escravos de peleja - scielo · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002...

22
131 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POL˝TICA N” 18: 131-152 JUN. 2002 RESUMO Rev. Sociol. Polt., Curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 ESCRAVOS DE PELEJA: A INSTRUMENTALIZA˙ˆO DA VIOL˚NCIA ESCRAVA NA AMRICA PORTUGUESA (1580-1850) Carlos A. M. Lima Universidade Federal do ParanÆ Este artigo discute o lugar da violŒncia nas relaıes escravistas na AmØrica portuguesa. Para alØm da prÆtica senhorial do castigo e do recurso escravo rebeldia, atenta-se para a relativa normalidade da mobilizaªo de escravos para o exerccio da fora ao lado de seus senhores como mais um mecanismo de reiteraªo da dominaªo escravista. Discutem-se tambØm as variaıes pelas quais passou o fenmeno, alØm de seu significado para a reavaliaªo das concepıes relativas ao cativeiro. PALAVRAS-CHAVE: escravidªo; violŒncia; Brasil Colonial. I. INTRODU˙ˆO HÆ um tipo muito freqüente de concepªo a respeito da sociedade brasileira no passado que articula fortemente as temÆticas da exclusªo e do exerccio da violŒncia. O tema da anomia dos escravos, formulada pela chamada Escola So- ciolgica Paulista, foi muitas vezes lido como re- foro desse argumento. Nas leituras realizadas da produªo sobre a escravidªo dessa escola, a desso- cializaªo e portanto a exclusªo aparece como o destino inescapÆvel dos cativos. A violŒncia ins- crita na posse de escravos por motivos mercan- tis, ou, mais diretamente, o uso e o abuso do cas- tigo nas relaıes escravistas, teriam produzido aquilo que, conforme os autores, ficou conheci- do como anomia (FERNANDES, 1978), soci- alizaªo imperfeita (IANNI, 1962), ou proces- so de aniquilamento pela socializaªo incompleta e deformadora das possibilidades do escravo rea- gir como pessoa (CARDOSO, 1977, p. 147). preciso ressaltar, no entanto, que isso reti- nha fortes ambigüidades. Um exemplo Ø a discus- sªo de Fernandes a respeito dos mecanismos de estratificaªo. Ele pensa que sociedades depen- dentes subordinadas externamente (ou seja, su- jeitas a processos de extraªo de excedentes), mas com capacidade de crescimento econmico, vale dizer, de instituir e sustentar seus prprios grupos dominantes internos precisam combinar meca- nismos de estratificaªo em classes com pro- cessos estamentais de hierarquizaªo. Entenden- do classes como posiıes alcanadas a partir da posse da riqueza que se disputa em um merca- do, Fernandes sustenta que os mecanismos de extraªo de excedentes s nªo pauperizavam do- minantes internos pelo fato de que lhes era dado como que empurrar o prejuzo para baixo, lan- ando mªo de mecanismos nªo-mercantis de hie- rarquizaªo social, de modo que a inserªo dos grupos do topo das sociedades dependentes no mercado e em suas formas de estratificaªo fa- zia-os utilizarem-se de sua posiªo social para ins- tituir em suas prprias sociedades mecanismos nªo-mercantis de hierarquizaªo. Diversas formas de coerªo, portanto, reteriam um aspecto de in- clusªo na ordem social. AtØ que ponto a violŒncia implcita em tais mecanismos estamentais recebe ou nªo o estatuto de mecanismo de socializaªo Ø algo sobre o que julgo nªo poder haver consen- so 1 . 1 Sobre essa concepªo ligando o mercado a prÆticas que nªo o supıem, vide Fernandes (1973). indicativo dessa ambigüidade o fato de, em uma anÆlise de Fernandes sobre o equipamento por assim dizer trazido por ex-escravos para a sociedade ps-aboliªo, aparecerem duas expressıes antitØticas quase que lado a lado. Em Fernandes (1978), aparece na pÆgina 98 a expressªo mores afro-brasileiros, para na pÆgina seguinte o autor referir-se ao estado de anomia social transplantado do cativeiro. ARTIGO

Upload: others

Post on 27-Jun-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

131

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 131-152 JUN. 2002

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002

ESCRAVOS DE PELEJA:A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA ESCRAVA

NA AMÉRICA PORTUGUESA (1580-1850)

Carlos A. M. LimaUniversidade Federal do Paraná

Este artigo discute o lugar da violência nas relações escravistas na América portuguesa. Para além daprática senhorial do castigo e do recurso escravo à rebeldia, atenta-se para a relativa normalidade damobilização de escravos para o exercício da força ao lado de seus senhores como mais um mecanismo dereiteração da dominação escravista. Discutem-se também as variações pelas quais passou o fenômeno, alémde seu significado para a reavaliação das concepções relativas ao cativeiro.

PALAVRAS-CHAVE: escravidão; violência; Brasil Colonial.

I. INTRODUÇÃO

Há um tipo muito freqüente de concepção arespeito da sociedade brasileira no passado quearticula fortemente as temáticas da exclusão e doexercício da violência. O tema da �anomia� dosescravos, formulada pela chamada Escola So-ciológica Paulista, foi muitas vezes lido como re-forço desse argumento. Nas leituras realizadas daprodução sobre a escravidão dessa escola, a desso-cialização � e portanto a exclusão � aparece comoo destino inescapável dos cativos. A violência ins-crita na posse de escravos por motivos mercan-tis, ou, mais diretamente, o uso e o abuso do cas-tigo nas relações escravistas, teriam produzidoaquilo que, conforme os autores, ficou conheci-do como �anomia� (FERNANDES, 1978), �soci-alização imperfeita� (IANNI, 1962), ou �proces-so de aniquilamento pela socialização incompletae deformadora das possibilidades do escravo rea-gir como pessoa� (CARDOSO, 1977, p. 147).

É preciso ressaltar, no entanto, que isso reti-nha fortes ambigüidades. Um exemplo é a discus-são de Fernandes a respeito dos mecanismos deestratificação. Ele pensa que sociedades depen-dentes � subordinadas externamente (ou seja, su-jeitas a processos de extração de excedentes), mascom capacidade de crescimento econômico, valedizer, de instituir e sustentar seus próprios gruposdominantes internos � precisam combinar meca-

nismos de estratificação em �classes� com pro-cessos estamentais de hierarquização. Entenden-do �classes� como posições alcançadas a partirda posse da riqueza que se disputa em um merca-do, Fernandes sustenta que os mecanismos deextração de excedentes só não pauperizavam do-minantes internos pelo fato de que lhes era dadocomo que �empurrar o prejuízo para baixo�, lan-çando mão de mecanismos não-mercantis de hie-rarquização social, de modo que a inserção dosgrupos do topo das sociedades dependentes nomercado e em suas formas de estratificação fa-zia-os utilizarem-se de sua posição social para ins-tituir em suas próprias sociedades mecanismosnão-mercantis de hierarquização. Diversas formasde coerção, portanto, reteriam um aspecto de in-clusão na ordem social. Até que ponto a violênciaimplícita em tais mecanismos estamentais recebeou não o estatuto de mecanismo de socialização éalgo sobre o que julgo não poder haver consen-so1.

1 Sobre essa concepção ligando o mercado a práticas quenão o supõem, vide Fernandes (1973). É indicativo dessaambigüidade o fato de, em uma análise de Fernandes sobre oequipamento por assim dizer trazido por ex-escravos para asociedade pós-abolição, aparecerem duas expressõesantitéticas quase que lado a lado. Em Fernandes (1978),aparece na página 98 a expressão �mores afro-brasileiros�,para na página seguinte o autor referir-se ao �estado deanomia social transplantado do cativeiro�.

ARTIGO

Page 2: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

ESCRAVOS DE PELEJA

132

Este artigo, de outra parte, pretende levantaralgumas evidências e proceder a análises que refi-ram como relativamente freqüente um processointeiramente diferente. Ao invés de se enfatizaraqui a exclusão dos subalternos mediante odirecionamento para eles da violência, observa-sea inclusão dos mesmos mediante o agenciamentode seu envolvimento no exercício da força. Emoutras palavras, o que se quer aqui é chamar aatenção para a incorporação de subordinados apartir da instrumentalização de sua capacidade defazer a guerra. Isso, diga-se de passagem, nãoimplica afirmar que essa mobilização da capaci-dade de agredir vinda de baixo fosse algo maisimportante, mais volumoso, ou mais freqüente,que o processo inverso, indicado quanto a escra-vos pela figura do castigo. Não implica nem mes-mo subestimar-se a rebeldia, a qual, assim comoa repressão a cativos, devia ser muito maisfreqüente, assim como muito mais fundamentalpara a reprodução das relações sociais, que ainstrumentalização da capacidade escrava de ma-tar. Mas esta última estava lá também, e julgo quea observar é estratégico para compreender osmecanismos através dos quais escravos eram in-cluídos no tecido social.

É preciso mesmo atravessar, ainda quebrevemente, algumas discussões valorativas. Aênfase na exclusão violenta foi importante parapôr a nu o caráter perverso das relações sociaisno ambiente brasileiro. O que se observa aqui,repito, é uma espécie de imagem invertida daqui-lo, expressa na incorporação através da feitura daguerra. Representaria este último passo o intentode edulcorar a ordem brasileira? Parece-me evi-dente que não. Considero mesmo que a concep-ção mais freqüente (segundo a violência exclui)possui, ela sim, o referido risco de adocicar a so-ciedade brasileira quando considerada isoladamen-te. Isso porque pensar daquele modo significaencontrar na violência uma espécie de �porta desaída�. Se tornar passível de castigo exclui alguémda ordem, segue-se que tal ordem passa a poderser considerada como eminentemente �cordial�2.Mas e se, ao invés de �porta de saída�, a violênciafor tratada como �porta de entrada�? Estar-se-á,assim, atingindo um ponto muito mais fundamen-

tal, no sentido de expor o caráter perverso da or-dem brasileira, sua estruturação como autêntico�moedor de carne�. Estaremos, assim, diante daconsideração de que a força tem um papel absolu-tamente decisivo na estruturação das relações so-ciais na América portuguesa.

Alguns textos permitiram rever aquela versãoa respeito das relações entre violência e socializa-ção. Isso porque, se a agressividade podia incluir� como espero mostrar a partir de amplo materialdocumental colonial �, isso significa que ela nãose contrapunha à introjeção dos valores conside-rados intrínsecos à vida social, tal como ela seorganizava localmente.

Campos da violência, de Sílvia Lara (1988),tem o grande mérito de tratar a violência comoalgo que radica no centro da vida social no Brasilescravista. Ela refere-se ao fato de que boa partedaquilo que instituía a possibilidade de um �cam-po� de negociação e conflito entre senhores e es-cravos radicava na questão do exercício do casti-go. O que se negociava, basicamente, eram seuslimites. A motivação de grande parte dos confli-tos também era essa, isto é, a necessidade sentidasocialmente de moderação do uso da força porsenhores e feitores. Com isso, a limitação da vio-lência passa a ser considerada como algo que ha-bitava o centro das relações escravistas. Se bemque limitado, o uso da força ganhava com issofortíssima legitimidade a olhos contemporâneos.

O raciocínio aqui encaminhado tem algo nes-sa direção. A própria Silvia Lara chama a atençãopara a possibilidade de que escravos se tornas-sem, eventualmente, o �braço armado do senhor�(LA-RA, 1988, p. 193ss). E quanto a isso pensopoder acrescentar algo, chamando a atenção paraas situações realmente muito diversas nas quaisse esperava deles que empunhassem armas a fa-vor de seus senhores.

A bibliografia pertinente vem enfatizando ain-da dois outros mecanismos através dos quais aviolência adquiria sentido nas relações escravistas.Maria Helena Machado, em livro no qual discuteos padrões da criminalidade escrava na Provínciade São Paulo, com especial atenção para a rebel-dia, dirige nossa atenção também para a circuns-tância de que a �violência inerente ao sistema�escravista �perpassava� igualmente a comunida-de escrava, de modo que topamos aqui com ou-tro mecanismo através do qual cativos relaciona-vam-se intensamente com o uso da força: agres-

2 Refiro-me a que pode passar a ser considerada assim, embo-ra nem sempre o tenha sido sobre essa ambigüidade, é sem-pre fundamental reler Franco (1974).

Page 3: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

133

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 131-152 JUN. 2002

sões entre escravos (MACHADO, 1987, p. 42ss).Além do mais, uma historiografia muito recentevem enfatizando o uso da força por escravos emuma outra forma de articulação com acomunalização escrava. Não mais se enfatiza ouso da força como algo que vem de fora e ameaçaaquelas práticas comunitárias. Por outro lado, nãose acentua mais exclusivamente a �influência� daviolência do sistema sobre as práticas instituintesda comunidade cativa. Agora também dá-se rele-vo para o fato de a implementação de vínculoscomunitários por escravos poder dar sentido ainterações extremamente marcadas pela violência.Há um tipo de caso cuja análise vem se mostran-do estratégica para compreender essa questão, ouseja, o modo como práticas comunitárias escra-vas podiam, também elas, produzir e conferir sig-nificado a atos violentos � tais como os atos defilicídio (MATTOS, 1995, p. 124ss; FLOREN-TINO & GÓES, 1996; 1997; ARAÚJO, 2000).

