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95 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 32, p. 95-120, fev. 2009 Sergio B. F. Tavolaro PARA ALÉM DE UMA “CIDADANIA À BRASILEIRA”: UMA CONSIDERAÇÃO CRÍTICA DA PRODUÇÃO SOCIOLÓGICA NACIONAL 1 Recebido em 14 de dezembro de 2006. Aprovado em 3 de dezembro de 2007. I. INTRODUÇÃO Há, na literatura nacional acerca da “aventura da cidadania no Brasil”, freqüentes sugestões de que os termos da ordem normativa moderna ins- talaram-se entre nós de uma maneira um tanto quanto peculiar quando confrontados aos das cha- madas “sociedades modernas centrais”. Não se trata de dizer que as noções de direitos e deveres, universalmente definidas e ancoradas na abstrata figura do indivíduo-cidadão, sejam estranhas in toto à tessitura normativa do Brasil moderno. No A literatura nacional acerca da “aventura da cidadania no Brasil” apresenta freqüentes sugestões de que os termos da ordem normativa moderna instalaram-se entre nós de uma maneira peculiar quando confron- tados aos das chamadas “sociedades modernas centrais”. Como indício dessa “excepcionalidade”, faz-se alusão à pretensa particularidade da institucionalização de garantias e obrigações civis, políticas e soci- ais entre nós: os caminhos tomados, a seqüência histórica assumida, a abrangência e profundidade efetivas de cada uma delas, tanto quanto seus principais pilares de sustentação, seriam a prova do “desvio normativo brasileiro”. O presente artigo consistirá num esforço de revisão crítica: em primeiro lugar, farei uma consi- deração pontual e seletiva da literatura recente sobre “cidadania no Brasil” a fim de apontar dificuldades e dilemas analíticos. Em seguida, empreenderei uma problematização daquelas que julgo ser duas das principais ancoragens teóricas no pensamento social brasileiro, jogando luz sobre os elementos que influ- enciam de forma determinante interpretações a respeito da pretensa “excepcionalidade normativa” do Brasil moderno. Por fim, defenderei a necessidade de uma ênfase analítica na dimensão contingente da construção da cidadania a fim de se evitar abordagens “essencializantes” dos processos de definição de nossa ordem normativa. Para tal, farei algumas incursões historiográficas com o propósito de ilustrar a tentativa de contornar os dilemas assinalados a partir da operacionalização de duas idéias-chave: por um lado, a noção de oportunidades políticas e, por outro, a idéia conforme a qual direitos e deveres são não só categorias jurídicas mas também práticas situacionais. PALAVRAS-CHAVE: cidadania no Brasil; Sociologia Política; modernidade; essencialismo. entanto, nas mais variadas referências à institucionalização de garantias e obrigações ci- vis, políticas e sociais entre nós, abundam as ad- vertências de que o caminho tomado, a seqüência histórica assumida, a abrangência e profundidade efetivas de cada uma delas, tanto quanto seus prin- cipais pilares de sustentação, atestam uma peculi- aridade –– ou, no limite, certa “excepcionalidade”. Dessa feita, em reflexões tão díspares quanto a de Vera Telles (1994), que qualifica de “enigma brasileiro” a durabilidade no Brasil moderno de “relações sociais que se estruturam sem a media- ção dos direitos” (TELLES, 1994, p. 46), e a de Décio Saes (2001, p. 395), que se refere à “feição peculiar do processo de formação da cidadania [no Brasil]”, parece-me claramente delineada a imagem de uma espécie de “cidadania à brasileira”. Em linhas gerais, o presente artigo pretende adentrar o campo de investigação a respeito das condições de possibilidade das transformações da cidadania no Brasil, a fim de abordar criticamen- 1 Agradeço as valiosas sugestões dos pareceristas anôni- mos da Revista de Sociologia e Política, que me ajudaram não só a ajustar os objetivos inicialmente propostos como também a aprimorar o argumento do trabalho. O presente artigo é fruto do desenvolvimento do projeto de pesquisa “Embates normativos e construção da cidadania na ‘Era Vargas’ (1930-1945): para uma problematização de duas tradições sociológicas brasileiras” (FAPEMIG – Processo nº: EDT 5/07).

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Page 1: UMA CONSIDERAÇÃO CRÍTICA DA PRODUÇÃO SOCIOLÓGICA … · 2009. 6. 30. · 95 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 95-120 FEV. 2009 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba,

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 95-120 FEV. 2009

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 32, p. 95-120, fev. 2009

Sergio B. F. Tavolaro

PARA ALÉM DE UMA “CIDADANIA À BRASILEIRA”:UMA CONSIDERAÇÃO CRÍTICA DA PRODUÇÃO

SOCIOLÓGICA NACIONAL1

Recebido em 14 de dezembro de 2006.Aprovado em 3 de dezembro de 2007.

I. INTRODUÇÃO

Há, na literatura nacional acerca da “aventurada cidadania no Brasil”, freqüentes sugestões deque os termos da ordem normativa moderna ins-talaram-se entre nós de uma maneira um tantoquanto peculiar quando confrontados aos das cha-madas “sociedades modernas centrais”. Não setrata de dizer que as noções de direitos e deveres,universalmente definidas e ancoradas na abstratafigura do indivíduo-cidadão, sejam estranhas intoto à tessitura normativa do Brasil moderno. No

A literatura nacional acerca da “aventura da cidadania no Brasil” apresenta freqüentes sugestões de queos termos da ordem normativa moderna instalaram-se entre nós de uma maneira peculiar quando confron-tados aos das chamadas “sociedades modernas centrais”. Como indício dessa “excepcionalidade”, faz-sealusão à pretensa particularidade da institucionalização de garantias e obrigações civis, políticas e soci-ais entre nós: os caminhos tomados, a seqüência histórica assumida, a abrangência e profundidade efetivasde cada uma delas, tanto quanto seus principais pilares de sustentação, seriam a prova do “desvio normativobrasileiro”. O presente artigo consistirá num esforço de revisão crítica: em primeiro lugar, farei uma consi-deração pontual e seletiva da literatura recente sobre “cidadania no Brasil” a fim de apontar dificuldadese dilemas analíticos. Em seguida, empreenderei uma problematização daquelas que julgo ser duas dasprincipais ancoragens teóricas no pensamento social brasileiro, jogando luz sobre os elementos que influ-enciam de forma determinante interpretações a respeito da pretensa “excepcionalidade normativa” doBrasil moderno. Por fim, defenderei a necessidade de uma ênfase analítica na dimensão contingente daconstrução da cidadania a fim de se evitar abordagens “essencializantes” dos processos de definição denossa ordem normativa. Para tal, farei algumas incursões historiográficas com o propósito de ilustrar atentativa de contornar os dilemas assinalados a partir da operacionalização de duas idéias-chave: por umlado, a noção de oportunidades políticas e, por outro, a idéia conforme a qual direitos e deveres são não sócategorias jurídicas mas também práticas situacionais.

PALAVRAS-CHAVE: cidadania no Brasil; Sociologia Política; modernidade; essencialismo.

entanto, nas mais variadas referências àinstitucionalização de garantias e obrigações ci-vis, políticas e sociais entre nós, abundam as ad-vertências de que o caminho tomado, a seqüênciahistórica assumida, a abrangência e profundidadeefetivas de cada uma delas, tanto quanto seus prin-cipais pilares de sustentação, atestam uma peculi-aridade –– ou, no limite, certa “excepcionalidade”.Dessa feita, em reflexões tão díspares quanto ade Vera Telles (1994), que qualifica de “enigmabrasileiro” a durabilidade no Brasil moderno de“relações sociais que se estruturam sem a media-ção dos direitos” (TELLES, 1994, p. 46), e a deDécio Saes (2001, p. 395), que se refere à “feiçãopeculiar do processo de formação da cidadania [noBrasil]”, parece-me claramente delineada a imagemde uma espécie de “cidadania à brasileira”.

Em linhas gerais, o presente artigo pretendeadentrar o campo de investigação a respeito dascondições de possibilidade das transformações dacidadania no Brasil, a fim de abordar criticamen-

1 Agradeço as valiosas sugestões dos pareceristas anôni-mos da Revista de Sociologia e Política, que me ajudaramnão só a ajustar os objetivos inicialmente propostos comotambém a aprimorar o argumento do trabalho. O presenteartigo é fruto do desenvolvimento do projeto de pesquisa“Embates normativos e construção da cidadania na ‘EraVargas’ (1930-1945): para uma problematização de duastradições sociológicas brasileiras” (FAPEMIG – Processonº: EDT 5/07).

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te essa imagem de excepcionalidade que me pare-ce permear parte significativa do tratamento acercada institucionalização de direitos e deveres namoderna sociedade brasileira. Vale dizer, é notó-ria, na produção científica nacional, a centralidadeocupada por alguns dos pressupostos do esque-ma conceitual de T. H. Marshall2. Cabe desde jáum questionamento: não seria um paradoxo o fatode que, apesar de referir-se ao caso inglês, o re-trato proposto por Marshall ser comumente ado-tado como referência primordial para pensar-se apretensa especificidade normativa brasileira? Seráprecisamente esse o ponto articulador das obser-vações críticas que se seguem. A meu ver, o para-doxo é apenas e tão-somente aparente: a freqüên-cia e intensidade das alusões da bibliografia emquestão ao referido esquema deve-se, em largamedida, ao fato dele ajustar-se àquela mesma ima-gem de “excepcionalidade normativa” projetada ealimentada por uma porção importante do pensa-mento social brasileiro. Ora, se o padrão deinstitucionalização de direitos e deveres observa-do na Inglaterra (ao menos tal qual narrado porMarshall) apresenta-se-nos como “o caso clássi-co” a partir do qual outras experiências contem-porâneas podem ser mensuradas, então variaçõesdaquele retrato (sejam elas de cunho cronológicoou mesmo a subversão da célebre seqüência di-reitos civis ? políticos ? sociais sugerida porMarshall) seriam, no limite, provas cabais de“excepcionalidade normativa”.

Mas, quais seriam os “andaimes” sobre osquais se sustentam essa imagem de “peculiarida-de normativa”? Penso que há uma forte corres-

pondência entre, de um lado, parte majoritária dotratamento acerca da “aventura da cidadania noBrasil” de atribuir o rótulo de “desvio” à experiên-cia normativa brasileira e, de outro, a considerá-vel resistência de parte importante de nosso pen-samento sociológico quanto a colocar em pé deigualdade as linhas mestras da sociabilidade doBrasil contemporâneo e aquelas das chamadas“sociedades modernas centrais”. Nesse aspectoem particular, minha atenção voltar-se-á para duasabordagens do pensamento social brasileiro quelograram delimitar, como nenhuma outra, o cam-po cognitivo no interior do qual operam as maisinfluentes interpretações e diagnósticos a respeitoda modernidade no Brasil. Uma delas tende a atri-buir a tal “excepcionalidade” à posição periféricae dependente do Brasil no sistema capitalista in-ternacional. A outra tende a atrelá-la a certa he-rança patriarcal-patrimonial que remontaria aonosso período colonial3 . A meu ver, aí está o ele-mento complicador: conforme procurarei mostrar,essa correspondência faz que esforços voltados àexplicação e interpretação da construção e funci-onamento da cidadania no Brasil ganhem traços“essencializantes” na medida em que os embatese lutas em torno da ordem normativa brasileirasão forçosamente obscurecidos –– por vezes demaneira um tanto dramática –– diante de certas“variáveis independentes”. Dessa maneira, o ca-ráter propriamente sociológico da análise, que nomeu entendimento deveria ater-se primordialmenteà dimensão agonística e contingente da definiçãodas configurações de cidadania, é sub-repticiamente deixado em segundo plano. A dinâ-mica normativa brasileira é então quase que “na-turalizada”, ainda que sob uma roupagem históri-ca e social: tácita ou explicitamente, condição pe-riférica e dependente, em um caso, e herançapatriarcal-patrimonial, em outro, são catapultadasà condição de “determinantes em última instân-cia” de nossa pretensa excepcionalidade, ou seja,são apresentadas como fontes explicativas pre-ponderantes do “desvio brasileiro” em relação aospressupostos do retrato traçado por Marshall.

2 Nunca é demais lembrar que Marshall define o complexoda cidadania moderna nos seguintes termos: “O elementocivil é composto por direitos necessários à liberdade indi-vidual – liberdade da pessoa, liberdade de fala, de pensa-mento e fé, o direito de propriedade e de concluir contratosválidos, e o direito à justiça. (…) as instituições mais dire-tamente associadas aos direitos civis são as cortes de justi-ça. Por direitos políticos eu entendo o direito de participarno exercício do poder político, como um membro de umcorpo investido de autoridade política ou como eleitor demembros de tal corpo. As instituições correspondentessão o parlamento e os conselhos locais de governo. Quantoao elemento social entendo ser toda uma gama de direitos,desde um modicum de segurança e bem-estar econômicoaté o direito de compartilhar por completo a herança sociale de viver a vida de um ser civilizado conforme os padrõesprevalecentes na sociedade. As instituições mais conectadasa ele são o sistema educacional e os serviços sociais”(MARSHALL, 1992, p. 8).

3 Tratei de forma sistemática cada uma dessas abordagensem Tavolaro (2005), denominando-as de sociologia da de-pendência (onde me referi especificamente a alguns dosprincipais aspectos dos pensamentos de Caio Prado Jr.,Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando H. Cardo-so) e de sociologia da herança patriarcal-patrimonial (emque salientei algumas das importantes contribuições deGilberto Freyre, Sergio B. de Holanda, Raymundo Faoro eRoberto da Matta).

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Obviamente, recai sobre os cientistas sociaisa tarefa de investigar até que ponto essas “variá-veis independentes” conseguem dar conta não sóda grande variedade de configurações de cidada-nia que se institucionalizou em diferentes momen-tos da história brasileira4, mas também dos inú-meros projetos díspares de normatividade que seconfrontaram ao longo desses anos. Seria possí-vel, a partir das noções de “posição periférica edependente” e “herança patriarcal-patrimonial”,captar toda a plêiade de mudanças que permeia arecente história brasileira? Tais noções seriam, alémdisso, capazes de explicar a miríade de projetosde normatividade (muitos deles consideravelmen-te divergentes e irreconciliáveis), ancorados emsetores os mais variados da sociedade brasileira,que se confrontaram em torno da definição daconfiguração de direitos e deveres que, segundoesses mesmos projetos, deveria pautar a sociabi-lidade no Brasil?

