

(2005, p.61) “a palavra migração provém do latim migratione, que significa ‘mudar de

habitação, passar de um lugar para outro, ir-se embora, sair”.

O citado termo inexistia na Grécia Antiga, uma vez que “na Odisséia,

Ulisses navega por 10 anos no mar Mediterrâneo, até retornar a Ítaca, sua terra de

origem. Em todos os locais por onde passa e é acolhido, Ulisses é considerado

hóspede, forasteiro e estrangeiro, mas não imigrante” (SANTOS, 2005, p. 61).

Antes de o termo migração ser utilizado pelas Ciências Humanas, foi

aplicado para se referir ao deslocamento de determinados animais, isso nos estudos

do campo da Biologia. (SORRE, 1984, p.125 apud SANTOS, 2005, p. 62).

Apenas nos fins do século XIX, é que a palavra migração passou a ser

utilizada pelas denominadas Ciências Humanas, tornando-se um conceito dentro

delas, no momento do surgimento e consolidação dos Estados-Nações. Dessa

forma, o termo em foco nasce diante de um fenômeno essencialmente político, como

bem explica Geiger (2002, p.213): Após o estabelecimento dos Estados-Nações para descrever o

cruzamento, por estrangeiros, de suas fronteiras, que passaram a ser

definidas por linhas contínuas e precisas [...] posteriormente, passou a ser

aplicada para a travessia de qualquer linha territorial político-administrativa.

A partir dessa definição surgiram diversas abordagens sobre o tema à

proporção que também se diversificava o processo migratório. A respeito da

diversidade de concepções teóricas que abordam o fenômeno migratório na

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atualidade, Helion Póvoa Neto (1997, p.11) enfatiza que “a heterogeneidade

apresentada pela ampla gama de processos sociais usualmente designados por

este conceito justifica, por sua vez, a existência de divergências entre os que

buscam analisar a migração”.

Essas divergências, existentes no tocante ao entendimento teórico das

migrações, relacionam-se, por sua vez, ao caráter seletivo das questões estudadas,

pois segundo Póvoa Neto (1997, p.11), “a opção por uma definição específica do

que se entende por migração pode significar o ponto de partida para a análise

seletiva de certos processos, enquanto outros são postos de lado”. Sendo assim, a

escolha e, por conseguinte, a definição de determinada concepção teórica sobre a

migração, “tende naturalmente a conduzir a análise” (PÓVOA NETO, 1997 p. 12).

A seguir, na tentativa de realizar uma síntese sobre as diversas vertentes

teórico-metodológicas que tratam dos estudos migratórios, exporemos aquelas que

se apresentam como principais. Certo é que nem todas contribuirão com o estudo do

processo migratório de vendedores de rede de dormir da Cidade de Brejo do

Cruz/PB.

Verifica-se nos trabalhos acadêmicos, o predomínio de três vertentes

teóricas que tentam oferecer respostas ao fenômeno migratório. As três vertentes

são: a Neoclássica, a Histórico-Estrutural e a da Mobilidade do Trabalho. As três

apresentam, como enfatiza Maria Aparecida de Moraes Silva (2005, p. 53) “a

categoria trabalho no centro das reflexões sobre as migrações”, assim como é nelas

que “pode ser enquadrada a maior parte da produção teórica sobre as migrações”

(PÓVOA NETO, 1997, p. 15).

A primeira vertente a ser apresentada aqui é a neoclássica. Essa vertente

teórica predominou nos estudos migratórios até os anos 70, tendo como principal

característica, o entendimento da mobilidade populacional “como o direito de ir e vir,

como uma liberdade exercida por indivíduos livres” (RUA, 2003, p. 182). Essa

decisão individual de migrar ou não, seria reflexo de uma postura racional de cada

pessoa. A atitude racional de cada indivíduo levaria em consideração os atributos do

local de destino relacionados às condições básicas de existência do ser humano,

tais como uma melhor remuneração, melhores condições de ascensão social ou

maior oferta de emprego. Sendo assim, os “trabalhadores e capitalistas orientam seu

comportamento econômico – no qual se incluem os deslocamentos no espaço –

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segundo um desejo de maximização de ganhos em termos de remuneração do

trabalho ou do capital investidos” (PÓVOA NETO, 1997, p. 16).

Um dos principais trabalhos sobre migração dentro do enfoque neoclássico

é a obra de Ravenstein, intitulada As leis da migração (BECKER, 1997). Nesse

texto, o referido autor inglês “faz um estudo dos deslocamentos espaciais no Reino

Unido e estabelece que as migrações ocorrem, fundamentalmente, das áreas que

apresentam abundância de mão-de-obra para aquelas em que é escassa”

(ARAGÃO, 2004, p.50). Essas teorias [...] podem ser qualificadas como ‘neoclássicas’ pela continuidade que

representam quanto às preocupações dos economistas ditos ‘clássicos’, ao

lidarem com a questão do equilíbrio econômico e da função do trabalho no

mesmo. Para eles, a mobilidade do trabalho deveria ser perfeita,

acompanhando a tendência geral da circulação das mercadorias num

espaço que tendia a homogeneização (PÓVOA NETO, 1997, p. 16).

Por fim, destacamos que a visão neoclássica das migrações desconsidera

o caráter histórico desse fenômeno, descartando dessa forma, os fatores estruturais

que os influencia e os determina.

A segunda vertente teórica que trata do fenômeno migratório é a Histórico-

Estrutural. Dentro dessa vertente, ao contrário da visão Neoclássica, a idéia da

migração como fruto de uma vontade individual é fortemente combatida,

privilegiando-se a análise dos contextos históricos nos quais se processam as

migrações, segundo por Póvoa Neto (1997 p.17): [...] se a concepção anterior colocava toda a ênfase na decisão soberana

do indivíduo inserido na dinâmica do mercado capitalista, o que se tem

agora é a análise de grupos e classes sociais a sofrer a força de estruturas

sociais que explicam a maior ou menor propensão para a migração.

Na perspectiva histórico-estrutural, há uma excessiva ênfase na análise da

estrutura social das sociedades, chegando ao ponto muitas vezes de desconsiderar

os próprios migrantes como fontes de informação para o entendimento do processo

migratório, “já que os indivíduos, apesar de serem fonte de informação, não trazem

em si a explicação dos processos vivenciados” (PÓVOA NETO, 1997, p. 17). Na

Geografia, essa perspectiva privilegia os estudos regionais, visto “que o diagnóstico

das características estruturais das áreas de origem de migrantes pode fornecer

elementos para a explicação dos deslocamentos, atuais ou futuros” (PÓVOA NETO,

1997, p. 17).

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Nesse sentido, a migração é tratada como reflexo das disparidades de

desenvolvimento entre as regiões. Por conseguinte, “costuma destacar a vocação

estrutural do capitalismo a um desenvolvimento desigual/desequilibrado no espaço”

(RUA, 2003, p. 183).

A terceira e última vertente teórica que trata do fenômeno migratório é

aquela que tem Gaudemar como principal proponente (PÓVOA NETO, 1997), e que

com base “principalmente na teoria marxista do trabalho, propõe um enfoque

baseado no conceito de mobilidade do trabalho” (PÓVOA NETO, 1997, p. 19).

Nessa concepção, o fenômeno migratório é entendido como mobilidade da

força de trabalho. Essa mobilidade seria promovida pelos movimentos do capital no

seu processo de reprodução. Dessa forma, o migrante trabalhador, como portador

de força de trabalho, entendido aqui como detentor de capacidade física e mental,

submete seu comportamento às exigências do capital. Com isso, o fenômeno

migratório passou a ser encarado como a sujeição do trabalho, que é a força de

trabalho em ação, ao capital. Por se tratar de um processo em que o trabalhador se

“aventura” no espaço mediante interesses do capital, o processo migratório é algo

forçado para o trabalhador e não fruto de uma decisão espontânea.

Nessa perspectiva, a mobilidade do trabalho em sua dimensão espacial, ou

migração, “pode ser considerada a capacidade da força de trabalho de conquistar

vastas extensões, o espaço geoeconômico, isto é, o espaço através do qual o

trabalho se expande para formar o mercado de trabalho” (BECKER, 1997, p.334).

Apesar de serem contribuições de grande importância para os estudos que

abordam o fenômeno migratório, as vertentes teóricas expostas anteriormente se

mostram, ao nosso ver, com algumas limitações para o estudo aqui pretendido.

Nesse sentido, é do nosso interesse não nos comprometermos com essa ou aquela

vertente teórica, evitando assim, um pré-direcionamento da análise, o que de início

amarraria nosso entendimento sobre a realidade estudada a algo já preconcebido.

Entendemos que a análise deve partir da realidade empírica por nós estudada, já

com uma fundamentação teórica, mas não preconcebidas por ela.

A partir desse pressuposto, entendemos que duas vertentes teóricas, dentre

as expostas, fornecem elementos interessantes para a analise do processo

migratório vivenciado pelos redeiros. Primeiro, a vertente Histórico-estrutural, por

destacar a importância de se considerar o contexto sócio-histórico no qual se

processa a migração. Essa postura se torna válida para o nosso objeto de análise,

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uma vez que as condições de difícil acesso a emprego na cidade de Brejo do Cruz-

PB são decisivas no entendimento das razões que levam os redeiros a migrar. Em

segundo lugar, destacamos a vertente da mobilidade do trabalho, por essa enfatizar

o constrangimento aos quais os migrantes se submetem ao migrar em busca de

trabalho, como ocorre com os redeiros.

