uma visão pela esquerda: a socialdemocracia, o estado e o pt

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A Socfeldernocracia. o !$tido e o P1i Robert9 Robatna

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Livro escrito por Roberto Robaina em 2003 e reeditado em 2014, é prefaciado por Luciana Genro. O livro traz uma análise dos rumos do PT confrontados à teoria do Estado e da disputa de hegemonia (supostamente gramsciana) que ganhou força em seu interior e tornou-se justificativa para a acomodação. Faz, ainda, uma leitura precisa e antirreformista de Antonio Gramsci, em especial seus conceitos de "guerra de posição", "guerra de movimento" e a dialética da passagem de um a outro.

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A Socfeldernocracia. o !$tido e o P1i Robert9 Robatna

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Roberto Robaina

Utna visão pela Esquerda

A Socialdemocracia, o Estado e o PT

2014 Fundação Lauro Campos

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Sumário

Prefácio 10 anos depois .................................................................................. p.5

Prefácio de 2003 ............................................................................. p.12

In.trodução de 2003 ........................................................................ p.21

Capítulo I Reforma ou Revolução: uma história de mais de um século ............................................ p.28

Capítulo II O marxismo e o Estado ................................................................. p.55

Capítulo III Guerra de movimento e guerra de poisção uma clarificação necessária .......................................................... p.94

Capítulo IV A evolução do PT da independência à colaboração de classes ............................. p.115

Capítulo V As perspectivas de um governo Lula Créditos de Guerra do PT? ......................................................... p.150

Capítulo VI Para não concluir ......................................................................... p.193

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Revisão: Sérgio Granja Orelha: Luciana Genro Bibliotecária resp.: Fernanda Melchionna Capa e Diagramação: Bernardo Corrêa Fotos da Capa: Jornadas de Junho de 2013,

Rio de Janeiro e Brasília.

Robaina, Roberto (1967 - )

R628v Uma visão pela esquerda: a socialdemocracia, o Estado e o PT : as perspectivas do governo Lula. - Rio de Janeiro: Fundação Lauro Campos, 2014.

208 p. ; 21 cm.

ISBN 978-8561475-01-7

1. Socialismo - Brasil. 2. Socialdemocracia - Brasil. 3. Governo Lula. 1. Robaina, Roberto II. Fundação Lauro Campos

CDD 329.14

FERNANDA MELCHIONNA E SILVA CRBl0/1813

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Prefácio

Nossa aposta é na luta dos trabalhadores e do povo

Quando estava escrevendo este livro, ainda no final do primeiro turno das eleições de outubro de 2002, trabalhava com a hipótese de que Lula venceria as eleições. O sentido do texto estava todo alicerçado na confirmação desta hipótese. Como todos sabem, foi o que ocorreu. O capitulo sobre as perspectivas abertas no país e no movimento político e social dos trabalhadores com a experiência diante do primeiro governo nacional petista na história terminou de ser escrito quando Lula ainda não havia assumido, embora já comentava-se quem seriam seus prováveis ministros.

É claro que a realidade sempre é mais rica dos que os esquemas que fazemos acerca dela. A complexidade do processo político e social, as contradições e seus desdobramentos nestes terrenos e na economia, não têm como ser previstas com exatidão. Nas ciências humanas as previsões são sempre tendenciais. Até suas leis são tendenciais. Mas creio que foram confirmadas as tendências mais importantes do desenvolvimento da experiência do movimento de massas com o PT. A ideia de então de construir uma esquerda no interior do PT que realizasse uma tensão política com uma estratégia de ruptura do partido foi baseada no prognóstico acerca destas tendências, sobretudo da dinâmica aberta de conversão do PT em partido a serviço dos interesses do capital e a inevitável ruptura do movimento de massas com sua direção histórica representada desta vez pelo petismo. A experiência da social democracia alemã, a constituição da Liga Spartacus e posteriormente a fundação do Partido Comunista Alemão, com Rosa Luxemburgo a cabeça, devia servir de alerta e de exemplo para a esquerda brasileira de que a ruptura com o

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PT era necessária e deveria ser preparada de modo acelerado. Por isso mesmo o livro começou re:t:etindo acerca da experiência da li internacional e da socialdemocracia alemã.

Com a realização da experiência do movimento de massas com o PT, a aposta lançada foi que estaríamos encerrando o ciclo de hegemonia petista sobre o movimento de massas. Os capítulos sobre o processo de industrialização do Brasil foram para mostrar que o movimento de massas no século XX vivenciou ciclos de organização, como o ciclo dirigido pelo PCB, durante algum tempo em disputa com o PTB de Getúlio, e o ciclo do PT, iniciado com o ascenso do final dos anos 70 contra a ditadura militar, e que estava se encerrando justamente quando aparentemente chegava no seu auge, isto é, na posse de Lula como presidente. Num livro que escrevi com Luciana Genro em 2005 denominamos este acontecimento como se fosse a queda do muro de Berlim do Brasil, um verdadeiro terremoto político. Sabíamos que se abria assim um vazio de direção da classe trabalhadora e da juventude brasileira. E com a audácia exigida nestes momentos afirmamos que era necessário construir uma direção nova. Sabíamos que um novo ciclo estava se abrindo. Talvez seja o caso, hoje, de afirmar que estes últimos dez anos foram os de transição entre a morte do ciclo de hegemonia petista e o surgimento de um novo ciclo com suas determinações ainda em aberto.

O capitulo sobre Gramsci e sobre o balanço das discussões teóricas do PT acerca da questão do Estado foram escritos pensando nas lições necessárias para que a esquerda tirasse as conclusões teóricas e políticas capazes de explicar as razões da capitulação petista. O livro tratou dos "desvios" teóricos que deram a base destas capitulações, em particular nas elaborações petistas acerca do Estado e na formulação estratégica do programa democrático e popular. Citei as bases objetivas desta capitulação, embora tenha frisado mais as elaborações políticas da mesma, e por contraste subestimado assim as bases objetivas da capitulação, mais concretamente a ofensiva do neoliberalismo e a reestruturação produtiva dos anos 90, o que corrigi no livro de 2005 (A Falência do PT em coautoria com Luciana Genro). De qualquer forma o

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livro de 2003 indicou com correção que os governos estaduais petistas conquistados antes de 2002, o peso no parlamento e as relações da burocracia sindical petista com os fundos de pensão deram a base social para o novo curso petista e sua conversão na defesa dos interesses da classe dominante com a velocidade que assumiu e o porquê de sua relativamente pequena ruptura inicial.

Livro publicado, ganhando para alguns o caminho das traças, felizmente ajudou a armar a intervenção de um punhado de militantes que o utilizaram como ferramenta. A história dos chamados parlamentares radicais é conhecida pelos militantes. Na esteira da greve nacional dos servidores federais contra a reforma da previdência e da luta parlamentar que foi travada ao redor da questão desenvolvemos o projeto de ruptura com o PT e de construção do novo partido. Em dezembro de 2003 os chamados radicais foram expulsos e, no meu caso pessoal, entreguei o cargo de membro do Diretório Nacional do PT.

No mesmo dia Milton Temer, Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho deram uma entrevista ao Jornal do Brasil se desligando do PT devido às expulsões. Nas semanas seguintes teria a honra de conquistar a adesão de Milton Temer para o projeto de novo partido. Em janeiro de 2004 estávamos juntos com algumas dezenas de lideranças lançando o primeiro manifesto por sua constituição. Este fato, aliás, faz com que a edição deste livro tenha uma única modificação: o tratamento que dispenso ao professor Carlos Nelson Coutinho. Na parte acerca do Estado faço uma polêmica dura com uma parte da obra de Carlos Nelson. Não modifiquei minha posição acerca desta questão, mas suprimi os adjetivos do texto original. Para além de uma questão de forma, suprimi uma caracterização equivocada que apresentei ao definir que sua obra sobre o Estado deu base teórica para a direção petista em seu curso de integração ao regime burguês. Seria uma injustiça manter esta afirmação. Carlos Nelson não acompanhou a direção petista. Embora as posições que ele defendia à época eram teoricamente contrárias às posições defendidas na obra de Lenin, Carlos Nelson não apenas não acompanhou politicamente a direção petista como nos deu seu prestígio e sua força para

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fundar o PSOL. Foi do partido até o fim dos seus dias, em 2012. Felizmente, mesmo depois da polêmica que fiz com ele, militamos juntos e fomos amigos até o final.

O PSOL foi fundado em junho de 2004. Completa agora dez anos. Menos de um ano depois do congresso de fundação, conquistamos as 500 mil assinaturas necessárias para a legalização. Só quem estava coletando as assinaturas sabe o trabalho que tivemos. Hoje, depois de dez anos, e vendo que a Rede, o partido impulsionado por Marina Silva, com recursos financeiros infinitamente superiores aos nossos, não obteve o registro por não ter chegado a estes mesmos números de assinaturas, nos dá um orgulho especial ter vencido esta jornada. A combinação de uma política correta, de uma estrutura militante pequena, porém organizada com disciplina, moral e vontade política, com o nome de massas de Heloísa Helena em todo o país e de Luciana Genro e Babá no Rio Grande do Sul e no Pará, respectivamente, garantiu o êxito da tarefa. No Rio Grande do Sul foram mais de 100 mil assinaturas registradas legalmente.

As eleições de 2006 foram as primeiras do partido. Heloisa mostrou novamente ter peso de massas. Sem recursos, com um partido ainda com muito pequena inserção social e estrutura militante ainda não nacionalizada, obteve 7% dos votos. Foram 7 milhões de brasileiros que votaram no 50. Este resultado, depois da conquista da legalidade, foi a segunda e estrondosa vitória do PSOL. O partido, entretanto, ainda não estava consolidado. Os votos eram centralmente na pessoa de Heloísa, não no projeto coletivo. Ao mesmo tempo, esta força eleitoral de uma liderança individual que assumia a sigla fortalecia o projeto e transformava o PSOL num partido com capacidade de atração.

A conjuntura que se abriu depois foi de aumento da estabilidade do regime burguês, com a economia em crescimento na esteira das importações chinesas e com o PT capitalizando a situação como se a simbiose entre petismo e capitalismo fosse o melhor dos mundos possíveis. Este cenário diflcultava a construção do PSOL, criava novos e objetivos obstáculos. Um partido de esquerda surgido da ruptura do PT precisaria confirmar sua viabilidade no

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terreno eleitoral. O peso das eleições na construção da esquerda dos vinte anos anteriores parecia condicionar as possibilidades de construção a este desempenho. E a campanha seguinte, em nível municipal, apresentou maiores diflculdades para o partido. A crise mundial que iniciou em 2007, com a retumbante paralisia do crédito mundial em setembro de 2008, não afetou o Brasil imediata e diretamente e pode ser ocultada pela propaganda enganosa da santa aliança de sustentação do regime burguês - PT e PSDB na cabeça - como se nada tivesse a ver com o Brasil e suas perspectivas. Em poucas cidades o partido logrou uma votação que superasse percentuais eleitoralmente marginais. Em Porto Alegre com o nome de Luciana Genro chegamos a conquistar 10% dos votos. Mas este desempenho na capital gaúcha, marcado por uma in:f:uencia eleitoral em setores de massas, não foi a regra. O partido, entretanto, manteve seu processo de consolidação. E as pressões internas para que o partido começasse a estruturar uma política que não se limitasse às disputas eleitorais, felizmente, começaram a ter mais eco interno. As eleições, contudo, seguiram sendo a pauta mais importante para medir a consolidação e a dinâmica do partido.

Na eleição geral e presidencial seguinte o partido obteve menos de 1 % dos votos. Para alguns era a prova de que o PSOL não iria adiante. A nova vitória do PT parecia desmentir aqueles que alguma vez apostavam na necessidade de uma nova direção para classe trabalhadora brasileira. Ficou claro que a conjuntura de estabilização relativa do capitalismo ainda não tinha sido quebrada. Mas a campanha de Plinio Arruda Sampaio semeou a ideia iniciada em 2004. No ultimo debate da Rede Globo ele se dirigiu à juventude, fez um chamado à mobilização dos jovens, afirmando que nesta mobilização estava depositada sua energia e suas esperanças. De que era para ela que a mensagem do partido se dirigia. Menos de três anos depois o levante juvenil e popular de junho de 2013, um levante contra tudo e todos que querem impedir que a juventude se autodetermine, se mobilize e se auto­organize não teria como não nos fazer lembrar a mensagem de Plinio. Corretamente na época afirmamos e mantemos a mesma

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posição de que o PSOL teve um novo momento de consolidação do seu projeto.

Dois anos depois as eleições municipais confirmavam esta consolidação e permitiram ao partido dar um salto de qualidade na sua construção. 2012 foi sem dúvida a mais importante eleição do PSOL, onde o partido se saiu mais forte, uma consolidação que representou mais do que isso, que permitiu um salto capaz de lhe colocar num novo patamar. A candidatura de Marcelo Freixo e seu resultado eleitoral, com cerca de 30% dos votos no Rio de Janeiro, foi a expressão mais clara e categórica deste balanço. A partir de então já não se tratava apenas de consolidar e confirmar a existência do PSOL. Tratava-se de começar a disputar a direção do movimento de massas no Brasil, de se postular como alternativa crível para finalmente começar a hegemonizar um novo ciclo de organização política da classe trabalhadora brasileira. O crescimento eleitoral do partido no Rio, além do talento dos parlamentares do partido no estado, mostra que as possibilidades do PSOL aumentam onde o PT tem menos força ou onde se alia aberta e claramente com forças políticas burguesas reacionárias. No caso do Rio, a quebra do PT ocorreu em 1998, quando a direção nacional interviu para impedir a candidatura própria de Vladimir Palmeira. O desmoronamento do PT carioca teve como contrapartida o crescimento acelerado do PSOL. E o impulso dado pelo Rio de Janeiro animou o partido nacionalmente.

A grande mudança da situação do PSOL, contudo, ocorreu no terreno da ação de massas. Se apontamos muitos elementos de balanço eleitoral foi porque as eleições foram ao longo destes dez anos o principal teste do partido. Agora o processo será mais complexo, os testes e desafios maiores. Em compensação o cenário se alterou. O regime burguês perdeu sua estabilidade. A fratura do regime foi provocada pela entrada em cena do movimento de massas e a retomada do ascenso. As jornadas de junho, o levante de 2013, foi o acontecimento que alterou a correlação de forças a favor das lutas da classe trabalhadora. Tal jornada abriu uma nova etapa na luta de classes no país e na construção do partido. Abre-se assim novas oportunidades e ao mesmo tempo se indicam e

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Por isso aprender com junho, com o espírito deste levante, é um desafio imenso para os próximos dez anos do PSOL. Se até então a mera resposta eleitoral era limitada para que o partido se desenvolvesse, agora a construção de uma vida orgânica será de vida ou morte. A defesa de um partido que não sucumba diante do eleitoralismo oportunista nem do burocratismo stalinista (e da combinação deles) é vital.

Se os dez primeiros anos foram os da consolidação, agora entramos nos anos de disputa pela direção do movimento de massas, o que obviamente exige o respeito pelo movimento, o apoio a sua capacidade de autodeterminação democrática, mas também a firmeza e a consciência do dever de lutar por um programa, uma política e uma organização independente cuja bandeira tem o sol do PSOL como símbolo. Se a legalização do partido há mais de dez anos nos custou muito esforço, os próximos passos nos exigirão muito mais. Sabemos que a classe dominante atuará para impedir este projeto. Para tanto atacarão o partido como puderem. Limitarão nossos espaços sempre que possível. Mas a necessidade dos trabalhadores de terem um instrumento a serviço de suas lutas e de seus interesses será maior. Esta deve ser a nossa aposta. Neste caminho devemos nos jogar.

Roberto Robaina

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Prefácio de 2003

Cada um de nós tem sua história. Somos lutadores sociais, sin­dicalistas, ativistas do movimento popular ou estudantil, do campo e da cidade. Alguns passaram os difíceis tempos da clandestinidade; outros, mais jovens, chegaram depois. Tantos sonharam e militaram pela revolução e pelo socialismo, e o fazem até hoje, outros já não mais.

O PT, que nunca se definiu como um partido revolucionário e nasceu como a antítese do "socialismo real" stalinista transformou-se no polo agregador destas diferentes matizes e tendências. Ex guerri lheiros, trotskistas, católicos, sindicalistas e intelectuais independen­tes uniram-se sob a liderança do metalúrgico Luis Inácio Lula da Sil-va para construir um partido que representasse a classe trabalhadora, que havia crescido em importância mas carecia de representação-po litica genuína. E assim o Pf converteu-se no mais importante partido de esquerda da América Latina.

Hoje Lula é presidente do Brasil. Todos nós vibramos. Mas o PT é governo em um pais com uma distribuição de renda que só não é pior que Serra Leoa e que tem 89,9% do orçamento de 2003 compro metido com os juros da divida. Alguém vai ter que pagar a conta dos desmandos que levaram a esta situação. Nos 500 anos de Brasil ela sempre foi paga pelos de baixo.

Agora chegou - ou deveria ter chegado - a vez dos de cima. A montagem do governo, porém, expos contradições que somente poderão ser superadas pela mobilização popular em defesa das -de mandas mais sentidas e urgentes. E com certeza a vitória eleitoral que obtivemos ao eleger Lula coloca os protagonistas desta história em melhores condições para conquistar suas reivindicações de décadas.

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Mas as contradições do governo saltam aos olhos. O presi­dente do Banco Central, coração da politica econômica do pais, é ex-presidente mundial de uma das divisões do sétimo conglome­rado financeiro dos EUA, o FleetBoston. Mantém com eles ainda uma estreita relação: recebe uma generosa aposentadoria de US$ 750 mil por ano (cerca de R3 200 mil por mês). Já o Ministro do Desenvolvimento, área estratégica por excelência, é dono da Sa­dia, a maior exportadora de alimento do Brasil.

A vitoria eleitoral não veio (mal) acompanhada apenas por estas contradições, mas também pelo abandono de muitos dos compromissos que guiaram os milhares que dedicaram suas vi­das a esta conquista. Bandeiras históricas como a suspensão do pagamento da divida externa, o apoio as ocupações de terra e uma politica dura contra o domínio dos bancos e das grandes empresas foram literalmente rechaçadas. Outras ainda mais simples, como a independência politica dos trabalhadores frente a burguesia, fo­ram deixadas de lado. Estas mudanças foram ocorrendo aos pou­cos, desde a derrota de 89, mas deram um salto neste processo eleitoral.

A aliança com o PL, que colocou um magnata do ramo têxtil como substituto constitucional do Presidente Lula, foi a primeira senha de que havia na direção majoritária do partido a disposição de ir bem mais além na politica de alianças e de recuar bastante na politica concreta do futuro governo. O salto de qualidade foi a 11 Carta ao Povo BrasileirO", na verdade uma carta de boas inten­ções ao mercado financeiro internacional e ao FMI.

Hoje ainda é possível escutar discursos em favor do socia­lismo e até mesmo de algum tipo de revolução, mas a voz mais corrente é a da defesa do cumprimento das metas com o FMI e da execução do /1 superávit necessário" para acalmar O mercado. Bastante diferente da linguagem da fundação do PT, do conteúdo politico do seu Manifesto. Dizia ele:

11 { •• } Agora, as vozes do povo começam a se fazer ouvir atra­

vés de suas lutas. As grandes maiorias que constroem a riqueza da Nação querem falar por si próprias. Não esperam mais que a con-

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quista de seus interesses econômicos, sociais e políticos venha das elites dominantes ( ... ) O PT nasce da decisão dos explorados de lutar contra um sistema econômico e político que não pode resol­ver os seus problemas, pois só existe para beneficiar uma minoria de privilegiados.

( ... )As riquezas naturais, que até hoje só tem servido aos iA teresses do grande capital nacional e internacional, deverão ser postas a serviço do bem estar da coletividade. Para isto é preciso que as decisões sobre a economia se submetam aos interesses po­pulares. Mas estes interesses não prevalecerão enquanto o poder político não expressar uma real representação popular fundada nas organizações de base que se efetive o poder de decisão dos trabalhadores sobre a economia e os demais níveis da sociedade." ( ... )(Manifesto de fundação do PT- Publicado no Diário Oficial da União em 21 de outubro de 1980)

O texto, e seu contraste com o discurso oficial de hoje, falam por si próprios. Mas a historia do PT, que se confunde com a do próprio Lula, não foi apagada pelos discursos mais recentes. Se­gue viva nos nossos corações e mentes e na consciência de muitos.

Os milhões que elegeram Lula o fizeram por que esgotaram sua cota de paciência e decidiram mudar. Uns tantos, os mais cons­cientes e organizados, já tinha feito esta opção desde 89. Época em que o PT levantava bandeiras bem mais ousadas que as de hoje. Uma parcela significativa sente-se ainda plenamente representada pelo conteúdo politico do Manifesto de Fundação e muitos ainda sonham e lutam pelo socialismo.

Outros acabaram votando em Lula convencidos pela falên­cia do neoliberalismo, pelo vazio do seu estômago ou pela ausên­cia de um horizonte para si e seus fllhos. Pra estes, o novo discurso foi útil pois derrubou mitos e medos que gravitavam em tomo do PT. Eles querem mudanças, tranquilas como prometido por Lula, mas reais.

Mas uma parte dos de cima também aderiu, ou conformou -se com Lula. Estes sentem náuseas ao ler o manifesto de fundação

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com os petistas símbolo desta nova era do PT, como o Ministro Palocci. Estes setores burgueses querem um governo mais preo­cupado com Os seus interesses, de burguesia nacional, do que to­talmente servil ao capital financeiro internacional, como foi a Era FHC. Mas não querem nenhum tipo de ruptura - por isso até mes­mo a palavra de ordem aprovada no encontro do PT de Recife em fins de 2001 "A ruptura necessária' foi abatida dos discursos de campanha. Eles querem a manutenção dos compromissos inter­nacionais com o FMI. Buscam, na posição de sócios menores do imperialismo, a garantia de sua sobrevivência e da manutenção dos seus privilégios de classe. O "Deus Mercado" adorado na dé­cada FHC segue, talvez não mais sendo adorado, mas temido e cortejado.

E é justamente este o caminho que segue o governo, alegan­do ser o único possível em um periodo de transição. Assumida­mente um governo de "centro esquerda', definição que saída da boca dos máximos lideres petistas vem sempre acompanhada da ressalva de que o PT segue sendo de esquerda, mas enfim o §O

verno é outra coisa. O resultado desta mistura já não parece se­quer uma mistura, nas palavras do sociólogo Francisco Oliveira: "Na agenda da "transição" em direção a um pós neoliberalismo, o programa para o trabalho somente comparece no registro do neodesenvolvimentismo. E o programa para a seguridade social permanece em brumas, mas sendo sugerida uma versão suava do sistema de capitalização e a derrogação dos "privilégios" do funcionalismo público. Comprou-se o discurso neoliberal ou ele já estava introjetado?' (FSP 29/12/2002)

É preciso debater a idéia, defendida pelo governo, de que neste momento é necessária a manutenção da política macroeco­nômica de FHC, até que o país tenha condições de sair da arma­dilha do endividamento. E um debate que, lamentavelmente, não feito pelo partido. Terá o governo força, para fazer esta ruptura mais adiante? Não estaria se enredando numa teia de compromis­sos e alianças que o deixarão como refém?

Sabemos que todo governo recém eleito tem um crédito jun-

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to às massas, e o de Lula é muito maior do que qualquer governo teve nas ultimas décadas. É então o momento de usar este crédito, esta capacidade de mobilização justamente para fazer a ruptura, enfrentar a adversidade que certamente vira - que sabemos não será pouca - para então começar a construir um Brasil livre das amarras do imperialismo e do capital financeiro.

Para isto é fundamental a integração latino americana. Neste sentido foi importante o apoio dado por Lula ao governo de Chá­vez na Venezuela em seus primeiros dias de governo. É preciso seguir e aprofundar este caminho.

Este é um desafio, não um processo fácil. Mas este momen to inicial do governo é o mais apropriado para enfrentá-lo. Bus­car aliados internacionais para tal empreitada é decisivo, e ter a maioria do povo brasileiro ao lado já um imenso passo. Devemos propor medidas que protejam o país contra os especuladores -como a centralização do cambio, o controle de capitais - buscan­do o apoio da base social histérica de sustentação do PT e não com alianças e acordos que levam ao abandono dos compromissos que sempre nos guiaram.

Não e possível aceitar a mesma macroeconomia do mode­lo FHC/Malan e adicionar políticas compensatórias. Esta já é a formula da manutenção do status quo, defendida por instituições como o BID e até apoiada pelo FMI. Tudo para viabilizar ajustes que mantenham as altas taxas de exploração da classe trabalha­dora e dos países subdesenvolvidos. E a velha máxima de dar os anéis para não perder os dedos. Não foi para isso que elegemos Lula e nem foi para isto que este retirante nordestino quis ser pre­sidente do Brasil.

Se Lula conseguir cumprir seu compromisso de possibilitar que todos os brasileiros tenham direito a três refeições diárias es­taremos diante de um avanço muito importante. Mas para poder comer as pessoas querem emprego e renda que garanta sua sus­tentação diária. Para isso é preciso reformas estruturais. E a mu­dança estrutural só pode ser operada, como dizia o Manifesto de Fundação do PT, se as decisões sobre economia se submeterem aos interesses populares. Isto só é possível rompendo com o ca-

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pital financeiro internacional e enfrentando as politicas do impe -rialismo para o mundo, especialmente para a América Latina. Se depender deles, só nos resta a guerra e a crise.

E a guerra é a saída, a sua imagem e semelhança, que os grandes monopólios já estão tentando executar, uma saída para a estagnação e provável recessão em marcha. Nos últimos anos temos tido varias. Trata-se de uma marca constante da política externa norte americana, e a conjuntura atual indica uma prepa­ração mais sistemática, uma utilização mais clara da guerra como política econômica. Ao invés de produzir para as necessidades hu­manas, a economia se reativa com a produção de armas, industria que esteve na linha de frente do financiamento das campanhas eleitorais de Bush. Guerras preparadas também para consolidar a hegemonia militar dos EUA e para controlar o petróleo e os re­cursos naturais. Se o império esta mesmo ocupado em salvar a sua própria pele, ao invés de /1 ajudar" o mundo subdesenvolvido, como alguns podem pensar, a nos caberá, na visão imperialista, o papel de servi-los. Esta é a lógica da ALCA.

Como saída diante da crise capitalista e da queda da rentabi­lidade, desenha-se a redução brutal no nível de vida da população e uma disputa maior pelos mercados. Constitui-se numa exigência lógica econômica neoliberal, expressão presente da política capi­talista. Até nos países centrais o ataque as conquistas econômicas do pós II Guerra mundial começa a cobrar seu preço. Escrevendo sobre o capitalismo nos países centrais, Lester Thurow afirmou: 11 as verdades eternas do capitalismo - crescimento pleno empre­go, estabilidade financeira, salários reais em ascensão - parecem estar desaparecendo juntamente com os inimigos do capitalismo." (Futuro do Capitalismo) De sua primeira conclusão não nos resta nenhuma duvida. Quando aos inimigos do sistema, sabemos que Lester Thurow esta errado.

E neste contexto que acontece a experiência do governo Lula no Brasil. Guerra, crise econômica e ainda uma grande confusão política e ideológica fruto das mudanças ocorridas desde a queda do muro de Berlim. Confusão para alguns, capitulação consciente para outros. E é no olho do furacão deste debate que nos chega

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o livro de Roberto Robaina. Concluído logo depois da eleição de Lula , é um texto inserido na discussão política sobre os rumos do governo, do PT e da luta socialista revolucionaria. Também um debate teórico, uma defesa contundente da validade dos ensina­mentos dos mestres marxistas, da sua atualidade e utilidade na compreensão da realidade presente.

Mas sem dogmatismo, sem verdades eternas, e sim com a con­cepção marxista genuína de compreender e interpretar o mundo real para poder transformá-lo.

Entre vários temas importantes, o texto traz um resgate dos debates travados no seio da II Internacional. Acaloradas discussões travadas por Rosa Luxemburgo contra as posições revisionistas de Bernstein no Partido Social Democrata Alemão. Bernstein, no inicio do século passado, encabeçou a defesa de posições hoje apresent-a das como muito modernas pelos que abandonaram o socialismo e a revolução como uma luta concreta. A idéia de que o socialismo e apenas "uma utopia generosa' (não uma necessidade objetiva) e pode ser conquistado como fruto de reformas via eleitoral, não é nenhuma novidade. Nasceu com os avanços promovidos pelo capi talismo em sua fase de pleno desenvolvimento, com as concessões à classe operaria e o surgimento de setores privilegiados dentro desta, que estavam em consonância com os interesses da burguesia monopolista.

Hoje, em um quadro de empobrecimento cada vez maior da classe trabalhadora, da ausência de espaço para concessões abran gentes dentro do modelo capitalista, cabe debater de onde vem a força - inegável - das idéias reformistas junto a classe trabalhadora.

Lênin oferece uma pista para uma explicação material, fuR dada nas relações entre os distintos extratos da classe trabalhado­ra, e destes com as distintas frações da burguesia:" A obtenção de elevados lucros monopolistas pelos capitalistas de vários ramos da indústria e de vários países, lhes brinda a possibilidade econômi ca de subornar certos setores operários, e temporariamente, a uma minoria bastante considerável destes, atraindo-os para o lado da burguesia deste setor ou Nação, contra todos os demais.' (lmper-ia lismo, fase superior do capitalismo - Lênin)

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De fato, o domínio do capital financeiro em nossa época é categórico, poderoso e intuente. Meu companheiro e amigo Ar­turo Van Den Eynde, dirigente trotskista espanhol, em seu livro "Globalização, a ditadura mundial de 200 empresas", aborda este tema de forma interessante: "( ... )Ademais, o setor da classe tra balhadora que pode ser subornado e assimilado no conforto, há­bitos cultura e idéias, às camadas inferiores da própria burguesia, é logicamente o mais capaz. E o da indústria de vanguarda, das profissões mais qualificadas, dos serviços vitais do moderno cap~ talismo, o que partindo de uma origem proletária alcançou maior cultura. Quer dizer, é o setor que, por sua capacidade e posição poderia constituir o núcleo dirigente e organizador do conjunto dos trabalhadores, que pode converter-se em aliado da burguesia e abusar da sua in:t:uencia sobre o povo para arrastá-lo ao oport1:1 nismo."

Mas é certo que a in:f:uência desta "aristocracia' tem limites. Vivemos em uma época de ataques constantes ao nível de vida da classe trabalhadora.

As reformas previdenciária e trabalhista estão ai para provar que os ataques vem por todos os lados. Mesmo nos países ricos se reduzem as sobras que o capital financeiro dispõe para "dourar a pílula". Bush teve que cortar brutalmente os impostos dos mais ricos investidores neste inicio de 2003, justamente para dar mais fôlego a especulação na bolsas americanas.

O oportunismo reformista é, sem duvida, uma das contradi­ções de nossa época, uma herança deixada pelo século que findou. Mas a globalização também mobiliza a milhões que viram as cos­tas a esta minoria aburguesada e buscam uma saída global para seus problemas. É nestes que sobrevive a esperança. Com certeza este livro contribuirá para alimentar estas esperanças e ajudara a armar a luta política para tomá-las realidade.

Dirigente nacional do PT, membro da coordenação do Movi­mento Esquerda Socialista e ex dirigente estudantil e sindical, Ro­berto Robaina é um quadro político dirigente que há anos combi­na a militância política cotidiana com a curiosidade intelectual dos que sabem que não se faz política sem teoria, e que as experiências

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e construções teóricas dos lutadores do passado são mais úteis do que nunca nas elaborações presentes. Este livro é uma feliz com­binação. Reúne a experiência de duas décadas de militância políti­ca, o resgate dos clássicos marxistas, acendendo antigas luzes que muitos vem tentando manter apagadas e ousa acender outras, que renovam as mais antigas. Uma leitura indispensável para aqueles que recusam-se a parar de pensar. Um convite à ação para aqueles que recusam-se a parar de lutar.

Luciana Genro

Porto Alegre, janeiro de 2003.

* Luciana Genro foi Deputada Estadual do PT/RS de 1994 a 2002 e

Deputada Federal de 2002 a 2010, a partir de 2006 pelo PSOL.

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Introdução de 2003

Depois da vitória de Fernando Henrique nas eleições de 1998, sem segundo turno, centenas de milhares de apoiadores do PT começaram a acreditar que Lula não teria mais condições de vencer um pleito presidencial. A mídia sentia seu discurso fortalecido: sem experiência administrativa anterior em cargos executivos, sem diploma universitário, Lula não conseguiria emplacar. Como mínimo, os preconceitos o condenariam a morrer na praia. A dúvida, é lógico, tomou conta do próprio Lula que hesitou muito na decisão de concorrer pela quarta vez.

Para os que não acreditam nas mudanças políticas, a confirmação da vitória petista demonstrou que o que não muda, para repetir o velho Engels, é a lei segundo o qual tudo muda. Tivemos o prazer de assistir os âncoras do telejomalismo tendo que anunciar um novo presidente cuja biografia inclui a direção de greves metalúrgicas, passagens pela prisão política, uma figura publica que não poucas vezes foi desrespeitada e caluniada pela mídia. A vitória do ex-torneiro mecânico, sem curso superior, foi, sem duvida, uma desforra. Uma mudança e tanto. Finalmente, um Silva substituindo um Bragança, como diria Luis Fernando Veríssimo. Com razão, milhões de brasileiros tomaram as ruas para comemorar.

A questão agora é se o PT aproveitará a vitória e a mudança política para alterar a estrutura econômica do país, para distribuir efetivamente a renda, combater o capital financeiro, a corrupção, os privilégios e os poderosos de sempre ou se a classe dominante e o poder do capital conseguem mudar o PT. As pressões da classe dominante e do capital financeiro serão enormes. Já começaram. E, pelo que vimos durante a campanha eleitoral, tem surtido efeito. Foi essencialmente com base na campanha que temos analisado as perspectivas abertas para o país, para o PT e para a esquerda socialista.

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Desta vez, por exemplo, a burguesia não se unificou contra o partido. A aliança com o Partido Liberal, o apoio dado pelo senador José Sarney, ex-presidente da Nova República e político forjado nos anos de chumbo, e do também ex-presidente Itamar Franco, governador de Minas Gerais, foram expressões, logo no primeiro turno, do apoio aberto de um setor significativo da burguesia brasileira ao projeto do PT. No segundo turno, parcelas importantes das classes dominantes apoiaram Lula - parcelas da FIESP e das oligarquias reacionárias como a de Antônio Carlos Magalhães -mostrando que o esgotamento do modelo neoliberal criou melhores condições para uma aliança entre setores da burguesia nacional e as direções reformistas do movimento operário.

O novo discurso de Lula foi o alicerce político dessa nova situação. Sua defesa aberta da colaboração de classes, do pacto social entre o latifúndio e os sem terra, do capital e do trabalho, e do Brasil como nação com os EUA. Conscientes desse fator como um dos elementos explicativos do favoritismo do candidato petista no quadro político brasileiro, no qual, apesar da crise social e do descontentamento popular, não havia e não há um ambiente de mobilização de massas como ocorreu em países como a Bolívia e a própria Argentina, milhares de petistas e milhões de simpatizantes e amigos do partido justificaram a guinada de Lula à "direita' " acordo com o FMI incluído - como uma tática necessária para vencer. Até mesmo correntes da esquerda petista elogiaram o apoio de Sarney como expressão da força da candidatura Lula, sem explicar tal apoio como produto não apenas da força, mas, também, das suas mudanças, mudanças de natureza estratégica e sinalizadora das características de seu governo, cuja composição, sem surpresas, pode incluir não apenas seus aliados de sempre mas representantes da cúpula de alguns dos mais tradicionais partidos e representantes empresariais.

A formatação da campanha encerrada agora, adotando a chamada linha light, indubitavelmente obteve resultados eleitorais. Porém, se muitos apoiaram Lula por sua moderação", milhões votaram no PT porque querem mudanças profundas no pais. Sua promessa de terminar com a fome é um link que mantém

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com seu discurso de 1989 e o sonho daquela estrela segue vivo na consciência de milhares de ativistas. Essas esperanças, bem como as expectativas geradas na América Latina, um continente marcado pela crise social, econômica e pela reação do movimento de massas são os maiores temores das classes dominantes diante da vitória de Lula.

Agora, quando o partido flnalmente vê triunfante sua estratégia, o núcleo dirigente petista promete um novo desenho das relações políticas capaz de estimular um desenvolvimento industrial sustentado. Sucintamente, trata-se de uma tentativa de retomada em novas bases do chamado projeto desenvolvimentista. Qual a natureza desse projeto? E viável distribuir renda e combater os poderosos se utilizando da máquina estatal montada para reproduzir o domínio das classes capitalistas? Quais as perspectivas do governo Lula? Quais mudanças estão ocorrendo na vida e nas posições do partido? Como a esquerda petista deve encarar os novos desafios? São esses alguns dos interrogantes desses ensaios.

Assim, a necessidade de discussões que o partido vem deixando de lado bate à porta. A relação do PT com a institucionalidade burguesa, o papel do Estado e a questão da reforma e da revolução - são temas que jogam luz na projeção de cenários e perspectivas, re:t:etindo a tensão interna vivida pelo movimento político organizado das classes trabalhadoras. Tensão entre a pretensão original do PT de representar mudanças estruturais na sociedade e seu curso real cada vez mais adaptado à ordem capitalista. Esta parece ser a esfinge petista, com seu famoso decifra-me ou devoro-te.

Nosso olhar é pela esquerda, ao contrário dos textos reacionários que estão sendo produzidos nos últimos meses sobre os rumos do PT, em especial pelos novos adeptos da tradição, família e propriedade, definição muito apropriada cunhada por Luis Marques, militante petista e professor do Rio Grande do Sul, para definir os chamados filósofos como Denis Roselfleld. Não apontaremos contradições do partido para desestimular a aplicação de medidas de ruptura com o latifúndio e as corporações

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empresariais e financeiras, nem tampouco para desacreditar o projeto político fundacional do PT. Insistimos, justamente, em defender bandeiras históricas do PT, sustentando que nelas reside o incômodo das classes dominantes e dos intelectuais a seu serviço.

As alterações que apontaremos na vida do partido não podem deixar de encontrar guarida em bases objetivas que tenham incidido na sua vida, em particular os efeitos da globalização neoliberal da década de 90 e o peso da burocracia estatal. Em nossa opinião, porém, a pressão da acomodação, da adaptação e do novo curso, tem correspondência na teoria política: o centro teórico, que tem causado mudanças programáticas e políticas no seu núcleo dirigente reside justamente na analise sobre o papel da instituição estatal na luta de classes, principal e constante deturpação executada contra o marxismo. Abordamos as origens e a evolução do PT apenas no que diz respeito a sua vinculação com esta questão teórico-prática, considerada por Lênin a mais importante da revolução.

Nesse sentido, estes ensaios apresentam uma elaboração contraposta a algumas elaborações de intelectuais e dirigentes do partido e ao livro Contra Corrente do professor Carlos Nelson Coutinho. Autor que, talvez, no âmbito do PT, melhor sintetiza as posições revisionistas da obra de Marx. Não apresentamos nenhuma nova teoria acerca do Estado; limitamo-nos a expor considerações que nos parecem mais relevantes da teoria marxista. A grosso modo, a teoria de Marx definiu o Estado como um instrumento de poder político da classe economicamente dominante, apontando a necessidade de sua destruição revolucionaria através de uma luta política permanente, que prevê a participação eleitoral mas vincula esta tática com o objetivo estratégico de construir um Estado de novo tipo, baseado na auto-organização do movimento dos trabalhadores e do povo, na decisão dos produtores associados. O PT adotou uma definição oposta, Somou-se à visão reformista, apresentando a estratégia de democratizar o Estado atual, considerado como um instrumento público com fundos econômicos passiveis de serem utilizados em beneficio das maiorias. Com essa estratégia, trata de desviar o movimento dos trabalhadores da luta contra o capitalismo.

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Sabe-se que esse debate tem uma historia, ligada em primeiro lugar ao movimento operário no inicio do século XX, de tal forma que, embora muito sumariamente, começaremos dedicando o primeiro capitulo a experiência da II Internacional, a organização internacional fundada por Engels e que contou com fortes partidos operários no início do século passado. Pelo menos assim evitamos cair numa variante particular do analfabetismo político; aquela que estufa o peito e diz não ter nada a aprender com a história. Definitivamente, não é o nosso caso. Nos apoiando no passado, queremos mostrar que nada autoriza os dirigentes partidários do campo majoritário do PT a reivindicar a tradição da ala esquerda da socialdemocracia e da II Internacional. Quando seus dirigentes não negam o marxismo abertamente, abstraem a essência revolucionária de seu conteúdo. Essa tentativa, aliás, não é uma novidade. Primeiro, foram os revisionistas da II Internacional e a socialdemocracia; depois, a burocracia stalinista, sua teoria oficial do socialismo em um só pais e a pratica do reformismo internacional. Finalmente, também nas universidades o marxismo tem sido deformado, mutilado, embora sua utilização acadêmica como instrumento de analise seja igualmente expressão de sua força.

Então, embora a direção petista esteja hoje tão longe do socialismo quanto o PL do cristianismo dos primeiros cristãos, ainda trata de utilizar o prestígio do movimento operário, de seus líderes e história revolucionária para in:f:uenciar o movimento organizado dos trabalhadores. Parece temer desvincular­se por completo de seu passado e assumir abertamente sua roupagem nova. Parece saber que esta roupagem dos primeiros chefes reformistas tem manchas de sangue. Do sangue de Rosa Luxemburgo e de Karl Liebknecht. Vale a pena recordá-los.

De nossa parte, quando reafirmamos a atualidade do marxismo não negamos a defesa de reformas, isto é, de melhorias nas condições de vida dos trabalhadores que deixam como antes o poder nas mãos da classe dominante. Porém, o marxismo sabe que a burguesia dá com uma mão e tira com a outra, de forma que as melhorias conquistadas nas condições de vida devem ser utilizadas

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numa perspectiva de transformação radical da sociedade e não como negação da revolução social anticapitalista. Não se trata de apresentar uma visão fechada e acabada dessas discussões. Como dizia Lênin, o marxismo não é um dogma, mas um guia para a ação. O pensamento político marxista é aberto. Trata de analisar a situação concreta, síntese de múltiplas determinações, unidade do diverso. Mas aberto, anti-dogmático, não quer dizer a negação da luta de classes, do caráter irreconciliável entre os interesses dos trabalhadores assalariados e dos capitalistas e de uma posição clara nesta disputa. Essa reivindicação é nosso alicerce.

Tampouco desconhecemos a crise do marxismo vivida ao longo das últimas décadas. Sua existência é real, desdobramento das próprias diflculdades do movimento operário internacional na interpretação e na transformação da situação mundial. Vale dizer, contudo, que Marx inaugurou, além de uma visão do mundo, uma crítica ao capitalismo e uma corrente política revolucionária no interior do movimento operário, cujo objetivo sempre foi ser sua parte mais consciente e ativa. A crise do marxismo, portanto, somente pode ser resolvida no movimento vivo da classe trabalhadora, no interior dos processos concretos de lutas, na práxis revolucionária. Ademais, é preciso enquadrá-la no marco dado por Jean Paul Sartre: "O marxismo é a fllosofla insuperável de nosso tempo, porque as condições que o engendraram ainda não foram superadas". Sartre estava coberto de razão, pois, o capital, isto é, a relação social de dominação que separa a força de trabalho dos meios de produção e a transforma em mercadoria, é a principal condição que o engendrou. Assim, a superação do marxismo enquanto fllosofla somente poderá ocorrer com a superação das relações mercantis e capitalistas da qual é precisamente uma critica radical.

Para esses ensaios contei com os aportes dos camaradas da corrente da qual participo, o MES (Movimento Esquerda Socialista), especialmente de Luciana Genro, Carlos Renner e Pedro Fuentes, cujas opiniões foram úteis em todos os ensaios. Agradeço suas criticas e

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sugestões sem as quais não os teria concluído, embora evidentemente não os responsabilize pelas suas falhas e limitações. Luciana, além disso, cedeu seus escritos sobre a história da Internacional, fundamentais na redação do primeiro capitulo. Registro também o apoio de Israel Dutra, militante da juventude do MES, que me estimulou a escrever não apenas com sua sede de saber, mas com seus conhecimentos, dando dicas concretas para deixar o texto mais claro em alguns pontos.

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Reforma ou revolução? uma história de mais de um século

Passou a ser lugar comum na esquerda militante comparar a história do PT com a evolução do Partido Social Democrata Alemão do início do século passado, principal seção da II Internacional. O peso no movimento operário, as relações com os sindicatos, a habilidosa utilização dos processos eleitorais são características tão claramente comuns que o paralelo é inevitável. A capacidade dos lideres desses dois partidos, de suas figuras humanas cujas vidas se confundem com as lutas das classes trabalhadores de seu tempo, é também um fator comum. E a analogia, embora com suas lógicas limitações, é um poderoso método de aprendizado.

Conhece-se, entretanto, muito pouco da história do SPD e muito ainda falta para que seu balanço tenha se esgotado. Sem ser exaustivo, vale a pena aterrissar um pouco por essas paisagens. Não se pode entendê-las, porém, sem enquadrá-las na tradição socialista do movimento operário, tradição marcada pela in:f:uência das ideias de Marx e pela prática do internacionalismo proletário. Isso posto, vamos visitar primeiro a "Associação Internacional dos Trabalhadores" ou I Internacional.

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1 Internacional

A Grã-Bretanha, centro do desenvolvimento da indústria moderna no século XIX, foi o palco no qual a organização sindical dos trabalhadores ganhou o primeiro impulso internacional. Apoiando-se na mão de obra estrangeira, os patrões enfrentavam as fortes greves operárias trazendo trabalhadores franceses do outro lado do Mancha. O sindicalismo britânico teve que buscar rapidamente a solidariedade de classe, dirigindo-se aos trabalhadores franceses, pedindo seu apoio e resgatando a velha tradição internacionalista cujos próprios ingleses haviam sido protagonistas ao defender a revolução francesa durante os últimos anos do século XVIII. Nessas experiências os laços com os franceses começaram a ser estabelecidos.

Como Marx muitas vezes afirmou, os alemães viviam em teoria o que outros povos viviam na prática. O internacionalismo proletário não foi exceção. Na Ideologia Alemã, um dos principais livros do próprio Marx, datado de 1845, já constava a necessidade de uma resposta internacional ao capitalismo, sistema no qual as forças produtivas ultrapassavam as fronteiras nacionais, criavam o mercado mundial e a interdependência entre as nações.

Mais ou menos nesse período Marx e Engels engajaram-se com pequenos grupos de operários alemães que circulavam pela Europa ocidental trabalhando na construção da "Associação dos Comunistas", chamada corretamente por Engels como a primeira organização operária internacional.

Somado ao internacionalismo prático, empírico dos ingleses, tivemos a corrente de Marx e seus amigos. Dessa con:t:uência, resultado da unidade de várias organizações operárias da França e da Inglaterra com exilados alemães, nasce, em 28 de setembro de 1864, a Primeira Internacional. Em seguida alcançou seções em inúmeros países, incluindo os EUA, Espanha e Argentina, entre outros. Assim, a classe trabalhadora, logo no principio de seu movimento político organizado, associou suas tarefas à construção de uma organização internacional.

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A I Internacional não era homogênea. Os sindicatos ingleses vincularam-se com organizações operárias revolucionárias, especialmente francesas, embora não tivessem a mesma posição política. Da mesma forma convergiram os partidários de Proudhon, defensores das cooperativas operárias e dos bancos de crédito popular como estratégia, Bakunin, o revolucionário anarquista, com os partidários de Karl Marx, defensores da concepção segundo a qual o movimento dos trabalhadores deveria lutar pelo poder político e pela expropriação dos expropriadores burgueses. Tanto Proudhon quanto Bakunin eram contrários a idéia de que a luta dos trabalhadores deveria ser uma luta política, considerada por eles uma capitulação ao Estado, visto como a origem do domínio da burguesia sobre o capital, o oposto da visão de Marx, que entendia a sociedade tal qual encontra-se constituída como fundamento do Estado.

