escravos libertos

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Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 235 CLASSE E CULTURA NO ALTO IMPÉRIO ROMANO: OS LIBERTOS DE PAUL VEYNE * Claudiomar dos Reis Gonçalves ** Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o convite feito pelo Prof. Pedro Paulo, o qual possibilitou, hoje, estar aqui falando a vocês. Em se- gundo lugar, torna-se necessário ressaltar a importância de continuação de nossos debates 1 referentes à Antigüidade, agora possível também no CPA, * Conferência apresentada no IFCH, UNICAMP, a convite do CPA, em 05/06/98. Gostaria de agradecer aos professores que, além de propiciarem-me várias leituras de seus artigos (publi- cados ou inéditos), proporcionando-me, em muitos momentos, a oportunidade de discussão, influenciaram assim, direta e indiretamente, as reflexões aqui desenvolvidas: Ana Teresa Mar- ques Gonçalves, Andrea Lúcia Dorini de Oliveira, Carlos Augusto Ribeiro Machado, Cláudio Aquati, Fábio Faversani, Gilvan Ventura da Silva, José Miguel Arias Neto, Luciane Munhoz de Omona, Luiz Otávio Magalhães, Marcos Breno Torri, Margarida Maria de Carvalho, Marisa Correa Silva, Nelson Schapochnik, Norberto Guarinello, Pedro Paulo Abreu Funari, Regina Maria da Cunha Bustamante, Renata Lopes Biazotto Venturini, Renata Senna Garraffoni, Sônia Regina Rebel de Araújo. A responsabilidade pelas idéias limita-se a seu autor. ** Professor de História Antiga. Departamento de História – Universidade Estadual de Londrina – UEL – Londrina – PR – 86.051-970 – E-mail: [email protected] 1 O debate com outros pesquisadores iniciou-se em 1996 na UNESP de Franca/ SP, na XI Semana de História, onde tive a oportunidade de confrontar minhas idéias com as dos profes- sores Norberto Luiz Guarinello (USP) e Fábio Faversani (UFOP) em uma comunicação coorde- nada (“Um debate Brasileiro sobre o Satyricon”), e, posteriormente, com os professores Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP) e Norberto Luiz Guarinello em uma mesa-redonda no XIX Simpósio Nacional de História “História e Cidadania” realizado na UFMG em 1997, intitulada:

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Page 1: Escravos libertos

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 235

CLASSE E CULTURA NO ALTO IMPÉRIO ROMANO:OS LIBERTOS DE PAUL VEYNE*

Claudiomar dos Reis Gonçalves**

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o convite feito pelo Prof.

Pedro Paulo, o qual possibilitou, hoje, estar aqui falando a vocês. Em se-

gundo lugar, torna-se necessário ressaltar a importância de continuação de

nossos debates1 referentes à Antigüidade, agora possível também no CPA,

* Conferência apresentada no IFCH, UNICAMP, a convite do CPA, em 05/06/98. Gostaria deagradecer aos professores que, além de propiciarem-me várias leituras de seus artigos (publi-cados ou inéditos), proporcionando-me, em muitos momentos, a oportunidade de discussão,influenciaram assim, direta e indiretamente, as reflexões aqui desenvolvidas: Ana Teresa Mar-ques Gonçalves, Andrea Lúcia Dorini de Oliveira, Carlos Augusto Ribeiro Machado, CláudioAquati, Fábio Faversani, Gilvan Ventura da Silva, José Miguel Arias Neto, Luciane Munhoz deOmona, Luiz Otávio Magalhães, Marcos Breno Torri, Margarida Maria de Carvalho, MarisaCorrea Silva, Nelson Schapochnik, Norberto Guarinello, Pedro Paulo Abreu Funari, ReginaMaria da Cunha Bustamante, Renata Lopes Biazotto Venturini, Renata Senna Garraffoni, SôniaRegina Rebel de Araújo. A responsabilidade pelas idéias limita-se a seu autor.** Professor de História Antiga. Departamento de História – Universidade Estadual de Londrina– UEL – Londrina – PR – 86.051-970 – E-mail: [email protected] O debate com outros pesquisadores iniciou-se em 1996 na UNESP de Franca/ SP, na XISemana de História, onde tive a oportunidade de confrontar minhas idéias com as dos profes-sores Norberto Luiz Guarinello (USP) e Fábio Faversani (UFOP) em uma comunicação coorde-nada (“Um debate Brasileiro sobre o Satyricon”), e, posteriormente, com os professores PedroPaulo Abreu Funari (UNICAMP) e Norberto Luiz Guarinello em uma mesa-redonda no XIXSimpósio Nacional de História “História e Cidadania” realizado na UFMG em 1997, intitulada:

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no intuito de que este se consolide como um espaço de discussão de idéias

e de troca de experiências entre diversos pesquisadores.