Voltando à bibliografia que, ainda que em con-traste, ajuda a dimensionar o significado dainstrumentalização da violência escrava pelos se-nhores, é preciso referir o texto clássico de MariaSylvia de Carvalho Franco (1974). Nele, a difu-são da violência entre homens livres pobres � aquilodenominado por ela de �código do sertão� �conceitua a marginalização dos mesmos. Conhe-ce-se seu esquema de análise. Embora ela critiquena introdução de sua obra qualquer espécie de ra-ciocínio dualista, é importante em sua discussãoa contraposição entre áreas articuladas ao merca-do atlântico e extensas partes marcadas pela sub-sistência. O ponto em que rejeita o dualismo resi-de no fato de reconhecer que as relações sociaisconferem às áreas de subsistência um papel nareiteração das relações nos locais mercantilizados.Se o trabalho do campesinato daqueles lugares éentendido sob o ponto de vista de sua �desneces-sidade�, conforme a concepção de Antônio Cân-dido (CÂNDIDO, 1964), ele retém, por outro lado,forte papel no agenciamento dos mecanismos dedominação política vigentes nas unidades agroex-portadoras e mercantilizadas. Era sobretudo suacapacidade de exercer a força a serviço dos plan-tadores que os incluía nas margens do sistema, epara isso um inteiro �código� equipava-os � o�código do sertão�.

Desnecessários economicamente, eram manti-dos nas margens do sistema pelos senhores � enão exatamente fora dele � em virtude da possibi-lidade de setores e áreas mercantilizados (vale di-

zer, agroexportadores) da sociedade instrumentali-zarem sua capacidade de matar. Nessa análise,contraditoriamente, escravos acham-se incluídosna vida social organizada pelo próprio mercado,não se comportando como atores no manejo daforça. Seu lugar no esquema era o de pacientesdo braço armado da agroexportação. Mas o fatode a violência de livres pobres ser tratada comoum �código� tem enorme interesse para o argu-mento aqui proposto, embora a indagação que atra-vessa este artigo seja relativa à relação entre vio-lência e socialização no tocante a escravos.

As evidências aqui reunidas na direção de umainstrumentalização da capacidade escrava de ma-tar não têm a possibilidade de indicar a abrangênciado fenômeno em termos quantitativos. Nossa do-cumentação é extremamente dispersa, tanto notocante à sua natureza, quanto no que se relacio-na aos locais de sua produção dentro da Américaportuguesa. Aliás, aquele fenômeno era certamentemuito limitado quanto à sua incidência. No entan-to, não pretendo uma estimativa da sua amplitu-de, pois ele certamente era restrito. O que impor-ta não é isso. Diversamente, o que se enfatiza é ofato de que a instrumentalização senhorial da ca-pacidade de escravos para matar era algo muitocompreensível durante os séculos XVI, XVII eXVIII. Nesse sentido, o fato de o fenômeno serreferido em lugares muito diferentes e em tiposmuito diversos de documentos, mais que obstá-culo, consiste em possibilidade de observar umtipo de acontecimento que, restrito quantitati-vamente, podia aparecer como algo plenamentecompreendido e justificado em situações muitodiversas e independentes umas das outras. A dis-persão das referências usadas aqui, nesse senti-do, não deixa de ser bem-vinda.

Por outro lado, e ainda a respeito das fontes, épreciso não esquecer que a base das evidênciasdisponíveis são relatos e crônicas produzidas porsenhores. É claro que muito disso podia consistirem idealização e/ou incompreensão. Mas o queenfatizo é a legitimidade da mobilização da vio-lência escrava. Em outros termos, o importantenão é verificar se os fatos relatados transcorre-ram realmente. O decisivo é verificar a presença ea diversidade das manifestações de uma expecta-tiva de instrumentalização da violência ativa deescravos.

De fato, aquela expectativa, acompanhada darespectiva legitimação, pôde ser detectada em

Page 4: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

ESCRAVOS DE PELEJA

134

materiais extremamente diversos produzidos en-tre, grosso modo, 1580 e os meados do séculoXIX. Assim, consultei relatos leigos sobre o esta-do das colônias, sobretudo o de Gabriel Soares deSousa, do final do século XVI, e também narrati-vas de acontecimentos tidos então como marcan-tes, que podem ser exemplificadas com uma �re-lação� da resistência que se pôde antepor a corsá-rios no Rio de Janeiro do início do século XVIII.Observei igualmente narrativas eclesiásticas so-bre a missionação, pois os contatos com gruposindígenas foram questão fulcral para a formula-ção das percepções coevas sobre a violência dosescravos (africanos, afrodescendentes ou indíge-nas) durante os dois primeiros séculos da coloni-zação portuguesa. A documentação administrati-va compulsada � englobando correspondência ofi-cial de diversas instâncias, atas de órgãos delibe-rativos capazes de informar sobre práticas quoti-dianas e a legislação produzida em diversos con-textos � também fornece importantes chaves parao dimensionamento do fenômeno. Foram consul-tados processos de vários tipos, desde fés de ofí-cio até autos de tipo tanto cível quanto criminal.Por fim, trabalhei com relatos de viajantes e mes-mo com cartas pessoais de autoridades.

Como ficou dito, não é possível fazer qual-quer estimativa do volume ou da freqüência daspráticas de instrumentalização da violência aquiestudadas. Mas, como em relação a muitos pro-cedimentos nas ciências humanas, há questõesquanto às quais contribuir para a formulação deuma tipologia interessa mais que arriscar estima-tivas de volume e freqüência. A que abordo nestetexto é uma delas. Na impossibilidade de sabe-rem-se as dimensões ou o quanto era repetitivoum fenômeno, a plausibilidade de chegar perto dascondições em que tal fenômeno dava-se constituiavanço de grande interesse.

Tudo isso importa ainda mais quando se re-corda que o que se estuda aqui é uma expectativa,pois, como já mencionado, seria ingênuo imagi-nar que os relatos utilizados sobre instrumentali-zação da violência escrava dão necessariamenteacesso a práticas efetivas. Assim, as perguntasfeitas dirigem-se a questões como as seguintes:em que condições esperava-se eficácia da mobili-zação de escravos para a guerra senhorial? Emque tipo de relato expectativas como essas mani-festavam-se? Era alguma especificidade das cir-cunstâncias ou do adversário que motivava tenta-tivas de levar escravos a matar por seus senho-

res? Obtém-se, ao observar-se a questão no lon-go prazo e em locais e documentos dispersos, al-guma imagem relativa a variações no fenômeno?

A hipótese central deste estudo é a de que amobilização de escravos para a guerra � que tam-bém era do Estado � vigorou nos intervalos emque este apelou mais ao patrimonialismo da casasenhorial. Houve uma transição lenta, mas contí-nua e mesmo radicalizada a partir de meados doséculo XVII, para formas que, embora não rom-pessem definitivamente com o patrimonialismo,faziam com que esse tipo de prática se acoplassecada vez mais a formas de autonomização do Es-tado frente aos senhores. Com isso, prosseguin-do na hipótese, a violência institucionalizada en-volvendo cativos refugiou-se na esfera da �casa�senhorial. Ela sempre esteve lá. Mas agora elapassava a estar somente lá.

II. ESCRAVOS DE PELEJA

Gabriel Soares de Sousa (1938 [1587]) reali-zou, em 1587, um importante inventário das par-tes ocupadas da América portuguesa, pondo for-te ênfase na ameaça por vezes representada pelosindígenas. À exceção do que transparece em suasdescrições de Salvador e de Olinda, era só quan-do morriam que os cativos apareciam em seusrelatos sobre investidas dos nativos. Naquelas duascidades, as coisas eram diferentes, mas em seustextos sobre as outras partes ocupadas da Améri-ca portuguesa, a relação entre escravos e guerraaparece sobretudo nos relatos de estragos causa-dos por indígenas.

Assim, quanto à Capitania de Tamaracá ePernambuco, afirmava que o �gentio Pitiguar�, an-dando �mui levantado� contra os moradores por-tugueses, matou, com ajuda francesa, �muitoshomens brancos e escravos� (SOUSA, 1938[1587], p. 20). O Rei mandou, então, FructuosoBarbosa �povoar e fortificar� os referidos locais.Mas os �Pitiguares� deram cabo de �trinta e seishomens e alguns escravos em uma cilada�(ibidem).

Algo semelhante pôde ser descrito por Sousaem relação às ilhas de Boipeba e Tinharé. Erampovoadas de portugueses fugidos dos aimorés docontinente, que destruíram fazendas e �matarammuitos escravos� (idem, p. 53). Do mesmo modo,na Capitania dos Ilhéus, �em indo os escravos ouhomens [sic] ao campo não escapa[va]m a estesalarves�, ou seja, aos aimorés (idem, p. 56-57).

Page 5: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

135

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 131-152 JUN. 2002

De fato, nas Capitanias de Ilhéus e Porto Seguro,os aimorés pararam virtualmente os engenhos, poismataram �todos os escravos e gente deles, e adas mais fazendas�. Uns e outros desenvolveramforte temor, de um modo tal que �em se dizendoaimorés despejam as fazendas, e cada um traba-lha por se por em salvo, o que também fazem oshomens brancos�. Estimava a morte, em vinte ecinco anos, de mais de trezentos portugueses ede mais de três mil escravos (idem, p. 60).

Em relação a índios sob controle jesuítico, asavaliações de Soares de Sousa eram diferentes.Na enseada de Tatuapará, além de povoação deGarcia D�Ávila, com casas, igreja e currais, osjesuítas tinham �aldeia de índios forros Tupi-nambás�. Este último dado significava, antes detudo, a disponibilidade de �trezentos homens depeleja� (idem, p. 46-47).

Entre Jacuípe e Arembepe, uma área de seisléguas quadradas estava povoada de currais. ACompanhia de Jesus também tinha aldeias de �ín-dios forros� tupinambás e de outros grupos, cons-tituindo mais de 700 homens de peleja (idem, p.48).

Como ficou mencionado, Sousa mudava detom quando se referia a áreas de povoamentomelhor estabelecidas pelos portugueses. Referin-do-se especificamente a Salvador, escreve que,em caso de ataque, os inimigos, �se não levarema cidade do primeiro encontro, não a entram de-pois, porque pode ser socorrida por mar e porterra de muita gente portuguesa até a quantia dedois mil homens, de entre os quais podem sair dezmil escravos de peleja, a saber: quatro mil pretosde Guiné, e seis mil índios da terra mui bonsflecheiros, que juntos com a gente da cidade, sefará mui arrazoado exército com o qual corpo degente, sendo bem caudilhada, se pode fazer mui-to dano a muitos homens de armas, que saíremem terra, aonde se hão de achar mui embaraça-dos, e pelejados por entre o mato, que é mui cegoe ser-lhe-á forçado recolher-se com muita pres-sa, o que Deus não permita que aconteça, pelodespercebimento que esta cidade tem� (idem, p.143-144; sem grifos no original).

Acrescida a aristocrática presença portugue-sa, os combatentes em cativeiro passavam a con-tar-se pelos milhares, desde que �caudilhados�pelos da cidade. O Estado luso tirava partido dacapacidade dos senhores de mobilizar a guerraescrava. Antes já pudera escrever algo semelhan-

te quanto a Olinda. A cidade teria 700 vizinhos,mas havia muito mais no termo da mesma, espa-lhados por engenhos e roças, de modo que �quandofor necessário ajuntar-se esta gente com armas,por-se-ão em campo mais de três mil homens depeleja com os moradores da vila de Cosmos, en-tre os quais haverá quatrocentos homens de ca-valo. Esta gente pode trazer de suas fazendas qua-tro ou cinco mil escravos de Guiné e muitos dogentio da terra� (idem, p. 29; sem grifos no origi-nal).

Em outros lugares, os escravos limitavam-sea morrer, em caso de guerra. Essa era a expecta-tiva de Gabriel Soares. A aristocrática Bahia, di-versamente, já permitia coisa mais intensa. Áreassob controle estrito da concentração aristocráticade Salvador também poderiam contar com a mobi-lização militar de escravos. Soares afirma que Memde Sá, para expulsar franceses do Rio de Janeiro,embarcou, na Bahia, �a mor parte da gente nobre[...], e os homens de armas, que se puderam jun-tar, com muitos escravos e índios forros� (idem,p. 94; sem grifos no original).

O caso da utilização de escravos na defesa daBahia é muito claro na direção de informar queSoares de Sousa pensava em escravos na pelejano caso de áreas de forte concentração aristo-crática. A situação do Rio de Janeiro indicava algomuito parecido. A referência não se aplicava aopróprio momento da feitura do relato � a décadade 1580, quando o Rio de Janeiro já existia en-quanto assentamento português �; ela referia-seao momento da tomada da área de mãos france-sas, o que fôra feito sob estrito controle das auto-ridades e dos pretendentes a aristocratas radicadosna Bahia.

Assim, contra índios, só mesmo outros indí-genas, que, além do mais, deveriam estar �for-ros� e tendencialmente sob controle jesuítico.Contra outros europeus, tanto índios (aparente-mente não-aldeados, e às vezes explicitamentereferidos como escravos) quanto escravos � nes-te caso tendo em vista sobretudo a Bahia e Olinda,lugares de intensa concentração aristocrática.

Se, no século XVI, o problema da mobilizaçãode escravos aparecia restrito a áreas centrais daAmérica portuguesa, a questão começou a sofreralterações durante a centúria seguinte, e osenfrentamentos com índios foram um dos pontosfortes das referências à instrumentalização da vi-olência escrava. Já foi visto com Gabriel Soares

Page 6: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

ESCRAVOS DE PELEJA

136

de Sousa que, no século XVI, o que se esperavaera que escravos ao menos não fossem mortospor ataques indígenas. Já quanto ao século XVII,os relatos do Padre Martinho de Nantes, nas suasmissões entre os cariris do rio São Francisco, per-mite entrever algumas transições interessantes.