O grande trunfo da Primeira Internacional foi ter unido as primeiras organizações de trabalhadores que se tornam internacionalistas, mesmo sendo uma organização com características de frente única, já que coexistiam diferentes posições e programas políticos. Marx, redator da declaração da Primeira Internacional, pensava - posição explicitada no Manifesto Comunista- que o próprio desenvolvimento da luta de classes tornaria possível o amadurecimento da classe trabalhadora para formar o seu partido, visando a conquista do poder político. Para ele, o fundamental era unificar os trabalhadores já organizados partidários do internacionalismo, esperando que este processo de amadurecimento acabasse por resolver as diferenças mais importantes, fortalecendo o movimento enquanto um todo e as idéias comunistas em particular.

Nem Marx nem Engels trabalhavam, portanto, com base em ultimatos, tentando agregar apenas os que concordavam com o conjunto de suas propostas programáticas. Seu método de trabalho, oposto ao sectarismo, deve servir para o aprendizado atual dos socialistas. Assim, em uma carta para Florence Kelley; Engels escrevia: "Nossa teoria do desenvolvimento, não é um dogma para aprender de memória e para repetir mecanicamente ...

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Quando nós voltamos à Alemanha, na primavera de 1848, nos unimos ao Partido Democrático porque este era o único meio possível de chegar a classe operária; fomos a ala mais avançada deste partido, porém ao fim e ao cabo um ala. Quando Marx fundou a Internacional, redigiu o regulamento de maneira que puderam ingressar todos os operários socialistas da época: proudhonistas, lerouxistas, e inclusive o setor mais avançado dos sindicalistas ingleses... Se de 1864 a 1873 tivéssemos insistindo em trabalhar apenas com quem adotasse amplamente nossa plataforma, onde estaríamos hoje?".1

Graças a esse método, a I Internacional conseguiu dissolver e absorver inúmeras seitas socialistas. Seu auge foi durante a onda de greves desencadeada na Europa como desdobramento da crise de 1866 e mais ainda pela recuperação posterior. O Conselho Geral, a direção da Internacional, assessorava os trabalhadores em greves e organizava a solidariedade internacional, ganhando prestigio crescente entre a vanguarda operária em todo o continente e começando sua organização nos EUA.

Mas a prova de fogo da Internacional foi o levante da Comuna de Paris, em 1871. Em 28 de janeiro desse ano, o povo armou-se. Os proletários de Paris, diante do fracasso e da traição das classes governantes durante a guerra com a Prússia, compreenderam que precisavam salvar a situação fazendo-se cargo do poder público. Em fuga diante dos prussianos, a burguesia estava em pânico, entregando o poder da cidade. Assim, por sufrágio universal foi eleito o governo da Comuna com os representantes revogáveis de cada distrito exercendo o poder executivo e legislativo. Foi suprimido o Exército permanente e adotou-se o armamento de todo o povo, a garantia de seu poder. As fábricas abandonadas foram expropriadas. Nascia a primeira experiência de um Estado de novo tipo, pouco oneroso, no qual os funcionários da Comuna e todos os seus membros eleitos não podiam ganhar mais do que ganhava um operário de Paris.

Sua duração não foi longa. A burguesia se recompôs. Os banqueiros organizaram, a partir de Versalhes, a repressão ao levante. O Exército do poder burguês começou o massacre em

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maio. Milhares de mortos, cerca de 30 mil; mais de 25 mil presos deportados para as colônias. Nessa experiência do movimento operário, os integrantes da I Internacional jogaram um papel destacado, sem que isso significasse que fossem hegemônicos. Entre seus mortos ou presos estavam dirigentes operários como Varlim, Delescluze e Louise Michel. A derrota da Comuna colocou-se, conjunturalmente, como um freio ao desenvolvimento percebido por Marx para a formação dos partidos operários e da Internacional.

Nesse contexto de derrota, se aprofundaram as diferenças na Internacional. Enquanto a burguesia responsabilizava Marx pelo levante, o retrocesso do movimento fortaleceu as tendências centrifugas no movimento operário. Primeiro, os sindicalistas ingleses, diante das possibilidades abertas por uma nova lei eleitoral bastante avançada que haviam conquistado, começaram a se aproximar do partido liberal com a finalidade de ingressar no Parlamento. A contrapartida foi se afastar de Marx e dos franceses. Os franceses, por sua vez, foram para uma posição de isolamento. Milhares de presos e exilados giravam ao redor do balanço dos erros e dos acertos de seu movimento. Na França um claro re:t:uxo marcava o país. Finalmente, os anarquistas, chefiados por Bakunin, envolviam-se em todos os tipos de aventura, movimentos políticos minoritários, violentos e conspirativos em nome da Internacional, numa conjuntura em que os militantes operários eram perseguidos.

Nesse quadro, Marx tentava manter a unidade organizativa da Internacional ao mesmo tempo em que se via obrigado a desautorizar Bakunin, cujas ações comprometiam a organização em seu conjunto. Não pode preservar a organização, dissolvida em 1876, mas logrou dar solidez política e teórica para o movimento operário. O Manifesto Comunista, o mais genial escrito de analise, estratégia e agitação política revolucionária, originalmente elaborado em 1848, flnalmente ganhava força. O caráter explorador do capitalismo, a mais valia como mecanismo de apropriação do trabalho excedente, a história entendida como a história da luta de classes com interesses antagônicos, a crescente concentração e centralização dos capitais tendendo para

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o domínio dos monopólios sobre a economia e o desenvolvimento do mercado mundial, evidenciando a necessidade da revolução internacional, passaram a ser pontos fundamentais no movimento operário.

Por sua vez, o papel determinante da intervenção independente dos trabalhadores assumia seu lugar destacado, expresso no preâmbulo dos Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores:" a emancipação da classe operária deve ser obra dos operários mesmos". No próprio Manifesto Comunista havia uma consideração cristalina das relações dos comunistas com os partidos da classe trabalhadora. Vale a pena citá-la na integra:

"Qual a posição dos comunistas diante das massas proletárias? Os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos operários. Não têm interesses que os separem do proletariado em geral.Não proclamam princípios sectários, nos quais pretenderiam modelar o movimento operário. O comunistas só se distinguem dos outros partidos operários em dois pontos:

l)Nas diferentes lutas nacionais dos proletários, fazem ressaltar e prevalecer os interesses comuns do proletariado, os quais são independentes da nacionalidade.

2) Nas diferentes fases da luta entre proletários e burgueses, representam, sempre e em qualquer parte, os interesses do movimento geral.

Na prática, os comunistas constituem, pois, a fração mais resoluta, mais avançada de cada país, a fração que arrasta todas as outras; na teoria, têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento operário. O fim imediato dos comunistas é o mesmo que o de todas as frações do proletariado: organização dos proletários em partido de classe, destruição da supremacia burguesa, conquista do poder pelo proletariado."2

Tal orientação norteou a intervenção dos marxistas revolucionários durante a última metade do século XIX e o inicio do século XX. Considerações, aliás, que dariam um marco político para a própria formação do PT brasileiro e até hoje são dicas vitais

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para os países nos quais a classe trabalhadora não construiu seu próprio partido independente.

Nos anos seguintes, a história da formação dos partidos operários revolucionários, cujo objetivo era a "conquista do poder pelo proletariado" mostrou-se mais complexa do que o previsto por Marx. A classe trabalhadora, embora fosse a classe mais homogênea da sociedade, também já tinha suas diferenças internas. Com o desenvolvimento do capitalismo esse processo se acentuou. Segundo Lênin, "O imperialismo tem a tendência a formar categorias privilegiadas também entre os operários e a divorciá-las da grande massa do proletariado"

Essa foi a base social, material, na qual se consolidou então a corrente reformista no movimento operário. Foi também Lênin quem nos legou as considerações fundamentais para desnudar seu surgimento e significado: "O revisionismo resulta de um fenômeno inevitável, posto que em todo país capitalista existem sempre, ao lado do proletariado, extensas camadas médias da pequena burguesia, de pequenos proprietários( ... ) acrescenta "O imperialismo, que significa a divisão do mundo e a exploração ( ... ) implica lucros monopolistas elevados para um punhado de países riquíssimos, cria a possibilidade econômica de corrupção das camadas superiores do proletariado e, com isto, nutre, dá forma e reforça o oportunismo. A ideologia imperialista penetra, inclusive, no seio da classe operária, a qual não está separada das demais classes por uma muralha chinesa( ... )3

O movimento cada vez mais dividiu-se entre uma ala revolucionária e outra reformista. Assim, estava aberta uma luta política cuja duração chega até nossos dias. Como veremos, uma das bases políticas fundamentais, divisor de águas entre uma ala e outra, foi a atitude diante do aparelho de Estado.

No inicio de sua elaboração Marx não tinha essa questão resolvida. Não obstante, a experiência do movimento operário foi taxativa e o mestre dos revolucionários aprendeu rápido suas lições. Tirando as conclusões sobre a heróica Comuna de Paris, registrou, na sua obra Guerra Civil na França, uma posição estratégica acerca do Estado, posição que manteve sem vacilar ao longo de sua vida:

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"a classe operária não pode se limitar a tomar conta da máquina do Estado que encontra montada e pô-la em funcionamento para atingir seus objetivos próprios" .4 Sem derrotar o aparato burocrático-militar, condição de uma verdadeira revolução, as relações sociais capitalistas e a dominação da burguesia serão mantidas. Os reformistas sempre negaram essa posição, negando assim a luta pelo poder do proletariado, para utilizar a expressão de Marx.

Nos anos seguintes essa disputa pela direção do movimento dos trabalhadores iria atingir sua temperatura máxima.

A II Internacional : Reforma ou Revolução

Em julho de 1876 ocorreu o último congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores, a I Internacional. Na esteira de sua existência e luta, contudo, foram constituídos partidos operários nacionais, desmentido prático daqueles que, munidos do bom senso superflcial, afirmam que uma organização internacional somente pode ser erguida depois da construção de fortes partidos nacionais. A experiência da Associação Internacional mostra o oposto, pelo menos para os que reivindicam sua validade histórica.

Embora a derrota da Comuna tenha sido determinante para a dissolução da I Internacional, não cumpriu-se o prognóstico de Thiers - responsável pelo massacre dos comuneiros - de que o socialismo estaria morto por muito tempo. O movimento operário voltou a estruturar-se e seguiu avançando, sendo marcado, da sua dissolução até 1889, pela continuidade e o desenvolvimento dos partidos operários nacionais. O carro-chefe desse processo era, sem duvida, o partido alemão. Ainda nos períodos da I Internacional, com a conquista do sufrágio universal, em 1867, chegaram ao parlamento os primeiros deputados socialistas. Ao unificarem-se a Associação Geral de Trabalhadores Alemães, de Lassale, e o Partido Social Democrata dos Trabalhadores, dirigido por August Bebei e Wilhem Liebknecht, surge o Partido Operário Social Democrata, em 1875.

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As reivindicações dos trabalhadores continuavam radicalizando-se e os socialistas avançando nos sindicatos, nas associações operarias e nas eleições. Nas eleições parlamentares do Reichstag (o Parlamento Nacional) de 1877, o partido unificado obteve 9, 1 % dos votos, quando antes da fusão cada partido contava com cerca de 3% dos votos. Na capital, em Berlim, a votação do movimento operário socialista alcançou 40%, um susto e tanto para as classes dominantes. Atemorizado com os êxitos eleitorais do socialismo, o governo Bismarck, chanceler da Prússia, promoveu, em 1878, as leis de exceção com o objetivo de reprimir o SPD ( Partido Social-democrata). Neste mesmo período, também com o objetivo de deter o crescimento dos socialistas, Bismarck ditou as reformas na legislação social, a criação do seguro de saúde e de acidentes, o sistema de pensão para a velhice e a invalidez. Não foi o bastante. Os êxitos eleitorais foram seguidos por uma atividade clandestina que serviu de modelo para os partidos em todo o continente e fez com que a socialdemocracia alemã - já definida como marxista - ficasse famosa por sua habilidade em fazer frente à perseguição política. Cabe ressaltar, entretanto, que estando a direção do partido no exílio, os parlamentares acabaram ganhando grande peso no partido e a socialdemocracia alemã saiu da clandestinidade sobrevalorizando a atividade parlamentar.

A Franca abrigava, então, o segundo maior partido operário, que enfrentou uma dura repressão a partir da Comuna de Paris, tendo seus dirigentes assassinados e exilados. A socialdemocracia francesa estava dividida em duas correntes: os "guesdistas", que tentavam promover uma política que permitisse ao proletariado colocar-se à frente de uma aliança com a pequena burguesia urbana, sublinhando o papel determinante da luta de classes e os "possibilistas", que defendiam lutar por reformas imediatas dentro do sistema capitalista, levando adiante uma política centrada na conquista dos poderes municipais. Esses últimos ganharam a maioria do partido francês. No partido francês, ademais, era forte a defesa do Estado como instrumento de conciliação das classes e não de dominação, o que levou ao Millerandismo.5

Os partidos dos outros países oscilaram durante esta etapa

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entre a tradição e peso dos alemães e as distintas frações dos franceses. Contudo, durante a década de 1880, a luta pela jornada de oito horas se converteu em um elemento catalisador da unidade socialista. Durante a década de 1880, esta foi a grande bandeira dos socialistas, pois, em geral, os operários estavam obrigados a trabalhar extenuantes jornadas de mais de 12 horas. Foi em 1886 que a fabulosa greve dos operários de Chicago, durante a qual seis trabalhadores morreram, conquistou a jornada de oito horas e marcou para sempre a data do 1 º de maio. Três anos depois o congresso da II Internacional votou o 1 º de maio como dia internacional de luta pela jornada de oito horas. O movimento operário havia se convertido, então, em um poderoso fator internacional. Por sua vez, a diferença entre as alas reformistas e revolucionárias ficava mais clara.

Nesse cenário, em 1889, num congresso em Paris, foi fundada a organização sucessora da Associação Internacional dos Trabalhadores, a II Internacional Socialista, encabeçada por Engels, uma poderosa organização com partidos operários de massas, cuja in:f:uência do marxismo era enorme, transformada em bandeira oficial em 1896. Sua base fundamental foi a socialdemocracia alemã, os franceses opositores aos "possibilistas" e inúmeros outros partidos menores da Europa, Estados Unidos e da América Latina.

As posições de Bernstein e o surgimento do reformismo na II Internacional

As propostas reformistas, na época também denominadas revisionistas, também não demoraram para surgir no interior da II Internacional. A controvérsia mais conhecida se desenrola essencialmente na Alemanha, em torno das teses de Bernstein, o primeiro expositor das concepções reformistas que predominarão nos partidos socialistas a partir da I Guerra Mundial. Ele foi o porta­voz, o coerentizador das ideias que já estavam sendo amplamente difundidas no movimento operário mundial: a conciliação do socialismo com o liberalismo; a concepção que o socialismo só

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seria obtido como fruto de reformas conquistadas no capitalismo; a necessidade de conquistar o poder pacificamente, por meio das eleições; de apoiar a política colonial do imperialismo e de apoiar as respectivas burguesias em seus con:t:itos expansionistas.

A primeira base política dos chamados revisionistas foram os avanços políticos de partidos como o alemão, dentro da institucionalidade burguesa, apoiados na extensão do sufrágio universal e na ação parlamentar. A questão colocada era se tais avanços representavam uma possibilidade real de transformação do Estado burguês a partir do seu interior ou, ao contrário, resultariam, caso não houvesse contrapesos políticos e organizativos, numa cooptação feita pelo Estado das forças operárias.

Este foi um dos aspectos do debate travado por Rosa Luxemburgo e Bernstein, dirigentes do SPD - Partido da Social Democracia Alemã, no final do século XIX. Justamente naquele momento, o SPD via crescer significativamente os seus votos e suas representações parlamentares. Como temos visto, mesmo antes da fundação da II Internacional, seu peso eleitoral foi crescente. Em 1887, por exemplo, a socialdemocracia conquistou 763.128 votos. Já em 1890, um ano depois da fundação da li Internacional conquistou 1.427 .000 votos, convertendo-se no maior partido alemão em número de votos. Nesse contexto foi quando Engels apresentou suas considerações sobre a importância da utilização do sufrágio universal como arma contra a dominação da burguesia, cujos desdobramentos veremos a seguir.

Na esteira desse crescimento, depois da morte de Engels, Bernstein passou a sustentar que a via de chegada ao socialismo seria a ampliação real da democracia que o liberalismo anunciou, mas deixou pela metade. Tratava-se de transformar em realidade a igualdade e a liberdade abandonadas pela burguesia. As eleições seriam o instrumento fundamental desta luta para "elevar o trabalhador da condição social de proletário àquela de cidadão e portanto, para generalizar o sistema civil ou a condição de cidadão' (Bernstein. "Os pressupostos do socialismo e as tarefas da social democracia" in Socialismo Evolucionário, Zahar editora, RJ,

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1964 ). Seria então, um processo gradual de transição democrática do Estado burguês ao Estado proletário, da sociedade socialista. Para Bernstein, o motor da transformação estaria no crescente peso eleitoral da socialdemocracia, sua utilização correta do voto universal e do parlamento. No plano econômico os fatores de transformação seriam postos pela atividade dos sindicatos e das cooperativas de consumo. Os sindicatos, com suas lutas, poderiam conquistar a abolição do lucro industrial e as cooperativas de consumo aboliriam o lucro comercial. Assim estaria derrotado o sistema capitalista.

Contra as posições de Bernstein, Rosa Luxemburgo escreveu logo em seguida, ainda no ano de 1899, seu livro "reforma social ou revolução?' Sua exposição iniciava afirmando o elo indissolúvel entre a reforma social e a revolução. Sustentava que a luta por reformas é o meio e a revolução social seria a flnalidade do movimento, afirmando ainda que Bernstein inaugurava a separação entre esses dois elementos, transformando a reforma em estratégia e flnalidade do movimento socialista. A critica de Rosa foi sem trégua, sem possibilidade de acordo. Sabia da insuficiência das reformas. Dizia então que "qualquer que seja a tática utilizada, e porque as reformas sociais são e continuarão a ser, em regime capitalista, nozes ocas, a etapa seguinte será, muito logicamente, a desilusão, mesmo no concernente ao valor próprio das reformas" 6.

Todavia mais grave era a posição de Bernstein ao tentar anular as bases objetivas da revolução socialista. O chefe dos revisionistas afirmava que as contradições internas do sistema iriam se atenuando, tanto pela ação dos cartéis, dos sindicatos e pela utilização do crédito, negando, portanto, a clássica posição marxista - retomada por Rosa - segundo o qual o agravamento crescente das contradições era resultado do próprio desenvolvimento do capitalismo. Rosa foi taxativa ao contestar "Ora, o crédito é, ao mesmo nível do dinheiro, da mercadoria, do capital, um nó orgânico da economia capitalista em determinado estágio do seu desenvolvimento e, tal como os outros, constitui nesse estágio uma roda indispensável ao mecanismo da economia

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capitalista e é, simultaneamente, seu elemento corrosivo porque conduz a um agravamento das suas contradições internas". Uma posição clara e que tem sido totalmente confirmada ao longo das décadas no domínio crescente do capital financeiro sobre a economia mundial. Nunca como hoje o crédito tem sido ao mesmo tempo tão indispensável e tão corrosivo para o funcionamento do sistema em sua crise cada vez mais completa, em sua característica cada vez mais parasitaria e rentista. Sua posição também foi confirmada quando contestou a possibilidade dos sindicatos abolirem o lucro ao lutarem por suas reivindicações salariais ou por participarem dos rendimentos das empresas. Os sindicatos, afirmava, não tem nenhum poder ofensivo nesse sentido porque são justamente organismos de defesa da força de trabalho contra os ataques do lucro e tendem constantemente a ver sua fatia reduzida pelo crescimento da produtividade do trabalho.

Todos esses fatores articulavam sua posição em apontar o militarismo, as guerras, as crescentes crises comerciais como a dinâmica lógica da continuidade do capitalismo. Dai concluiu acerca do caráter reacionário do revisionismo, porque não preparava a classe trabalhadora para as catástrofes que ameaçavam a humanidade. As teses revisionistas tratavam de apresentar uma perspectiva de mudanças pacíficas, sem enfrentamento de classes, em suma uma perspectiva fácil para a solução de graves problemas. Tão fácil quanto falsa. Nesse debate Rosa Luxemburgo ganhou autoridade em toda a socialdemocracia européia. Sua posição foi vitoriosa, deixando Bernstein em minoria, no alvorecer do século XX. Em 1908 o revisionismo parecia totalmente batido. Não demoraria, porém, para levantar a cabeça. Ao longo das duas primeiras décadas do novo século o quadro foi sofrendo importantes alterações até que as posições revisionistas dominaram completamente o SPD.

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As bases objetivas do revisionismo e a mudança da situação mundial

O grande desenvolvimento capitalista fornecia as bases econômicas para a política reformista, pois o momento era de concessões à classe trabalhadora devido à sua força e à existência de condições materiais para essas concessões. Já com a unificação da Alemanha em 1871, estavam postas as condições para um rápido desenvolvimento capitalista. Nesta época, sua população atingia cerca de 40 milhões de habitantes. Vinte anos depois, a população já chegava a 50 milhões e em 1914 era de 68 milhões. Matérias primas industriais em abundância, crescimento da agricultura sobre bases capitalistas e grande oferta de mão-de-obra foram os elementos centrais para uma grande expansão da produção ao longo dessas décadas. O avanço tecnológico ocorreu no bojo de uma produção cada vez maior de máquinas que incentivava outros ramos da produção. Produção essa consumida por um mercado interno cada vez maior e com alto poder de compra, sendo ainda possível a exportação das manufaturas alemãs para diversos países da Europa, chegando até a América do Sul, Oriente e África. Essa situação favoreceu imensamente a acumulação de capital, transformando a Alemanha de um país agrícola numa grande e complexa máquina industrial.

O desenvolvimento do capitalismo também possibilitou o crescimento, em número e força, da classe operária alemã. O Partido da Social Democracia Alemã (SPD) torna-se, por muitos anos, o mais forte e organizado partido alemão, sem igual como partido operário em nenhum lugar do mundo. Atravessou um constante crescimento eleitoral, sindical, associativo, cultural. Sua evolução não se deteve. Ao contrário, a democracia burguesa abrira um espaço muito grande para as forças de esquerda crescerem. Em 1912, por exemplo, o SPD obteve 34, 7% dos votos, convertendo-se na maior bancada do parlamento nacional alemão, com 110 deputados. Mas não era apenas um crescimento eleitoral. Nesse período, com cerca de

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meio milhão de membros, dirigia o movimento sindical, as principais cooperativas, um jornal diário que chegava a um milhão de exemplares.

A organização da poderosa força social da socialdemocracia consolidou a tática da acumulação de forças e do desgaste, segundo a qual a social democracia deveria preservar intacta suas forças para o momento decisivo, quando a burguesia trataria de romper sua própria legalidade via um golpe contra-revolucionário, o que justificaria a ação violenta revolucionária dos trabalhadores para defender suas conquistas. Essa linha política fundamental do SPD tinha em Karl Kautsky seu principal expoente e foi avalizada por Engels em diversas oportunidades. A mais conhecida foi em sua introdução, redigida em 1895, a edição alemã do livro de Marx "a Luta de Classes na França (1848-1850). Antes, numa carta a Paul Lafargue, em 1892, Engels diz com todas as letras: "Você pode ver que arma poderosa o sufrágio universal poderia ser na França, ao menos a partir dos anos 40, se pudesse ter sido utilizada! É um instrumento mais aborrecido e mais lento para a promoção da revolução, mas é dez vezes mais seguro; e sobretudo indica com precisão o dia em que se deve empunhar armas pela revolução. Há, inclusive, dez probabilidades contra uma de que o sufrágio universal - habilmente aproveitado pelos trabalhadores - poderá constranger os grupos dominantes e romper a legalidade vigente, colocando-nos assim numa situação mais favorável para fazer a revolução".

Tal formulação, adotando o sufrágio universal como uma tática privilegiada, foi apresentada inúmeras vezes, mas em nenhuma delas Engels abandonou a idéia da necessidade da revolução para derrotar os grupos dominantes. Muito pelo contrario, protestou varias vezes contra todas as tentativas de transformá-lo em defensor da legalidade em si mesma. Não poderia ser diferente. Como explica Norberto Bobbio "a razão pela qual o revolucionário não é um legalista, ou pelo menos nunca o é em última instância, e se opõe, às vezes duramente, ao legalismo reformista, está ligado ao fato de que, uma vez estabelecido o fim de mudar não esta ou aquela norma da ordem mas a ordem como

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um todo (do ponto de vista jurídico, a revolução é a instauração de uma nova ordem), sabe muito bem que essa mudança não pode se realizar por respeito às regras do jogo, entre as quais, explicita ou implícita, está sempre a regra que proíbe mudar a regra no seu todo, e com base na qual a ordem no seu todo pode ser mudada senão por quem se coloca fora da ordem'?.

Contudo, dessa concepção tática da utilização do sufrágio universal se depreendeu as tarefas centrais da socialdemocracia: obter o máximo de votos nas eleições, conduzir boas greves econômicas para aumentar os salários e conquistar reformas sociais. A tática de desgaste previa que nesse caminho se preparariam as forças para o momento da luta e da vitória final sobre o capital. Tal tática era aceita até mesmo pelos bolcheviques e por Lênin, embora na política concreta da Rússia não a aplicassem como eixo de sua orientação, até porque sua atuação já enfrentava um regime de violência aberta, a ditadura czarista. Ao contrário, na Rússia, a ação extra-parlamentar, particularmente a greve política de massas, tinha um enorme peso na educação de massas e na acumulação de forças do partido bolchevique.

Foi exatamente a insurreição de 1905, na Rússia, que ficou conhecida como o "ensaio geral' da revolução de 1917, e sinal de mudança da situação mundial, iniciada no elo mais fraco da cadeia imperialista. A situação da Alemanha também iria mudar. Como dizia Keynes, a economia alemã era como um pião que para manter seu equilíbrio precisava girar cada vez mais rápido, O pião começava a diminuir sua velocidade. Estava terminando a fase da evolução para iniciar a da revolução. O desenvolvimento capitalista na Alemanha havia provocado durante as últimas décadas a concentração da produção, dando origem aos monopólios. Forte concentração de capital e monopolização de vários setores da economia, como no capital bancário, dando origem a uma oligarquia financeira. Nesse contexto, a Alemanha precisava expandir-se para dar vazão a toda sua produção e seguir a acumulação de capital da sua burguesia. Saiu à busca de novos mercados como fonte de matéria-prima barata, para exportar suas mercadorias e também para investir seus capitais

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excedentes. Desenvolveu, então, uma política imperialista, anexando territórios na África e fazendo grandes empréstimos para a América Latina. O choque com as outras potências resultaria inevitável, especialmente com a Inglaterra - a maior delas e que também desenvolvia a sua política imperialista. - o que assentou as bases econômicas e políticas da 1 Guerra Mundial, da continuação da política por outros meios.

Rosa Luxemburgo foi a primeira que percebeu a necessidade de sacudir o partido alemão, de prepará-lo para grandes viradas históricas. Seu raciocínio foi ajudado pela revolução de 1905 na Rússia, visualizando nela as tendências que assumiriam as lutas operarias em todo o continente. A importância do levante de 1905 torna-se mais evidente quando levamos em conta que se tratou da primeira explosão revolucionária em escala de massas desde a Comuna de Paris. Nela soou a hora da velha tática socialdemocrata. Apenas a acumulação de forças e o crescimento constante das lutas sindicais e eleitorais não seriam suficientes. A convicção de Rosa Luxemburgo, em suma, era que sem a educação das massas nas lutas extra-parlamentares a socialdemocracia não responderia de modo correto no momento decisivo.

A concepção da história como um progresso de tipo contínuo, evolutivo, típica na maioria da direção do SPD era incapaz de armar uma política correta, num cenário em que o progresso somente poderia ocorrer entrecortado por saltos qualitativos e, portanto, de modo descontínuo. O debate entre a socialdemocracia por um lado e os sindicalistas e anarquistas por outro, com os primeiros sustentando ações de massas organizadas essencialmente pacificas e eleitorais e com os segundos defendendo ações diretas de minorias conscientes acabava sendo superado por uma combinação nova e mais rica, uma síntese que incorporava a necessidade de ações ofensivas, de mobilizações de rua de caráter cada vez mais audaciosas, mas sempre levando em conta a correlação de forças e, sobretudo, a necessidade da participação ativa e cada vez mais organizada das massas, não apenas da vanguarda ou de minorias combativas.

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Mas a tática do desgaste desfocada de uma totalidade política mais ampla tinha feito seus estragos na própria socialdemocracia. Embora não avalizasse a sustentação de Bernstein de uma passagem pacífica para o socialismo, fortalecia objetivamente suas bases no partido, no qual crescia a concepção segundo a qual a via institucional tinha-se tomado o caminho mais certo e seguro para transformar o Estado burguês em socialista. Na evolução da socialdemocracia as teses de Bernstein acabaram se impondo pela transformação da tática eleitoral em tática absoluta, exclusiva, convertendo na verdade a tática em estratégia, isto é, em um plano cujas eleições têm a centralidade integral, tornando a acumulação de forças um fim em si mesmo e o resultado eleitoral em termômetro exclusivo da vontade das massas e da relação de forças entre as classes. Consumava-se o abandono do critério da totalidade na analise da situação e na definição das tarefas políticas da socialdemocracia.

Foi justamente quando a situação mundial rumou de modo irreversível para um cenário de crise econômica e de guerra que as ideias de Rosa Luxemburgo foram tragicamente comprovadas. O regime burguês, ao invés de ser marcado pelos espaços democráticos de disputa e pela promoção de rotineiros processos eleitorais, conduziu a Europa para a carnificina e usou os operários como bucha de canhão. O critério evolutivo se quebrava. O ápice da acomodação do partido alemão no regime burguês estava selado no seu apoio aos créditos de guerra votados no parlamento (autorização de gastos para o governo alemão investir na guerra). Ao votar favoravelmente a estes créditos, a socialdemocracia colocou-se ao lado da sua burguesia, apoiando uma guerra inter­imperialista de disputa pelas colônias e mercados. Uma "guerra de rapina". Foi o sinal que o acomodamento do partido havia chegado a um ponto de integração plena no Estado capitalista, não descartando, logo, a própria convivência do regime burguês com um governo socialdemocrata, como viria a se confirmar poucos anos depois.

Esse giro na história do partido alemão, que até o início do século XX havia marchado claramente sob a bandeira do

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marxismo revolucionário, foi conseqüência de erros políticos, mas teve base objetiva no "boom" capitalista anterior. Os interesses da pequena burguesia e dos setores operários privilegiados estavam estreitamente vinculados aos da burguesia monopolista. Sabiam perfeitamente que a burguesia podia fazer concessões a suas demandas, desde que se mantivessem os superlucros provenientes da expansão imperialista. Por esta razão, os interesses deste setor e os da burguesia estavam estreitamente ligados à exploração do proletariado mundial. Portanto, as manifestações a favor da política colonial da Alemanha não pararam de crescer no partido A propaganda nacionalista do governo alemão tinha forte apelo e um objetivo claro: levar aos setores operários a ideologia nacionalista, e assim, conduzi-los ao enfrentamento com o operariado da Inglaterra, Rússia e França. Era com essas burguesias que a burguesia alemã estava em choque, e precisava do apoio da socialdemocracia para ganhar o proletariado para este embate.

Ao invés de enfrentar a burguesia com cada vez mais força, desenvolveu-se e ganhou grande peso no aparato do partido tendências revisionistas, reformistas e, flnalmente, nacionalistas -chauvinistas. Esse risco não era estranho a Engels. Em uma de suas cartas a Bebei, ainda em 1887, afirmava que o aburguesamento do partido é uma "uma desgraça de todos os partidos extremos quando se aproxima a hora que se fazem possíveis". E alertava: "Porém nosso partido não pode passar nesse sentido de um determinado limite, sem trair-se a si mesmo, e me parece que na França, como na Alemanha, temos chegado já nesse limite. Felizmente, não é tarde para deter-nos"8.

Em 04 de agosto de 1914 ficou claro que a socialdemocracia havia ultrapassado o limite assinalado por Engels. A definição leninista afirmando que o imperialismo forma categorias privilegiadas entre os operários oferece a explicação social desse fenômeno. A classe operária se fratura em segmentos de classe, dando origem a uma "aristocracia operária" que detém privilégios em relação ao conjunto da classe e os defende com unas e dentes. Essa situação acertou em cheio os partidos socialdemocratas. Seus

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dirigentes, em grande parte, passaram a integrar essa aristocracia, a raciocinar como tal e a agir para assim continuar, isto é, para defender seus privilégios. É Rosa Luxemburgo quem diz: "A corrente oportunista teoricamente formulada por Bemtein não é outra coisa que uma tendência oculta a assegurar, no partido, a supremacia dos elementos pequeno- burgueses, pretendendo moldar à sua imagem a prática e os fins do partido'.

É neste contexto que surge também a burocracia sindical que, com o fortalecimento dos sindicatos, acaba sendo detentora de grande poder, usando-o para obter privilégios. Na Alemanha das primeiras duas décadas do século passado essa acomodação era visível, sendo os dirigentes sindicais os maiores prisioneiros da linha conservadora. Nos países centrais, na década de 50 e 60 do século XX também ocorreu a mesma pressão. Em ambos os momentos, as conquistas econômicas das ações sindicai eram relativamente fáceis. Nas conjunturas de crise econômicas, porém, a utopia da conquista constante de concessões se revela com toda a força e a estratégia reformista esbarra em seus limites.

A capitulação total da socialdemocracia: as bases da ruptura da II Internacional

Quando os tambores da I Guerra Mundial começaram a bater abriu-se um duro embate no interior da II Internacional. O congresso de Stuttgart em 1907 foi o palco preliminar desta discussão surgindo ai, pela primeira vez, uma esquerda dentro da Internacional que se organiza e reúne-se para tomar posições conjuntas. Unem-se Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin, Martov, Lênin, Trotsky entre outros, para tentar uma resolução principista e que unificasse as diferentes propostas surgidas no debate. Conseguem derrotar a ala de direita e de centro na questão da guerra. Não é demais lembrar as resoluções dos internacionalistas:

" ( ... ) Se uma guerra ameaça explodir, é um dever da classe operária em todos os países afetados, e de seus representantes no parlamentos, com a ajuda do Buró Internacional, trabalhar para pela ação e coordenação, de fazer todos os esforços para impedir a guerra,

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por todos os meios que lhes pareçam melhores e mais apropriados ( ... ). Entretanto.no caso da guerra iniciar, têm o dever de interpor­se para que cesse imediatamente, e de utilizar com todas as suas forças, a crise econômica e a política criada pela guerra para agitar as camadas populares mais amplas e precipitar a queda da dominação capitalista."

Mas a vitória obtida no congresso de Stuttgart não impede que, ao estourar a guerra, a maioria da socialdemocracia, em toda a Europa, alinhe-se com suas burguesias. Na Alemanha, por sua vez, o partido estava mergulhado em um eleitoralismo absoluto, precisava dos votos da classe média ganha para o nacionalismo e, então, já não dissimulava seu apoio ao colonialismo.

Contra o avanço do setor nacionalista dentro do SPD, crescia também a oposição de esquerda, liderada por Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Franz Mehring e outros. Este grupo fazia propaganda internacionalista e defendia, frente à iminência da guerra imperialista, uma revolução de massas em todos os países que possivelmente seriam beligerantes. A Alemanha fervilhava em manifestações operárias contra a guerra e enfrentamentos de rua ocorriam entre o proletariado e uma juventude nacionalista que também saiu às ruas.

Karl Liebknecht: o único deputado contra os créditos de guerra

A socialdemocracia apoiava incondicionalmente a guerra e a burguesia monopolista alemã pôde levar a cabo sua guerra contra as outras potências imperialistas. Rosa classificou este fato como "a maior derrota imaginável para o proletariado europeu", que foi mandado para uma guerra imperialista matar seus irmãos de outros países em nome do nacionalismo burguês apoiado pela socialdemocracia. Foi neste momento que a socialdemocracia, depois de abandonar vários pressupostos básicos do marxismo, perdeu também seu caráter internacionalista, optando pela solidariedade com suas burguesias. Depois da traição da II Internacional, Lênin faz o chamado para a construção de uma nova internacional revolucionária.

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NoReichtag - o parlamento alemão - todos os representantes socialdemocratas votaram a favor dos créditos de guerra pedidos pelo governo alemão, menos Karl Liebknecht, também dirigente da esquerda da socialdemocracia. Foi tentada a censura a sua posição, proibiu-se as taquigrafas de reproduzir suas intervenções para que não chegassem ao povo, chegando até a ser agredido fisicamente por representantes do bloco socialdemocrata. Mas, em 2 de dezembro de 1914, quando se discutia no Reichtag a respeito dos créditos de guerra, Karl Liebknecht conseguiu fazer a seguinte declaração:

" ( ... ) Esta guerra, que nenhum dos povos envolvidos quis, não estoura para o bem do povo alemão ou de nenhum outro. Se trata de uma guerra imperialista, de uma guerra que tem por objetivo a dominação capitalista do mercado mundial, a dominação política de extensos territórios onde se assentaria o capital industrial e bancário. ( ... ) Se trata também de um empreendimento bonapartista que tende a desmoralizar e destruir o movimento operário. ( ... )A palavra de ordem alemã: contra o czarismo!, como a palavra de ordem inglesa e francesa: contra o militarismo!, tem servido para mobilizar os mais nobres instintos, as tradições e esperanças revolucionárias do povo, em proveito do ódio entre os povos. Cúmplice do czarismo, país modelo até hoje de reacionarismo político, a Alemanha não tem autoridade para erigir-se em libertadora das nações. A liberação do povo russo, como do povo alemão, deve ser obtida por estes próprios povos.

Uma paz rápida e que não desonre ninguém, uma paz sem conquistas, isto é o que há que exigir. ( ... )Somente uma paz baseada na solidariedade internacional dos trabalhadores e na liberdade de todos os povos pode ser uma paz duradoura. É neste sentido que o proletariado de todos os países, deve fazer, no curso da própria guerra, um esforço pela paz".

A Liga Spartacus De:t:agrada a 1 guerra mundial, as divergências entre o grupo

de Rosa e Liebknecht e a socialdemocracia chegam ao ponto de ruptura. Os esforços de Rosa voltam-se para a construção de uma alternativa à socialdemocracia, criando uma fração organizada em

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seu interior, a Liga Spartacus. Em maio de 1915, o grupo de Rosa funda a Liga, sustentando que /1 o proletariado não tem outra pátria que a Internacional Socialista" e que /1 a tarefa do movimento deve consistir em praticar a luta de classes contra a guerra e impor a paz por vontade das massas".

É provável que a decisão de organizar uma fração no interior do SPD tivesse que ser tomada há alguns anos antes, durante as discussões sobre a greve geral de massas em 1905. Mas nesse momento a autoridade da direção do SPD não era questionada nem pelos bolcheviques e por Lênin. Rosa seguiu apostando na direção do partido, pelo menos até 1912. De qualquer forma, entre a decisão da construção de uma fração organizada no SPD e a decisão da direção do SPD de expulsá-la não se passou muito tempo. Os espartaquistas foram expulsos em seguida. Junto com outros setores de oposição também expulsos, fundam o partido socialdemocrata independente (USPD).

Nesse período a situação política fica cada vez mais conturbada. Liebknecht teve sua prisão decretada e as massas se ergueram em sua defesa, em fortes protestos. A aristocracia e a burguesia perdiam terreno. O império estava ameaçado. A crise econômica era brutal. Em novembro de 1918 eclodiu a revolução. As massas tomaram as ruas. Civis armados, marinheiros e soldados ocuparam o parlamento. Os espartaquistas aumentavam sua in:f:uência. Ao perder terreno, a burguesia negociou com os setores de direita da socialdemocracia. Constitui-se um governo de coalizão entre a socialdemocracia e a burguesia que não conseguiu deter o processo revolucionário. Por fim, para salvar a monarquia, o Príncipe Max Von Baden entregou a chancelaria a Friedrich Ebert, o chefe da socialdemocracia. Forçado pelos acontecimentos, pelas mobilizações de rua e pela confusão nos círculos governamentais, Ebert proclamou o fim da monarquia, mas manteve o governo comum com a burguesia e se apoiou no Exército para restabelecer a ordem. O SPD finalmente chegou ao poder para construir uma república democrático-burguesa.

As alianças dos seus antigos chefes com a burguesia confundiu o movimento de massas. A participação da

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socialdemocracia no governo burguês desmotivou uma parte do movimento. Agravando o problema, o USPD decidiu também participar do governo e os espartaquistas romperam com eles, fundando logo em seguida o Partido Comunista. A divisão da representação política da classe trabalhadora, com o surgimento de três partidos, o de direita, os independentes e a ala esquerda, sinalizou as dificuldades da continuidade da revolução. Contudo, as mobilizações prosseguiram em levantes que constituíram conselhos formados por operários e soldados. Os enfrentamentos passaram a ser entre a socialdemocracia e as massas. Sob a palavra de ordem "Todo poder aos Conselhos de operários e Soldados", trabalhadores se apossaram de pontos nevrálgicos da cidade e a situação do governo tomou-se crítica. Mas foi um ataque sem a força necessária para derrubar o governo. Os operários de Berlim não foram acompanhados pelo conjunto do operariado no interior e as tropas estavam divididas, ainda demasiado in:f:uenciadas pelos oficiais reacionários.

Os espartaquistas perceberam a insuficiência das forças revolucionárias, mas não tinham organização e in:f:uência suficiente para dirigir o movimento. Não hesitaram, contudo, em manterem-se firmes com a classe trabalhadora em luta. Conheciam a regra das revoluções segundo a qual, com a revolução desencadeada, não se pode voltar atrás, ficar na inação. A melhor defesa é o ataque, já dizia Rosa no seu "A ordem reina em Berlim". Como as condições ainda não estavam maduras para que os trabalhadores enfrentassem uma batalha decisiva contra o novo governo, o governo socialdemocrata pode organizar a repressão e, pouco a pouco, derrotar a revolução. Liebknecht e Rosa foram presos e assassinados em janeiro de 1919, no pior revés para os revolucionários do pós-guerra, causando o isolamento da revolução russa e terríveis problemas para o movimento socialista mundial.

Apesar da derrota da revolução dos Conselhos alemães, foi a partir da Liga Spartacus que se formou, em dezembro de 1918, o Partido Comunista Alemão, base fundamental, junto com os bolcheviques, para a construção da III Internacional,

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fundada em 1919. Por sua vez, nos anos seguintes, o fracasso da socialdemocracia com sua estratégia de reformas evidenciou­se ainda mais. Em sua conta, não apenas entraram o assassinato dos revolucionários, mas a continuidade da crise econômica, da miséria das massas e do militarismo. Na esteira desses processos o nazismo começou a levantar a cabeça e mais uma guerra mundial começou sua gestação.

Aprendendo com o passado

A conclusão que se impõe ao curso da socialdemocracia não pode ser mais obvia: adotando uma estratégia reformista e eleitoral, os partidos operários acabaram negando os próprios fundamentos de sua existência. Depois de idas e vindas, crescimento, inserção social, disputas políticas, vacilações, cederam aos interesses da classe dominante e foram os coveiros da revolução socialista. São nesses momentos, portanto, em que o reformismo abandona seus próprios objetivos reformistas. Hoje, os partidos que reivindicam a socialdemocracia européia são defensores diretos dos interesses dos monopólios capitalistas, agentes do imperialismo europeu. Aplicam planos contrários aos interesses dos trabalhadores e estão sendo linha de frente no desmonte até mesmo do chamado Estado de Bem Estar social.

Assim, é determinante aprender as origens do reformismo e seu significado, para prevenir o mesmo curso adotado pela socialdemocracia. Em Marxismo e Revisionismo, Lênin disse: "Mudar o comportamento de um caso para outro, adaptar-se às circunstâncias do dia, a mudanças das minúcias políticas, esquecer os interesses cardinais do proletariado e os traços fundamentais do regime capitalista, sacrificar esses interesses cardinais em troca de vantagens reais ou supostas do momento: esta é a política revisionista".

Esse é apenas o começo. Ademais, vale lembrar que a base da incorporação da socialdemocracia no governo burguês da Alemanha foi a aliança entre a burocracia operaria privilegiada com a contra-revolução burguesa. Sua base teórica, porém, foi a

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incompreensão da incompatibilidade entre a democracia operária e o velho Estado burguês, mesmo que fundado na democracia burguesa. E Bernstein foi o precursor da visão que conduziu a essa incompreensão. Como se sabe, o PT reedita a maior parte dos argumentos de Bernstein. Sendo assim, temos nos apoiado em Marx e seus discípulos, entre os quais Rosa Luxemburgo é uma das mais destacadas, para refutar as teses da direção majoritária do partido. Não se trata apenas uma homenagem ao passado, mas da necessidade de construir uma alternativa socialista. No Brasil não temos uma situação revolucionária como havia na Europa com o início da I Guerra Mundial e, sobretudo, após a revolução russa de 1917. Foram nessas circunstâncias que a socialdemocracia entrou no governo e atuou a serviço do capital. Mas o novo governo do PT abre um momento determinante para seu futuro e para o país. A sorte dos próximos anos começa a ser decidida.

Nesse sentido, para a construção do projeto socialista, a história é também nossa conselheira. Entre as teses de Bernstein e o giro à direita definitiva e irreversível da socialdemocracia passou-se mais de 15 anos. Somente no auge da in:f:uência reformista e da colaboração de classes com a burguesia, na traição de 4 de agosto de 1914, quando os créditos de guerra foram votados, a ala esquerda do partido alemão e da II Internacional traçou o caminho da ruptura. Antes, surgiram grupos ultra­esquerdistas que tentaram construir-se por fora desse verdadeiro movimento político com in:f:uência de massas e seu isolamento apenas ampliou seu sectarismo e as dificuldades de disputar a direção do movimento dos trabalhadores. Por outro lado, assim como a precipitação representa um grave erro, o quietismo pode ser um erro ainda maior, sobretudo quando estamos próximos de momentos decisivos.

Intervindo no PT, tratamos de evitar os dois caminhos. Nossa insistência na unidade da esquerda do partido em torno da defesa da necessidade da revolução e de uma política centrada nas mobilizações sociais é parte desse esforço para delimitar campo entre duas estratégias claras: reforma ou revolução. Da clareza dessa delimitação e de uma política hábil depende a capacidade

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de incidir sobre setores centristas, os que estão entre as posições revolucionárias e reformistas - e mesmo de um trabalho de frente única com setores reformistas honestos, quer dizer conseqüentes defensores de reformas políticas, econômicas e sociais.

Notas:

1 Marx e Engels - Correspondência - pg 364 - Editorial Cartago, Buenos Aires

2 Marx e Engels Manifesto Comunista, pg 33 - Edições horizontes. 1945 - Rio de Janeiro

3 Marx - Guerra Civil na França - Pagina 539 - Obras escolhidas - Editorial Fundamentos - Madrid

4 Lênin - Imperialismo, fase superior do capitalismo, Editorial Progresso, Obras Completas

5 Em 1889 o governo francês de Waldeck-Rosseau, buscando uma aliança com os socialistas, nomeia Millerand, um dirigente do partido socialdemocrata francês, como ministro da Indústria e Comércio. Dai surgiu a política de participação socialistas em Ministérios burgueses.