Minha análise estará diretamente relacionada ao texto de Paul

Veyne, Vie de Trimalcion, publicado na década de 60, pela revista Annales,

o qual, imagino, vocês tenham tido acesso anteriormente. Espero, por um

lado, convencer os alunos da importância da reflexão sobre a produção dos

textos e sobre a atividade da escrita e do diálogo, pois como já havia res-

saltado Moses Finley a respeito da perspectiva historiográfica de Paul

Veyne, “Os historiadores, (...) mostram-se relutantes em analisar a si pró-

prios e à sua atividade; deixam isso para os filósofos, cujos esforços, então,

desprezam como desconhecedores ou irrelevantes (ou ambos)” (Fin-

ley,1994:04). Por outro lado, espero demonstrar, finalmente, como a análise

deste autor está relacionada profundamente com nossa sociedade. Antes

disso, porém, é necessário fazer uma exposição sumária do texto em

questão.

O Texto

O texto de Paul Veyne2 inicia-se com a seguinte frase: “Apesar de

imaginária, esta vida merece ser levada a sério”. A partir daí, o autor vai

tomar o personagem do Satyricon, Trimalquião, como real e o próprio ro-

mance como um documento histórico. O texto tem o objetivo de contrapor-

se a teoria de Mikhail Rostovtzeff, em sua História Social e Econômica do

“Os caminhos, problemas e desafios do ensino e pesquisa em História Antiga no Brasil”, cujostextos foram publicados parcialmente no Boletim do CPA, ano II, n. 3, janeiro/junho de 1997.2 Utilizarei a versão portuguesa, à qual o público teve acesso (Veyne, 1993).

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Classe e cultura no alto império romano: os libertos de Paul Veyne

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 237

Império Romano3, na qual Rostovtzeff propõe que os libertos fariam parte

de uma classe “burguesa” em ascensão. O personagem do Satyricon seria,

portanto, tomado como o contraponto dessa teoria.

É nessa perspectiva que o autor vai iniciar sua análise da trajetória do

liberto afirmando que Trimalquião não é nem um parvenu, nem capitalista e

muito menos burguês. Ele seria uma dessas almas cheias de energia, as-

sim como Baudellaire define os heróis de Balzac, ou seja, seria aquele que

nunca chegou a lugar algum. A única coisa que tal liberto possui é sua arte

de ganhar dinheiro, ou seja, vê nos negócios sua razão de ser. O liberto

seria um ser sem memória, assim como também o seriam os negros ameri-

canos da época da colonização. Não teríamos como saber como Trimalqui-

ão se tornou escravo (o texto do Satyricon não nos informa). O autor, então,

levanta três hipóteses a este respeito: prisioneiro de guerra, escravo por

nascença ou pela miséria. Neste último caso, a escravidão seria uma vál-

vula de escape para o excedente da sociedade, um lenitivo para aplacar a

miserabilidade.

Comprado por um Caio Pompeu, não foi conduzido aos trabalhos

agrícolas mas à familia urbana, onde entrou em íntima relação com seu pa-

trão e com a patroa. Assim, a partir desse “servilismo patético”, se faz notar

pelos patrões aprendendo a ler e contar. Sobe na hierarquia da escravaria

chegando a dispensator, tesoureiro, visto a estrutura hierárquica romana

possibilitar aos escravos ambiciosos a conquista de melhores lugares. Se-

gundo o autor, esta seria mais uma história vulgar, comum, pois o ideal dos

nobres coincidiria com o papel do pater : tudo fazer pelos seus seria uma

questão de honra. O interesse do patrão em dar instrução aos escravos, em

3 Encontrada no Brasil, geralmente, em sua tradução espanhola: ROSTOVTZEFF, M. HistóriaSocial y Económica del Imperio Romano. Madrid: Espasa-Calpe, 1937, Tomos I e II.

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ajudar os mais aplicados, encorajá-los, bastaria para explicar esta história.

Isto é o que Veyne denomina “ascensão por ‘curto circuito’”: não se procu-

rariam talentos entre os homens livres e pobres mas entre os escravos; pa-

radoxo próprio das sociedades nas quais predominariam as relações de

clientela e de dependência. Trimalquião teria atingido, pois, o auge de sua

“carreira” como escravo, tornando-se tesoureiro do imperador: continuar

sua ascensão, só saindo da escravidão.