No que diz respeito à caracterização empírica do processo migratório

vivenciado pelos redeiros sentimos uma certa dificuldade para definirmos alguns

elementos ou mesmo chegarmos a informações mais precisas, dada a sua

constante mobilidade. Dessa forma, não podemos apresentar dados precisos quanto

à distancia do deslocamento, aos locais de destino, assim como quanto ao tempo

que os redeiros permanecem em cada lugar. Por conseguinte, poderíamos

classificar o processo migratório dos redeiros dentro das chamadas “migrações

repetidas”, como define Povoa-Neto (1997). Essas migrações “consistem em

mudanças residenciais sucessivas, realizadas individualmente ou em grupos,

implicando em intervalos de permanência extremamente curtos e dificilmente

detectáveis estatisticamente” (PÓVOA NETO, 1997, p.13).

Além do destaque às questões mencionadas anteriormente, torna-se

interessante estudar os reflexos da mobilidade na vida cotidiana dos migrantes,

dando destaque às interações sociais construídas por esses trabalhadores,

principalmente no que se refere às relações construídas nos postos de

combustíveis, portanto, não perdendo de vista a sociabilidade construída no

processo migratório. Constatamos que o estudo desses elementos se mostra

ausente na análise das principais vertentes teóricas, como bem já enfatiza Santos

(2005, p. 52)

A experiência cotidiana dos que saem de um lugar para outro, a

variabilidade de suas práticas sociais, as estratégias e recursos que

disponibilizam, os contatos tecidos no trajeto da migração, as relações de

sociabilidade entre os migrantes e as articulações internas e externas ao

seu grupo apresentavam-se ausentes das análises macroestruturais.

Outro aspecto importante a se destacar neste trabalho e que particulariza

ainda mais a análise do processo migratório vivenciado pelos redeiros, diz respeito

ao fato desses deslocamentos se constituírem como temporários, já que, na grande

maioria das vezes, os redeiros retornam periodicamente à cidade de Brejo do Cruz-

PB.

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Pelo exposto, para compreendermos o processo migratório dos vendedores

de redes de dormir, procuramos também compreender as migrações temporárias. A

partir das leituras realizadas, constatamos que os estudos relacionados às

migrações temporárias “são numericamente bastante reduzidos, sem contar que,

pela dificuldade em quantificar os indivíduos envolvidos, elas escapam às análises

dos Censos Demográficos e outras que visam à apreensão dos grandes fluxos

migratórios” (SILVA, 2005, p.60).

Para melhor compreender o significado da migração temporária,

destacamos a conceituação dada por Martins (1986). De acordo com esse autor, se

do ponto de vista demográfico, a duração da viagem é de essencial importância no

estudo das migrações temporárias, do ponto de vista sociológico, “o essencial é a

concepção de ausência”. Nesse sentido,

É temporário, na verdade, aquele migrante que se considera a si mesmo

“fora de casa”, “fora do lugar”, ausente, mesmo quando, em termos

demográficos, tenha migrado definitivamente [...]. Se a ausência é o núcleo

da consciência do migrante temporário, é porque ele não cumpriu e não

encerrou o processo de migração, com seus dois momentos extremos e

excludentes: a dessocialização nas relações sociais de origem e a

ressocialização, nas relações sociais de “adoção”. Ele se mantém, pois, na

duplicidade de suas socializações [...]. É sempre o outro, o objeto, e não o

sujeito. É sempre o que vai voltar a ser e não o que é. A demora deste

reencontro define o migrante temporário. (MARTINS, 1986, p.49-50).

Percebemos no exposta acima, que o que define o migrante temporário, a

partir de uma perspectiva sociológica, é o sentimento do migrante de não pertencer

ao lugar onde se encontra e de sentir falta do lugar de origem. Aqui não se leva em

consideração a periodicidade de retorno do migrante ou quantas vezes ele retorna

ao local de origem.

Outro autor que dá uma importante contribuição para o entendimento do

migrante no sentido de elucidar o seu real significado, e agora não só o temporário,

é Sayad (2000). Para esse autor, o migrante só deixa de ser migrante quando o

mesmo não mais se considera assim. Essa situação só se consolida no momento

em que o migrante não se vincula a sua terra de origem, não mantém qualquer tipo

de sentimento em relação a sua terra natal, anulando dessa forma, qualquer

possibilidade de retorno às suas origens.

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Dessa forma, uma das principais características do migrante, é mesmo ter

vontade de retornar. Assim, o retorno seria um elemento central na condição do

migrante. Nesse sentido, Sayad (2000, p.11) afirma que O imigrante só deixa de sê-lo quando não é mais assim denominado e,

conseqüentemente, quando ele próprio assim não mais se denomina, não

mais se percebe como tal. E a extinção desta denominação apaga, a um só

tempo, a questão do retorno inscrito na condição do imigrante. Pelo exposto e com base nos depoimentos dados pelos redeiros, podemos

afirmar a sua condição de migrante, condição que pode também ser definida como

uma migração repetida conforme entende Povoa Neto, mas também como

temporária de acordo com Martins. Migração temporária já que os períodos de

permanência nos lugares são extremamente curtos e também dificilmente

quantificáveis. Também podemos ainda caracterizar os redeiros como migrantes

temporários uma vez que eles sempre voltam ao lugar de origem. E ainda podemos

reafirmar a condição de migrante já que o desejo de retornar está sempre presente.

Nesse movimento migratório de deslocamento e de fixações, ora mais

eventuais e momentâneos, ora mais duradouros, os redeiros vão imprimindo no

espaço o(s) seu(s) território(s) e construindo a sua territorialidade. Conceitos estes

que merecem melhor apresentação, assim como faremos a seguir.

3.2- O território: uma introdução conceitual

O conceito de território, importante instrumento de análise para o

entendimento de fenômenos sociais na atualidade, originou-se, como conceito

“dentro das ciências naturais, na botânica e na zoologia” (MACHADO, 1997, p. 24).

Segundo essa autora, os estudos que tratavam do território dentro dos ramos do

conhecimento científico citados anteriormente, “designavam território como área de

disseminação de espécies vegetais e animais” (MACHADO, 1997, p.24).

Na Geografia, a noção de território aparece inicialmente nos estudos do

geógrafo alemão Friedrich Ratzel, principalmente na sua obra “Antropogeografia”,

publicado no ano de 1882. Em trabalho sobre a obra de Ratzel, Antonio Carlos

Robert Morais (1990, p.23) destaca que para Ratzel, o território seria “uma

determinada porção da superfície terrestre apropriada por um grupo humano”.

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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Nesse sentido, verifica-se que na concepção de Ratzel, a propriedade, como posse,

qualifica o território, “numa concepção que remonta às origens do termo na zoologia

e na botânica (onde ele é concebido como área de dominância de uma espécie

animal ou vegetal)” (MORAIS, 1990, p.23). No entanto, apesar de fortemente

influenciado pelas ciências naturais, Ratzel propôs o território a partir de uma

perspectiva política, já que, para esse autor, o território seria um espaço de

apropriação de um grupo social por meio do estado.

Desde então e basicamente até a década de 1960, o território passa a ser

uma categoria geográfica, principalmente dentro da chamada geografia política

clássica, privilegiando o Estado-Nação como “única instância territorial de poder”

(MACHADO, 1997, p. 24). Desse modo, a perspectiva política se fez determinante

nos estudos sobre território, fato esse destacado por Haesbaert (2004 p.62):

“mesmo em meio a uma enorme diversidade de perspectivas, o território vai ganhar

ampla tradição no campo das questões políticas”.

Imerso durante muito tempo na perspectiva do Estado-Nação, o conceito de

território se revitaliza nos estudos geográficos a partir da década de 1960, como

resultado das profundas modificações sociais e econômicas que começaram a

acontecer nesse período. Essas modificações, resultantes de fortes avanços no

meio técnico, principalmente nas áreas de comunicação e transporte, impulsionaram

o processo de internacionalização da economia mundial, tendo a globalização da

economia como seu estágio final. Segundo Machado (1997, p.25), se por um lado, a globalização possibilita e integra, através de suas redes

técnicas, mercados e lugares em escala jamais alcançadas, por outro,

provoca grandes fragmentações e desigualdades territoriais que

ultrapassam as discussões limitadas ao Estado-Nação.

A emergente realidade criada pelo processo de globalização da economia

provocou novas formas de organização sócio-territorial, exigindo da geografia novas

e mais eficazes posturas teórico-metodológicas para o entendimento das novas

realidades territoriais, diferentes da perspectiva que entende o território unicamente

como o espaço de atuação do Estado-Nação.

Como fruto desse processo, percebemos na atualidade uma enorme

polissemia no que se refere à utilização do conceito de território. Sobre essa

variedade de perspectivas teóricas, Haesbaert (2004, p.40) propõe um modelo

classificatório no qual destaca a existência de três vertentes básicas:

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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- Política (referente às relações espaço-poder em geral) ou jurídico-

política (relativa também a todas as relações espaço-poder

institucionalizadas): concepção mais difundida, em que o território é visto

como um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um

determinado poder, na maioria das vezes – mas não exclusivamente –

relacionada ao poder político do estado.

- Cultural (muitas vezes culturalista) ou simbólico-cultural: prioriza a

dimensão simbólica e mais subjetiva, na qual o território é visto,

sobretudo, como o produto da apropriação/valorização simbólica de um

grupo em relação ao seu espaço vivido.

- Econômica (muitas vezes economicista): menos difundida, enfatiza a

dimensão espacial das relações econômicas, o território como fonte de

recursos e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na relação

capital-trabalho, como produto da divisão “territorial” do trabalho, por

exemplo.

A concepção de território que permeia nosso trabalho, parte do pressuposto

de que o referido conceito deve ser analisado como fruto de relações sócio-

históricas, implicando, desta forma, a existência de relações de poder.

A noção de território nos remete, a princípio, à idéia de base física,

substrato material. Entretanto, partimos do principio de que o território não é o

substrato material, o espaço físico em si, mas sim um conjunto de relações sociais

mediadas por uma determinada base material. Advém daí o caráter relacional do

território.