6 Rosa Luxemburgo - Reforma ou revolução? -pagina 66 - Global Editora

7 Teoria Geral da Política - Norberto Bobbip - pagina 592

8 Citado em Marxismo e o Estado - Coletânea de textos de Lênin - página 27

- Ediciones Jugar - Madrid

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O marxismo e o Estado

Vamos deixando as paisagens da historia da II Internacional. A polêmica entre reformistas e revolucionários, contudo, segue sendo o pano de fundo de nossos escritos. Agora, ao invés de Bersntein, veremos mais de perto as ideias da direção do PT. Nesses debates encontramos poucos textos que fundamentem teoricamente as posições políticas dos principais líderes do partido, do núcleo mais próximo a Lula, escritos por eles mesmos. Assim, recorremos aos textos de alguns elaboradores como Carlos Nelson Coutinho e Tarso Genro, para citar os dois mais capazes atualmente de expor teoricamente o que Lula, José Dirceu, Genoino, Palocci, Marta Suplicy e Benedita da Silva fazem no dia a dia da politica.

Neste sentido, Contra Corrente, último livro do professor Carlos Nelson Coutinho, pode ser considerado um texto síntese sobre muitas das posições da maioria da Direção Nacional do partido. Mais apropriado seria, portanto, se seu livro se intitulasse "A favor da Corrente" majoritária no PT. É verdade que atualmente o próprio Coutinho tem criticado a maioria por estar abandonando posições socialistas e adotando apenas a defesa de uma pretensa democracia pura. As teses da maioria da direção estão, então, por assim dizer, à direita da linha de Coutinho. Chegaram a um grau de conciliação de classes que intelectuais honestos como o professor carioca não concordam, nem representam uma derivação direta de suas elaborações teóricas. Isso também serve para vários escritos de Tarso. Mas a tecla do professor serve para as teses atuais petistas, embora ele mesmo pareça agora vacilar em reconhecê­las. A base do livro é a polêmica com as chamadas posições da III Internacional, em nome de uma atualização cuja essência nada

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mais faz que retroceder às posições da II Internacional durante a virada oportunista no inicio da I Grande Guerra Mundial.

Suas discussões sempre estiveram em pauta no PT. Muitos dirigentes partidários e teses vencedoras nos encontros petistas apresentavam algumas de suas ideias. Sua sistematização teórica, contudo, sempre foi insuficiente e dispersa. De qualquer forma, faz muito tempo que se abrem polêmicas envolvendo temas como reforma ou revolução, Estado, hegemonia, insurreição, guerra de movimentos e posições. O livro trata dessas questões e nossas considerações também estão sobre essas trilhas.

O ponto de unidade fundamental entre sua obra e a corrente oportunista do movimento operário esta em sua recusa a adjetivar a democracia, para usar sua expressão, criticando Lênin por sempre defini-la em termos de classes, burguesa ou proletária. Carlos Nelson Coutinho, porém, é um pouco mais sutil que Bernstein. Por isso sua posição nos faz recordar mais as posições de Karl Kautsky. Kautsky foi o mestre do marxismo da II Internacional. Este dirigente alemão foi amigo de Engels e, durante anos, o principal teórico da II Internacional, referência e mestre dos bolcheviques russos e de Lênin. Comentava-se que era mais lido entre os russos dos que entre os alemães. Junto com Rosa Luxemburgo, encabeçou com sua autoridade a luta contra o oportunismo de Bernstein. Depois passou a uma posição centrista entre os revolucionários e oportunistas, uma passagem cuja Rosa Luxemburgo foi a primeira - portanto antes de Lênin - a alertar que estava em curso. Lênin, aliás, não acreditava que isso estava ocorrendo e menos ainda acreditou quando Kautsky apoiou os créditos de guerra e chefiou a li Internacional na capitulação ao chamado nacional chauvinismo.

Por isso, também Lênin estudou tanto qual tinha sido o ponto no qual o rubicão foi atravessado. "Notamos agora, quando estudamos a história da mais recente traição de Kautsky ao marxismo, um desvio sistemático para o oportunismo precisamente na questão do Estado"l. Lênin, como Marx, defendia como principio a demolição do Estado, sua destruição, enquanto Kautsky passou a assumir uma posição oposta. Tergiversava

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afirmando que a destruição do Estado era a posição dos anarquistas, muito embora Kautsky soubesse perfeitamente o conteúdo real da polêmica com os anarquistas, defensores da abolição pura e simples do Estado, posição criticada pelo marxismo, partidário da construção de outro Estado, um Estado de novo tipo, surgido da demolição do Estado burguês, de seu polícia, sua justiça, seu parlamento, seu exército permanente e seu aparelho burocrático e administrativo.

Lênin, citando Pannekoek, afirmava que o dirigente holandês representava o marxismo contra Kautsky: "a luta do proletariado não é simplesmente uma luta contra a burguesia pelo poder de Estado, mas uma luta contra o poder de Estado ... "2. É o que dizemos a respeito de Coutinho quando sua posição abandona o marxismo e assume as ideias de Kautsky ao sustentar uma estratégia para "suprimir a dominação burguesa sobre o Estado a fim de permitir que esse institutos políticos democráticos (aqui falando do parlamento, por exemplo) possam alcançar pleno :t:orescimento e, desse modo, servir integralmente à libertação da humanidade"3. Ou seja, o Estado perde totalmente o caráter de Estado concreto, representante de uma classe dominante num período histórico determinado. Passa a ser um Estado em geral, vazio de conteúdo, assim como a democracia para Coutinho é também democracia em geral, sem conteúdo de classe. Coutinho, infelizmente, acaba se movendo com categorias abstratas, dissociando totalmente a forma do conteúdo.

Para usar suas próprias palavras, defende que o parlamento pode ser uma instituição fundamental para a socialização da politica e a libertação da humanidade, sem referir-se concretamente ao conteúdo deste parlamento, sem precisar que o parlamento e uma forma de representação política nascida num período de ascenso da burguesia, atravessando sua fase de decadência na maioria dos países, precisamente porque a classe que lhe deu origem, em seu movimento politico concreto, em sua representatividade, encontra-se em estágio de decadência.

O parlamento, sem o domínio da burguesia sobre o Estado, já não será mais um parlamento tal como conhecemos hoje. Teríamos

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outro conteúdo de classe, portanto outra forma de representação política que, na nossa opinião, apenas vai expressar-se em toda a sua plenitude no movimento real da nova classe revolucionaria -as classes trabalhadoras assalariadas, não mais a burguesia.

Como vemos, as posições de Coutinho, no melhor dos casos acompanham a sutileza de Kautsky ao deturpar o marxismo. Lênin comentava que Kautsky não recusava /1 teoricamente" que o Estado fosse um órgão de dominação de classe nem que as contradições de classes sejam irreconciliáveis, mas perdia de vista o seguinte: /1 se o Estado é o produto do caráter inconciliável das contradições de classe, se ele é um poder que está acima da sociedade e que cada vez mais se aliena da sociedade, então é evidente que a emancipação da classe oprimida é impossível não só sem uma revolução violenta mas também sem a destruição do aparelho de poder do Estado que foi criado pela classe dominante e no qual está encarnada esta alienação" 4.

Assim, com suas posições, o professor foi útil para a direção majoritária do partido. Afinal, seu núcleo dirigente, neste caso também seguindo a tradição da corrente oportunista no movimento operário, demora para formular teoricamente seus avanços no dia-a-dia da política. As teses de Coutinho lhes poupou trabalho: caíram como uma luva para justificar seu novo curso. A bem da verdade, é preciso dizer - o que no capítulo seguinte demonstraremos - que o núcleo dirigente do partido, desde sua fundação, teve uma atitude vacilante em relação ao Estado. No início, como um desvio das posições socialistas, a imagem e semelhança do apontado por Lênin sobre Kautsky; depois, como uma nova concepção globalmente distinta das concepções revolucionárias.

Antes de tecer as considerações críticas da abordagem petista sobre a teoria do Estado e suas implicações políticas na evolução do PT, faz falta expor, embora brevemente, as posições clássicas do marxismo de uma maneira positiva sobre essa questão.

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O debate sobre o Estado

A discussão sobre o Estado é uma das mais importantes para o marxismo. Sua definição, na verdade, é um divisor de águas entre os reformistas e os revolucionários. Não pretendemos tecer considerações capazes de dar conta do conjunto das determinações deste aparato de poder político, nem tampouco historiar a evolução do pensamento acerca deste elemento fundamental da teoria politica clássica, objeto de estudos de Aristóteles, Platão, passando por Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Kant, Hegel, Montesquieu,Locke e chegando a Marx e Engels, autor do principal estudo marxista sobre o assunto," Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado", no qual o camarada de armas e amigo inseparável de Marx destruiu a crença no Estado absoluto e eterno. Baseando-se nas investigações de Lewis Morgan, chegou à conclusão de que o Estado não existiu sempre, que houve sociedades que não tiveram nenhum vestígio de Estado e de seu poder. Essa é nossa referência preliminar.

O surgimento do Estado envolve um debate ainda não resolvido. Nas ciências sociais em geral e no marxismo em particular há muitas teorias a respeito. Na explicação básica marxista, o Estado surge quando a sociedade começa a se dividir em classes e quando as contradições de classes não podem ser mais conciliadas. Surge para conter as contradições e assegurar a continuidade da sociedade, mas não surge acima das classes, neutro entre elas, mas sim como instrumento da classe social economicamente mais poderosa, garantindo sua dominação, de tal forma que mesmo o mais democrático dos Estados visa legalizar e consolidar o domínio de uma classe sobre a outra.

Com a descoberta do modo de produção asiático, a teoria marxista do Estado teve que ser enriquecida. Este modo de produção abriu um cenário novo, no qual as relações de exploração existiam mesmo onde as relações de propriedade não se baseavam na posse privada dos meios de produção fundamentais. O modo de produção asiático era baseado na propriedade coletiva dos meios de produção, cujo domínio político era exercido por uma casta, não por uma classe social com um papel determinado na produção social.

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Em qualquer sociedade cujo modo de produção fundamental era a irrigação apareceram os administradores da água e seus acólitos armados. Surgiram grupos de homens que monopolizam as tarefas antes feitas pela tribo democraticamente, e construíram instituições para exercer este poder. Ficou claro que o surgimento do Estado teve relação direta com a necessidade da administração do excedente econômico. Desde então, incorporou-se a relativa escassez da produção, a impossibilidade de satisfazer pelo menos as necessidades mais importantes de todos como fator determinante no surgimento de um aparelho burocrático na sociedade.

No inicio, "a sociedade criou os órgãos especiais destinados a velar por seus interesses comuns. Porém, com o passar do tempo, esses órgãos, à cabeça dos quais figurava o poder estatal, perseguindo seus próprios interesses específicos, se converteram em senhores da sociedade em senhores dela"5. No anti-Duhring, Engels reconhecia aí a origem do Estado, cuja aparição ocorreu há cerca de seis ou oito mil anos, na sociedade asiática (como no caso dos chineses e dos egípcios). Com essa observação de Engels não se pode deixar de reconhecer que os primeiros sinais de constituição do Estado foram passos progressistas, com a sociedade construindo instituições para "velar por seus interesses comuns". Posto isso, a escassez - e, portanto, a necessidade do controle e da burocracia -assume toda sua dimensão como responsável pela dominação do homem pelo homem.

Segundo Nahuel Moreno, em linhas gerais, as instituições e as burocracias têm semelhanças ao longo da história. "A burocracia que controla e administra a fé do povo são os padres, organizados na igreja. Os que administram o ensino são os maestros e professores; suas instituições são as escolas, os colégios e as universidades. Os burocratas que defendem o Estado dos ataques exteriores são os militares, organizados nos exércitos. Os que administram a justiça são os juízes e seus empregados. Finalmente, estão os que administram o próprio Estado, cobrando os impostos e fazendo todas as tarefas necessárias para que funcione o aparato governamental" 6.

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Foi apenas na sociedade escravagista (os romanos) que apareceram as classes sociais e o Estado tomou seu caráter definido por Marx: o de instrumento para que a classe exploradora imponha sua ditadura às classes exploradas. Embora parcial, devido ao fato de trabalhar com o conceito de classe na explicação da origem do Estado, a exposição histórica do seu surgimento apresentada por Emest Mandei merece ser citada, precisamente porque assinala o papel do monopólio da violência como sua característica definidora: "O aparecimento das classes dominantes efetua-se pela apropriação do sobreproduto social por uma fração da sociedade. Em numerosas tribos e aldeias africanas assistiu-se, ao longo dos últimos séculos, a reprodução de uma evolução que se encontra na origem do nascimento do Estado nos mais antigos impérios do Oriente (Egito, Mesopotâmia, Irã. China, india): ... Grupo de homens armados - pouco importa que se chamem de soldados, policiais, piratas ou bandidos - obrigam os cultivadores e os criadores de animais, mais tarde os artesãos e os comerciantes, a abandonar uma parte de sua produção em benefício das classes dominantes. Com este fim usam armas e devem impedir que os produtores se encontrem igualmente armados .... Nada, ao longo da história permite justificar a tese liberal-burguesa segundo qual o Estado teria nascido de um "contrato", de uma "convenção" livremente aceita por todos os membros de uma coletividade. Pelo contrário, tudo confirma que é o produto de uma opressão, da violência exercida de alguns contra outros'?.

Em essência, o Estado foi definido pelo marxismo como um grupo de homens armados para garantir a apropriação do excedente econômico pela classe ou casta dominante. Essa mesma linha de abordagem é reforçada por Bobbio: "Entre os meios de serviço que são expropriados foram fundamentais para o nascimento do Estado moderno os meios que servem ao uso da força, em palavras pobres, as armas. O Estado moderno é o resultado, como já afirmei, de um lento e irreversível processo de monopolização do uso da força'8. É claro que esta definição é restrita, sem pretender traçar todas as suas determinações, nem muito menos esgotar suas variadas formas e características

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de acordo com as épocas, os países, as formações sociais, assim como as relações entre a política e os mecanismos econômicos na reprodução das relações de produção.

Na escravidão, por exemplo, o domínio da força era evidente. Os seres humanos eram convertidos em meios de produção, privados de todo direito social e legalmente assimilados como bestas de cargas. Na teoria romana, o escravo na agricultura era designado como instrumentum vocale, um grau acima do gado, designado instrumentum semi vocale, e dois acima do implemento, que era o instrumentum mutum. Igualmente, no feudalismo, a formação social tinha como base a apropriação do excedente econômico em cada local de produção pela via da força aberta, "a política enxertada na economia" como dizia Gramsci. Os servos trabalhavam suas terras para garantir o mínimo necessário para o seu sustento e reprodução e, logo em seguida, eram obrigados a trabalhar nas terras do senhor feudal. As relações sociais eram de sujeição pessoal; ademais, em cada pequena unidade dominada por um senhor feudal, erguiam-se barreiras alfandegárias para cada produto, leis de exceção, prejudicando o comércio não só dos estrangeiros mas também dos súditos do país. A rede de Estados independentes do modo de produção feudal era a garantia dessas relações de produção. Destruir o Estado feudal, principalmente os exércitos feudais que defendiam com armas a classe dos senhores feudais e constituir o Estado-Nação, superando os feudos e construindo um mercado nacional, era uma condição imprescindível do desenvolvimento da nova formação social.

Já no capitalismo os mecanismos econômicos foram decisivos. Não podia reproduzir-se por mecanismos meramente coercitivos. A burguesia, no início apenas uma camada feudal, intensificava cada vez mais a indústria artesanal e a troca de produtos no interior da sociedade feudal. Mas o comércio em grande escala requer livres proprietários de mercadorias. A passagem do artesanato para a manufatura também pressupunha a existência de um operariado livre dos entraves gremiais, prontos para vender sua força de trabalho de igual para igual - com possibilidade de deslocamento da força de trabalho. Em palavras simples

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Nahuel Moreno explicava: "Se o capitalista ganha hoje dinheiro investindo na produção de sapatos, necessita dos trabalhadores produzindo sapatos; se amanhã ganha na produção de chapéus, necessita o deslocamento da mão de obra para produzir chapéus e se, logo depois, o capital ganha investindo na produção de carros, igualmente a mão de obra deve estar preparada para deslocar­se para produzir carros". A abolição dos privilégios feudais, das relações nas quais o trabalhador ficava prisioneiro da terra, sua proclamação como homem livre em condições de igualdade jurídica eram, então, postulados do progresso econômico.

A igualdade jurídica tem tanta relevância para a formação social capitalista que os primeiros estudiosos marxistas do direito apontaram a própria circulação das mercadorias como a gênese da forma do direito. Marx mesmo em "O Capital' afirmava: "As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e, conseqüentemente, não opõe resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar de violência, em outras palavras, tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se re:t:ete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dada por meio da relação econômica mesma. As pessoas aqui só existem, reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias'9. Com o principio da igualdade, a apropriação privada do excedente no capitalismo não podia logicamente estabelecer-se através da força, da coerção direta. Estabeleceu-se pelo próprio mecanismo econômico da mais-valia, cujo trabalho

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assalariado mascara, na medida em que o salário cria a aparência de um pagamento integral da jornada de trabalho, quando na verdade a força de trabalho, transformada em mercadoria, recebe apenas uma parte de seu trabalho total.

A intervenção política, entretanto, não deixou de cumprir um papel determinante. No período da acumulação primitiva do capital, o poder da violência estatal impôs as condições de reprodução do capital e os lucros comerciais, garantidos pela troca desigual. Foram os anos de expansão colonial e de defesa das companhias comerciais marítimas. O Estado-Nação, por sua vez, ganhou peso determinante nos países centrais para a exploração das colônias. Com o desenvolvimento do capitalismo, ao atingir o domínio dos monopólios, no qual ramos inteiros da produção se concentraram nas mãos de poucos proprietários, em detrimento da burguesia clássica, com suas centenas de empresa por ramos, se fortaleceu ainda mais o aparelho de Estado, em função, como veremos, da necessidade da intervenção maior do poder político para aumentar a apropriação de mais valia, para disciplinar a força de trabalho e, mais adiante, para viabilizar economicamente a reprodução ampliada do capital via o Estado consumidor da produção de armamentos.

Violência estatal e ideologia

A globalização, subfase do sistema capitalista mundial, não alterou esta tendência. A realidade é justamente o inverso da ideologia segundo o qual as empresas transnacionais superaram o poder dos Estados nacionais e os debilitaram: sem o poder político do Estado-Nação dos países centrais as transnacionais não se sustentariam. O Estado dos países imperialistas, ao invés de perder peso, tem sido reafirmado como instrumento de reprodução do domínio das empresas transnacionais e do capital financeiro sobre o mercado mundial. Em 1978, Harry Magdoff já explicava:

"É importante ter em mente que praticamente todas as multinacionais são de fato organizações nacionais que funcionam em escala global. Não estamos negando que o capitalismo

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seja, e sempre foi, desde o início, um sistema mundial, nem que tal sistema tenha se tornado mais integrado por ação das multinacionais. Contudo, assim como é essencial compreender e analisar o capitalismo como sistema mundial, é igualmente necessário admitir que cada empresa capitalista se relaciona ao sistema mundial por intermédio do Estado-Nação e, em última análise, dele depende"lO.

A divisão do mundo em países imperialistas e países dominados esta longe de ter sido superada. Nos dias de hoje a expressão mais brutal do que dizemos encontra-se na violência estatal desnudada pela intervenção militar do imperialismo norte americano em varias partes do mundo. Nas últimas décadas, todas as intervenções, sem exceção, foram movidas por interesses econômicos e políticos dos conglomerados empresariais e financeiros: Coréia, Vietnã, Nicarágua, Granada, Panamá, Iraque, Somália, Kosovo, Sérvia, Afeganistão, Colômbia e agora a preparação novamente de uma guerra contra o Iraque, com cheiro de petróleo. Destacá-las mostra não apenas a violência como desdobramento da política do Estado, mas a função do Estado­Nação dos países capitalistas hegemônicos. Sua contrapartida é a debilidade maior dos Estados dos países dependentes. Esses países efetivamente estão vendo diminuir a capacidade de intervenção dos seus aparatos políticos no estimulo ao desenvolvimento capitalista próprio, preço pago pela necessidade de reprodução do sistema enquanto um todo, cuja essência concentradora do capital e da riqueza conduz à concentração do poder, em particular nos países centrais.

Contudo, nem todos os países atrasados aceitam o debilitamento de seus Estados. Nessa relação entre os Estados há muitas contradições e con:t:itos, embora o sistema capitalista seja dominante no mundo todo. Particularmente importantes são os chamados países independentes, conceito utilizado por Nahuel Moreno para definir países capitalistas atrasados mas independentes do imperialismo, seja do norte-americano, japonês ou europeu. O caso do Iraque é o mais típico. Evidentemente que o regime iraquiano é uma ditadura de partido único que deve ser

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repudiada. Porém, não se trata de uma ditadura qualquer. Trata­se de um país agredido e de um estado independente baseado na força do petróleo. Será preciso estudar até que ponto a Venezuela tem tentado deixar de ser um país dependente baseando-se também na forca desse poderoso recurso natural. Por enquanto, essa tem sido a única base material capaz de sustentar esse tipo de projeto político sem uma ruptura com o modo de produção capitalista.

A definição do Estado como instrumento de dominação não nega o papel da ideologia como suporte subjetivo imprescindível à manutenção da ordem. Ao contrário. Na verdade, o Estado capitalista trata de aumentar o domínio econômico das maiores corporações e tem os trabalhadores assalariados, em particular os pobres, como bestas de carga. Sabe que não manterá sua dominação apenas pela força bruta. É preciso construir uma prisão em tomo dos cérebros das classes trabalhadoras, domesticá-las e embrutecê­las. A escola oficial, a Imprensa oficial e a Igreja são instrumentos desta prisão. No Brasil de hoje, basta lembrar o papel da Rede Globo para concretizar o que ultimamente tem se chamado de 4° poder. Daí também deriva a importância atual de tanta campanha a favor das "intervenções humanitárias" e agora do combate ao terrorismo, cobertura ideologia da violência estatal cuja política militarista "ianque" é a máxima representação.

Nos debates desse tema, é realmente incrível como o pensamento de Engels e Marx foi pouco assimilado por intelectuais de prestigio no próprio marxismo. Foi o caso de Althusser, acompanhado anos depois por vários lideres do PT, entre eles por José Genoino, cujos textos em inúmeras ocasiões repetiam o erro de Althusser. O pensador marxista francês expôs de modo claro que o Estado combinava os mecanismos de repressão com os aparelhos ideológicos como a Igreja, os partidos, sindicatos e os meios de comunicação. No entanto, afirmava que tal concepção era uma superação da posição de Marx, restrita à definição de Estado como destacamento especial de homens armados. Ora, Engels e Marx nunca sustentaram a definição exclusiva do Estado como um destacamento de homens armados. Destacaram que esta era

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sua natureza fundamental e, em última instância, a determinante, a garantia maior da sua manutenção. Dai a importância do monopólio da violência, expresso nas forças armadas e policiais separadas do povo.

O marxismo, portanto, nunca negou que o Estado se mantém por uma combinação de ditadura + hegemonia. Se Marx, Engels, e mais tarde Lênin, deram mais peso à definição do Estado como aparelho de repressão se deve, por um lado, à necessidade de se extrair conclusões dos processos concretos de luta, como a Comuna de Paris, massacrada pelo Exército Francês e, por outro, porque as correntes reformistas e mesmo dirigentes e lideres operários amigos, como August Bebei, não entendiam a fundo essa questão. Os oportunistas, por sua vez, trataram sempre de minimizar este papel, de atribuir ao movimento o desafio de conquistar um Estado popular, omitindo a tarefa da necessária destruição do Estado burguês, como re:t:etia a própria discussão sobre o programa da socialdemocracia alemã e as polêmicas com Bernstein.

A definição de última instância não se resume, contudo, há um recurso de polêmica. Serve para definir a determinação mais resistente, mais importante, a raiz explicativa da impossibilidade de um trânsito pacifico para um Estado de novo tipo. Também Max Weber, um ideólogo da burguesia por excelência, repetia os marxistas para afirmar sua posição. "Todo Estado se baseia na força. Disse um dia Trotsky em Brest-Litowsk. E isto é efetivamente assim' (Weber " Sociologia do Estado). Vale lembrar igualmente que Gramsci, cuja visão do Estado atribuía um peso decisivo ao papel de "educador", reprodutor da ideologia dominante pelo uso de inúmeros mecanismos de consenso e de hegemonia, percebia os momentos em que a classe burguesa não apenas não lograva assimilar outras classes, mas desassimilava a si mesma, se desagregava. Sua chamada função educativa positiva dava lugar a função educativa negativa dos tribunais e da pura força bruta.

O caráter estruturalmente conservador do aparelho estatal burguês, sua essência violenta, que faz dele um instrumento fundamental na defesa da manutenção das relações de produção, se expressa de modo muito evidente nos momentos em que essas

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relações de produção são ameaçadas por crises revolucionárias ou pré-revolucionárias. Nessas situações, os trabalhadores sacodem suas consciências da dominação ideológica da burguesia e irrompem na cena política para mudar a vida, geralmente atacando os poderes políticos dominantes e, às vezes, as próprias relações de propriedade na qual os poderes políticos se baseiam.

Quando a classe burguesa encontra-se nessas situações de perigo, busca desviar a situação, promete reformas, apela para as direções com in:f:uência nos trabalhadores para que colaborem; tudo para evitar que ocorram levantes de massas, revoluções ou diretamente insurreições. Nas situações revolucionárias, se o caráter dirigente da burguesia se desfaz e ela passa a ser apenas classe dominante, para usar a expressão de Gramsci, então é quando usa mão da força bruta como recurso, essência da natureza do Estado, do que sempre foi e continua sendo: grupo de homens armados para manter a dominação de uma casta ou classe social.

A instituição fundamental do Estado, portanto, continua sendo as Forças Armadas. Desconhecer este fato levou o movimento operário no Chile, em particular o Partido Socialista, a menosprezar o papel contra-revolucionário do Exército na queda de Allende, quando o próprio Allende nomeou Pinochet para seu ministério. O exemplo do Chile de 1973, com o golpe militar, tem sido o mais citado para expressar a utilização da força bruta, mas poderíamos estender a lista para praticamente todos os países latinos americanos, a começar pelo Uruguai, também em 1973, e a Argentina, em 1976.

Os acontecimentos na Argentina dos dias 19 e 20 de dezembro de 2001 são os mais recentes demonstrativos da repressão como o elemento fundamental do Estado. Naqueles dois dias históricos, quando centenas de milhares de argentinos tomaram as ruas do país em resposta à tentativa de De La Rua de impor o Estado de Sítio, ficou evidente que a burguesia argentina não conseguia dirigir a nação. De La Rua foi derrubado. O velho estava caindo e o novo não tinha força para se impor. A sociedade foi tomada por um impasse, uma grave crise política. A hegemonia burguesa rompida, sem que os trabalhadores tivessem alternativa, levou

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a classe dominante a recorrer ao Parlamento para legitimar sua dominação. O Congresso, porém, somente pode secionar defendido por milhares de policiais. O poder esteve nas ruas durante quase 48 horas e acabou transferido para o Congresso graças a repressão contra as forças populares que não puderam também parar os "trabalhos" dos congressistas. O Estado pode manter-se pelo uso da violência, cujo monopólio empenha-se em preservar acima de tudo.

Diferentes regimes políticos

Descer um pouco das definições mais gerais e abstratas e nos aproximar de uma estrutura conceituai capaz de aprender melhor o desenvolvimento das determinações concretas do Estado pressupõe, mesmo que de modo breve e esquemático, a exposição de alguns dos regimes políticos, isto é, as distintas articulações das instituições adotadas pelo Estado burguês que podem dar lugar a diferentes formas de dominação como a monarquia, o bonapartismo, o fascismo, a ditadura militar, a República democrática-liberal, inclusive em sua variante kerenkista.

Começando pelo final, o kerenkismo foi resultante da vitoriosa revoluçãorussadefevereirode 1917, naqualoczarismofoiderrubado. A classe trabalhadora havia constituído instituições com poder real de veto em relação as ordens do novo governo burguês e de decisão efetiva sobre muitos assuntos da vida pública, desde o sistema de transportes, passando pelo abastecimento e, em muitos caos, pelo controle das fábricas no interior do Estado burguês. Em geral, num regime chamado kerenkista, há instituições novas, gérmens de um Estado de novo tipo. A dualidade de poderes re:t:ete uma situação na qual a conquista do poder pelos trabalhadores é objetivamente possível devido à fraqueza e desorganização da burguesia. Nesse tipo de regime a situação é altamente instável e o desenlace da luta de classes deve terminar com a vitória da revolução socialista ou a retomada completa do poder burguês, em geral via o triunfo de um golpe contra-revolucionário.

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Os regimes fascistas e semi-fascistas por sua vez foram as mais violentas respostas das classes dominantes a uma situação de crise e instabilidade. Na escala de comparações estão no extremo oposto ao kerenkismo, precisamente porque representam a anulação total de qualquer peso institucional da classe trabalhadora. Foram situações excepcionais que lhes deram origem, produtos de violentas derrotas das classes trabalhadora, abrindo um período de guerra civil contra as organizações operárias, populares e democráticas. Não estamos livres de regimes essencialmente idênticos, como atesta o Apartheid na África do Sul, já derrubado, ou o ainda presente Estado de Israel em relação aos palestinos e árabes.

Já nas ditaduras militares, em geral as instituições da classe trabalhadora não podem atuar livremente e em muitos casos estão desmanteladas e/ou proibidas. Há uma variedade significativa de regimes militares ditatoriais cujas diferenças mais importantes consistem no grau de violência organizada contra o movimento de massas. A última ditadura militar no Brasil, por exemplo, embora violento e de longa duração - 20 anos de ditadura - foi claramente menos violenta se comparada com a experiência chilena e argentina. Tanto no Chile quanto na Argentina, ainda que com características distintas do Estado capitalista fascista, vimos a aplicação de métodos de guerra civil contra o movimento operário durante as ditaduras de Pinochet e as do Processo.

As ditaduras militares podem também configurar um regime bonapartista, caracterizado pelo poder centralizado numa fração da burocracia que busca arbitrar os con:t:itos de classes. Esse conceito surgiu do próprio Marx, analisando o golpe de Estado de 1851 na França e a ascensão de Luis Bonaparte ao poder, um processo no qual a burguesia, frente ao movimento revolucionário popular, foi adotando uma linha reacionária de redução das liberdades democráticas conquistadas contra a monarquia, a tal ponto que foi debilitando suas próprias representações políticas e acabou tendo que entregar o poder a uma parcela da burocracia executora do trabalho sujo anteriormente realizado. Muitas dessas situações, portanto, são derivadas da incapacidade da classe

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economicamente dominante, seja por desarticulação política, falta de força ou clareza, de exercer diretamente o poder político.

Num regime com essas características, o Estado parece estar acima das classes sociais. O que determina sua natureza, contudo, segue sendo as relações de propriedade na sociedade, de tal forma que o bonapartismo no capitalismo não deixa de ser uma forma particular de defesa dos interesses da burguesia num momento em que a própria burguesia não consegue ou abdica de dirigir diretamente o aparelho estatal, o dirigindo por intermédio de uma fração da burocracia. Em alguns regimes militares tivemos uma espécie de bonapartismo de direita, quando as Forças Armadas estavam no centro do regime mas as instituições democráticas não estavam totalmente extintas. Nas experiências da América Latina, o marxismo definiu a existência de um bonapartismo sui generis, chamado também bonapartismo de esquerda. Isso pode ocorrer sobretudo, nos países dependentes, quando o regime se apóia no movimento de massas para pressionar o imperialismo sem no entanto romper com o poder social da burguesia internamente.

Posto isso, fica evidente que o regime político não é uma questão indiferente para a classe trabalhadora. Essa é a conclusão fundamental. Na luta pelo socialismo, a melhor forma é, sem dúvida, a República democrática. A democracia, a participação da população na vida política, às vezes é totalmente inconveniente para a burguesia. Corre o risco de perder parte do poder direto de parcelas do aparelho estatal e, sobretudo, se vê obrigada a legitimar­se pela via do voto popular, facilitando a obtenção de conquistas por parte das classes trabalhadoras. Para a classe assalariada, além do mais, a própria luta pela democracia e pelo exercício de seus direitos significa um acúmulo, um desenvolvimento da consciência de seus interesses de classe e das suas tarefas históricas.

Ao conquistarem um regime democrático, sem romper com o Estado capitalista, os trabalhadores conquistam um terreno para lutar por sua emancipação, mas não, de modo algum, a própria emancipação. Com tal conquista, fortalecem a confiança em suas próprias forças e podem utilizar os mecanismos democráticos para preparar suas lutas em melhores condições. O sufrágio

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universal, entretanto, expressa o " índice de maturidade da classe operária, mas não pode nem chegara nunca a ser mais no Estado atual". Assim, a conquista de liberdades democráticas, do sufrágio universal, etc., não substitui a luta pelo poder dos próprios trabalhadores.

Os marxistas, portanto, podem e devem utilizar o sufrágio universal e aproveitar o espaço democrático nos regimes democráticos burgueses, sem contudo perder de vista a determinação essencial do Estado: uma coligação de grandes patrões que garante a exploração capitalista através da dominação da classe oprimida pela via da in:f:uência sobre os seus cérebros e do monopólio da violência, com seus destacamentos especiais das forças armadas, Exército, Policia, Tribunais, cárceres, etc. São instrumentos determinantes sempre que a dominação burguesa encontra-se em perigo, ameaçada ou numa dinâmica de risco crescente, pela via da ação direta das classes trabalhadores, que pode ou não incluir a utilização por parte dos trabalhadores do sufrágio universal como arma tática na luta pelo seu próprio poder.

Um novo tipo de Estado

Desde a experiência da Comuna de Paris, o marxismo defende um novo sistema institucional, sob a base dos escombros do aparato burocrático-administrativo, político, jurídico e policial do Estado capitalista. Para descer à terra, não é possível um Estado de novo tipo com a estrutura das Forcas Armadas separadas do povo. Nos países capitalistas nem mesmo os soldados e a baixa oficialidade têm peso decisório nessas instituições, construídas com uma hierarquia para defender os interesses de uma minoria privilegiada. Tampouco é viável um regime verdadeiramente democrático, onde a maioria decida os rumos do país, com a máquina pública sendo dominada pela burocracia privilegiada com seus altíssimos salários, enquanto as parcelas majoritárias do funcionalismo público, sem peso na hierarquia das instituições do poder público, recebem salários de fome. A máquina burocrática,

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viciada pelo clientelismo, corrupção, ociosidade, está montada contra os trabalhadores, fato agravado pela legislação protetora da propriedade privada e a realidade das comunicações monopolizadas pelos capitalistas, monopólio ainda mais gritante em países como o Brasil.

Uma nova institucionalidade democrática somente pode ser impulsionada pela única classe cujo interesse é liquidar as próprias classes sociais e, portanto, passível de assimilar toda a sociedade, não apenas para seu proveito, de tal forma que o Estado possa flnalmente ser absorvido pela sociedade civil organizada. Como dizia Gramsci, "na realidade, só o grupo social que propõe o fim do Estado e de si mesmo como objetivo a ser alcançado pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as divisões internas de dominados, etc., e a criar um organismo social unitário técnico moral."11

A preocupação com o combate ao autoritarismo, com o burocratismo, com o controle do poder certamente deve ser ainda maior depois das experiências dos Estados burocráticos não capitalistas do Leste e da ex-URSS. Como resposta a essa preocupação, duas correntes políticas opostas ao marxismo revolucionário buscam credenciar-se: uma retomando as ideias reformistas, negando a própria viabilidade da superação do Estado atual; a outra corrente, inspirada no anarquismo, retoma argumentos contrários à luta pelo poder, como se essa perspectiva em si mesmo embutisse uma adaptação ao sistema ou pelo menos uma absorção de suas características burocráticas.

Os políticos e teóricos neo-reformistas que apóiam-se no fracasso das experiências burocráticas para negar a expropriação dos meios de produção confundem suas decepções com o stalinismo, o qual, em geral, adotaram como modelo, com o abandono dos fundamentos do movimento socialista, isto é, a expropriação e a estatização dos meios de produção hoje nas mãos da burguesia. Tratam, ademais, de identificar esta posição socialista com a defesa do estatismo em si mesmo. Como estamos vendo, são os reformistas os que apostam no Estado social em si mesmo, em sua capacidade reguladora e distribuidora de renda,

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não os marxistas revolucionários. Estes, ao contrário, não apenas zombam destas utopias reacionárias: definem o estatismo, com base no poder do capital monopolista, apenas como uma forma a um só tempo refinada e brutal de exploração, garantia do prolongamento do sistema feito por expedientes "socialistas".

O estatismo dos marxistas revolucionários nada tem a ver com este capitalismo estatal em nenhuma de suas variantes. A construção de um novo tipo de Estado deve ser, como sustentava Lênin, cada vez menos um organismo de dominação, ou seja, ir deixando de ser Estado, passando para o controle dos trabalhadores e da intervenção direta de todos nos assuntos públicos, processo facilitado pelo enorme progresso das comunicações das últimas décadas. Logo, de nossa parte, não hesitamos em reafirmar a necessidade de destruir o poder social da burguesia, objetivo inviável sem derrotar o poder político que tem como função conservá-lo. Os reformistas não sustentam nem um nem outro desses objetivos básicos de um projeto revolucionário. Nenhum deles realizar-se-á sem a luta pelo poder a partir do qual se pode alterar as relações de propriedade, alicerce do poder social dos capitalistas.

Por outro lado, há os que argumentam que essa estratégia tende sempre a contagiar seus protagonistas com as características do poder contra os quais se insurgem. Esses setores da esquerda não negam a necessidade da liquidação do poder social da burguesia e defendem a necessidade da revolução, o que lhes coloca em um campo distinto dos reformistas. Mas acabam, sem querer, encontrando-se com os reformistas na negação da conquista revolucionária do poder, um dos objetivos fundamentais da revolução, apresentando a alternativa da construção do contrapoder, um conceito demasiado genérico e indefinido. Ao negarem a luta pelo poder parecem transformar o poder num fetiche, um mistério portador da negação da autodeterminação dos homens e das mulheres que vivem do trabalho. Adelmo Genro fllho, um marxista gaúcho, infelizmente já falecido, irmão mais jovem do candidato do PT a governador do Rio Grande do Sul, dizia que o poder, para não resultar reiflcado e misterioso, deve

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ser compreendido a partir da política. " O poder é a distribuição das possibilidades concretas do exercício da política. Isto é, a distribuição das possibilidades concretas, na sociedade, de fazer transitar práticas sociais qualitativamente determinadas"12.

Na sociedade dividida em classes, divisão que nossos companheiros defensores do contrapoder não negam, a luta pelo poder dos trabalhadores é justamente a luta pela capacidade e a possibilidade de realizar os interesses e de fazer transitar as praticas sociais dos homens e mulheres que vivem do trabalho, em contraposição aos donos do capital, minoria privilegiada, detentora atual do poder, realizadora de uma pratica social que domina e subordina a maioria. Trata-se de uma lição básica e irrefutável do Manifesto Comunista: a história de todas as sociedades que existiram até os nossos dias é a historia da luta de classes ...

Para responder ao burocratismo, portanto, nos parece mais útil retomarmos os caminhos abertos por Marx, não abandoná­los em troca de um abstencionismo impotente nem tampouco de uma ilusória defesa do Estado democrático acima das classes e de uma divisão de poderes incapaz de deter o verdadeiro poder das forcas do capital. O desafio segue sendo a superação da propriedade privada sobre os grandes meios de produção e de troca e a autodeterminação do movimento dos trabalhadores. A insistência sistemática de que sejam os trabalhadores os que decidam, reduzindo, ao máximo possível, os elementos de delegação de poderes.

Neste contexto, na construção de um Estado de novo tipo, não se pode fazer fetiche de tipo organizativo, político e jurídico acerca das alternativas. A história teve o exemplo da Comuna de Paris, dos Sovietes na Rússia revolucionária, dos conselhos de operários da Hungria de 1956, as possibilidades abertas pelo Sindicato Solidariedade na Polônia no inicio dos anos 80 e nos comitês de luta da Romênia no final da mesma década. Recentemente, o Parlamento dos Povos no Equador e as Coordenadoras das Águas na Bolívia, sinalizaram as potencialidades desta construção de organismos de poder e de autodeterminação da mobilização

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revolucionaria, indicativo das possibilidades de construção de um novo tipo de Estado que já vai perdendo suas próprias funções estatais.

Alguns dizem tratar-se de exemplos que não podem ser trazidos para as sociedades complexas como as sociedades de boa parte dos países capitalistas atuais, nas quais o grau de especialização dos serviços públicos é muito maior e as mobilizações não tem sido tão fortes. Esta afirmação parece querer erguer o fantasma da complexidade para manter os trabalhadores afastados do poder. É claro que uma mudança profunda, a construção de uma nova ordem requer uma mobilização de multidões, uma vontade consciente de milhões para decidir seus rumos. Enquanto a política não for tomada em suas próprias mãos pela população trabalhadora, então nenhum projeto institucional de mudanças fundamentais pode ser viabilizado.

A segunda questão, vinculada a anterior, é que a construção de uma nova maquina estatal administrada pelos próprios trabalhadores, uma máquina voltada para os interesses da maioria só se obtém se, além de mecanismos político-jurídicos e administrativos, for desencadeada uma verdadeira revolução nas condições de produção da vida das pessoas. O avanço técnico e produtivo atual nos permite reduzir as jornadas de trabalho, aumentaroníveldeemprego,semreduzirrendimentoseganhando tempo livre. Tais conquistas econômicas podem ter conseqüências culturais e políticas enormes. Não se pode trabalhar 12, 13 e até 16 horas por dia e ainda conseguir forças para atuar nos rumos da organização social. Logo, mudanças nas condições econômicas são necessárias. Caso contrário, o capital segue dominando a sociedade e tal dominação se expressa inevitavelmente no aparato estatal. Acreditar que se possa construir um Estado de novo tipo sem superar esta questão é acreditar que o Estado tem uma realidade independente da vida social, que possui fundamentos morais e intelectuais livres, ao invés de considerar a sociedade atual como o fundamento do Estado atual.

Essas definições carregam um desafio estratégico: o homem não pode ser livre enquanto a igualdade diante da lei for apenas

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uma confirmação da desigualdade material entre eles, enquanto a maioria for escrava assalariada. Isso posto, a economia deve estar a serviço das necessidades sociais, não da apropriação privada das corporações transnacionais. Este desafio não pode realizar-se sem apontar a necessidade da expropriação dos expropriadores, o fim da propriedade privada sobre os grandes meios de produção enfrentando, portanto, os interesses das grandes corporações empresariais e financeiras, traçando uma flnalidade distinta do lucro para a produção material.

A realização plena desse desafio não é mais uma utopia de algum reformador social. Marx traçou as bases do socialismo como projeto viável porque reconheceu no capitalismo o desenvolvimento de forças produtivas tão poderosas que permitiriam a superação da escassez crônica, marca de todas as formações sociais anteriores, fazendo com as que as novas formas de organização social acabassem reproduzindo uma nova forma de dominação do homem pelo homem e a mesma miséria de sempre. Esse vaticínio foi plenamente confirmado. Nunca uma formação social produziu tanta riqueza. Pela primeira vez as crises são de superprodução, não de subproduto.

Há produção em excesso, meios de produção em demasia, demasiada indústria para o limitado consumo da sociedade. De tempos em tempos, a acumulação retrai-se, a produção cessa, as máquinas param. Um terremoto abala as bases das relações sociais e coloca em xeque todo o sistema, desnudando sua contradição agravada entre a produção socializada e a apropriação privada. No curto e agitado século XX a superação dessa contradição passou a ser uma necessidade porque as forças produtivas já começaram a se transformar em seu contrário: em forças de destruição. As crises econômicas, as recessões, a in:t:ação e a de:f:ação, o peso da especulação financeira, a indústria armamentista, as guerras são trágicas demonstrações dessa transformação do capitalismo em uma formação social regressiva e decadente.

O Estado baseado na realidade do trabalho, da produção, pode ser o resultado da superação do sistema dominante e ter um aparato político leve e ágil. Esse era o objetivo de Marx. "O núcleo

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da concepção política de Marx - a asserção de que a política (com ênfase particular na versão associada ao estado moderno) usurpa o poder social de decisão que ela substitui - é e permanece completamente inatacável, pois abandonar a idéia segundo a qual a política socialista deve se preocupar, em todos os passos, mesmo nos menores, com a tarefa de restituir ao corpo social os poderes usurpados inevitavelmente despoja a política de transição de sua orientação e sua legitimação estratégicas, e assim necessariamente reproduz de uma nova forma o 'substitucionismo burocrático' herdado, em vez de criá-lo novamente com base em algum místico 'culto à personalidade'. Conseqüentemente, a política socialista ou segue o caminho aberto por Marx - do substitucionismo à restituição - ou deixa de ser política socialista e, ao invés de' abolir a si própria' no processo, transforma-se em autoperpetuação autoritária"13.

Pode-se discutir um novo Estado integrando igualmente preocupações clássicas do pensamento político liberal. Muitas são preocupações plausíveis. Montesquieu dizia que a /1 própria virtude precisa de limites". Não há como não lhe dar razão quando o fllosofo francês afirmava que só se impede o abuso do poder quando pela disposição das coisas /1 o poder detém o poder". Esta foi a base para que o autor do Espírito das Leis defendesse, ao invés do poder único e concentrado, um poder fragmentado, ou melhor, uma certa distribuição de poderes separados.

A justiça da preocupação não garante, contudo, a solução da questão. A divisão de poderes da burguesia, essência do liberalismo político, segundo Gramsci, foi produto de uma certa luta entre a sociedade civil e a política no período de luta pela ascensão da burguesia ao poder, um certo equilíbrio entre as classes, determinado pelo fato que certas categorias de intelectuais - a burocracia civil e militar - estavam ainda ligadas a outras velhas classes dominantes - não à burguesia. Por isso, também a divisão de poderes já expressava a fraqueza do liberalismo, na medida em que a burocracia, cristalização do pessoal dirigente, tendia a se constituir em casta, exercendo a serviço de seus interesses seu poder coercitivo. A contrapartida deste processo sempre foi

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a elegibilidade de todos os cargos, o que Gramsci considerava "simultaneamente liberalismo extremo a sua dissolução (princípio da Constituinte permanente)' afirmando ainda que nas Repúblicas a eleição periódica do chefe do Estado dá uma satisfação ilusória a esta reivindicação popular elementar.

Seguindo a ideia de Gramsci, o desafio do movimento dos trabalhadores não pode ser de enquadrar-se nos ideais do liberalismo burguês, mas levá-lo a seu extremo, sua dissolução. A nova institucionalidade que defendemos, portanto, não apenas mantém, mas amplia as conquistas democráticas existentes. Parte dos limites do sufrágio universal, assinalados inclusive por Rousseau quando afirmava: "O povo inglês pensa ser livre e engana-se. Não o é senão durante a eleição dos membros do Parlamento. Uma vez estes eleitos torna-se escravo e nada mais é"14."

A discussão sobre democracia representativa e direta adquire, assim, um novo conteúdo. Inevitavelmente, haverá combinações nessa construção, mas a estratégia por uma nova institucionalidade baseada na participação dos produtores livremente associados deve balizar os passos concretos, mesmo os menores. Não acreditamos na abolição do Estado - sua extinção somente pode ser desdobramento de um longo processo que culmine na extinção da divisão de classes da sociedade - mas sustentamos a necessidade imediata de um Estado dirigido pelos trabalhadores, destruindo o Estado atual, máquina de opressão a serviço da classe dominante.

Para alcançarmos esse objetivo, não negamos as lutas democráticas, as reivindicações econômicas, parc1a1s, as necessidades de bandeiras que se limitam a sustentar reformas enquadradas no Estado burguês. A reforma nunca foi um perigo em si mesma, apenas quando utilizada para reproduzir a dominação capitalista. Não negamos, portanto, a luta por reformas, nem a necessidade de acumular forças, tema do qual trataremos a seguir. Nossa diferença com os reformistas é que não esquecemos a proclamação de Marx e de Engels: "Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata de

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atenuar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova".