Na década de 1670, durante a qual missionouna América portuguesa, Nantes, capuchinho fran-cês, esteve envolvido em disputas com índios re-nitentes. Escreveu uma �Relação de uma guerraem que tive que ir, por ordem do governador daBahia, com os índios de nossas aldeias, para re-primir o furor dos selvagens que, numa noite,mataram, no rio de S. Francisco, oitenta e cincopessoas, tanto portugueses como negros, nas suaspróprias casas� (NANTES, 1979, p. 49; sem grifosno original)3.

É um pouco o que se viu com Soares de Sousa:em rincões afastados, em estado de dispersão se-guindo seus senhores, o lugar de escravos nosenfrentamentos armados era aquele dos que mor-riam. Isso persistia na segunda metade do séculoXVII. Aquela relação de uma guerra travada con-tra índios na área do São Francisco falava de ata-ques contra fazendas que matavam, além dos �do-nos�, �um escravo� (idem, p. 53)4.

Esse tipo de caso, no entanto, já aparecia jun-tamente com outras avaliações e relatos, nos quaissenhores logravam, mesmo em relativa dispersão,mobilizar a capacidade de matar de seus cativos.O mesmo Padre Martinho de Nantes defrontou-se com portugueses que se preparavam para en-frentar cariris, na direção da captura de escravos.Tratava-se de dois ou três lusos, �acompanhadosde seus negros, dos quais um deles era muito vi-olento e perigoso e, por isso, muito temido: haviajá assassinado um ou dois homens. Ele perguntouao capitão Emanuel de Sousa aonde ia e se não

viria juntar-se aos outros para se defender doscariris, que os queriam massacrar� (idem, p. 57).

O século XVII deixou outros indícios de que arelação de alguns escravos com a guerra contraíndios estava mudando. Lê-se em uma ata da Câ-mara de São Paulo, de 25 de agosto de 1657, que�pelo [...] procurador foi dito que para bem destavila e República e quietação dela mandassem osjuízes que se passasse quartel que nenhum negrotraga na vila paus nem arcos nem flechas pelasmuitas mortes que sucedem cada dia [...]� (Actasda Câmara da Villa de S. Paulo, 1915, p. 57).

Do São Francisco para São Paulo, e daí paraSalvador, prosseguem as referências seiscentistasà violência escrava instrumentalizada, sobretudocontra índios não-aldeados nem escravizados. Em1674, a Câmara de Salvador, escrevendo ao gover-nador Afonso Furtado sobre a guerra contra osgrens que, dizia-se, ameaçavam o recôncavo, nar-rava-lhe que a Coroa havia autorizado a propostadaquele governador �de que se deviam fardar [sic]aos Índios e negros que concorriam nas entradasda dita Guerra�5. Esperava-se continuidade dapresença de nativos e escravos na guerra, poisdeliberava-se que �se lhe[s] dê de uma cada anodas sobras do Contrato�, reduzindo-se as despe-sas (cf. PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVA-DOR, s/d, p. 7).

Assim, no final do século XVII começaram atornar-se menos raras as referências a escravosarmados em favor de seus senhores6. No XVI,como foi visto, Gabriel Soares achava isso possí-vel, mas imaginava-o tendo como condição umaforte concentração aristocrática. Em dispersão, aúnica atitude de senhores diante da relação entreseus cativos e a violência � indígena, por exemplo� era vê-los morrer. No século XVII, no entanto,as coisas já se mostravam bastante diferentes.

3 A expressão �negro�, que aparece nesse relato, assim comoem outros utilizados na seqüência do texto, não necessaria-mente se referia a africanos e a seus descendentes, tendopodido também ser aplicada a indígenas. Mas, quer no to-cante a africanos e seus descendentes, quer no tocante aíndios, a palavra �negros� estava eminentemente associada àcondição escrava, e é ela que está sendo pensada neste traba-lho.4 A mesma obra explicava dificuldades portuguesas contraindígenas como função da movimentação destes últimos,retirando eficácia das armas de fogo (cf. NANTES, 1979, p.52).

5 A referência dirige-se à intensa movimentação dos grensno Recôncavo Baiano e em áreas próximas, movimentaçãoesta ocorrida na esteira daquelas que constituíram, mais aoNorte, a Guerra dos Bárbaros.6 Quanto a Pernambuco, a historiografia fez algumas refe-rências à mobilização militar de escravos e não-brancos emgeral. Cf. sobretudo Mello (1975, p. 175ss), Mello (1988) eSilva (1999). Mas, em certos momentos, algumas de taisdiscussões superestimaram a dinâmica local como quadro deanálise exclusivo da questão.

Page 7: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

137

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 131-152 JUN. 2002

É estratégico, quanto a isso, observar que sepodem encontrar referências tranqüilas a este tipode coisa em área de povoamento disperso. ErnestoEnnes transcreveu uma fé de ofício escrita porvolta de 1705. Seu autor, João Martins Claro, �ser-viu por espaço de 20 anos nas Capitanias de San-tos, S. Paulo e N. Senhora da Conceição deTinhaem, nos postos de Sargento-Mor da Capita-nia de Tinhaem e Sargento-Mor da Capitania deS. Vicente e das mais vilas do Sul, desde 1677 a1705�7. Tratava-se, portanto, de aristocrata quese movimentara sobretudo nas partes litorâneas emeridionais do que hoje constitui o estado de SãoPaulo.

Em 1677, como soldado, Claro começou aacompanhar o administrador D. Rodrigo deCastelbranco pelo litoral até Paranaguá e todo osertão onde houvesse minas. A lista do serviçosque alegava ter prestado à Coroa era extensa: deentão até 1705, abrigou pessoas em sua casa, �àsua custa�; conduziu �escravos exploradores� (deminas); andou �na administração das datas efábrica real�; conduziu escravos, �armazém efábrica da administração� de São Paulo a Santos;deu �negros e oficiais de ferreiro, e carpinteiropara a fábrica de ferro de Birasoiava�; deu embar-cações para a condução de mantimentos; com-prou e manteve �roça� para o sustento de empre-endimentos patrocinados pelo Estado; protegeuautoridades de motins. É importante continuar essalista de serviços para que se tenha exata medidade que a mobilização de escravos para a guerra �que aparecerá rapidamente na mesma listagem �imiscuía-se em um conjunto muito diversificadoe característico de serviços patrimoniais presta-dos ao Estado.

Como Sargento-Mor da Capitania de N. Se-nhora de Itanhaém, gastava �muito de sua fazen-da com os soldados�. Além disso, forneceu cen-tenas de �pessoas de seu serviço de vários ofíciose trabalhadores� quando se resolveu �levantar umafábrica parra a fundição de ferro na vila deSorocaba�. Em 1700, ordenada a fortificação dapraça de Santos, Claro não tardou a �oferecer 20pessoas de seu serviço para o trabalho dela devários ofícios à sua custa�. Tardando o início dasobras �por falta de engenheiro e Índios�, ocupou

as �pessoas de seu serviço� na preparação �dosmateriais da obra dos quartéis da infantaria emque gastou seis meses�, abrindo mão, alegava, deir para as �minas de ouro�, conforme �muitaspessoas� faziam. Em 1704, socorreu o litoral con-tra uma lancha que fugira do Rio de Janeiro �commuitos castelhanos armados que tinham ido nasnaus de registro de Índias�. Por estar tempestuo-so o tempo, fê-lo por terra �à sua custa�. Em1705, tempo de fome, adquiriu, em Cananéia eIguape, mantimentos para a infantaria em lanchaque comprou para isso, tendo sido mal pago. As-sistiu �também [...] com o seu dinheiro empres-tado para as fardas dos soldados�. Atendeu, semsoldo, a chamado do �governador de Santos� con-tra �Piratas� que infestavam a costa. Dirigiu-se adiversas vilas a �reconduzir alguns soldados au-sentes�, além de ter, segundo afirmava, dado caçaa �facinorosos�, feito �grandes dispêndios emConfrarias e Irmandades� e servido de juiz ordi-nário, juiz de órfãos e provedor do Senado. Acres-centava também �saber bastantemente a raiz qua-drada�.

Tratava-se, enfim, de uma alentada folha deserviços prestados em termos patrimoniais à ad-ministração portuguesa na América. Em área depovoamento relativamente disperso, não cabendoportanto nas preocupações de Gabriel Soares emrestringir a mobilização de escravos apenas a lo-cais de forte concentração aristocrática, a fé deofício de Martins Claro referia-se à movimenta-ção de seus próprios escravos nos diversos com-bates nos quais se envolveu a serviço do Rei.

Nosso tema começa a aparecer quando ele afir-ma, sobre Santos, que, �estando aquele povo comgrande cuidado pelo temor de um Pirata que an-dava naquela costa [...] [ofereceu-se] ao Capitão-Mor com sua pessoa e escravos bem armados deque resultou aquietar-se o povo�. Posteriormen-te, �havendo notícia que na Ilha Grande haviamos Piratas tomado uma nau nossa�, aparelhou-se�com 50 homens, e 80 escravos para a ir restau-rar, o que não houve efeito por ser falsa a ditanotícia�.

Em 1699, agiu para tolher os movimentos deum �castelhano que havia [de] servir de guia paraa [sic] descobrimento� de minas de prata. Paraisso, deu �seis negros espingardeiros de seu ser-viço e bons sertanistas, por lhes haver pedido emnome de Vossa Majestade o Governador Artur deSá e Menezes, aprestando-os de todo o necessá-

7 A fé de ofício está transcrita em Ennes (1944, p. 200-202).

Page 8: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

ESCRAVOS DE PELEJA

138

rio à sua custa�. Assim, não só possuía escravosespingardeiros e sertanistas como os armava for-temente e os �dava� ao governador, isto é, atri-buía-lhes tarefas a serem realizadas fora de suaestrita vigilância. Para completar, o de sempre: �senesta diligência se adquirisse algum gentio aplica-va para as aldeias de Vossa Majestade a parte quelhe tocasse, o que o dito governador lhe agrade-ceu por carta sua�. Na ocasião, perdeu �um dosditos negros� (ENNES, 1944, p. 200-202). As-sim, em meio aos serviços militares prestados aoEstado, ganhavam destaque aqueles que ele faziaseus escravos prestarem.

As formas de envolvimento de escravos naguerra senhorial podiam tomar formas quase de-corativas, suntuárias, apontando para a ritualísticada formação de séquitos em meio a um ambientemilitar profundamente marcado pela distinção aris-tocrática8. Em seu �inventário�, lavrado quandose achava sob as garras da Inquisição, Nuno Alvesde Miranda deixava declarado que, antes de 1710,era Alferes de Infantaria e morador no Rio de Ja-neiro. Embora filho-família, possuía dois cativos,um �moleque� e uma �moleca�. O primeiro, cha-mado Joseph, era �seu tambor na companhia, deonze anos de idade e valerá cento e sessenta milréis�9. A figura do escravo que se insere na orga-nização militar dos senhores parece impor-se nessecaso. Essa idéia será perseguida em outras refe-rências. Suntuário (como séquito) ou propriamenteguerreiro, o envolvimento de escravos na guerrade seus senhores dava-se sob controle dos pro-prietários, mesmo quando ocorria relacionada coma movimentação de instituições mais formaliza-das. No caso de Miranda, há referência aformalização: atuava na infantaria, remetendo àformação como �companhia� (deviam ser orde-nanças, pois a organização da segunda linha rece-bia normalmente a denominação de terço). Mas,no interior desta organização � instituída legalmen-te (cf. LEONZO, 1977) �, o escravo aparecia re-ferido como �seu� tambor, embora fosse-o no in-terior da �companhia�.

O mesmo dava-se em um outro relato, quasecontemporâneo (1710) e relativo a Salvador. A

Câmara local queixava-se de, em conjuntura naqual �as guerras na Europa pediam nas conquis-tas multiplicados Presídios�, serem diminutos osTerços da guarnição da cidade. Havia neles pou-cos praças, além do mais sem �nobreza�, já queos �naturais da terra pessoas honradas� aborreci-am da condição de soldados. Isso se agravava pelofato de que as tais �pessoas honradas� não alcan-çariam o posto de alferes sem antes passar pelode sargento, e esta última patente, alegava a Câ-mara, vinha sendo submetida a �exercícios inde-corosos�. Tais exercícios consistiriam em acom-panhar �as Serpentinas dos Oficiais maiores (quesão as carruagens desta terra) emparelhados comos Negros que as carregam [a]os ombros� (cf.PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR,1973a, p. 11).

Esse arrazoado lembra que a instituição militaresteve envolvida em obsessivas considerações deprestígio social. Nesse ponto entravam os escra-vos dos oficiais. Ao que tudo indica, não matavam,nem empunhavam armas. Mas tratava-se de umambiente patrimonialista no qual recursos pessoaiseram trazidos para a feitura efetiva da guerra, mastambém para o encaminhamento das práticas ge-radoras de prestígio no interior da instituição.Nesse quadro, fazê-los participarem dascerimônias da organização militar era, ao menoscomo criados, ligá-los a um mundo todo específicode encenação de prestígio social.