Tendo como base teórica de nosso trabalho a concepção de território já

exposta, temos os trabalhos desenvolvidos por Souza (2003) e Haesbaert (2002,

2004, 2005), como nosso principal referencial teórico, visto que esses autores

entendem o território a partir de uma perspectiva relacional, ou seja, o território como

fruto de relações sociais mediadas pelo espaço. Entendemos que, dada a

importância adquirida pelos referidos autores no meio acadêmico brasileiro, além da

profunda e alternativa produção dos mesmos, os escritos de Souza e Haesbaert nos

oferecem um suficiente e excelente aporte teórico.

Em conhecido ensaio sobre o conceito de território, Souza (2003),

enfatizando o caráter relacional desse conceito, destaca o território como sendo “um

espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder” (SOUZA, 2003 p.

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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78). No mesmo texto, esse autor destaca a necessidade de se renovar o referido

conceito, destacando que “é imperioso que saibamos despi-lo do manto de

imponência com o qual se encontra, via de regra, adornado” (SOUZA, 2003, p.81).

Essa renovação requerida por Souza (2003), refere-se ao fato, já exposto

anteriormente, de que o conceito de território esteve atrelado durante muito tempo à

escala de domínio do Estado-Nação. Sendo assim, o autor propõe uma flexibilização

do conceito de território, ampliando seu horizonte conceitual, vendo-o como “um

campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais” (SOUZA, 2003, p.86).

Outra importante contribuição teórica sobre o conceito de território nos é

oferecido pelo francês Claude Raffestin (1993). Esse autor destaca que o espaço é

anterior ao território, sendo o último construído a partir do primeiro. Ainda de acordo

com esse autor, o território “é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia

e informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder”

(RAFFESTIN, 1993, p.144). Dessa forma, percebemos que Raffestin entende o

território como fruto de relações de poder, ou relações sociais projetadas no espaço.

Entretanto, Sousa (2003), apesar de concordar com Raffestin (1993) que o

espaço é anterior ao território, critica o mesmo por entender “que esse autor incorre

no equívoco de ‘coisificar’, ‘reificar’ o território, ao incorporar ao conceito o próprio

substrato material” (SOUZA, 2003, p.96), isso por confundir o território com o espaço

social.

Segundo Sousa (2003, p.96), “Raffestin praticamente reduz espaço ao

espaço natural, enquanto que território de fato torna-se, automaticamente, quase

que sinônimo de espaço social. Isto empobrece o arsenal conceitual à nossa

disposição”. Sendo assim, Souza critica a postura material e não relacional do

território proposto por Raffestin (1993), afirmando que Ao que parece, Raffestin não explorou suficientemente o veio oferecido por

uma abordagem relacional, pois não discerniu que o território não é o

substrato, o espaço social em si, mas sim um campo de forças, as relações

de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um

substrato referencial. (SOUZA, 2003, p. 97).

Portanto, o território se constrói a partir da relação estabelecida entre um

conjunto de relações de poder ou sociais e um dado substrato material. Entretanto,

apesar das relações sociais serem o elemento central no processo de construção de

territórios, Haesbaert (2004, p.81) nos alerta para o fato de que “devemos

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justamente ter cuidado para não sugerir um excesso de sociologização”, no sentido

de que não acabemos, segundo o mesmo autor, “desgeografizando o território,

abstraído da base social-geográfica como condição indispensável à realização

destas relações” (p. 81).

Como bem sabemos, as sociedades produzem seus espaços através das

formas as mais diversas, envolvendo, desta maneira, diferentes relações de poder.

Nesse sentido, Haesbaert (2004, p.93) afirma que “o território, relacionalmente

falando, ou seja, como mediação espacial do poder, resulta da interação

diferenciada entre as múltiplas dimensões do poder”.

Sendo assim, a análise dos territórios deve levar em consideração os tipos

de relações sociais que determinado grupo social estabelece com o espaço, ou seja,

a forma como o mesmo se territorializa. Nesse sentido, Haesbaert (2002, 2004,

2005) propõe duas formas de relação com o espaço, tendo como base, as idéias de

dominação e apropriação propostas por Henri Lefebvre (1986).

De acordo com Haesbaert (2005, p.6774), “Lefebvre distingue apropriação

de dominação (“ possessão”, “propriedade”), o primeiro sendo um processo muito

mais simbólico, carregado das marcas do ‘vivido’, do valor de uso, o segundo mais

concreto, funcional e vinculado ao valor de troca”. Sendo assim, o processo de

apropriação envolveria relações de caráter simbólico, enquanto que o processo de

dominação envolveria relações de caráter funcional, dentro de uma perspectiva

político-econômica.

Portanto, a construção de territórios envolveria necessariamente esses dois

processos, o de dominação e apropriação do espaço, dependendo do tipo de

relação que determinada sociedade estabelecesse com “seu” espaço. Portanto,

“poderíamos falar em dois grandes ‘tipos ideais’ ou referências ‘extremas’ frente aos

quais podemos investigar o território, um mais funcional, outro mais simbólico”

(HAESBAERT, 2005 p.6777).

Podemos então dizer que o território, como fruto de relações sociais

mediadas pelo espaço,

É o produto de uma relação desigual de forças, envolvendo o domínio ou

controle político-econômico do espaço e sua apropriação simbólica, ora

conjugados e mutuamente reforçados, ora desconectados e

contraditoriamente articulados. (HAESBAERT, 2002. p.121).

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Com base no texto de Odette Carvalho de Lima Seabra (1996), verifica-se

que os processos de dominação e apropriação, assim como proposto por Henri

Lefebvre, são discutidos por esse autor a partir de sua concepção de uso, esse

sendo fundante de seu pensamento. Seabra (1996) destaca que o uso é analisado

pelo referido autor a partir do conflito entre dois momentos: “um que denominou

racional, o da dominação pela técnica, pelos instrumentos, pela lógica, e outro o da

apropriação, que inclui o afetivo, o imaginário, o sonho, o corpo, o prazer: em uma

palavra, a possibilidade da obra” (SEABRA, 1996, p.73 grifo da autora).

Pelo exposto, o processo de dominação, estaria referido ao uso por meio da

lógica, pela razão e por meio da técnica, implicando desta forma, atos práticos. Já o

processo de apropriação, seria resultado do comportamento espontâneo, a

expressão daquilo que o ser humano tem de mais natural, de biológico.

O conflito entre esses dois momentos se daria principalmente no cotidiano,

sendo este, o nível da existência onde ocorreriam estes processos. Assim, “o

cotidiano é ao mesmo tempo abstrato e concreto, institui-se e constitui-se a partir do

vivido” (SEABRA, 1996, p.76-77).

Para Lefebvre, os conflitos entre o uso por meio da dominação e o uso por

meio da apropriação “se desenrolam ao longo da história, mas só se tornam

explícitos no mundo moderno, em seu âmbito cotidiano” (SEABRA, 1996, p.74).

Partindo do pressuposto de que haveria uma “prevalência da lógica, da razão como

sentido de mundo” (SEABRA, 1996, p.71), a sociedade moderna presenciaria um

processo de artificialização, invadindo e dominando o cotidiano, transformando-o,

passando de vivido para concebido, ou seja, um cotidiano pensado. Logo, os

processos de dominação e de apropriação estariam relacionados a diferentes

formas de uso perante o cotidiano, este sendo ora concebido, ora vivido.

Com base no exposto, analisaremos como os processos de dominação e

apropriação se manifestam no cotidiano dos redeiros, no âmbito do vivido destes

trabalhadores.

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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3.3- Dominação e Apropriação: elementos da construção da

territorialidade dos redeiros

A partir do conceito de território exposto acima, procuramos analisar as

formas que os redeiros se territorializam nos postos de combustíveis, local onde os

mesmos pousam durante seus itinerários, assim como no Bairro Jardim dos Buritis

na cidade de Aparecida de Goiânia, no estado de Goiás17.

Assim, essas duas realidades territoriais serão analisadas com base na

perspectiva de território defendida por Haesbaert, ou seja, o território construído a

partir dos processos de dominação e apropriação do espaço. Conforme já

ressaltamos, a dominação do espaço dá-se através das relações de caráter

funcional, em uma perspectiva político-econômica, já a apropriação, caracteriza-se

nas relações de caráter simbólico, em uma perspectiva cultural.

3.3.1 O lugar de apoio: o posto de combustível

O posto de combustível é um espaço de grande importância no processo

de comercialização realizado pelos redeiros de Brejo do Cruz-PB. De início, faz-se

necessário destacar o seu caráter funcional e econômico. O posto de combustível é

o principal ponto de parada dos redeiros nas cidades por onde esses passam

durante seus itinerários. Os redeiros usam os postos principalmente para dormir,

utilizando notadamente os pátios, muitos sequer possuindo qualquer tipo de abrigo;

para tomar banho, visto que os postos disponibilizam banheiros para seus

freqüentadores e para fazerem refeições nos restaurantes existentes nesses locais.

Além de suprir essas necessidades básicas dos redeiros, os postos de combustíveis 17 Sabemos que se tratam de realidades distintas e também de territorialidades diversas. Priorizaremos a análise sobre os postos de combustíveis, contudo não poderíamos deixar de apresentar mesmo que em linhas gerais o denominado Bairro dos Redeiros na Cidade de Aparecida de Goiânia, local este também visitado por nós durante o trabalho de campo.

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servem, assim como já assinalamos no relato do trabalho de campo, para que os

redeiros realizem algumas tarefas próprias do processo de comercialização de suas

mercadorias, como aquela que diz respeito à distribuição de mercadorias aos

redeiros vendedores (Figura 31).