É precisamente a intenção de salientar o as-pecto contingente e “situacional” da construçãoda cidadania – e, dessa feita, evitar qualquer ar-madilha “essencializante” – que me leva a explo-rar duas idéias. A primeira delas, que faz referên-cia à dimensão macro das “condições de possibi-lidade de transformações normativas”, é a noçãode oportunidades políticas. A segunda delas, asaber, a noção de luta por garantias legais comoum conjunto de práticas situacionais, pretendejogar luz sobre a dimensão micro do processo deconstrução da cidadania, em que atores sociaisdiversos constroem projetos normativos dísparese embatem-se em torno da reconfiguração da or-dem normativa. Ambas comportam elementos quepermitem uma ênfase analítica na dimensãoagonística e contingente da definição danormatividade. Conforme procurarei desenvolver,ao situar os processos de construção da cidada-nia moderna entre oportunidades políticas e prá-ticas, a sociologia política afasta-se do perigo detornar-se refém de percepções congeladas da di-nâmica do social. Minha intenção, ao cabo dessesesforços, é escapar à imagem de uma “cidadaniaà brasileira” em favor de considerações mais aten-tas a variações diacrônicas e sincrônicas (leia-se,

contextuais e “situacionais”) de configurações dedireitos e deveres na tessitura mesma do Brasilmoderno, para além de ancoragens explicativasa-temporais (uma vez mais, ainda que apresenta-das e instrumentalizadas sob roupagens históri-cas). Para tal, ao longo e ao final do artigo, fareireferências a certos eventos históricos –– ampla-mente trabalhados seja pela produçãohistoriográfica brasileira, seja pela produção nocampo de nossas ciências sociais –– que ajudama revelar o caráter situacional e agonístico de al-gumas das diversas ordenações normativas quevieram a institucionalizar-se em diferentes momen-tos da história brasileira. Centrar-me-ei, ao finaldo artigo, em duas transformações históricas es-pecíficas que, consideradas à luz das noções deoportunidades políticas e de direitos e deveres comopráticas “situacionalmente” vivenciadas, ilustramo caráter contextual e agonístico da construçãoda cidadania, a saber: as transformaçõesnormativas em torno da emergência da repúblicae, em segundo lugar, a crise do arranjo normativoda “República Velha” 5. Minha intenção é, precisa-mente, chamar atenção para os vários “discursosdissonantes” que apontavam para uma configura-ção de direitos diversa daquela que imperava soba égide das oligarquias agrárias.

Mas, antes de indicar essa alternativa analíti-ca, o presente artigo consistirá num esforço derevisão crítica: em primeiro lugar, farei uma con-sideração pontual e seletiva da literatura recentesobre “cidadania no Brasil” a fim de apontar difi-culdades e dilemas analíticos. Em seguida, em-preenderei uma problematização daquelas que jul-go ser duas das principais ancoragens teóricas nopensamento social brasileiro, jogando luz sobreos elementos que influenciam de formadeterminante interpretações a respeito da pretensa“excepcionalidade normativa brasileira”.

II. TRÊS VETORES, UM DIAGNÓSTICO: DA“EXCEPCIONALIDADE” NORMATIVA BRA-SILEIRA

Seria um equívoco assumir que a literatura ci-entífica nacional mostra-se insensível àsredefinições políticas recentes e seus impactos

4 Sobre a amplitude dessa variedade normativa, talvez sejasuficiente aludir às disparidades existentes entre, de umlado, a configuração de cidadania delineada ao longo dachamada “Era Vargas” e, de outro, as mudanças iniciadas apartir do início dos anos 1990.

5 Agradeço especialmente aos pareceristas anônimos daRevista de Sociologia e Política pela sugestão de preencheresta lacuna do artigo a fim de tornar mais palpáveis minhascríticas à produção bibliográfica nacional acerca do que cha-mei de “aventura da cidadania no Brasil”.

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sobre a cidadania. Ora, mesmo uma superficialconsideração da produção acadêmica é facilmen-te capaz de confirmar não ser este o caso6. Oponto nevrálgico, por assim dizer, parece-me serde outra ordem. Trata-se do peso que, implícitaou explicitamente, certas noções caras ao pensa-mento social brasileiro têm nas explicações e in-terpretações sobre o perfil da normatividade noBrasil moderno, como se fossem determinantesem última instância, ou ainda, o motor por exce-lência de sua dinâmica e transformação. Aproblematização dessas atribuições explicativasenseja uma série de questionamentos: seria real-mente possível identificar a existência de certoselementos e referências normativas permeandotoda a história brasileira, a despeito de algumasinegáveis redefinições? Seria essa, então, a provacabal da força determinante de certas “variáveisindependentes”, como que pré-definindo os ru-mos da sociabilidade e normatividade brasileiras?E mais: seriam as tais “variáveis” capazes de ex-plicar até mesmo as subversões normativas quecoloriram nossa história constitucional7? O quedizer dos inúmeros projetos alternativos e lutastendo em vista tais mudanças8?

Entendo que respostas para algumas dessasperguntas demandam uma avaliação crítica da pro-dução científica nacional acerca dessa problemáti-ca. Não há espaço aqui para um tratamento porme-norizado desse que se tornou um amplo e ramifica-do campo da produção brasileira. Foge, ainda, aosmeus propósitos levar a cabo uma revisão crono-lógica dessa literatura. Em vez disso, pretendo rea-lizar uma consideração seletiva e pontual a partir detrês vetores que, no meu entendimento, permeiamtal produção de maneira a proporcionar suporte àidéia-força segundo a qual a construção e dinâmicada cidadania no Brasil mostrou-se (e ainda revela-se) algo peculiar em relação às experiências daschamadas “sociedades centrais”. São eles: a) pri-meiramente, a idéia de que os processos de moder-nização no Brasil desenrolaram-se de tal forma anão se concretizar um cenário de diferenciaçãosocial plena, ou seja, Estado, mercado e sociedadecivil não chegaram a constituir esferas relativamenteautônomas capazes de operar com base em códi-gos próprios9; b) em segundo lugar, afirma-se nãoter havido um processo consistente de seculariza-ção da normatividade, razão pela qual valores ecódigos de sociabilidade tradicionais fazem valersua influência nas noções de direitos e deveres en-tre nós10; c) por fim, salienta-se a imperfeita e po-rosa separação entre âmbitos públicos e privadosno Brasil, em virtude da qual o caráter universal dacidadania moderna não consegue prevalecer11.

6 Um bom exemplo da sensibilidade da literatura para taisvariações de configuração pode ser encontrado no estudode Maria da Glória Gohn a respeito das transformações noperfil das relações sociedade civil- Estado ao longo dasdécadas de 1970, 1980 e 1990. Segundo a autora, “Nosanos 70 e até meados dos anos 80, era um tanto consensualentre os movimentos e as redes de assessorias que se deve-ria construir um contra-poder popular, uma força popularindependente do Estado. [...] Ao longo dos anos 80, com atransição democrática, os movimentos passaram a serinterlocutores privilegiados do Estado, porque este estavase democratizando e buscando também mudar sua faceaparente, de repressão” (GOHN, 1997, p. 313-314). Gohnafirma que nos anos 1990 aquele cenário viria a alterar-seuma vez mais já que o próprio Estado não mais precisavados movimentos sociais para se legitimar, ao mesmo tem-po em que os movimentos progressistas quiseram partici-par e criar um espaço democrático não-estatal.7 Que o digam os contrastantes contornos normativosfacilmente observáveis em uma breve comparação entre asconstituições de 1824 (de influência liberal e, ao mesmotempo, legitimadora de um Estado não-secular), de 1891(também de inspiração liberal mas marcadamente secular),de 1934 (que, como sabemos, combinava preceitos liberaise corporativos), e de 1937 (marcadamente corporativa eautoritária). Cf. Costa (1985), Lessa (1999) e Vianna (1978).8 Que o digam, por sua vez, as diversas lutas popularesque desde longa data habitam, com maior ou menor grau deorganização, o universo político brasileiro (PRADO Jr.,

1994). Talvez um exemplo bastante interessante seja justa-mente a luta sindical que coloriu o cenário paulista no iníciodo século XX, contrapondo projetos os mais variados denormatização das relações capital-trabalho (socialistas,anarquistas, anarco-sindicalistas, comunistas, “amarelos”,dentre outros) aos contornos liberais e não-intervencionistasdas oligarquias que dominaram a política nacional entre1891 e 1929. Além dos já clássicos Moraes (1978),Rodrigues (1966) e Simão (1981), v. também Araújo (1998)e Gomes (1979).9 Não resta a menor dúvida de que o padrão intervencionistado Estado brasileiro em um período que muitos vêem comosendo um dos marcos da modernidade no Brasil (FAUSTO,1985), a chamada “Era Vargas”, ajudou sobremaneira amoldar essa imagem de baixa diferenciação da dinâmicasocietal brasileira. Ver, a esse respeito, Carone (1977).10 O ativo papel da Igreja Católica na dinâmica políticabrasileira, ao menos desde o início dos anos 1930, éfreqüentemente resgatado como um sinal da “imperfeitasecularização” dos domínios públicos brasileiros. V.Bruneau (1982).11 Estudos clássicos como o de Victor Nunes Leal (1977)comumente sugerem a instrumentalização do aparato pú-

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Que fique bem claro: não quero dizer com issoque não tenha havido, em meio à tendência detomar como fato consumado nossa pretensaespecificidade política e normativa, empreendi-mentos auto-críticos a esse respeito nas ciênciassociais brasileiras. Ora, já no início dos anos 1980,em um balanço da então recente produção brasi-leira sobre movimentos sociais, Ruth Cardoso(1983) chamava atenção à desconsideração, poraquela bibliografia, das semelhanças existentesentre nós e os “países centrais”12. No entanto, aomesmo tempo em que balanços críticos com essatonalidade não foram a regra, a perspectiva da“excepcionalidade brasileira” foi a que tendeu aprevalecer.

Um exemplo privilegiado do primeiro vetor (arelação baixa diferenciação social Þ peculiarida-de normativa brasileira) pode ser encontrado nasreflexões de Marcelo Neves (1996). Para ele, asociedade brasileira (segundo o autor, um caso de“modernidade periférica”) contemporânea diferedas sociedades modernas centrais na medida emque “à hipercomplexificação social e à superaçãodo ‘moralismo’ fundamentador da diferenciaçãohierárquica não se seguiu a construção de siste-mas sociais que, embora interpenetráveis e mes-mo interferentes, construam-se autonomamenteno seu topos específico” (NEVES, 1996, p. 98).Por isso, de acordo com o autor, a modernização

brasileira resultou num cenário de “complexidadedesestruturada e desestruturante”: observa-se en-tre nós um processo de superação da tradição edesagregação da moral convencional que, no en-tanto, não é acompanhado da formação de âmbi-tos e sistemas de ação autônomos (incluindo aí oEstado), por um lado, e de uma “moral pós-con-vencional” (vide Habermas) característica damodernidade central, por outro. As implicaçõesnormativas dessa modernização torta não poderi-am, conforme Marcelo Neves, ser mais funestas:tendo em vista a sobreposição de esferas de soci-abilidade, torna-se impossível a constituição de umsistema jurídico resguardado de outros códigosnormativos e, dessa feita, dinamizado a partir decritérios próprios. Com isso, disparidades de po-der (tanto econômicas quanto de natureza políti-ca) fazem-se sentir de forma um tanto quantodestrutiva, gerando insegurança generalizada nasrelações de conflitos de interesse (pois que as fron-teiras entre o lícito e o ilícito apresentam-se pordemais nebulosas e generalizadas). Isso significaque o próprio Estado passa a atuar primordial-mente como “palco de realização de interessesparticularistas [...], à margem de textos constitu-cionais e legais de conteúdo democrático, cujaconcretização possibilitaria a construção da cida-dania” (NEVES, 1996, p. 101)13. Em tais circuns-tâncias, prevalece, por um lado, certo “fetichismolegal” (pois que a lei funciona como “mecanismode discriminação social”) e, por outro, as figurasdo subcidadão e do sobrecidadão14 (notoriamente

blico por lideranças políticas locais, regionais e mesmo na-cionais em vista de benefícios e projetos privados, algo quenão teria modificado-se de maneira radical nem mesmo apósas seguidas ondas de modernização atravessadas pela soci-edade brasileira (SOUZA & LAMOUNIER, 1990).12 De acordo com Cardoso (1983), ao colocar ênfase noprocesso de centralização e hiperdesenvolvimento do Es-tado brasileiro, aquela literatura fechou os olhos para umfenômeno comum às “sociedades desenvolvidas”, com con-seqüências também similares do ponto de vista do teor daslutas por direitos: tal literatura não se deu conta de que,tanto aqui como lá, o aparato político-adminidstrativo eseus planejadores tendiam a dialogar com os usuários econsumidores de serviços estatais, a despeito do sistemapolítico autoritário vigente no Brasil. Cabe lembrar queRuth Cardoso voltaria a realizar reflexões dessa naturezaem Cardoso (1987) e Cardoso (1994). Uma extensa e cui-dadosa auto-crítica realizada na década de 1990, igualmen-te voltada para a produção científica sobre movimentossociais, pode ser encontrada em Gohn (1997), especial-mente o capítulo 8 (“Movimentos sociais no Brasil na erada participação: 1978-1989”). Para uma revisão do pontode vista da produção sobre sociedade civil, ver Lavalle(2003).

13 Trata-se, conforme salientou Sérgio Costa, de um argu-mento bastante recorrente na literatura científico-socialbrasileira: “Afirma-se que, historicamente, ‘tanto os seto-res empresariais como os trabalhadores urbanos definiram-se como atores políticos pela via do Estado’. É como se aseparação das esferas da economia, da sociedade civil e dasociedade política não houvesse sido plenamente comple-tada” (COSTA, 1994, p. 50). Tal argumento, em cujo nú-cleo encontra-se a idéia segundo a qual a forte presença doEstado em todos os âmbitos da sociedade brasileira tolheuquase que completamente a construção de espaços públi-cos autônomos, acha-se difuso em uma ampla gamatemática. Ver, por exemplo, o trabalho de Ferreira (1996) arespeito dos obstáculos à incorporação da qualidadeambiental ao universo de direitos, que segundo a autora,acham-se fortemente vinculados à seguinte questão: “o pro-blema central na história recente da relação do Estado bra-sileiro com a sociedade e suas demandas é a inexistência doreconhecimento oficial e extra-oficial da dimensão concretada cidadania” (FERREIRA, 1996, p. 247).14 Para uma consideração cuidadosa das noções de “sub esobrecidadão” pelo próprio autor, às quais encontram-se

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diferenciados em termos de possibilidades de fa-zer valer seus direitos e cumprir deveres)15.