Do ponto de vista marxista, final mente, não se pode depositar nenhuma confiança na classe dominante. Mesmo as liberdades democráticas como o direito de associação e o sufrágio universal foram conquistas das lutas populares em oposição à burguesia. Além disso, todas as formas de organização dos sindicatos, partidos de massas foram, em alguma conjuntura especifica, perseguidos pelos regimes democráticos-liberais. O próprio professor Coutinho reconhece esse fato, ao dizer que os socialdemocratas da Alemanha formaram o primeiro partido de massas e que estiveram anos na ilegalidade, perseguidos pela burguesia alemã. Então, até mesmo algumas das importantes conquistas democráticas, assimiladas, ainda que nem sempre, pelos regimes democráticos liberais, foram essencialmente conquistas das organizações de classe construídas na evolução da luta de classes entre os trabalhadores e a burguesia

O reformismo e o neoliberalismo

Como vimos, o marxismo não nega a luta por reformas democráticas que se mantenham nos limites do capitalismo. Ao mesmo tempo não abandona sua estratégia socialista. O reformismo, ao contrario, não perde nenhuma oportunidade para colar sua sorte ao sucesso do capital.

Com o surgimento do Estado de Bem-Estar Social e seu correlato latino americano, o Estado Desenvolvimentista, foram lançadas as bases para as posições reformistas serem fortemente retomadas como, guardada as devidas proporções, ocorreu no início do imperialismo, com o advento do revisionismo. As elaborações do PT sobre o tema foram expressões tardias dessa realidade, alimentadas de última hora pelo advento da globalização, no momento em que a alta liquidez global permitia o jogo pesado dos capitalistas no ciclo de privatizações, de empréstimos externos e compras de empresas nacionais, garantindo no Brasil uma poupança externa avalista da estabilidade relativa do Plano Real

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durante boa parte da década de 90. Essa foi a base não apenas para o neoliberalismo, mas também para o fortalecimento no campo do movimento operário das ilusões reformistas na força do capitalismo e na inviabilidade da perspectiva revolucionária, a mesma dos ideólogos capitalistas defensores do fim da historia. Mas qual foi o contexto econômico mundial mais geral do Estado de Bem-Estar Social e do desenvolvimentismo como um momento particular da ideologia da burguesia industrial latino americana?

Como corretamente sustenta Lauro Campos, " o capitalismo revelou, desde cedo, na Inglaterra, que seu problema central não era a escassez de capitl, mas o excesso de capital, de máquinas, de meio de consumo, diante da capacidade de expandir o mercado e de sustentar a taxa de lucro ... O crescimento da produção capitalista não pode cessar. Do ponto de vista do empresário individual, parar de crescer significa ser devorado pelos concorrentes que acumulam , investem, inovam. Do ponto de vista do todo, parar de crescer significaria deixar de criar renda e capacidade de consumo no departamento 1, que produz máquinas, deixar de gerar renda nos setores públicos, deixar de criar novas fontes de lucro que a mais valia extraída dos trabalhadores em ação geram. Mas continuar a crescer significa, do ponto de vista do todo, ampliar a acumulação do capital e, portanto, agravar a crise de sobreacumulação que se instaura, necessariamente, a partir de determinado nível. A função do Estado é múltipla e contraditória, no capitalismo completo. Ele é obrigado a gastar para desviar parte das forças produtivas, geradoras de crise de sobreacumulação, para atividades improdutivas e bem remuneradas".15

Assim, os gastos públicos - a moeda estatal - têm cumprido um papel fundamental para o desenvolvimento das atividades improdutivas, particularmente os gastos militares, ramo econômico com maior investimento no PIB mundial. O Estado, portanto, transformou-se no principal consumidor deste novo departamento; justamente o que mais tem se desenvolvido, um departamento no qual não se produz nem meios de produção nem meios de consumo, mas meios de destruição e de dissipação das forcas produtivas. Esse processo se desenvolveu sobretudo a

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partir da 1 Guerra Mundial e particularmente depois da depressão de 1929, sendo a base inicial para a crise atual das finanças publicas no mundo.

Ademais, na historia do capitalismo, é sabido que, desde a crise de 1929, o Estado foi utilizado pesadamente para subvencionar direta ou indiretamente o capital privado, especialmente as frações hegemônicas do capital monopolista, oferecendo-lhe infra­estrutura, energia, transporte, ou por medidas fiscais, créditos em condições vantajosas, etc., demonstrando o caráter inevitável e determinante da intervenção do Estado na economia na reprodução do sistema. Também o Estado assumiu custos sociais do capital, com gastos em pesquisas e desenvolvimento cientifico, fatores fundamentais na formação da mão-de-obra, do aumento da produtividade do trabalho, e claramente onerosos para o capital. A estas características, logo após a II Grande Guerra, foi agregado um novo componente: as concessões sociais do chamado Estado de Bem-Estar Social, viabilizadas na esteira do crescimento econômico capitalista originário da destruição de capitais durante a guerra -e os planos de reconstrução daí resultantes - do desempenho da indústria armamentista e pela redução dos salários reais, para o qual o nazismo colaborou decididamente.

Na Europa e nos EUA, a incorporação de inúmeras conquistas sociais como aposentadoria, seguro desemprego, garantia de educação e saúde públicas e gratuitas, permitiram um certo pacto social nos anos posteriores à II Guerra Mundial. As concessões marcaram a reconstrução do Estado Burguês europeu e foram financiadas pelo imperialismo norte-americano, o chamado Plano Marshall, numa resposta burguesa às demandas sociais que ameaçavam não se limitar apenas a reformas nos marcos do sistema.

Por sua vez, combinado com os gastos estatais, a sobreacumulação nos países centrais alterou o padrão de acumulação nos países periféricos. Tivemos primeiro as mudanças no padrão de acumulação na Inglaterra, quando a partir de 1843 a lei que proibia a exportação de máquinas foi revogada, precisamente no momento em que a produção já estava saturada no seu

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próprio mercado interno. A produção dos meios de consumo nos países dependentes foi reforçada com a importação dos bens de produção, acelerando a crise do Departamento II - o de produção dos meios de consumo nos países centrais, no caso concreto a Inglaterra. O segundo momento, depois da substituição completa da hegemonia econômica mundial inglesa pela norte-americana, e como resultante da primeira grave crise de acumulação de capital nos EUA, os interesses das suas corporações serviram de estimulo para uma onda de industrialização em países como o Brasil. Não tivemos nenhum "boom" capitalista como no pós-guerra dos países imperialistas, mas ainda assim foi significativa a industrialização dos anos 50, 60 e 70, cujos primeiros sinais apareceram a partir da década de 30, originaria na esteira do transplante da indústria de luxo, dos transportes e dos eletrodomésticos, já saturada nos EUA.

Na América Latina, ademais, as guerras imperialistas no velho continente abriram um hiato entre o antigo domínio inglês em decadência e o novo domínio imperialista norte-americano ainda incipiente, aproveitado pela emergente burguesia de países como a Argentina e o Brasil para um crescimento autônomo relativo. Até o início da década de 50, os laços com o capital dos países imperialistas centrais e o comércio internacional foram mais frágeis, dando margem para o reformismo e o nacionalismo burguês e para o regime de substituição de importações como base de um inicial desenvolvimento da indústria dos países da América Latina, especialmente Brasil, Argentina e México. Os governos de então, mais especificamente o de Perón, na Argentina, e Vargas, no Brasil, trataram de arbitrar os con:t:itos entre as classes fazendo concessões sociais e econômicas para os trabalhadores, ao mesmo tempo em que garantiam a disciplina e a subordinação do trabalho ao capital via regimes ditatoriais.

Diante desse desenvolvimento relativo e sobretudo da incorporação destas demandas sociais, em particular na Europa, alguns intelectuais e dirigentes do PT concluíram que o Manifesto Comunista de Marx não previu a evolução do Estado, "re:t:exo de outros movimentos na economia, na cultura e no direito. Uma etapa em que ele torna-se fruto de novos padrões civilizatórios e

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incorpora, como conquistas fundamentais da sociedade moderna, direitos que reorganizam e em muitos aspectos humanizam a exploração capitalista". 16

Ao invés de embelezar a exploração capitalista, seria mais útil explicar que a incorporação de demandas sociais está vinculada às possibilidades econômicas do processo de acumulação do capital e, sobretudo com a correlação de forcas entre as classes em luta, não a uma suposta obrigação do Estado em "ceder em sua natureza de classe'17, argumento de Tarso Genro para tentar demonstrar como superada a definição sintética do Estado como organismo de dominação de classe. É a mesma posição de Carlos Nelson Coutinho quando diz que" o Estado capitalista se ampliou: ele não é mais um simples "comitê executivo da burguesia' (como Marx e Engels o definiram em 1848), já que foi obrigado a se abrir para demandas provenientes de outras classes sociais;"18.

É claro que o Estado não re:t:ete apenas a pura e simples dominação de classe. Na vida social não há algo puro, sem relações, combinações, mas não se pode perder a essência dos processos sociais e das instituições, seus vínculos de classe e os interesses concretos que encarnam. Como instituição, órgão de dominação que ao mesmo tempo busca legitimar-se como portador dos interesses gerais, a fim de melhor defender os interesses de classe, é lógico que o Estado é permeável às demandas das classes subalternas. Mas as concessões, justamente, são feitas para manter a natureza de classe do Estado, não para reduzi-la. Para preservar o comitê executivo nas mãos da burguesia, não para socializá-lo com outras classes. Como analogia, poderíamos dizer então que Bismarck cedeu na natureza de classe do Estado alemão quando apresentou reformas sociais com a flnalidade de deter o crescimento dos socialistas. Não foi esta a conclusão dos socialistas, perseguidos pelas leis repressivas do regime do chanceler. Ao contrário do que afirmam os reformistas, as principais demandas incorporadas como direitos dos trabalhadores são expressões de uma determinada situação econômica - a ascensão do imperialismo alemão no caso do final do século XIX e da retomada do crescimento capitalista depois da destruição de forcas produtivas da II Guerra Mundial - e de

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uma determinada situação política - o crescimento dos socialistas no final do século dezenove e das revoluções democráticas e seu potencial anticapitalistas na esteira da derrota do nazismo.

O questionamento à concepção marxista do Estado e a negação da validade da definição do Manifesto Comunista não tem nenhum grão de novidade. Tampouco a sua refutação. Vale a pena citar o que dizia Bukharin, em seu folheto o ABC do comunismo, um dos mais populares textos do período da revolução russa, escrito em parceria com Preobrazhensky. "A essa concepção ( de que são exclusivamente os interesses do capital que movem o Estado burguês), podem ser feitas as seguintes objeções: - Dizem que o Estado é guiado unicamente pelos interesses do Capital. Mas, olhem em todos os países capitalistas, existem leis operárias que proíbem ou limitam o trabalho das crianças, diminuem o dia de trabalho, etc.; na Alemanha, por exemplo, no tempo de Guilherme II, o seguro-operário não era mal organizado pelo Estado; na Inglaterra, igualmente foi um ministro burguês, o ativo Lloyd George, que institui os seguros e os asilos para velhos; em todos os Estados burgueses, constroem-se estradas de ferro que transportam tanto os pobres quanto os ricos; fazem-se aquetudos, canalizações de águas nas cidades, etc., e todo mundo se aproveita dessas coisas. Por conseguinte - dirão muitos, mesmo num país onde o Capital domina, o Estado não age unicamente no interesse do Capital, mas também no interesse dos operários. Ele impõe mesmo, algumas vezes, multas aos fabricantes que transgridem as leis operárias". Em seguida, Bukharin explicava porque as objeções não se justificavam: "É verdade que o poder burguês, dita, algumas vezes, leis e decretos de que se aproveita também a classe operária. Mas, se ele o faz é no interesse da burguesia. Tomemos para exemplo a estrada de ferro: - elas são utilizadas pelos operários, mas não são construídas para eles. Comerciantes, fabricantes precisam delas para transportar suas mercadorias, para a circulação dos seus gêneros, para a mobilização das tropas e dos operários, etc. O Capital precisa de ferrovias e as constrói para seu próprio interesse. Consideremos também as limpezas das ruas, o serviço municipal de assistência e dos hospitais; a burguesia

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também os assegura nos bairros operários. É bem verdade que, comparado aos bairros burgueses, os bairros operários são sujos e constituem focos de infecção, etc. Mas, ainda assim, a burguesia faz alguma coisa. Por quê? Muito naturalmente porque, a não ser assim, as doenças e epidemias espalhar-se-iam por toda a cidade e iriam causar sofrimentos aos burgueses. O Estado burguês e seus órgãos das cidades são guiados, também, nesses casos, pelos interesses da própria burguesia. . .. Em todos estes casos, a burguesia é que adota, por si mesma, medidas úteis aos operários mas, para isso, ela é guiada pelos seus próprios interesses. Há casos em que as leis úteis são ditadas pela burguesia sob pressão da classe operária. São os mais numerosos. Quase todas as" leis operárias" foram obtidas deste modo - por meios de ameaças dos operários .... Neste caso, o Estado, inimigo da classe operária, esta coligação de patrões, faz o seguinte cálculo no seu próprio interesse: É melhor ceder alguma coisa hoje, do que ceder amanhã e arriscar talvez a própria pele. Assim como o fabricante, cedendo aos grevistas alguns tostões, não deixa de ser fabricante, o Estado burguês também não deixa de ser burguês quando, ameaçado de uma agitação operária, atira um osso ao proletariado'19. Nada a acrescentar.

A posição dos novos reformistas, na verdade, representa a retomada da posição de Hegel, para quem o Estado era a expressão dos interesses gerais, do interesse público - de todas as classes -contra o interesse privado, de uma única classe. Este é o transito necessário para retomar a estratégia de Bernstein de ocupação dos espaços do Estado, como se existisse a possibilidade de construir um Estado popular com a ocupação crescente das instituições. Coutinho, utilizando os conceitos de Gramsci - e como veremos empregados de modo distorcido - é explicito na formulação: "o centro de luta está na guerra de posição, na conquista paulatina de espaços no interior da sociedade civil e, por meio e a partir dela, no próprio seio do Estado". Não pode ser mais claro que a estratégia do professor é a mesma de Bersntein, embora o teórico alemão não seja citado nem reconhecido como mestre. Na realidade, os novos reformistas basearam-se na seguinte ideia: os fundos

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públicos utilizados para reproduzir o capital permitem adotar uma estratégia de disputa do Estado, como se estivéssemos diante da possibilidade de uma utilização dos mecanismos democráticos do Estado de Direito burguês para uma alocação de recursos tão favorável aos trabalhadores ao ponto de superar o capitalismo pela ocupação crescente de espaços de poder pela via eleitoral. Ou pelo menos de regular o capitalismo, lhe permitindo uma exploração mais humana, como se fosse possível o Estado capitalista" extirpar o despotismo do capital sobre o trabalho, condição de sua própria existência parasitária", como escreveu Marx em A Guerra Civil na França. A maioria da direção do PT tem adotado esta posição.

Assim, a direção majoritária do PT acabou limitando sua estratégia política à defesa da manutenção ou, no máximo, ao melhoramento de uma situação democrática de equilíbrio entre as classes, sem jamais apontar a necessidade da derrocada do atual Estado, abandonando o conceito de Estado de classe para adotar, na pratica, o conceito do Estado protetor social. A expressão conjuntural desta substituição tem sido a ideologia segundo a qual o Estado esta sendo atacado pelo neoliberalismo e que nossa tarefa é defendê-lo. Como muitas vezes ocorre, uma ideia falsa tem um fundo de verdade.

Nesse caso, é evidente que o neoliberalismo tem desmantelado funções então assumidas pelo chamado Estado do Bem-Estar Social, ou até pelo modelo getulista, especificamente tratando-se do Brasil. Por sua vez, o domínio da economia mundial exercido pelas transnacionais tem enfraquecido a soberania nacional nos países dependentes. Trata-se de uma necessidade do capitalismo em sua fase imperialista. Quanto maior o espaço econômico melhor para o domínio do capital. Quanto maior for o território, menores os custos de produção, maiores as possibilidades de transferências das indústrias e maiores os mercados. Isso já foi ensinado ha muitas décadas atrás por Hilferding em seu livro "O Capital Financeiro - 191 O). Reduzir a soberania nacional dos países dependentes, seu controle sobre a moeda e sobre grandes empresas lucrativas são políticas do capitalismo financeiro, combinadas com a desregulamentação de todas as legislações

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protecionistas dos países periféricos. Mas isso não significa que os Estados desses países devam ser fracos em sua determinação essencial de avalistas e defensores do capitalismo como um todo. Sua capacidade de defender a propriedade privada, ao contrário, necessita ser fortalecida, embora subordinada aos interesses dos países imperialistas dominantes, mais concretamente dos EUA.

Na verdade são os Estados, a partir de suas engrenagens de comando, os principais promotores da política neoliberal, fato mascarado pela burguesia e também pelas lideranças reformistas. Em primeiro lugar, esse é o papel do Estado dos países capitalistas centrais. Em segundo lugar, em posição associada, essa tem sido a política da burguesia dos países dependentes e seu Estado. Vejamos as coisas mais de perto.

A crise flscal e o neoliberalismo

A realidade é que temos vivido a partir do final dos anos 70 uma alteração em algumas características do Estado capitalista do pôs-II Guerra. O período de crescimento da economia capitalista a partir do qual foram viabilizadas as concessões sociais decisivas para evitar a continuidade do processo revolucionário iniciado em 1945, deixou de existir. Para alguns economistas o final do boom econômico se deu em 1967; outros consideram a recessão de 1974 como o início de um novo período de estagnação e crise da economia capitalista mundial.

O certo, contudo, é que com a crise abriu-se um novo período de ataques às concessões sociais com as quais os Estados capitalistas buscavam antes se legitimar. Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos EUA, foram os protagonistas de uma mudança na política econômica dos países centrais, quando setores políticos burgueses ganharam consciência de que os gastos de manutenção do seu regime social estavam insustentáveis a médio prazo. As classes dominantes começaram a retomar a confiança política para aplicar novos planos econômicos pesadamente antipopulares, uma tentativa de reduzir a crise flscal, a hipertrofia do Executivo e dos gastos dos governos.

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Tal crise flscal era inevitável, justamente o resultado do conjunto de atividades econômicas assumidas pelo Estado a partir da Segunda Guerra Mundial, até porque o aumento da carga tributaria tem limites políticos e econômicos. Tal aumento diminui os lucros, as rendas, os salários. Igualmente, a in:t:ação, outra via de apropriação da riqueza pelo Estado, não pode crescer indefinidamente. Pressionada pelos monopólios capitalistas, visando manter suas taxas de lucro, e pela demanda estatal com o crescimento do volume da liquidez, em comparação com os bens colocados no mercado, sua alta contínua desorganiza a produção. A outra face da in:t:ação, a dívida publica, também tem seus limites e, no mundo inteiro, estamos chegando nesse ponto, embora nos EUA haja uma elasticidade ainda razoável, porque sua capacidade de financiamento é derivada do fato do dólar representar o equivalente monetário mundial. Mesmo aí, entretanto, o crescimento da dívida pública e os gastos futuros com aposentadorias e planos de saúde, por exemplo, começam a ser ameaçados.

A conclusão lógica é que o sistema não podia seguir gastando como antes. Mas o capitalismo não sobrevive sem gastos públicos, sem a demanda estatal e a divida publica. Por isso, o eixo do ataque neoliberal consistiu em desmontar o então chamado Estado do Bem-Estar Social, os serviços sociais, a saúde, a educação, as aposentadorias, benefícios conquistados pelas mobilizações do pós II Guerra, reduzindo ao máximo tudo que represente salários indiretos. Por sua vez, a política econômica tratou de contribuir na reprodução ampliada do capital das grandes corporações via uma política de privatizações. Nos países da América Latina, esse processo foi agravado pela desnacionalização da economia e a intensificação do domínio financeiro do imperialismo pelos mecanismos da divida externa.

Então, é lógico que com o advento do neoliberalismo há retirada de conquistas populares e supressão de características que haviam se incorporado ao Estado burguês. Há maior concentração e centralização dos capitais, no interior de cada país e em benefício dos países centrais. Isso não anula, contudo, que todas estas

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medidas representam o Estado exercendo sua função pela via da aplicação do neoliberalismo como política econômica. As leis repressivas, anti-greve, por exemplo, não significam intervenção estatal? É evidente que sim. E as políticas neoliberais estão repletas dessas tentativas. O governo FHC volta e meia tem apresentado projetos dessa natureza e os vemos em vários países, confirmando o acerto de Gramsci ao afirmar: "o laissez-faire também é uma forma de regulação estatal, introduzida e mantida por meios legislativos e coercitivos. É uma política deliberada, consciente de seus próprios fins e não a expressão espontânea e automática dos fatos econômicos ... "20. Constata-se isso também em vários outros terrenos: nas leis de :t:exibilização trabalhista, nos regulamentos de proteção das empresas privatizadas, na abertura comercial desenfreada.

Estas são provas de que a política neoliberal altera o padrão de intervenção estatal mas, em hipótese alguma, reduz a importância do Estado capitalista, utilizado invariavelmente para reproduzir as relações capitalistas de produção, a dominação da burguesia. O atual desmonte dos serviços públicos tem aproximado o Estado capitalista de suas determinações essenciais: um aparato armado a serviço do capital, ou um comitê executivo da burguesia. Não cabe aos socialistas defendê-lo, seja quando a política econômica neoliberal tem a hegemonia, seja quando o keynesianismo esteja em alta.

Nesse sentido, assim como as leis anti-socialistas de Bismarck dissiparam ilusões de setores da socialdemocracia no programa lassalliano, repleto de ilusões no Estado, fortalecendo as posições de Marx, o advento do neoliberalismo tem desmontado as ilusões propagadas pelos defensores do Estado como instituição acima das classes, garantia atual do bem-estar comum. É evidente que os violentos ataques aos direitos econômicos e políticos dos trabalhadores incluem também alterações das legislações e das Constituições burguesas, em particular as escritas em etapas mais favoráveis para a obtenção de reformas para as classes trabalhadoras. Essas medidas para imporem-se, ademais, necessitam de cada vez mais repressão e cortes das liberdades

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democráticas. Por isso, atualmente, tem tanta importância a organização da resistência contra as mudanças nas legislações cujo objetivo é desfavorecer os trabalhadores, assim como a defesa de processos eleitorais constituintes, a denuncia da corrupção para desmascarar as falcatruas crescentes do modelo neoliberal, etc.

O marxismo, porém, não confunde a defesa da regulação social com a organização estatal, nem muito menos a defesa do salário indireto dos trabalhadores com a defesa do Estado burguês. Quando defendemos os serviços públicos, não defendemos o Estado. Defendemos conquistas sociais que o Estado burguês foi obrigado a incorporar numa determinada correlação de forças, mas que não são parte essencial de suas determinações. Incorporações, aliás, muito menores em países como o Brasil. Quando defendemos a necessidade de processos eleitorais, as medidas democráticas assimiláveis pelo Estado burguês, tampouco abandonamos a estratégia de destruição do Estado capitalista, mas buscamos acumular forças nessa direção, única capaz de realmente enfrentar até o final os planos de ajuste capitalista.

Os sonhos acalentados por setores reformistas não passam disso: sonhos impossíveis de realizarem-se porque o Estado concreto necessita seguir investindo no financiamento da indústria armamentista, subsidiando as corporações - como as empresas aeronáuticas - e economizando apenas precisamente nos salários indiretos e nos investimentos sociais em geral.

Seus desejos de retornar ao passado, a saber, de produzir uma nova leva de gastos públicos, com o Estado atendendo algumas demandas sociais não levam em conta a diferença entre a situação atual e o período do pós-guerra, quando os gastos públicos mais pesados, embora tenham sido canalizados para a indústria armamentista, também puderam ser utilizados para garantir algumas melhorias sociais. Nem tampouco levam em conta o completo domínio exercido pelos países imperialistas, em particular os EUA, sobre as economias latino-americanas, domínio pelo qual transferem uma parte crescente do trabalho excedente realizado em nosso continente. A intervenção estatal

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atual tem mantido sua função de valorização do capital. Trata de cortar todo e qualquer gasto supér:f:uo do ponto de vista de sua valorização, o que inclui os salários sociais expressos nos serviços públicos, bem como de garantir, na América Latina, os mecanismos de dependência e subordinação que permitem sua associação ao império do norte.

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Notas:

1 Estado e Revolução - Obras escolhidas - Lênin - volume li- pág. 294, Editora Alfa-Omega

2 Estado e a Revolução - obras escolhidas " Pág 298 - Editora Alfa-Omega

3 Contra Corrente - Carlos Nelson Coutinho - pág.25 - Cortez Editora

4 Estado e Revolução- Obras escolhidas - Lênin - volume li- pág. 227, Editora Alfa-Omega

5 Introdução de Engels ao livro de Marx Guerra Civil na França - página 502 -obras escogidas - editorial Fundamentos - Madrid

6 Nahuel Moreno - Concepção marxista da sociedade - Edicciones MST -Argentina

7 Introdução ao marxismo - Ernest Mandei" pág 22 - Editora Antidoto

8 Norberto Bobbio -Teoria Geral da Política

9 K.Marx, O Capital volume 1 - página 48 - Fundo de Cultura Econômica -México

10 Imperialism: From the Colonial Age to the Present, Nova York, Monthly Review Press, 19 8, p 183

11 Antônio Gramsci - Cadernos do Cárcere - pág 285- Civilização Brasileira

12 Adelmo Genro Filho - Violência, política, poder e Estado " re:t:exões preliminares

13 Para Além do Capital, lstván Mészaros, pág. 570 - Editorial Boitempo

14 O Contrato Social- Jean-Jacques Rousseau -pág. I32- edições de Ouro

15 A crise completa - Lauro Campos - página 322 - editorial Boitempo

16 Tarso Genro - O futuro por Armar - pág. 20- editora Vozes

17 idem. pág. 19

18 Contra Corrente - Carlos Nelson Coutinho - página 38 - Cortez Editora

19 ABC do Comunismo - N. Bukharin - pág. 20 - Global Editora

20 citado por Atílio Boron - Império - imperialismo, pág 55 - Clacso - Buenos Aires

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Guerra de movimento e de posições uma clariflcação necessária

O Brasil foi um dos primeiros países da América Latina a recuperar a memória de Antônio Gramsci. Sua recuperação foi importante em si mesma, embora tenha sido acompanhada pelas distorções teóricas de uma esquerda que rompendo com o stalinismo resistia em traçar uma perspectiva revolucionária. Em meados da década de 80, o comunista italiano ainda era mais comentado do que lido, pelo menos em nossas terras. Apenas textos selecionados eram publicados e tintas e tintas interpretavam seu pensamento.

As discussões sobre o Estado ganharam novos contornos ao entrar no círculo de debates, pela mão dos primeiros divulgadores de Gramsci, com destaque para Carlos Nelson Coutinho, a questão da hegemonia, da acumulação de forças e da necessidade ou não da insurreição. Aqui é o ponto no qual no interior do PT mais se abusou de Antônio Gramsci, atribuindo um caráter reformista in sua obra. Vigorou uma utilização equivocada do conceito gramscista de hegemonia e de bloco histórico. Alguns dirigentes do PT até hoje utilizam esses conceitos para defender uma política de colaboração de classes com a burguesia ou com setores dela. As posições encabeças por José Genoino sempre foram fartas nessas deformações. Como mínimo, de nossa parte, não lhes daremos de presente a herança e a autoridade do comunista italiano.

O Bloco histórico não tem nada a ver com politica de alianças com a burguesia, nem a hegemonia deve ser transformada numa política de concessões às classes exploradoras ou na busca de um consenso com a mesma. Pelo menos não em nome das idéias de Gramsci. Quando era dirigente do Partido Comunista Italiano,

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antes de sua prisão, não deixava margem de dúvida ao apontar a necessidade do movimento do proletariado industrial e agrícola ter como aliados os camponeses do sul e das ilhas (teses do Congresso de Lyon em janeiro de 1926). Afirmava o papel decisivo dos intelectuais na formação das alianças, os responsabilizando por vincular os camponeses aos grandes proprietários rurais, sustentando ainda que era urgente e necessário quebrar este vinculo com a formação de uma tendência de esquerda entre os intelectuais. Gramsci indicava, sim, a necessidade do consenso das amplas massas camponesas como condição para mobilizar contra o capitalismo. Apenas um detalhe: consenso das massas camponesas, não com os capitalistas, mas entre si, para mobilizar contra o capitalismo, para quebrar vínculos com os grandes proprietários. Este era o bloco histórico determinante das mudanças. Nada disso tem algo a ver com a colaboração de classes entre trabalhadores e capitalistas, nem com política de alianças com seus partidos, sejam eles populistas, liberais ou com quaisquer outras denominações.

Por sua vez Gramsci diferenciava hegemonia de dominação, afirmando que não bastava ser dominante, mas se devia alcançar a hegemonia, ou seja, uma verdadeira capacidade de direção, utilizando-se de uma complexa rede de relações não baseadas essencialmente nem prioritariamente no uso da coerção. A essência de sua concepção respondia a necessidade do proletariado erguer-se como classe dirigente das classes aliadas para enfrentar o capitalismo. "Nenhuma ação de massa é possível se a massa não está convencida dos fins que deseja atingir e dos métodos a aplicar. Para ser capaz de governar como classe, o proletariado deve se despojar de todo o resíduo corporativo, de todo o preconceito ou incrustação sindicalista. O que significa isto? Significa que não só devem ser superadas as distinções existentes entre as diversas profissões, como também é necessário, para que conquistem o consenso e a confiança dos camponeses e de algumas categorias semi-proletárias da cidade, superar alguns preconceitos e vencer certos egoísmos que podem subsistir, e subsistem na classe operária como tal, mesmo quando já desapareceram de seu seio os particularismo de profissão. O metalúrgico, o carpinteiro,

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o operário da construção civil, etc., devem não só pensar como proletários e não mais como metalúrgico, carpinteiro, operário da construção civil, etc., mas devem ainda dar um passo à frente: devem pensar como membros de uma classe que tende a dirigir os camponeses e os intelectuais, de uma classe que só pode vencer e construir o socialismo se auxiliada e seguida pela grande maioria dos estratos sociais. Se não conseguir isso, o proletariado não se torna dirigente e aqueles estratos, que na Itália representam a maioria da população, permanecem sob a direção burguesa e dão ao Estado a possibilidade de resistir ao ímpeto proletário e de dobrá-lo"l. Não pode ser mais claro o modo como Gramsci se colocava contra o Estado. Não há nele qualquer similitude com a idéia estratégica de mudanças democráticas do Estado burguês nem com a tentativa de encontrar consenso ou transito com setores empresariais e com a opinião pública em geral.

Sobre a discussão entre guerra de movimento e guerra de posições, temos ai um rico aporte a discussão de uma estratégia revolucionaria. Foram conceitos tirados da arte militar. Segundo Gramsci, "no Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia uma justa relação entre Estado e sociedade civil e, diante dos abalos do Estado, podia-se divisar uma robusta estrutura da sociedade civil". O Estado seria apenas uma fortaleza avançada "por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas". Daí Gramsci deduzia que no Oriente a guerra de manobra era a mais apropriada, pelo menos no caso russo, enquanto que no Ocidente era a guerra de posição, com a acumulação de forças sendo muito mais trabalhada no interior das instituições e da chamada sociedade civil.

Vladimir Pomar buscou sistematizar melhor o significado dos dois conceitos. Guerra de movimento, ou de manobra, seria a participação nos movimentos sociais, de todas as lutas que tensionem o domínio do capital e o autoritarismo, mesmo as mais reformistas e particularistas. "O esforço principal deve orientar-se no sentido de unificar esses movimentos em escala cada vez mais amplas, regionais, estaduais e nacionais, de modo que convirjam para um movimento capaz de apresentar-se como

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força social transformadora ... "2. Guerra de posição, por sua vez, seria a disputa e a participação no aparato da sociedade civil e da sociedade política "nos sindicatos , associações, organizações não governamentais, parlamentos, governos, tendo como fulcro principal a interação com os trabalhadores ... a mobilização desses segmentos e o esforço para impedir que sua fragmentação e sua degradação continuem" .3

Alguns estudiosos como o sociólogo argentino Atílio Boron identificam na posição de Gramsci concedendo prioridade a guerra de posição um resgate das posições de Engels da "Introdução" à luta de classes na França e mais especificamente uma aproximação com as posições táticas da socialdemocracia favorável a linha do desgaste. Levando em conta que sua elaboração foi posterior as derrotas de muitos levantes revolucionários animados pela vitoria da revolução russa de 1917, e possível que o comunista italiano tenha buscado inspiração nessas elaborações, muito embora não se tenha uma referência explicita de tal fato. O mais provável é que sua in:f:uência mais direta tenha vindo dos próprios debates da li Internacional a da tática da Frente Única Operária. As diferenças entre as revoluções russa e dos países ocidentais já eram assinaladas por Lênin com toda a força em 1918. Não esqueçamos que Lênin nunca se opôs a tática do desgaste, entendida como tática, não como a estratégia bersteniana. Suas palavras no Sétimo Congresso Extraordinário do PC da Rússia não podiam ser mais claras: "A revolução não chegará tão cedo quanto esperávamos. A história tem demonstrado, é preciso saber aceitar como um fato, há que se apreender a ter em conta que a revolução socialista mundial nos países avançados não pode começar tão facilmente como na Rússia, país de Nicolás e Rasputin, e onde para grande parte da população era completamente indiferente saber que classe de povos vivem na periferia e o que ali ocorre. Em um país dessa natureza é tão fácil começar a revolução como levantar uma caneta. Porém, em um país onde o capitalismo se desenvolveu e produziu uma cultura democrática e uma organização que alcança até o último homem, começar a revolução sem a devida preparação é um desacerto, é um absurdo. Nesse caso não faremos mais do que

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abortar o penoso período de começo das revoluções socialistas. E isso é um fato" .4 Então, Gramsci aprende de Lenin, trata de seguir suas pistas e desenvolvê-las. É possível também que Kautsky tenha tido alguma in:f:uência. De toda a forma, a inspiração não era num Kautsky renegado nem muito menos num Engels pacifista e legalista, existente apenas nas falsiflcações grosseiras do revisionismo. Não obstante, Gramsci seria vitima da mesma falsificação, comprovando mais uma vez a ânsia reformista em buscar nos marxistas reconhecidos argumentos para seu abandono da perspectiva revolucionaria.

Assim, um aporte útil acerca da guerra de posição tem se transformado, nas mãos de intelectuais e políticos reformistas, em negação da insurreição como momento fundamental da revolução e, portanto, em negação da própria revolução. Baseando-se em Gramsci, intelectuais como Carlos Nelson Coutinho afirmam que um país com a complexidade do Brasil pode ser considerado "Ocidental", observação com a qual concordamos, para daí concluir algo inaceitável: a guerra de posição deve ser a marca da atuação política dos trabalhadores, abandonando a perspectiva insurrecional. Como veremos, a leitura de Gramsci não autoriza esta conclusão.

É certo, porém, que a obra do comunista italiano deixou margens para confusões e interpretações reformistas. Primeiro, porque há em Gramsci um certo espaço para controvérsias acerca da capacidade dos trabalhadores obterem a hegemonia cultural antes de deter o poder estatal. As bases da confusão são suas analogias entre as revoluções burguesas e proletárias, sem demarcar que o proletariado não pode conquistar a hegemonia cultural na sociedade devido ao próprio caráter da dominação burguesa e seu domínio de todos os aparelhos ideológicos mais pesados, diferentemente, portanto, da burguesia em sua luta contra o feudalismo. Seguindo a lógica reformista, então, a tarefa consistiria em acumular forças, até a conquista da tal hegemonia cultural. As eleições seriam o termômetro destes avanços, adotando-se o critério dos triunfos eleitorais sucessivos como única prova da maturidade da consciência da cidadania.

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Essa visão unilateral super-dimensiona o termômetro eleitoral e insinua como possível a conquista da hegemonia em relação ao conjunto da sociedade, abstraindo seu caráter de classe, razão pela qual a classe trabalhadora não tem como ser portadora de uma posição dirigente em relação as classes dominantes e aos setores da classe média alta, tendo em vista que seus interesses não são os mesmos nem próximos.

Entretanto, uma leitura mais atenta indica que Gramsci atribuía peso efetivo à conquista de hegemonia cultural do movimento socialista não sobre o conjunto das sociedades, mas sobre as classes de uma ou outra forma exploradas pelo capitalismo, para as quais os trabalhadores e suas organizações necessitam encontrar os vínculos e propostas capazes de dirigi­las. Uma posição bem distinta, embora de margens fortes para ser questionada na medida em que a conquista da hegemonia cultural envolve um terreno muito abrangente, os valores, a ética, a concepção de mundo, exigindo um amadurecimento e desenvolvimento da consciência de classe muito elevado, complexo, inviável mesmo no interior da classe trabalhadora organizada sem uma longa educação de massas e sem a conquista prévia do poder politico.

Ainda que a hegemonia cultural fosse viável antes da conquista do poder político, a dedução reformista de que dita hegemonia dispensaria a necessidade de um golpe de força para mudar as relações de dominação tampouco seria verdadeira. Tanto é assim que a burguesia, classe cuja hegemonia cultural sobre seus aliados viabilizou-se em sua ascensão à condição de classe dominante, não pode assumir o poder por uma via democrática e pacifica, necessitando destruir o aparelho estatal monárquico feudal. Essa imprecisão acerca da hegemonia cultural no pensamento de Gramsci não anula a clareza de sua posição contrária a qualquer ilusão de que a classe trabalhadora pode dirigir e representar os interesses de toda a sociedade antes da tomada do poder nem tampouco anula a necessidade de incorporar o conceito de hegemonia na elaboração da estratégia revolucionária, elemento constitutivo do pensamento político de

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Lênin. A conquista da hegemonia política, quer dizer, a capacidade da classe trabalhadora de dirigir no terreno das alianças, das palavras de ordem, dos objetivos imediatos as classes sociais intermediárias, em particular o campesinato e a classe média pobre, é uma pré-condição da vitória.

Há uma segunda base mais pesada de equivoco nos textos de Gramsci, reveladores de seu preconceito e ignorância acerca da teoria da revolução permanente elaborada por Trotsky. Na fundamentação de sua teoria sobre a guerra de movimento e de posições, o comunista italiano desferiu ataques diretos a teoria de Trotsky. Tais ataques foram constantemente utilizados pelos reformistas, como se a permanente fosse equivalente a defesa de um ataque frontal ao Estado burguês de forma sistemática. Para contextualizar essa polêmica devemos revisitar os últimos debates existentes na III internacional quando Lênin ainda vivia.

Como se sabe, no principio da década de 20 do século passado, o revolucionário russo propôs a adoção da tática da Frente Única contra a teoria da ofensiva, a qual, concretamente, significava a preparação da insurreição como tarefa presente do movimento de massas na Europa Ocidental. A tática da Frente Única, ao contrário, pregava a unidade dos partidos operários, a unidade dos revolucionários da III Internacional com os mencheviques europeus, numa política de acumulação de forcas que visava ganhar a maioria da classe operaria antes de uma linha insurrecional. Os chamados ofensivistas acusavam inclusive Lênin de estar cedendo na linha política aplicada pelos próprios bolcheviques na Rússia, sem considerar em sua critica o início do re:t:uxo da revolução, re:t:uxo fortemente assinalado por Trotsky durante o Congresso.

As caricaturas lançadas sobre as posições de Trotsky, fabricadas no interior do próprio aparelho estalinista, tratavam de igualar as teses da permanente com a tática da ofensiva. E Gramsci prestou-se a reproduzir esta confusão, quando era totalmente claro que o líder e fundador do Exército Vermelho jamais defendeu um ataque frontal sem acumulação de forças anterior. A confusão de Gramsci sobre Trotsky fica visível quando o marxista italiano

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aponta a tática de Frente Única como expressão clássica da guerra de posição ao mesmo tempo em que sustenta que Trotsky defendia apenas a guerra de manobra ou de movimento. É incrível porque Gramsci certamente não desconhecia o fato de Trotsky ter sido justamente o informante sobre o ponto no Congresso da Internacional. Um defensor fervoroso da tática de Frente Única. Aliás, sua maior divergência com a cúpula soviética foi sobre esta questão. A recusa do PC alemão, orientado pelo Comintern, em aplicar a tática da Frente Única contra o nazismo na Alemanha foi o motivo de sua ruptura definitiva com a Ili Internacional já totalmente stalinizada.

Trotsky, além de defender a tática da frente única em todos os debates da Internacional, nas suas advertências para a situação alemã desde 1923, defendeu-a em escritos de 1930-33 e para a França de 1934-36. Toda sua vida combateu o cretinismo antiparlamentar que se recusava a utilizar o parlamento burguês, por exemplo, sustentando uma combinação do que Gramsci chamava de guerra de movimento e guerra de posição, de acordo com a correlação de forcas. Então, se Gramsci apontava a tática de frente única como ilustração da guerra de posição e o próprio Trotsky era um dos seus principais defensores, como Gramsci pode ter criticado Trotsky?

O peso da propaganda stalinista exerceu seu papel. Os debates sobre a teoria da revolução permanente começaram em 1924. Em 1926, Stalin elaborou sua teoria do socialismo num só pais, mas antes disso a burocracia ao seu redor desencadeou a campanha contra o chamado trotskismo, afirmando que a política de Trotsky era aventureira e irresponsável, porque sustentava a revolução imediata internacional quando não havia condições neste sentido. É neste período que Gramsci escreve uma carta ao Comitê Executivo criticando a oposição encabeçada por Trotsky numa dica de que possivelmente não percebesse ainda o caráter reacionário da teoria do socialismo num só pais, talvez inclusive creditando a essa teoria uma certa identidade com a guerra de posição. Nessa mesma carta apresenta suas ressalvas sobre os métodos de Bukárim e Stalin, demonstrando sua independência

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do aparelho. Foi o suficiente para que Togliatti, responsável pelo PCI junto à Internacional, não entregasse a carta, razão da ruptura de Gramsci com Togliatti e de seu relativo isolamento da direção do PC. Nesse período, vale agregar, o stalinismo ainda não tinha desenvolvido todos os seus horrores, a tal ponto que futuros trotskistas como James Cannon e Andreu Nin ainda apoiavam Stalin contra Trotsky

Sabe-se também que o comunista italiano hierarquizava pouco em seus escritos a arte da insurreição, tema recorrente em Trotsky. Não se pode perder de vista, entretanto, as condições nas quais Gramsci escreveu, fugindo da censura do fascismo. Foi encarcerado desde 1926 e praticamente ficou de fora dos debates da III Internacional. Aliás, Gramsci não teve acesso aos escritos de Trotsky depois da expulsão do revolucionário russo da então URSS, em 1929. Insistia nesse pedido sem qualquer êxito.

Isso posto, não aceitamos a idéia que Gramsci defendia posições reformistas, nem tampouco sua identidade com o stalinismo. Não temos duvida que há setores que apoiaram-se em Gramsci para negar a insurreição e a luta direta contra o poder burguês. Setores políticos que escreveram em condições propícias para resgatar a realidade e não o fizeram. A discussão, neste caso, não envolve apenas as posições de Trotsky. É o próprio Lênin e a estratégia dos revolucionários russos que é questionada quanto às diferenças nas características dos processos revolucionários no Oriente e no Ocidente são acentuadas a tal ponto que acabaram negando a própria idéia da revolução e da insurreição como seu momento particular e decisivo, como se esta perspectiva fosse contraposta à idéia de hegemonia e da acumulação de forças.

E uma nova tentativa de confundir o marxismo com o blanquismo. Carlos Nelson Coutinho chega a dizer que "Marx e Engels eram defensores do paradigma jacobino defendido por August Blanqui, isto é, a revolução como fruto da ação de uma aguerrida vanguarda de poucos e corajosos combatentes para ainda completar: ora considerar como válida ainda hoje a estratégia revolucionária proposta no Manifesto é, no mínimo, prova de agudo anacronismo"5. Anacronismo?! Isso tudo é sem

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pé nem cabeça. O professor, neste caso, não apenas abandona o terreno do marxismo como diretamente calunia Marx e Engels. E com tamanha deturpação do marxismo, Carlos Nelson Coutinho ainda se reivindica marxista? Uma deturpação, aliás, que não tem uma vírgula de novidade. É exatamente a mesma formulada por Bernstein. Lênin disse, há muito tempo, que "o chefe do oportunismo, Bernstein, adquiriu já uma triste celebridade ao acusar o marxismo de blanquismo" 6. Mas vejamos como Lênin contestava o mestre, não Coutinho, mas Bernstein, o mestre de Coutinho. "Para ter êxito, a insurreição deve apoiar-se não numa conjura, não num partido, mas na classe avançada. Isto em primeiro lugar. A insurreição deve apoiar-se no ascenso revolucionário do povo. Isto em segundo lugar. A insurreição deve apoiar-se naquele ponto de viragem na história da revolução em crescimento em que a atividade das fileiras avançadas do povo seja maior, em que sejam mais fortes as vacilações nas fileiras dos inimigos e nas fileiras dos amigos fracos, hesitantes e indecisos da revolução. Isto em terceiro lugar. Estas são as três condições da colocação da questão da insurreição que distinguem o marxismo do blanquismo'7. Então, para o marxismo, a revolução tem de ser feita pelas massas, não por uma pequena minoria e a insurreição é um momento culminante do processo, um salto de qualidade organizado como uma arte. E para ganhar as massas, para convencê-las da revolução socialista, um trabalho árduo e cotidiano é necessário, um trabalho de desgaste do regime político burguês e de acumulação de forças da classe trabalhadora. Demonstrar isto é o objetivo de Engels em toda a sua vida. Engels, ao invés de blanquista, foi incorretamente acusado de ceder a posições reformistas no final de sua vida, acusação tão infundada quanto a anterior. Ao escrever seu já citado prólogo para uma nova edição do livro de Marx," A luta de Classes na França", Engels faz uma extensa análise da situação do SPD e faz considerações fundamentais sobre a luta revolucionária. Demonstrou que o sufrágio universal foi uma conquista do proletariado, constituindo-se em método fundamental de luta. Considerou que os combates de barricada teriam menor importância no futuro, mas em hipótese alguma

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negou a necessidade da revolução, cuja preparação deveria, mais do que nunca, levar em conta que os trabalhadores não podem se lançar "sem mais" às ruas, porque a derrota seria certa.

Foi este o prólogo, que acabou sendo publicado apenas em extratos que davam a impressão de que ele era "um pacifico defensor da legalidade a todo custo". Contra isso o próprio Engels escreveu a Kautsky protestando pela edição do seu texto e reivindicando sua publicação na íntegra "a fim de que dissipe esta confusa impressão", no que não foi atendido.

A defesa da revolução socialista, da necessidade do emprego da violência revolucionária para destruir o Estado burguês e erigir o Estado proletário, não significa, portanto, a defesa de aventuras ultraesquerdistas em que a classe operária é jogada as ruas para ser derrotada e esmagada. Uma organização revolucionária tem que saber diferenciar o momento de acumular forças e o momento de usar essa força acumulada em ações revolucionárias. O terrível erro da socialdemocracia foi transformar a necessidade de acumular forças em uma estratégia permanente, que a levou a transformar as eleições em estratégia para chegar ao poder e não em um meio de luta tático e muito útil para ganhar forças, fazer propaganda da política do partido e convencer a classe trabalhadora da necessidade de derrotar o capitalismo, lutando sem quartel por suas reivindicações mais imediatas e contra os governos de plantão.