Figura 31: Redeiro proprietário no trabalho de distribuição das mercadorias aos redeiros vendedores num pátio de posto de combustível na cidade de

Euclides da Cunha-BA. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

Diante da análise dessas relações práticas e funcionais que os redeiros

mantém com os postos de combustíveis, entendemos que esses trabalhadores, ao

estabelecerem através dos postos, relações de controle sobre suas atividades,

proporcionando assim a continuidade das mesmas, acabam se territorializando.

Sobre isso, Haesbaert (2004, p.97) destaca que, “territorializar-se, desta forma,

significa criar mediações espaciais que nos proporcionem efetivo ‘poder’ sobre

nossa reprodução enquanto grupos sociais (para alguns também enquanto

indivíduos)”.

Ao utilizarem funcionalmente os postos de combustíveis, seja para dormir,

tomar banho ou para fazer refeições, os redeiros estabelecem uma relação de

controle nesses espaços. É por meio desse controle que os redeiros conseguem

viabilizar a atividade comercial que realizam. Dessa forma, diante de suas

necessidades, os redeiros criam uma relação de dominação com o espaço, ao

construírem uma relação de controle físico e funcional nos postos de combustíveis.

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No entanto, é necessário destacar a precariedade inerente ao exercício desse

controle que, muitas vezes, inexiste.

Conforme exposto no capítulo anterior, a atividade realizada pelos redeiros

possui características de extrema precariedade no que se refere às condições de

trabalho. Essa precariedade se revela em inúmeros aspectos do trabalho realizado

pelos redeiros, quais sejam: péssimas condições de viagem, de estada nos postos

de combustíveis, além do fato de estarem desprovidos de seus direitos trabalhistas.

Dessa forma, verificamos um elevado grau de dificuldade que os redeiros têm no

sentido de manter o controle sobre a atividade que realizam.

Em alguns casos, a dificuldade dos redeiros no controle dos seus espaços

de vivência, os postos de combustíveis, mostra-se quando muitas vezes eles não

são aceitos nesses estabelecimentos, sendo impedidos de aí permanecerem.

Por outro lado, além da relação de dominação estabelecida pelos redeiros

nos postos de combustíveis, e que aqui nós a entendemos como sendo de caráter

material ou funcional, verificamos a existência, nos postos, de relações de caráter

simbólico entre os redeiros, principalmente no que diz respeito à identidade mantida

por esses trabalhadores nesses espaços.

A respeito do conceito de identidade, Haesbaert (1999) diz que a

Enciclopédia Universalis distingue três diferentes abordagens sobre o tema:

uma, mais ampla, derivada da filosofia, onde autores como Frege

observam que a identidade é ‘indefinível’, pois se toda definição é uma

identidade , a identidade não pode ser definida; outra, no âmbito da

psicologia, se ocupa da natureza da identidade pessoal, individual, e , por

fim, no âmbito da antropologia, destaca-se tanto o debate sobre a

identidade das coisas quanto aquele, mais difundido, sobre a identidade

social ou coletiva. (p. 172-173)

Diante da realidade empírica por nós aqui estudada, entendemos que a

perspectiva antropológica sobre a identidade, principalmente aquela que envolve a

identidade social, é a que mais pode contribuir com a nossa análise.

A identidade social, ou seja, aquilo que distingue os grupos sociais, seja no

âmbito cultural, étnico ou religioso, “implica uma relação de semelhança ou de

igualdade” (HAESBAERT, 1999, p. 173), entre os que fazem parte de um mesmo

grupo social, e que se manifesta principalmente diante da alteridade e da diferença.

Segundo Haesbaert (1999, p. 175), “a(s) identidade(s) implicam uma busca de

reconhecimento”, principalmente quando os grupos sociais são colocados de frente

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com o diferente. Sendo assim, “é no encontro ou no embate com o outro (diferente)

que buscamos nossa afirmação pelo reconhecimento daquilo que nos distingue e

que, por isto, ao mesmo tempo, pode promover tanto o diálogo quanto o conflito com

o outro” (HAESBAERT, 1999, p, 175).

A partir do exposto, é do nosso interesse discutir sobre as situações

vivenciadas pelos redeiros nos postos de combustíveis, situações que, no nosso

entender, propiciam uma efetiva apropriação do referido espaço, por meio da

manifestação de uma identidade que é inerente a esse grupo social.

Como já exposto anteriormente, geralmente em cada cidade por onde os

redeiros passam trabalhando, existe uma espécie de “posto do redeiro”, ou seja, um

posto de combustível preferencialmente “escolhido” por esses trabalhadores. Esse

posto de combustível é, na maioria das vezes, o principal ponto de encontro entre os

redeiros de diferentes carros de redes. Esses encontros ocorrem normalmente à

noite, momento fundamental de repouso.

Quando indagados sobre os principais espaços de encontro com outros

redeiros nas cidades por onde passam, os redeiros vendedores destacaram que

durante o dia, período em que estão trabalhando, os mesmos se encontram no

centro da cidade, local de grande concentração desses trabalhadores; nas praças

públicas, naqueles breves momentos de repouso durante o dia, principalmente

depois do almoço e nas rodoviárias, local muitas vezes utilizado como ponto de

encontro entre o redeiro proprietário e os redeiros vendedores depois de um dia de

trabalho. A escolha da rodoviária dá-se por ela ser um ponto muito conhecido nas

cidades, de fácil acesso, facilitando dessa forma o encontro entre os redeiros no fim

do dia. Entretanto, o posto de combustível foi o local mais citado dentre aqueles

onde os redeiros se encontram. Além do mais, os contatos estabelecidos nos

espaços referidos anteriormente são contatos rápidos, de curta duração.

O encontro entre redeiros em determinados postos de combustíveis (Figura

32), principalmente entre redeiros de diferentes carros de redes provenientes de

Brejo do Cruz-PB, indica de forma clara, a manifestação de uma identidade existente

entre esses trabalhadores, visto que os mesmos buscam um reconhecimento por

meio do encontro com aqueles que compartilham a mesma origem.

No período de nossa convivência com os redeiros durante a viagem

realizada num carro de rede, sempre escutávamos conversas sobre a perspectiva

que se tinha de encontrar algum carro de rede nas cidades por onde iríamos passar.

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Figura 32: “Paizinho” (de azul), conversando com outro redeiro proprietário num posto de combustível na cidade de Xique Xique-BA. Autoria: Luciano Dutra, agosto de 2006.

O encontro com redeiros de outros carros de rede, principalmente com

aqueles vindos de Brejo do Cruz-PB, é considerado pela maioria dos redeiros, tanto

pelos vendedores, como pelos proprietários, algo positivo, “uma coisa boa”, uma vez

que esses encontros representam um reencontro com amigos conterrâneos depois

de um certo tempo, fazendo com que os mesmos “matem as saudades”. Além disso,

esses encontros representam uma oportunidade que os redeiros têm durante a

viagem de compartilhar informações sobre sua terra de origem, sendo dessa forma,

informações de interesse de todos os redeiros.

De fato, o encontro entre redeiros nos postos de combustíveis funciona

como uma forma dos mesmos se reafirmarem enquanto grupo, no momento em que

são colocados de frente com populações diferentes e, na maioria das vezes,

desconhecidas.

Além disso, compreendemos que a identidade mantida entre esses

trabalhadores nos postos de combustíveis, acaba servindo como uma estratégia

utilizada pelos redeiros no sentido de amenizar as dificuldades encontradas no

trabalho. A esse respeito, Menezes (2002), em trabalho sobre a migração de

paraibanos para o trabalho no corte da cana de açúcar na Zona da Mata

Pernambucana e o modo como eles são tratados nos alojamentos em que moram,

destaca que

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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Os trabalhadores adaptam seus valores e relações sociais da comunidade

de origem ao ambiente hostil dos alojamentos na plantation canavieira, de

modo a não se tornarem totalmente submissos ao controle dos

administradores da usina e dos arregimentadores. (MENEZES, 2002, p.

147).

De forma análoga ao caso dos trabalhadores do corte da cana,

compreendemos que as relações de identidade tecidas pelos redeiros nos postos de

combustíveis, por meio do resgate de relações sociais gestadas na terra de origem,

atuam no sentido de amenizar as precárias e difíceis condições de trabalho às quais

estão submetidos. É justamente por isso que os redeiros gostam dos encontros com

outros redeiros de sua terra de origem.

Apesar de ser inegável a existência de uma identidade entre os redeiros, é

necessário que destaquemos o caráter territorial dessa identidade, visto que “nem

toda identidade tem no território um dos fundamentos de sua construção”

(HAESBAERT, 1999 p. 178). Sendo assim, a identidade social só adquire caráter

territorial, ou seja, só torna-se identidade territorial, “quando o referente simbólico

central para a construção desta identidade parte do ou transpassa o território”

(HAESBAERT, 1999, p.178).

A partir do exposto, entendemos ser evidente a dimensão territorial da

identidade manifestada entre os redeiros nos postos de combustíveis, devido a dois

aspectos. Primeiro, pelo fato da identidade entre os redeiros ser construída tendo a

cidade de Brejo do Cruz-PB como território de referência, espaço de origem desses

trabalhadores e com o qual os mesmos se identificam. Segundo, devido ao fato

dessa identidade ser o elemento por meio do qual os redeiros se apropriam

simbolicamente dos postos de combustíveis, construindo assim, seus territórios.

Aqui o território é encarado dentro de uma perspectiva simbólica, que vê “o

território como fruto de uma apropriação simbólica, especialmente através das

identidades territoriais, ou seja, da identificação que determinados grupos sociais

desenvolvem com seus ‘espaços vividos’” (HAESBAERT, 2002, p.120).