Quanto ao segundo vetor (a relação baixa se-cularização Þ peculiaridade normativa brasilei-ra), é também freqüente na literatura a noção con-forme a qual concepções de mundo e valores tra-dicionais permanecem permeando os códigos desociabilidade a ponto de impedir que umanormatividade de tipo pós-convencional, nos di-zeres de Jürgen Habermas, instale-se de formaplena no Brasil moderno16. Dentre as elaboraçõesrecentes, talvez o trabalho de Marilena Chauí(1994) seja um dos mais emblemáticos desse se-gundo vetor. Em suas reflexões a respeito das“raízes teológicas do populismo no Brasil”, a au-tora identifica elementos de caráter mágico-religi-oso permeando a dinâmica política brasileira res-ponsáveis por bloquear a difusão das idéias deigualdade de direitos e de igualdade jurídica doscidadãos. Dentre esses elementos encontra-se aimagem do Brasil como pertencente “ao mundoda natureza e não ao mundo da cultura e da histó-ria”, regido por Deus e administrado por Seu en-viado (CHAUÍ, 1994, p. 23-24). Daí a imagem dopoder humano como “um favor divino àquele queO representa”, razão pela qual “[d]eixa de haver acoisa pública como terra comum da coletividadecívica e como fundo público” (idem, p. 26). Se-gundo a autora, é “com essa matriz que as clas-ses populares têm acesso à política como luta entreo bem e o mal e na qual a questão não é a dopoder, mas a da justiça e da felicidade” (idem, p.25). Conforme Chauí, são três as conseqüênciasnormativas dessa peculiaridade: a) “a impossibili-dade de efetuar a idéia liberal da política comopacto ou contrato”; b) “a impossibilidade de reali-zar a política democrática baseada nas idéias decidadania e representação”; e, por fim, c) “a im-

possibilidade de visualizar a idéia socialista de jus-tiça social, liberdade e felicidade”. Isso tudo por-que aqueles elementos mágico-religiosos impedema diferenciação entre a instância de poder e a lei,entre a instância da lei e a do saber social, e entreo poder e o ocupante do governo.

O trabalho de Teresa Sales (1994), por suavez, revela-se representativo do terceiro vetor (arelação indiferenciação público-privado Þ pecu-liaridade normativa brasileira). Em suas refle-xões a respeito das “raízes da desigualdade socialna cultura política brasileira”, Sales atribui impor-tância nodal à “relação mando/subserviência, cujamanifestação primeira se deu no âmbito do gran-de domínio territorial que configurou a sociedadebrasileira nos primeiros séculos de sua forma-ção”17. De acordo com a autora, “os mesmos se-nhores rurais que estão na base do incomensurá-vel poder privado que foi a marca inconteste denossa formação histórica até o advento da Repú-blica, esses mesmos senhores que controlam osaparelhos de justiça, os delegados de polícia e ascorporações municipais, são eles que amparam ohomem comum de todos esses controles sob aproteção do clã” (SALES, 1994, p. 28). Por issoé que, para ela, o liberalismo dos senhores de ter-ra no Brasil jamais passou de um “privatismo con-servador”, em que a dependência pessoal perma-neceu elemento crucial para a durabilidade dasrelações de mando/subserviência. Conforme aautora, o declínio da sociedade agrária e docoronelismo não teve por implicação um novo tipode equacionamento da relação público-privado jáque a burocracia estatal, por meio de programasde governo assistencialistas, tendeu a reproduzira porosidade entre os dois âmbitos em benefícioda “privatização das relações sociais” –– obvia-mente, sob o controle dos mais poderosos. Emtais circunstâncias, a institucionalização de direi-tos no Brasil configurou aquilo que Sales denomi-

vinculadas as idéias de “sub e sobreintegração” jurídica,ver Neves (1994).15 Ver Kant de Lima (1991) para uma defesa da idéiasegundo a qual a própria estrutura do sistema processualpenal brasileiro tende a reforçar desigualdades sócio-eco-nômicas.16 Os inúmeros trabalhos a respeito da constante presen-ça do catolicismo na dinâmica social brasileira (mesmo quedecrescente e, nas últimas três décadas, em favor de outrasreligiões, especialmente as pentecostais) sinalizam para essadireção. Para uma síntese esclarecedora (ainda que de umponto de vista “estrangeiro”) da literatura brasileira sobreo papel do catolicismo no Brasil, ver Casanova (1994).

17 Vale aqui salientar o parentesco entre essas reflexões eas de Evelina Dagnino (1994) a respeito do que qualificacomo o “autoritarismo social” permeando a dinâmica dasociedade brasileira. Conforme a autora, trata-se de um“ordenamento social presidido pela organização hierárqui-ca e desigual do conjunto das relações sociais [...]. [...] esseautoritarismo social se expressa num sistema de classifica-ções que estabelece diferentes categorias de pessoas dis-postas nos seus respectivos lugares na sociedade [...], umcódigo estrito, que pervade a casa e a rua, a sociedade e oEstado [...] [e que] reproduz a desigualdade nas relaçõesem todos os seus níveis” (DAGNINO, 1994, p. 104-105).

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na de “cidadania concedida”: os direitos básicos(de ir e vir, de justiça, à propriedade, ao trabalho)são tidos e vividos como uma dádiva, ou seja,como algo que é concedido em troca de subservi-ência pessoal. Ao invés de cidadãos detentores dedireitos universais, têm-se beneficiários de favo-res concedidos por intermediários queinstrumentalizam o Estado em causa própria. As-sim sendo, o caminho da construção da cidadaniano Brasil não poderia ser mais tortuoso:“freqüentemente começa pela cidadania social viaprogramas sociais de governo” e mantém o Esta-do como agente fundamental “enquanto provedorde um welfare que, mesmo quando de bem-estartenha muito pouco e quando assimilado qual dádi-va pelas populações beneficiárias, propicia a exis-tência de um contendor para os movimentos po-pulares na luta pelos seus direitos” (SALES, 1994,p. 49-50)18.

É assim que se consolida, na literatura brasi-leira a respeito da construção da cidadania entrenós, uma imagem apenas parcialmente conciliávelàs experiências das “sociedades modernas cen-trais”, ou ainda, uma espécie de espelho invertidoda cidadania dos “países centrais”. Nessa linha deargumentação, Vera Telles (1994) defende a idéiasegundo a qual aquilo “que faz a nossa diferençaestá no fato de sermos uma sociedade que se cons-truiu ao revés do imaginário igualitário fundadordos ‘termos modernos’, e nem mesmo chegou agarantir o princípio básico da equivalência jurídi-ca que a noção de igualdade supõe” (idem, p. 94-95). Assim, para a autora, não é de se estranharque “a afirmação das diferenças, quando não re-põe privilégios, é feita na lógica de discriminaçõesque transfiguram desigualdades em modos de sernão apenas distintos, mas incomensuráveis”(ibidem).

III. A(S) CIDADANIA(S) NO BRASIL À SOM-BRA DE UM DEVIR PRÉ-DEFINIDO

Deixe-me remeter o leitor a duas reflexões queme parecem sintetizar alguns dos dilemas analíti-cos aqui investigados. Num trabalho que veio atornar-se referência inequívoca na produção na-cional, Wanderley Guilherme dos Santos (1987)19

aponta os períodos de 1930-1943 e 1966-1971como os mais significativos no tocante àinstitucionalização de políticas sociais no Brasil.Como bem sabemos, é com a expressão “cidada-nia regulada” que o autor cunha o padrão de cida-dania que veio a prevalecer na Era Vargas e emperíodos posteriores de nossa história. Por “re-gulada”, Santos entende aquela configuração dedireitos e deveres em que a atribuição do status decidadão é vinculada ao exercício de funções defi-nidas e reconhecidas pela lei. De acordo com oautor, historicamente, o processo de extensãodesse tipo peculiar de cidadania deu-se por meioda sanção de novas profissões e/ou ocupações e,em segundo lugar, por meio da ampliação do es-copo de direitos vinculados àquelas profissões.Isso significa, conforme W. G. dos Santos, que aextensão daquela ordem normativa não ocorreupor meio da expansão dos valores (tais como, ren-da, educação, saúde, moradia etc.) inerentes aoconceito de “membro da comunidade”. Isso aju-daria a explicar o universalismo torto (já que sig-nificativamente restrito) de nossa normatividade:as prerrogativas de cidadania permaneceram em-butidas na vida profissional dos indivíduos aomesmo tempo em que os direitos dos cidadãoseram definidos de acordo com o lugar que ocupa-vam no processo produtivo conforme o reconhe-cimento legal (SANTOS, 1987). Dessa maneira,o universo de beneficiários das políticas de bem-estar ficava circunscrito aos que obtinham a de-vida sanção estatal, tolhendo toda e qualquer ati-tude de confronto que almejasse autonomia emrelação ao Estado. Vale dizer, a referência de W.G. dos Santos à Alemanha de Bismarck talvez pu-desse ser vista como uma nuança ao rótulo de“particularidade brasileira” atrelado à “cidadaniaregulada”20. Mas a imagem de “excepcionalidade”

18 Para uma análise na mesma direção, ver ainda o dossiê:os movimentos sociais e a construção democrática (GRU-PO DE ESTUDOS SOBRE A CONSTRUÇÃO DEMO-CRÁTICA, 1999, p. 45-46): “A indistinção entre públicoe privado, subjacente a uma concepção oligárquica de polí-tica, em que os interesses privados assumem precedênciasobre o interesse público, está no centro de uma matrizbásica que continua presidindo a configuração da sociedadebrasileira, e em relação à qual as instituições políticas dademocracia representativa liberal se acomodaram sem rup-turas significativas”.

19 Vale lembrar que a primeira edição de Cidadania eJustiça data de 1979. É notória a posição de destaque que,desde então, o referido trabalho veio a ocupar na literaturacientífica brasileira.20 Conforme o autor, “Marcante na evolução brasileira[...] é o fato de que os períodos em que se podem observar

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ganha fôlego renovado tão logo se observa que oautor atribui peso determinante à “tardia industri-alização brasileira” na definição de nossa ordemnormativa contemporânea, além de causa maiordo atraso no processo de complexificação social.Assim, segundo W. G. dos Santos, caberia àquelefator a responsabilidade pela institucionalização dacidadania no Brasil ter assumido uma ordem, rit-mo, formato, escopo e objetivo incomparáveisàqueles observados nos chamados casos clássi-cos. A imagem de uma “cidadania à brasileira”torna-se, então, claramente delineada: a) nela, adimensão social não só teria experimentado pre-cedência temporal sobre as demais; b) essa mes-ma dimensão social seria suficientemente prepon-derante para configurar o campo normativo con-forme sua própria lógica; c) a isso se agrega aidéia da neutralização de lutas e conflitos (contrá-rios àquela lógica) por aquele ente responsável pelaimplementação e regulação dos benefícios soci-ais, a saber, o Estado.

Por um caminho um tanto quanto diverso, JoséMurilo de Carvalho (2001) chega a um retratoconsideravelmente similar do padrão de cidadaniaque veio a predominar no Brasil moderno. Ao de-nominar tal padrão de “cidadania passiva”, Car-valho joga luz sobre a Era Vargas para argumentarque entre nós prevaleceu, na maior parte dos ca-sos, a institucionalização de direitos “desde cima”e, paralelamente, a noção de que garantias indivi-duais tenderam a permanecer atreladas às açõesgovernamentais. Nesse sentido, tal qual W. G. dosSantos, Carvalho (2001) defende que: a) via deregra, prevaleceram, nos diferentes momentos datessitura normativa brasileira moderna, a dimen-são social da cidadania em detrimento dos direi-tos políticos e civis; b) em tais circunstâncias, agarantia da cidadania tendeu a ser vislumbradacomo resultante da gratidão e lealdade dobeneficiário face ao Estado. Vale dizer, não se tra-ta, para o autor, de um padrão normativo que te-nha se esgotado no período 1930-45. Ao contrá-rio, parece sintomático para J. M. de Carvalho o

fato de que o regime militar (1964-1985), em vezde ter subvertido a lógica normativa da Era Vargas,acabou levando-a ao extremo na medida em queunificou e universalizou o sistema de seguridadesocial (com a criação do INSS e a extensão dosdireitos sociais aos trabalhadores rurais).

Mas, conforme salientei, a fonte explicativa deCarvalho (2001) para a “excepcionalidade brasi-leira” é um tanto quanto diferente daquela utiliza-da por Santos (1987); em vez de “industrializaçãotardia”, o autor atém-se a dois fatores para expli-car os freqüentes obstáculos ao enraizamento dedireitos políticos e civis na normatividade brasi-leira: de um lado, o papel central da escravidão,do latifúndio e da constante intrusão de interessesprivados na dinâmica do Estado e, por outro, nossaherança ibérica. Vale dizer, para o autor, a despei-to de remontarem à nossa história colonial, am-bos teriam permanecido de uma forma ou de ou-tra ativos até os dias atuais. A questão crucial éque, segundo Carvalho, tais aspectos sempre emostraram-se alheios às noções normativas queemergiram com o Iluminismo: o direito natural e aliberdade individual. Daí, pois, o hiato que nossepara das sociedades modernas centrais.

Uma vez mais, seria erro grosseiro afirmar quea literatura especializada mostrou-se insensível aquaisquer tipos de contra-tendências ou mesmo aindícios de transformações no tecido normativobrasileiro. A bem da verdade, a dinâmica políticada primeira metade dos anos 1980 deu margem aanálises bastante otimistas quanto às mudançasem curso e de suas implicações para oaprofundamento e ampliação do universo de di-reitos e de seus beneficiários. Para muitos, os aresda redemocratização e a efervescência política quea acompanhou apresentaram-se como provas dasubversão quase que definitiva da timidez e su-perficialidade da cidadania entre nós21. Nesse sen-tido, naquele clima de pujança mobilizatória, EuniceDurham acreditava que “[a] transformação denecessidades e carências em direitos, que se ope-

efetivos progressos na legislação social coincidem com aexistência de governos autoritários [ou seja, Era Vargas e opós-1966]. Nessa conexão, a experiência brasileira aproxi-mar-se-ia da estratégia bismarckiana de tentar obter a aqui-escência política do operariado industrial em troca do reco-nhecimento de alguns de seus direitos civis [...]” (SAN-TOS, 1987, p. 89).