Há, no entanto, mais elementos a seremextraídos do caso narrado acima. A organizaçãomilitar participava, sim, da obsessão com oprestígio que atravessava essa sociedadeprofundamente aristocrática. Mas o que ressaltonesse passo é a circunstância de que a vida militarfazia-o de um modo específico. Ela,aparentemente, instituía, através de seu gestual ede suas cerimônias, uma hierarquização que podiaàs vezes confrontar o escalonamento vigente nasociedade mais ampla, não no sentido de esbulharos princípios deste último, pois se tratava semprede prestígio, mas no de configurar-se como umaescala concorrente10.

8 Sobre essa questão da articulação entre atividade militar emobilização aristocrática, cf. Schwartz (1991).9 Vide um inventário dos bens de Nuno Alves de Miranda,onde se acha a declaração sobre o moleque José, em Novinsky(s/d, p. 225).

10 Essa concepção que se abre para a perceber no antigoRegime a vigência de um mesmo critério de atribuição deprestígio criando múltiplas hierarquias, e não uma única,aparece em Stone (1969). Alguns trabalhos usaram estemodelo na busca de aclarar diversos aspectos da vida socialna América portuguesa. Vide, por exemplo, Schwartz (1988)e Lima (2000).

Page 9: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

139

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 131-152 JUN. 2002

De passagem, note-se que essa possibilidadeabre espaço para que se pense em todo um mun-do de prestígio e honra sendo instituído em meioà atividade militar, mundo este que devia muito àvida social mais alargada no tocante a seus prin-cípios, mas que punha em destaque as suas pró-prias hierarquias. Embora o caso narrado não serefira a escravos exercendo a força, é nesse sen-tido que este artigo vem argumentando que amobilização de cativos para a guerra podia apare-cer na sociedade colonial como via para a sociali-zação. Se o aparato da feitura da guerra envolvia-se com momentos de hierarquização e de atribui-ção de prestígio, então ele podia estar a oferecerum caminho de inserção efetiva no tecido social.No caso analisado, repito, o envolvimento escra-vo com tudo isso se limitava a pô-los em sua con-dição de criados. Mas casos como este, ao per-mitirem-nos olhar de muito perto a organizaçãomilitar, podem auxiliar a compreender as outrassituações narradas neste trabalho, nas quais ainstrumentalização senhorial da violência escravaera efetiva.

Se a mera ostentação envolvia na guerra, a lutamesma e até a expectativa de os senhores obte-rem �buchas de canhão� podiam levar a eventostão surpreendentes quanto o cometimento de ar-mar oitocentos escravos. Ernesto Ennes transcre-veu um manuscrito por ele encontrado na Biblio-teca da Ajuda intitulado Relação da chegada daArmada Francesa a este Rio de Janeiro em 16 deagosto de 1710 (ENNES, 1944), recheado de in-dicações importantíssimas. Como se sabe, o Riode Janeiro foi alvo de dois grandes ataques decorsários franceses em 1710 e 1711. Por ocasiãodo primeiro deles, foi possível à população da ci-dade repelir a agressão, ao passo que o segundolevou a uma tomada da cidade e ao recurso a umresgate para aplacar os invasores. O documentosupracitado refere-se, portanto, à primeira dasinvasões francesas do início do século XVIII.

Foi vista, a partir de Gabriel Soares de Sousa,a possibilidade de mobilizações maciças deescravos tendo em vista as disputas entre potênciascoloniais. Algo nesse sentido, conjugando apossibilidade daquela mobilização com a con-centração aristocrática, ou seja, senhores organi-zados em grandes números liderando cativos emorganizações regulares (mas regulares no sentidode conjunções de processos personalizados dearregimentação), reaparece desde os primeirossinais da chegada dos franceses.

Treze dias após os primeiros avistamentos,chegou aviso de que seis navios estariam na IlhaGrande, doze léguas ao sul da cidade do Rio deJaneiro. Imediatamente, o Governador despachouuma companhia para a Ilha, a fim de incorporar-se a outra que já estava lá. A gente da vila sediadana ilha fez o mesmo, �que por todos dizem seriam500 homens fora negros� (ENNES, 1944, p. 237;sem grifos no original).

Estando os franceses já a chegar à cidade doRio, �acudia todo o povo da terra dentro com todapressa e cuidado, aos ecos da artilharia. Brancose pretos a cavalo e a pé muito bem armados lar-gando suas casas e famílias na extrema necessi-dade em que a terra se achava nessa ocasião semmantimentos pois havia seis meses não chovia�(idem, p. 237; sem grifos no original).

Os corsários haviam desembarcado emGuaratiba, localidade bastante próxima da cidade.O porto local �não tinha muita resistência por serpouco capaz de desembarque�. Ainda assim, osfranceses ali arribaram, em vista do que �osmoradores que ali se acharam com os seus negroslhes deram algumas cargas de mosquetaria e seretiraram por ser o poder do inimigo grande� (idem,p. 238; sem grifos no original).

A seguir os franceses foram guiados por �qua-tro negros de Bento do Amaral que haviam fugidode seu senhor na Ilha Grande para os navios doinimigo� (idem, p. 239). Neste caso, a inserçãode cativos na guerra senhorial parece ter-sepautado pelos esquemas que a historiografia vemchamando de �negociação� (REIS & SILVA,1988). O servir a outro senhor (os franceses, dequem não havia porque esperar algo como aliberdade) deve ter sido algo centrado na possi-bilidade de barganhar as condições do cativeiro.

Em meio a esses entreveros com os france-ses, ou mesmo em função deles, ocorriam tam-bém disputas entre atores locais. Os religiososbeneditinos entraram em conflito com um adminis-trador em virtude de questões de vizinhança(�acerca de uma janela que lhe abriu sobre a sualadeira e querer-lhe impedir que os ditos religiososlevantassem o seu muro por defronte da janela�).Houve então �tiros de parte a parte [e] morreu umnegro de uma bala perdida; mataram um mulatodos padres e o administrador ferido� (ibidem).

Conforme vem sendo defendido, a raiz dapossibilidade de manipular a capacidade escrava

Page 10: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

ESCRAVOS DE PELEJA

140

de matar residia na casa senhorial. Eram as poten-cialidades desta última quanto a essa manipulaçãoque o Estado luso tinha que mobilizar para lograrcombatentes cativos. Assim, mesmo em circuns-tância na qual era grande a necessidade deescravos de peleja, a violência escrava agenciadapela casa continuava atendendo a necessidades ori-ginadas na própria casa, e não apenas às do Esta-do.

Estando os franceses já na rua Direita (no cen-tro mesmo da cidade do Rio), investiram contra opalácio (a residência dos governadores da Capita-nia), mas também contra o trapiche. Por ocasiãodo ataque a este, foram baleados e morreram tre-ze �negros do dono do trapiche [...] em defesa dotrapiche� (idem, p. 242). Tomado este último pe-los invasores, passaram a atirar para a rua, �ondenos mataram alguns e feriram muitos principal-mente negros que em toda parte pelejaram comgrande valor ainda que levados da inuição [sic] deos despirem� (idem, p. 243). É possível que te-nha havido algum engano de transcrição e que setenha escrito �levados da intenção de os despi-rem�, indicando que os �negros� teriam sido mo-tivados também pela perspectiva de algum butima ser arrancado aos franceses. Ainda assim,ressalta-se o quanto envolveram-se na guerra deseus senhores. Ressalta-se, sobretudo, a necessi-dade em que se sentiu o autor do relato de admitiro grau em que a defesa da cidade demandara es-forços de pessoas que, convenhamos, não tinhamlá muitas razões para envolver-se nisso.

Menos de um mês depois da expulsão dos fran-ceses, os oficiais da Câmara do Rio de Janeiroescreviam ao Rei sobre o entrevero e avaliavamque �bastaram os que destacaram, e alguns homensmais com os pretos, que se acharam pelas ruaspara desbaratarem o inimigo�11.

Historiadores da escravidão nas Américas jáacentuaram um pouco de tudo quanto à posiçãodos escravos frente à fronteira entre potênciascoloniais em guerra. Alguns sustentam que per-corria as Américas a possibilidade de que a guerra

colonial criasse espécies de santuários � de fato,coutos � para os escravos dos outros. A Flóridaespanhola, por exemplo, era continuamente pon-to de chegada de fugas de cativos possuídos porcolonos da América inglesa � sobretudo dasCarolinas � durante o século XVIII (LANDERS,1999). A Venezuela também recebia escravos fugi-dos de Curaçao, sobretudo na chamada Costa deBarlavento, área que, no início do século XVIII,ainda não sofrera muito o povoamento espanhol.Isso, inclusive, ocorria com certa freqüência �embora os números evidentemente não devam tersido grandes �, pois criara-se ali o costume dealforriar os escravos do inimigo � no caso, holan-dês �, desde que se convertessem ao catolicismo(CASTILLO LARA, 1981). Assim � e os anterio-res seriam apenas exemplos isolados de uma prá-tica que, embora não muito maciça, era extrema-mente difusa �, o caso dos quatro �negros� fugi-tivos do tal Bento do Amaral poderia parecer a re-gra. Mas, nas expectativas do autor do relato docorso de 1710, o comum foi o contrário, envol-vendo-se os cativos do Rio nas disputas, mas afavor de seus senhores. Assim, os escravos refe-ridos aproximaram-se mais do modelo formuladopor outros historiadores do cativeiro. As discus-sões de Robin Blackburn fornecem exemplos con-trários àqueles, supracitados, relativos à Flórida eà Venezuela. Argumenta ele que os escravos cari-benhos não deviam acreditar muito nos coutospropiciados por potências inimigas das de seussenhores. Afinal, todas elas, na área, eramescravistas, e as garantias de santuário não de-vem ter parecido seguras o suficiente. Blackburnsugere mesmo que, em caso de guerra, escravoseram mais confiáveis politicamente, do ponto devista de seus proprietários, que servos europeuspor contrato (indentured servants). Isso porqueas disputas coloniais foram freqüentementesuperpostas a conflitos religiosos. Como muitosdos indentured eram condenados, era igualmenteusual que professassem credos diversos daquelesesposados oficialmente pelas metrópoles em cujascolônias eram sujeitos a trabalho forçado. Assim,tendiam com mais força que os cativos a aliançascom o inimigo. Por fim, em virtude de sua cor,era mais fácil aos indentured que aos escravosimiscuírem-se na população livre das áreas paraas quais fugiam, logrando esconder com maiorfacilidade sua procedência servil (BLACKBURN,1997, p. 316). Diante de tudo isso, a análise deBlackburn torna mais compreensível o destino dos

11 �Carta dos oficiais da Câmara do Rio de Janeiro, JoãoArias de Aguirre, Francisco de Macedo e Inacio Corrêa daSilva, na qual se dá conta da entrada dos franceses no rio deJaneiro, sua derrota e precauções que se devem tomar paraconjurar futuros perigos de nova invasão� (ENNES, 1944,p. 251).

Page 11: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

141

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 131-152 JUN. 2002

oitocentos escravos da cidade do Rio de Janeiro.

De fato, a mesma narração estima as forçasportuguesas, na cidade propriamente, em 8 200pessoas, das quais 500 �negros armados�. Nosarredores da cidade teria sido possível armar maisquase 7 000 pessoas, das quais 300 �negros ar-mados� (idem, p. 244). Estima-se no texto o sal-do de mortos e feridos em 40 �negros� mortos e60 feridos, ao passo que os brancos feridos teri-am sido cento e vinte. Essa guerra definitivamen-te não era dos escravos. Dos quatro escravos quepelejaram a favor dos franceses, três foram agar-rados e apenas um conseguiu escapar para o na-vio dos invasores.

O autor anônimo do relato chega a mencionarque a Irmandade de Nossa Senhora do Rosáriodos Pretos também participou da defesa da cida-de. Expulsos os franceses, iniciaram-se festivida-des. As igrejas da cidade, uma a uma, revezaram-se na realização de festas que duraram vários dias.Uma delas foi a Igreja do Rosário. Justificou-se ainclusão da capela da irmandade considerando fi-car ela �no meio do exército fazendo as costas dacapela-mor frente com ele, e os pretinhos have-rem-se e pelejarem com grande valor� (�Carta dosoficiais...� apud ENNES, 1944, p. 248; sem grifosno original).

No ano seguinte, corsários franceses finalmen-te lograram tomar momentaneamente a cidade doRio de Janeiro. Boxer narra que, no rastro da to-mada da cidade por Duguay-Trouin, em 1711, oGovernador das Minas Gerais enviou um grandecontingente de reforços (os quais se mostrariamno fim das contas inúteis). Eram �seis mil ho-mens da melhor e mais luzida gente, que tem asditas Minas, assim Forasteiros como Paulistas�,como afirmou o governador, Antônio de Albu-querque Coelho, cujas tropas incluíam linha, au-xiliares e ordenanças, bem como cavalaria. A maiorparte dos homens, segundo Boxer �armou-se earmou seus escravos� (BOXER, 1969, p. 123).Torna-se possível, a partir dessa breve mençãode Boxer, observar o enquadramento institucionalda inclusão subordinada da violência escrava. Oautor refere-se a todas as formas regulares demobilização de livres e faz seguir-se a isso umaespécie de apêndice constituído pelos escravosarmados por seus senhores. Assim, não valeriamuito a pena procurar por algum mecanismo maisformalizado de recrutamento de escravos. Seussenhores iam à luta e eles agregavam-se à movi-

mentação organizados cada um por seu proprie-tário, em um esquema fortemente personalizado.