Portanto, a apropriação simbólica dos postos de combustíveis por meio da

identidade mantida entre os redeiros torna-se a segunda forma por meio da qual

esses trabalhadores se territorializam nesses espaços.

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3.3.2 O Bairro Jardim dos Buritis em Aparecida de Goiânia-GO

Conforme já assinalamos, apesar da maioria dos redeiros viver em

constante mobilidade, trabalhando de cidade em cidade, muitos outros trabalham em

locais determinados. Essa prática, geralmente acontece em grandes cidades,

principalmente em capitais estaduais. Como exemplo dessa realidade, temos o

Bairro Jardim dos Buritis, localizado na cidade goiana de Aparecida de Goiânia.

De antemão, é mister destacar que nossa análise da realidade territorial dos

redeiros que vivem no Bairro Jardim dos Buritis tem como fonte exclusiva de

informação a realidade por nós apreendida durante os dois dias em que estivemos

no referido bairro. Sendo assim, não temos pretensão de fazer uma análise mais

aprofundada dessa realidade, até mesmo por não ser esse o nosso objeto de

análise.

Percebemos que existem algumas vantagens para os redeiros quando os

mesmos se fixam por um determinado período numa mesma cidade. Dentre essas

vantagens, podemos destacar a melhoria nas condições de estada, uma vez que

normalmente alugam casas nas cidades onde se fixam, o que possibilita melhores

condições de segurança e comodidade, já que passam a ter um local certo para

tomar banho e dormir. Além disso, outra vantagem se refere ao fato dos redeiros

não estarem viajando diariamente entre cidades, fato que diminui o cansaço e o

risco de um eventual acidente nas estradas.

No que se refere aos redeiros do Bairro Jardim dos Buritis, percebemos

que, apesar de trabalharem principalmente na cidade de Goiânia, muitos adotam a

prática de “dar um balão”, ou seja, viajar por um período, trabalhando nas cidades

do interior do estado, retornando depois a Aparecida. Conforme já exposto, muitos

redeiros estavam “dando um balão” no momento em que estivemos no Bairro Jardim

dos Buritis.

Com base nos relatos de alguns redeiros proprietários, que também

admitiram se fixar em determinadas cidades periodicamente, pudemos verificar

outras cidades brasileiras onde os redeiros chegam a “morar” por um determinado

período. Dentre essas cidades, podemos destacar as seguintes: Belo Horizonte/MG,

Brasília/DF, Vitória/ES, Mossoró/RN, Barra Velha/SC.

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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Assim como na análise da construção da territorialidade dos redeiros nos

postos de combustíveis, a análise da construção da territorialidade daqueles que

vivem no Bairro Jardim dos Buritis também será feita a partir das relações que os

redeiros estabelecem com o referido bairro. Sendo assim, mais uma vez recorremos

aos processos de dominação e apropriação do espaço, de acordo com Haesbaert.

A relação de dominação estabelecida entre os redeiros e o Bairro Jardim

dos Buritis evidencia-se pela função de moradia do referido bairro, tendo dessa

forma, um caráter prático. Sendo assim, é por meio dessa relação funcional e

prática, a de morar, que os redeiros se territorializam no referido bairro.

Além da relação de dominação, verificamos uma apropriação simbólica do

Bairro Jardim dos Buritis, visto que o mesmo se torna palco de manifestação da

identidade entre os redeiros, assim como acontecem nos postos de combustíveis.

Sobre isso, mais uma vez recorremos a Haesbaert que diz: “toda relação de poder

espacialmente mediada é também produtora de identidade, pois controla, distingue,

separa e, ao separar, de alguma forma nomeia e classifica os indivíduos e os grupos

sociais” (2004 p. 89).

A identidade se manifesta através da busca de reconhecimento dos grupos

sociais diante da alteridade, ou seja, da diferença. No que se refere à identidade dos

redeiros como grupo social, um fato merece destaque. No “bairro dos rederios”

existe um time de futebol composto exclusivamente por redeiros, e que é identificado

pelo nome de “time dos redeiros”, com direito à inscrição da palavra redeiros nas

camisas dos jogadores. No domingo quando estive em Aparecida o “time dos

redeiros” participou de um jogo final num campeonato entre times do bairro.

Outro aspecto que também evidencia a identidade dos redeiros que moram

no referido bairro se manifesta principalmente nos momentos de lazer, sendo o bar

de “Zé Má” um ponto de referência para essas manifestações.

Outro fato que evidencia a manifestação da identidade entre os redeiros no

Bairro Jardim dos Buritis, diz respeito ao fato de os redeiros tenderem a se

aglomerar em determinado local nas cidades onde se fixam, fato esse, que

evidencia a busca de reconhecimento por parte dos redeiros.

Sendo assim, a identidade manifestada entre os redeiros no Bairro Jardim

dos Buritis, assim como aquela nos postos de combustíveis acaba servindo como

uma forma de amenizar a distância de casa e as dificuldades inerentes à vida de

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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redeiro, visto que, segundo vários redeiros, “estar em Aparecida é mesmo que estar

em Brejo”.

3.4- Interações sociais entre redeiros nos postos de combustíveis

Aqui, interessa-nos a análise da rede social primária, aquela resultante “das

relações sociais do cotidiano mais próximo espacialmente” (SCHERER-WARREN,

2005, p.30). Assim, nosso objetivo assemelha-se ao de Menezes (2002) quando se

propôs a fazer uma análise da rede de relações sociais entre migrantes paraibanos

residentes em alojamentos em usina de cana de açúcar na Zona da Mata

pernambucana. Tencionamos com isso, entender a importância dessa rede de

relações entre os redeiros a nível local na organização territorial dos redeiros em

escala nacional, análise que será apresentada no último subcapítulo.

Vale frisar de início que, apesar das relações sociais construídas pelos

redeiros quando estão viajando ocorrerem principalmente de forma interna a esse

grupo de trabalhadores, os mesmos também estabelecem relações sociais com

pessoas das cidades por onde passam. Acreditamos que essas relações externas

ao grupo acontecem principalmente durante o dia, quando os redeiros vendedores

estão comercializando as mercadorias. Muitos redeiros vendedores disseram

estabelecer relações e por vezes fazer amizades nas cidades por onde passam,

principalmente com comerciantes, donos de restaurantes, fregueses. Além disso,

muitos outros, e agora não só vendedores, afirmaram conhecer e conversar com

frentistas, caminhoneiros e funcionários de restaurantes, sendo essas relações

tecidas nos postos de combustíveis.

Sobre a sociabilidade de grupos sociais nos postos de combustíveis, Santos

(2004) em trabalho sobre os caminhoneiros, enfatiza que, em virtude desses

trabalhadores se manterem determinados períodos viajando, ficando dessa forma,

muito tempo fora de casa, seu pouco convívio social se dá justamente nos postos,

principal local de parada para esses trabalhadores. Sendo assim, “para os

caminhoneiros, o posto é o principal espaço de sociabilidade” (SANTOS, 2004,

p.318).

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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No que diz respeito às interações sociais tecidas nos postos de

combustíveis pelos redeiros migrantes provenientes da cidade de Brejo do Cruz/PB,

verificamos uma predominância de interações sociais que privilegiam relações de

solidariedade e daquelas relações que explicitam a identidade existente entre esses

trabalhadores. Nesse sentido, optamos por destacar esses dois tipos de relações.

De acordo com o que já frisamos neste trabalho, o posto de combustível é o

espaço onde os redeiros mais interagem socialmente, seja entre redeiros que viajam

no mesmo carro de rede ou não. Essas interações se dão principalmente à noite,

pois durante o dia os redeiros estão muito ocupados trabalhando.

A vida cotidiana dos redeiros vendedores, o seu dia-dia, está marcada por

uma rotina de comportamentos. Sua jornada de trabalho inicia-se bem cedo, às 6

horas da manhã. Depois de passar o dia inteiro trabalhando, percorrendo as ruas da

cidade, a maioria dos redeiros vendedores retorna ao posto no final da tarde.

Quando não estão de partida para outra cidade, a primeira coisa que procuram fazer

ao chegar no posto de combustível é tomar banho, para em seguida, jantar. Depois

de satisfeitas essas necessidades básicas, alguns redeiros procuram se entreter de

alguma forma, seja assistindo televisão, principalmente no restaurante do posto, seja

jogando baralho ou dominó. Outros, disseram freqüentar bares, para beber alguma

coisa e/ou para jogar sinuca. Já outros disseram ter o costume de freqüentar

sorveterias. No entanto, apesar de parte dos redeiros procurarem alguma forma de

se entreter, outros preferem ir logo dormir, devido ao cansaço de um dia trabalho e

por ter que acordar bem cedo no dia seguinte. De forma geral, o redeiro proprietário

permanece o dia inteiro no posto de combustível, esperando o retorno dos redeiros

vendedores.

Contudo, a principal forma de entretenimento relatada pelos redeiros, assim

como por nós verificado, diz respeito às relações que os mesmos tecem nos postos

de combustíveis à noite, especialmente quando encontram redeiros conterrâneos,

pertencentes a outros carros de rede.

Ao longo da viagem de campo como já exposto, nos encontramos com

outros quatro carros de redes em alguns postos de combustíveis por onde

passamos. Dois dos quatros eram provenientes de Brejo do Cruz/PB, os outros dois

vinham da cidade paraibana de Vista Serrana. Em todos os contatos mantidos com

outros redeiros, houve uma aproximação, principalmente com os redeiros

provenientes de Brejo do Cruz-PB. Esses contatos tinham a função de permitir a

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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obtenção e troca de diversas informações de interesse dos redeiros, tais como:

quais os locais por onde os redeiros tinham passado; se estavam vendendo bem;

para onde iam. Sobre esse tipo de interação, percebemos a existência de um senso

de solidariedade e de ajuda mútua entre os redeiros de Brejo do Cruz-PB.