21 Nesse sentido, talvez não seja tão exagerado afirmarque o artigo de Tilman Evers (1984) assumiu, naquele con-texto, um papel emblemático. Para enfatizar o que argu-mentava ser a novidade oculta dos novos movimentos so-ciais, Evers elencou uma enorme lista dos “novos grupossociais” a ocupar o então renovado cenário político brasi-leiro, colocando em evidência a diversidade e complexidadepolíticas gestadas ainda durante a ditadura.

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ra dentro dos movimentos sociais, pode ser vistacomo um amplo processo de revisão e redefiniçãoda cidadania” (DURHAM, 1984, p. 29). Mas, ain-da assim, não se dissiparam as desconfiançasquanto à autenticidade e alcance das transforma-ções em curso: contrastando a sociedade brasilei-ra à norte-americana, supostamente marcada poruma correspondência entre os preceitos legais daConstituição e a dinâmica social concreta, EuniceDurham afirmava que a onda de mobilização dosanos 1980 seria uma experiência totalmente novano Brasil, “um processo de construção coletivade uma nova cidadania” uma vez que “não temosuma tradição democrática desse tipo, nem umatradição de gestão coletiva na vida política. Osdireitos que constam das nossas leis foram im-portados e sempre se mostraram inoperantes”(DURHAM, 1984, p. 29; itálicos meus). Ou seja,mesmo num clima intelectual e político de otimis-mo, como o foi aquele de meados dos anos 1980,reaparece como um fantasma o abismo entre atessitura normatividade brasileira e a dos “paísesmodernos centrais”22.

Certas dimensões assumidas pelo cenário po-lítico pouco tempo depois das eleições presiden-ciais de 1989 não colaboraram para amenizar odiagnóstico preponderante da “excepcionalidadenormativa brasileira”23. Ainda que a “ondaneoliberal” tenha sido percebida e tratada comoum fenômeno de alcance quase global, abunda-ram os diagnósticos conforme os quais oneoliberalismo recaiu sobre nós – e sobre nossaentão recém-revigorada cidadania – de maneiraparticularmente acentuada. As reflexões de EvelinaDagnino parecem-me emblemáticas desse senti-mento: conforme a autora, “[s]ob a inspiraçãoneoliberal, a cidadania começou a ser entendida e

promovida como mera integração individual aomercado. Ao mesmo tempo, [...] direitos estabe-lecidos têm sido crescentemente retirado dos tra-balhadores [...]. Paralelamente, projetos filantró-picos do chamado terceiro setor têm se expandi-do em número e escopo [...]” (DAGNINO, 2003,p. 4).

No final das contas, tem-se a clara percepçãode que mesmo sob o impacto de transformaçõesde alcance mundial (como é o caso doneoliberalismo, de acordo com a literatura cientí-fico-social), não se observa cicatrizes profundasna imagem de “excepcionalidade normativa brasi-leira”. Isso porque, na produção aqui considera-da, o propalado hiato entre a cidadania do Brasilmoderno e a das chamadas sociedades centrais,expressados nos três vetores anteriormente dis-cutidos, ver-se-ia aprofundado de forma ainda maisdramática: a) O encolhimento do Estado implica-ria na redução de redes de proteção social que,por sua vez, alavancaria a presença do mercadoem diferentes âmbitos sociais em detrimento daatuação autônoma das organizações da sociedadecivil; b) Interesses privados tenderiam a tornar-seainda mais preponderantes sobre uma esfera pú-blica não só mal consolidada como em processode retraimento; c) Códigos de normatividade ou-tros (muitos dos quais a meio caminho entre vi-sões tradicionais e a secularidade legal) teriammaior probabilidade de tornar-se preponderantese de regular a dinâmica social e política de certaslocalidades e âmbitos sociais em função da menorcapacidade do Estado e de uma vigorosa esferapública para garantir o “rule of law”.

Vale aqui retomar as interpretações de Santos(1987) e Carvalho (2001). Primeiramente, nota-se que apesar de fazerem uso de fontes explicativascomumente tidas pelo “imaginário sociológicobrasileiro” como diametralmente opostas (uma decunho marcadamente econômico, outra de fundocultural-institucional), W. G. dos Santos e J. M.de Carvalho convergem quanto ao retrato queconstroem do padrão de cidadania que acreditamter prevalecido no Brasil ao menos desde odesmantelamento da República Velha. Ambos vis-lumbram o golpe de 1930 como o início da transi-ção de uma ordem normativa liberal restrita parauma ordem tendencialmente universalista e anti-liberal. Nela, a dimensão social da cidadania teriasobrepujado os direitos políticos e civis, mesmonaqueles momentos em que pleitos eleitorais dire-

22 Evidentemente, não é minha intenção reduzir o teor daprodução brasileira da década de 1980 em torno da cidada-nia ao adjetivo otimista, opondo-a ao pretenso “pessimis-mo” da produção da década de 1990. O esforço analíticoempreendido ao longo destas páginas revela não ser este omeu propósito.23 Nunca é demais lembrar que as inúmeras experiênciasde participação popular em administrações municipais,muitas das quais ganharam maturidade ao longo dos anos90, eram freqüentemente salientadas como sinal de que,dentre outras coisas, a democratização não havia sido emvão. Ver, por exemplo, Vilas Boas (1994), Dossiê: os movi-mentos sociais e a construção democrática (1999) e Avritzer(2002).

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tos foram realizados e em que boa parte da po-pulação pôde minimamente gozar de liberdade deexpressão. Em segundo lugar, “industrializaçãotardia”, de um lado, e “herança ibérica”, de ou-tro, assumem peso tal em uma e outra análisesque todo o desenrolar da construção da tessituranormativa brasileira tende a ser visceralmente atre-lado (e até mesmo reduzido em última instância)a cada um deles. Por fim, percebe-se que ambasas empreitadas explicativas orbitam ao redor dosdois territórios cognitivos de maior destaque nopensamento social brasileiro: é legítimo dizer que,enquanto a noção de “industrialização tardia” giraem torno da abordagem da sociologia da depen-dência, a idéia de “herança ibérica” encontra-seancorada em nossa sociologia da herança patri-arcal-patrimonial.

Ora, quando aplicadas a contextos específi-cos, parece-me que as duas abordagens abremmão do caráter contingente do processo deinstitucionalização das ordens normativas corres-pondentes àqueles contextos na medida em que“industrialização tardia” e herança ibérica” as-sumem o papel de “variáveis independentes”. Issoporque: a) Uma e outra são com freqüência res-gatadas para explicar, sob o rótulo (implícito ouexplicito) de determinantes em última instância,os diferentes (por vezes até antagônicos) contor-nos da sociabilidade dos mais significativos mo-mentos da história brasileira (como, por exemplo,a variada e multifacetada ordem que se seguiu àIndependência, a tardia abolição da escravidão, aliderança do Exército na Proclamação da Repúbli-ca, a constelação político-institucional pós-1891,a industrialização hipertardia, e assim por diante);b) Ao serem assim resgatadas, tais variáveis as-sumem o primeiro plano do empreendimentointerpretativo, sobrepondo-se e, conseqüentemen-te, empurrando para o segundo plano os projetos,interesses, anseios e visões de mundo dísparesque se enfrentaram continuamente na dinâmicasocial e cujo desenrolar foi responsável por defi-nir o destino da sociabilidade e da normatividadedo Brasil moderno. Dessa maneira, “projetos mar-ginais” são comumente obscurecidos e negligen-ciados em favor de uma indevida ênfase conferidaa projetos e concepções vencedores, cujaprevalência é apontada como evidência da pretensaforça explicativa daquelas mesmas variáveis; c)Esse movimento de sobreposição, que, como afir-mei, obscurece a presença e relevância de proje-tos, interesses, anseios e concepções de mundo

alternativos àqueles que predominaram e molda-ram a ordem social e normativa, embute uma con-cepção de necessidade e inexorabilidade ao devirhistórico, a despeito da notória ocorrência de “con-tra-discursos” e suas pressões por rotas diver-gentes às que acabaram por prevalecer.

Revelador, para mim, é o fato de que essesdiagnósticos encontram correspondência no re-trato traçado por duas das mais importantes abor-dagens do pensamento social brasileiro acerca dostatus da modernidade no Brasil: nossa sociologiada dependência e nossa sociologia da herançapatriarcal-patrimonial. Vale dizer, não são razõesde afinidade intelectual que me levam a devotarmaior atenção a essas duas referências explicativas.Sem dúvida alguma, essas não são as únicas refe-rências a permear a literatura especializada a res-peito da cidadania no Brasil. A justificativa paraessa consideração especial está no lugar decentralidade que tanto herança patriarcal-patrimonial quanto dependência ocupam no “ima-ginário sociológico brasileiro”, por assim dizer:elas lograram delimitar os dois principais territóri-os cognitivos no interior dos e em referência aosquais foram e permanecem sendo realizadas algu-mas das mais influentes reflexões, interpretaçõese explicações a respeito da configuração e dinâ-mica da sociedade brasileira moderna(TAVOLARO, 2005)24.

O ponto nevrálgico, por assim dizer, são asconseqüências explicativas e interpretativas daresistência de ambas as abordagens quanto a co-locar a experiência do Brasil contemporâneo e adas chamadas “sociedades modernas centrais” empé de igualdade. Por um lado, Florestan Fernandes(1975; 1976) argumenta que, apesar de termosinternalizado os mesmos padrões gerais de orga-nização social, política e econômica que as socie-

24 É legítimo dizer que essas duas abordagens permane-cem ainda hoje referências nodais no “imaginário sociológi-co brasileiro”, fornecendo idéias e noções-chave a partirdas quais inúmeras tentativas de explicação e interpretaçãodo Brasil contemporâneo esforçam-se para apreender as-pectos tão variados quanto a formação e funcionamento denosso Estado, a estrutura e funcionamento de nosso cam-po político-partidário, a dinâmica sindical brasileira, osmovimentos sociais e nossa pretensamente singular cultu-ra política, além, é claro, da suposta peculiaridade de nossacidadania. O problema da normatividade do Brasil moder-no e, em particular, das configurações de direitos e deveresque se institucionalizaram entre nós não escapam àcentralidade dessas duas idéias-força.

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dades capitalistas centrais, o aspecto determinantenão foi superado: a nossa condição de dependên-cia econômica25. Segundo o autor, ao perpetuarnossa posição capitalista periférica, tal condiçãoimpede que as conquistas das sociedades centraissejam plenamente vivenciadas pela maior parte dapopulação brasileira: os pressupostos cívico-hu-manitários, igualitários e democráticos da ordemburguesa. Isso explicaria, conforme a ordem pós-1930 (e, de forma ainda mais acentuada, a cons-telação pós-1964) foi capaz de mostrar, as nossaspeculiaridades normativas, expressas na dificul-dade de “conciliação concreta, aparentemente acurto e longo prazos, entre democracia, capita-lismo e auto-determinação” (FERNANDES, 1976,p. 254)26.

Por outro lado, enquanto Raymundo Faoro(2001) enxerga o Estado patrimonial e sua buro-cracia como sendo as fontes primordiais de nos-sas especificidades, Gilberto Freyre e S. B. deHolanda voltam-se para nossas raízes patriarcaisque, segundo ambos, por séculos lograrampermear quase que por completo a ordem socialbrasileira. Segundo Holanda, ainda que muitolonginqüamente, foi-nos determinante um traçoespecífico da cultura lusitana: sua “aversão con-gênita a qualquer ordenação impessoal da existên-cia” (HOLANDA, 1994, p. 75). A esse traço en-contrar-se-ia estreitamente vinculada a marcantee ainda não superada presença de códigos de so-ciabilidade típicos de um momento em que o paterfamilias – e a correspondente família de tipo pa-triarcal – era o centro articulador por excelência

da dinâmica social. Daí a proeminência do priva-do sobre o público, inclusive (e talvez principal-mente) no próprio funcionamento do Estado27.

Ora, ainda que amplamente tidas como manei-ras diametralmente opostas de interpretar e expli-car o status da modernidade no Brasil, ambas asabordagens tendem a ver um hiato – em essência,jamais inalterado – entre a sociedade brasileiracontemporânea e os “países modernos centrais”na medida em que: a) Estado, mercado e socieda-de civil jamais se acharam plenamente diferencia-dos no Brasil na mesma proporção em que naque-las sociedades; b) o público e o privado invaria-velmente viram-se imbricados entre nós de ma-neira um tanto acentuada; c) leis secularizadassempre encontraram obstáculos para fazerem-sepreponderantes na estrutura normativa brasileira.Portanto, as correspondências entre os diagnósti-cos da literatura acerca da “aventura da cidadaniano Brasil” e os retratos traçados por duas das prin-cipais abordagens do pensamento social brasilei-ro tornam-se evidentes28.

A pergunta que se coloca é, quais seriam osproblemas advindos de tal correspondência paraa compreensão da “aventura da cidadania no Bra-sil”? Chamo atenção especial para dois pontosvulneráveis: a) toma-se por certo um dado retratonotavelmente “congelado” (e invariável) da socia-bilidade do Brasil moderno (1. forte entrelaçamentoentre Estado-mercado-sociedade civil; 2. “promis-cuidade” na relação público-privado; 3. baixo graude secularização normativa), apoiado em uma ima-gem também hipostasiada da sociabilidade supos-tamente peculiar às chamadas “sociedades mo-dernas centrais”. Com isso, tende-se ou a subes-timar variações históricas em um e outro cenáriosou a simplesmente desconsiderá-las por comple-

25 De acordo com Caio Prado, “Se vamos à essência danossa formação, veremos que na realidade nos constituí-mos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros;mais tarde ouro e diamante; depois, algodão, e em seguidacafé, para o comércio europeu” (PRADO JR., 1970, p. 22).O problema, para o autor, é que essa motivação inicial nãosó perdurou por séculos como se mantém ativa em nossodesenrolar histórico: “É com tal objetivo, objetivo exterior,voltado para fora do país e sem atenção a consideraçõesque não fossem o interesse daquele comércio que se organi-zarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporánaquele sentido: a estrutura social, bem como as atividadesdo país [...]” (PRADO JR., 1970, p. 23).26 Algumas das referências centrais da abordagem da soci-ologia da dependência, a despeito das irredutíveisespecificidades de cada trabalho e autor, são: Prado Jr.(1970; 1971; 1994), Fernandes (1975; 1976), Ianni (1971;1978), Cardoso (1972) e Cardoso e Faletto (1979).