Quando afirmamos a atualidade da revolução, estamos longe de acreditar que a vitória dos trabalhadores é uma empresa fácil. Ao contrário. Nunca como hoje a agressão à natureza e a capacidade destrutiva do Estado imperial militar dos EUA foi tão poderosa. Se já Engels alertou sobre a importância da acumulação de forças antes de de:f:agrar ações ofensivas decisivas, prevendo maiores diflculdades das insurreições devido às modernas armas, novas técnicas militares e inclusive às novas arquiteturas das cidades - a substituição das estreitas ruas de Paris por avenidas largas, mais difíceis para a ação dos insurretos - imaginem agora as diflculdades. O século XX todo foi uma experimentação permanente de tecnologias militares. Até a internet surgiu

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destes experimentos. Na década de 90, depois da experiência da guerra do Iraque, da Bósnia e de Kosovo - a primeira a ser usada aviões sem tripulação-, vemos, então, os saltos na tecnologia dos computadores e dos sensores, a ponto dos planos do Pentágono já serem de generalizar armas sem piloto. Planos de fazer a guerra por controle remoto.

Por isso, nunca como hoje, tem sido tão importante as mobilizações e a conscientização dos povos e trabalhadores dos países centrais, dos trabalhadores norte-americanos em particular. Não se pode apostar centralmente numa resposta militar para as agressões do império, ainda que em última instância a preparação neste terreno seja decisiva, interna e externamente. A aposta para derrotar o império deve ser política, centralmente buscando minar no seu próprio interior as bases de apoio do intervencionismo. O internacionalismo e a solidariedade com os povos em luta adquiriu importância de vida ou morte.

Os marxistas, obviamente, levam em conta a necessidade da acumulação de forças. Lênin, mais do que ninguém, levava em conta a hegemonia, a capacidade do partido de dirigir. Tanto é assim que não tomaram o poder em julho de 1917, quando manifestações de 500 mil trabalhadores, parcelas importantes deles com armas nas mãos, tomaram as ruas de Moscou. Não tomaram o poder, não porque não tinham força para conquistá­lo, mas porque avaliaram que seria inviável mantê-lo. E sua linha política nas jornadas de julho teve o acordo total de Trotsky, dirigente da interbarrial com seus 4000 militantes.

O preconceito contra os bolcheviques, portanto, levou à caricatura as posições dos revolucionários russos, como se estes tivessem como estratégia o assalto ao Palácio do Inverno e ponto final. Isso é ridículo. O assalto ao Palácio foi um momento, sem dúvida um momento decisivo, de vida ou morte; a escolha exata para que não fosse nem cedo nem tarde demais. Essa era a genialidade de Lênin, precisamente conhecer o momento do tempo em que se concentra a máxima necessidade de girar o país, de quebrar o poder burguês, uma genialidade muito bem apreciada por Daniel Bensaid em seu ensaio sobre "Lênin

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e a política do tempo partido". O acerto de Lênin foi tal que a violência foi mínima, o poder burguês foi quebrado com o núnimo de vitimas, uma das menores nas grandes viradas históricas. Tão madura estava a situação, tão propícia para o assalto aos céus.

Esta estratégia apenas encontra questionamento se o objetivo é a conquista da hegemonia sobre setores da burguesia. Ai, sim, é incompatível com Lênin e com o marxismo. É também incompatível com Gramsci. Nisso Gramsci se mostra o revolucionário que era. Num artigo chamado Os revolucionários e as eleições, responde sobre o que esperam os revolucionários conscientes, os operários e camponeses das eleições no parlamento, do seguinte modo "Não esperam decerto a conquista de metade mais um dos lugares e uma legislatura que se caracterize por uma dúzia de decretos e de leis que tendam a arredondar os ângulos e a tomar mais fácil e mais cômoda a convivência das duas classes, a dos explorados e exploradores. Esperam, pelo contrário, que o esforço eleitoral do proletariado consiga fazer entrar no parlamento um bom nervo de militantes do Partido Socialista e que esse seja bastante numeroso e aguerrido para tornar impossível cada passo da burguesia, inviabilizar a constituição de um governo estável e forte, para obrigar, portanto, a burguesia a sair do equivoco democrático, a sair da 'legalidade burguesa' e determinar uma sublevação dos estratos mais profundos e vastos da classe trabalhadora contra a oligarquia dos exploradores".

A caricatura contra Lênin, então, é também contra Gramsci. Mas esta caricatura contra Lênin é expressão justamente dos que não querem quebrar a máquina, dos que querem apenas reformas no Estado. Neste caso, a insurreição não tem seu fundamento de existir e a estratégia passa a ser conquistar metade mais um dos eleitos no parlamento, justamente o oposto do defendido por Gramsci.

Nada disso significa negar as diferenças entre os Estados, o Oriente e o Ocidente; não significa desconhecer a existência de Estados mais atrasados ou mais complexos, nem muito menos o fato que, atualmente, os mecanismos de hegemonia se aperfeiçoaram - vide industria cultural - e também os de coerção,

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os de controle, os aparelhos policiais. Nesse sentido, o Estado burguês esta mais forte do que no inicio do século passado, mais resistente, mais difícil de ser destruído.

O teórico italiano visualizou um problema que temos visto com nitidez também na América Latina, cujos regimes militares foram em sua maioria derrotados e substituídos por regimes democráticos burgueses, regimes estes que mantém a super exploração da classe trabalhadora, mas mesmo assim tem perdurado durante anos sem que os trabalhadores tenham articulado uma nova institucionalidade capaz de superá-los. Em todo o caso, para enfrentá-los, possivelmente Gramsci deu uma solução não de todo feliz - ao apresentar uma distinção tão taxativa entre guerra de movimento e guerra de posição, ao não assinalar com mais força uma fórmula algébrica sobre a necessidade de sua combinação. Disso se aproveitaram alguns para colocar seu ovinho em ninho alheio.

Democracia burguesa e ditadura

A diferença entre Ocidente e Oriente foi um aporte importante do marxista italiano. Além das diferenças nas estruturas econômicas, no grau de desenvolvimento do aparelho industrial, técnico, cultural, nos parece que se pode estender esta ponte e estabelecer uma diferença mais clara entre os regimes políticos de ditadura e regimes democráticos burgueses. Particularmente, no que diz respeito as distintas características das lutas de massas e do enfrentamento à dominação burguesa.

Nas democracias burguesas, de fato o peso dos aparelhos ideológicos, da mídia, do senso comum, das ilusões das massas e da capacidade de hegemonia da classe dominante são fundamentais, enquanto nos regimes políticos de ditadura o Estado se sustenta mais na força, na coerção, na dominação, embora também necessite de um certo grau de ilusões e de consentimento, do qual o medo não deixa de ser uma expressão.

Nas democracias burguesas as instituições são inúmeras e a hegemonia, isto é, a capacidade de convencimento tem mais peso.

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Mas isso não muda a natureza do Estado, que segue sendo burguês. E o consenso, quando não é obtido, desnuda a democracia burguesa no que ela também é, a saber, uma ditadura do capital de tal forma que a repressão às massas é vivida na ditadura e na democracia burguesa, embora com formas distintas e nem sempre na mesma intensidade, ainda que nos regimes democráticos burgueses a violência seja utilizada em larga escala e intensidade máxima quando os mecanismos de consenso e hegemonia fracassam.

Para enfrentar essas situações, é fundamental uma disputa nas organizações sindicais, nas associações, nos parlamentos. Isso tudo é uma verdade elementar. A questão novamente é qual a finalidade estratégica desta atuação. Então, a questão não é se disputamos a in:f:uência nos espaços de disputa pela hegemonia, mas a serviço de quais interesses intervimos e sobre quais classes e/ou frações de classes queremos e podemos hegemonizar. Se para conciliar os interesses de classe ou para preparar a /1 sublevação dos estratos mais profundos e vastos da classe trabalhadora contra a oligarquia dos exploradores."

Na ditadura, a disputa nestes aparelhos da sociedade civil oferece diflculdades muito maiores e alguns deles têm menos peso na definição da correlação de forças entre as classes em luta. Sua importância menor decorre de seu rígido controle por parte do regime, ou até pela sua simples ausência. Numa ditadura, às vezes, nem mesmo a instituição parlamentar existe. De qualquer forma, existem espaços de disputas, mecanismos nos quais se pode atuar. Para derrotar regimes com essas características, o processo desenvolve-se com um lento acumulo de forças subterrânea até que irrompa em in:f:uências setoriais, parciais, ora na subjetividade do movimento estudantil, em superestruturas antes derrotadas e que ressurgem como foi o caso da UNE no Brasil, ora no movimento sindical ou popular. Não importa tanto em qual segmento social ou movimento. Em geral adquire um caráter de mobilização de massas que parece surgir após uma longa preparação subterrânea motivada por demandas democráticas, bandeiras como /1 abaixo o governo", /1 abaixo a ditadura" que acabam mudando a correlação de forças e flnalmente derrotam o regime ditatorial.

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Numa visão aparente, poderia se falar do predomínio da guerra de movimento, mas, na verdade, como sempre, trata-se de uma combinação, porque para que a explosão se dê, para que estourem grandes lutas, as contradições vão lentamente trabalhando no interior da sociedade. Os sujeitos sociais e políticos das mudanças vão ganhando espaço, recuperando as instituições, acumulando forças e estimulando de uma forma ou outra o momento da ação ofensiva. Embora com menores possibilidades, se dá também a ocupação de espaços para demonstrar com exemplos, com propaganda e atos, a incompatibilidade entre os interesses do povo trabalhador e pobre e o regime repressivo.

Estas mobilizações nos regimes de ditadura geralmente representam movimentos multiclassistas, inclusive com a participação de setores burgueses. A burguesia, entretanto, é inconseqüente até na luta por demandas democráticas; não quer nenhum tipo de revolução com temor de que as massas queiram mais do que simples mudanças na forma de sua dominação. Apesar deste temor, setores da burguesia acabam sempre participando de alguma fase da evolução das lutas democráticas, geralmente quando aproximam-se do seu apogeu, de forma que possa melhor enquadrá-las na manutenção do regime capitalista de produção. Nas revoluções democráticas, portanto, a burguesia pode utilizar seu poder econômico e social para manobrar e desviar a revolução, congelando-a em seu estagio democrático. Este foi um dos importantes aportes para análise estratégica feito pelo dirigente trotskista argentino Nahuel Moreno.

Para desencadear uma ofensiva revolucionária desta natureza, isto é, uma revolução democrática, evidentemente não faz falta que um partido revolucionário tenha peso de massas nem muito menos a direção do movimento democrático, embora a história tem demonstrado que é a condição para que as tarefas democráticas sejam plenamente realizadas. Tampouco faz falta a existência de organismos de autodeterminação do movimento de massas, como conselhos de operários e camponeses, centralizados ou não.

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Aí reside uma diferença de qualidade na comparação com as revoluções em países democráticos burgueses. Para superar as democracias burguesas, é completamente distinto. A construção de alternativas de poder dos trabalhadores é, sim, determinante para superá-las, mesmo quando o regime burguês encontra­se desgastado e sua hegemonia totalmente em crise. Como se sabe, Marx defendia o início da revolução na França, Inglaterra ou Alemanha. Ela iniciou-se na Rússia e, desde então, nunca, em qualquer país de democracia burguesa, assistiu-se a revoluções socialistas triunfantes. Não há motivo para ceticismo. Tivemos ensaios gerais, como o maio francês de 1968, revoluções como a portuguesa em 197 4 - e estamos assistindo hoje ao agravamento das contradições capitalistas no centro do sistema.

Entretanto, o fato de que, em geral, as insurreições em Estados capitalistas com regimes políticos democrático-burgueses não tenham sido vitoriosas, não pode deixar de conduzir à re:t:exão de quais são as pré-condições deste triunfo. Em particular é válido discutir a experiência da América Latina com seus regimes democrático-burgueses conquistados na década de 80, assinalar sua diferença com o processo russo. Nisso há uma questão importante, vinculada precisamente às instituições e com a excepcionalidade da revolução russa de 1917, a única em que a insurreição venceu um regime democrático burguês recentemente conquistado. A primeira revolução russa de 1917, a que derrubou o czarismo (como todos sabem, uma ditadura com muita força), contava com a existência de um partido operário revolucionário e com a existência de organismos de mobilização e autodeterminação das massas, os sovietes, ou conselhos de operários, soldados e camponeses.

A peculiaridade russa, em 1917, era que o partido dos trabalhadores revolucionário já disputara a direção do processo revolucionário democrático contra a ditadura czarista. Logo em seguida, depois da primeira revolução, conseguiu assumir a direção do processo, impulsionar e dirigir uma segunda revolução, em menos de um ano. Foi uma experiência única porque já existiam sovietes, que surgiram pela primeira vez em

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1905 e depois reapareceram e sobretudo porque havia um partido revolucionário com in:t:uencia de massas. Assim, a vitória da revolução democrática contra a ditadura do regime czarista, que apoiava-se centralmente nas Forças Armadas e em leis repressivas, não pode ser manobrada e desviada pela burguesia liberal para construir suas casamatas e fortalezas. Já estavam os sovietes como principal instituição do país e a evolução da disputa no seu interior foi determinante para a sorte do pais no que diz respeito à construção de um novo tipo de Estado.

Na queda das ditaduras militares latino americanas, por exemplo, a experiência russa não se repetiu. No caso brasileiro, de 1984, a pressão revolucionária de baixo combinou-se com a auto-reforma de cima, o que acabou produzindo uma transição negociada e fiadora da dominação burguesa civil. Sequer foram totalmente desmontados os mecanismos repressivos do regime anterior, embora tenham sido claramente atenuados até que a nova Constituição, de 1988, fixasse uma nova ordem jurídica burguesa, incorporando as conquistas populares e democráticas do período. Não havia organismos do movimento de massas com força na sociedade, nem a classe trabalhadora teve uma atuação independente, se diluindo no movimento democrático geral. A burguesia pode fundar a "Nova República" e suas casamatas, inaugurando um sistema eleitoral para iludir o povo como se fosse este quem decidisse os rumos políticos e econômicos do pais.

Na Argentina, vivemos uma revolução aberta em 1982. Os militares foram literalmente corridos, varridos do poder, o que explica também em grande parte a incapacidade das Forças Armadas intervirem na crise revolucionária de dezembro de 2001. A queda dos militares, contudo, não foi acompanhada pelo desenvolvimento de organismos de tipo soviético, quer dizer, organismos de duplo poder dos trabalhadores e do povo. Nem tampouco havia um partido com in:f:uência de massas, embora o trotskismo argentino tivesse uma forte inserção na vanguarda. Assim, a revolução democrática argentina de 1982, o fevereiro russo, não se transformou em revolução socialista, não se desdobrou numa nova revolução, uma revolução de outubro, para

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seguir a analogia com o exemplo russo, quando os trabalhadores liquidaram o Estado burguês. O setor da burguesia que assumiu o poder também pode construir seus mecanismos de controle, de engano do movimento de massas.

O exemplo argentino esta longe de ser o único. Em toda América Latina vivemos esta experiência de modo mais ou menos desigual, embora com o mesmo sentido: quedas de ditaduras sem organismos de poder alternativo do movimento de massas e a classe dominante utilizando-se dos mecanismos da democracia burguesa para desviar o movimento de massas e congelar o processo revolucionário em seu estágio democrático.

A exceção, muitos anos antes, havia sido a revolução cubana em 1959 e, em menor grau, anos depois da experiência cubana, a revolução da Nicarágua de 1979. Não havia um organismo de autodeterminação do movimento de massas nem em um pais nem em outro. Em ambos, porém, havia um poder dual baseado no exército guerrilheiro que lutava para derrotar o poder ditatorial. Em ambos, o movimento de massas protagonizou uma revolução democrática, inclusive com setores burgueses participando, obviamente a reboque. A desestruturação dos regimes burgueses foi total, o exército foi liquidado e por essa via o Estado burguês. Outro Estado poderia ser construído. E em Cuba foi. Os EUA não aceitaram nem mesmo um desenvolvimento capitalista minimamente independente, o que empurrou a direção castrista para expropriar a burguesia. Por uma via negativa, pela expropriação da burguesia, outro Estado se impôs, mesmo sem organismos das massas democraticamente mobilizadas. As deformações do processo cubano também vieram desta limitação, além, é claro, do bloqueio criminoso norte-americano e da não menos criminosa política externa soviética, ajudando Cuba em troca de sua moderação no cenário latino-americano e mundial. Já na Nicarágua foi outra história. Os sandinistas não expropriaram a burguesia e o Estado burguês foi reconstruído, embora em crise crônica até os dias de hoje.

Mas essas foram as experiências de lutas cujo eixo inicial foram as demandas democráticas, revoluções contra regimes

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ditatoriais. Organismos de duplo poder, em geral, não existiam e quando existiram instituições de poder alternativo do movimento de massas não foram organismos democráticos, mas exércitos guerrilheiros. Mesmo assim, revoluções ou mobilizações contra regimes ditatoriais ocorreram, e foram vitoriosas, porque o movimento de massas pela democracia em geral foi superior a um Estado apoiado num regime político baseado na repressão e no medo.

Com os regimes democráticos burgueses, porém, as casamatas e fortalezas, para usar a expressão de Gramsci, são superiores; ha um sistema delas defendendo a hegemonia e a dominação da burguesia. Para superar o parlamentarismo e as ilusões das massas de que esta é a única forma de exercer sua vontade política, mesmo quando estamos diante do desgaste das instituições democráticas burguesas, a construção de organismos alternativos de poder do movimento de massas é decisiva. Sem tais organismos de duplo poder-torna-se sumamente complicado, para não dizer impossível, superar a dominação burguesa, por mais que estejamos diante de uma crise de hegemonia da burguesia e do Estado burguês. Isso explica, em parte, a longa etapa de democracia burguesa na América Latina, ainda que estejamos presenciando o início da crise destes regimes.

Estamos neste terreno num processo lento. As bases para a construção de outro tipo de Estado estão no estimulo à autorganização dos trabalhadores, nos comitês de fábrica, nas organizações do movimento camponês como o MST (Movimento Sem Terra), o MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), nas organizações do movimento popular como o Movimento Nacional de Luta pela Moradia, enfim nas superestruturas do movimento organizado dos de baixo da chamada pirâmide social. Na América Latina, vimos embriões claros de duplo poder recentemente no Equador, com o surgimento do Parlamento dos Povos, e em menor medida na Bolívia e na Argentina, com as Coordenadoras das Águas em Cochabamba e as Assembléias dos vizinhos, respectivamente.

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O fato que as direções tradicionais do movimento de massas não apostem neste caminho e trabalhem para desmontá-los as vezes que têm surgido é, sem duvida, um dos obstáculos para a transformação radical da sociedade, razão pela qual é também tão decisivo a construção de um partido revolucionário com esta estratégia. Não fazemos fetiche da forma; podem ser sovietes ou conselhos, podem ser cordões industriais como no Chile, Parlamentos dos Povos como no Equador, Assembléias Populares como foi no Peru, entre outras experiências que a marcha da revolução ira proporcionar.

O decisivo, porém, é que os socialistas atuem no movimento dos trabalhadores, na juventude, no movimento popular e camponês com esta estratégia permanente: organizar pela base, fortalecer os organismos de base democraticamente construídos, colaborar para a ligação entre eles e explicar pacientemente a necessidade de construir uma nova institucionalidade no pais, baseada na mobilização permanente e na autodeterminação do movimento de massas.

Notas:

1 Questão Meridional - A. Gramsci - pág. 146 - Paz e Terra

2 Um mundo a ganhar - Vladimir Pomar - pág.214 • Viramundo

3 idem, pág 214

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4 Discursos pronunciados nos Congressos do Partido - Lênin " pág. 17 - Editorial Progresso

5 Contra Corrente - Carlos N. Coutinho -pág. 41- Cortez editora

6 Obras Escolhidas - Lênin - Vol 11 - Pág. 309 - Editora Alfa-Omega

7 Idem, p 30

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A evolução do PT da independência à colaboração de classes

Em meados da década de 70 começou a crise do regime militar. O chamado milagre econômico, sustentado, no tripé do capital internacional, nacional e no invesiimento estatal esgotava sua capacidade de desenvolver a ecomomia. O início desse esgotamento em 1973 foi agravado pela recessão econômica mundial de 197 4. Em pouco tempo o novo cenário econômico iria ser completado pelas primeiras mobilizações em defesa da anistia ampla geral e irrestrita com o movimento estundantil tomando as ruas. No final da década de 70 o rastilho das mobilizações atingiria o movimento operário, em particular o ABC paulista, com seu jovem e combativo proletariado, produto genuíno da grande indústria automobilística.

Nascido das greves do ABC de 1979-80, o PT cresceu acompanhando um cenário marcado pela crise econômica crônica. Logo depois de sua fundação, a moratória mexicana de 1982 indicava também um novo pico na crise com a recessão de 1983. Seria a ante-sala da queda dos militares. Protagonista principal da campanha das diretas já em 1984, o partido foi o carro chefe das reivindicações democráticas - recusando não apenas o Colégio Eleitoral em 1984 mas não assinando a Constituição de 1988 -impulsionador da CUT e das greves da década de 80 e das lutas agrárias da qual surgiu o MST, atualmente o principal movimento social do país e um dos mais reconhecidos do mundo. No terreno eleitoral os acertos dessa orientação foram visíveis na conquista de inúmeras prefeituras em 1988 e no furacão da campanha Lula de 1989.

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Passado mais de 22 anos da fundação do PT, Lula pode ser o primeiro líder da esquerda e com origem no movimento sindical a ocupar o principal cargo político do Estado brasileiro. A esperanças despertadas serão enormes. Mas em política a paixão não pode ser a única conselheira, nem a principal. É preciso avaliar quais têm sido as mudanças operadas na vida do PT antes da vitória eleitoral, as razões dessas mudanças e a natureza dessas razões. E olhar o cenário aberto a partir desse enquadramento.

Partindo de sua constituição original é evidente que sua fundação representou um avanço na consciência de classe de uma parcela dos trabalhadores, respondendo a necessidade de uma intervenção independente dos assalariados no cenário nacional. Em sua carta de princípios, lançada no primeiro de maio de 1979, declarava: "numa sociedade como a nossa, baseada na exploração e na desigualdade entre as classes, os explorados e oprimidos têm permanente necessidade de se manter organizados à parte, para que lhes seja possível oferecer resistência séria à desenfreada sede de opressão e de privilégios das classes dominantes".1

Embora nunca tenha realmente sido um partido socialista strictusensu,namedidaemquejamaisassumiuprogramaticamente a defesa da expropriação dos grandes meios de produção e de troca, as posições do partido tinham pontos de contato com a proposta socialista, reivindicava-se desta tradição e sobretudo reivindicava representar a classe trabalhadora como classe antagônica à burguesa e as grandes corporações empresariais. O partido aparecia no cenário nacional como um partido de classe, surgido da combinação do sindicalismo opositor à ditadura militar, com as organizações de esquerda da Igreja, em particular as Comunidades Eclesiais de Base.

Desde o início, ademais, as posições antimperialistas eram consensuais no PT, particularmente a ruptura com o FMI e a suspensão do pagamento da divida externa. No seu V Encontro Nacional, foi tentado um passo adiante: formular uma estratégia socialista. Neste sentido, a abordagem sobre as reformas incorporava a concepção socialista. Nas teses aprovadas afirmava­se: "A luta por reformas só se torna um erro quando ela acaba

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em si mesma. No entanto, quando ela serve para a educação das massas, através da própria experiência de luta, quando ela serve para demonstrar às grandes massas do povo que a consolidação, mesmo das reformas conquistadas, só é possível quando os trabalhadores estabelecem seu próprio poder, então ela serve à luta pelas transformações sociais e deve estar combinada com esta".2

No que diz respeito ao programa democrático e popular, votado neste encontro de 1987, muitas medidas eram claramente de transição ao socialismo. Citemos algumas: desvalorização da dívida interna, criando assim uma fonte de investimentos nas áreas sociais; direito ao ensino público e gratuito em todos os niveis para todos, com a proibição do Estado destinar verbas para escolas privadas; criação de um sistema único de saúde estatal, público, gratuíto, de boa qualidade, com participação, em nível de decisão, da população, por meio de suas entidadas representativas; estatização da indústria farmacéutica; estatização dos serviços de transportes coletivos; estatização da indústria do cimento, para viabilizar um vasto programa de construção de habitações populares; estatização do sistema financeiro, garantindo crédito ao pequeno e médio produtor agricola e industrial; jornada semanal máximo de 40 horas sem redução dos salários;

Estas e outras propostas faziam parte de um programa que foi sendo abandonado ao longo dos anos. Um programa com muitas medidas de transição ao socialismo, aproximando o próprio partido de uma natureza efetivamente socialista, perspectiva fortalecida na formulação estratégica feita neste V Encontro. Nele, havia uma reivindicação explícita do socialismo, formulações de conteúdo, não apenas formalmente, como costumavam fazer os partidos da socialdemocracia européia e até o populismo brasileiro encabeçado por Brizola. "As formas de luta fundamentais que surgem na luta cotidiana no interior da sociedade burguesa e que têm maior importância para a luta socialista são as que nascem da auto-organização dos trabalhadores, as formas de luta pelo controle operário nas fábricas (a partir da generalização das comissões de fábricas e de empresa) e de controle popular nos

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bairros. Estas formas embrionárias de poder proletário são escolas de auto-organização e participação política dos trabalhadores, que apontam na construção de um socialismo efetivamente democrático, em que o poder seja exercido pelos próprios trabalhadores e não em seu nome". E a tese petista seguia com uma definição que os socialistas continuam assinando embaixo: "Entretanto, estas experiências, em si, não resolvem a contradição do socialismo com o capitalismo. Mesmo por que, quanto mais amplas elas se tomam, maior é a resistência da burguesia dominante à sua existência. Repressão e concessão, em geral, se combinam para a burguesia continuar mantendo sob sua in:f:uência ideológica e política as grandes massas de trabalhadores e evitar o desenvolvimento das experiências populares e as mudanças. Para resolver as contradições sociais e políticas do sistema capitalista, é fundamental que todas essas experiências de luta e de organizações operárias, populares e democráticas sirvam como eixo de preparação e organização das classes trabalhadoras para a conquista do poder e a construção de uma nova sociedade"3.

Tais elaborações, portanto, buscavam aprimorar definições históricas do partido, expressas por exemplo na declaração política, aprovada em 13 de outubro de 1979, quando se definia que "o PT luta para que todo o poder econômico e político venha a ser exercido diretamente pelos trabalhadores. Única maneira de por fim à exploração e opressão'.

Todas essas formulações já foram postas de lado. O partido abandonou não apenas as bandeiras anticapitalistas, como a estatizacao dos bancos, da indústria farmacéutica, dos serviços de transporte, mas também reivindicações antiimperialistas, como a ruptura com o FMI. Não as abandonou todas de uma só vez, mas num processo cujo ponto culminante foi o programa da campanha Lula de 2002. É evidente que essas eleições representaram uma mudança de qualidade no PT, na própria natureza do partido.

O primeiro sintoma claro dessa mudança qualitativa veio na política de alianças com o Partido Liberal. Uma aliança costurada a revelia da discussão democrática nas bases. Quando surgiram as primeiras tentativas de fechá-la, uma forte reação ocorreu em todo

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o país. Milhares de petistas ficaram desconcertados e indignados com tal proposta. No Rio Grande do Sul, praticamente todos os militantes posicionaram-se contra. No Rio de Janeiro, inúmeros intelectuais petistas expressaram sua oposição. Nãoprecisamos insistir no mérito da questão: o PL é um partido de direita, nascido de uma espinha do PFL, com deputados flsiológicos, aliados de inimigos históricos e irreconciliáveis dos trabalhadores em inúmeros estados: apoiador de Paulo Maluf em SP, Almir Gabriel no Pará e de Fernando Collor em Alagoas. O Senador José de Alencar, escolhido para vice de Lula, é um magnata do ramo téxtil do país, defensor das mudanças na CLT e da ALCA.

O mais incrivel é que a direção do partido relevou o fato que no Brasil os vices assumiram a presidência em dois dos últimos quatro mandatos. Qual a função desta aliança no desenvolvimento da consciência dos trabalhadores? E para governar, qual seu resultado? Uma escolha útil para todos os setores burgueses: tanto para os que confiam em Lula, conscientes de que o petista nao defende mudanças contra os capitalistas, quanto para os que embaralham a hipótese de conspirar contra o governo petista caso tente executar reformas mais ou memos modestas, pelo menos no terreno democrático. Afinal, na Constituição esta previsto a possibilidade de substituição do Presidente pelo vice, aplainando o terreno para um golpe constitucional.

As mudanças qualitativas na política de alianças ficam desnudadas quando conhecemos as posições defendidas pelos principais dirigentes do partido antes da consolidação do atual giro político. O próprio José Dirceu, Presidente Nacional do PT, em 1987, referia-se nestes termos acerca das alianças que o partido deveriam implementar: "A base para qualquer política de alianças deve ser a oposição ao governo Sarney, à "Nova República" e à transição conservadora. Isto significa, em São Paulo, oposição ao governo Orestes Quércia e à administração janista. Tal orientação exclui, evidentemente, alianças com os partidos da direita e que apoiam a 'Nova República+ (PDS, PL, PTB, PDC, PFL e PMDB) e coloca a discussão de alianças com o PCB, PSB, PDT no campo objetivo da posição destes partidos com relação aos governos

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Sarney e Quércia". Em seguida, José Dirceu aperta mais o cerco quando conclui: "O PSB e o PDT, apesar de serem oposição em nível nacional à 'Nova República', em São Paulo apoiam Quércia ... " 4.

Hoje, o Presidente do PT esta aliado com Quércia em SP, articulou o apoio a Lula do ex-presidente da "Nova Republica", o Senador José Sarney, e é, não esquecemos, o mentor da coligação com o PL, em nome da unidade do capital com o trabalho, da colaboração com setores empresariais. Chegou ao ponto de impor a unidade com a direita aos petistas de Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Alagoas, imposição escandalosa, sobretudo no caso de Alagoas, onde o PL é formado por seguidores do ex-presidente Fernando Collor, moleques de usineiros e gente enquadrada na CPI do narcotráfico, como bem denunciou a senadora petista Heloisa Helena.

Por sua vez, no plano programático, depois do PT defender a suspensão do pagamento da dívida externa em 1989, Lula tem defendido a necessidade do respeito aos contratos e regras assumidas pelo governo FHC, inclusive acordo acertado com o Fundo Monetário Internacional, uma agência totalmente subordinada aos interesses do governo norte-americano e, portanto, às grandes corporações transnacionais deste país. Tem sustentado ainda, em sua carta compromisso ao povo brasileiro, chamada por muitos de carta aos banqueiros, a defesa de uma meta de superávit flscal semelhante à do governo federal, uma quantia para garantir o pagamento dos banqueiros equivalente a renda total de 20% dos brasileiros. Tais metas inviabilizam investimentos pesados na saúde, na educação e num plano de obras públicas para combater o desemprego.

Ruptura e continuidade

Essas mudanças consolidam um novo curso programatico, político e social na história do partido, alterando em definitivo a relação de vários dos seus dirigentes com o movimento socialista. A mudança qualitativa não surgiu no vazio. Ao longo dos anos o PT foi se afastando das lutas de massas, deixando de ser um

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organizador político da ação direta da classe trabalhadora e da juventude, passando a representar os interesses de uma burocracia partidária re:t:exo de parcelas acomodadas da classe média e da sociedade brasileira. Foi se estabelecendo uma nova relação entre o partido e a institucionalidade burguesa. De crítico radical, passou a ser seu defensor. Junto com isso, substitui o :t:erte com as propostas socialistas pelo discurso do desenvolvimentismo industrial, tema do qual trataremos mais adiante, quando abordarmos as perspectivas de um governo Lula, Até em solo gaúcho, no qual a chamada esquerda do PT sempre teve mais força, vemos a contradição entre o peso institucional do Partido dos Trabalhadores e o distanciamento de suas raízes. A experiência do governo estadual mostrou que, mesmo no espaço político de poder estatal nos marcos da ordem capitalista, é melhor um governo de um partido cuja origem encontra-se entre os trabalhadores e suas lutas do que qualquer partido da burguesia. Para usar uma expressão da campanha eleitoral, o PT esta completando o melhor governo que o Rio Grande já teve. No entanto, é visível que essa experiência também o afastou de seus vínculos com a organização independente dos trabalhadores, atingindo, inclusive, parcelas de suas correntes internas de esquerda. Acomodou o PT numa estratégia de estabilidade do regime político, na ocupação dos espaços institucionais do Estado capitalista. Então, é claro que a evolução do PT tem sido um corte com sua origem. De onde surge este corte? É simples de se observar uma pista. Ninguém necessita de um conhecimento exaustivo da situação politica nacional para reconhecer que o PT, quanto mais tem mobilizado suas forças para disputar eleições para cargos executivos e parlamentares, quanto mais privilegiou a disputa eleitoral, mais tem abandonado a auto­organização do movimento, a tal ponto que hoje, simplesmente, teses como as da origem do PT e as do V Encontto Nacional têm sido totalmente esquecidas por qualquer formulação estratégica do núcleo dirigente do partido, o mesmo núcleo que esteve à frente do partido no ano de 1987.

Não obstante, nos seus primeiros anos o partido encarou mais ou menos bem o desafio e a combinaçãoo de tarefas entre

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as eleições e o movimento social. No seu manifesto de fundação, por exemplo, o PT proclamava que /1 sua participação em eleições e suas atividades parlamentares se subordinarão ao objetivo de organizar as massas exploradas e suas lutas"5. Ou ainda dizendo 11 OPT quer atuar não apenas nos momentos das eleições mas, principalmente, no dia-a-dia de todos os trabalhadores , pois só assim será possível construir uma nova forma de democracia, cujas raízes estejam nas organizações de base da sociedade e cujas decisões sejam tomadas pela maioria" 6.

Se no início o partido pode realizar a combinação adequada entre os movimentos sociais e a participação eleitoral, onde, então, está o equívoco político e teórico que permitiu mudanças tão bruscas em, relativamente, tão pouco tempo? Há alguma relação entre as formulações históricas do partido e sua política atual? Seguindo na mesma pista, visualiza-se um elemento de continuidade entre a origem do PT e seu curso atual, mostrando a evolução do partido. Sua ruptura com o seu passado, assim, encontraria uma explicação teórica num ponto de continuidade para que o partido esteja atravessando o rubicão, para usar a mesma expressão de Lênin referindo-se ao dirigente alemão Karl Kautsky. Sua base também esta na vacilação acerca da natureza do Estado, vacilação presente desde o início na vida do PT. Vejamos por partes.

Já no manifesto de fundação do PT, de fevereiro de 1980, afirmava-se que "o país só será efetivamente independente quando o Estado for dirigido pelas massas trabalhadoras. É preciso que o Estado se torne a expressão da sociedade, e que só será possível se criarem as condições de livre intervenção dos trabalhadores nas decisões de seu rumo. Por isso, o PT pretende chegar ao governo e à direção do Estado para realizar uma política democrática .. .'?.

Parece uma questão menor, sem importância, mas não é. Sobre esta definição esta a base da confusão, ou melhor o "desvio' que já embutia uma acomodação do PT no regime político democrático­burguês. Quer dizer, o objetivo do pattido foi desde o início a mudançaa do Estado, não sua destruição, como Marx, Engels e Lênin definiam a tarefa estratégica dos revolucionários. Ficava

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evidente que o partido adotava uma estratégia que não percebia o Estado como expressão da sociedade na qual a burguesia é a classe dominante, de tal forma que a derrota deste Estado, avalista e garantia do domínio burguês, era necessário para derrotar essa dominação de classe. E para mudar o Estado a utilização da cédula eleitoral pode ser suficiente.

Politicamente, uma primeira tendência de acomodação à lógica eleitoral manifestou-se no balanço das eleições de 1982, centrado na necessidade do PT abandonar seus lemas de campanha, "trabalhador vota em trabalhador" ou o "Vote no 13 que o resto é burguês", responsabilizados por afastar o partido da classe média. Mesmo no V Encontro Nacional do partido, realizado em 1987, momento em que teoricamente as posições partidárias estiveram mais próximas de uma estratégia socialista, a confusão também esteve evtidenciada. Na análise da correlação de forças entre as classes, as teses aprovadas sustentavam que não existia nenhuma possibilidade de uma crise revolucionária no país descartando, portanto, a luta pelo poder dos trabalhadores como tarefa do período. Contraditoriamente, porém, as teses assumiam a possibilidade do PT chegar ao governo pela via eleitoral e desde o governo aplicar seu programa de ruptura com o capitalismo.

Assim, o partido assumia como possível a aplicação de um programa de ruptura com o capitalismo aplicado por um governo eleito nos limites do regime democrático burguês e descartando, apesar disso, a eclosão de uma crise revolucionária. A hipótese de vitória eleitoral de Lula de fato esteve colocada em 1989. E o programa continha medidas de ruptura com o capitalismo dependente e subdesenvolvido. Mas tal hipótese não implicaria, necessariamente, a tentativa de aplicar tal programa, porque não estava para nada garantido que uma vitória de Lula significaria de fato a aplicação de um programa de ruptura. O compromisso de Lula, neste sentido, nunca foi seguro. Em segundo lugar, caso Lula tratasse de aplicar o prcgrama petista de 1987 ou mesmo o apresentado na campanha de 1989, as classes dominantes renunciariam ao terreno legal e a arma da disputa entre as classes estaria distante de resumir-se à utilização da cédula

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eleitoral. Estariamos diante da realização da hipótese tática da II Internacional, avalizada por Engels, antes do giro oportunista.

Logo, ou a perspectiva da crise revolucionária e da luta revolucionária pelo poder estaria colocada como tarefa presente, mesmo que fosse logo depois das eleições, com a burguesia rompendo sua própria legalidade, ou o programa do V Encontro não sairia do papel, do terreno das intenções declaradas nos debates partidários. Em ambos os casos estaria confirmada a posição marxista acerca da impossibilidade de uma tansformação radical da sociedade sem o enfrentamento violento com as classes dominantes, sem o enfrentamento contra o Estado burguês e portanto sem situação ou crise revolucionária, por mais que as eleições pudessem jogar um papel de primeira ordem na tática da disputa. Desta armação contraditória - impossibilidade de crise revolucionária e a possibilidade de aplicação de um programa de ruptura, anticapitalista, pela via eleitoral - fortaleceram-se as ilusões constitucionais, a idéia da viabilidade de mudanças profundas com a mera vitória eleitoral e a estratégia eleitoral como centro da atuação do PT. Vale dizer que sequer a tática do desgaste de Kautsky foi evocada para sustentar tais teses.

No caso concreto da maioria da direção do PT, ao defender a estratégia de mudar o Estado, não de derrotá-lo, acabou mantendo-se nos limites da ordem capitalista. Vendo as questões mais de perto, cabe ver o que Lukacs dizia sobre este tema. "A grande diferença entre marxistas revolucionários e oportunistas pseudo marxistas, é que os primeiros consideram o Estado capitalista exclusivamente como fator de poder contra o qual há que mobilizar a força do proletariado organizado, ao passo que os segundos concebem o Estado como uma instituição acima das classes, cuja conquista é o objetivo da luta de classe do proletariado e da burguesia.

Mas, ao conceber o estado como objeto do combate e não como adversário na luta, estes últimos colocam-se já, em espírito, no terreno da burguesia: têm assim a batalha meio perdida antes mesmo de a terem começado. Com efeito, toda a ordem estatal e jurídica (a ordem capitalista mais que todas) se baseia, em

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última análise, no fato de que sua existência e a validade de suas regras não levantarem nenhum problema e serem aceites como tais"8. Ainda segundo Lukacs, a transgressão dessas regras, em casos particulares, não acarreta qualquer perigo especial para a manutenção do Estado.

Assim, a oposição tenta modificar legalmente as leis, e as leis antigas mantém sua validade até a entrada em vigor de novas leis, ou então dá-se a transgressão momentânea das leis em algum caso particular. Esta ideologia tern sido a base da atuação do núcleo dirigente do PT abandonando a perspectiva de analisar o Estado capitalista como um fenômeno histórico, não estudando as fontes de seu poder, seus vínculos indissociáveis com os interesses particulares da burguesia, anulando suas próprias possibilidades de minar e enfraquecer este Estado, colaborando, na prática, para sua reprodução.

Até 1989, porém, a questao do Estado aparecia mais como uma vacilação, um desvio, não como uma concepção reformista consolidada. Naquele segundo turno, o PT era ainda uma expressão evidente das lutas diretas da classe trabalhadora, de uma consciência de classe de milhões de pessoas que despertaram com força para a luta política nas mobilizações de toda a década de 80, nas greves do ABC, na campanha das Diretas Já, passando pelas greves da Nova República e das eleições municipais de 1988, com a vitória do PT em São Paulo, Porto Alegre e outras cidades que, pela primeira vez, conheceriam o PT no governo. O resultado das eleições presidenciais de 1989 surpreendeu as classes dominantes e o próprio PT. Não se pode esquecer que logo depois da greve geral de 14 e 15 de março daquele ano, Lula tinha cerca de 7% das intenções de voto. Ninguém imaginava que poderia representar um perigo real para as classes dominantes, mas o fato é que tivemos o segundo turno e o PT quase venceu as eleições.

Foi depois da ascensão surpreendente e da derrota eleitoral que o reformismo e o oportunismo político consolidaram-se e deram um salto na evolução da direção do PT. Esta foi a real derrota política petista na esteira da memorável campanha Lula de 1989. Poucos anos mais tarde, os debates adquiriam

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um curso de colaboração de classes irreversível. Chegamos ao ponto de dirigentes partidários importantes afirmarem que havia sido um erro não entrar no governo de Itamar Franco em 1993, argumentando que deveriámos tê-lo disputado com o PSDB. Ou seja, a visão já era abertamente de participar de um governo burguês. Governo este que havia, inclusive, privatizado a CSN, símbolo da luta operaria no país, com seus três mártires assassinados pelo Exército na ocupação em 1988. Era a linha do millerandismo aplicada ao Brasil, nada moderno nem novo.

Mas a idéia de que se poderia chegar à presidência da República com Lula, de fato correspondia às novas possibilidades petistas. Desta possibilidade, deduziu-se a estratégia central do partido: ganhar as eleições presidenciais. Assim as teses do 1 Congresso, marco fundamental no giro oportunista, definia a questão: "Até 1987, a disputa pela hegemonia era colocada, basicamente, como uma política de acúmulo de forças, a partir da avaliação de que não estava na ordem do dia a tomada do poder ou uma crise revolucionária. Depois de 1989, a disputa pela hegemonia passa, necessariamente, a incluir a disputa pelo governo federal em 1994, a gestão das administrações municipais, a luta pela democratização do Estado e por reformas sociais, assim como a organização e o crescimento dos movimentos sociais'9. Há duas questões que saltam à vista: o lugar secundário dos movimenros sociais, por um lado; a definição da conquista do governo federal como tarefa imediata, dissociando essa tarefa da luta pelo poder dos trabalhadores, remetida para as calendas gregas, por outro lado.

O povo, trabalhador e pobre, acompanhou o PT, nutrindo enormes expectativas de conquistar o governo do PT pelo voto. Para a direção partidária, tudo mais estaria subordinado a este objetivo. Depois da derrota de 1989, o slogan central do partido foi adotado: "Feliz 94'. Depois da derrota de 1998, novamente tudo foi centralmente trabalhado para disputar em 2002. A cada eleição, uma nova expectativa unia distintas alas do partido, coesionando suas principais lideranças públicas, traçando uma perspectiva comum para milhões de trabalhadores. A cada nova derrota,

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um novo giro à direita no programa, uma nova acomodação na política tratava de, supostamente, melhorar as chances eleitorais do PT, já mergulhado no círculo vicioso do eleitoralismo.

O vício do eleitoralismo

A utilização correta das eleições é fundamental. Eleger vereadores, deputados, senadores e cargos executivos é parte de uma politica necessária de acumulação de forças. Construir mandatos socialistas no Parlamento, em particular no Brasil atual, em que o peso das eleições segue muito forte na política nacional, é decisivo para a construção de referências políticas para a classe trabalhadora.

As eleições, ademais, são um termômetro da correlação de forças entre as classes, indicativo de uma forma mais ou menos precisa da consciência do povo trabalhador, de sua coesão, de sua vinculação com seu partido. Triunfos eleitorais dos trabalhadores podem desmascarar a burguesia, podem forçá-la a expor-se, a atacar sua própria legalidade, facilitando uma ofensiva revolucionária do movimento de massas. Não podemos, assim, poupar esforços no terreno eleitoral.

O PT, ao longo dos anos, tem entrado com muita capacidade neste terreno, aproveitado as crises, as divisões dos partidos burgueses e as desilusões das massas. Em muitos momentos, o crescimento eleitoral do PT colocou a burguesia na defensiva política. São lições importantes. Devem ser resgatadas pelos defensores de uma estratégia socialista. Devemos, porém, enquadrar estes esforcos na tática da intervenção, uma tática fundamental, em algumas conjunturas a prioridade, mas ainda assim uma tática, uma forma de luta, entre outras, subordinada à necessidade da mobilização e da conscientização dos trabalhadores.

Não é, evidentemente, o que tem ocorrido na vida do PT. O afã de vencer as eleições presidenciais, depois de mais de 20 anos, foi pressionando o partido a retomar a linha política tão almejada pelos velhos partidos comunistas: aliança dos trabalhadores com setores da burguesia, chamada então pelo PC como a aliança

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operária com os setores produtivos da burguesia contra o latifúndio e o imperialismo. É bom lembrar que o golpe militar foi a resposta burguesa à politica do Partido Comunista, encontrado impotente, sem preparo e sem capacidade de resistência.

Se a estratégia é eleitoral, se esse é o objetivo central do partido, toda sua política, é obvio, esta ordenada pela conquista de 50% mais um do eleitorado. Não se trata de uma tarefa fácil. As classes dominantes usam do poder econômico, do monopólio dos meios de comunicação, enfim de mecanismos variados de manipulação da consciência popular. O partido, ao assumir a estratégia eleitoral foi distanciando-se de toda a problemática vinculada com a revolução social e a transformação estrutural da sociedade. Sua linha consistiu na busca do caminho de menor esforço, subordinando o conjunto de sua orientação a política eleitoral. Tal estratégia foi adotada mesmo à custa de desarmar a classe trabalhadora sobre as tarefas programáticas que a situação exigia e exige bem como os esforços correspondentes para realizá­las.

No terreno desfavorável das eleições - pelo peso da manipulação e do poder econômico - uma política sem concessões de princípio, socialista revolucionária, pode ganhar a maioria dos eleitores? Teoricamente não se pode descartar. No Brasil, entretanto, a comprovação desta hipótese foi inviabilizada nos próximos anos. Diante das sucessivas derrotas eleitorais nas disputas presidenciais - particularmente como resultado da derrota de 1989 - Lula foi adequando seu discurso, dilapidando uma das maiores conquistas da classe trabalhadora ao formar o PT, qual seja, a consciência de classes, transformando-se depois, cada vez mais, em prisioneiro de sua própria moderação no cenário eleitoral. Por outro lado, é inutil especular quais seriam os resultados eleitorais de Lula se a candidarura petista tivesse adotado, sem recuos, no decorrer das útimas campanhas eleitorais, uma linha semelhante ao discurso classista de 1989.

De qualquer forma, vale insistir que a burguesia não esperaria a evolução da consciência de classes atingir uma força eleitoral majoritária caso o PT, pelo menos, continuasse com seu

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programa de 1987 ou mesmo o de 1989. Muito antes, trataria de decidir o con:t:ito em outro terreno, no terreno do enfrentamento físico com o movimento dos trabalhadores, antes portanto de uma acumulação de forças socialistas capaz de ganhar para suas posições a maioria dos eleitores. A tática do desgaste da II Internacional é estruturalmente muito diflcil de ser realizada num pais como o Brasil, com pouquissíma tradição de democracia burguesa e sobretudo com alto grau de violência social e política. Neste sentido, a possibilidade aberta em 1989 foi uma exceção, desdobramento do desconcerto burguês diante da crise da superin:t:ação e do desgasre da Nova República. Uma surpresa para todos. Um situação similar não pode ser descartada no futuro, ou na experiência de outros países (a Bolívia viveu esse ano uma situaçao parecida), de tal forma que as particularidades da luta política de 1989 devem ser assimiladas pelos socialistas e servirem para combater as posições ultraesquerdistas que desprezam a participação eleitoral.