A respeito das relações de solidariedade entre os redeiros, verificamos que

esse tipo de relação envolve principalmente os redeiros proprietários. Os

proprietários de carro de rede quando se encontram, dialogam sobre o local de onde

vêm, para onde estão indo, se as vendas foram satisfatórias no local de onde vêm,

além de outros assuntos relacionados ao processo de venda. Dessa forma, nota-se

que os encontros entre os redeiros nas cidades onde trabalham, principalmente nos

postos de combustíveis, possibilita a circulação de informação que acaba por

orientá-los nos seus trajetos, favorecendo-os economicamente, na medida em que

os proprietários são informados dos melhores e piores locais para venda.

Outro elemento importante sobre as relações estabelecidas entre os

redeiros proprietários, e que ficou claro nas entrevistas, diz respeito ao fato de que

muitos deles se comunicam, principalmente aqueles que mantêm maiores laços de

amizade, quase que diariamente por telefone, com o objetivo de repassar

informações relacionadas às vendas, fato que acaba por ratificar a solidariedade já

mencionada.

Apesar das conversas sobre as vendas serem predominantes entre os

redeiros proprietários, também verificamos que esse é um assunto na pauta das

conversas entre os redeiros vendedores.

Além das relações de solidariedade, é notória a existência de relações

sociais que denotam a existência de uma identidade entre esses trabalhadores.

Conforme já visto anteriormente, é a identidade existente entre os redeiros um dos

elementos centrais na construção de seus territórios.

Sendo assim, verificamos que a identidade entre os redeiros é construída

dentro da rede de relações sociais mantidas entre esses trabalhadores. Sobre isso,

Menezes (2002, p.147) ressalta que “Moodie (1991) sugere que a identidade dos

trabalhadores migrantes, bem como a percepção de si mesmos, são adquiridas

através da formação de redes sociais baseadas em laços da comunidade de origem

e outras relações e nos valores dos migrantes”.

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Entretanto, apesar dos contatos tecidos entre os redeiros nos postos de

combustíveis gerar, pelas razões já ditas, muita satisfação entre esses

trabalhadores, pode também, em alguns casos, ter o efeito contrário.

Alguns redeiros proprietários disseram não gostar dos encontros com

redeiros de outros carros de rede. Essa postura relaciona-se ao fato de que,

segundo os redeiros proprietários, muitos redeiros vendedores diminuem seu ritmo

de trabalho devido a se entreterem demais com redeiros vendedores de outros

carros, reduzindo dessa forma, suas vendas.

Outro fato negativo destacado pelos redeiros, agora não só pelos

proprietários, se refere à diminuição das vendas devido à concorrência gerada pela

presença de muitos carros de rede numa mesma cidade, saturando a mesma.

No entanto, conforme já visto, a própria rede de solidariedade atua no

sentido de evitar os encontros de redeiros numa cidade, principalmente durante o

dia, visto que esses trabalhadores trocam informações sobre os locais onde irão

trabalhar, evitando dessa forma, encontros entre eles. Sobre isso, é interessante o

relato de um redeiro proprietário quando indagado sobre que tipo de interação ele

mantinha com outros redeiros:

Falar sobre as vendas, em que cidade eles estavam, aonde eles vão, eu é

para nós ter que trabalhar cada um numa linha num sabe? Para não estar

se encontrando, por que nesse encontro é que dá a pouca venda, num

sabe? se encontra com um carro aí a venda cai a metade ( redeiro

proprietário)

Por fim, expressamos mais uma vez a nossa opinião de que a rede social

construída pelos redeiros nos postos de combustíveis funciona como estratégia

utilizada por eles no sentido de suavizar os problemas relacionados à precariedade

de seus trabalhos, assim como os efeitos causados pela distância de sua terra de

origem. Com relação a isso, Dulce Maria Tourinho Baptista (2003), em trabalho

sobre a rede de sociabilidade criada no cotidiano de migrantes nordestinos que

moram em favela da cidade de São Paulo-SP, enfatiza que “as redes se constituem

em uma forma de resistência e mobilização social frente ao momento social que

enfrentam, de privação, miséria, desemprego, carências, precariedade habitacional”

(p.30).

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3.5- O território-rede dos redeiros

A partir das idéias desenvolvidas por Haesbaert (2002, 2004), entendemos

que os redeiros constroem uma rede de relações e, por conseguinte, um “território-

rede”.

Conforme já afirmado tantas vezes, os redeiros interagem socialmente nos

postos de combustíveis, sendo esses, como vimos, seus territórios. Toda a análise

feita até o momento foi realizada tendo o local, no nosso caso, os postos de

combustíveis, como escala de análise.

No entanto, verificamos que a rede de relações entre os redeiros, além de

solidarizar esses trabalhadores nos postos de combustíveis, permite uma conexão a

distância, ligando seus diferentes territórios. Sobre essa característica das redes,

Dias (2003 p.148) esclarece: A primeira propriedade das redes é a conexidade – qualidade de conexo –

que tem ou em que há conexão, ligação. Os nós das redes são assim

lugares de conexões, lugares de poder e de referência, como sugere

Raffestin. É antes de tudo pela conexidade que a rede solidariza os

elementos.

Sendo assim, apesar de os postos de combustíveis se constituírem em

territórios dos redeiros em nível local, também podem ser entendidos como nós ou

pontos de conexão da rede construída entre os redeiros em escala nacional. Essa

conexão se processa por meio dos fluxos de redeiros entre os nós, ou seja, entre os

postos de combustíveis. É a partir dessa perspectiva, que a rede pode ser entendida

como um conjunto de pontos conectados por meio de fluxos, e que, por conseguinte

produz o território-rede dos redeiros.

Portanto, a análise já feita sobre as interações sociais entre os redeiros nos

postos de combustíveis foi importante para que possamos entender a dimensão

territorial da rede social entre os redeiros em escala nacional: A lógica territorial também deve ser desvendada como resultado de

mecanismos endógenos – relações que acontecem nos lugares entre os

agentes conectados pelos laços de proximidade espacial – e mecanismos

exógenos – que fazem com que um mesmo lugar participe de várias

escalas de organização espacial (DIAS, 2005, p.20).

A respeito do estudo sobre redes na geografia, percebe-se que “seu uso

tem sido circunscrito às redes materiais/físicas (telecomunicações, transportes),

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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enquanto as redes sociais permanecem mais restritas ao campo da sociologia”

(SANTOS, 2005, p.58).

Além disso, também devemos estar atentos para o fato de que Nem todas as redes têm uma dimensão geográfica ou territorial nítida daí a

possibilidade de muitos estudos basicamente sociológicos sobre o tema,

como em (Scherer-warren, 1993), o geógrafo deve ter cuidado para não

confundir redes geográficas e redes em sentido mais amplo (HAESBAERT,

2002, p.123).

Uma forma de fazermos essa diferenciação é empreendermos uma análise

sobre o papel da rede na qualidade de elemento estruturador ou desestruturador de

territórios. Nesse sentido, faz-se necessário discutirmos a relação entre rede e

território (HAESBAERT, 2002, 2004).

As relações de distinção ou interação entre o território e a rede têm se

tornado uma discussão que vem ganhando força na geografia nos últimos anos

(HAESBAERT, 2002). Discute-se o papel da rede como elemento territorializador,

ou seja, construtor de territórios, assim como desterritorializador, destruidor de

territórios. Tendo como base esse debate sobre o papel da rede como elemento

importante na realidade territorial dos grupos sociais, propomos aqui uma discussão

sobre o papel da rede social entre os redeiros no processo de construção do

território-rede desses trabalhadores.

A idéia de desterritorialização comumente repassada por boa parte da

literatura vigente, e fruto de uma perspectiva tradicional, está associada à idéia de

mobilidade, de movimento, como se o movimento se opusesse ao território, sendo

um elemento responsável pela sua destruição. Já o território, seria fruto do controle

de uma área ou zona por um grupo social, território delimitado por fronteiras.

Entendemos que essa visão de território, assim como do processo de des-

territorialização “aparece desvinculada de sua contraparte indissociável, a dimensão

temporal e histórica” (Haesbaert, 2004, p.236). Acrescenta o autor:

Fruto muitas vezes dessa visão de espaço – e, em conseqüência, de

território – mais estática e quase a-temporal, o discurso da

desterritorialização torna-se assim o discurso da(s) mobilidade(s), tanto da

mobilidade material – onde destacamos a mobilidade de pessoas – quanto

da mobilidade imaterial – especialmente aquela diretamente ligada aos

fenômenos de compressão tempo-espaço, propagada pela informatização

através do chamado ciberespaço (2004, p.236)

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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Como principal representante de uma realidade espacial marcada pelo

movimento e a mobilidade, destacamos a rede, como forma de organização social.

Apesar de constatarmos que não é nenhuma novidade o papel da mobilidade na

construção de territórios, verificamos que “o que ocorre em nossos dias é que esta

forma de território moldado fundamentalmente através do elemento ‘rede’ passou a

dominar” (HAESBAERT, 2004, p. 280), principalmente com a aceleração do

movimento, fruto, em grande parte, do extraordinário desenvolvimento nos meios de

transportes e comunicações.

A associação entre mobilidade e des-territorialização ganha destaque e

importância nos dias atuais, principalmente com o advento, fruto da aceleração

dessa mobilidade, da rede como uma importante forma de organização territorial dos

grupos sociais.