27 Algumas das principais referências de nossa sociologiada herança patriarcal-patrimonial, também aqui guarda-das suas irredutíveis particularidades, são: Freyre (1990;1996; 2000), Holanda (1994), Faoro (2001) e Matta (1980;2000).28 A título de ilustração, parece-me sugestivo que, enquan-to para Dagnino (2003) a chave-explicativa de nossa pecu-liaridade normativa está na “cultura de autoritarismo soci-al” que permeia a sociabilidade brasileira desde longa data,Saes (2001) atribui nossa pretensa especificidade à “confi-guração assumida pelo processo de desenvolvimento docapitalismo no Brasil” que, segundo o autor, jamais deixoude ser “retardatário e dependente”.

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to (sob o argumento de que são por demais mar-ginais e sem qualquer impacto no núcleo da dinâ-mica social); b) as variações de configuração decidadania que por ventura ocorreram ao longo denossa história são sumariamente desconsideradasou vistas como essencialmente superficiais frentea certos padrões pretensamente típicos de um eoutro contextos. Ganha força renovada, então, aimagem de uma “cidadania à brasileira”, uma es-pécie de idéia-força que, em vez de jogar luz, viade regra obscurece o teor das disputas e proces-sos históricos que levaram a essa ou àquela con-figuração de direitos e deveres29.

Ora, tal opção analítica reduz a um plano se-cundário a dimensão contingente e agonística daconstrução da normatividade; trata-se, a meu ver,de uma dimensão que uma sociologia política quese pretenda atenta à variedade de configuraçõesde direitos e deveres nas sociedades modernas nãopode abster-se. Acredito que as noções de práti-cas e oportunidades políticas, tais quais aborda-das a seguir, auxiliam-nos a salientar esses aspec-tos.

IV. DO FATOR CONTINGÊNCIA NA CONS-TRUÇÃO DA CIDADANIA: ALGUNSAPONTAMENTOS HISTÓRICOS

Bem sabemos que os contornos normativosembutidos na Constituição de 1822 diferem bas-tante daqueles que vieram a prevalecer na ordemconstitucional posterior a 1891 (COSTA, 1985).Também sabemos que as principais medidaslegislativas adotadas pelo governo provisório em1930 subverteram, em boa medida, referências

normativas nodais da chamada República Velha(CARONE, 1974). Quanto à Constituição de 1934,ao mesmo tempo em que introduziu novas no-ções de direitos e deveres, é amplamente vistacomo tendo recuperado termos legais previamen-te defenestrados pelo governo provisório que seseguiu à queda de Washington Luís (VIANNA,1989). Mudanças novamente significativas viri-am a se concretizar com a Carta Magna outorga-da em 1937, muitas das quais confirmadas em1943 pela Consolidação das Leis do Trabalho(DUARTE, 1999). O perfil daquela ordemnormativa também sofreria sérios abalos com aConstituição de 1946, que perduraria (aos trancose barrancos, a bem da verdade) por quase duasdécadas (WEFFORT, 1978). Os anos 1960, con-tudo, abriram mais um novo capítulo na estruturanormativo-legal brasileira, que somente começa-ria a ser plenamente virado a partir da aberturapolítica de meados dos anos 1980 (LAMOUNIER,1990). Seria suficiente atribuir essa ampla gamade configurações de direitos e deveres a variáveisindependentes erigidas em torno da idéia de “pe-culiaridade da modernidade no Brasil”? Qual o ônusde tal opção explicativa para se pensar as “condi-ções de possibilidade” da cidadania no Brasil?

Ora, conforme argumentei anteriormente, im-plícita ou explicitamente, as premissas fundamen-tais do ensaio clássico de T. H. Marshall (1992)tornaram-se referência central na produção cien-tífica nacional a respeito do tema aqui tratado30.Em linhas gerais, conforme W. G. dos Santos(1987) salientou, afirma-se que a ordem, o ritmo,o formato, o escopo e o objetivo dos direitos edeveres entre nós diferem sobremaneira dos ca-sos clássicos do “centro da modernidade”. O quequestiono é precisamente a capacidade desse re-trato um tanto quanto inflexível do pretenso pa-drão de sociabilidade no Brasil moderno – que,como afirmei, acha sua correspondência numaimagem consideravelmente estereotipada da soci-

29 Nesse sentido, por exemplo, a redemocratização demeados da década de 1980 não teria alterado o cerne dopadrão de diferenciação social supostamente característicodo Brasil moderno, em que o Estado tende a ocupar (assimreza o argumento) posição nodal na dinâmica da sociedadebrasileira (apesar da inegavelmente exuberante emergênciade movimentos sociais e outras organizações no seio dasociedade civil naquele momento de nossa história políti-ca). Na mesma linha, o período da chamada “RepúblicaPopulista” não teria alterado as linhas mestras da configu-ração de direitos e deveres institucionalizada ao longo daEra Vargas (a despeito das efervescentes disputas eleito-rais de então), na medida em que a dimensão social teriasido “sacralizada” no seio de nossa tessitura normativa.Dessa feita, as diferentes configurações da cidadania noBrasil têm seu devir pré-definido por um dado quadro ana-lítico-conceitual, incapaz de fazer frente a variações (pormais gritantes que sejam).

30 Ver, por exemplo, o trabalho de Holston e Caldeira(1998), em que se trabalha a noção de “disjunção” da cida-dania no Brasil contemporâneo. Conforme os autores,“Usando a tipologia de T. H. Marshall, tal ‘disjunção’ sig-nifica que em comparação com os direitos sociais e políti-cos, a dimensão civil não foi efetivamente entrelaçada aotecido da cidadania brasileira. Ao contrário, as proteções eimunidades dos direitos civis [...] são geralmente percebi-das e experimentadas como privilégios elitistas de statussocial [...]” (HOLSTON & CALDEIRA, 1998, p. 276).

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abilidade dos “países modernos centrais” –, apoi-ado em “determinantes em última instância” comoaqueles aqui problematizados, de captar toda essagama de transformações normativas. Portanto, oônus de tal opção explicativa, que implica na ima-gem de uma “cidadania à brasileira”, é o de mos-trar-se pouco sensível à dimensão contingente eagonística do processo de institucionalização dedireitos e deveres (uma vez pensado como frutode lutas e conflitos entre projetos díspares denormatividade)31. Gostaria, ao final deste artigo,de chamar atenção para dois eventos históricos jáconsagrados pela historiografia brasileira que meparecem ilustrar o caráter contextual e agonísticoda institucionalização e vivência da cidadania noBrasil. A bem da verdade, as inúmeras experiênci-as de lutas por direitos que coloriram o cenáriopolítico brasileiro nos anos 1970 e 1980 poderiamservir-me de referência para ilustrar essa dimen-são. Nesse exato sentido, por exemplo, as lutaspor saneamento básico e saúde no município deSão Paulo, cuidadosamente investigadas por PedroJacobi (1989), revelam justamente a abertura deoportunidades políticas ímpares na esteira do en-fraquecimento do regime militar e a crescentecapacidade de movimentos de bairros de vocalizarseus projetos e vivências de cidadania32. O mes-mo pode ser dito em relação às disputas locais eregionais que, de maneira mais sistemática a par-tir do final dos anos 1970, conduziram àinternalização de direitos ambientais na ordemnormativa brasileira (VIOLA & LEIS, 1995). Noentanto, pretendo ater-me a dois cenários que, porrazões que mencionarei mais adiante33, revelam-

se emblemáticos à própria imagem que a produ-ção sociológica nacional projeta a respeito da ci-dadania no Brasil: primeiramente, as disputas eembates em torno da ordem normativa que viria aser institucionalizada com a queda da monarquiae, em segundo lugar, o desmonte da normatividadeque havia caracterizado a chamada “RepúblicaVelha”.

Antes de dar prosseguimento a essa tarefa,porém, é preciso notar que até mesmo o debateinternacional vem a certo tempo levantando críti-cas ao ensaio de T. H. Marshall, jogando luz so-bre suas limitações em relação às variaçõesnormativas observadas nas próprias “sociedadescentrais”. Nesse sentido, criticou-se desde a sim-plicidade do tratamento dedicado por Marshall aosconflitos de classe (BOTTOMORE, 1992), até suacompleta desconsideração quanto às diferençasétnico-raciais (GORJANICYN, 2000) e de gêne-ro (FRASER & GORDON, 1994) observadas nassociedades modernas. Critica-se, ainda, aperiodização de institucionalização de direitos as-sumida por Marshall tanto quanto a sua cegueirafrente a fatores geopolíticos (MANN, 1996).Merece destaque também a crítica à insensibilida-de de seu esquema analítico às diversidadesnormativas observáveis no interior de Estados-Nações, cujas localidades e regiões sãofreqüentemente permeadas por desigualdades econflitos de natureza normativa (SOMERS, 1993).

Gostaria, pois, de lançar mão de duas noçõesque acredito auxiliarem a sociologia política fren-te ao desafio de enfatizar a dimensão“situacional”, contingente e agonística nos estu-dos a respeito da consolidação da cidadania mo-derna, quais sejam, oportunidades políticas e prá-ticas. Em ambos os casos, trata-se de salientarque disputas pela definição dos contornos da or-dem normativa de uma dada sociedade envolvemembates em que projetos de sociedade, interessesindividuais e coletivos, demandas as mais varia-das, anseios e, mais genericamente falando, vi-sões de mundo díspares lutam entre si em tornode recursos políticos, simbólicos, econômicos esociais que são escassos (isto é, que não podem,no limite, ser repartidos de maneira rigorosamen-te igualitária entre todos).

A idéia de oportunidades políticas ganhou no-toriedade no debate acadêmico especialmente apartir da segunda metade da década de 1980 naesteira das discussões em torno das condições de

31 Ao menos em parte, é esse o espírito da crítica deFrancisco de Oliveira (1994) à noção de “cidadania conce-dida” trabalhada por Teresa Sales (1994).32 Ver, ainda, o número especial da revista Pólis dedicadoao tema “São Paulo: conflitos e negociações na disputapela cidade”, organizado por Renata Villas-Bôas (1995).33 Por ora, cabe apenas adiantar que a configuraçãonormativa e societal assumida pela sociedade brasileira apartir de 1930 é vista, tanto por nossa sociologia da he-rança patriarcal-patrimonial, como por nossa sociologiada dependência como emblemática de nossa“excepcionalidade”. Faoro (2001), por exemplo, vê na “EraVargas” a retomada daquele padrão patrimonialista-estamental que por séculos permaneceu “nosso problemanão-resolvido”. Já tanto Ianni (1968) quanto Cardoso eFaletto (1979) vêem naquela configuração a única capaz deproporcionar a uma sociedade periférica como a nossa osalto modernizador almejado.

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emergência dos movimentos sociais34. Em sínte-se, conforme salientei em trabalho anterior(TAVOLARO, 2008), afirma-se que “disputaspolíticas são alavancadas quando mudanças nasoportunidades e constrangimentos políticos cri-am incentivos para atores sociais que não possuemrecursos próprios” (TARROW, 1999, p. 2)35. Aquestão-chave é que, quando tais circunstânciasespeciais convergem com a percepção dos própri-os agentes quanto aos custos de sua falta de ação36,elas podem apresentar-se como janelas de oportu-nidade para o engajamento em embates, cujos re-sultados podem inclusive alavancar ciclos de dis-putas mais prolongados e de maiores dimensões37.

Propósitos heurísticos levam-me a trabalharcom uma espécie de “índice de disponibilidade deoportunidades políticas”, capaz de ajudar-nos apensar como os próprios agentes envolvidos emembates em torno da manutenção ou transforma-ção (total ou parcial) de ordens normativas (maisou menos sedimentadas) decodificam sinais deabertura de janelas políticas para ainstitucionalização e/ou consolidação de seus pró-

prios projetos de sociedade, interesses, anseios evisões de mundo. De acordo com Sidney Tarrow(1999) e McAdam (1996), pode-se pensar em cin-co aspectos que sugerem tanto ao analista quantoao agente a existência de circunstâncias especiaisno horizonte político: a) a pronunciada decadên-cia na habilidade ou disposição do Estado decoibir ou até reprimir dissenso; b) o surgimentoou aprofundamento de brechas no interior das eli-tes; c) a abertura de acesso institucional e não-institucional à emergência de atores até então au-sentes do processo decisório; d) o aparecimentode novos aliados que podem mostrar-se influen-tes nas disputas por poder; e por fim, e) rearranjosna configuração do sistema político (TAVOLARO,2008). Ainda segundo Tarrow (1999), mesmo quetransitórios ou até mesmo efêmeros, podem sur-gir novos centros de poder caso essas janelas deoportunidades sejam aproveitadas.

Dessa feita, uma vez trazida para o centro daanálise, a noção de “oportunidades políticas” temo potencial de tornar a compreensão dos cenáriosem que se institucionalizam certas configuraçõesde cidadania imune a quaisquer ordens de “deter-minação em última instância”; ou seja, torna osesforços interpretativos e explicativos da defini-ção de uma dada ordem normativa imunes àvinculação da dinâmica social a “variáveis inde-pendentes” externas às próprias lutas sociais. Por-tanto, as mudanças de configuração de direitos edeveres observadas nos diferentes momentos dahistória brasileira não precisam ser tidas comodecorrência desta ou daquela tendência implícitaem nossa sociabilidade “desde temposimemoráveis”. Em vez disso, podem ser pensa-das como janelas de oportunidades aproveitadaspor certos projetos de normatividade.