As eleições e as mobilizações não são questões incompatíveis, mas se a mobilização social tem prioridade na agenda, não é possível o vale tudo eleitoral com o único objetivo de ganhar mais votos. É o caso da aliança com o PL. Pode até ganhar certo apoio em bases evangélicas, mas desarma as consciências, enfraquece os vínculos do partido com os setores mais combativos da sociedade, aburguesa o partido e afasta os dirigentes dos interesses das camadas mais exploradas do povo. Do ponto de vista estritamente eleitoral, tal movimento pode obter tesultados e inclusive dividir eleitoralmente setores burgueses. Mas e ai? Qual o resultado do ponto de vista da estratégia socialista? Qual o avanço obtido na consciência da classe trabalhadora? Qual a preparação para enfrentar a violência inevitável da classe dominante? A lógica da maioria eleitoral como estratégia acaba subordinando a tal ponto a ação global do partido que as propostas socialistas ou mesmo as reformistas mais radicais vão sendo abandonadas para facilitar a conquista dessa maioria e a aceitação burguesa de um governo petista. Os propósitos de mudanças vão sendo esquecidos e o partido vai se adaptando cada vez mais à ordem.

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Eis a base para o PT estar abrindo mão de pontos vitais de seu programa histórico: abandonou a proposta de suspensão do pagamento da divida externa com a flnalidade de estender uma ponte aos interesses dos banqueiros internacionais. Agora, quando a chamada burguesia produtiva esta tão associada ao capital financeiro, o PT adotou a defesa da burguesia "produtiva', abandonando todo o programa histórico do partido e se comprometendo com a manutenção dos acordos firmados pelo governo FHC e suas metas de superávit flscal. Esta é a lógica de ferro do eleitoralismo, que leva ao esquecimento dos problemas essênciais, sacrificando o futuro em troca de vantagens no presente, em suma ao oportunismo político total.

A defesa de possíveis aliados burgueses é o outro preço pago. Se, conquistando governos pela via eleitoral, nos limites do Estado burguês, podemos melhorar de modo substancial a situação dos trabalhadores e combater a fome e a pobreza, por que não obter a ajuda de setores burgueses dispostos a aceitarem nosso governo? Na tentativa de mais apoio eleitoral, o partido acaba apresentando inimigos da classe trabalhadora como aliados. Com esta linha, o PT ajudou a fabricar políticos como Garotinho, quando Lula e José Dirceu, passando por cima da decisão da maioria do Encontro Estadual do PT do Rio de Janeiro em 1998 - impuseram seu nome como candidato apoiado oflcialmente pelo PT nas eleições estaduais de 1998. Da mesma forma, a maioria da direção do PT gaúcho ressuscitou o PDT, quando, depois do desastre do governo estadual de Collares, afundado no Calendário Rotativo e na CPI da Propina, propôs alianças com o partido de Brizola, anunciado como um partido amigo e de esquerda, créditos extras usados depois para apoiar Ciro Gomes, Britto e Rigotto.

Se o critério para avaliar as mudanças na atuação do partido, porém, forem os interesses e as necessidades dos trabalhadores, é claro que o abandono de propostas democráticas, antiimperialistas e/ou socialistas são inaceitáveis. A apresentação de inimigos como aliados, a confiança em setores burgueses, o abandono de pontos programáticos são retrocessos e desdobramentos das eleições e da democratização do Estado como estratégias centrais, expressões,

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ademais, de que neste caso não é a burguesia que esta mudando, mas o PT que esta recuando e assumindo um discurso burguês.

Assim, da mesma forma que negar o desafio eleitoral é expressão de cretinismo antiparlamentar, típico dos ultraesquerdistas e anarquistas, o desvio oposto tem sido tão ou mais perigoso: o cretinismo parlamentar que adota as eleições como o objetivo fundamental. A opção revolucionária é posta de lado, inúmeras vezes atribuindo esse abandono à falta de consciência da própria classe trabalhadora. Mais uma falácia. É evidente que os trabalhadores e o povo pobre trilham o caminho da revolução apenas quando sua vida é totalmente intolerável no regime capitalista, quando não veem outra saida. E se seu partido reconhecido afirma a utilização da cédula eleitoral como saída principal, é lógico que a classe trabalhadora deposite aí suas maiores expectativas e esforços.

Uma parte da esquerda do partido também esteve desarmada neste sentido. Em particular a "A Democracia Socialista e a Articulação de Esquerda, quando conseguiram aprovar suas teses no Encontro Partidário e dirigiram a maioria do Diretório Nacional foram igualmente prisioneiras do eleitoralismo ao alçarem as eleições como a principal estratégia do partido. As teses desta parte da esquerda petista diziam: "PT reafirma, assim que a luta por um governo democrático e popular e a possibilidade de conquistá-lo a partir de uma base popular e de uma maioria eleitoral, são um objetivo estratégico, entendido como expressão atual de um governo com hegemonia dos trabalhadores, voltado para atender as necessidades concretas do povo e na perspectiva do socialismo"'lO.

O texto esclarecia anteriormente que não confundia governo com poder, afirmando que a conquista do governo era fundamental na acumulação de forças. Foi assim que a acumulação de forças virou uma estratégia em si mesma, inclusive para uma parte da esquerda. A necessidade da revolução socialista e da destruição do Estado burguês não merecia uma palavra sequer. E estas teses foram escritas um ano depois do partido ter defendido a posse de Itamar, recusando-se, inclusive, a defender as bandeiras das

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eleições gerais durante a crise do governo Collor. Nesse contexto é que este setor da esquerda defendia a estratégia do governo democrático e popular reformista.

A desprivatização do Estado

Parte da confusão sobre a natureza do Estado em geral e sua concretização particular na formação social brasileira foi e segue sendo expressa na formulação petista, paradigma estratégico do partido, de /1 desprivatização do Estado". Esta formulação estratégica comete o grave erro, já assinalado, de compreender o Estado como um possível espaço público desvinculado dos interesses de classe, como se o público, neste caso, não fosse um terreno dominado pela classe economicamente dominante, cujas leis e o direito servem para estabelecer uma aparência universal aos seus interesses privados defendidos por seu Estado. Tarso Genro, um dos principais formuladores do partido, em suas mais recentes opiniões, tem reproduzido esta aparência de universalidade, incorrendo no erro apontado por Lucaks e citado anteriormente. Vejamos as palavras de Tarso: /1 a reforma do Estado que interessa ao país é uma reforma que relacione com o Estado a sociedade excluída. E isso não se faz sem democratizá-lo ... Ou estes contigentes são articulados com a sociedade formal através do Estado ou permanecerão a base social para uma guerra civil não declarada' (artigos sobre o Estado publicados pelo Escritório Camargo, Coelho e Associados).

De fato, no Brasil de hoje há uma disputa armada por espaços geográficos entre os bandos organizados do tráfico e também há intervenção da polícia nestes con:t:itos, que Tarso Genro denomina como uma guerra civil não declarada, fator de preocupação lógica de todas as pessoas que desejam uma vida melhor. Mas Tarso se coloca no campo do Estado, não disputando contra o Estado burguês. É claro que os setores excluídos podem ser base para a direita reacionária, assim como parcelas deles já o são para o narcotráfico e para o crime organizado. Mas qual o papel concreto que o Estado capitalista desempenha em relação a esses setores

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excluídos? Ou o Estado não esta presente nas favelas brasileiras, em particular as do RJ e de SP? Se está, qual a natureza de sua intervenção? Qual sua articulação concreta? Para defender quais interesses?

Para responder essas interrogantes, é inevitável abordar a questão do narcotráfico mais detidamente. Não há melhor autoridade no assunto que deputado estadual Hélio Luz, do PT do Rio de Janeiro, delegado e Ex-chefe de Polícia. Suas posições são claras: "Dizer que o traficante substitui o Estado é uma mentira. O traficante não substitui, ele é um braço auxiliar do Estado. E a favela existe para fazer a manutenção do Estado"ll. Hélio Luz segue:" A favela do Rio de Janeiro, antes de tudo, constitui-se em um gueto. Ela substitui a senzala ... E quem toma conta da favela, assim como quem tomava conta da senzala? É aí que nós vamos chegar ao papel do narcotraficante. O traficante da favela do Rio de Janeiro, na verdade, é o encarregado de tomar conta do gueto para o capital, para o Estado". E mais adiante, mostrando por onde passa a destruição do narcotráfico, motivador da chamada guerra civil, Helio Luz conclui: "Então, se nós formos procurar a origem disso, nós vamos chegar na elite, que é quem detém dólar. Quem detém capital nesse país não chega a 3% da população. E por que a polícia não chega até lá? Por incompetência? Não. Ela não chega porque, no Brasil, não é função da polícia inibir a prática do crime pelos detentores do poder. Essa polícia - que no Rio de Janeiro tem 200 anos e é a mais antiga do país - foi feita para realizar o controle social e faz isso muito bem até hoje".

Se Tarso Genro retomasse seus próprios escritos talvez oferecesse melhores aportes para definir como encaramos o papel do Estado. Em seu Livro "Fontes da vida", quando tinha uma posição claramente marxista sobre a questao, explicava muito bem: "Hoje, o capitalismo monopolista de Estado já constitui a mais perfeita fusão do Estado com o capital, no interior do qual as próprias normas do Direito Público são expressões do verdadeiro conteúdo do Estado; o Estado é o Estado dos monopólios e a realidade político-jurídica do seu Direito Público denuncia-o como Direito Privado dos monopólios fusionados com o Estado"12.

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Em suas posições atuais, entretanto, parece que o Estado pode ser o representante do bem comum, do direito público sem vínculos com os interesses privados. Em nossa opinião, reivindicamos as teses de Marx, para quem o Estado representava o domínio da força da classe dominante para sujeitar os mais fracos; não o reino do bem comum, mas de uma parte; não para beneficiar a todos, mas a quem detém o poder. Não significa a saída do estado da natureza mas sua continuação sobre outra forma. Negamos, portanto, as posições de Hobbes para quem o Estado representava o domínio da ordem, da riqueza, da sociabilidade, a paz e para quem "fora do Estado é o domínio das paixões, a guerra, o medo, a pobreza, a incúria, o isolamento, a barbárie, a ignorância, a bestialidade"13.

Diante da teoria e da experiência empírica, o Estado burguês, o único realmente existente, com sua democracia dos ricos, com sua desigualdade real, não pode integrar para melhorar a vida destes setores excluidos, mas apenas amordaçá-los, acomodá­los, e parte deles, não sua totalidade. Sempre por pouco tempo, para ampliar a exclusão, a polarização social e a distância entre os mais ricos e os mais pobres, porque esta é a própria dinâmica da reprodução do capital da qual este Estado é a sustentação. Essa é a lição simples que nos oferece o delegado de polícia Helio Luz.

Então, não há como de verdade integrar a população favelada muitos menos os jovens marginalizados, base da mão de obra do narcotráfico, garantindo-lhes uma vida digna, sem uma revolução nas condições de produção, sem atacar o poder do capital e do Estado que defende esse poder. Assim, pela via da defesa do Estado como bem comum, não há como fazer com que estes setores não sejam base do que Tarso chama de fascismo. Não há como evitar a catástrofe que temos vivido tentando integrá-los ou articulá-los com um Estado que legitimamente lhes provoca desconflanca, distanciamerito e muitas vezes indignação e ódio. Reafirmamos que Tarso se coloca no campo do Estado sem sequer questionar se a guerra civil não declarada pode ser organizada e canalizada contra o Estado burguês, hegemonizada pelos trabalhadores organizados, articulando com a sociedade civil,

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com as instituições da classe trabalhadora ou suas aliadas para construir uma integração alternativa e contra o Estado atual. Ou alguém pode acreditar que as favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo podem ser integradas por este Estado de classe, de ricos e poderosos?

Incorporar a lógica da defesa do Estado conduz políticos petistas a assumirem um papel oposto aos princípios fundacionais do PT. É o caso da ex vice-governadora de Anthony Garotinho, a petista do campo majoritário Benedita da Silva. Quando assumiu o governo do Rio de Janeiro, para mostrar trabalho, reiteradas vezes declarou: "os meus policiais estão morrendo um por dia'. Hélio Luz novamente define com exatidão: "Como é que a governadora mulher; negra e favelada, ou seja, excluída, assume a polícia como sua? Essa polícia que antes de tudo é uma polícia escravagista. É uma polícia que foi criada para açoitar escravo urbano. Como é que a governadora diz que essa polícia é dela? Só se ela virou escravagista também. Ou então ela não sabe do que esta falando."14

Para concretizar, vale definir a seguinte disjuntiva: ou as comunidades faveladas avançam em sua organização social, cultural e política, para o qual as organizações sindicais como a CUT, as organizações populares como o MNLM, CMP, os partidos de esquerda, o MST, devem contribuir, de tal forma que a classe trabalhadora organizada busque a hegemonia, no sentido de Gramsci, sobre os setores excluídos, aí sim num processo de lenta e paciente acumulação de forças, ou então a sociedade brasileira seguira com seu tecido social cada vez mais dilacerado.

Não se trata, então, de negar as instituições em geral, nem de negar a defesa de medidas democráticas, mas de denunciar as instituições burguesas, de chamá-las por seu nome e de construir uma alternativa radicalmente diferente. É isso o que o PT tem deixado de fazer como fazia, em parte, nas suas origens. O partjdo trata de sustentar o Estado como regulador da economia, como defensor do bem comum, como instituição determinante para a organização democrática da sociedade. Seu chamado "Estado democráatico forte". Tudo isso é falso, completamente falso. É

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evidente que se necessita regulação e organização dos interesses dos trabalhadores, mas esta não é a função do Estado de classe da burguesia. Gramsci, por sinal, comentava que a confusão entre Estado-classe e sociedade regulada, o sinal de identidade entre ambos, é próprio das classes médias e dos pequenos intelectuais, que se sentiriam felizes com uma regulação que impedisse as lutas agudas e as catástrofes. Dizia que era uma concepção tipicamente reacionária. Mais uma vez Grasmci estava certo.

A chamada desprivatização do Estado mantendo o regime de propriedade privada dos meios de produção é inviável até mesmo se tomarmos o desafio do ponto de vista da ética e do respeito as leis. Além de sua função determinada de defender os interesses privados do capital, o Estado concreto, realmente existente, tem sido marcado pela corrupcao como uma característica estrutural. A mobilidade dos funcionários dos grandes bancos privados e das empresas prestadoras de serviços públicos, ora trabalhando para os capitalistas, ora trabalhando no governo, tece uma malha de relações sócio-econômicas que guardam os mais altos segredos das economias burguesas e das relações de privilégio e favorecimento entre as administrações das empresas, bancos e os governos. Os altos salários destes funcionários é a garantia da discrição e do sigílo.

Os políticos burgueses e os carreiristas em geral, é claro, não têm todos exatamente a mesma sorte. Mesmo em países como o Brasil, já não logram aumentar tão facilmente seus rendimentos. Precisam cuidar-se um pouco com os eleitores e os contribuintes que exigem economia de recursos e o fim dos privilégios. Acabam recorrendo às verbas extras e sobretudo às propinas e trapaças menores. Apenas os mais graduados, conhecedores dos segredos de Estado, utilizam seus saberes para especular nas bolsas e no câmbio. Assim, a corrupção esta intrínseca no sistema econômico.

A corrupção, por exemplo, domina o funcionamento do Congresso brasileiro. É uma de suas características intrínsecas. O caso mais ilustrativo envolveu a produção do Orçamento da União na época de Collor. Depois a lista seguiu, com escândalos envolvendo ACM, Jader Barbalho, os esquemas das privatizações

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no governo FHC e a reeleição. Todos os parlamentos latino­americanos mostram que não estamos diante de uma característica meramente nacional.

A Europa tem apresentado o mesmo panorama. Na Itália, os escândalos envolveram todos os principais partidos burgueses, assim como na Alemanha descobriu-se o financiamento ilegal da campanha de Helmult Koll, considerado pela mídia um grande estatista. Finalmente, a fraude da Enron, os balanços maquiados da Worldcom, da Xerox, da gigante farmacêutica Merck e as denúncias diretas envolvendo o governo norte-americano em muitos destes escândalos, particularmente o vice-presidente Dick Cheney, mostram a democracia representativa atual mais sólida como representativa na forma, mas burguesa no conteúdo, uma democracia dos ricos e das corporações capitalistas.

Nessas circunstâncias, sustentar a desprivatização do Estado visa esconder o que qualquer pessoa sabe: que para os ricos tudo é mais fácil. Para eles, a justiça é uma e para os pobres é outra. A polícia também. Esta é uma experiência do dia-a-dia no Brasil e nos EUA. E não é traçando o caminho do consenso e do diálogo com a classe dominante que esse cenário será alterado. Nem muito menos assumindo a gerência de seu Estado.

Os governos estaduais - um novo salto na acomodação

Os governos estaduais petistas representaram uma nova acomodação e adaptação do partido, a partir de 1994. Algumas experiências de governos estaduais representaram claras vitórias eleitorais que se transformaram em derrotas políticas, expressões de graves equívocos no modo petista de governar. Buaiz, ex-governador do Espírito Santo e Cristovam Buarque, ex-governador do Distrito Federal, enfrentaram-se com os movimentos sociais e adotaram uma linha de colaboração e até de apoio ao governo federal de Fernando Henrique Cardoso. Receberam o troco quando perderam as eleições seguintes. O primeiro acabou rompendo com o PT e o segundo notabilizou-se por defender, em 1998, a continuidade de Pedro Malan no Ministério da Fazenda, diante de um eventual governo Lula.

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Mesmo onde o PT realizou um governo de opos1çao ao modelo neoliberal, ainda que tímida e inconseqüente, como no Rio Grande do Sul, os problemas oriundos das eleições como prioridade central e sobretudo a concepcao de administrador da crise capitalista também fizeram-se sentir. É certo que o partido acumulou uma significativa quantidade de quadros técnicos capazes, qualiticados e esforçados, ao longo, sobrerudo, de seus sucessivos governos municipais de Porto Alegre. Entretanto, mesmo na mais forte regional do PT, o partido esta menos militante. Militância paga, comum em todas agremiações tradicionais, começgou a ser vista também nas campanhas de seus candidatos proporcionais. Poucos militantes e muito dinheiro, passaram a marcar as campanhas eleitorais de alguns vereadores e deputados petistas, financiadas por grandes empresas. Não são todas, porque felizmente há ainda muita vida inteligente no PT, vinculada com as classes trabalhadoras. Eleitoralmente, milhões de trabalhadores seguem optando pelo PT contra os partidos patronais, mas o partido esta com menos militantes ativos, menos vinculado com os movimentos sociais, com o MST e com os sindicatos.

No Rio Grande do Sul, além do mais, a experiência no governo foi conduzida por parte da esquerda do partido, a mesma Democracia Socialista e a Articulação de Esquerda defensoras da estratégia eleitoral como centro da conquista de um governo do PT para mudar radicalmente o país. No governo estadual, ocupando uma fatia do poder estatal burguês, estas mesmas correntes realizaram sua própria versão do reformismo de poucas reformas. O centro de seu discurso político, nos quatro anos de governo, foi alicerçado na idéia que a vida dos gaúchos estava melhorando. Esta foi sua propaganda: o governo gaúcho esta fazendo o Rio Grande prosperar. Chegavam a indicar o pequeno e ocasional crescimento do Produto Interno Bruto como expressão dos triunfos do governo, não da lógica do ciclo capitalista, aliás, acompanhada em todo o país, na alta e na baixa.

No começo, o PT gaúcho optou por governar com o PDT, um partido com laços históricos com o nacionalismo burguês mas que no decorrer dos anos vinculou-se crescentemente com a lúmpem

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burguesia e o latifúndio. Tal aliança concretizou um governo de colaboração de classes. A ruptura da alianga antes de completar a metade da gestão nos lembrou um dos argumentos esgrimidos por Kautsky para explicar as razões do fracasso de tais governos. "Jamais o proletariado poderá exercer o poder conjuntamente com uma dessas classes - a burguesia e os latifundiários - ... o proletariado, ao contrário, exigirá sempre de um governo em que seu próprio partido está representado que os órgãos do Estdo o assistam em suas lutas contra o capital. Isso é o que deve levar ao fracasso qualquer governo de coalizão entre o partido proletário e partidos burgueses'15. Não é correto afirmar que os órgãos do Estado gaúcho estiveram do lado dos trabalhadores em sua luta contra o capital. Mas foi evidente o esforço do PT em evitar que os órgãos do Estado, em particular a Polícia Militar, fossem utilizados como instrumento sistemático de contenção e repressão de cada uma das mobilizações ocorridas no Rio Grande nos últimos quatro anos. Foi um mérito importante do governo estadual. Apenas os sectários não viram esses esforços. O Movimento dos Sem Terra foi o que mais sentiu a diferença nesse terreno entre o governo do PT e os governos burgueses normais. O PDT não poderia aceitar tal postura, sobretudo no campo. Esta foi a base de sua ruptura com o PT e sua política de disputar a oposição de direita contra o governo Olívio. Não poderia ser mais estrepitoso o fracasso da coalizão.

Os esforços petistas para evitar que os órgãos do Estado não fossem utilizados como instrumentos sistemáticos contra o povo, porém, não impediram sequer que a repressão policial se abatesse sobre mobilizações sociais em alguns momentos, como na repressão aos sem terra no Incra, em 2000, aos ativistas sindicais durante a visita de FHC para inaugurar o novo aeroporto de Porto Alegre e na recente greve dos correios, em agosto de 2002, para citar os exemplos mais signiticativos. Em alguns desses episódios, o comando da operação atuou com grande grau de autonomia, a revelia das ordens da Secretaria de Segurança, como se estivesse alertando que no Rio Grande também o Estado atual não deixa de ser um organismo de repressão a serviço das classes dominantes,

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mesmo no governo do PT. A alta oflciadade da Brigada Militar lembrou esta realidade todos os dias. A direção do partido parece ter perdido de vista esse fato. Mesmo com a ruptura do PDT, não abandonou sua linha de colaboração de classes nem tampouco a estratégia política centrada na suposta capacidade de melhorar a vida do povo via a conquista de espaços institucionais nos limites do regime político democrático liberal.

Tal discurso significa simplesmente apostar numa via ilusória. Seria rídiculo de nossa parte desconsiderar a importância de buscar melhorias concretas para o povo quando se alcança uma parcela do poder estatal nos limites do Estado burguês. Tampouco desconhecemos que o governo petista conseguiu alguns avanços, modestos, mas que devem ser valorizados, sobretudo na batalha política contra a burguesia e seus representantes. Não privatizou as estatais, não demitiu em massa os funcionários públicos, contratou professores e funcionários de escola, não tratou o MST como caso de polícia, não entregou o patrimônio e o dinheiro público em falcatruas, etc.

Sejamos, porém, realistas. Nada disso autoriza o discurso ufanista. Nos quatro anos de governo Olívio Outra ficou reiteradas vezes demonstrado que o Estado, tal qual está constituído, oferece limites intransponíveis para melhorar a vida. Trata-se de um Estado de classe, que não deixou de ser burguês, marcado pela crise flscal, pelo arrocho monetário e pela drenagem sistemática de recursos estaduais para a União, e por esta via para os bancos, transferência garantida pelo acordo da dívida estadual. Ademais, os salários dos trabalhadores em educaçao estão tão miseráveis quanto antes do governo gaúcho do PT. Não foi à toa que, quando Olívio Dutra completou um ano de governo, mais de 18 mil trabalhadores decidiram, em assembléia geral, realizar uma greve geral, conquistando um reajuste de cerca de 14%, um modesto reajuste que sequer seria concedido se não fosse pela realização da greve. A segurança pública continua cada vez pior, como não poderia deixar de ser num país onde o desemprego aumenta, atingindo níveis históricos recordes. E o Rio Grande, como de resto o Brasil, conhece a tragédia da fome atingindo centenas de milhares de seus habitantes.

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Também por estas razões é inaceitável centrar a propaganda política na idéia de que o Rio Grande prosperou neste governo -desconsiderando que o modo de produção capitalista reserva - e reservou - mais miséria, não mais progresso, para o Rio Grande e para o Brasil, sem ou com o governo do PT. Desconsiderando, portanto, que a única possibilidade de progresso real é a ruptura com o domínio do capital financeiro, sendo este o desafio do PT -ou melhor, deveria ser - o sentido de suas ações ou pelo menos de sua propaganda política. Desconsiderando, finalmente, que mesmo os governos municipais e estaduais, ainda quando a correlação de forças entre as classes não permita a realização prática de uma mobilização nacional de massas contra o poder nacional do Estado burguês, deveriam realizar ações, por modestas que fossem, com esta finalidade, desenvolvendo uma intensa divulgação e agitação desta necessidade, desafio rigorosamente abandonado por todas as experiências do modo petista de governar, inclusive a do Rio Grande do Sul. A rigor, tal chamado ocorreu apenas nos primeiros três meses de governo estadual, especificamente na esteira da moratória mineira de janeiro de 1999.

De nossa parte, cremos que o central da atuação dos socialistas é pautar sua política pela necessidade de ganhar as consciéncias para batalhar pelas mudanças necessárias. Ganhar as consciências, disputando a hegemonia dos trabalhadores através de uma política realista e revolucionária, não dá propaganda enganosa e da aposta nas eleições de sucessivos governos estaduais como via para solucionar os principais problemas do povo.

Estas considerações nos remetem também a um balanço das campanhas eleitorais petistas. Para tentar ganhar as eleições majoritárias, tanto em 1994 quanto em 1998, no Rio Grande do Sul e no Brasil, o partido foi farto em promessas, adotando uma linha de campanha comum aos partidos tradicionais. Nos Estados onde o PT ganhou as eleições, parte razoável destas promessas não foram honradas. Setores sociais ganhos para votar no PT com base em compromissos de campanha, em promessas de melhorias

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substâncias na vida, como se tais melhorias fossem possíveis no Estado burguês, foram os que romperam com o partido quando as promessas deram lugar à crua e nua administração da máquina estatal montada para reproduzir a acumulação capitalista.

No governo, rapidamente, o discurso adotado passou a apontaroslimitesorçamentários,osempecilhosjurídicos,aausência de uma maioria na Assembléia Legislativa como justificativas para não ocorrerem as mudanças prometidas. A realidade então vinha à tona, embora a estratégia de mobilização não assumisse o lugar de destaque fundamental para que os limites impostos fossem derrotados ou pelo menos para que as ações políticas do governo contribuíssem para um desenvolvimento significativo da consciência do movimento social. A direção partidária e o governo estadual, contudo, seguiram e seguem insistindo no discurso da prosperidade gaúcha e na estratégia eleitoral, como se uma sucessão de vários governos petistas eleitos pelo voto nesta democracia dos ricos superasse os limites da máquina montada para manter tudo como está.

Consciente de que não poderia viver por muito tempo com esta contradição entre o partido da oposição, dos movimentos sociais e suas demandas, por um lado, e o partido do governo e da institucionalidade, com seus pedidos de paciência, por outro, um setor do partido passou para o lado oposto, defendendo um tipo de campanha eleitoral sem despertar grandes expectativas de mudanças. As mudanças viriam, porém de modo lento, gradual e seguro, a conta gotas, ao longo dos anos, as vezes até de décadas. Este setor adotou uma linha de campanha mais" realista", tendente a diminuir a demanda social, afinada com um modelo de governo administrador da crise, gerente do Estado burguês e defensor, no máximo, da potenciação da capacidade de prestação-controle deste Estado de políticas públicas indutoras de um modesto crescimento capitalista e de medidas compensatórias diante da crise. Foi a linha da campanha de 2002.

Uma linha de campanha sem prometer um governo capaz de realizar as mudanças almejadas e sem assumir um compromisso de luta, acaba sendo incapaz de entusiasmar o povo, preço pago

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para evitar de todas as formas a perspectiva da mobilização social e a conclusao dos trabalhadores de que este é o único caminho real para conquistar as mudanças de fundo que necessitamos. Uma linha prisioneira da institucionalidade e da polica como arte do possível no interior da ordem capitalista. A campanha de Lula num sentido é ilustrativa dessa linha política, embora Lula desperte muitas expectativas, por sua história, pela história do PT e pelo seu compromisso, mantido durante a campanha, em acabar com a fome em seu governo, compromisso pelo qual trabalhamos e cuja realização sera estimuladora de nossas propostas práticas, de nossas cobranças e denúncias.

Posto isso, a idéia de mero respeito à lei e de integração com o campo do Estado burguês também foi fortalecida nas experiências dos governos municipais e estaduais petistas. Esta linha adotada pelo PT é uma retomada clara das idéias da social-democracia que, na Europa, tem demonstrado sua total incapacidade para deter o crescimento da extrema direita, dos grupos fascistas, xenófobos e racistas. Ademais, com base no discurso do respeito à lei, ocorrem as repressões aos movimentos sociais. É em nome da lei e do Estado, do respeito ao direito de propriedade, consagrado na Constituição, que atua a Polícia na repressão às ocupações de terra, às ocupações de fábrica e aos piquetes de greve.

Assim, os limites dos espaços institucionais do Estado capitalista acabaram limitando a própria estratégia do partido. Ao abandonar a estratégia da mobilização social, o próprio PT acabou sofrendo os desgastes de suas administrações municipais e estaduais. Não é ainda o que predomina em muitas cidades governadas pelo partido, mas sua crescente integração no regime politico começa a cobrar seu preço. Parcelas do povo acabam identificando no PT uma parcela de responsabilidade pelo que está aí. E não deixam de ter parte de razão.

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Uma pressão objetiva pela acomodação

Todas essas mudanças no PT não poderiam ter ocorrido sem a existência de bases objetivas. Assim como Lênin analisou as bases materiais do surgimento do reformismo na II Internacional, vale o esforço de estudar e expor algumas das bases objetivas explicativas do curso conciliador, acomodado e integrado no regime político democrático burguês do PT.

No princípio, a base social deste giro à direita desenvolveu­se com a burocratização de muitos sindicatos da CUT, processo acentuado a partir do final da década de 80, agravado pela ofensiva neoliberal e a hegemonia arrasadora da ideologia da globalização capitalista como inexorável e modelo único. Em seguida, e seu fator mais importante, foi o peso crescente do partido na superestrutura do Estado burguês, com a ampliação do seu espaço institucional, o que acabou curvando o PT e alterando seu curso original. Vejamos por parte.

A CUT surgiu em 1983 e sua construção foi resultado do ascenso da mobilização democrática. Depois da derrubada da chamada pelegada, os novos dirigentes sindicais assumiram máquinas sindicais que contavam com as verbas do imposto sindical, um mecanismo de desconto automático que garantia a sustentação dos sindicatos, mesmo quando seus vínculos com as bases eram fracos ou até inexistentes. Em 1988, as resoluções aprovadas no Congresso da CUT conduziram a Central a um distanciamento maior dos trabalhadores e de seu controle. A mudança dos estatutos da CUT, estipulando a eleição de delegados para o Congresso Nacional da entidade não mais em assembléias

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de base, como ocorria até então, mas em Congressos Estaduais, estabelecia um verdadeiro funil na participação dos trabalhadores. Isto foi apenas o começo de um processo de afastamento das bases, agravado pelo re:t:uxo do movimento sindical iniciado nos anos 90. Assim, o peso dos sindicatos no partido diminuiu na mesma proporção em que o peso das burocracias crescia nos sindicatos.

Por sua vez, combinado com este processo de acomodação da maioria das direções sindicais, tivemos a ofensiva da globalização,

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com sua ideologia do caréter inevitavelmente capitalista da economia, a primazia do mercado e da produção para o lucro. A social-democracia foi uma correia de transmissão desta pressao. Seria ingenuidade achar que os estrategistas do capital não tentassem incidir sobre um partido com as origens e a força do PT.

Vale lembrar que os vínculos do PT com a social-democracia produziram-se quando a mesma rumava sem retomo para a direita. Se suas origens encontram-se no movimento operário, sua evolução posterior conduziu ao abandono até mesmo da perspectiva socialista pela via das reformas econômicas e sociais. Mais do que isso: a social-democracia passou a adotar a estratégia da manutenção do capitalismo, aceitando e patrocinando o desmonte do Estado de Bem Estar Social, fator determinante para transformá-la numa representação orgânica dos interesses do capital imperialista.

O Partido Democrata dos EUA e a socialdemocracia alemã investiram em cursos, viagens e seminários para os dirigentes petistas, verbas para projetos e ONGs, colaborando na transformação completa do PT, que passou a ser um partido cada vez mais parecido com os verdes europeus, surgidos da contestação e depois incorporados em ministérios. Foi o caso dos Verdes alemães ocupando o ministério das relações exteriores e apoiando a intervenção no Kosovo.

Na história do PT, ademais, a direção do partido também havia estabelecido, na década de 80, relações estreitas com vários Partidos Comunistas dos países do leste. A maioria da direção acabou acompanhando o giro pró-capitalista das próprias burocracias do leste e da ex-URSS, além, é claro, do giro restauracionista da burocracia chinesa, este iniciado ainda em 1979. Foi o ponto de encontro entre o stalinismo e a socialdemocracia, o motivo de maior peso na adaptação do partido, entretanto, tem sido o crescimento do PT nas instituições do regime democrático burguês. E o PT não estava - nem está hoje - armado teórica e politicamente para enfrentá-lo. O fato é que a pressão do aparelho burguês foi e segue sendo brutal. A existência de um regime político baseado nas eleições e a real acumulação do partido neste

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terreno fortaleceu a utilização da disputa institucional como eixo total do PT. O partido ganhou milhares de vereadores, dezenas de prefeitos, deputados, senadores, e depois governadores. Todos com uma legião de cargos de confiança, desenvolvendo uma nova camada social no partido: a burocracia estatal com laços de emprego garantidos pelos vínculos com os chefes. O salto neste sentido se deu em 198816, com a conquista das prefeituras.

O peso do aparelho do Estado burguês se fez sentir com mais força, pressionando por mudanças no partido. A democracia burguesa conquistada atuou seduzindo esta nova camada social, formada por milhares de funcionários, cargos de contiança de governos estaduais, prefeituras, Assembléias Legislativas, Câmaras dos Vereadores, Câmara Federal e Senado, além de toda a estrutura profissional do PT. Uma força social dando base para a idéia de que se pode acumular forças constantemente, sem grandes enfrentamentos, sem choques, aproximando cada vez mais a direção do partido de uma parcela da classe média interessada na redução dos con:t:itos de classe. O peso desta camada social, combinado com a burocracia sindical e com as migalhas do Estado capitalista atiradas para inúmeras ONGs, alteraram o partido em sua composição social, em seu programa e sua política. As posições do partido passaram a ser muito parecidas com as defendidas por Bernstein e combatidas por Rosa Luxemburgo.

Também tivemos uma base econômica estrutural para esta nova posição reformista, na medida em que a semi­industrialização iniciada na década de 20 e particularmente depois da revolução de 1930, em vigor com muita força até a década de 70, forneceu argumentos favoráveis a uma aliança de classes para desenvolver o país. Tal base econômica acabou conduzindo a uma fraca aristocracia operária, por um lado, e a uma massa excluída, por outro. O Brasil alcançou um patamar de sociedade semi-industrializada, com o advento de um sindicalismo ativo que conquistou triunfos econômicos e políticos. Em seguida, esta emergente aristocracia operária, fraca, mas ainda sim com um nível de vida superior à maior parte dos trabalhadores, esteve disposta a prosperar junto com o desenvolvimento das empresas,

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associando sua sorte ao progresso econômico das multinacionais aqui instaladas. Uma pressão material para uma linha de colaboração de classes.

Além disso, quando o neoliberalismo alçou vôo no Brasil, no início dos anos 90, iniciou-se uma fase de desindustrialização, processada de modo combinado com investimentos de bilhões de dólares nas privatizações, nas fusões e parcialmente no setor produtivo. Uma parte das direções sindicais, vinculadas a direção do partido, embora minoritária, passou a integrar a direção dos fundos de pensão de algumas estatais, instituições de poupança fundamentais no processo de acumulação de capitais, transformando-se em ativos, novos proprietários das empresas privatizadas, em parceira com grandes corporações privadas nacionais e estrangeiras. Por outro lado, a ofensiva da globalização e da política econômica neoliberal vendeu para milhões de brasileiros a promessa de uma ascensão para o Primeiro Mundo. Pouco tempo depois a realidade mostrava sua cara: sobre estes mesmos milhões vimos despertar o temor e a desesperança, expressão subjetiva do desemprego crônico e da fragmentação, acentuando a perda dos laços de solidariedade. Assim foi criada também a base de apoio para uma política que buscasse o caminho do suposto mal menor, da negociação com os patrões aceitando a perda de direitos e até a redução dos salários em troca da manutenção do emprego, linha defendida no movimento sindical pela Forca Sindical e pela corrente Articulação, ligada à Unidade na Luta, corrente majoritária no PT e na CUT. Foram os anos de apoio a políticas como o banco de horas e a :t:exibilização.

Os anos 90, então, foram vividos no temor crescente e na insegurança sobre o futuro. O caráter crônico do desemprego anulava uma parte dos trabalhadores da produção, inclusive do chamado exército industrial de reserva. Estavam simplesmente condenados à exclusão. Nestas condições, para um enorme segmento social, o assalariamento se transformou num meio de integração econômica altamente desejado por si só. Os que mantinham seus empregos - isso, aliás, segue ocorrendo - passaram a ser considerados como incluídos e a tarefa do

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partido, a centralidade de seu discurso político, passou a ser a luta contra a exclusão, abandonando a luta contra a exploração dos trabalhadores, aceitando o regime do assalariamento - e dos baixos salários - como inevitável.

Neste mesmo período, ainda em vigor, uma parte da direção do PT desenvolveu a ideologia de que o país poderia se manter no sistema capitalista e encontrar um lugar soberano na divisão internacional do trabalho sem rupturas revolucionárias. Até o conceito de "imperialismo" foi dito como fora de moda e ainda há os que insistem em descartá-lo, apesar da evidente predominância do capital financeiro apoiado pelo militarismo crescente do Estado norte-americano. Esses setores partidários, com prestígio junto ao movimento dos trabalhadores, parecem adeptos do ditado: uma mentira repetida várias vezes acaba se transformando em verdade. Sobretudo se o mentiroso tem autoridade. Combater essa ideologia, essa falsa consciência alimentada pela direção majoritária do partido passou a ser obrigação de primeira ordem.

Finalmente, com a crise do neoliberalismo, especialmente depois da experiência argentina, a retomada do discurso desenvolvimentista forneceu as novas bases ideológicas da maioria do PT e de sua direção. Na formatação do governo Lula é onde essa ideologia se faz mais forte. Resta saber se entramos, então, no período de apogeu e crise definitiva do PT, ou na confirmação do acerto de seu novo rumo.

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Notas:

1 Resoluções, Encontros e Congressos do PT - Editora Fundação Perseu Abramo

2 Resoluções, Encontros e Congressos do PT - pág 13 Editora Fundação Perseu Abramo

3 Resoluções, Encontros e Congressos do PT - pág 312 Editora Fundação Perseu Abramo

4 Teoria e Debate - ano 01 número 01 de 1987 - página 17

5 Caderno de Formação da Secretaria do DN/PT - 2002 - pág. 36

6 idem, página 35

7 idem - pág. 36

8 História e Consciência de classe - Lukács - publicações escorpião - Porto 1974-pág. 234

9 Resoluções, Encontros e Congressos do PT - pág, 515 - Editora Fundação Perseu Abramo

1 O Resolução do 8º Encontro Nacional do PT - 1993

11 Revista Nação - Brasil, edição 132 - agosto de 2002 - página 13

12 Fontes da Vida - Tarso Genro - pág. 24 - Editora Tchê!

13 Teoria Geral da Política - Noberto Bobbio - pág. 120

14 Revista Nação - Brasil, edição 132- agosto de 2002-página 13

15 El camino del poder- Kautsky - pág 16 - Editorial Grijalbo - México

16 Em 1982 O PT elegeu 118 vereadores em todo o país; em 88 foram 900; em 1992 já chegaram a 1889 e 2485 vereadores eleitos em 2000. A evolução do quadro de prefeitos não foi menos impressionante: em 82 foram 02 prefeitos petistas eleitos. Em 2000 foram 187, conquistando as prefeituras das maiores cidades do país e governando mais de 50 milhões de pessoas. O salto das eleições de 1988 fica clara, porque em 1985 e 1987 o PT elegeu apenas um prefeito e em 1988 foram 36, incluindo cidades como Porto Alegre e São Paulo, a maior do país. Somado aos Deputados federais, estaduais, senadores (o PT conquistou 01 senador em 1990 e 07 em 1998) e governadores, com sua legião de cargos de conflanga, se percebe a força da burocracia partidaria e seus vínculos com o Estado. Nas eleições de 2002 essa tendência deve ser mais fortalecida.

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As perspectivas de um governo Lula: Créditos de Guerra do PT?

Com a eleição de Lula a estratégia eleitoral petista flnalmente foi concretizada. Estaremos realizando a experiência com a orientação política majoritária acumulada nas últimas duas décadas pelo movimento político organizado das classes trabalhadoras. Uma clara vitória dos trabalhadores e do povo pobre e uma experiência necessária, tendo em conta que o empirismo é o método de aprendizado das classes trabalhadoras, razão suficiente para justificar os esforços pela eleição de Lula e do Pf. A partir do governo o PT será posto à prova. Será sua hora da verdade.

O voto em Lula, em primeiro lugar, representou a oposição ao governo de FHC, a indignação crescente contra a desastrosa política econômica tucana-neoliberal de juros elevados, abertura comercial e financeira, aperto flscal, arrocho salarial, privatizações, subordinação na política externa e descaso com os serviços públicos. Não indicou, entretanto, apenas um voto de protesto. A busca por mudanças reais nas condições de vida estimulou a aposta em Lula, um líder operário e popular forjado na ação dos de baixo, expressão dos avanços históricos na consciência de milhões de homens e mulheres que vivem do trabalho, resultado de duas décadas contínuas de resistências e mobilizações, com seus :t:uxos e re:t:uxos, mas sem derrotas históricas dos trabalhadores, sem vitórias contrarrevolucionárias das classes dominantes.

Não obstante, Lula venceu também porque traçou uma política de conciliação de classes aberta. No decorrer da década de 90, na esteira da ofensiva do neoliberalismo, o partido foi abandonando uma por uma das medidas anticapitalistas em

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seus programas de campanha e assumiu finalmente, em 2002, um programa burguês, centrado na idéia do desenvolvimento industrial via uma aliança de classes com a burguesia. Esse giro a "direita' foi possível porque na década de 90 o movimento de massas não foi protagonista de um ascenso das lutas sociais. A estratégia petista de democratização do Estado acabou se materializando na defesa de um novo contrato social, expressando e imprimindo uma falsa consciência presente na média das classes trabalhadoras, adaptação e reprodução do senso comum. Tais mudanças permitiram que um setor da burguesia nacional fosse o avalista do voto em Lula de parcelas das classes médias altas e do povo mais atrasado politicamente.

Essa aliança política teve, como não poderia deixar de ter, uma base econômica. O modelo neoliberal, sobretudo depois que os :t:uxos internacionais de capitais cessaram, conduziu a um estrangulamento tão evidente da produção nacional que deu margens para o deslocamento político de um setor da burguesia em direção ao PT, apostando em Lula como articulador de um pacto nacional capaz de melhorar as condições dos investimentos capitalistas, ainda mais com a poupança estatal sendo drenada nessa direção.

Já num documento de abril de 2001 definíamos que a aplicação da ALCA tal como estava apresentada, expressão concentrada do neoliberalismo, encontrava resistência em parcelas da burguesia brasileira e abria as portas dessa aliança de classes. "As contradições, (da ALCA) com as burguesias nacionais, por pequenas que sejam, abrem espaços e brechas para as atuações do movimento de massas e estimulam direções pequeno-burguesas e burocráticas. Por isso é tão importante discutir quais atritos que aparecem com a própria burguesia. Ou pelo menos com algumas de suas frações que de uma forma ou outra estabelecem relações e alianças com as direções oportunistas, burocráticas, frente-populistas. ( ... ) A existência de uma burguesia nacional com interesses próprios, embora hegemonicamente associados, se re:t:ete de uma forma ou outra na política nacional' (abril de 2001 - Página 19 - Situação Nacional e desafios políticos - Roberto Robaina)

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A situação atual tem deixado evidente a construção de um sistema de alianças de classes composto particularmente por uma parcela da burguesia industrial-financeira com a aristocracia operária e parcelas das classes médias, as duas últimas representadas no núcleo dirigente do PT, hoje respaldado pela simpatia e o voto da maioria da população trabalhadora. Não será a primeira vez que uma aliança desse tipo se realiza no país. O processo de industrialização - cujos primeiros ensaios começaram no final da 1 Guerra Mundial " foi consolidado a partir da década de 30 e deu um salto nos 50, assentando as bases do desenvolvimentismo, entendido como um projeto de industrialização planejada e apoiada pelo Estado, ideologia da burguesia industrial em ascensão assumida como estratégia da referida aliança de classes.

No primeiro impulso da industrialização, entre as duas grandes guerras mundiais, as classes médias urbanas inseridas no setor terciário, nos cargos técnicos do executivo das empresas e particularmente nas Forças Armadas foram as principais protagonistas da defesa do desenvolvimento econômico capaz de superar o modelo primário-exportador. Nesse cenário, o Estado estava se configurando como uma peça chave, pavimentando o caminho para o capital privado, garantindo investimentos em infra-estrutura e disciplinando a emergente classe trabalhadora, desdobramento de uma hábil política da burguesia para manter sob controle as demandas operarias e populares via uma política populista. Em distintos períodos, além do PTB, formado por Vargas, a in:f:uência do PCB foi fundamental na sustentação de Getúlio e depois de JK. A política de colaboração de classes e o populismo lograram viabilizar-se porque a crescente industrialização derramava benefícios relativos para frações das classes trabalhadoras, não apenas pelo aumento da urbanização e do emprego mas em alguns casos pela melhoria salarial.

Na esteira de uma acelerada urbanização e industrialização, as classes sociais, particularmente a burguesia industrial e o operariado, foram sendo desenhadas e ganhando consciência de seus interesses próprios. De uma forma distorcida as disputas

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entre as forcas políticas desenvolvimentistas, com os setores mais nacionalistas e estatizantes de um lado e os setores também favoráveis ao planejamento mas partidários do capital privado como estimulador fundamental da industrialização, associado ao capital estrangeiro, de outro lado, expressavam os interesses de classe divergentes coabitando no sistema de alianças. Sempre com a classe trabalhadora numa posição subordinada, prisioneira de direções nacionalistas burguesas e reformistas.

A formatação de uma classe industrial no contexto mundial de domínio do capital financeiro foi deslocando, ao longo dos anos, a in:f:uência a favor do projeto burguês associado aos interesses imperialistas norte-americanos. Ademais, a partir da década de 50 o aumento do volume de capitais necessário para fazer frente aos novos investimentos foi empurrando crescentemente a burguesia industrial a associar-se ao capital externo. No governo JK esse deslocamento foi claro e seu ápice ocorreu no golpe militar de 1964, quando além disso o maior peso do proletariado pressionava por reformas mais profundas. A corda tinha que estourar e acabou estourando do lado do mais despreparado. A queda do governo de Goulart foi a resultante prática da insistência na aliança por parte dos setores políticos mais intuentes das classes trabalhadoras, num momento em que os de baixo lutavam por maiores reformas e a burguesia industrial decidia romper qualquer pacto com as frações das classes trabalhadoras e das camadas médias radicalizadas, marginalizando dos centros de decisão os setores políticos de uma forma ou outra a elas ligadas. Assim foram pagos os políticos nacionalistas burgueses e as direções reformistas do movimento operário. Para a classe trabalhadora o preço foi terrível.