Isso ressalta igualmente de um documentotranscrito por Taunay para descrever a mobilizaçãopara a guerra dos bárbaros do século XVII, quandosenhores baianos, mas sobretudo de outras par-tes do Nordeste, contando mesmo com a movi-mentação de paulistas, dirigiram-se agressivamentepara os então chamados �tapuias� de vastíssimaárea do sertão nordestino.

O Governador-Geral mandou expedir patenteconferindo ao paulista Domingos Jorge Velho acondição de �Governador da Gente da Conquistados Bárbaros do Rio Grande�. O conjunto do textonão é de grande interesse para o argumentovertente, a não ser por uma breve passagem naqual o governador chamava a atenção para a ne-cessidade de �se animar a infantaria paga, milicianae mais soldados pretos e índios� (TAUNAY, 1936,p. 41). Também aqui se obtém a imagem de es-cravos e índios mobilizados por fora dos esque-mas formais, embora também à sua maneira per-sonalizados, de tropas de linha, auxiliares (depoismilícias) e ordenanças. É possível que esse movi-mento de escravos escudeiros, ou apenas com-batentes, fosse derivado da prevalência, ainda naépoca moderna em Portugal, do esquema de com-bate com cavaleiros e infantes12. Esse esquema �a guerra de aristocratas com escudeiros �criados�� foi estendido ao Brasil. Capistrano de Abreusustentou há muito tempo que, dentre os �privilé-gios� inerentes aos cidadãos do Porto, estendidos�a várias cidades do Brasil, Maranhão, Bahia, Riode Janeiro e São Paulo pelo menos�, estava o de�que os serviçais agrícolas só fossem à guerracom os patrões� (ABREU, 1976, p. 218). Assim,a aparente informalidade do recrutamento da vio-lência escrava estaria informada pelo modelo dacasa senhorial em armas, assimilando-se os cati-vos a �criados� e a �serviçais agrícolas�.

Em estando correta a análise aqui encaminha-da, ou seja, de que a violência útil dos escravos

12 Sobre sua permanência ainda no final do século XVI � eem período próximo àquele de Gabriel Soares � vide Mar-ques (1980, p. 422), onde se descreve rapidamente o exérci-to de D. Sebastião na ocasião do desastre de Alcácer-Quibir:�15 500 infantes e 1 500 cavaleiros, além de algumas cente-nas mais de encarregados dos abastecimentos, criados, mu-lheres, escravos etc.�.

Page 12: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

ESCRAVOS DE PELEJA

142

serviu ao Estado com mais intensidade e freqüên-cia a partir da segunda metade do século XVII,vemo-nos diante da circunstância surpreendentede que o expediente ter-se-ia vulgarizado exata-mente no instante do auge da mobilização colonialcontra o quilombo dos Palmares. Isso surpreendetanto mais quanto se lembra que a repressão aesse mocambo desencadeou algumas reviravol-tas importantes na atuação estatal no tocante aescravos na América portuguesa, pelo menos ajulgar pela discussão de Sílvia Lara (LARA, 1996).De todo modo, foi ao longo do século XVIII queo processo começou a refluir. Em outros termos,a documentação dispersa consultada deixa a vivaimpressão (e por ser dispersa ela não permite maisque isso) de que, durante o século XVIII, come-çaram a mostrar-se sinais de um refluxo dainstrumentalização estatal da violência escrava, nadireção de um refúgio da mesma na casa senhori-al. Ela continuou a ser praticada, mas a mudançaque se percebe, quanto mais se olha para perío-dos próximos de meados do século XVIII, foi nosentido de que o Estado português deixou de fa-zer uso dela, isto é, abandonou a prática de utili-zar, para seus fins enquanto Estado, a capacidadedos senhores de escravos de mobilizar a poten-cialidade destes últimos para matar.

III. A NOVA FORMA DA ALIANÇA ESTADO-CASA SENHORIAL NO SÉCULO XVIII

Foi visto que, no mínimo desde 1657, a Câ-mara de São Paulo buscava reprimir o uso de ar-mas por cativos. Mas tal uso parece ter sido re-corrente, o que condiz com o esquema de análiseaqui encaminhado. Em 1738, registrou-se em SãoPaulo um edital �sobre a proibição de porretes denão poderem trazer os negros ou mulatos ou carijónem de dia nem de noite na forma que manda odr. Corregedor, em um dos capítulos de correiçãoque proveu no Senado da Câmara�. Ali se faziareferência a certa tolerância prévia em relação aescravos armados.

A correição avaliava os �danos à Repúblicapelas mortes e pancadas executadas�. Tais atos�se deviam evitar para maior sossego e quietaçãodo povo� e provinham �de se consentiremandarem os negros por esta cidade de dia e denoite com porretes de quatro quinas e roliçosdebaixo dos capotes e baetas e outras coberturasdisfarçadas�. A correição condenava esse tipo decoisa, da mesma forma que o fizera a Câmara em1657. Mas mesmo o ordenamento que reprimia o

uso de armas por escravos deixava escapar quepor muito tempo aquele uso foi consentido.

Traía até a percepção de quem o permitia. Oordenamento estabelecia punição com prisão eaçoites a �qualquer negro ou mulato, ou índio ououtra qualquer nação [encontrados] com os ditosporretes ou pau curto de dia ou noite� (Revista doArquivo Municipal, 1941, p. 149-150). A �baetaou capote ou outra qualquer cobertura� reverteriapara o oficial que efetuasse a prisão. Além disso,�serão os senhores dos ditos escravos por lhesconsentirem os ditos porretes pela primeira vezcondenados em 3$000, e pela segunda em 6$000e metade para os oficiais de justiça e milícia queos prenderem e a outra metade para as obras doConselho�. Senhores, portanto, permitiam o por-te de armas. Mas há mais: determina-se na proibi-ção até mesmo que as punições seriam mais seve-ras caso os escravos armados fossem encontra-dos à noite, o que permite entrever que tudo issoera permitido por senhores a seus escravos semmuita vigilância (ibidem).

Sílvia Correia de Freitas estudou um relatoprecioso sobre a posse de armas por escravos navila de Antonina, na Província do Paraná. Em1869, um escravo proveniente de Minas, que ti-nha ido para Antonina com seu senhor, foi encon-trado com uma �faca de ponta�, originando-sedisso um processo-crime. A análise de Freitas fazcom que observemos alguns elementos fundamen-tais sobre aquilo que podia cercar o uso de armaspor cativos. O proprietário do escravo, apesar deter ido com ele para o Paraná, achava-se ausente.O próprio cativo, enfatizavam as autoridades, vi-nha de fora, e o relato da autora sugere que se oconcebia como forasteiro. Ainda assim, a faca deponta a que o caso refere-se foi entregue ao cati-vo pelo feitor da estrada da Graciosa para que ele,sem supervisão � tanto que foi pego sozinho �,cortasse mato. Ausência do senhor e trabalho re-alizado em isolamento estão a indicar que a entre-ga de armas a escravos parecia ainda algo corri-queiro, embora não se tratasse de escravo domés-tico, por exemplo, a quem todos conhecessem eque mantivesse intensos laços pessoais com seuproprietário e com outros homens livres. O maissurpreendente, no entanto, é a circunstância deque o cativo foi encontrado com a faca no exatomomento em que fora procurar o delegado depolícia local (FREITAS, 2000a, p. 92-93; 2000b).Ressalte-se: o escravo foi procurar a autoridade

Page 13: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

143

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 131-152 JUN. 2002

armado da faca. Embora lacônico quanto a isso,o caso deixa entrever a concepção, do escravo,no sentido de ter sido coisa eminentemente nor-mal o fato de ele andar sozinho e armado.

Esse problema do porte de armas por escra-vos é de fato árduo de ser compreendido em suasimplicações. Veja-se, por exemplo, o seguinte caso,discutido pelo Conselho da Presidência da Pro-víncia de São Paulo, motivado pelo �requerimen-to do escravo Luiz pertencente à capela de S.Antônio; e a resposta do Administrador dela�: Es-tão �todos os escravos em circunstâncias de in-surgir, e que vivem armados de faca de ponta,ameaçando a vida do mesmo [do administrador];e tomando-se em consideração esta importantematéria, se deliberou, que se determinasse ao res-pectivo Capitão-Mor, que manda[sse] tirar todasas facas aos ditos escravos, e que asperamenteos repreendesse, advertindo-os, de que serão seve-ramente castigados, quando se não amoldem à de-vida obediência a seu Senhor, ao qual prestará paraeste fim todo o auxílio� (Ata da reunião de 7 denovembro de 1825, apud Documentos interessan-tes para a história e costumes de São Paulo, 1961,p. 88).

O fato de possuírem armas brancas aparente-mente só se tornou um problema no momento doconflito com o administrador. As facas seriamtomadas, é certo, mas a repreensão do Capitão-Mor ligar-se-ia tão somente às ameaças àquele.

Com ou sem armas, no entanto, escravos eramusualmente envolvidos nos conflitos pessoais deseus senhores. Em 1805, o Governador da Capi-tania de São Paulo relatava em um de seus ofícios�que vão para o Ministério�, em Lisboa, as agru-ras do �Doutor Físico-Mor da Capitania�, MarianoJosé do Amaral, envolvido em embates com o�pretérito Juiz Ordinário desta Cidade o CapitãoJoão Gomes Guimarães�. Em virtude dessas dis-putas, que o Governador considerava persegui-ções do Físico-Mor pelo Juiz, determinou-se aprisão de Mariano, contra o que bradava o Go-vernador Antônio José da Franca e Horta. Um casonormal de conflito entre autoridades cujo viés deatuação era plenamente patrimonial. Mas Horta nãocondenava apenas a prisão de Mariano; afirmavatambém que �de mais a mais [...] para seu maiorultraje estavam assalariados alguns Negros com odestino de na saída de Casa lhe darem apupadas�(Ofício de 30 de março de 1805, ao Visconde deAnadia, apud Documentos interessantes para a his-

tória e costumes de São Paulo, 1990, p. 146). Nãosabemos se os tais �Negros� eram ou não escra-vos, embora isso seja provável. Por outro lado,não se tratou de pancadas ou de tiros. �Negros�foram recrutados para produzir humilhação e nãodor ou morte. Ainda assim, o patrimonialismo e osentido aristocrático da vida social podiam mobili-zá-los para agressões. Mais significativo ainda, noentanto, era o fato de tudo estar recebendo fortecondenação por parte do Governador da Capita-nia, corroborando o esquema de análise aqui en-caminhado, no sentido de que o Estado estava,durante o século XVIII, livrando-se de uma liga-ção, já então antiga, com a violência útil dos es-cravos. Modernização burocratizante? Creio quenão. Observe-se que Franca e Horta prosseguiacom um linguajar e com atitudes patrimoniais,anulando as decisões do Juiz mediante simplesafirmação de que elas constituíam o �Culpávelexcesso de proceder contra um homem constitu-ído em Autoridade pública, já pelo Emprego deFísico-Mor, já pelo de Juiz Delegado da Real Jun-ta do Protomedicato, e o único Médico desta Ci-dade, encarregado da Botica Real, e Hospital Mili-tar, sem atenção alguma ao prejuízo da Real Fa-zenda, e Curativo dos Enfermos� (ibidem).

Sobre o mérito da questão, nada. Mais quecom alguma nítida disputa entre práticas patri-moniais e burocráticas, o que se lê confunde-secom a distinção entre estamento burocrático epatrimonialismo da casa senhorial, separação estaque se estava a construir a partir do final do sécu-lo XVII, segundo Faoro (1979).

O que se está argumentando vai no sentido deque a movimentação verificada na instrumentaliza-ção da violência escrava acompanhou um percur-so fundamental da vida política do Império Portu-guês, tal como ela foi descrita por Faoro. Execu-tou-se uma �viagem� (aliás �redonda�, por per-manecer centrada em concepções e práticas patri-moniais da política e da administração) do patri-monialismo da Casa Real para o estamento buro-crático. Paralela a tal �viagem�, teria ocorrido umaprogressiva alteração da relação entre Estado ecasa senhorial (por sua vez igualmente regida poruma concepção patrimonial da política e da admi-nistração). Uma primeira forma de aliança pro-moveu o recurso, pelo estado, à mobilização deescravos para a feitura da guerra, ancorada nacapacidade senhorial de instrumentalizar os seus�criados�, na terminologia da organização militar

Page 14: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

ESCRAVOS DE PELEJA

144

do início da época moderna. As formas de aliançaEstado-casa posteriormente estabelecidas, no en-tanto, não levaram à desmobilização dos cativos.Se a guerra do Estado não mais os envolvia, asnecessidades pessoais dos senhores de usar e abu-sar da força faziam-no. Leio Faoro entendendoque o fim da aliança entre estamento burocráticoe casa não significou nem a plena burocratizaçãodo Estado nem a �privatização� da casa. De fato,o aproveitamento aqui realizado das suas idéiasbusca levar em conta sugestões na direção de que,na esteira da indiferenciação entre público e pri-vado na ordem política brasileira, Estado e casanunca se contrapuseram enquanto atores em con-flito pela monopolização do aparato patrimonial dapolítica, a não ser episodicamente (SCHWARTZ-MAN, 1979; FRAGOSO, BICALHO & GOU-VEIA, 2001)13. A perspectiva de sua aliança, por-tanto, pôde mostrar-se durável. Mas as condiçõesde tal aliança sofreram alterações decisivas du-rante o intervalo. A prática da guerra, sobretudo,foi muito afetada por isso. Basta lembrar o quantoé longo o caminho que leva das práticas de mobi-lização de escravos como criados de seus senho-res, estudadas aqui, para as muito conhecidas cir-cunstâncias da Guerra do Paraguai, para a qual semobilizavam cativos mediante alforrias agencia-das pelo Estado, isto é, por intermédio de meca-nismos que tornavam independentes os escravosfrente a seus até então proprietários (SOUSA,1996)14.