Já a ênfase na dimensão prática da luta pordireitos é caudatária de uma longa tradição do pen-samento sociológico que busca salientar o nívelmicro da dinâmica social, com todas as suasminúcias, sutilezas e, fundamentalmente, o cará-ter “situacional” das relações intersubjetivas. Nãopoderei aqui me prolongar na consideração dessaimportante área de investigação sociológica. Gos-taria apenas de fazer breve menção aos esforçosde Erving Goffman (1959) para chamar atençãodo papel central da “definição da situação” comoforma de estabelecer-se o controle nos processosintersubjetivos de estabelecimento de padrões deconduta. Goffman salienta que o empenho em di-reção a tal definição dá-se por meio de um con-

34 Sem qualquer intenção de propor uma genealogia danoção em questão, indico as seguintes referências na litera-tura a respeito de movimentos sociais que passou a traba-lhar com a idéia de “oportunidades políticas” de maneirasistemática, procurando aprimorá-la tendo em vista a ex-ploração de seu potencial: McAdam, McCarthy e Zald(1988); Morris e Mueller (1992); Traugott (1995);McAdam, McCarthy e Zald (1996); Tarrow (1999).35 Até mesmo disparidades de recursos financeiros (di-nheiro) e políticos (poder) entre os agentes em disputapodem ser compensadas na medida em que os mais frágeislogrem tirar vantagem de oportunidades.36 Isso implica que caso essas circunstâncias especiaisnão sejam codificadas pelos próprios agentes como opor-tunidades políticas, não importa o quão poderosos elessejam, terão pouquíssimas (ou mesmo não terão qualquer)possibilidade de efetivar as almejadas transformações (umavez mais, sejam elas políticas, normativas, econômicas,culturais etc.) (FRIEDMAN & BENFORD, 1992).37 Não se trata de atribuir única e simplesmente a estrutu-ras formais (como é o caso de instituições estatais) o rótulode “oportunidades políticas privilegiadas”: tais “janelas deoportunidade” podem ter origem não só em instituiçõespolíticas consideravelmente estáveis (cujas transformaçõesnormalmente ocorrem vagarosa e gradualmente) como tam-bém em eventos altamente voláteis e transformações pas-sageiras (MCADAM, MCCARTHY & ZALD, 1996). Aomesmo tempo, podem apresentar-se atreladas tanto aoaparato estatal e sua dinâmica como a grupos e/ou proble-mas consideravelmente específicos (GAMSON &MAYER, 1996).

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junto de práticas (dentre as quais as práticas “cor-retivas”, “defensivas”, ou mesmo “de proteção”)por meio das quais se estabelecem, de maneiraum tanto quanto contingente, os termos do con-texto da interação. Vale lembrar, nessa mesma di-reção, Garfinkel (1984) e Berger e Luckmann(1967) procuraram acentuar o caráter circunstan-cial e situado (e, sem sombra de dúvidas, reflexi-vo) das práticas e interações cotidianas que cons-tituem a complexa tessitura do social.

Ora, conforme Somers (1993) demonstrou emestudo sobre a luta por direitos na Inglaterra entreos séculos XVII e XVIII, “[o]s contextos locaisde processos legais [...] geraram culturas políti-cas e legais diferentes, que acabaram por produ-zir diferentes padrões de cidadania em diferentescomunidades” (SOMERS, 1993, p. 605). Dessafeita, conforme a localidade em questão, aimplementação e institucionalização de direitos ci-vis, políticos e sociais tiveram seqüências bastan-te singulares tendo em vista seus diferentes níveisde participação política. Assim, no tocante à di-mensão micro dos embates em torno da definiçãoe institucionalização da cidadania, conforme a qualos direitos e deveres devem ser vistos em termosde práticas “situacionais” e contextuais, inspiro-me em esforços analíticos como aquele levadoadiante por Bryan Turner (1993). Conforme já tiveoportunidade de salientar (TAVOLARO, 2008),para Turner a cidadania é “um conjunto de práti-cas (jurídicas, políticas, econômicas e culturais)que definem uma pessoa como sendo um mem-bro competente da sociedade, e que por conseqü-ência moldam o fluxo de recursos em benefíciode pessoas e grupos sociais” (TURNER, 1993, p.2). O autor argumenta que a ênfase na dimensãoprática da luta por e gozo de direitos previne oanalista de lidar com a cidadania como um meroarranjo de garantias e obrigações. Evita, dessaforma, um tratamento demasiadamente jurídicoda cidadania, preferencialmente ancorado na es-fera de ação do Estado. É necessário, pois, comosugere Ann Mische (1995), levar em conta as“exortações performativas” envolvidas nos em-bates em torno da definição e atribuição de direi-tos, em vez de adotar uma perspectiva por de-mais formal. Nessa mesma direção, também jáhavia chamado atenção para o fato de queMargareth Somers (1993) reivindica uma abor-dagem dinâmica e fluída do processo de constru-ção da cidadania, vista como “um conjunto depráticas sociais institucionalmente embutidas”. De

acordo com a autora, mesmo queinstitucionalizados na forma de lei, os direitos nãodeixam de ser “práticas [...] contingentes ao econstituídas por redes de relações e idiomas polí-ticos” (SOMERS, 1993, p. 589). A meu ver, essadimensão prática e situacional da cidadania podeser encontrada nas diferentes “demandasnormativas” que permeiam setores os mais varia-dos da sociedade. É o embate entre essas “de-mandas díspares” a respeito de direitos e deveresque denota, de maneira muito especial, aquela di-mensão micro da definição da cidadania.

Dessa maneira, àqueles que se preocupam coma temática das condições de possibilidade da cons-trução da cidadania no Brasil, “oportunidades po-líticas” e “práticas” podem apresentar-se comoantídotos ao perigo de vincular a dinâmica dainstitucionalização de direitos e deveres no Brasila fatores exógenos às próprias disputas e emba-tes normativos. Além disso, em vez de atribuirpeso explicativo a priori a uma dada imagem(freqüentemente congelada) do suposto padrão desociabilidade do Brasil moderno (em que a. Esta-do-mercado-sociedade encontram-se invariavel-mente entrelaçados; b. público-privado acham-seimbricados; c. a normatividade encontra-se semi-secularizada), há que se avaliar cada contexto,quais os atores implicados, tanto quanto os proje-tos de sociedade e de normatividade em disputa,suas capacidades circunstanciais para fazer valerseus interesses além, é claro, a existência ou nãode oportunidades políticas que tornam transfor-mações normativas mais ou menos aptas a ocor-rerem. É precisamente nesse sentido que a ima-gem de uma “cidadania à brasileira” deve dar es-paço a investigações menos generalizantes e maiscontextualizadas de lutas em torno dainstitucionalização de direitos e deveres. Há quese considerar aspectos circunstanciais esituacionais não como fatores marginais e aces-sórios às “grandes tendências históricas”, mas simcomo elementos centrais nos embates em tornoda definição das configurações de cidadania. Issoporque, quaisquer que sejam tais configurações,por mais institucionalmente consolidadas que se-jam, elas jamais deixam de ser objeto de disputas,seja para sua manutenção, seja para sua transfor-mação. Deixe-me, aqui, fazer uma incursãohistoriográfica que seja capaz de ilustrar esse ar-gumento.

Pretendo realizar alguns apontamentos a res-peito das disputas normativas que se desenrola-

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ram a partir da crise do regime monárquico até odesmanche da “República Velha”38. A meu ver, oque deve ser assinalado é que a configuração dedireitos e deveres tanto quanto o padrão de socia-bilidade característicos daquele momento resulta-ram de embates e disputas em que demandasnormativas díspares disputaram posições de pro-eminência na organização da ordem social. Foi adisponibilidade ou não de oportunidades políticasfavoráveis que tornou possível que prevaleces-sem ou não; ainda assim, mesmo queinstitucionalizadas, muitas das normas que adqui-riram status legal e universal somente ganhavamvida em situações práticas, por setores da socie-dade capazes de vivenciá-los em seu dia-a-dia. Aexpansão e o efetivo gozo desses direitos depen-deram de lutas pela sua institucionalização e peloreconhecimento de seus portadores enquanto ci-dadãos. Darei ênfase, pois, às “demandas dissi-dentes” que povoaram o período e que ajudarama mudar a orientação e o perfil da sociedade brasi-leira naqueles momentos.

Na verdade, sabemos que a própria Repúblicajá nasceu cindida entre ao menos dois projetosdíspares, um dos quais centralista (apoiado tantopor setores do Exército como por setores da oli-garquia gaúcha e intelectuais, todos sob inspira-ção positivista), e um outro federalista (cujo prin-cipal pilar de sustentação era a oligarquia agráriapaulista, apoiada por alguns de seus pares de ou-tras províncias que se viam marginalizadas na es-trutura política monárquica)39. Não há dúvidasde que, a despeito de ter fornecido os dois primei-

ros presidentes de nossa então imberbe experiên-cia republicana (Deodoro e Floriano), a concep-ção centralista não conseguiu tornar-se hegemônica– que o digam as disputas em torno da Constitui-ção de 189140, as pressões que resultaram naabrupta renúncia do Marechal Deodoro e a emer-gência do Partido Republicano Paulista (PRP) paraposição de destaque ainda nos primeiros anos dadécada de 1890. Mas qualificar sumariamente a“República Velha” como sendo a “RepúblicaOligárquica” (ou mesmo “República do café-com-leite”) faz que corramos o risco de esquecermo-nos (ou, pior, negligenciarmos) o quão repleto de“embates discursivos” foram as quatro décadasque antecederam o golpe de 1930. Mas há umasérie de “demandas normativas dissidentes” queconseguimos encontrar naquele cenário:

1. Em meio a uma República cuja configura-ção institucional a partir de 1891 assumiuum perfil marcadamente federalista e libe-ral, um primeiro “discurso dissidente” eraaquele que abarcava uma série de projetosde sociabilidade e normatividade sob forteinspiração positivista. O “ApostoladoPositivista”, sob o comando de TeixeiraMendes e Miguel Lemos, certamente foiquem manifestou de maneira maishiperbólica tais projetos (LINS, 1964). Pro-vavelmente a mais indelével de suas con-quistas institucionais tenha sido a seculari-zação do Estado (CRUZ COSTA, 1964) ––para não falar da insígnia Ordem e Progres-so na bandeira (Carvalho, 1990). Mas suasdemandas foram muito mais abrangentes:o “Apostolado” defendia a institucionalização

38 Eis a justificativa deste recorte temporal: foi precisa-mente a configuração de direitos e deveres que veio a con-solidar-se no universo normativo brasileiro a partir de 1930a que mais corresponde àquela imagem do padrão de soci-abilidade moderno tido como “especificamente brasileiro”(conforme discutido nos dois primeiros itens deste artigo).Ou seja, a partir dos anos 1930, a ênfase nos direitos soci-ais (em detrimento dos direitos políticos e civis) dar-se-áem meio a um cenário que a historiografia e ciências sociaisnacionais identificam como fortemente marcado por: a.Considerável intervenção estatal no mercado e na socieda-de civil; b. Papel ativo da Igreja católica na dinâmica políti-ca (sob a liderança de D. Sebastião Leme); c.Instrumentalização da esfera pública pelos interesses pri-vados em favor tanto da emergente burguesia industrialcomo de outros atores com ligações privilegiadas ao apare-lho do estado.39 Obviamente, também sabemos que já no Império osconfrontos entre um projeto centralista e outro federalista

encontravam ancoragem institucional nas disputas queopunham Liberais (partidários de uma estrutura político-institucional que garantisse autonomia local) e Conserva-dores (defensores do Poder Moderador instituído pelaConstituição de 1824). Os Liberais compreendiam classesmédias urbanas, padres e figuras emergentes das oligarqui-as de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Já, osConservadores apoiavam-se em burocratas do Império,magistrados, grandes comerciantes, além dos setores maisimportantes das oligarquias mais tradicionais, como aque-las do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Ver Carvalho(1980) e Costa (1985).40 Segundo Lessa (1999), os militares (alguns dos quaisnem mesmo centralistas eram) ocupavam apenas ao redorde 25% da Assembléia Constituinte; disputavam podercom outros dois grupos proeminentes, os federalistas mo-derados e os hiper-federalistas.

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de uma República presidencialista de tipoditatorial41 tanto quanto uma legislação so-cial e trabalhista que nos remete aos anosque se seguiram à emergência de GetúlioVargas ao poder em 193042, ou seja, proje-tos que em muito destoavam do perfil libe-ral-federalista da ordem normativa, políticae social então predominante43.

2. Ao longo de toda a “República Velha”, parteimportante do oficialato do Exército apre-sentou-se como outra importante fonte de“projetos alternativos” à ordem estabelecida.Já tive oportunidade de mencionar que aque-les que deram apoio a Deodoro pretendiama consolidação de uma estrutura político-institucional centralizada em favor do Exe-cutivo Federal. Esse projeto alternativo nãose esgotou ao final do mandato de Floriano(CASTRO, 1995). Em 1910, ao ser eleitopresidente, o Marechal Hermes da Fonsecatentou colocar em prática uma nova tenta-tiva de minar a configuração política enormativa que Campos Sales logrou con-solidar com a manobra que ficou conheci-da como “a Política dos Governadores”.Nem mesmo a frustrada campanha de “Sal-vação Nacional” proposta pela administra-ção de Hermes, que visava enviar oficiaismilitares para desalojar líderes oligarcas lo-

cais de seus postos de comando político(CARVALHO, 1985), arrefeceu o ânimooposicionista militar. Na década de 1920,ele ressurgiria na figura do movimentotenentista44. Em 1924, o nacionalismotenentista assumiu uma tonalidade mais ra-dical, impunhando a bandeira de um Esta-do mais centralizador e menos afeito a prá-ticas políticas liberais (até mesmo o sufrá-gio universal passou a ser visto como ummero instrumento de manipulação das mas-sas pelas elites oligárquicas) (FAUSTO,1970). Como sabemos, o teor desse “dis-curso” viria a ocupar posição central nocenário político pós-1930, assumindo umperfil ostensivamente anti-liberal e pró-corporativista (PERISSINOTTO, 1997).