Outra cara do projeto desenvolvimentista foi a exclusão de parcelas do povo trabalhador dos benefícios da industrialização, o mecanismo da in:t:ação como fator de transferência de renda do trabalho para o capital e a marginalização dos camponeses, expulsos da terra, com suas organizações perseguidas, desdobramentos da acelerada acumulação capitalista ao longo desse período de relativa industrialização e urbanização do pais.

Passado quase quatro décadas das ultimas dessas experiências, estamos agora, após o esgotamento do modelo

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neoliberal, retomando parcialmente as expectativas daquela aliança desenvolvimentista. O colapso do modelo neoliberal na Argentina e seu esgotamento cada vez mais visível no Brasil abriu a brecha nesse sentido, para o qual a direção do PT habilmente trafegou ao adotar esta ideologia especifica da burguesia industrial, garantindo assim uma base de massas para essa nova empreitada. A própria plataforma de Serra e do núcleo do PSDB ligado a Luis Carlos Mendonça de Barros dialogava com esse projeto, embora numa perspectiva com acento pesado no componente privatista c associado ao capital externo.

O novo modelo petista de formatação todavia indefinida, que não termina de romper com o neoliberalismo mas que não é sua continuidade, mistura uma defesa maior do nacionalismo e da participação estatal mas se mantém pautado pela associação com os EUA e sobretudo se subordina ao capital privado dos grandes empresários como chave mestra do eventual crescimento da economia nacional. A burguesia por sua vez aceita o PT como um negociador mais duro para defender seus interesses nos debates sobre a ALCA e aposta em seu peso no movimento de massas para aprovar ajustes que lhes sejam favoráveis. É possível uma efetiva distribuição de renda a partir desse projeto? O PT poderá combater o capital financeiro, realizar a reforma agrária, desmantelar os esquemas de corrupção aliado com parcelas fundamentais da burguesia brasileira, como durante décadas defendeu o Partido Comunista? Da possibilidade da realização de tais reformas se depreenderia a natureza progressiva do projeto abraçado. A experiência histórica, contudo, tem demonstrado a inviabilidade dessa perspectiva.

A maioria da direção do PT, é claro, argumentará que dessa vez a posição de força das classes trabalhadoras é muito superior, cumprindo mesmo um papel hegemónico. Nesse sentido, segundo os dirigentes partidários, os benefícios da acumulação capitalista atenderão aos interesses dos assalariados. A constituição do PT de fato expressou e imprimiu um fortalecimento da classe trabalhadora, cujos interesses no desenvolvimento econômico re:t:etem a necessidade de um mercado interno de massas e portanto de uma clara distribuição de rendas. O raciocínio da

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direção petista, contudo, tropeça em uma dupla ilusão. Em primeiro lugar, desconsidera que a acumulação capitalista pressupõe a concentração de renda. Em segundo lugar, mesmo sendo certo que o PT é o partido em tomo do qual esta sendo articulada essa tentativa de modelo burguês visando superar o modelo neoliberal, perde de vista, ou faz de conta que não vê, que suas opções políticas recentes o levam a abdicar completamente de representar os interesses das parcelas mais exploradas da classe trabalhadora. Daí veio a viabilização de seu novo papel. Daí também virá seu enfraquecimento estrutural.

Setores do partido defensores desse novo rumo mas dispostos ainda a dialogar com as frações socialistas do PT esgrimem uma análise-justificativa da opção desenvolvimentista afirmando a necessidade de uma reestruturação da formação social brasileira, uma reclassiflcação do país. É irresistível a lembrança do chavão dos militares: primeiro o bolo tem que crescer para depois ser repartido. Na versão política desse núcleo dirigente petista a fórmula ficaria assim: primeiro as classes devem ser redesenhadas, seus traços fortalecidos, para depois os interesses socialistas serem defendidos. É irresistível igualmente lembrar as palavras de Walter Benjamin acerca de uma característica definidora da socialdemocracia. Em suas teses sobre o conceito da historia dizia: "o conformismo, que sempre esteve em seu elemento na socialdemocracia, não condiciona apenas suas ideias políticas, mas também suas ideias econômicas. É uma das causas de seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nada com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela suponha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista" .1

É claro que vivemos mais de uma década de desindustrialização e de desestruturação social significativas, com correspondências logicas na organização política das classes trabalhadoras, aumentando a fragmentação, a marginalidade, em suma, criando novos obstáculos para um projeto socialista. Porém, dai concluir

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que uma retomada sustentada da industrialização é condição prévia para o desenvolvimento de uma política socialista vai uma grande distância, uma abstração completa das reais condições da luta política no país, tanto do peso já presente da grande indústria quanto do caráter antagônico completamente consolidado das classes sociais fundamentais, a saber, a burguesia e o proletariado. O PT assumindo a ideologia da burguesia, segundo a qual sua função esta centrada no fortalecimento industrial e no desenvolvimento da acumulação capitalista do país, está renunciando a sua própria história. Ademais, a industrialização sem controle social, sem alterações nas relações de propriedade ou pelo menos sem a ruptura da dependência externa não resolve os tormentos das classes trabalhadoras nem tampouco representa um passo automático para o desenvolvimento de uma consciência socialista. Com a representação dos trabalhadores assumindo tal ideologia foi pavimentado na história o caminho de inúmeras derrotas não apenas dos interesses de classe dos assalariados, mas também dos direitos democráticos mais elementares.

Do ponto de vista do partido, seu ideário passará a ser o do aumento das exportações, incremento do PIB e eficácia dos programas sociais compensatórios. Embora não tenha abandonado totalmente seu programa - entre eles a rejeição das privatizações das principais empresas estatais - já a pauta defendida pelo partido tem sido a reforma da previdência, a reforma tributária, trabalhista e politica, todas integrantes decisivas da agenda neoliberal. Os economistas com os quais o partido tem discutido - nem todos do PT, em geral são unânimes em reafirmar a continuidade do arrocho salarial e do aperto fiscal.

Vale insistir, ademais, que a chamada modernização do campo no projeto chamado desenvolvimentista não passou por nenhum modelo de distribuição de terra nem de aposta na pequena propriedade, mas pela mecanização da produção nos latifúndios destinada a exportação. Nesse sentido, todavia, não tem ficado claro o lugar e o peso do MST no sistema de alianças defendido pelo núcleo dirigente petista. É evidente que a luta agrária no Brasil é um componente particular e potencialmente explosivo num futuro governo Lula, por se tratar da principal

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expressão de uma tarefa democrática não realizada pela burguesia ao longo de décadas de con:t:ito. Uma melhor distribuição de terras, aliás, é a base na qual um setor de economistas, como Celso Furtado e Maria Conceição Tavares, apostam para viabilizar o governo do PT como animador de um desenvolvimento maior do capitalismo brasileiro, desenvolvendo um mercado interno de massas, além de ser fiador decisivo de uma base popular de apoio. Avançar nesse terreno, de fato, é a possibilidade mais viável de manutenção de uma base politica de massas para o governo petista. Contudo, qualquer avanço da luta pela terra fortalecerá o MST e atrairá para o movimento novas levas de trabalhadores rurais, além de desempregados e subempregados das médias e pequenas cidades brasileiras, agravando as contradições entre a propriedade latifundiária e o movimento camponês, dinamizando a luta de classes e as diflculdades de uma política baseada no pacto social como tem defendido Lula.

No caso brasileiro, as limitações da estratégia petista de alianças com a burguesia, além de econômicas, são políticas. A burguesia brasileira tem uma preocupação sistemática com a estabilidade de sua dominação. Não estimula, assim, nenhum tipo de con:t:ito social, de mobilização social, mesmo que seja contra o latifúndio improdutivo, consciente de que diante das brutais desigualdades sociais não há como a contradição entre o capital e o trabalho não desenvolver-se com força no interior das mobilizações de massas, sem as quais não se verifica nenhum progresso real nas relações sociais e no desenvolvimento de um mercado interno de massas. A burguesia teme perder a possibilidade de manipular as condições socioeconômicas internas que lhes permitem a superexploração sem igual da força de trabalho e a exploração sem regras dos recursos naturais. Tem sido essa sua forma de competir no mercado mundial e a base de sua incapacidade de defender o desenvolvimento de um capitalismo nacional, independente dos sobressaltos do desenvolvimento induzido de fora, um desenvolvimento que carrega mais dependência e subdesenvolvimento.

Analisando as possibilidades da aliança desenvolvimentista, é evidente que, do ponto de vista da burguesia industrial, os problemas

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são colocados em outros termos na comparação com os desafios do passado. Seus interesses estão centrados não mais na formação do parque industrial, mas na ampliação do mercado. Sabem que o mercado interno é fraco, concentrado no consumo das elites e da classe média alta. Sua expansão dependeria da melhoria salarial, inviável do ponto de vista dos capitalistas porque pressiona para baixo os lucros e enfraquece uma de suas vantagens comparativas na disputa pelo mercado mundial, eixo da preocupação patronal. Precisamente, querem o Estado cumprindo um papel na articulação da produção, não como controlador ou proprietário, mas reduzindo custos tributários, avalizando o arrocho salarial, financiando tecnologia e propaganda para a disputa do mercado mundial, colaborando na assistência e na capacitação. Esse, por sinal, tem sido já o papel atribuído às universidades pelos governos de FHC, cada vez mais encaradas como centro de excelência na oferta de conhecimentos para os investimentos capitalistas.

Para seus propósitos, é visível a consolidação de uma opção de desenvolvimento associado ao capital internacional. Não mudou tal opção mesmo diante do caráter cada vez mais rentista e parasitário do capitalismo globalizado. Adota o modelo exportador como incentivo maior do investimento interno. Ademais, setores fundamentais da indústria já estão dominados pelo capital imperialista. É o caso da indústria química, da farmácia, das montadoras, da distribuição de petróleo. O capital imperialista avançou também nos bancos, na telefonia, na empresas de energia e agora, com o voto da bancada do PT, teve legalizada sua entrada nas empresas de comunicação. Setores da indústria vinculados com a produção têxtil, calçados, moveis, alimentação são alguns ainda dominados pela burguesia nacional. Não foi à toa que daí surgiu o vice-presidente de Lula. A disposição desses setores de conquistar um mercado interno maior, contudo, não se estende para uma política de aumentos salariais. Como toda a burguesia, quer a concorrência aumentando salários sem assumir sua parte. Nem tampouco estão dispostos a incentivar qualquer tipo de mobilização social. Assim, se subordinam também ao modelo exportador como principal incentivo à produção.

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Com essa nova ideologia o PT não pode representar os interesses dos trabalhadores. Não é demais lembrar que, no atual cenário de crise mundial, a receita das corporações dominantes na economia mundial e nacional tem sido a de apertar os cintos da classe trabalhadora. Em todo o continente, o objetivo do capitalismo imperialista continua sendo reduzir as conquistas sociais e o salário mínimo marginal da região aos padrões da China. Pressionarão o governo nesse sentido. E mais: a seguir drenando os recursos do orçamento para pagamento das dívidas externa e interna, a manter o aperto flscal, planos claros de manutenção de um capitalismo dependente, atrelado aos interesses do capital financeiro.

As burguesias locais, pelo menos seus setores hegemônicos, associaram-se completamente a estes planos, incluindo também a defesa das privatizações em larga escala, num verdadeiro leilão, uma nova corrida ao ouro patrocinada pelo Estado. Não resistiram com força nem mesmo à crescente desnacionalização das economias latino-americanas. O país onde mais a fundo se levou adiante esta política de domínio do capital financeiro foi sem dúvida a Argentina. São os objetivos planejados desde o chamado Consenso de Washington, contra o qual o PT passou a década de 90 encabeçando a oposição e reivindicando a construção de uma alternativa, sustentando uma aliança com setores burgueses nacionais supostamente dispostos a desenvolver o capitalismo nacional e menos dependentes. Setores burgueses com essa determinação foram realmente marginais durante toda a década de 90, apogeu do neoliberalismo no Brasil, tanto que, ao invés de irem adotando propostas do PT, foi o PT quem se adaptou e abandonou postulados de seus programas.

Atualmente, diante do fracasso estrepitoso da Argentina, aumentaram as chances de uma política menos submissa aos interesses dos EUA e as pressões para um novo patamar de negociação do pagamento das dividas externas. A própria burguesia brasileira tem olhado o exemplo vizinho e tratado de evitar o mesmo caminho. De nossa parte, porém, não acreditamos na possibilidade de uma ruptura real e completa da burguesia

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brasileira com postulados fundamentais da política neoliberal -entre os quais o equilíbrio flscal - expressão atual da globalização capitalista - o aperto monetário, a prioridade das exportações e sobretudo o arrocho salarial, base de todos os planos capitalistas e da chamada competitividade da economia brasileira no mercado mundial.

Quais podem ser nesse contexto os desdobramentos da situação brasileira? Os prognósticos são muito difíceis. No máximo podemos apontar algumas tendências. Em dezembro de 2000, escrevemos uma resolução para o Encontro Estadual do MES abordando as perspectivas de um eventual governo petista. Ali dizíamos: "A vitória petista abriria uma nova etapa de experiência dos trabalhadores com suas direções mais reconhecidas e de construções de uma direção socialista e revolucionária. O país viveria novas e poderosas contradições. Por um lado, uma pressão enorme pela distribuição de terra e por investimentos na pequena e media agricultura. O governo petista sofreria esta pressão diretamente através do peso do MST, movimento que tem sido conseqüente na batalha pela terra. Por outro lado, haveria a pressão oposta, do latifúndio e do imperialismo, para que fosse mantido o projeto de agricultura concentrada privada e com competitividade para disputar no mercado mundial, excluindo a agricultura familiar ou apenas garantindo-lhes migalhas. Estas mesmas alternativas estão postas sobre a questão da dependência externa, neste caso com uma pressão imperialista superior e com o movimento de massas agindo menos direta e intensamente. Como estamos apenas no terreno das hipóteses, podemos dizer que o caráter reformista da direção petista nos leva a prever uma capitulação de um eventual governo do partido às pressões do capital financeiro'. (Minuta do MES " Dezembro de 2000).

A manutenção do acordo com o FMI, das metas de superávit flscal e o :t:erte com a idéia de autonomia do Banco Central vai confirmando essa hipótese. Não obstante, as pressões maiores não se fizeram sentir. Quando Lula se coloca como árbitro do pacto social, tenta assumir uma posição acima das classes, mas sua conciliação de interesses existe apenas no terreno do imaginário,

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não no terreno real, das classes sociais antagônicas, com seus interesses e suas lutas. E as pressões virão de todas as classes sociais. Se mantiver sua aliança com a burguesia não conseguirá seguir representando as classes trabalhadores. Pelo menos não por muito tempo. Ao mesmo tempo a burguesia não abandonou completamente sua desconfiança e não adota o governo como seu. Tudo isso é demasiado genérico e insuficiente, mas sinaliza para um governo de crise. Não se pode servir a dois senhores. Lula tem buscado respaldo em acordos com as grandes corporações capitalistas, com os bancos, com as forças políticas burguesas, a começar pelo PSDB, para que os capitalistas invistam no país e confiem em sua capacidade de gerir seus negócios. Seu maior crédito tem sido a defesa da desmobilização social, principal exigência dos grandes empresários e banqueiros. Esse é o real sentido da defesa do novo contrato social, alicerce da estratégia petista de reformas democráticas do Estado. Nada de rupturas, de enfrentamentos de classes, de mudanças bruscas, nem muito menos de mobilizações de massas.

O distanciamento na relação com o MST iniciado antes mesmo da campanha eleitoral foi função dessa nova orientação. A forca do MST vem precisamente de uma identidade com as mobilizações sociais das quais o núcleo dirigente petista tem evitado se associar. E agora, mais do que nunca, Lula e a direção majoritária do partido sustentam que as mudanças e as reformas devem ocorrer por meio de um pacto de toda a sociedade, do diálogo, da busca do consenso. E o desejo imediato da maioria da sociedade que quer mudanças, sentimento re:t:etido e estimulado pelo PT. Mas até quando a classe trabalhadora aguardará sem grandes lutas? Até quando aceitara seus sacrifícios?

Por isso também a manutenção da precária aliança de classes até o momento em curso esta condicionada ao desempenho da economia. Se a tendência de crise econômica persistir, a politica de pacto social defendida por Lula toma-se inviável. E essa é precisamente a dinâmica da situação. O con:t:ito distributivo tende a ser maior. As demandas por melhores salários vão esbarrar na defesa dos empresários via a in:t:ação, receita keynesiana para

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reduzir os custos da mão de obra e estimular a acumulação capitalista, ou na recessão - com a pressão do desemprego sobre os salários. Não se descarta sequer a perversa combinação de ambas, abrindo o cenário da estag:t:ação. A defesa de investimentos na saúde e na educação, por sua vez irão esbarrar num orçamento recortado pelo pagamento das dividas externa e interna e por metas de superávit draconianas. Embora uma análise mais detida do orçamento deva encontrar novas fontes de recursos, o próprio Lula tem informado que no orçamento de 2003 esta previsto apenas R$ 7 bilhões para investimentos.

Os elementos acima assinalados não inviabilizam a contenção de novos e maiores ataques aos interesses dos trabalhadores. As privatizações, marca do modelo neoliberal, tendem a ser contidas. Tal determinação é capaz de evitar milhares de demissões como as que ocorreram no Meridional e no Banespa. Com certeza, a vitória de Lula pode também evitar retrocessos tais como a perda do direito a férias, 13 salário, licença maternidade e outras alterações das leis trabalhistas que seriam claramente executadas por Serra ou Ciro Gomes. Nesse sentido, a vitória petista representa uma ruptura parcial com o modelo neoliberal. Uma estancada na ofensiva econômica generalizada do capital. Uma folga para o movimento de massas respirar, pelo menos por um tempo.

Tampouco se pode descartar como resultante do projeto petista um incremento da acumulação do capital e uma certa retomada do crescimento industrial, desdobramentos de políticas públicas indutoras do crescimento econômico, aceitas pela burguesia, sobretudo pelos setores estimulados via verbas do BNDES, fundos de pensão e demais mecanismos de poupança dos trabalhadores como o F AT e o FGTS. A partir de tal combinação, parcelas da indústria podem estar dispostas a investir mais e apoiar o governo em algumas de suas medidas. Vale lembrar que a abertura desenfreada da economia pode dar lugar a um modelo de substituição de importações em algumas cadeias produtivas.

Seja como for, uma questão é certa: a crise social não será reduzida. A contradição do novo governo petista entre sua tentativa parcial de mudar o modelo neoliberal e seus

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compromissos com a manutenção dos acordos firmados que lhe amarram e, no linúte, o inviabilizam, tende a ser um fator de crise política e incerteza no próximo período. As margens de manobra serão pequenas. Mesmo que tenhamos crescimento econônúco em um ou outro ramo da cadeia produtiva, não vemos a possibilidade de crescimento sustentado da indústria durante anos capaz de dar conta do :t:uxo crescente de jovens no mercado de trabalho. A acumulação do capital será mantida tendo como base a concentração de renda. Os acordos com o FMI seguirão impedindo os investimentos públicos necessários para preservar a qualidade de vida. A evolução econônúca, por sua vez, manterá seu caráter cíclico e as próximas crises tendem a ser piores do que as atuais, empurrando para baixo as perspectivas gerais e a situação de conjunto. Essa perspectiva é agravada pela globalização capitalista, concentradora de riqueza e de poder e pela atual estagnação da econonúa mundial, com ameaça clara de recessão, reduzindo as possibilidades de investimentos produtivos externos via América Latina, escasseando as escassas torneiras do crédito e comprimindo os mercados para as exportações brasileiras.

Ter um marco internacional é decisivo para abordar as perspectivas do Brasil. Vivemos um cenário de incerteza e instabilidade global. A crise atual dos EUA é o desdobramento da tendência decrescente das taxas de lucros. Temos uma confirmação da teoria de Marx sobre esta tendência histórica. Trata-se de uma conseqüência da substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto. A tendência de crescimento da composição orgânica do capital, no entanto, tal como também apontava Marx, é contrabalançada por outros fatores, como o aumento da taxa de exploração, o barateamento dos componentes do capital orgânico - basicamente via o avanço tecnológico - e o desenvolvimento do comércio exterior, o que neste caso explica a importância da ALCA para os EUA.

Se utilizarmos as estimativas do econonústa americano Fred Moseley que calculou a taxa de lucro do setor não financeiro numa série do período de 194 7-94 - embora não seja o período mais recente - a tendência rica visível. O ponto mais baixo verificou-se em 1980,

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quando resultou numa taxa de 10% do capital empregado. A partir dai iniciou uma recuperação que coincide com a implementação da politica dos governos republicanos, basicamente o aumento dos gastos militares, o aumento da divida publica, a redução dos impostos e dos salários reais.

No período abrangido de 1947 a 1994 houve uma clara tendência de aumento da taxa de mais valia, da exploração do trabalho não pago dos trabalhadores. Segundo Moseley, somente entre 1973 e 1997, os salários reais médios dos trabalhadores norte americanos caíram cerca de 17%. A dívida pública, por sua vez, passou de 37% do PIB em 1980 para 59% do PIB em 1999.

Estes fatores atuaram com força e prepararam um dos ciclos de crescimento mais longo do século XX (1992-2000), embora a taxa de lucro não tenha se recuperado como em 1947. Tal crescimento, entretanto, não pode ser explicado sem levar em conta o /1 efeito riqueza provocado pelo aumento da capitalização das bolsas americanas que determinaram um aumento da renda disponível pelos consumidores e, por sua vez, um crescimento do PIB" (Carlos Renner, aporte para discussão do MES). Tivemos assim um crescimento de nove anos baseado na especulação nas bolsas, no crescimento artificial dos preços das ações e no endividamento generalizado das corporações e das fanúlias norte-americanas.

Agora, há uma crise no centro do sistema, uma queda da confiança nas imensas corporações norte-americanas. A economia especulativa tinha ocultado a redução dos lucros, num movimento espiral de crescimento do capital fictício. Há algum tempo atingimos o ponto assinalado por Keynes: /1 Os especuladores podem não causar danos quando são apenas :t:uxo constante de investimentos; mas a situação torna-se séria quando o empreendimento se converte em bolhas no turbilhão especulativo. Quando o desenvolvimento do capital em um país se converte em subproduto das atividades de um cassino, o trabalho tende a ser mal feito"2. A queda das cotações das empresas nas bolsas tem sido sinal de que o trabalho esta sendo mal feito. Desde os primeiros meses de 2000, o índice Nasdaq caiu cerca de 75%, e o Standard Poor+s 500, de base mais ampla, em mais de 40%, lembrando as quedas ocorridas entre

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1929-1932, no auge da grande depressão econômica. Tal queda tende a dinúnuir o consumo doméstico, fator atualmente chave na sustentação da econonúa norte-americana.

Não temos ainda uma recessão mundial, mas este parece ser o caminho cada vez mais provável. O quanto durará, é ainda uma incógnita. Assim como tivemos um ciclo longo de crescimento fraco na economia mundial nos anos 90, podemos agora viver um ciclo longo de recessão rasteira. Pelo menos num horizonte de curto e médio prazos, nos próximos dois anos, não há sinais de crescimento importante. A dinânúca é de queda maior do investimento, da produção e do consumo. Mais desemprego e mais núséria. As denússões anunciadas e em curso de mais de 100 núl trabalhadores das empresas aéreas no mundo todo é o indicativo mais claro acerca de quem tem sido chamado para pagar a conta: os trabalhadores de todo o mundo e particularmente os dos países subdesenvolvidos.

Posto isso, vale observar os setores aliados da direção majoritária petista que chegaram ao governo de alguns países na América Latina: Argentina e Venezuela. Lula e o PT agora tratam de guardar distância das duas experiências, mas de uma forma ou outra estabeleceram vínculos com ambas. Há entre elas um grande leque de possibilidades e é provável que o PT seja uma terceira variante, claramente diferenciada. Ainda assim vale a pena tentar através do espelho distorcido das comparações ver re:t:etida de alguma forma nossas imagens futuras. Em alguns casos, como o Frepaso na Argentina, ao redor da chapa De La Rua e sobretudo de Chacho Alvarez, os aliados do PT acabaram seguindo o exemplo da socialdemocracia européia, aplicando o mesmo modelo que diziam combater. Sua base social evaporou-se em pouco tempo.

Diferentemente da experiência da chamada "centro­esquerda" argentina, a base partidária de Lula é o PT, o mais forte e dinâmico partido operário da história do Brasil, não a UCR (União Cívica Radical), o mais tradicional partido burguês do vizinho do prata. São diferenças fundamentais na base de sustentação do que será o governo Lula para o que foi o governo De La Rua. O apoio dado ao governo argentino pela CTA (Central dos Trabalhadores

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Argentinos) não compensa nem de longe a forca do PT, para não mencionar a CUT, braço sindical que em sua maioria responde à política de Lula e que atuará, pelo menos no inicio, como força de contenção tanto dos ataques da direita quanto, sobretudo, das mobilizações da classe trabalhadora. Como se fosse pouco, no Brasil o câmbio é :t:utuante e a pauta de exportação é mais diversificada, abrindo por aqui maiores margens de manobra do que teve a vizinha do sul.

Ao mesmo tempo, os compromissos com o FMI aceitos por Lula - sinal de que o fantasma De La Rua não pode ser de todo afastado, mesmo não sendo a perspectiva mais provável - foram básicos para conduzir a Argentina rumo ao colapso e ao desastre do governo da chamada centro-esquerda, cuja campanha foi apoiada por Lula e José Dirceu. Podem ser também a ruína de Lula. Afinal, base social demora para ser formada, mas pode evaporar-se muito mais rapidamente do que imaginam os aparelhos burocráticos. Assim, o x da questão é se Lula romperá com o Fundo Monetário Internacional e, se romper, quanto tempo demorará para adotar tal decisão. Se a crise econômica e social continuar, e se a politica petista, durante parte importante de seu mandato, seguir atrelada aos compromissos financeiros atuais com a banca internacional, seu desprestígio será inevitável. Pode não ser da mesma forma que De La Rua, porque a economia brasileira é mais sólida e sua base política maior, mas sua perspectiva se aproximará mais de De La Rua do que de Chávez. Talvez, na melhor hipótese, poderá seguir o trajeto de Lionel J ospin, ícone da maioria da direção petista, cujo governo socialdemocrata resultou no fracasso eleitoral dos socialistas nas eleições presidenciais seguintes, abrindo o espaço para a direita e a extrema-direita disputarem os votos dos franceses.

O exemplo venezuelano é também rico em lições. Vinculado ao aparelho militar e apoiado no peso do petróleo na economia mundial, o movimento político de Chávez adotou um curso independente da política dos EUA, expressão da resistência de setores pequeno-burgueses dos militares aos interesses de Washigton. Quando, em abril de 2001, em nome da democracia, a burocracia corrupta da PDVSA, apoiando-se na mídia e nos

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grandes empresários, desferiu sua primeira tentativa de derrubar Chávez, vale lembrar que parcelas importantes da burguesia brasileira comemoraram. A Globo, a Revista Veja, a Época, aplaudiram o golpe. Foram precipitados, obrigados a voltar atrás em seus brindes de vitória, mas desnudaram sua indisposição em aceitar o regime burguês menos subordinado aos interesses dos EUA na América Latina. Não se pode perder de vista que o giro à direita do PT, seu programa claramente burguês, não anula as contradições entre os interesses do imperialismo norte­americano e suas corporações, expresso no governo Bush e no projeto da ALCA, e os interesses do Brasil como nação, do mesmo modo que temos visto essa contradição nas relações dos EUA com nosso vizinho banhado pelas águas do Caribe. E a vitoria de Lula significará uma alteração favorável da correlação de forcas dos países latino-americanos com os EUA. Obrigará os EUA a negociar mais, aumentando a crise do império. Tudo isso justamente num período em que os EUA necessitam aumentar a exploração do continente - exigir mais privatizações, desnacionalizações, ataques sociais - ao mesmo tempo em que sua capacidade hegemônica tem diminuindo muito na América Latina, obrigando-o a utilizar mais a força bruta na defesa de seu domínio em países como a Colômbia e indiretamente na própria Venezuela.

Tal contradição pode pressionar o PT para atuar contra interesses do governo dos EUA, tanto no que diz respeito ao Plano Colômbia, quanto à ALCA, tal como Chávez fez algumas vezes, animando a mobilização anti-imperialista e a base de apoio operária e popular do governo. Se Lula enfrentar os interesses dos EUA, entretanto, não temos duvida de que enfrentará a oposição dos setores mais pesados da burguesia brasileira. Seu atual sistema de alianças desmoronaria na ala direita. Consciente disso, Lula tem calculado esse enfrentamento e parece disposto a ir apenas até onde a burguesia seja capaz de acompanhá-lo. Nem um passo a mais, nem muito menos mobilizações de massas como base de apoio. Por isso a tendência aqui parece ser de um governo mais subordinado.

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Pesando os pros e contras na força do governo na relação com a dominação imperial, é útil destacar que Chávez ascendeu ao poder pela via eleitoral porém numa torrente de protestos e lutas do movimento de massas. Lula, ao contrario, adotou o discurso do "paz e amor" com a burguesia, enquanto o movimento social apenas estava começando a retomar sua iniciativa. Soma-se o fato de que as aproximações de Lula foram com a cúpula reacionária das Forças Armadas, contra a qual não se desenvolveu nenhuma contestação vinda da média e baixa oflcialidade, enquanto na Venezuela surgiu uma camada média da oflcialidade bastante ativa contra a corrupta democracia-burguesa do regime do "Ponto Fixo" da Ação Democrática e do COPEI. São indicações das diflculdades no Brasil de uma política de enfrentamento contra as frações burguesas mais associadas ao capital financeiro, uma diflculdade agravada pela política do próprio Lula que não estimula as bases das Forças Armadas, adotando uma linha reacionária de relegitimação das forças militares. Prisioneiro de seu próprio discurso eleitoral, esta mais atado aos interesses da burguesia. Esses, no entanto, também são os que complicarão no futuro suas relações com as massas.

Em compensação, a Central dos Trabalhadores da Venezuela há anos é um aparelho burocrático a serviço da patronal, enquanto a CUT, embora muito apagada do cenário político ao longo dos últimos anos, tem um sindicalismo ligado aos trabalhadores e poderia servir para impulsionar as mobilizações sociais. Tudo indica, porém, que os planos de sua direção são justamente o oposto: querem conter as lutas. Assim, na verdade, as mobilizações por mudanças têm encontrado menos suporte, quando poderiam ter uma base de desenvolvimento superior pelo peso do movimento operário no Brasil. Se e quando Lula decidir adotar um curso de enfrentamento com o capital financeiro, em particular no caso da burguesia optar por dispensar suas funções, pode ser tarde demais.

Como vimos, as diferenças entre os processos são inúmeras. São dois caminhos claramente diferenciados. Na Argentina, a opção de total subordinação detonou uma semi-insurreição. Na opção de relativa independência adorada por Chávez a burguesia nacional encabeçou a oposição e as parcelas mais conscientes das

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classes trabalhadoras e populares assumiram a defesa do governo. É lógico, uma opção mais digna, oposta à covardia da centro­esquerda argentina. Não obstante todas as tentativas golpistas apoiadas pelos EUA, o regime se mantém e tenta assumir o controle do petróleo do país, a questão chave da independência econômica venezuelana.

Contudo, o que há de essencialmente comum entre a Argentina e a Venezuela, e entre ambos e o Brasil, é que a oposição ganhou, se apresentando com o discurso anti-neoliberal, aceitou e manteve intacto o poder social da burguesia. No caso da Argentina, o governo defendeu diretamente os interesses capitalistas e foi derrubado pela rebelião das classes trabalhadoras. No caso da Venezuela, muito embora a linha tenha sido de alianças com a classe dominante, contagiando o Movimento Político de Chávez, o MVR, com o aumento do peso de políticos oportunistas no seu interior, o governo buscou medidas de reformas e encontrou a dura oposição da burguesia, que animou, com seu poder social, o golpismo aberto, desnudando pelo menos a necessidade de quebrar seu direito de propriedade sobre os meios de comunicação de massas abertamente vinculados com as recorrentes tentativas contrarrevolucionárias.

Ambas experiências deixam evidente que não há possibilidade de nenhuma aliança com a burguesia nem sequer para avançar em direção à independência nacional. Em aliança com a burguesia, independentemente das formas políticas, do peso das forcas sociais, das relações entre as distintas frações burguesas com o movimento operário e desse com os militares, nenhum projeto anti-neoliberal, de partido ou movimento político de esquerda, populista ou de centro­esquerda rompeu com o capital financeiro. Não encontrou jamais guarida em algum setor burguês importante disposto a romper. Na Venezuela nem mesmo uma real nacionalização do petróleo tem sido aceita pela classe dominante. Nem mesmo atualmente, quando estamos em plena crise do neoliberalismo. E sem essa ruptura não ha possibilidade de superar a miséria e o subdesenvolvimento.

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Tirando essas conclusões o PT deveria aproveitar o fator mais dinâmico no quadro nacional: as expectativas de mudanças do povo, muito maiores dos que as anteriores experiências eleitorais no Brasil. O sentimento de vitória das classes trabalhadores tem sido total. Essas expectativas deveriam ser aproveitadas para a mobilização, questionando as relações de propriedade sem o que não há saída para a crise. Ou pelo menos questionando os acordos internacionais lesivos aos interesses nacionais. Não se trata de uma política da noite para o dia, mas essa deve ser a perspectiva para o qual o partido e as parcelas mais conscientes do movimento de massas deveriam se preparar. Não é esse o plano da maioria da direção do partido.

Sendo assim, veremos o governo petista simplesmente abandonando os próprios propósitos da direção majoritária quando defendeu e aprovou, no último Encontro Nacional petista, realizado em dezembro de 2001 em Recife, a necessidade da revolução democrática no Brasil. Nada mais justo do que reivindicar-lhe que a ponha em marcha. Ocorre que, como diz Vladimir Pomar, a garantia de que a revolução democrática será conseqüente é que ela seja democrática e socialista. "Dizendo de outro modo, sob o capitalismo não é possível realizar a revolução democrática de liquidar o poder econômico da burguesia dominante e criar mecanismos democráticos que impeçam sua ressurgência. Não será possível eliminar as frações burguesas do crime organizado e do narcotráfico, realizar a reforma agrária ... Será impensável elevar a população que vive abaixo da linha de pobreza a uma situação em que tenha um crescente acesso aos bens materiais e culturais que tenham uma vida digna, conformando um mercado interno de massas" .3 Esta visão é totalmente correta.

Há décadas atrás, Trotsky já definia quase nos mesmos termos a conclusao de Vladimir Pomar. O velho revolucionário russo escrevia "Com respeito aos países de desenvolvimento burguês atrasado, e em particular os coloniais e semicoloniais, a teoria da revolução permanente significa que, a resolução íntegra e efetiva de seus fins democráticos e de emancipação nacional somente pode se conceber mediante a ditadura do proletariado,

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empunhando este poder como caudilho da nação oprimida e antes de tudo de suas massas camponesas (tese 02)' Não significa que não se possa conquistar nenhum avanço, mas não será integral e completo, ainda mais quando não se vive sequer uma situação revolucionaria como é o caso do Brasil na conjuntura atual. Isso já era certo na época de Trotsky. Agora, a impossibilidade do capitalismo de resolver os problemas da revolução democrática burguesa nos países atrasados é ainda mais evidente. A experiência da Nicarágua Sandinista, mantendo o regime burguês, foi um dos tantos exemplos mostrando que o processo revolucionário necessita avançar em direção a medidas socialistas, sob pena das próprias conquistas democráticas retrocederem.

A estratégia de desenvolvimento via pactos pode no máximo beneficiar a acumulação capitalista. Simplesmente não é uma estratégia viável do ponto de vista da realização plena das reformas democráticas, econômicas e sociais que os trabalhadores e o país necessitam. Não garantirá as metas defendidas pelo programa do partido definido em Recife "a) a inclusão de 53 milhões de brasileiros, sub-cidadãos que sobrevivem em condições de extrema precariedade, sem acesso aos bens e serviços essenciais, a uma vida minimamente digna; b) a preservação do direito ao trabalho e à proteção social de milhões de assalariados, pequenos e médios produtores rurais e urbanos, inativos de baixo remuneração e jovens que buscam ingressar no mercado de trabalho; c) a universalização dos serviços e direitos sociais básicos, com a elevação progressiva da qualidade dos serviços prestados e o crescente envolvimento da população em sua gestão .. .' (Concepção e diretrizes do Programa de Governo do PT para o Brasil - Dezembro de 2002). Via pactos sociais tais metas não passarão disso, metas irrealizáveis. Tampouco é nossa opinião que o país pode ter uma verdadeira reforma agrária com o pacto entre os sem terras e os latifundiários, agora chamados por Lula de produtores rurais. Como sempre disse o MST, "o latifúndio quer guerra, nós queremos terra". E isso não deixará de ser assim, de tal forma que o lema "Ocupar, resistir, produzir" seguirá sendo uma necessidade do movimento.

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Felizmente, nesse caso, compartimos a mesma posição dos líderes do MST.

Persistir na aliança com a burguesia, desta forma, apenas conduzira o PT, mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor intensidade, a enfrentar sua própria base social. A votar seus créditos de guerra contra os interesses dos trabalhadores. Exigirá, além de administrar os con:t:itos das distintas frações burguesas, convencer os trabalhadores a aceitarem uma posição subordinada, conformada apenas, na melhor das hipóteses, com a realização parcial de algumas de suas demandas mais modestas. É nossa obrigação dizer a verdade. Ninguém tem bola de cristal, mas dirigir é prever. Começaremos a viver o paradoxo de um governo de caráter burguês encabeçado pelo líder do maior partido das classes trabalhadoras da historia do país. É preciso estudar se a melhor definição é de um governo de Frente Popular, de unidade das organizações operarias e burgueses, ou a mais simples e direta de governo operário-liberal, conceito utilizado pela III Internacional dirigida por Lênin.

Seja como for, trata-se de um governo de coalizão dos líderes operários reformistas com a burguesia, incapaz sequer de reformas profundas num Estado em que a maioria das instituições esta formada para manter a dominação burguesa. Por quanto tempo a classe trabalhadora será contida? Disso talvez dependa o futuro do PT como novo gerente político dos negócios capitalistas.

Essa definição de classe do governo, repetimos, não anula as contradições. Explicando seu pensamento sobre as frentes populares em países atrasados, Trotsky assinalava: "Corretamente apreciada, a Frente Popular não tem na América Latina um caráter tão reacionário quanto na França ou na Espanha. Tem duas facetas. Pode ter um conteúdo reacionário na medida em que esteja dirigida contra os operários, pode ter um caráter progressivo na medida em que esteja dirigida contra o imperialismo" .4 Acompanhar os movimentos do governo nesses dois terrenos e precisar quando cumpre um papel progressivo ou reacionário é de vital importância para a política dos revolucionários, pautada pela luta contra o imperialismo e pela defesa dos interesses das classes trabalhadoras.

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Hoje é impossível saber quais serão os graus de conflito com o imperialismo, embora esteja totalmente claro a coalizão com a burguesia e os interesses antagônicos da burguesia e dos trabalhadores. Esse antagonismo tende a agravar-se porque a perspectiva do próximo período com a continuidade do capitalismo, independente de qual seja seu modelo conjuntural, éderegressãodascondiçõessociais. Trata-sedeumaperspectiva internacional e nacional. Podemos viver conjunturas de crescimento econômico, pontas de desenvolvimento industrial e tecnológico, avanços em ramos produtivos, mas de conjunto a miséria irá aumentar, a deterioração das condições de existência serão ainda mais graves. O abandono da saúde e da educação públicas, a violência, o desamparo, o crescimento dos subúrbios miseráveis das grandes cidades ficarão ainda mais evidentes.

Assim, as expectativas iniciais em Lula se transformarão em frustrações mais cedo ou mais tarde. Sempre quando mantenha sua atual política de coalizão. A confusão política irá aumentar. Não sabemos os ritmos nem a intensidade desse fenômeno. Estamos convencidos, contudo, que sem o desenvolvimento de uma esquerda da esquerda em nosso país, de uma esquerda socialista inserida socialmente, o retrocesso político pode se impor. Não se trata de um retrocesso inevitável. O cenário internacional tem demonstrado um curso de intensificação das mobilizações sociais, com a juventude sendo protagonista ativa. O Brasil não deixara de ser in:f:uenciado pelo movimento anti­globalização. A mudança cultural desencadeada numa vitória de Lula e a incidência dessa mudança nos corações e mentes de milhões de jovens também cobrará seu valor no futuro. A linha política de alianças com a burguesia industrial-financeira esta na contramão de classe do processo.

A trágica opção petista, caso não seja revertida, uma reversão cada vez mais improvável, trará a crise e a decadência inexorável do PT. Seus sintomas já existem, somente agora, contudo, começarão a ter visibilidade para as massas. Não dizemos com isso que o PT se debilitara de modo imediato,

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automático. Via as instituições burguesas e o poder executivo do Estado burguês sua direção majoritária tratara de manter e aumentar sua in:f:uência. Medidas pontuais em áreas sociais, amplos programas compensatórios, política internacional menos subordinada são fatores potencializadores da manutenção de uma base social. Mas em aliança com a burguesia o partido dará as costas para o futuro, para o necessário projeto socialista. Deixará ainda mais de lado a organização da luta do povo, e às vezes até entrará em choque direto e aberto com movimentos que fazem parte fundamental das mudanças estruturais que o país necessita, como é o caso do MST. Será um re:t:exo da adaptação do partido à classe dominante e à ofensiva da globalização. Esquecimento de que seu crescimento não foi por se adaptar, mas por representar e expressar as mobilizações sociais e políticas das últimas duas décadas.

Sabemos que a crise de representação politica dos trabalhadores será enorme. Parte importante do acúmulo anterior será perdido. Nesse sentido, os tempos políticos serão esticados. O conceito de esquerda será posto em questão. Relegitimar o projeto politico socialista exigira novos e maiores esforços. A construção de uma alternativa pressupõe acumulo de forcas superior para o qual os movimentos sociais devem concorrer a fim de evitar o descrédito e as frustrações pura e simplesmente. Por sua vez, o espaço aberto para os socialistas nos movimentos sociais será maior. Se impõe, contudo, um desafio muito além da mera participação e incentivo às lutas sociais. Se impõe um projeto superador do sistema de alianças defendido pelo núcleo dirigente do PT, um novo bloco de forcas políticas, novas lideranças. Mais do que nunca, portanto, é urgente apostar na juventude.

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A exigência vai além da definição de uma tática que tenha como eixo a negação política. A negação do existente, no quadro político atual, é incapaz em si mesma de traçar caminhos novos e pode tornar-se componente subjetivo da desorganização e do retrocesso. Precisa escalar os novos obstáculos levando em conta o terreno conquistado, sem perder de vista que nossos movimentos

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são de defesa do governo sempre quando o imperialismo e suas frações burguesas associadas atuarem diretamente contra suas medidas, a exemplo do que fazem hoje contra Chávez.

As lições da experiência dos revolucionários russos de 1917 tampouco pode ser perdida. Não se justifica comparar o governo de Kerensky com o governo Lula. Não há situação revolucionária no Brasil e Lula chegou ao governo pelo sufrágio universal, não pela insurreição de massas. Não há tampouco um regime político marcado pelo duplo poder entre as classes sociais nem ameaça presente de golpe contrarrevolucionário. Não se pode perder o sentido das proporções. Não obstante, na experiência russa os bolcheviques souberam defender as conquistas da revolução de fevereiro de 1917 contra a tentativa de golpe de Kornilov e ao mesmo tempo souberam adotar uma política em direção a uma nova revolução que desse o triunfo definitivo aos operários, camponeses e soldados.

No Brasil, logicamente, as tarefas imediatas não têm esse desenlace agudo. Propor o caminho da revolução social, na atual situação política, tem apenas sentido como simples propaganda. Como preparação do futuro. E atualmente tampouco essa é a propaganda principal a ser desenvolvida, porque para os revolucionários a propaganda principal deve ser ao redor das tarefas que a classe trabalhadora deve empenhar-se para realizar, concretamente, no presente. De todo modo, a experiência dos bolcheviques é útil porque sua política esteve centrada na disputa por ganhar o movimento de massas e na capacidade de desenvolver os organismos de autodeterminação da classe trabalhadora, mobilizando por reivindicações concretas: paz, pão e terra. Dessa forma, as tarefas preparatórias das lutas sociais pelas reivindicações mais sentidas dos trabalhadores assume uma importância decisiva na tática política para acumular forças. Vitórias econômicas e políticas parciais são fundamentais e a vitória de Lula abre melhores condições para esses triunfos, fortalecendo a confiança dos trabalhadores na força de sua luta e organização.

Esse é o caminho para a esquerda socialista trabalhar pelas mudanças, se credenciando para construir um polo de referência.

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Não será um caminho fácil, porém é o único existente. É certo que no PT setores do partido trabalharão nessa direção. Amanhã mais do que hoje. Para não concluir, vale destacar a lufada de ar fresco publicada na primeira edição do jornal do Bloco de Esquerda, denominação de uma trama de correntes petistas de esquerda: "Não temos mais tempo de esperar. Nós temos que construir uma polarização radical na sociedade. E começar a colocar algumas questões que estão saindo fora de moda, como, por exemplo, essa de que nós somos um partido estritamente legal. Nós acreditamos que um governo do PT, que a militância do PT, se quer reforma, não pode ficar simplesmente no nível da legalidade. Temos que acabar com aquele discurso de que nós somos eleitos para respeitar as leis. Quem é de esquerda é de esquerda porque acha que a lei é reacionária. Não pode deixar de travar um combate contra a estrutura jurídica do país. Não pode deixar de meter um pé na contraordem, empurrando a fronteira da legalidade para mais longe. Forçando a transformação. Isso só se faz com um amplo movimento de massas de contestação contra as classes dominantes". De nossa parte, estas são algumas das posições que queremos fortalecer.

Diante do que temos assinalado, é lógico que o ponto no qual um partido dos trabalhadores não pode ultrapassar, como indicava Engels, já foi atingido. O rubicão esta sendo atravessado. O símbolo da passagem pode ser encontrado, entre outros, também na recusa oficial do partido em participar do plebiscito acerca da ALCA, em setembro de 2002, embora milhares de seus militantes, felizmente, deram as costas para a posição oficial e foram ativos promotores do plebiscito anti-ALCA.

Nossa definição trabalha a idéia de que o PT, até 1989, cumpriu um papel claramente progressivo no desenvolvimento da consciência de classe dos trabalhadores. Estava na linha de frente e seus passos indicavam um norte correto, de acordo com os interesses imediatos da pessoas que vivem do trabalho, malgrado as contradições e as vacilações em muitos aspectos da elaboração e da intervenção petista. Durante a década de 90, o partido passou a cumprir um papel mais

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contraditório. Ao assumir a oposição ao neoliberalismo e as principais medidas do Plano Collor e depois do Plano Real, seguiu indicando um caminho de resistência, contribuindo de uma forma ou outra para o enfrentamento contra a ofensiva do capital e da globalização. Sua participação no plebiscito contra a dívida externa em 2000 foi um sinal, já no inicio da década atual, do seu curso durante os anos 90. Nestes anos, é claro, a adaptação do PT à ordem já estava em pleno curso, um processo com inúmeras manifestações no programa, na politica, na composição do partido, como temos visto até aqui. Já sua oposição ao neoliberalismo acoplava uma perspectiva de construção de uma nova politica econômica também capitalista. Desta concepção desdobrou-se uma oposição tímida e inconsequente ao neoliberalismo, mais parlamentar do que de rua, culminando num giro completo em direção à defesa do sistema capitalista e inclusive de muitas medidas do receituário neoliberal, tal como a adesão às metas de superávit fiscal. A quantidade se transforma em qualidade.