Mas, para Veyne, como se definiria, na prática, a escravidão? A es-

cravidão seria, segundo o autor, um estatuto jurídico e não uma condição

social: a barreira do nascimento dividiria homens livres e escravos e/ou li-

bertos. Portanto, não haveria uma pirâmide de classes, mas realidades jurí-

dicas e hierárquicas diferentes. No caso específico de Roma, haveria uma

diferença entre a liberdade real e a jurídica/formal, pois os libertos teriam

mais liberdade que os homens livres e pobres: por exemplo, no caso de

mercadores que tinham libertos como intendentes. Um outro fator que expli-

caria essa relação é que, como os negros na sociedade americana, os es-

cravos na sociedade romana também seriam em maior número.

Assim, o liberto Trimalquião tomaria sua estrada lateral, tornando-se

livre através dos laços de dependência que estabeleceu com seus patrões.

Este “meteorito artificial”, fundado na tara do nascimento servil, se aprovei-

tando da ausência de racismo se relaciona intimamente com o seus pa-

trões, assim como na sociedade japonesa, onde o sexo faria parte das coi-

sas menores e jocosas, longe das relações familiares, conjugais e sérias.

Além disso, possuir um puer delicatus faria parte do costume aristocrático (o

que mais tarde será imitado por Trimalquião). Na verdade seria de uso co-

mum a adoção e criação de escravos como filhos, como prediletos a quem

se dava proteção e se legava certos bens. Em troca, o liberto deveria a

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Classe e cultura no alto império romano: os libertos de Paul Veyne

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obrigação, entre outras, de usar o “nome” do patrão para que este não se

extinguisse. Ao contrário de nossa sociedade, onde pensaríamos “sangue”

a Antigüidade pensaria “nome”.

De acordo com Veyne, quando o patrão morria e não deixava herdei-

ros, herdava o liberto. Além disso, muitos senhores libertavam seus escra-

vos após a morte e lhes legavam certos bens como prova de amor e de

amor à ostentação. A liberdade dada ao escravo, em vida, geralmente se

dava por distinção e méritos de trabalho, e a forma do reembolso se dava

pela cobrança de certas funções econômicas. O Alto-Império seria o mo-

mento das chamadas “libertações em massa”, que tinham conseqüências

éticas, mas não econômicas. Neste caso, os libertos deixariam a família do

senhor e entrariam para a familia libertinorum, onde passariam a dever

certas obrigações, garantidas por lei, ao antigo senhor ou aos seus descen-

dentes. É nesta situação que os libertos adquiriam um novo estatuto entre

os escravos: funções de comando entre os próprios escravos; ou seja, as-

cendiam dentro da “carreira”.

Seria este, portanto, o estrato social amante dos negócios, que teria

sido qualificado justa e injustamente, por Rostovtzeff, como “burguesia em

ascensão”. Esta seria a “lenda” criada pelo Satyricon.

Trimalquião não seria um liberto, mas um libertinus, ou seja, um li-

berto sem senhor, um liberto independente. Nesta sociedade, permeada de

valores, concepções, modos de vida e hierarquias estáticas, a promoção

não seria democrática. O liberto independente não poderia bater às portas

da boa sociedade, visto existirem vias específicas de mobilidade controla-

das pelos laços de dependência e clientela. Falar, então, em ascensão de

libertos como se fossem uma “burguesia” seria uma falácia, pois a liberdade

não significaria absolutamente nada já que, de forma geral, os libertos não

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seriam senhores de seus destinos. Libertos sem senhores seriam um aci-

dente, um “buraco” na rede capilar de dependências, ao não possuírem raí-

zes econômicas; era o patrão quem “criava” os homens livres, dependen-

tes.

De acordo com Veyne, homens livres e escravos viviam na mesma

“mediocridade”, sendo a escravidão uma possível etapa para se atingir a

fortuna. Além disso, os libertos eram necessários por causa da diversifica-

ção da economia. Um exemplo disso é, que nos casos de tentativa de brus-

ca ruptura das obrigações de clientela, se verificava a importância dos li-

bertos. No tempo de Nero, o assunto foi tratado pelo Senado segundo o

direito romano, mas não se chegou a nenhuma conclusão, visto que estes

haviam se tornado uma peça importante na engrenagem social. O liberto

independente é, assim, um elemento da própria lógica da sociedade roma-

na e os “libertos ingratos” constituem uma exceção. Isto teria gerado pro-

blemas em finais da República e no Alto Império.