3. As classes baixas e médias urbanas foramoutro foco de disseminação de “projetos dis-sidentes” da ordem vencedora posterior a1891: artesãos, alfaiates, jornalistas, peque-nos comerciantes e burocratas com poucaqualificação começaram a mostrar-se sim-páticos a um tipo de atuação do Estado nadinâmica política que divergia de um perfilliberal. Foram esses setores que levaramadiante a chamada “Revolta da Vacina”: in-satisfeitos com os impactos no custo devida urbano decorrentes das freqüentes cri-ses do café, apoiavam uma maior interven-ção do Estado na economia e até mesmoincentivos à industrialização (SAES, 1986).Foi nesse ambiente que o “movimentojacobino” prosperou, principalmente entreas classes baixas do Rio de Janeiro e ou-tros centros. Marcadamente nacionalistas(provavelmente em função da visibilidadeque os comerciantes portugueses ganhavama cada alta inflacionária), propunham a na-cionalização do comércio varejista, da pro-priedade da terra, da navegação mercante ede empresas de seguro, além de subsídiosaos pequenos produtores. Partidários de umregime presidencialista centralizador (sem

41 Tarefas legislativas deveriam ser unificadas pelo poderExecutivo já que a Câmara de Representantes teria a únicaprerrogativa de cuidar de questões orçamentárias. Vale di-zer, o processo eleitoral dessa câmara seguiria uma linhacorporativa.42 Em um projeto apresentado ao Governo Provisório em25 de dezembro de 1889, Teixeira Mendes salientava aimportância de melhorias nas condições de vida do proleta-riado como um pré-requisito para o progresso brasileiro.Seu projeto mencionava questões tão variadas quanto: sa-lário mínimo (o salário deveria ser dividido em duas partes,uma das quais seria uma espécie de gratificação), limitaçãoda jornada de trabalho diária (não mais que sete horas pordia) e semanal (feriados e domingos seriam livres), férias(15 dias/ano), pensões (dispensa paga em caso de doenças;pensões a viúvas e dependentes menores de 21 anos; apo-sentadoria àqueles com mais de 63 anos), estabilidade noemprego (conquistada após sete anos de trabalho no mes-mo local) dentre outros. Ver A incorporação do proletari-ado na sociedade moderna, no trabalho de Lins (1980).43 Ver Carta à S. Exa. o Sr. Dr. Joaquim Nabuco e Basesde uma constituição ditatorial federativa (publicada em 31de janeiro de 1890), em Paim (1981).

44 Em princípio, como comprovam as reivindicações darevolta de 1922, o principal objetivo era levar adiante umaespécie de “purificação do Estado”, acabando com a“corrupção generalizada” a partir da derrubada das oligar-quias. Clamava-se por reformas eleitorais que garantissemo voto secreto e a institucionalização de uma justiça eleito-ral autônoma (SAES, 1985).

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a presença de corpos legislativos, vistoscomo nocivos à unidade política da nação),reivindicavam a institucionalização de leisque protegessem os trabalhadores urbanose industriais, a jornada de oito horas/dia, eeducação elementar para todos (QUEIROZ,1986).

4. Há que se destacar, também, a existência deum “discurso intelectual de cunho autoritá-rio” concomitante ao aparecimento de vá-rias instituições de ensino superior no Bra-sil (PINHEIRO, 1985). Naquele contexto,inúmeros intelectuais que se interpretavamcomo portadores de uma missãomodernizadora para um atrasado Brasil(LAHUERTA, 1997) passaram a ver a or-dem vigente como um obstáculo ao pro-gresso nacional. Em linhas gerais, era esseo mote das obras de figuras como AlbertoTorres, Francisco Campos, Oliveira Viannae Azevedo Amaral. Lamounier (1985) su-gere que, guardadas as especificidades decada um deles, todos eram proponentes deuma espécie de “ideologia de Estado”, pelaqual a autoridade do aparelho estatal erapercebida como o princípio tutelar de umBrasil moderno.

5. Outra notória fonte de “dissenso discursivo”era certo setor da oligarquia gaúcha, em par-ticular aquele que veio a conquistar posiçãode hegemonia na dinâmica política do RioGrande do Sul após Floriano ter debelado aRevolução Federalista (1893-1895). Júlio deCastilhos, uma das figuras inauguradorasda linhagem política da qual descende Ge-túlio Vargas, era um admirador da filosofiasocial de Augusto Comte. Sua retórica com-binava a defesa de liberdades individuais comeducação elementar universal, secularizaçãonormativa e intervenção do Estado em be-nefício da proteção dos trabalhadores(LOVE, 1971)45. Tal orientação antiliberal,intervencionista e centralista não sofreu

mudanças significativas quando Borges deMedeiros o substituiu na liderança do Parti-do Republicano do RS e à frente do gover-no gaúcho. Vale notar, Medeiros enfatizavaque o Estado deveria manter-se fortementepresente na regulação da sociedade e daeconomia tendo em vista o bem comum(LINS, 1964). Não é de se admirar, pois,que em 1928 o então governador GetúlioVargas lançou subsídios a empreendedoreslocais além de incentivos tarifários aos ex-portadores de arroz e carne. Por fim, deuapoio à criação de associações de produto-res em resposta à crise que caiu sobre aeconomia gaúcha ao final da I Guerra Mun-dial.

6. É claro que os próprios trabalhadores urba-no-industriais converteram-se, ao longo dasquatro décadas que antecederam o desmon-te da República Velha, em formadores edisseminadores de projetos que rivalizavama ordem liberal vigente. A grande diversida-de das propostas e demandas das associa-ções de trabalhadores que agitaram a cenapolítica nos primórdios da industrializaçãobrasileira esteve, durante alguns anos, sobo domínio dos anarquistas. A imagem ne-gativa que atribuíam ao aparato estatal jus-tificava sua luta pela formação de organiza-ções autônomas e altamente descentraliza-da de trabalhadores a fim de que, uma vezlivremente associados, pudessem contro-lar a condução da produção econômica. Osanarco-sindicalistas, tendência que veio atornar-se predominante tanto em São Pau-lo quanto no Rio no final da década de 1910,concebia o sindicato como o mais impor-tante instrumento operário para a melhoriade suas condições de vida e trabalho(FAUSTO, 1976; ARAÚJO, 1998)46. Ha-via, ainda, tendências “reformistas” (ou

45 Enquanto governador no RS, Castilhos queria ainstitucionalização de um poder Executivo que governariasobre bases plebiscitárias ao lado de um Legislativo cujaúnica função seria lidar com questões orçamentárias. Defato, a Constituição gaúcha que ele e Assis Brasil elabora-ram logo após 1891 contava com um Legislativo unicameral(restrito a questões orçamentárias), amplas prerrogativasao Executivo (dentre as quais a aprovação de leis via decre-

tos, em última instância sujeitos à aprovação de conselhosmunicipais, e o poder de anular resoluções e atos de auto-ridades locais), a possibilidade de reeleição para governa-dor (número irrestrito de vezes, desde que aprovada por75% dos votos), supressão de todas as distinções entrefuncionários públicos e privados, e abolição de privilégiosprofissionais (LOVE, 1985).46 A implicação política dessa concepção era o desprezoda arena política liberal-democrática e das instituições cor-respondentes (partidos e dinâmica parlamentar) em favorda greve e outros instrumentos de “ação direta” (como

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“trabalhistas”, como quer Boris Fausto),cujas propostas tinham uma tonalidademarcadamente corporativista, acreditandona cooperação entre as classes sociais e namediação pelo Estado dos conflitos entreempregadores e empregados (ARAÚJO,1998). Havia, também, os socialistas e, maistarde, os comunistas. Os primeiros se or-ganizaram desde 1902, lançando como pla-taforma de luta a jornada de oito horas, res-trição do trabalho de menores (14 anos),proteção às mulheres e regulamentação dotrabalho noturno. Já os comunistas, fortesa partir dos anos 1920 (com a fundação doPCB), passaram a combinar a luta sindicalcom uma estratégia partidária tendo em vistaa subversão do padrão liberal de organiza-ção das condições de trabalho então vigen-te. Divergências internas resultariam nocontrole de certos sindicatos pela tendên-cia trotskista, segundo a qual as relaçõestrabalhistas somente poderiam ser efetiva-mente regulamentadas e, por conseguinte,os direitos trabalhistas realmente respeita-dos, caso o Estado assumisse posição demediação entre capital e trabalho(MUNAKATA, 1984).

7. Mesmo a emergente burguesia industrialpropagava “projetos dissonantes” na medi-da em que clamava por maior presença es-tatal na dinâmica econômica. Em linhasgerais, afirmava-se que somente uma pos-tura intervencionista e protetora do Estadopoderia garantir condições para que aimberbe indústria nacional pudesse prospe-rar em meio à competição internacional.Aquele foi o momento em que as divergên-cias entre agricultores-exportadores eindustrialistas começaram a tornar-se maispronunciadas – os primeiros afirmando queo Brasil deveria dar continuidade à sua “vo-cação agrícola”, os segundos dizendo quesomente a industrialização poderia trazer-

nos a almejada autonomia econômica. NoRio de Janeiro, tais divergências levaram àformação, já em 1904, de uma associaçãoautônoma de empreendedores industriais,o “Centro Industrial do Brasil” (CIB), em1919 desmembrado no “Centro das Indús-trias de Fiação e Tecelagem de Algodão”(CIFTA) (LEME, 1978). Em São Paulo, aseparação ganhou contornos mais salientesem 1928, com a fundação do “Centro In-dustrial do Estado de São Paulo”, cujas li-deranças (dentre eles Francisco Matarazzoe Roberto Simonsen) logo deram início auma franca campanha em favor de medi-das protetoras e incentivos à indústria bra-sileira (DINIZ, 1978)47.

8. Há que se mencionar, também, a existênciade uma espécie de “discurso legal dissiden-te”, que desde o início do século XX ex-pressava-se em diversas tentativas (algu-mas logradas) de modificar o teor liberalcom que a questão trabalhista fora molda-da desde a Legislação Penal de 1890, con-firmado pela Constituição de 1891(FAUSTO, 1976; VIANNA, 1989). Tal “dis-curso dissidente” já havia manifestado-seainda quando o presidente provisórioDeodoro da Fonseca institucionalizou me-didas que regulamentavam o trabalho de me-nores de 12 anos (Decreto n. 1 313), cujainspeção ficaria a cargo do Ministério doInterior (MORAES, 1978). Quatro anosmais tarde, o Congresso Nacional aprovouuma lei (n. 976, de 6 de janeiro de 1903)permitindo a organização de sindicatos portrabalhadores rurais, por meio dos quaispoderiam adquirir crédito e comercializar asua produção. Em 1905, um projeto de au-toria do Deputado Joaquim Inácio Tostapretendia a extensão de tal provisão para

sabotagem e boicote). Isso não significa que não lutassempela institucionalização da proteção ao trabalhador: ao con-trário disso, brigaram pela jornada de oito horas, pela pro-teção às mulheres e menores, pelo dia de descanso, porcompensações em caso de acidente de trabalho, pelamelhoria das condições higiênicas do ambiente de labuta,dentre outros (VIANNA, 1989).

47 É preciso que se diga que, com algumas raríssimasexceções (caso do CIB quando sob o comando de JorgeStreet), os industrialistas e comerciantes resistiram o quan-to puderam à institucionalização de medidas tomadas peloEstado em benefício dos trabalhadores, argumentando queisso encareceria ainda mais a produção nacional (GOMES,1986). Mas isso em nada contradizia sua reivindicação porum sistema de tarifas pró-indústria e uma política monetá-ria que lhes fosse mais favorável, além de créditos queestimulassem a produção e consumo de manufaturadosnacionais.

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profissionais liberais e a formação de sindi-catos e associações cooperativas a seremconsultadas pelo governo em questões re-lacionadas às suas atividades. Em 1917, oDeputado Nicanor de Carvalho pretendeusuperar o caráter fragmentário edesconectado das medidas até então pro-postas por meio da elaboração de um “Có-digo do Trabalho”. Para tal, foi formada umaComissão Legislativa responsável exclusi-vamente para lidar com questões sociais etrabalhistas. O referido “Código do Traba-lho” incluía provisões que abarcavam as-pectos tão variados quanto: contratos detrabalho, regulamentação do trabalho demulheres e menores, acidentes de trabalhoe a criação de comissões de conciliação deconflitos trabalhistas. A versão elaborada em1923 do “Código” proposto pelo DeputadoNicanor (Projeto n. 265) foi ainda maisampliada, incluindo uma série de ousadasmedidas: a delimitação da jornada de traba-lho (oito horas/dia, 48 horas/semana), adefinição da jornada semanal em seis dias,a obrigatoriedade de férias pagas (15 dias/ano), a idade mínima de 14 anos para in-gresso no mercado de trabalho (não maisque seis horas/dia), proibição de trabalhonoturno para mulheres e a criação de fun-dos de pensão. Ainda que todas essas pro-postas tenham enfrentado dura oposição,abriu-se de forma mais sistemática o cami-nho para tentativas de internalização da pro-blemática trabalhista pelo aparelho do Esta-do. Esse certamente foi o caso do “Depar-tamento Nacional do Trabalho” (Decreto n.3 550, de 16 de outubro de 1918), criadopara inspecionar o cumprimento de leis tra-balhistas, substituído cinco anos depois pelo“Conselho Nacional do Trabalho” (Decre-to n. 16 027, de 30 de abril de 1923). Pri-meiramente concebido como uma divisãode consulta do Ministério da Agricultura,Indústria e Comércio, o CNT acabou assu-mindo a responsabilidade de discutir e ela-borar projetos legislativos. Ao longo da dé-cada de 1920, a regulamentação de férias,o trabalho de menores e compensações deacidentes de trabalho (GOMES, 1986) re-ceberam enorme atenção legislativa, tendosido propostos inúmeros projetos de lei. Em1926, uma Emenda Constitucional confe-

riu ao Congresso Nacional legitimidade paralegislar sobre questões trabalhistas(VIANNA, 1989)48.

V. CONCLUSÕES

Ora, são notórias as similaridades entre, de umlado, o conjunto desses projetos normativos, desociedade; demandas, interesses, anseios e con-cepções de mundo brevemente assinalados naspáginas anteriores e, de outro, os padrões de so-ciabilidade e normatividade que se consolidaramao longo dos quinze anos que se seguiram à emer-gência de Vargas ao Governo Provisório (vide oDecreto n. 19 398, de 11 de novembro de 1930,as Constituições de 1934 e de 1937, e a CLT).Parece-me legítimo, pois, afirmar que muitos dos“projetos discrepantes”, vivenciados como práti-cas de lutas por direitos por uma ampla gama desetores da sociedade, co-habitaram a cena políti-ca da República Velha e confrontaram-se para es-tabelecer uma nova ordem normativa à socieda-de. Isso não implica dizer que a orientação da di-nâmica social pós-1930 já estivesse pré-determi-nada por aqueles atores e seus “discursos”. É aquique entra a dimensão contingente e agonística dacidadania: foi a existência de certas oportunida-des políticas, muitas das quais fomentadas pelosagentes e propostas em disputa, que deram achance para que aquelas “demandas discrepan-tes” saíssem das margens da ordem social, coa-dunassem-se e buscassem reconfigurar anormatividade e a sociabilidade à sua própria ima-gem49.