O saltofoidadonacampanha de 2002. Alinha do partido passou a cumprir um papel de freio no desenvolvimento da consciência dos trabalhadores. Na reta final, a campanha mesma perdeu seu caráter progressivo. A vitória esta sendo relativizada, precisamente porque tem sido alicerçada também numa consciência falsa acerca da viabilidade de mudanças profundas no Brasil por intermédio de uma politica de pactos, consciência não surgida naturalmente, mas alimentada todos os dias por uma campanha de conciliação com o imperialismo e de colaboração de classes.

O partido passou a defender os acordos com o FMI, num momento de desgaste desta instituição e de crescimento no mundo inteiro, e no Brasil, da consciência anti-imperialista. Passou a defender a aliança com partidos de direita, quando até aliados burgueses de "esquerda" como o PDT e o PSB começavam a ser desmascarados e perdiam forca no povo. Finalmente, a campanha sustentou a existência do lucro justo e a unidade do capital e do trabalho, quando cresce a desconfiança com as grandes empresas, responsáveis pela maior onda de demissões da história.

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O novo discurso do PT tem cumprido um papel reacionário, no qual seu prestígio é utilizado para empurrar a consciência dos trabalhadores para trás, não mais para avançar. Os milhões que depositam sua confiança ou pelo menos um pouco de suas esperanças no PT têm acompanhado a evolução do partido e recebem esta carga de falsa consciência. É na relação com estas parcelas do povo trabalhador e da juventude que a política do PT já esta cumprindo um papel reacionário. Apenas con:t:itos reais com a politica imperialista podem relativizar e até alterar essa definição. É logico que há outros tantos milhões de gente humilde do povo que sequer atingiram a consciência democrática da qual o PT é expressão e em grande parte responsável. Há, então, milhões de trabalhadores e de pobres com uma consciência atrasada, ignorantes, marcados pela mais profunda alienação política. Sobre esta base atuam os partidos burgueses e fisiológicos, os políticos com uma folha corrida de processos por corrupção gigantescos. É deste atraso na consciência que sobrevivem os Paulo Maluf, ACM, Jader e Fernando Collor, apenas para citar os casos mais escandalosos. Por sua vez, os compromissos com as liberdades democráticas são mantidos pelo PT, e esse fator por si só lhe confere um papel progressivo na comparação com os outros partidos com representação no Congresso Nacional, agremiações dominadas pelos interesses de distintas frações empresariais.

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A comparação com os partidos tradicionais, entretanto, não pode esconder o que tem de mais nefasto na atual prática e no novo discurso político petista: o reforço da ideologia segundo a qual não existe alternativa ao que esta aí. Sua nova linha política, ademais, pode ser útil para ganhar as eleições, mas é incapaz de organizar uma força militante de ano todo e de despertar para a atividade política milhões de brasileiros. Nesse sentido, a política do PT, e mais ainda as ações da socialdemocracia atual, parecem realizar o que escreveu Rosa Luxemburgo: "O parlamentarismo é o viveiro de todas as atuais tendências oportunistas da social democracia ocidental... fornece fundamento às ilusões do oportunismo atual, tais como a valoração exagerada das reformas sociais, a colaboração entre partidos e classes, a esperança de

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um desenvolvimento pacifico para o socialismo etc ... Com o crescimento do trabalho, o parlamentarismo se transformou na mola impulsionadora dos carreiristas políticos. Por isso que tantos ambiciosos fracassados da burguesia atuem para os estandartes dos partidos socialistas ... O objetivo é dissolver o setor de classe ativo e consciente do proletariado na massa amorfa de um eleitorado" .5

Na atuação do PT o objetivo de dissolver sua base social - calculada em milhões - seus setores ativos e conscientes, na massa amorfa dos eleitores parece mais do que evidente. A rigor, entretanto, o campo majoritário do PT diretamente abandonou até mesmo a esperança de um desenvolvimento pacífico para o socialismo. Lula tem defendido, sem rodeios, um choque de capitalismo, reivindicando o falecido tucano Mario Covas. Se postula a ser gerente do capital no Brasil, negociador do pacto social entre o capital e o trabalho. A estratégia reformista e conciliadora converte-se em trava clara para o desenvolvimento do movimento de massas, desdobramento de uma política não apenas utópica, mas reacionária, na medida em que Lula chama a confiar nas instituições da democracia burguesa, no seu Congresso Nacional, sua Justiça, suas entidades empresarias e até em suas Forças Armadas. Busca desmobilizar as classes trabalhadoras e retroceder a consciência dos setores mais avançados acerca da necessidade da luta e da ruptura com a burguesia como único caminho para mudar a vida. É um estrago e tanto para o desenvolvimento do país.

Os socialistas querem estar ligados a estes milhões de trabalhadores e jovens que têm apoiado o PT porque foi graças às suas atividades e consciências que no Brasil se conseguiu construir o maior partido de esquerda da América Latina. Buscar sua mobilização e organização independente é decisivo para o futuro. Parte razoável desta base petista atribui as mudanças da política petista a uma esperteza de Lula, sua preparação para ganhar as eleições. Não há dúvida de que estão enganados. Lula prepara seu governo buscando desativar demandas sociais e administrar a crise capitalista. De qualquer forma, trata-se de um engano que

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pode representar um progresso no dia seguinte. Se crêem que Lula pode enfrentar as chamadas elites depois de vencer, então podem pressionar nesse sentido a partir da vitória. Essa é nossa aposta.

As tarefas que a situação impõe

Parece que a vida nunca pode ficar pior e, contudo, a cada ano, o tormento se agrava para as classes trabalhadoras, para os camponeses pobres, para as camadas populares de um modo geral, para os aposentados, para a juventude, as mulheres e as crianças. São cerca de 50% das famílias vivendo com até dois salários mínimos, literalmente um salário de fome. Surtos de epidemias que poderiam ser evitadas com um mínimo de investimento público na saúde. Desemprego recorde, crônico, desesperança e mão de obra juvenil farta para o mundo das drogas e da delinqüência. Ai reside

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a explicação da violência urbana no Brasil, causadora anualmente de tantas mortes quanto as da guerra da Bósnia. O desdobramento desta situação tende a conduzir a politica da conciliação de classes aos seus limites.

Ao polemizar com os reformistas, não desconhecemos a força das suas posições no PT. Sustentamos, inclusive, que o reformismo esta consolidado de modo irreversível como característica do partido. Este fato, porém, não anula o desenvolvimento de um processo político cujos contornos apenas se esboçam: embora as posições reformistas sejam majoritárias no partido e os reformistas detenham a hegemonia nas organizações sindicais e políticas da classe trabalhadora brasileira, de tal forma que a unidade de ação com os reformistas e inclusive a frente única para enfrentar os ataques do capital sejam muitas vezes necessárias, vemos um estreitamento dos espaços para as ilusões constitucionais e uma tendência inicial de perda do peso social e político destas posições.

A perda deste espaço tem tido reflexo no inicio da crise do PT enquanto um todo, na ruptura com o partido de parcelas militantes, no desencantado de setores de massas. A base desta tendência esta no fato da estratégia reformista encontrar cada vez menores margens de execução, Nos últimos

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20 anos, as reformas realmente dignas de nota limitaram-se ao terreno político. A ditadura militar deu lugar a um regime civil, conquista fundamental da ação do movimento de massas. Votar de quatro em quatro anos ou de dois em dois anos passou a ser a prova cabal da democracia brasileira, marcada por rotineiros processos eleitorais.

No terreno econômico, contudo, as classes dominantes aplicaram contra-reformas e cada vez mais as melhorias nas condições de existência e as liberdades democráticas, isto é, mesmo o atendimento de reivindicações parciais, têm sido obtido apenas quando as mobilizações adquirem um crescente conteúdo revolucionário. Por outro lado, se a direção majoritária do PT acredita que pode realizar as reformas estruturais necessárias para o país mantendo seus acordos com a burguesia, agora terá condições de provar sua tese. Não temos essa ilusão. Em geral, o que ocorre, e a experiência da socialdemocracia tem sido exaustiva como testemunha, é o inverso: os reformistas de ontem tornam-se opositores das reformas favoráveis ao povo.

Desta forma, as ilusões democráticas, a idéia de que a via eleitoral e a utilização do Estado capitalista pode melhorar a situação do povo de modo qualitativo tende a dissipar-se. Como se fosse pouco, em toda América Latina, as classes dominantes, diante da reação maior da classe trabalhadora contra os planos de ajuste, esta atacando cada vez mais as liberdades democráticas. O discurso democrático continua. A realidade, entretanto, é cada vez mais repressiva. A situação de enfrentamento entre as classes tende a ser cada vez mais aberta, menos camu:f:ada pelas instituições democráticas do regime político. A ditadura do capital expressar­se-á com mais nitidez. No Brasil, a repressão aos movimentos populares, em particular ao MST e aos movimentos urbanos, principalmente as ocupações, vem desnudando a verdadeira natureza do Estado para o qual o regime atua na sustentação: um Estado burguês, uma ditadura do capital. Mesmo num governo petista essa pressão seguirá e onde o latifúndio não encontrar respaldo no Executivo tratará de transformar suas brigadas paramilitares em rotineiros instrumentos do regime politico.

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Nestas condições, apostar no consenso é o caminho mais curto para nossa derrota. Esta estratégia é que acomoda um partido como o PT, provoca seu aburguesando e o crescimento no seu interior de políticos de carreira. O PT do RS, sem dúvida o mais forte do pais, com uma história rica nas relações com as lutas sociais em geral, por conta do aumento da visão reformista, tem sofrido perdas, como foi o caso de José Fortunatti, político que sucumbiu à política tradicional burguesa. Agora, num eventual governo petista, o oportunismo crescerá de modo exponencial. A pressão da burguesia será aberta para que o partido atue plenamente a seu serviço.

Diante de um quadro de polarização e agudização das contradições, a defesa das liberdades democráticas será fundamental, mas isso apenas garante-se com uma política audaciosa, não depositando ilusões de que o regime democrático burguês e suas instituições sejam capazes de defender os interesses populares. Confiar na cúpula das Forças Armadas, no Congresso Nacional, nas supremas cortes de justiça para garantir a defesa das liberdades democráticas apenas nos conduz à ruina das liberdades democráticas, dos espaços de organização do movimento de massas e até das próprias instituições democráticas burguesas, incapazes de defender as liberdades do povo e a si mesmas.

Por uma estratégia revolucionária

A derrota do Estado burguês não se obtém como simples ato voluntarista. A correlação de forças até as eleições presidenciais tampouco apresentava condições para a realização prática de uma tarefa desse tipo. Entretanto, negar esta estratégia baseado no fato de que a correlação de forças não é favorável para a perspectiva imediata de sua destruição significa retomar o argumento oportunista de que o movimento é tudo e o objetivo final não é nada. Além disso, com a vitória de Lula, abre-se uma nova etapa na história do país e tal perspectiva fica posta no horizonte, ou ficaria posta caso a direção do partido rompesse com a burguesia e assumisse o desafio de lutar pelo poder dos próprios trabalhadores organizados com o objetivo de ser a classe dominante.

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Por outro lado, negar as lutas pelas reivindicações mínimas, econômicas, a defesa das liberdades democráticas e da ampliação de conquistas mesmo nos marcos do Estado burguês não passa de tolice. Isto significaria negar a necessidade de acumular forças, abandonar a luta por reformas e por reivindicações parciais. Os marxistas não negam nem uma nem a outra, apenas a integram numa batalha global por uma nova sociedade e por um Estado de novo tipo, justamente, a clariflcação da estratégia é determinante para orientar a tática e as políticas concretas capazes de acumular forças nesta direção.

Apreciando a correlação de forças, podemos e devemos defender medidas que acabem apenas reformando o Estado. Há, por sinal, lutas fundamentais para a acumulação de forças que não são sequer motivadas por bandeiras reformistas, mas resumem-se a impedir ataques e perdas de conquistas anteriores, de reformas arrancadas por lutas do passado e hoje ameaçadas. É o caso, por exemplo, da necessidade de impedir as mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho.

Os socialistas, como já expressamos, podem e devem lutar por reformas. Essa posição, aparentemente uma obviedade, já revela uma diferença substantiva com a política majoritária do partido. Precisamente, os socialistas defendem a luta e a mobilização para que as reformas sejam conquistadas, não pela via do pacto entre todos, burgueses e trabalhadores, camponeses e latifundiários, mas do acordo de todos os que vivem do trabalho, de um consenso dos de baixo contra os privilegiados que sempre ganharam e seguirão querendo ganhar, os donos do capital, os latifundiários, os bancos e as grandes corporações imperialistas.

Diante de um novo governo petista, o centro político imediato dos revolucionários será, então, exigir a ruptura dos pactos com a burguesia e a aplicação de reformas econômicas e sociais profundas, defendendo para tanto a necessidade da ruptura dos acordos do governo com o Fundo Monetário Internacional. Vale dizer, contudo, que muitas das bandeiras reformistas pelas quais se deve lutar no pais adquirem, em sua dinâmica, um conteúdo revolucionário. A luta pela reforma agrária é, como o próprio

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nome diz, uma luta por reforma. A luta contra a divida externa também não é uma luta diretamente socialista. Menos ainda a luta por melhores salários. A revolução russa foi feita sob o lema pão, paz e terra. Nada mais revolucionário na Rússia de 1917 do que lutar por estas três singelas reivindicações que a burguesia não podia atender.

Assim, como as bandeiras de pão, paz e terra adquiriram um caráter revolucionário na Russia, muitas, talvez todas as mais importantes reivindicações da classe trabalhadora brasileira tenham este caráter. Será possível no capitalismo não pagar a divida externa e transferir estes recursos para um plano pesado de obras públicas contra o desemprego? Ou reduzir a jornada de trabalho sem redução dos salários nem :t:exibilização? Será possível realizar estas reformas diante dos limites da institucionalidade burguesa? Será possível realizá-las sem romper com a burguesia e o imperialismo? Em nossa opinião, não. Algumas destas bandeiras, em outras etapas históricas, foram realizadas pela burguesia, como nos EUA, onde a revolução pela independência decretou o não pagamento da divida com o império Inglês. Hoje, porém, só podem ser realizadas pela classe operaria, junto com o campesinato pobre e médio, com a pequena burguesia empobrecida, com os setores populares num intenso processo de mobilização de massas.

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Os revolucionários, então, devem se engajar e assumir uma posição de destaque nas lutas por reformas, porque são motivadoras das mobilizações das classes trabalhadoras. E a mobilização é uma estratégia permanente dos revolucionários, estratégicaporváriosmotivos:primeiro,porqueénasmobilizações que encontramos o terreno privilegiado para os trabalhadores defenderem seus interesses e fazerem a experiência com as suas direções, perceberem se elas são ativas ou imobilistas, traidoras ou consequentes; segundo, é ai que surgem novas lideranças, que se temperam os dirigentes.

O mais importante, contudo é que seguramente a mobilização é o único método realmente eficaz para se conquistar, por menores que sejam, melhorias econômicas e/ou políticas para a classe

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trabalhadora, fortalecendo a confiança da classe em si mesma. Somente quando a maioria da classe trabalhadora ou uma parcela muito significativa, contando com a neutralidade de outra parte, aderir à compreensão de que seu destino está em suas mãos, que cabe a ela mudá-lo através da mobilização, é que a revolução socialista será possível.

Medidas econômicas e democráticas radicais colaboram no acúmulo de forças

Por tudo isso é preciso um programa para mobilizar. Alguns pontos nos parecem fundamentais: a) O combate ao desemprego, com a redução constitucional da jornada de trabalho para 40 horas, um dos pontos mais importantes do programa da campanha Lula. Sua aplicação deve ser cobrada. Com esta medida, mais trabalhadores poderão conseguir trabalho. Nas empresas privadas, é urgente também desencadear o movimento para que as horas de trabalho sejam reduzidas, sem redução dos salários, assim como combater a imposição ilegal de horas extras; b) Também contra o desemprego, vale a mobilização pela promoção de frentes de trabalho, igualmente parte do programa de Lula, além da defesa de uma política de obras públicas, em particular na construção de moradias populares; c) Lutar por um salário mínimo digno é outro desafio mobilizador. Há fontes para aumentar o salário. Se o governo não adota metas de superávit flscal tão elevado, pode­se obter os recursos para garantir um salário mínimo decente. Seu valor real deve pelo menos dobrar, não nos quatro anos de governo Lula, mas o quanto antes; d) O funcionalismo público está há anos com seus salários arrochados. Os federais nada receberam durante o governo FHC e para os estaduais os reajustes foram completamente insuficientes. Defender a valorização proflssional dos trabalhadores nos serviços públicos significa defender reajustes decentes, garantia de um serviço de qualidade para o povo; e) Defender a dignidade dos aposentados, lutando contra a desvinculação das aposentadorias e pensões do salário mínimo; f) defesa da reforma agrária e do MST, bem como de uma política

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de crédito para a pequena agricultura e a agricultura familiar; g) Investimentos pesados na saúde e na educação; h) Ruptura do acordo com o FMI e das negociações da ALCA, desenvolvendo uma audaz política de integração latino-americana.

Todas essas bandeiras são apenas ilustrativas de uma política de mobilização. Outras bandeiras estão na esteira das citadas, como o controle operário da contabilidade das grandes corporações empresariais, o controle do câmbio, a estatização do sistema financeiro, etc. O movimento organizado dos trabalhadores é capaz de formular um programa muito mais concreto para tomar as ruas. Tais lutas, flnalmente, não podem confiar na solidez das chamadas liberdades democráticas do atual regime político. A confiança nesse regime significa não entender que as conquistas democráticas ainda não foram ameaçadas por dois fatores: em primeiro lugar, pela consciência democrática de milhões de trabalhadores e setores médios, expressos na própria força do PT; o segundo fator, não podemos esquecê-lo, se explica também porque a ordem burguesa não esteve ameaçada em nenhum destes quase 20 anos de regime democrático burguês brasileiro.

Dessa prudência dos opressores surgem as ilusões democráticas de que o país pode mudar sem confrontos, sem enfrentamentos, que a renda pode ser realmente distribuída pacificamente, sem enfrentar a inevitável violência dos opressores. A direção majoritária do PT tem sido uma das maiores propagadoras dessas ilusões constitucionais.

No governo do PT não se pode aceitar a ausência de maioria parlamentar como desculpa para a não realização de mudanças favoráveis ao povo. Uma Assembléia Nacional Constituinte logo após uma vitória eleitoral petista poderia dar a Lula a maioria parlamentar. Ademais, a Constituinte pode representar um passo adiante caso abra um processo de democratização semelhante ao ocorrido na Venezuela, com a instalação da Câmara Única, com a extinção do Senado e a defesa das estatais. Neste contexto, os setores socialistas poderiam defender seu programa e outras bandeiras democráticas, sugerindo, entre

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outros temas, a revogabilidade dos mandatos, a reforma no Judiciário, estabelecendo mecanismos de controle externo como a eleição direta das principais instituições do Poder Judiciário. Todas estas questões envolvem debates para os quais todos devem estar muito abertos.

Outro desafio pode ser a idéia do Orçamento Participativo nacional tal como foi apresentada pelo companheiro Raul Pont, ex-prefeito de Porto Alegre e integrante do Diretório Nacional do PT. Raul tem defendido, diante do novo governo, a adoção do Orçamento Participativo em todo o país. Tem sustentado corretamente que, na medida do possível, isto é, da capacidade de mobilização do movimento de massas, a politica de esvaziar o Congresso Nacional desta atribuição. Nunca é demais lembrar que neste Congresso o Orçamento Nacional foi dominado pela turma dos anãos de Collor em 1990-92.

Um Orçamento Participativo nacional teria que decidir sobre o que fazer com a dívida externa, entre outros temas, sob pena de ser uma mera peça decorativa. Não pode, portanto, ser como nos municípios e estados em que a dívida externa nem tampouco a dívida pública interna podem ser questionadas na prática, reduzindo assim a discussão do Orçamento Participativo a uma alocação mais democrática dos parcos recursos disponíveis depois da farra consumada pelo capital financeiro. Raul Pont, ao apresentar sua proposta, infelizmente não estabeleceu esta necessidade de mudança na natureza do Orçamento Participativo, não apontando as enormes limitações de seu conteúdo atualmente existente, apresentando erradamente o orçamento retaliado e mutilado pelo modelo neoliberal como peça estratégia da disputa por outro Estado.

Estas diferenças com Raul Pont não anulam um fato: nosso apoio à idéia de um Orçamento Participativo nacional e a necessidade que este projeto expresse uma luta política total, como qualquer real mudança que o Brasil necessita, contra o atual Congresso Nacional e o atual sistema jurídico e policial que sustenta o monopólio econômico burguês. É preciso, portanto, uma real vontade política de enfrentar a institucionalidade burguesa.

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Com esta determinação, na perspectiva de luta por um governo dos trabalhadores e combinando as medidas democráticas com muitas das propostas apresentadas pelo partido em 1987 e até em 1989, é possível construir um programa com capacidade de ganhar a consciência de amplas massas e de mudar o Brasil.

Notas:

1 Obras escolhidas - Walter Benjamin - pág. 227 " editora Brasiliense

2 Teoria Geral... - Keynes - Coleção dos Economistas - página 116 - Editora Abril

3 Um mundo a ganhar - Vladimir Pomar - Viramundo

4 Escritos Latino americanos - Pág. 125 - Edição dos Centros de Estudos e Compilação León Trotsky - Buenos Aires

5 citado por Mészáros - página 857 " Para Além do Capital - Editorial Boi tempo

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Para não concluir

Quando Marx escreveu o Manifesto Comunista, em 1848, traçou o cenário de abertura com uma imagem da época: um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo. Assim, com humor, mostrava como o comunismo já se afirmava como força reconhecida em todo o velho continente. As décadas seguintes confirmariam esta força e nada na história dos últimos 150 anos pode ser explicado sem levar em conta o movimento do qual Marx foi a expressão individual mais profunda e genial.

Desde 1989, a partir da queda do muro de Berlim, o movimento comunista, ao invés de espectro ameaçador, tem sido apresentado como fora de época, e anunciado, na esteira da chamada morte do socialismo, como um cadáver que deve ser para todo o sempre enterrado e de preferência esquecido. Este foi o discurso da ideologia dominante burguesa e neoliberal, com a tese do fim da história. Foram os anos em que as privatizações tiveram o apoio das classes trabalhadoras e do povo pobre, em que foi proclamado o domínio definitivo do mercado, do capital e do lucro como motivador único e inevitável da produção material.

A década de 90 conviveu com esta ofensiva ideológica do capital combinada com a aceleração da globalização econômica; a financeira em primeiro lugar, iniciada desde o começo dos anos 80, trazendo consequências para as economias nacionais, limitando-lhes a capacidade de desenvolver uma política independente, autárquica, um dos fatores, agregado ao caráter parasitário da burocracia, para a ruína dos Estados do Leste e da ex-URSS.

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Esta ideologia neoliberal foi a grande moda do pós 1989, com todos seus ares de realismo. Sua base, sem dúvida, foi o fato do modo de produção capitalista ter expandido suas fronteiras, voltando a ser dominante nas relações sociais de toda a Alemanha, e, logo em seguida, de todo o Leste e da própria ex-URSS.

A falsa consciência se impôs

A evolução da consciência das grandes massas humanas não se dá através de textos de polêmicas, de teses, de propaganda pura. As multidões aprendem pela própria experiência. Na cabeça de centenas de milhões de seres humanos do mundo todo, a identidade entre o socialismo e os Estados burocráticos do Leste e da ex-URSS era tamanha que não se pode deixar de considerar esta identificação como um elemento objetivo da situação mundial e da etapa aberta em 1989. Neste caso, a consciência desses milhões, nos países capitalistas, se objetivou na limitação de suas expectativas em novos horizontes no futuro, numa redução no campo dos possíveis que, no espaço imediato, empurrou os socialistas para uma posição de isolamento no terreno ideológico.

O fato é que o fio de continuidade histórico com o movimento socialista do inicio do século XX foi totalmente cortado nos países do então chamado socialismo real. Os campos de concentração, as clínicas psiquiátricas, a repressão aos opositores e a riqueza de uma casta burocrática corrupta e inepta apagou da consciência social a memória da heróica jornada revolucionária do Outubro russo de 1917. No Ocidente, os que defendiam o projeto socialista, a partir de 1989 foram apresentados como defensores de ideias arrasadas, enterradas pela experiência histórica, promotora no máximo de ditaduras totalitárias, não de sociedades livres, abertas, autodeterminadas democraticamente.

Esse foi o resultado mais visível da experiência com os regimes burocráticos, com a linha política do aparelho stalinista, com sua teoria do socialismo em um só país. O cadáver do socialismo real foi apresentado como a prova da inviabilidade

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de qualquer projeto alternativo para a humanidade, como se o mercado capitalista fosse eterno e as leis econômicas capitalistas naturais, numa nova expressão do fetichismo da mercadoria tão brilhantemente descrito por Marx em "O Capital".

Uma nova situação mundial

A direção majoritária do Partido dos Trabalhadores também abandonou qualquer perspectiva socialista utilizando como argumento o fracasso das experiências chamadas socialistas do Leste e da ex-URSS. Também reproduziram a falsa identidade entre o socialismo e o stalinismo. Enganam-se, entretanto, aqueles que se movem apenas no terreno das aparências, com o método empírico e do fato dado. A realidade nunca apresenta todas as suas determinações no imediato. Hegel chegou a dizer que "o imediato é somente o irreal". O movimento que constitui a realidade é uma passagem que contém em parte o imediato, o simples, mas contém a mediação; a passagem se desenvolve em muitas etapas e sua expressão no pensamento necessita o desenvolvimento das determinações dos processos reais.

Se fosse certo que os processos revolucionários de 1989-1991 do Leste e da ex-URSS enfraqueceram as idéias dos que defendem o socialismo, então teríamos o paradoxo das revoluções vitoriosas que enfraquecem as posições dos revolucionários. Isso pode ocorrer por algum tempo, mas não por todo um período histórico. As contradições do processo revolucionário do Leste e da ex-URSS foram reais, particularmente o retorno das relações mercantis capitalistas provocado pelo giro da própria burocracia ao capitalismo, sua opção de sobrevivência como casta privilegiada na sociedade em profunda mudança, giro possível pelas próprias ilusões dos povos destes países numa saída capitalista para suas crises societárias. E não poderiam deixar de existir contradições, característica inerente a todo o desenvolvimento.

O problema mais importante é definir o núcleo dinâmico, o que prima no desenvolvimento de determinado fenômeno histórico. As revoluções de 1989-91 foram triunfos da classe

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trabalhadora porque a conquista de liberdades democráticas e a queda do aparelho stalinista, o câncer do movimento operário, foram seus fatores mais dinâmicos. As classes trabalhadoras romperam suas amarras e o socialismo real mostrou-se em toda sua farsa. Pensar o contrário significa lamentar a queda do vergonhoso muro de Berlim. Não é o nosso caso. Com a queda do muro de Berlim se abriu um novo período de recomposição e de reagrupamento das forças sociais e políticas do movimento operário internacional. As revoluções antiburocráticas, porém, ocorreram num cenário internacional com sua correlação de forças própria, com seu campo de tendências contraditórias mundial na qual o todo subordina as partes. E, naquele momento, a totalidade concreta da situação mundial estava marcada pela ofensiva da globalização, entendida como o domínio da economia mundial por 200 corporações capitalistas apoiadas pelos Estados capitalistas dos países imperialistas, hegemonizados pelos EUA. Esta ofensiva da globalização arrastou para seu leito também os países do Leste e da ex-URSS.

Desde 1997, entretanto, com a crise dos chamados Tigres Asiáticos, estamos numa nova situação mundial. Iniciou-se a crise da globalização capitalista. As idéias socialistas não encontraram ainda as condições para relegitimar-se aos olhos de milhões de homens e mulheres que vivem do trabalho, mas a ideologia capitalista também esta sentido o chão tremer. As contradições da etapa imperialista estão mais exacerbadas, como o domínio do capital financeiro sobre a economia mundial e a maior disputa entre os países imperialistas para concentrar a mais valia produzida nos países atrasados, isto é, para concentrar o excedente de trabalho produtivo e dominar os mercados desses países. Essas características foram assinaladas por Lênin no início do século XX e haviam sido contra-arrestadas nos anos do pós li Guerra Mundial com a expropriação da burguesia em 1/ 3 do globo e nos anos 50 e 60 pelas mobilizações revolucionárias pela independência nacional em vários países da África e da Ásia.

A maior expressão da crise da acumulação do sistema capitalista imperialista em sua subfase da globalização tem sido

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os elementos evidentes de esgotamento de sua política econômica atual: o neoliberalismo. Em alguns países sua aplicação integral tem levado à exaustão seus mecanismos mais relevantes de apropriação da mais valia e da riqueza nacional, em benefício das grandes corporações empresariais-financeiras. Particularmente onde as privatizações foram levadas a cabo de modo generalizado. As promessas dessa política econômica da globalização imperialista já não iludem como na década de 90, alterando o padrão da disputa política de continentes inteiros, como é o caso da América Latina, onde cresce a resistência de massas, a crise e o descrédito dos partidos políticos da burguesia e seus regimes políticos, manifestações objetivas da redução do espaço social para o receituário do Consenso de Washington.

A crise econômica na base das diflculdades da hegemonia capitalista

Lester Thurow assinalava que para a compreensão de nosso mundo econômico é útil tomar emprestado da geologia o conceito de placas tectônicas. Os terremotos e vulcões visíveis são causados pelos movimentos invisíveis das placas continentais que :t:utuam sobre o núcleo fundido da terra. Thurow segue dizendo que a crise econômica do México de 1994, a ante sala da crise de 1997, foi tão inesperada e violenta quanto qualquer explosão vulcânica, acrescentando ainda que os downsizing nas corporações abalam as fundações humanas - as expectativas a respeito de seus futuros econômicos-tão profundamente quanto qualquer terremoto. Apenas ressaltamos que nem as mudanças sociais nem as geológicas são sempre tão inesperadas. A irrupção dos vulcões pode ser prevista. Os processos revolucionários também. A geologia é a ciência que possibilita acertos em relação aos primeiros. O marxismo em relação aos segundos. O colapso mexicano de 1994, por exemplo, foi a conseqüência clara de um país se endividando para pagar sua própria dívida, com déficit nas transações correntes que não poderia ser bancado sem a constante entrada de dólares no mercado mexicano. A crise ocorrida

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em dezembro de 1994 estava anunciada há quase um ano, em janeiro de 1994, quando as comunidades zapatistas protagonizaram a insurreição no sul do México. Tal irrupção do movimento indígena­camponês, combinada com a elevação dos juros nos EUA, foi o sinal para a fuga de capitais então operada no pais.

A bancarrota argentina de 2001 estava anunciada pela manutenção do câmbio fixo até os limites insuportáveis para a sociedade. Uma economia inteira voltada para pagar os juros e os serviços da dívida externa. A lógica do plano exigia a redução brusca dos salários nominais. Seu limite foi atingido e detonou uma ofensiva revolucionária do movimento de massas cuja força derrubou cinco presidentes em um mês.

Também a crise do plano econômico neoliberal no Brasil, detonada em janeiro de 1999, era previsível diante da inevitável reversão dos :t:uxos financeiros e dos investimentos para América Latina, depois da farra das privatizações no continente, em particular na Argentina, da crise dos Tigres Asiáticos de 1997 e da Rússia, em agosto de 1988. No caso brasileiro, os aportes de mais de 40 bilhões de dólares do FMI evitaram a eclosão da crise antes das eleições presidenciais de 1998, permitindo a reeleição segura de FHC. O Brasil segue prioritário na agenda do Departamento de Estado norte-americano. Por isso, para evitar a bancarrota e a incapacidade do pais de pagar a divida externa, o FMI aportou mais 30 bilhões de dólares, mantendo a economia viciada na dependência externa crônica. As dificuldades de rolagem dos títulos públicos, num país em que a dívida interna liquida é superior a 60% do PIB, seguirá sendo um fator de tensões, e os novos aportes do Fundo Monetário Internacional exigirão sacrifícios cada vez maiores.

Esta é a logica inexorável da economia a serviço do capital. Ainda mais agora, quando temos um verdadeiro terremoto nas bases econômicas e sociais do sistema capitalista em plena gestação. O tecido social tem sido tencionado. O debilitamento maior do emprego local nas indústrias, nos serviços públicos, aumentando a legião de desempregados, a liquidação de setores da classe média e de pequenos negócios, a flnanceirização da economia estreitam mais e mais as bases sociais de apoio ao sistema e politizam a oposição ao Estado.

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Evidentemente, a nova situação carrega muito da anterior. O neoliberalismo, embora com muito menos base social, segue como a política econômica do capitalismo globalizado. Pelo menos segue adotado em seus aspectos fundamentais como receita para os países dependentes. Sua aplicação durante as últimas duas décadas trouxe transtornos sociais pesados, particularmente no que diz respeito à desestruturação do movimento operário, a diminuição de seu peso relativo em países fundamentais de nosso continente. Vimos se enfraquecer o movimento fabril argentino, os heróicos mineiros bolivianos e a combativa categoria dos bancários no Brasil, diflculdades objetivas na construção das condições para uma ofensiva do movimento de massas.

Por outro lado, nunca como agora, o modelo econômico neoliberal foi tão questionado em nosso continente. Ao mesmo tempo, o enfraquecimento estrutural do movimento operário fabril na América Latina começa a ser compensado pela generalização e intensificação do descontentamento de massas populares: uma onda de mobilizações que vai da Venezuela, com golpes e contragolpes, passando pelo Peru, com a crescente oposição a Toledo, atingindo a Bolívia, com o ascenso do movimento camponês e cocaleiro, cujo candidato a presidência da República obteve mais de 20% dos votos nas eleições de julho, e chegando até a Argentina, o epicentro da crise latino-americana.

A falência completa da Argentina acende um sinal vermelho em toda a América Latina sem que as burguesias nacionais tenham um modelo capitalista alternativo para substituir o promovido pelo Fundo Monetário Internacional. Começam a se dar conta, entretanto, de que se hoje foi no sul do Cone Sul, amanhã pode ser em qualquer outro país, como de fato começa a sinalizar a situação do Uruguai, com seu sistema financeiro em quebra, contágio direto do colapso argentino.

No Brasil, as ações do movimento dos trabalhadores e das camadas populares estão ainda distantes da força adquirida em países vizinhos como Venezuela e mesmo as da Argentina, embora esse último país siga marcado pela ausência de uma alternativa de esquerda e socialista com in:t:uência de massas. Em ambos

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os países, o Estado burguês esta enfraquecido e há uma forte consciência anticapitalista em centenas de milhares de pessoas. São milhões que quando se mobilizam têm clara consciência de quem são os inimigos e da importância da unidade das lutas da América Latina. No caso brasileiro, também conspira contra a mobilização de massas a maior capacidade política e preventiva da classe dominante, célebre em negociações - em mudanças que nada mudam " e cujas medidas concretas para diflcultar os processos de transformação revolucionária incluíram no passado a construção da capital atual do país, a cidade de Brasília, distante das maiores concentrações populacionais do país, com suas avenidas largas e seus espaços públicos gigantescos, onde a reunião de 100 mil pessoas parece extremamente modesta. E, como vimos ao longo desse trabalho, o governo do PT também resolveu assumir com toda forca a política da concertação, do pacto social, da desmobilização social, embora jure de pés juntos que não é essa sua intenção. A evolução do Brasil não negará, porém, a lei do desenvolvimento desigual e combinado com o conjunto do continente.

Nada disso significa que teremos um processo acelerado. O próprio governo do PT atuará noutra direção. Os ritmos são imprevisíveis, mas a dinâmica indica a redução da contradição entre a situação objetiva e a consciência social. No terreno intencional, os mais destacados progressos estão localizados em países como a Venezuela, a Itália, onde realizou-se a greve geral mais poderosa desde o pós II Grande Guerra, e a França, onde a esquerda socialista esta crescendo. Do ponto de vista da construção de uma alternativa socialista e revolucionária dos trabalhadores estamos muito longe do que representou a experiência dos grandes partidos operários de massa da II Internacional nos primeiros vinte anos do século passado e mais ainda da força e organização militante revolucionária representada pela III Internacional, imediatamente depois da revolução russa de 1917. Nesse sentido, os estragos provocados pelo stalinismo foram muito superiores aos piores prognósticos. Não há uma relegitimação das idéias socialistas no movimento de massas.

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De qualquer forma, com o decorrer dos anos, embora siga viva, a identificação entre socialismo e stalinismo tem perdido peso. O projeto socialista deve ser afirmado em tempos de incerteza, mas a generalização das relações mercantis, essência da globalização, temincrementadoasbasesobjetivasdeumnovointernacionalismo. Não mais o falso internacionalismo do aparelho stalinista, cujos PCs eram apenas satélites de reprodução em escala mundial dos interesses burocráticos do Kremlin. A insurreição indígena de Chiapas e seus chamados de reunião internacional foram os primeiros sintomas. As reuniões do Fórum Social Mundial são suas expressões mais visíveis na superestrutura, assim como as mobilizações de Seattle, Genova, Barcelona, Quebec, entre outras, são sua cara mais combativa.

Tampouco podemos esperar uma evolução linear e mecânica em direção à revolução socialista. Sua assimetria com a revolução burguesa neste caso é evidente. Durante as revoluções burguesas, a superação das contradições era mais direta porque a burguesia antes de conquistar o poder político já detinha a força econômica e ideológica crescentes, nas manufaturas, no comércio, nas escolas. O resultado político dessa evolução econômica e ideológica se impunha quase como que por força própria, porque o Estado absolutista, as monarquias feudais estavam em oposição aberta ao desenvolvimento da economia e à classe que já passava a ser dominante nesse terreno. Tratava-se de resolver a contradição entre o peso econômico e social do chamado Terceiro Estado com sua nulidade política.

No caso da revolução proletária, dos trabalhadores assalariados, é lógico que a situação é distinta, porque nem ideológica, nem economicamente os trabalhadores são a classe hegemónica no seio da sociedade burguesa. É preciso a autoconsciência proletária das tarefas políticas e sociais. Seu desenvolvimento relaciona-se com a atividade pratica do movimento dos trabalhadores, com a experiência adquirida nas lutas, com as organizações surgidas no calor das batalhas.

Para as mudanças estruturais na sociedade atual, portanto, a vontade humana consciente adquire um valor determinante.

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E o desenvolvimento das idéias e da consciência das massas não têm correspondência automática nem garantida com a situação objetiva. Adorno, um filósofo alemão da chamada escola de Frankfurt, chegava a afirmar que Marx foi excessivamente otimista e que na realidade eram as relações de produção que dominavam as forças produtivas. Tinha uma base certa, na medida em que as idéias conservadoras dos trabalhadores, as vezes, representam uma força material para manter a primazia das relações de produção. Os instintos e hábitos engendrados durante séculos por uma determinada situação, a idéia de que a classe explorada é fraca, tão difundida por uma determinada classe social dominante, se mantém muitas vezes até depois que as bases materiais da dominação de determinada classe tenham deixado de ser não apenas um fator de progresso, mas diretamente derrotadas.

As idéias de Adorno revelaram também a relação da alienação e da indústria cultural, antecipando as profundas repercussões manipuladoras da mídia, sua capacidade de reproduzir as relações sociais, de enfocar as questões de um ponto de vista que fortaleça o comodismo, o individualismo, o senso comum de que nada pode ser alterado. E uma tentativa permanente, em parte bem sucedida, de transformar o mundo da TV no mundo real, de fazer com que exista apenas o que aparece na mídia. Soma-se a isso os avanços tecnológicos que provocam a exclusão social em larga escala e a terceirização, com seu potencial de desorganização dos trabalhadores, e percebe-se os obstáculos no caminho da consciência de classe.

Não cremos, porém, que estes elementos reais, tanto o poder da mídia quanto os efeitos da concorrência entre os trabalhadores, sejam predominantes na dinâmica da evolução social. A própria televisão, o mais poderoso instrumento ideológico de reprodução da ordem, contraditoriamente, aproxima as experiências sociais ao mostrar fatos e acontecimentos, mesmo com seu enfoque reiflcador, manipulador.

Até a metade do século XX, por exemplo, as noticias de grandes movimentos de massas, ou dos horrores cometidos contra os povos não apareciam nem se espalhavam com rapidez. Hoje,

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em tempo real, temos a força das imagens, como as lutas do povo venezuelano para derrotar o golpe de abril de 2002 - flnalmente fracassado contra Chávez - e as mobilizações dos argentinos de dezembro do ano anterior. Imagens e sons que conscientizam e animam a contestação anti-sistema. As atrocidades do Estado de Israel na Palestina também são registradas, como foram as de Milosevic na Bósnia e depois em Kosovo. O feitiço acaba virando contra o feiticeiro. O movimento antiglobalização tem sabido aproveitar-se das revoluções constantes nos meios de comunicação, organizando-se com o auxilio da Internet e colocando suas imagens em todo o globo. Isso também tem contribuído para o desenvolvimento do internacionalismo.

O próprio Adorno, quando falava no domínio das relações de produção sobre as forças produtivas, re:t:etia que a classe trabalhadora estava num momento "usufruindo" de uma existência reformista num capitalismo que lhe garantia melhores níveis de consumo e de renda. Seu pessimismo era também produto de uma época determinada que tinha visto o triunfo do domínio nazista e da estabilidade capitalista. Agora o espaço para o reformismo começa a diminuir. Entramos num período de revolta das forças produtivas com as relações de produção, quando partes das próprias forças produtivas se transformam em seu contrário, em forças dissipadoras e destrutivas. Em todos os quatro cantos do planeta há claros ataques as conquistas sociais do movimento operário, a cada dia fica mais visível, um aumento absoluto da miséria das massas por um lado, e a riqueza e a opulência de uma minoria, por outro.

Neste quadro, as opções políticas reformistas, tanto as variantes stalinistas quanto as próximas à socialdemocracia, encontram um espaço mais reduzido para suas manobras. Estão mais debilitadas estruturalmente.

Os trabalhadores são postos ante o desafio de construir uma alternativa política, de aproveitar esta crise, não esperar a próxima, inevitável e mais grave do que a atual.

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Um século decisivo - Retomar o internacionalismo

Como disse Michael Lowy, "não pode morrer o que nunca existiu" referindo-se ao socialismo e corretamente sustentando que as sociedades do Leste e da ex-URSS não eram socialistas, mas sociedades de transição que poderiam avançar até o socialismo ou retroceder ao capitalismo, dirigidas, sem exceção, por burocracias totalitárias com interesses opostos aos dos trabalhadores. Esta conclusão não foi acompanhada pela maior parte da chamada esquerda mundial.

A queda do muro representou uma imensa mudança mundial, mas a época das revoluções proletárias está longe de ter sido encerrada. A perspectiva, no próximo período histórico, seguirá marcada por mais guerras, crises e revoluções. Nas próximas ondas revolucionárias, o capitalismo imperialista terá que atuar mais aberta e diretamente, como aliás já vem fazendo. Não poderá mais contar com um aliado tão sólido, com tantas possibilidades de in:f:uenciar o movimento operário, como foi durante anos o aparelho burocrático e contrarrevolucionário do Kremlin.

As revoluções podem seguir seu curso inconclusas, trôpegas, muitas vezes desviadas e congeladas como tem sido até aqui, mas seguramente serão mais fortes, mais decididas, porque hoje está mais evidente que todas as contradições do sistema exigem uma solução: a revolução social, caminho que iniciou no século XIX. Já o velho Marx dizia "nos sinais que assustam a burguesia, a aristocracia, os desgraçados profetas da reação, nós reconhecemos nosso velho amigo Robin Hood, nossa velha topeira, que sabe trabalhar tão bem sob a terra para aparecer bruscamente: a revolução. Revolução que será tão internacional quanto a dominação do capital".

Falando sobre as características das revoluções, Marx, no seu Dezoito Brumário ainda comparava as revoluções burguesas e as proletárias. Enquanto as revoluções burguesas avançavam de triunfo em triunfo, embora caíssem depois em profundas depressões, "as revoluções proletárias,como as do século XIX, se criticam constantemente a si mesmas, se interrompem continuamente em sua própria marcha, voltam sobre o que parecia terminado, para

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começar de novo desde o princípio, zombam impiedosamente e cruelmente das indecisões, das sua fraquezas e misérias de suas primeiras tentativas, parece que só derrubam seu adversário para que este saque da terra novas forças e volte a se levantar mais gigantesco frente a elas, retrocedam constantemente aterradas ante a vaga enormidade de seus próprios fins, até que a situação não permita que se volte atrás e as circunstâncias mesmas gritem: Hic Rhodhus, hic salta' (aqui esta a rocha, salta aqui).

Rosa Luxemburgo, ao comentar essa frase, dizia que o movimento dos trabalhadores não se fazia imediatamente socialista, mas fazia-se socialista um pouco a cada dia, corrigindo os desvios opostos, ora o anarquismo, ora o oportunismo, sustentando ainda que, nesse caso, não era a aparição do oportunismo que deveria surpreender, mas sua fraqueza, bastando que o oportunismo falasse o que tinha para falar para demonstrar que nada tinha para dizer.

Possivelmente este processo de construção de uma alternativa revolucionária das classes trabalhadoras tem sido mais tortuoso e demorado que o imaginado por Rosa e pelos líderes socialistas do início do século passado. Aos que imaginam o caminho das mudanças como uma missão impossível, lembramos apenas que a burguesia demorou cerca de 200 anos para construir seu próprio Estado, mesmo detendo a hegemonia econômica na sociedade. Tomando a revolução russa como inaugural da época das revoluções proletárias, não atingimos ainda o centenário desta época. Tomando as revoluções de 1848, quando a burguesia já deixava de ser revolucionária, contamos menos de 200 anos.

E hoje, ao contrário do que sustentam alguns ideólogos, há mais assalariados do que antes, não menos. A classe trabalhadora é mais numerosa no mundo inteiro. Há maior diversificação nos trabalhos, a exclusão social aumentou a concorrência entre os próprios trabalhadores, o que enfraquece a luta de massas, mas ao mesmo tempo as condições de classe estão mais agudas, colocando, de um lado, os interesses de um punhado de corporações capitalistas e seus aliados e, de outro, os interesses da esmagadora maioria da humanidade. Nunca, como hoje, foi mais clara a possibilidade da classe trabalhadora desmascarar o discurso burguês, a tentativa

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capitalista de apresentar sua dominação como baseada nos interesses universais.

Ao contrário, são os trabalhadores, com suas organizações, que na defesa de seus interesses particulares podem se apresentar como portadores dos interesses universais, e de fato o representam, porque a classe trabalhadora é a única classe que na luta por seus interesses luta pela supressão das próprias classes sociais. Os avanços tecnológicos, as revoluções nas comunicações e a dominação do capital financeiro, têm aumentado a concentração econômica como nunca na história, transformando a produção social numa produção madura para ser submetida ao controle social. Para este desafio, para mostrar como o funcionamento da economia pode servir à população trabalhadora, nunca ficou tão patente a necessidade de expropriação dos expropriadores e quem são eles: as 200 grandes corporações que detém, sozinhas, mais de 30% do PIB mundial.

Caso contrário, o capitalismo imperialista, em sua agonia, ameaça arrastar a humanidade para sofrimentos incalculáveis. A fome, a miséria, as guerras, o crescimento exponencial da poluição do ar, a desertificação de terras férteis, a acumulação de dejetos nucleares incontroláveis é o que nos reserva a continuidade deste sistema. Tudo isso é certo e claro como o dia ... Há, porém, outra alternativa. "Outro mundo é possível" não se resume a um lema do Fórum Social Mundial. Trata-se de uma necessidade, uma demonstração de que a experiência humana não acabou. O nosso é um tempo humano e o teste é sobre a capacidade da classe trabalhadora, a classe social progressiva da humanidade, tomar em suas mãos o seu destino e proporcionar um mundo sem guerras, sem a exploração e a opressão do homem pelo homem.

Assim, a perspectiva é alternativa e o século que entramos tem a cara de ser o decisivo acerca da velha disjuntiva: socialismo ou barbárie. O que hoje significa: triunfo da revolução socialista internacional e construção de uma sociedade dos produtores livremente associados ou a liquidação física da humanidade.

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