Um caso relatado por Saint-Hilaire ajuda a

compreender um pouco de tudo isso, assim co-mo o quanto isso afetava a relação dos cativoscom a violência. Transitando pelos Campos Ge-rais em 1820, o viajante deparou-se com a fazen-da Fortaleza, do Tenente-Coronel de Milícias JoséFélix da Silva. Tratava-se de homem muito rico,casado com uma mulher que Saint-Hilaire definiucomo pobre. Como maltratava bastante esta últi-ma, ela providenciou emboscada, da qual Silvaescapou com ferimentos, o que levou à prisão damulher. Senhor, o Tenente-Coronel tirou-a da ca-deia e confinou-a na fazenda. O ambiente e osagentes da agressão pertenciam-lhe, de modo quetambém devia pertencer-lhe a punição (SAINT-HILAIRE, 1978, p. 42-44).

Um parágrafo de Saint-Hilaire põe-nos em con-tato com uma configuração patriarcal muito níti-da: �Fora José Félix da Silva que fundara a suapropriedade. Estabelecera-se em Fortaleza no co-meço do século. O lugar era então freqüentadounicamente por selvagens, e o seu nome era sem-pre pronunciado com temor. Mas, a partir dessaépoca, muitos agricultores se estabeleceram nasredondezas, animados pelo corajoso exemplo doprimeiro desbravador e certos de estarem prote-gidos dos índios por um homem poderoso, quecontava com numerosos escravos� (ibidem).

Protegidos, assim, por homem com muitos es-cravos. Isso quase equivale a dizer que os lavra-dores dos arredores da fazenda Fortaleza senti-am-se protegidos pelos escravos de José Félix.Mas a coisa era ainda mais complicada. Silva tam-bém maltratava seus escravos, tendo sido qualifi-cado por Saint-Hilaire como �impiedoso� em re-lação a eles, que o �detestavam�. O viajante chegaa referir que os cativos de Silva também já havi-am tentado matá-lo.

Ainda assim, �Os escravos de José Félix daSilva jamais iam trabalhar nas plantações sem es-tarem armados� (ibidem). Em uma única formu-lação, aparecem a legitimidade da violência útil dosescravos e o grau em que estamos proibidos dever em tal tipo de fenômeno alguma espécie deidealização da escravidão. Questões políticas en-caminhadas e legitimadas senhorialmente envol-viam escravos e sua capacidade de matar, aglu-tinando-os ao redor do lugar material e simbólicoda casa de seus senhores. Tudo isso, no entanto,desenrolava-se em ambiente de fortíssima disse-minação tanto da violência contra cativos quantoda rebeldia dos mesmos.

13 A historiografia do Império Brasileiro ajuda a compreen-der o ponto. Em uma percepção, a formação do Estadobrasileiro no século XIX implicou o estabelecimento da�direção política� de um setor dos plantadores � a cafeicul-tura fluminense com visão de longo prazo sobre a própriaconformação de um Estado brasileiro �, configurando o quese denominou de �tempo saquarema� (cf. MATTOS, 1987).Em outra percepção, a �construção da ordem� oscilou entrea criação de uma nova elite política com relativa indepen-dência frente aos plantadores e centrada na construção doaparato estatal, de um lado, e, de outro lado, a perspectiva deque isso implicava a criação de condições para a �mediação�dos embates da casa (cf. CARVALHO, 1988).14 Aquele trânsito da situação em que a guerra do Estadomobilizava escravos por meio dos seus senhores para a cir-cunstância na qual o Estado mobilizava soldados escravosautonomizando-os de seus proprietários pode ter sido influ-enciado por uma espécie de efeito-demonstração, definido apartir das independências da América Espanhola (cf. váriaspassagens de MÖRNER, 1969, p. 82ss).

Page 15: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

145

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 131-152 JUN. 2002

Vem sendo defendido aqui que, da utilizaçãopelo Estado da violência escrava garantida na casasenhorial, passou-se, ao longo do século XVIII,para a situação em que a força útil dos cativospermanecia instrumento senhorial apenas no inte-rior da casa. Mas isso não deve ser entendidocomo periodização férrea e livre de contra-mar-chas. Há, quanto a isso, uma forte ilustração emuma carta daquele que teria sido o governante ilus-trado paradigmático na época pombalina. Escre-vendo em 20 de junho de 1775 ao Governador deMinas Gerais, o Marquês do Lavradio descreviauma resolução que havia tomado quanto à defesado Rio de Janeiro, como resposta a pavores lo-cais e metropolitanos quanto a possíveis agres-sões castelhanas à América portuguesa: �Ordenoos terços da Cidade, que são repartidos com se-paração de freguesia, e nelas as companhias comseparação de umas, que o capitão, e oficiais decada companhia alistem, os negros escravos dosseus distritos, que para estes tenha cada um dossenhores aquelas armas que eles escolherem, jáseja lança, chuço, espingarda, flechas ou qualqueroutra qualidade de armas ofensivas, segundo ocômodo, e possibilidade de cada um� (MAR-QUÊS DO LAVRADIO, 1978, p. 161ss).

Embora tardiamente, reaparecem no texto deLavradio alguns temas já tratados. O Estado pare-cia pretender reeditar a aliança com aspotencialidades bélicas dos escravos mobilizadospela casa senhorial (mas, passado o grandemomento daquela aliança, a coisa toda não sairiado papel, como veremos). Em meio a este assomobarroco, o Marquês elabora uma grande cadeiade fidelidades que tem na ponta final ainstrumentalização da violência escrava, novamenteutilizada pelo Estado. Ele manda; capitães dosterços auxiliares organizam; senhores comandame financiam e escravos preparam-se para morrerpelejando pelos outros (além do que já se viu so-bre os incidentes no Rio em 1710, a perspectivade que qualquer arma poderia ser utilizada, a cri-tério dos senhores, não era muito animadora paraquem desejasse sobreviver a recontros armados).O perigo externo, como se via desde Gabriel So-ares de Sousa, comandava a oportunidade do re-curso. O âmbito da casa era levado a aliar-se aodo Estado na emergência, mobilizando a forçabruta dos escravos. Tudo isso, que parecia enter-rado pela independência do estamento burocráti-

co frente à casa senhorial, e que de fato já perderamuito de sua oportunidade, reapareceu na cabeçade Lavradio. Aliás, é muito significativo da nor-malidade com que se encarava a imagem deescravos guerreando por seus senhores o fato detal assomo barroco ter-se dado exatamente comoparadigma da governação ilustrada na Américaportuguesa15.

Lavradio pensava em uma organização em ca-deia, como mencionado. Com isso, um tom for-temente hierárquico atravessava o projeto. Plane-java que �a gente de cada uma destas companhias[fosse] dividida em duas outras companhias con-forme o número que houve[sse] de gente, nome-ando daqueles mesmos pretos para capitães, alfe-res, e oficiais inferiores os que se acha[ssem] demais propósito� (MARQUÊS DO LAVRADIO,1978 [1769-1776], p. 161). Dessa forma, a ca-deia de fidelidades completava-se introduzindo umahierarquia no grupo escravo mobilizado.

A concepção de que a dominação escravistana América portuguesa produzia hierarquias in-ternas ao grupo escravo vem sendo enfatizada nosúltimos anos. De certo modo, Gilberto Freyre jásugeria algo nesse sentido ao longo das décadasde polêmica que se seguiram à publicação de Casa-grande & senzala, reconhecendo que a imagemadocicada e amorável da escravidão construídanaquela obra ter-se-ia aplicado acima de tudo aum segmento �privilegiado� de escravos domés-ticos dos engenhos16. Posteriormente, as discus-sões sobre categorias raciais nas Américas suge-riram que os ambientes propícios à diferenciaçãopor cor dos não-brancos eram aqueles que insti-tuíam mecanismos de hierarquizacão dos mesmosnão-brancos, como recurso para enfrentar os di-lemas do controle social em meio a uma alegadacarência de imigrantes europeus, não se descar-tando a inclusão de escravos nisso (HARRIS,1967). Mais recentemente, estudos a respeito dediversas instituições com as quais escravos en-volviam-se depararam-se com indícios de hierar-

15 Isso pode ser visto como mais um dos �paradoxos� daIlustração no ambiente luso, tal como eles foram analisadospor Maxwell (1996). Sobre a governação do Marquês, videAlden (1968).16 Vide as notas acrescentadas ao livro por ocasião de suasdiversas reedições (FREYRE, s/d [1933], p. 89ss).

Page 16: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

ESCRAVOS DE PELEJA

146

quização e de fortes disputas ao redor da mes-ma17. O trecho supracitado do Marquês do La-vradio indica que as expectativas senhoriais quantoà utilização das potencialidades bélicas dos cati-vos envolviam o estabelecimento de segmentosescravos diferenciados e escalonados. Viu-se an-tes que a organização militar na América podiaeventualmente criar �torres� próprias, segundo aexpressão de Stone, no sentido de que um mes-mo critério de estratificação podia instituir diver-sas escalas, por vezes concorrentes. O plano deLavradio indica que as perspectivas senhoriaiscontemplavam a possibilidade, e talvez a necessi-dade, de que alguma pequena �torre� pudesse res-pingar para os cativos que se envolvessem noexercício da força em nome de seus donos. As-sim se compreende que a instrumentalização dacapacidade escrava de matar podia constituir, aomenos segundo as expectativas dos senhores, uma�porta de entrada� para a inserção no tecido soci-al. A partir dela podiam estabelecer-se estratégiasde distinção. A violência, nesses casos, relaciona-va-se com os mecanismos através dos quais es-cravos podiam efetivar percursos valorizados navida social.

Mas prossigamos. O término da cadeia, noplano do Marquês, como foi visto, confundia-secom uma massa de escravos dispostos a morrer.De fato, escrevia o Marquês que �a esta gente lhenão mando fazer nenhum exercício, só lhe orde-no, que no caso de um rebate geral devem todoscom as armas que lhe forem destinadas, irem-sejuntar detrás das suas companhias�. Além da pre-cariedade do armamento, também não seria for-necido aos escravos de peleja nenhum treinamen-to. Por outro lado, fica reafirmado aqui que o lu-gar dos escravos no embate seria externo à orga-nização formalizada dos corpos militares, o quetransparece na expressão �detrás de suas compa-nhias�. Isso imporia, pensava Lavradio, algumestímulo: �e ali [isto é, detrás das companhias]determino fazer-lhe[s] declarar que aqueles, quefizerem ação distinta, como o defenderem o de-sembarque de algum porto, o desalojarem de al-gum porto o inimigo, o tomarem dentro do portoalguma embarcação, ou porem fogo a alguma dosinimigos, ou embaraçar-lhe[s] algum passo queeles queiram franquear depois de desembarcados;que terão a sua alforria no caso dos senhores lha

quererem dar a terão de seu senhor, e não queren-do eles fazer-lhe esta justa recompensa, se alivia-rá o seu valor, que serão [sic] satisfeito o senhorpela fazenda real, de quem ele receberá depois aliberdade; deste modo julgo aumentarei muito onúmero de defensores, e com a esperança de umprêmio, para eles tão importante, julgo lhe[s] dareivalor para eles se exporem às ações mais arris-cadas� (MARQUÊS DO LAVRADIO, 1978 [1769-1776], p. 161).

O difícil seria que alguém mal armado sobre-vivesse a cometimentos como os esperados porLavradio. Além do mais, �Isto que agora te co-munico ainda não o tenho principiado a praticar, adeclaração do prêmio, não determino fazer-lha,senão no caso de ser preciso juntá-los para a ação;faço primeiro alistá-los, isto feito determino fazer-lhes alguns rebates falsos para os fazer acudir aosseus postos, e todo o mais o tempo, ficam elesservindo a seus senhores nos diferentes serviços,em que cada um deles os costuma empregar�(ibidem).

De fato, o tempo de escravos pelejando peloEstado já havia passado, embora eles prosseguis-sem tendo que lutar por seus senhores. O Mar-quês não parece ter encaminhado o projeto, segun-do se julga por sua correspondência oficial, tam-bém consultada (MARQUÊS DO LAVRADIO,1962a [1770-1777]; 1962b [1777-1778]), e pelabibliografia a respeito do período. Além do mais,fora arribadas forçadas, os entreveros com cas-telhanos limitaram-se às partes meridionais daAmérica portuguesa, e Lavradio indica projetorelativo ao Rio de Janeiro.