Dessa forma, assim como a mobilidade está relacionada à idéia de des-

territorialização, verificamos uma forte associação, como é natural, entre a idéia de

rede e des-territorialização. Segundo Haesbaert (2004), no raciocínio de muitos

autores, dentre eles, Badie (1995), Latour (1991), Castells (1996), Berque (1995),

Lévy (2003) e Harvey (1969), verifica-se, muitas vezes de modo implícito, uma

separação entre território e rede. O mesmo Haesbaert, em tom de contestação aos

autores supracitados, ressalta que

o problema é que muitos autores, geógrafos e não-geógrafos, fazem uma

leitura a nosso ver dicotômica entre territórios e redes, como se fossem

duas unidades distintas e mesmo antagônicas, não percebendo nem

mesmo que a rede pode ser vista como um elemento constituinte do

território (2004 p 282). Entretanto, a partir de uma perspectiva mais dinâmica de território,

entendemos que o movimento e a mobilidade podem se tornar elementos

territorializadores, desde que os mesmos possibilitem um controle sobre ou pelo

espaço, além de permitirem a manifestação de identidades sociais. Sendo assim “a

territorialização pode ser construída no movimento, um movimento sobre o qual

exercemos nosso controle e/ou com o qual nos identificamos” (HAESBAERT, 2004,

p. 237), assim como por meio do qual nos identificamos.

A estruturação de uma sociedade ou grupo social em rede não se relaciona,

necessariamente, ao fenômeno de des-territorialização, pois além de significar a

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destruição de territórios, pode também significar uma reterritorialização em novas

bases.

Dessa forma, é necessário destacarmos o papel ambivalente das redes, ora

como elemento territorializador, ou construtor de territórios (quanto mais centrípeta

ou introvertida), ora como elemento des-territorializador, ou destruidor de territórios

(quanto mais centrífugas ou extrovertidas em relação a um determinado território)

(HAESBAERT, 2004).

Souza (2003) também destaca a importância da rede na organização

territorial de grupos sociais, vide o exemplo do tráfico de drogas no Rio de Janeiro.

Apesar de as organizações criminosas (principalmente o Comando Vermelho e

Terceiro Comando) se acharem espalhadas pelos espaços da cidade, mediante as

diversas favelas que controlam, cada facção criminosa se organiza em rede no

sentido de unir os diferentes nós (favelas) que lhes pertença.

Esse processo de organização em rede por parte das organizações

criminosas, segundo Souza (2003, p.93) Remete à necessidade de se construir uma ponte conceitual entre o

território em sentido usual (que pressupõe contigüidade espacial) e a rede

(onde não há contigüidade espacial: o que há é, em termos abstratos e

para efeito de representação gráfica, um conjunto de pontos – nós –

conectados entre si por segmentos – arcos – que correspondem aos fluxos

de bens, pessoas ou informações -, sendo que os arcos podem ainda

indicar elementos infra-estruturais presentes no substrato material – p. ex.,

estradas – que viabilizam fisicamente o deslocamento dos fluxos).

Sendo assim, as organizações criminosas, ao se organizarem em rede,

constroem seus territórios-rede, que Souza também chama de “território

descontínuo”, e que “é, na realidade, uma rede a articular dois ou mais territórios

contínuos” (SOUZA, 2003, p.94).

Voltando ao nosso objeto de análise, vimos ser evidente o caráter territorial

do processo de comercialização realizado pelos redeiros. Entretanto, precisamos

destacar a variabilidade com que o controle exercido pelos redeiros se dá,

principalmente devido às condições precárias de trabalho dos mesmos. Nesse

sentido é preciso que ressaltemos os diversos níveis de des-reterritorialização

vivenciados por diversos grupos sociais. Os distintos níveis de des-reterritorialização

dos grupos sociais estão

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Ligados às diferentes possibilidades que o migrante carrega em relação ao

“controle” do seu espaço, ou seja, à sua reterritorialização – o que inclui

também, é claro, o tipo de relação que ele continua mantendo com o

espaço de partida. (HAESBAERT, 2004 p. 247).

No que diz respeito ao nível de des-reterritorialização dos redeiros,

podemos fazer alguns comentários. Primeiro, levando em consideração o caráter

compulsório do processo migratório aqui em jogo, entendemos ser evidente a

existência de um processo de desterritorialização dos redeiros migrantes de Brejo do

Cruz-PB, principalmente quando esses trabalhadores perdem ou são impedidos de

exercerem um controle sobre a reprodução material de suas vidas, assim como de

suas famílias, devido à dificuldade de acesso a emprego no seu lugar de origem.

Alem disso, a partida dos redeiros acaba por privar os mesmos de uma maior

convivência, não só com seus familiares, assim como com o espaço com o qual se

identificam. Nesse sentido, verificamos a existência de um processo de

desterritorialização envolvendo os redeiros, não só no sentido material ou

econômico, como também no sentido simbólico.

Com relação ao processo de reterritorialização vivenciado pelos redeiros,

esse ocorre de forma diferenciada nas cidades por onde esses trabalhadores

passam durante suas viagens, seja nos postos de combustíveis, naquelas cidades

onde redeiros passam pouco tempo, ou ainda nas cidades onde os redeiros passam

mais tempo, chegando a “morar” nelas, a exemplo de Aparecida de Goiânia.

Além disso, podemos enfatizar que os redeiros vivem em um permanente

processo de des-reterritorialização, dado o caráter temporário de suas viagens,

vivendo dessa forma, em um permanente processo de partidas e retornos.

A rede social entre os redeiros, além de tornar-se um instrumento que

possibilita a reterritorialização dos redeiros em nível local, nos postos de

combustíveis das cidades por onde esses trabalhadores passam durante seus

itinerários, acaba sendo o elemento estruturante do processo de constituição de um

território-rede dos redeiros em âmbito nacional.

Nesse sentido, recorremos ao caráter, já frisado anteriormente, ambivalente

das redes, ora como estruturador de territórios, gerando processos de

territorialização, ora destruidor dos territórios, estando dessa forma, a serviço de

processos de des-territorialização.

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Apesar de não desconsiderarmos o papel da rede social entre os redeiros

como um elemento que provoca a desterritorialização desses trabalhadores,

principalmente em relação a seu espaço de origem, entendemos que essa mesma

rede social promove a estruturação de um território-rede devido à existência de

fluxos que por sua vez articulam os diferentes territórios dos redeiros dispersos pelo

território brasileiro. Dessa forma, a rede entre os redeiros possibilita o controle sobre

fluxos que promovem a sustentação de territórios descontínuos, entretanto,

articulados. Sobre isso, Haesbaert (2004, p.301) afirma que “territorializar-se, hoje,

implica a ação de controlar fluxos e estabelecer e comandar redes”.

Portanto, diferentemente da estruturação dos territórios-zona mais

tradicionais, por meio do controle através de fronteiras, a estruturação do território-

rede dos redeiros dá-se pelo controle de fluxos e de pólos de conexão ou redes.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização da pesquisa que ora finalizamos significou para nós uma

importante e excelente experiência, não só acadêmica, como também de vida, uma

vez que, além de ter possibilitado fazer uma análise da dimensão territorial do

processo de comercialização realizado pelos vendedores de redes de dormir

migrantes da cidade paraibana de Brejo do Cruz e das condições de trabalho

vivenciadas por esses trabalhadores, também nos permitiu vivenciar situações até

então nunca vividas, principalmente depois da experiência que tivemos quando

concretizamos o itinerário de um grupo de redeiros a bordo de um carro de rede.

No primeiro capítulo, explicitamos os procedimentos metodológicos

adotados no processo de pesquisa, expondo de forma detalhada os acontecimentos

que marcaram a viagem de campo realizada na companhia de um grupo de redeiros

a bordo de um carro de rede. Aqui priorizamos a descrição da experiência de

campo, pois entendemos ser de fundamental importância para a compreensão do

trabalho, bem como objetivamos oferecer subsídios para a discussão metodológica.

O trabalho de campo, além de ter significado uma grande experiência para nós, uma

vez que nunca tínhamos feito algo parecido, nem tampouco tínhamos ido a lugares

distantes como os que fomos, permitiu-nos apreender o cotidiano dos redeiros,

assim como os detalhes do processo de trabalho realizado por esses trabalhadores.

A produção de redes de dormir, produto de origem indígena inicia-se na

cidade de São Bento-PB para depois chegar a Brejo do Cruz-PB, assim como o

comércio de redes nos moldes daquele que estudamos. Assim, a atividade

comercial realizada pelos redeiros migrantes de Brejo do Cruz-PB tem origem na

cidade vizinha de São Bento-PB.

A idéia que tínhamos antes de iniciarmos a pesquisa sobre o trabalho de

venda realizado pelos redeiros e que, desta forma, permeava nosso primeiro olhar,

era a de que o mesmo era muito “sofrido”. A pesquisa possibilitou a aproximação

com esta realidade, revelando as reais condições de trabalho vivenciadas por esses

trabalhadores, confirmando o que inicialmente pensamos.

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No segundo capítulo, também estudamos a atividade comercial realizada

pelos vendedores de redes em seus vários aspectos, tais como: as precárias

condições nas quais os redeiros viajam dentro dos carros de rede, as condições das

estadas nos postos de combustíveis, assim como pudemos comprovar o caráter

informal da relação de trabalho entre o redeiro proprietário e o redeiro vendedor, já

que a mesma dá-se sem a constituição de um contrato formal de trabalho por meio

de carteira assinada, fazendo com que os redeiros sejam impedidos de usufruir de

benefícios, que são seus, de direito. Além disso, o estudo da relação entre o redeiro

proprietário e o redeiro vendedor possibilitou entender o caráter exploratório da

referida relação.

Portanto, a fragilidade do trabalho dos redeiros, que antes só sabíamos por

meio de relatos, é reflexo das precárias e difíceis condições de trabalho às quais os

mesmos se submetem. Essa situação de precariedade enfrentada pelos redeiros

poderia ser revertida, ou ao menos, minimizada, caso existisse algum tipo de

organização que representasse os interesses desses trabalhadores ou mesmo

houvesse alguma de política pública nesse sentido, e que, dessa forma, lutasse por

condições mais dignas de trabalho.