48 Talvez uma das últimas propostas ousadas de legisla-ção com teor social apresentadas antes do Golpe de 1930tenha sido de autoria do Dep. Agamenon Magalhães (valelembrar, figura nodal da Era Vargas) versando sobre a cria-ção de um “fundo de assistência e seguridade social”, quedeveria tornar obrigatória a assistência médica e farmacêu-tica aos trabalhadores. A oposição foi tão acentuada que aproposta não chegou nem mesmo a ser votada.49 Uma vez mais, quando falo de oportunidades políticasrefiro-me aos cinco aspectos anteriormente assinalados, asaber: a) a abertura de acesso institucional e não-institucional à participação de novos atores, até então mar-ginalizados no processo decisório; b) realinhamentos depoder no sistema político; c) o surgimento de novos alia-dos potencialmente influentes; d) o surgimento ouaprofundamento de fissuras no interior de elites; e, final-mente, e) o declínio da capacidade ou da vontade do Esta-do de coibir ou mesmo reprimir o dissenso.

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Como bem mostrou a historiografia da Repú-blica Velha, ao menos em duas ocasiões anterio-res ao Golpe de 1930 (as sucessões presidenciaisde 1910 e 1922) as bases daquela ordem manifes-taram de maneira mais acentuada suasvulnerabilidades, muitas das quais voltariam à tonana sucessão de 1929. Na sucessão do mineiroAfonso Pena, a aliança hegemônica São Paulo-Minas Gerais (que desde Prudente de Moraes con-seguira permanecer inabalada) viu-se ameaçada poroutras lideranças estaduais que, insatisfeitas comos desequilíbrios de poder na Federação, junta-ram-se ao redor do Senador gaúcho PinheiroMachado (fundador do Partido Republicano Con-servador) para apoiar a candidatura do MarechalHermes da Fonseca (enquanto São Paulo e Bahiauniram-se em torno da candidatura de Rui Barbo-sa, cuja plataforma bradava apoio aos cafeiculto-res). Conforme sugeri acima, ao ganhar, a cam-panha “salvacionista” de Hermes intentou minaros pilares do poder oligárquico, enviando oficiaispara assumir o poder no Ceará, em Alagoas,Pernambuco e Sergipe. A vitória do mineiroVenceslau Brás, em 1914, ajudaria a curar as feri-das então abertas.

O establishment oligárquico federativo ver-se-ia novamente abalado em 1922, quando três esta-dos de menor calibre (Rio de Janeiro, Bahia ePernambuco) juntaram-se a lideranças do RS paramais uma vez perfurar a aparente inquebrantávelcomposição São Paulo-Minas Gerais. A bem daverdade, tentativa parecida já havia sido feita em1918 por grupos políticos desses três mesmosestados, frustrados com a vitória de RodriguesAlves. Em 1920, o então governador de SP, Wa-shington Luís, uniu-se ao Governador de MinasGerais, Arthur Bernardes, para definir o políticomineiro como “candidato oficial” à sucessão deEpitácio Pessoa (que havia assumido a presidên-cia após a morte súbita de Rodrigues Alves). Foi adefinição do vice de Bernardes, o maranhenseUrbano Santos, que acabou alavancando as insa-tisfações dos estados menores, levando-os a jun-tarem-se a líderes gaúchos (dentre eles o gover-nador Borges de Medeiros) em torno da chapa deoposição Nilo Peçanha (Rio de Janeiro) – J. J.Seabra (Bahia), chamada de “Reação Republica-na”. A vitória de Bernardes não foi de pronto re-conhecida pela oposição, que reclamava em alto ebom tom do “demasiado apoio do governo fede-ral aos estados plantadores de café em detrimentodos demais”. Até mesmo o apoio dos militares foi

sugerido por Nilo a fim de que se constituísseuma “corte de honra” para decidir sobre o resul-tado das eleições. Epitácio, contudo, conseguiuapagar o incêndio.

Esse não seria o destino do pleito que colocouem disputa os governadores Júlio Prestes (SãoPaulo) e Getúlio Vargas (Rio Grande do Sul). Dessavez, a escolha do governador paulista como “can-didato oficial” frustrou as pretensões do políticomineiro Antônio Carlos, que queria levar seu esta-do ao comando da Presidência. Vital Soares (Bahia)foi escolhido para vice de Júlio Prestes, ao passoque MG e RS ofereceram a João Pessoa (Paraíba)o posto de vice do candidato Vargas. Como reve-lou a troca de cartas entre Washington Luís eGetúlio, o então presidente mostrou-se enorme-mente insatisfeito com a candidatura de seu anti-go Ministro da Fazenda50. Mas previra que Júlioganharia com folga, como foi de fato noticiadono dia 1o de março de 1930, por uma diferença demais de 200 mil votos. O resto da história todossabemos.

O que gostaria de salientar é que, em todasessas ocasiões, as brechas, vulnerabilidades e fe-ridas do arranjo político da República Velha vie-ram à tona. Joseph Love (1971) conseguiusintetizá-las de maneira bastante fiel: a) a lideran-ça da aliança São Paulo-Minas Gerais invariavel-mente levava o governo federal a canalizar esfor-ços demasiados à valorização do café em detri-mento e ao custo das economias de outros esta-dos da federação; b) outros estados sentiam-seindevidamente desconsiderados; c) eleições paragovernadores eram freqüentemente carregadas deproblemas de legitimidade, muitas vezes forçandoo governo central a intervir à revelia das oligar-quias locais; d) os acordos informais e a própriaestrutura institucional característica da RepúblicaVelha (estabilizada por Campos Sales) mostrava-se crescentemente incapaz de absorver novos se-tores que começaram a apresentar-se na cenapolítica de maneira cada vez mais pronunciada àmedida que o país urbanizava-se e a economiatornava-se mais complexa.

Foram precisamente essas fissuras que se abri-ram e se constituíram como “oportunidades polí-ticas” ótimas para que “projetos normativos alter-

50 Cf. o documento “Correspondência trocada entre Ge-túlio Vargas e Washington Luís”, reproduzida pela AgênciaAmericana (telegrafada) (A Revolução de 30, 1982).

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nativos” – fomentados de maneira contextual esituacional – assumissem posições de comando eredefinissem os rumos da sociedade brasileira deentão. É nesse exato sentido que, em vez de uma“cidadania à brasileira” – supostamente definida deantemão por esta ou aquela tendência macro (cul-tural ou econômica), advinda seja de uma pretensa

herança histórica ou de uma dada posição no cená-rio capitalista internacional –, defendo que enten-damos as diferentes configurações de direitos edeveres experimentados pela nossa sociedade comofomentadas e consolidadas entre práticas de lutase oportunidades políticas. Essas, a meu ver, sãochaves-explicativas que nos ajudam a compreen-der algumas das condições de possibilidade da cons-trução da cidadania no Brasil.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 189-193 FEV. 2009

POUVOIR, POLITIQUE ET VIE QUOTIDIENNE : UNE ETUDE ANTRHOPOLOGIQUESUR LA LUTTE ET LA RÉSISTANCE SOCIALE DANS L’AGGLOMÉRATION DE BUENOSAIRES

Mabel Grimberg

L’article traite des processus de protestation et résistance sociale en Argentine, à partir des résultatsd’une étude ethnographique sur la vulnérabilité sociale et politisation de la vie quotidienne dansl’agglomération de Buenos Aires. La recherche a été menée sur le chômage, la violence, l’usage dedrogues et le HIV-sida, entre 1995 et 2005, et s’est appuyée sur l’analyse des articulations entre lesformes de détresse et de souffrance sociale et les stratégies individuelles et collectives de protection,résistance et protestation de groupes subalternes, domiciliés dans l’axe sud de la ville de BuenosAires (San Telmo, Boca, Barracas, Lugano), dans la zone d’Avellaneda (Dock Sur et Torres deWilde) et La Matanza (Province de Buenos Aires). En nous appuyant sur une approche del’Anthropologie Politique axée sur les processus de la construction sociale de l’hégémonie et surdes concepts comme « tradition », « expérience » et « transaction », nous proposons qu’il estnécessaire en premier lieu de comprendre les processus de protestation et de résistance socialedans leurs multiples articulations et dans leur double nature de processus historiques et d’expériencesde vie, incluant sujets et collectivités. Cette approche donc doit centrer sur les tensions et lescontradictions de ces croisements. En second lieu, nous suggérons de les resituer dans les espacesde construction de pratiques et des sujets dans les principaux cadres des relations d’hégémonie ; enparticulier, il faut réfléchir sur les expériences et les modalités historiques d’organisation, les processusde la vie quotidienne et les sens que les protagonistes accordent à leurs pratiques.

MOTS-CLÉS : protestations sociales; hégémonie ; inégalité sociale ; vie quotidienne ; Ethnoghaphie.

* * *

AU-DELÀ D’UNE “CITOYENNETÉ À LA BRÉSILIENNE » : UN APERÇU CRITIQUE DELA PRODUCTION SOCIOLOGIQUE NATIONALE

Sérgio B. F. Tavolaro

La littérature nationale concernant « l’aventure de la citoyenneté au Brésil » suggère souvent queles termes de l’ordre normatif moderne se seraient introduits chez nous d’une façon particulièrelorsqu’ils sont opposés à ceux des prétendues « sociétés modernes centrales ». Comme indice decette « particularité », on évoque la prétendue singularité de l’institutionnalisation des garanties etdes obligations civiles, politiques et sociales chez nous : les voies empruntées, la séquence historiqueavouée, l’étendue et la profondeur concrètes de chacune, aussi bien leurs principaux piliers, seraientl’épreuve de « l’exception normative brésilienne ». Cet article consiste en un effort de révisioncritique : d’abord, je parlerai d’une façon ponctuelle et sélective de la littérature récente sur « lacytoyenneté au Brésil » afin d’identifier les difficultés et les dilemmes analytiques. Ensuite, je meconsacrerai à l’enjeu que j’estime être deux des principaux ancrages théoriques de la pensée socialebrésilienne, en éclairant les éléments influant nettement les interprétations concernant la prétendue« exception normative » du Brésil moderne. Enfin, je prônerai le besoin d’une mise en relief analytiquede la dimension contingente de la construction de la citoyenneté afin d’éviter les approches«essentialistes » des processus de définition de notre ordre normatif. A cet effet, je mènerai quelquesincursions historiographiques dans le but d’illustrer la tentative d’évier les dilemmes soulignés àpartir de la mise en oeuvre de deux idées clés : d’une part, la notion d’opportunités politiques et,d’autre part, l’idée selon laquelle des droits et des devoirs appartiennent aussi bien à des catégoriesjuridiques qu’aux pratiques situationnelles.

MOTS-CLÉS : citoyenneté au Brésil ; Sociologie Politique ; modernité ; essentialisme.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 181-185 FEV. 2009

ARTIGO DA MABEL GRIMBERG

BEYOND CITIZENSHIP IN ITS “PARTICULARLY BRAZILIAN” FORM: CRITICALCONSIDERATIONS ON NATIONAL SOCIOLOGICAL PRODUCTION

Sérgio B. F. Tavolaro

Brazilian literature on the “adventure of citizenship in Brazil” frequently suggests that the terms ofthe modern normative order were set up here in a peculiar form, if we consider them in relation tothose prevailing in what are referred to as the modern societies of “the center”. As an indication ofthis “exceptional nature”, allusions are made to the supposed particularities of the institutionalizationof political, social and civil guarantees and obligations in Brazil: the routes taken, the historicalsequence that has ensued, the actual depth and breadth of every one of them and of the bases thatsustain them, are seen as proof of “Brazilian normative deviance”. The present article representsan effort toward critical review. I begin with a specific and selective consideration on recent literatureon “citizenship in Brazil” meant to indicate some of the difficulties and analytical dilemmas. This isfollowed by a problematization of what I consider to be two of the main theoretical anchors ofBrazilian social thought, in order to shed light on elements having a decisive influence on interpretationsmade regarding modern Brazil’s alleged “normatively exceptional” character. Finally, I argue forthe need for an analytical emphasis on the contingent dimension of citizenship building, in order toavoid “essentializing” approaches to the processes that define our normative order. For these purposes,I will make some historiographic incursions meant to illustrate the type of attempts that have beenmade to deal with such dilemmas through the operationalization of two key ideas: on the one hand,the notion of political opportunities and on the other, the idea according to which rights and dutiesare not only juridical categories but also situated practices. .

KEYWORDS: citizenship in Brazil; Political Sociology; modernity; essentialism.

* * *

AUTHORITARIAN PENAL JUSTICE AND THE CONSOLIDATION OF A PUNITIVE STATEIN BRAZIL

Débora Pastana

The Brazilian democratic transition, still underway today, has run up against enormous difficulty inincorporating penal action. Or, put in yet stronger terms, we could say that the boundaries ofdemocratization processes, delineated through the action of that sector of the State, reveal the possibilitythat the juridical field remains immune to democratizing change. Although prevailing discourse amonglaw professionals asserts that Penal Justice is undergoing democratization, what we have observedin practice is a strong resistance within the juridical field to assuming political responsibilities withinthe consolidation of democracy. This article reports analyses and conclusions formulated throughobservation of the Brazilian penal justice system that gave origin to the thesis entitled “Penal Justicein Brazil today: democratic discourse, authoritarian practice”. The research sought to reflect oncontemporary criminal justice policy, which has been guided by the widening of repression and thecontinued use of incarceration. Such policy, carried out in Brazil since the beginning of the 1985“political opening” has adjusted itself to the liberal project that is also currently underway in thecountry, as well as in almost the entire Western capitalist world. As we can observe, Penal Justice,even during the execution of sentences, operates in authoritarian and exclusive ways, suppressingthe rights guaranteed by law to those who have been sentenced and adopting extremely repressiveforms as demonstrated by the extremely sparse benefits that it concedes. Thus, in Brazil, criminalityhas generally been responded through severe sentences, reflected in the absence of guarantees of