Há um outro caso muito eloqüente quanto ademonstrar que a mobilização de escravos para aguerra do Estado já perdera muito do seu caráterde coisa quotidiana no final do século XVIII e noinício do seguinte, senão durante todo ele. Em 1834publicou-se um tomo das Viagens e observaçõesde um Brasileiro, que desejando ser útil à suapátria, se dedicou a estudar os usos e costumes deseus patrícios e os três reinos da natureza em vá-rios lugares e sertões do Brasil, oferecidas à Na-ção Brasileira, do natural da vila do Lagarto (noatual estado de Sergipe) Antônio Moniz de Sousa.O livro inicia-se com trecho não assinado, prova-velmente de autoria do editor de 1834, ou do pró-prio Moniz de Sousa, com alguns elogios e umabreve biografia. Há ali uma passagem na qual, afim de dar conta do caráter generoso de Antônio,

17 Um exemplo é a análise de Mary Karasch a respeito dasirmandades negras (KARASCH, 2000, p. 341-396).

Page 17: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

147

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 131-152 JUN. 2002

explica-se que, após pelejar em conflitos locais davila do Lagarto, ele �resolveu-se a lançar-se emum mundo mais vasto, e arrostrar [sic] a fortunadas armas, indo defender o Reino então invadidopelos Franceses em 1807. Com esta resolução,filha dum gênio empreendedor, e invejoso de lan-ces e novidades, e cheio de entusiasmo e espe-ranças, ele embarcou com dois fiéis escravos ealgum dinheiro, únicos restos do seu patrimônio�(SOUSA, 1945 [1834], p. 19).

O Quixote sergipano, no entanto, não chegoua Portugal. A embarcação naufragou emPernambuco e ele foi para o Rio de Janeiro. Ofundamental é o tom do relato, que, repito, não sesabe se foi escrito pelo editor ou se pelo próprioAntônio. Fica-se com a impressão de que o ato dedirigir-se a Portugal para �defender o Reino�, esobretudo o ir-se com escravos, afigurava-se algoanacrônico, ou então inesperado18. Se auto-elo-gio, o acento recairia no caráter inusitado da faça-nha pretendida. Se texto do editor, poder-se-iaprocurar mesmo algum sarcasmo. O fato é quenormal o ato definitivamente não era.

Embora já estivesse muito desligada da atuaçãodo Estado, a violência útil dos escravos, no iníciodo século XIX, ainda se vinculava a instituiçõessociais decisivas. Um caso passado na cidade doRio de Janeiro ajuda a compreendê-lo.

José Botelho era mestre carpinteiro da ribeira.Em 1827, muitos dos oficiais que trabalhavam emsuas obras projetaram um conflito com ele. Nãoembarcariam para a realização de suas tarefas, amenos que Botelho reajustasse seus ganhos.Botelho entrou em discussão acirrada com aqueleque parecia liderá-los, Francisco de Araújo. Haviaentão, por volta das 14 horas de dia não especifi-cado, �grande multidão de gente do ofício de Car-pinteiro, e outras artes [...] para embarcarem aoseu serviço� (ARQUIVO NACIONAL, 1828).

Araújo chegou a �acometer o autor [Botelho]com gestos e palavras arrogantes acerca de lheaumentar, e aos mais oficiais os jornais, chegouao excesso de chamar-lhe em altas vozes o ultra-jante nome de � corno �; ouvindo os mais ofici-ais, e toda aquela gente que estava presente: o quemais aumentou a vergonha do Autor� (idem).

Botelho, contudo, tinha um escravo mulato que,no instante da ofensa, atirou-se contra Araújo,buscando agredi-lo com um enxó, segundo o re-lato de uma testemunha. A altercação sobre jor-nais e a forma incipiente de greve encaminhadapelos oficiais carpinteiros �de machado� e �da ri-beira� (isto é, construtores navais) não parecemter comovido muito o escravo, que, no entanto,imediatamente levantou-se em função do ataque àhonra senhorial, atrelada à organização familiar.Quanto a Botelho ter sido mau patrão, tudo bem:mas chamar seu senhor de �corno� era inadmis-sível (idem, f. 6-6v).

De cerca de um século antes disso vem umrelato soteropolitano mostrando um escravo rea-gindo com vigor ao que lhe pareceu uma afrontaao domicílio senhorial. O caso de Botelho mostroua possibilidade de emergir disputa quando a questãoera familiar. O que se narra brevemente agora serefere circunstâncias nas quais uma instituiçãopróxima à da família � o domicílio � parecia estarsob ataque.

Em 1724, o Juiz de Fora (ou seja, o Ouvidor),o Vereador mais velho, o Procurador e o Escrivãoda Câmara da cidade de Salvador, juntamente commestres pedreiros, foram vistoriar uma fonte ava-riada. Mostrou-se necessário, para tal, ver tam-bém um poço localizado no quintal de um certoSargento-Mor José Batista de Carvalho. O poço,no entanto, tinha um tampo de madeira fechado acadeado, de modo que o Juiz de Fora ordenou aJoão Batista, escravo mulato do Sargento-Mor,que fosse buscar a chave. João Batista negou-sepor duas vezes a fazê-lo, reagindo o Ouvidor comordem para que um pedreiro quebrasse o cadea-do.

Diante disso o mulato começou �com gritos ealaridos�, clamando pelo nome do Rei e dirigindo-se com palavras �descompostas e injuriosas� con-tra os edis. A esses gritos �acudiram outro mula-to do mesmo nome e todos os mais escravos eescravas da casa do dito Sargento-Mor e juntoscom maiores gritos e alaridos clamaram proferin-do palavras mais injuriosas dizendo que ladrões emarotos iam roubar e escalar a casa de Seu Se-nhor� (PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVA-DOR, 1973b, p. 104-106).

Os oficiais prenderam então os dois mulatos ealgumas escravas, procedendo-se, por ordem doOuvidor, a autos de injúria. Condenaram-se oscativos a pena de açoite e degredo, mas houve

18 De passagem, note-se que, caso Antonio chegasse a Por-tugal, perderia seus cativos, pois a escravidão já se extinguiraali.

Page 18: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

ESCRAVOS DE PELEJA

148

recurso à Relação, que anulou o processo, pois oOuvidor era parte interessada. Ouvidor e Câmaraprovidenciaram então embargos da sentença darelação, cuja decisão anterior foi no entanto mantida(ibidem). O caso foi objeto de uma longa cartapara os Conselhos do Rei, argumentando a Câ-mara que, ao se terem deixado sem punição osescravos que a afrontaram, a ela e a ninguémmenos que o Ouvidor, criava-se grande vexamepara todas estas autoridades, prejudicando o cur-so normal de seus trabalhos. Tudo isso por umcadeado, na perspectiva dos administradores. Mastudo isso em nome da guarda do domicílio senho-rial, na ótica dos cativos.

A violência escrava instrumentalizada pelossenhores já testemunhara a vigência e a derroca-da da aliança para a guerra entre estamento buro-crático e casa senhorial. Agora, esses dois casoslevam-nos a percebê-la acompanhando, sob no-vas formas, a persistência da centralidade das re-lações familiares e da organização dos domicíliospara o encaminhamento de atividades centrais natrama social. Realmente, a violência escrava instru-mentalizada relacionava-se com muita coisa defundamental na história da América portuguesa.Tendo testemunhado tudo isso, dificilmente se po-de crer que a mencionada manipulação se resu-misse a eventos isolados ou ilegítimos. Mas hámais.

Se, como vem sendo visto, a violência dosescravos podia ser instrumentalizada pelos senho-res, é preciso chamar a atenção para um tipo decaso um tanto diferente, mas muito próximo. Re-firo-me a situações nas quais senhores manifesta-vam expectativas de que o exercício da força pu-desse criar fidelidade entre seus escravos. Não porinstilarem nos cativos o medo do castigo, maspor esperarem que estes considerassem a violên-cia como um atributo específico de senhores deescravos. É possível, enfim, topar com casos nosquais proprietários de escravos esperavam estarostentando uma inteira personalidade senhorialquando exerciam a força contra terceiros.

Pouco antes de 1812, Antônio Manoel de Sácitou Antônio da Silveira Machado, requisitando aescrava Maria, de nação Benguela, com os jornaise filhos que tivesse tido. Antônio Manoel afirma-va ter sido, antes disso, amigo e vizinho de Caeta-no Ferreira Campos, que possuía somente umacativa crioula. Quando esta morreu, AntônioManoel emprestou-lhe Maria Benguela, mas Cae-

tano a vendeu, cortando relações com Antônio, oqual, como reação, estimulou Maria a fugir. Emvista disso, Caetano fez com que Maria fosse apre-endida. Mas ela tornou a fugir, tendo sido encon-trada na casa de Antônio Manoel, �fechada emum quarto e coberta com algumas esteiras�. Daífoi levada para o Depósito Geral, de onde Caetanoa �levantou�.

Este afirmava ter cuidado da africana, tendoinclusive providenciado para �tirar-se-lhe o fetodo ventre com ferros�, atitude referida comoindubitável demonstração de zelo paternal. Antô-nio Manoel deu uma versão diferente. Afirmouque, paralelamente a esse seu conflito com Caeta-no, tivera outro entrevero com o mesmo, prove-niente do fato de que lhe dera �certa quantia depesos� para que este lhe fizesse um faqueiro deprata. Mas sua casa queimou, juntamente com oassento do acordo, de modo que Caetano apro-veitou para apropriar-se do metal.

Antônio Manoel teve então conselho de advo-gado para que, quando encontrasse MariaBenguela, mandasse-a para casa. Achou-a certavez em uma venda e o fez, no que foi obedecido,segundo declara. Em sendo plausível a versão �aqui importa mais se ela era plausível do que seera ou não verdadeira �, ela dá mais uma indica-ção de que muito das relações entre senhores eescravos era feito de uma ética fortemente baseadaem laços pessoais e não em uma avaliação abstratada escravidão. Além do mais, conhecidos rituaise exclusivismos do aparato cartorial brasileiro,inclusive da época, entende-se que, do ponto devista do escravo, senhor era aquele que lheinformava sê-lo. A outra alternativa seria a con-sulta, pelo cativo, da documentação cartorial. Emoutros termos, o que contava em cada relaciona-mento senhor-escravo era o �senhor� e não a con-dição senhorial. Continuar com este caso mos-trar-nos-á o que era um senhor �verdadeiro�.

Caetano viu de uma janela o que se passava(ou seja, viu Antônio mandando Maria para casa).�Saiu a correr após dela com grandes gritos, porser um homem sem estímulos� (ARQUIVO NACI-ONAL, 1812; sem grifos no original). Antôniorecuou, pois um comportamento escandaloso deCaetano pareceu-lhe uma vitória parcial. A con-cepção que Antônio tinha do que significava serum senhor de escravos passava pelo uso da for-ça, e publicamente.

A escrava ficou �algum tempo� com Caetano,

Page 19: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

149

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 131-152 JUN. 2002

após o que sumiu. Transcorrido intervalo não es-pecificado no documento, às 6 horas da manhã,�bateu a escrava na porta do Autor [Antônio] peloconhecimento que tinha de ser o seu verdadeiroSenhor� (ibidem; sem grifos no original). Um �ho-mem sem estímulos� não poderia ser seu propri-etário. Um �verdadeiro senhor�, por outro lado,mostrava-se em situações como aquela, na qual,desejando que Maria voltasse, muito simplesmen-te invadiu a casa alheia e mandou que ela o fizes-se. É a plausibilidade do relato, aos olhos da épo-ca, que fornece informação, sobretudo a respeitode uma expectativa senhorial. É significativo queo �reconhecimento� pela escrava de seu �verda-deiro senhor� tenha ocorrido em seguida ao com-portamento escandaloso de Caetano, indicando,inversamente, a plena capacidade de Antônio quan-to a usar a força. Adivinha-se aí uma ética julgadaindicativa da �verdadeira� condição senhorial. Oescândalo surgia do fato de se recusar a enfren-tar, com a força, a ameaça de agressão (ibidem)19.Nesse sentido, a violência reiterava a relação se-nhor-escravo em um âmbito que ficava muito alémdaquele demarcado pelo castigo.

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O MOEDOR DECARNE

A argumentação desenvolvida a respeito dainstrumentalização da violência escrava teve comonorte defender que o uso da força esteve no centroda vida social na América portuguesa. Não sepretende superestimar aquela instrumentalização,nem passar perto de supor que ela fosse maisimportante que a força usada contra escravos, ouque a violência inscrita na rebeldia. É evidente queo castigo e o uso da força como resistência escravapredominaram quantitativamente. É claro tambémque tais práticas deixam-nos muito próximos desentidos decisivos presentes na vida social. Mas épreciso enfatizar que a movimentação histórica daprática de incluir cativos na guerra senhorial éestratégica para compreender e dimensionarprocessos e transições de fôlego na vida política esocial da América portuguesa, assim como nasrelações entre senhores e escravos. O fato de elater testemunhado as vicissitudes das relações entreEstado luso (ou Imperial) e potentados locaisreforça muito esse argumento.

A violência, então, podia incluir, quando osescravos eram ativos e não passivos em relação aela, que assim não deve ser associada exclusiva-mente à instauração de uma �socialização imper-feita�. Acima de tudo, ela instituía percursos va-lorizados positivamente no interior de uma comu-nidade escrava que nos vem sendo apresentada,com razão, como hierarquizada internamente. Aforça usada em favor dos senhores facultava umenvolvimento com o sentido aristocrático da mo-vimentação senhorial na América portuguesa. Elapropiciava um �código�, segundo a expressão queMaria Sylvia de Carvalho Franco formulou paraos livres pobres. Por fim, e o mais importante, elaabria caminho a estratégias: motivava a introjeçãodos mecanismos próprios à dominação escravista,mas só podia fazê-lo porque a inclusão subordi-nada que ocorria ao seu redor possibilitava a ins-tauração de trajetórias direcionadas à distinção.