O processo migratório realizado pelos redeiros apresenta-se como

temporário, não só pelo fato desses trabalhadores viverem em um permanente

processo de partidas e retornos, viajando periodicamente e sempre retornando à

cidade de origem, mas também devido aos redeiros sempre nutrirem expectativas

quanto ao retorno, condição essencial do migrante.

È nesse permanente movimento no espaço, nesse constante deslocamento

entre cidades, que os redeiros constroem seus territórios. O processo de

territorialização dos redeiros nos postos de combustíveis dá-se por meio das

relações que eles estabelecem no referido espaço. Essas relações acontecem no

cotidiano, no âmbito do vivido desses trabalhadores, no seu dia-dia. São relações de

caráter prático e simbólico. Além do estudo dos redeiros que pousam nos postos de

combustíveis, também estudamos a realidade daqueles redeiros que se fixam em

determinadas cidades, permanecendo na mesmo por um certo período. Aqui temos

como referencial empírico a realidade por nós vivenciada no Bairro Jardim dos

Buritis, localizado na cidade Goiana de Aparecida de Goiânia.

Além de construírem seus territórios em nível local, os redeiros também

constituem uma rede social a partir das relações sociais tecidas nos postos de

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Dissertação de Mestrado – PPGG-UFPB DUTRA, L. V.

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combustíveis. É essa mesma rede social que, articulando os diferentes territórios

dos redeiros em escala local, constitui o território-rede dos redeiros em escala

nacional, um território descontínuo, porém articulado.

Por fim, esperamos que, além de contribuir para o entendimento da

realidade territorial construída pelos vendedores de redes de dormir da cidade

paraibana de Brejo do Cruz, esperamos que nosso trabalho possa proporcionar o

debate em torno da precariedade do trabalho dos redeiros, assim como sobre o

papel do trabalho na sociedade capitalista.

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APÊNDICE Título da Pesquisa: A rede da rede: Trabalho, sociabilidade e territorialidade dos vendedores de redes de dormir de Brejo do Cruz – PB. Nome do pesquisador: Luciano Vieira Dutra Data da entrevista:............................... ROTEIRO DE ENTREVISTAS AOS DONOS DE CARROS DE REDE 1 – Dados do Entrevistado

1.1 Nome: ----------------------- 1.2 Idade: ------------------------ 1.3 Escolaridade---------------

2 – Inserção do redeiro na atividade de venda de rede

2.1 Há quanto tempo você está no “ramo de rede”? 2.2 Por que você entrou no “ramo de rede?”.

2.3 Fale sobre o inicio de sua vida no “ramo de rede”.

Espera-se: Verificar as razôes que levaram o redeiro a comercializar a rede de dormir

3- Sobre o processo de comercialização das peças

3.1 Quais os tipos de mercadorias que costuma vender?

( ) rede ( ) manta ( ) muamba (cinto,carteira,) ( ) pano de prato ( ) outros

3.2 Se vende muamba, onde compra essas mercadorias?

3.3 Qual tipo de veículo é utilizado para o deslocamento? ( ) “mecedinha” ( ) D 20 ( ) Saveiro ( ) pampa ( ) outros ( caminhão, caminhonete, “fuscão”)

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3.4- Com quantos corretores você trabalha? 3.5- Como “seus” corretores vendem as mercadorias?

3.6- Qual a forma de pagamento? Ou como se dá o contrato de trabalho entre o dono do carro e o corretor?

3.7 Você trabalha no sistema de “boca de ferrro?”

Sim ( ) Não ( ) Caso trabalhe no sistema de boca de ferro, por que utiliza o referido sistema? Espera-se: Identificar as formas de venda predominante, não só da rede

como de todas as peças. 4- Sobre a relação dos redeiros entre eles e com o território

4.1 O que determina o tempo de sua permanência em uma cidade?

4.2 Em que tipo de local você fica nas cidades por onde passa? 4.3 Como se dá a escolha desse local? 4.4 Quanto tempo em média você fica trabalhando em cada cidade?

4.5 Como é a relação dos redeiros com as pessoas das cidades por onde passam.

4.6 Você costuma se encontrar com outros redeiros nos locais por onde passa? ( ) sim ( ) náo

Caso a resposta seja sim, responder as questões seguintes. 4.7 Em que tipo de local você se encontra com outros redeiros? 4.8 Você gosta desses encontros com outros redeiros? Por que?

( ) sim ( ) não

4.9 Os redeiros com os quais você se encontra, na sua maioria, de onde provêm?

4.10 Quando você está viajando, de que maneira você consegue obter mais mercadorias?

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Espera-se: Verificar o tipo e o grau de relação que os redeiros mantém com os locais por onde passam, assim como identificar o “porquê” dessas relações. Nesse sentido, espera-se detectar o tipo de territorialidade gerada durante o itinerário dos redeiros. Verificar os tipos de relações mantidas pelos redeiros durante seu trajeto, assim como identificar a existência de uma rede de relações entre os redeiros

5- Sobre o trabalho de vender as redes

5.1 Você gosta de trabalhar nessa atividade? ( ) Sim ( ) Náo Por que?

5.2 Você tem vontade de mudar de atividade? ( ) sim ( ) não Por que? 5.3 Quais as dificuldades encontradas? 5.4 Quais as coisas que considera ruins quando você está trabalhando? 5.5 Quais as coisas que considera boas que acontecem quando você está trabalhando?

5.6 Quando está viajando, em que mais pensa ou sente?

Espera-se: Verificar a relaçao do redeiro com o seu trabalho

6- Sobre os locais onde os redeiros trabalham

6.1 Quantas viagens você faz por ano? 1 ( ) 2 ( ) 3 ( ) mais ( ) 6. 2- Se fizer apenas um viagem, responda as seguintes questões.

6.2.1 Qual lugar você tem como destino final de sua viagem? Por que?

6.2.2 Se for estado, responder em quais cidades desse estado você mais trabalha?

6.2.3 Quais outros locais você também trabalha durante seu percurso?

6.2.4 Em que período do ano acontece essa viagem?

6.3- Se fizer duas viagens, responda as seguintes questões.

6. 3.1 As viagens são para o mesmo estado? Sim ( ) Não ( )

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6.3.2 Caso as viagens sejam para o mesmo estado, responda as seguintes questões.

6.3.2.1. Você viaja para que lugar nas suas viagens?

6.3.2.2Por que você viaja para este lugar?

6.3.2.3 Se a resposta for estado, em quais cidades desse estado você mais trabalha?

6.3.2.4 Em quais outros lugares você também trabalha durante seu trajeto? 6.3.2.5 Em que períodos do ano acontecem essas viagens.

6.3.3 Caso as viagens sejam para estados diferentes, responda as seguintes questões.

6.3.3.1 Você viaja para quais lugares nas suas viagens? Por que?

6.3.3.2 Se a resposta for estado, em quais cidades desses estados você mais trabalha?

6.3.3.3 Em que períodos do ano acontecem essas viagens?

6.3.3.4 Em quais outros lugares você também trabalha durante seu percurso?

6.4- Se fizer três ou mais viagens por ano, fale sobre o destino de suas viagens, os períodos em que se realizam essas viagens, assim como as principais cidades onde você trabalha.

Espera-se: Identificar a “territorialidade” dos redeiros

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Título da Pesquisa: A rede da rede: Trabalho, sociabilidade e territorialidade dos vendedores de redes de dormir de Brejo do Cruz – PB. Nome do pesquisador: Luciano Vieira Dutra Data da entrevista:............................... ROTEIRO DE QUESTÕES FEITAS AOS VENDEDORES OU CORRETORES 1 – Dados do Entrevistado

1.1 Nome: ----------------------- 1.2 Idade: ------------------------ 1.3 Escolaridade---------------

2 – Inserção do redeiro na atividade de venda de rede 2.1 Há quanto tempo você está no “ramo de rede”? 2.2 Por que você entrou no “ramo de rede?”. 2.3 Fale sobre o inicio de sua vida no “ramo de rede”.

Espera-se: Verificar as razões que levaram o vendedor a começar a trabalhar no “ramo” de rede

3- Sobre a relação dos redeiros entre eles e com o território 3.1 Como você é recebido nas cidades por onde passa. 3.2 você faz amizades com as pessoas nos locais por onde você passa? ( ) sim não ( ) se faz, com quem? 3.3 Você costuma se encontrar com outros redeiros nos locais por onde passa? ( ) sim ( ) não Caso a resposta seja sim, responder as questões seguintes. 3.4- Em que tipo de local você se encontra com outros redeiros? 3.5 Você gosta desses encontros com outros redeiros? Por que? ( ) sim ( ) não

Espera-se: Verificar o tipo e o grau de relação que os redeiros mantém com os locais por onde passam, assim como identificar o “porquê” dessas relações. Nesse sentido, espera-se detectar o tipo de territorialidade gerada durante o itinerário dos redeiros.

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Verificar os tipos de relações mantidas pelos redeiros durante seu trajeto, assim como identificar a existência de uma rede de relações entre os redeiros

4- Sobre o trabalho de vender as redes 4. 1-Você gosta de trabalhar nessa atividade? ( ) Sim ( ) Náo Por que? 4.2 - Você tem vontade de mudar de atividade? ( ) sim ( ) não Por que? 4.3 - Quais as dificuldades encontradas para sair da atividade? 4.4 - Quais as coisas que considera ruins quando você está trabalhando?

4.5 - Quais as coisas que considera boas que acontecem quando você está trabalhando? 4.6 - Quando está viajando, em que mais pensa ou sente? 4. 7 - Fale como é a vida do redeiro.

Espera-se: Verificar a relação do vendedor com o seu trabalho.