O que se defende aqui é a concepção de que acapacidade escrava de matar, quando instru-mentalizada por senhores, também encaminha-nospara a compreensão das práticas que moldavam adominação escravista na América portuguesa.Embora menos difundida que o castigo e a rebel-dia, a violência instrumentalizada dos escravospermitiu observar o quanto a força achava-serotinizada e legitimada no centro da vida social.Afinal, se a violência a serviço dos senhores podiamanifestar-se até mesmo tendo como agentes asprincipais vítimas desses mesmos senhores, ficaplenamente caracterizado que o lugar da força navida social era aquele das práticas normais, legíti-mas e em torno das quais se criavam e sustenta-vam diversas e fundamentais expectativas e valo-res.

Para concluir, indago a respeito de hipótesesamplas sobre a sociedade colonial brasileira,capazes de fazer compreender a centralidade daviolência na vida social. As explicações da emer-gência da escravidão nas Américas sofreram for-tes variações ao longo dos anos. Do ponto de vis-ta de quem observa fenômenos como os tratadosneste artigo, uma delas chama particularmente aatenção. Trata-se da explosiva combinação entre,de um lado, gente com capital e desejo de alçar-sea posições aristocráticas e, de outro lado, terralivre impedindo a emergência de formas de algummodo contratuais, mercantis, para a obtenção detrabalho alheio. Um quadro como esse crioufortíssimas tendências a que se legitimasse e setornasse comum a busca desenfreada pelo esta-

19 Esse caso foi tratado, com outros objetivos, em Lima(1998, p. 27ss).

Page 20: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

ESCRAVOS DE PELEJA

150

belecimento de posições monopolistas nos meca-nismos de oferta de trabalho, com a decorrente edesbragada proliferação da violência.

Junte-se a isso o caráter aristocrático assumi-do pela colonização na época moderna, seu com-promisso com o ambiente da honra lograda pormeio das armas20. Junte-se-lhe também avirtualidade barroca de difundir comportamentosmediante o estabelecimento de mecanismos

ABREU, J. C. 1976 [1883]. O descobrimento doBrasil. 2a ed. Rio de Janeiro : Civilização Bra-sileira.

ALDEN, D. 1968. Royal Government in Colo-nial Brazil. With Special References to the Ad-ministration of the Marquis de Lavradio, Vice-roy, 1769-1779. Berkeley : University of Cali-fornia Press.

ALENCASTRO, L. F. 2000. O trato dos viven-tes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. SãoPaulo : Companhia das Letras.

ARAÚJO, M. B. 2000. Uma foice e muitas lem-branças : um caso de filicídio no Paranáescravista do século XIX. Revista Vernáculo,Curitiba, n. 3, p. 50-66, set.-dez.

BLACKBURN, R. 1996. The Making of NewWorld Slavery. From the Baroque to theModern, 1492-1800. London : Verso.

BOXER, C. R. 1969. A idade de ouro do Brasil.São Paulo : Nacional.

CÂNDIDO, A. 1964. Os parceiros do Rio Boni-to. Rio de Janeiro : José Olympio

CARDOSO, F. H. 1977. Capitalismo e escravi-dão no Brasil meridional. 2a ed. São Paulo :Paz e Terra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Carlos A. M. Lima ([email protected]) é Professor do Departamento de História da UniversidadeFederal do Paraná (UFPR) e Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ).

20 Lembrem-se dos fidalgos �práticos em prosa, verso edecapitação�, de Luiz Felipe de Alencastro (2000, p. 96).

contínuos (e não discretos, segundo o antigo usodessas expressões pela Estatística) deestratificação, assim como sua propensão aconceber o mundo, mover-se nele e apropriar-sede seus habitantes mediante cadeiashierarquizantes, em um ambiente eminentementecorporativo. Tudo direcionava a vida social e osmecanismos de dominação para a inclusãosubordinada, por oposição à mera exclusão. Nes-se quadro, a lógica de incorporação também fa-zia-se valer em relação ao uso da força.

Recebido em 11 de outubro de 2001.Aprovado em 2 abril de 2002.

CARVALHO, J. M. 1988. Teatro de Sombras.São Paulo : Vértice.

CASTILLO LARA, L. G. 1981. Apuntes parala Historia Colonial de Barlovento. Caracas :Biblioteca de la Academia Nacional de laHistoria.

ENNES, E. 1944. Dois paulistas insignes. SãoPaulo : Nacional.

FAORO, R. 1979. Os donos do poder. 5a ed. PortoAlegre : Globo.

FERNANDES, F. 1973. Capitalismo dependentee classes sociais na América Latina. Rio deJaneiro : Zahar.

_____. 1978. A integração do negro na socieda-de de classes. 3a ed. São Paulo : Ática.

FLORENTINO, M. & GÓES, J. R. 1996. Docu-mento : a estranha história de um filicida goita-cá. Locus, Juiz de Fora, v. 2, n. 2, p. 37-60.

_____. 1997. A paz das senzalas. Rio de Janeiro :Civilização Brasileira.

FRAGOSO, J., BICALHO, M. F. & GOUVÊA,M. F. (org.). 2001. O Antigo Regime nos trópi-cos. A dinâmica imperial portuguesa (séculosXVI-XVIII). Rio de Janeiro : Civilização Bra-sileira.

Page 21: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

151

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 131-152 JUN. 2002

FRANCO, M. S. C. 1974. Homens livres na or-dem escravocrata. São Paulo : Ática.

FREITAS, S. C. 2000a. O cotidiano dos escra-vos em Antonina. Revista Vernáculo, Curitiba,n. 3, p. 85-107, set.-dez.

_____. 2000b. Entre a resistência e o acomoda-mento, a dinâmica do possível : o cotidianodos escravos em Antonina (1859-1870). Curiti-ba. Monografia (Graduação em História). Setorde Ciências Humanas, Letras e Artes, Univer-sidade Federal do Paraná.

FREYRE, G. s/d [1933]. Casa-grande & senza-la. São Paulo : Círculo do Livro.

IANNI, O. 1962. As metamorfoses do escravo.São Paulo : Difel.

KARASCH, M. 2000. A vida dos escravos noRio de Janeiro (1808-1850). São Paulo : Com-panhia das Letras.

LANDERS, J. 1999. Black Society in SpanishFlorida. Chicago : University of Illinois Press.

HARRIS, M. 1967. Padrões raciais nas Améri-cas. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira.

LARA, S. H. 1988. Campos da violência. Escra-vos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro,1750-1808. São Paulo : Paz e Terra.

_____. 1996. Do singular ao plural. Palmares, ca-pitães do mato e o governo dos escravos. In :REIS, J. J. & GOMES, F. S. (org.). Liberda-de por um fio. São Paulo : Companhia dasLetras.

MARQUÊS DO LAVRADIO. 1962a [1770-1777]. Correspondência. Revista do InstitutoHistórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Ja-neiro, v. 255, p. 188-356, abr.-jun.

_____. 1962b [1777-1778]. Correspondência. Re-vista do Instituto Histórico e Geográfico Bra-sileiro, Rio de Janeiro, v. 256, p. 89-141, jul.-set.

_____. 1978 [1769-1776]. Cartas do Rio de Janei-ro � 1769-1776. Rio de Janeiro : Instituto Es-tadual do Livro.

LEONZO, N. 1977. As Companhias de Ordenan-ças na Capitania de São Paulo. Das origensao Morgado de Mateus. Coleção Museu Pau-lista, v. 6. São Paulo : s/n.

LIMA, C. A. M. 1998. Sobre a lógica e a dinâmi-ca das ocupações escravas na cidade do Riode Janeiro, 1789-1835. In : SOUSA, J. P.(org.). Escravidão : ofícios e liberdade. Riode Janeiro : Arquivo Público do Estado do Riode Janeiro.

_____. 2000. A cidade como palco : apreensõesdas irmandades negras, séculos XVII e XVIII.In : Anais do 6o Seminário de História da Ci-dade e do Urbanismo. Natal : Universidade Fe-deral do Rio Grande do Norte.

MACHADO, M. H. P. T. 1987. Crime e escravi-dão. São Paulo : Brasiliense.

MARQUES, A. H. O. 1980. História de Portu-gal. 8a ed. Lisboa : Palas.

MATTOS, H. 1995. Das cores do silêncio. Rio deJaneiro : Arquivo Nacional.

MATTOS, I. R. 1987. O tempo saquarema. SãoPaulo : HUCITEC.

MAXWELL, K. 1996. Marquês de Pombal. Para-doxo do Iluminismo. São Paulo : Paz e Terra.

MELLO, E. C. 1975. Olinda restaurada. Rio deJaneiro : Forense.

MELLO, J. A. G. 1988. Henrique Dias. Gover-nador dos crioulos, negros e mulatos do Bra-sil. Recife : Fundação Joaquim Nabuco/Mas-sangana.

MÖRNER, M. 1969. La mezcla de razas en laHistoria de America Latina. Buenos Aires :Paidos.

NANTES, M. 1979. Relação de uma missão noRio São Francisco. São Paulo : Nacional.

NOVINSKY, A. W. (ed.). s/d. Inquisição. Inven-tários de bens confiscados a cristãos novos.Lisboa : Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

REIS, J. J. & SILVA, E. 1988. Negociação econflito. São Paulo : Companhia das Letras.

SAINT-HILAIRE, A. 1978 [1851]. Viagem aCuritiba e Província de Santa Catarina. BeloHorizonte : Itatiaia.

SCHWARTZ, S. B. 1988. Segredos internos. SãoPaulo : Companhia das Letras.

_____. 1991. The Voyage of the Vassals : RoyalPower, Noble Obligations, and Merchant Capi-tal before the Portuguese Restoration of Inde-

Page 22: ESCRAVOS DE PELEJA - SciELO · 131 revista de sociologia e pol˝tica n” 18: 131-152 jun. 2002 resumo rev. sociol. polít., curitiba, 18, p. 131-152, jun. 2002 escravos de peleja:

ESCRAVOS DE PELEJA

152

pendence, 1624-1640. The American Histori-cal Review, Washington, v. 96, n. 3, p. 735-762, June.

SCHWARTZMAN, S. 1979. Bases do autori-tarismo brasileiro. Rio de Janeiro : Campus.

SILVA, L. G. 1999. Da festa à sedição : sociabi-lidades, etnia e controle social na América por-tuguesa (1776-1814). História : questões edebates, Curitiba, ano 16, n. 30, p. 83-110,jan.-jun.

SOUSA, A. M. 1945 [1834]. Viagens e obser-vações de um Brasileiro, que desejando ser útilà sua pátria, se dedicou a estudar os usos ecostumes de seus patrícios e os três reinos danatureza em vários lugares e sertões do Brasil,oferecidas à Nação Brasileira. Revista do Insti-

ARCHIVO MUNICIPAL DE SÃO PAULO.1915. Actas da Câmara da Villa de S. Paulo,1656-1669. Volume anexo ao v. VI. São Pau-lo : Piratininga.

ARQUIVO NACIONAL. 1812. Cortes de Ape-lação. Correição Cível da Corte. Réu : Antô-nio da Silveira Machado. Caixa 6, galeria C,n. 100. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional.Seção do Poder Judiciário.

_____. 1828. Cortes de Apelação. Autor : JoséBotelho. Maço 102, n. 1 192, galeria C. Rio deJaneiro : Arquivo Nacional. Seção do PoderJudiciário.

DOCUMENTOS interessantes para a história ecostumes de São Paulo. 1961. Atas do Conse-lho da Presidência da Província de São Paulo.Anos de 1824-1829. v. 86.

_____. 1990. Ofícios do General Horta aos Vice-Reis e Ministros, 1802-1808. v. 94.

PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR.s/d. Carta escrita ao Senhor Governador Affon-

tuto Geográfico e Histórico da Bahia, Sal-vador, n. 72, p. 3-139.

SOUSA, G. S. 1938 [1587]. Tratado descritivodo Brasil em 1587. 3a ed. São Paulo : Nacio-nal.

SOUSA, J. P. 1996. Escravidão ou morte : os es-cravos brasileiros na Guerra do Paraguai. Riode Janeiro : Mauad/ADESA.

STONE, L. 1969. Social Mobility in England,1500-1700. In : ROWNEY, D. K. & GRAHAMJR., J. Q. (eds.). Quantitative History. Illinois: The Dorsey Press.

TAUNAY, A. D�E. 1936. A Guerra dos Bárbaros.Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, anoII, v. XXII, p. 7-331, jun.

OUTRAS FONTES

ço Furtado deste Senado sobre satisfazer esteSenado o que se dispendeo com a entrada doGentio. In : _____. Documentos históricos doArquivo Municipal. Cartas do Senado, 1673-1684. Salvador : Prefeitura Municipal de Sal-vador.

_____. 1973a. Registro de uma Carta escrita aSua majestade sobre o que os homens nobresSoldados possam passar ao Posto de Alferessem serem Sargentos como dela se vê. In :_____. Documentos históricos do Arquivo Mu-nicipal : Cartas do Senado, 1710-1730. Sal-vador : Prefeitura Municipal de Salvador.

_____. 1973b. Registro de hua Petiçam em nomedo Procurador aSua Magestade sobre aqueixaque lhe fés da Injustiça feita ao Senado pelosEscravos de Jozé Batista. In : _____. Documen-tos históricos do Arquivo Municipal : Cartasdo Senado, 1710-1730. Salvador : PrefeituraMunicipal de Salvador.

Revista do Arquivo Municipal. 1941. OrdensRégias de 1738. São Paulo, ano VII, v. LXXIX,p. 149-153, out.