Existiria um “espírito nobiliarquico” entre as elites, de “criar” libertos

no intuito de estes se tornarem os satélites da casa do senhor como clientes

dependentes. Entretanto, a freqüência de libertações em massa, multiplicou

o número de escravos independentes nas cidades mais importantes. O re-

sultado disso era que o senhor libertava o escravo e depois se assustava

com a importância que este ganhava junto aos homens livres. Seria um es-

cândalo a existência de ex-escravos demasiadamente ricos, pois a situação

real contradizia sua inferioridade teórica estatutária. Em vários textos da

época, os libertos seriam acusados de todos os males sociais, sendo o Sa-

tyricon um desses textos em particular. De acordo com Paul Veyne, estes

“buracos” acidentais nas redes de dependência, só seriam corrigidos a par-

tir do século II, mais atento às barreiras sociais.

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No Banquete de Trimalquião4, todos os libertos seriam ricos e dedi-

car-se-iam aos negócios. Seriam jogados na vida e obrigados a praticar um

ofício: visto não possuírem família, não podiam seguir um ofício “paterno”, o

que aconteceria entre os pobres. Aos ricos, era facultado o privilégio da es-

colha de um ofício. Portanto, essa seria uma “moral social” baseada na he-

reditariedade de condições da nobreza e na consciência popular. Os liber-

tos seriam como os imigrantes russos que chegam à França e são coloca-

dos à margem, ficando rapidamente ricos. Da mesma forma, os libertos, por

não possuírem “raízes” não se inseriam no contexto, visto que esta heredi-

tariedade de condições existia “desde sempre”.

A vida política seria dominada pela nobreza citadina, pelos seus li-

bertos e dependentes. Os libertos eram, portanto, recrutados por possuírem

determinadas vocações: não possuírem ligações com a terra e possuírem

uma “forma mentis capitalista”, que se resumia em correr riscos, visando

unicamente o enriquecimento.

Esta categoria social de libertos, seria reprimida socialmente e, por

este motivo, necessitava remediar (substituir) a “tara de seu nascimento” e

livrar-se dos complexos sociais. Sua tipologia comportamental era baseada

em uma moral e ética próprias: esperteza, trabalho, crédito e lucro, chegan-

do mesmo a arruinarem-se na busca pelo enriquecimento.

A nobreza, ao contrário, poria sua dignidade no governo citadino;

eram os homens políticos: os cives. Já a categoria dos libertos, seria como

um corpo estranho no meio social, podendo, no máximo, ser considerada

uma classe social em embrião que foi abortada5, desaparecendo obscura-

4 A chamada Cena Trimalchionis.5 Note-se o vocabulário “orgânico”, com claras analogias ao organismo e seu funcionamentobiológico, como se a Sociedade fosse um “ser vivo”.

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mente no decurso do século III d. C. Não conquistaram coisa alguma. Não

fundaram dinastias. Fizeram parte de um “momento” da vida social, vivendo

na precariedade entre a plebe e a nobreza: nunca possuíram “consciência

de si”. O filho de um liberto seria livre: se fosse pobre seu destino era en-

grossar as fileiras da plebe; se possuísse protetores e fosse rico, iria se

fundir à nobreza adotando seu gênero de vida e seus ideais. Isso é o que

Veyne chama de “transformismo”, ou seja, a renovação das classes superi-

ores sem alterar sua estabilidade. Os libertos não subiriam “da economia”:

iriam em direção a ela, seriam um prolongamento obscuro da elite e, como

tal, acabariam sobrevivendo e se extinguindo por desejo desta. Viveriam,

pois, um destino sem horizontes.

Segundo Veyne, Trimalquião seria apenas mais um destes libertos:

herdou terras e as vendeu, na tentativa de ganhar mais dinheiro via comér-

cio: tradição própria dos libertos. É um aventureiro que enriquece por sorte

ou por astúcia. Possui, assim, um aspecto particular de ordem moral: a co-

biça. Vive para falsear a ordem natural, jogando com os preços e se apro-

veitando da carestia. Petrônio, neste aspecto, embora pouco informado so-

bre esta categoria social (conseguindo apenas inserir generalizações de

caráter proverbial), teria conseguido apreender suas implicações morais.

Quando Trimalquião enriquece, deixa os negócios e passa a emprestar di-

nheiro aos libertos e, o que é mais importante, compra terras justamente

porque a terra é a única coisa que nobilitava, e ele tinha pressa de viver

como um nobre. Portanto, a marca do êxito social não seria o dinheiro: o

que daria valor social seria a terra. Como diria Cícero6, só a riqueza fundiá-

ria torna um homem digno.

6 No De Oficiis 1.150-1. Interpretação compartilhada, inclusive, por Moses Finley (Finley, 1986:53 e sgs)

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Seria, assim, que Trimalquião passaria a não ter profissão, pois não

ter ofício seria viver nobremente – e a própria nobreza seria o objetivo final

da vida humana. Até mesmo o censo seria baseado na riqueza fundiária: a

usura não tinha nada de desonroso e o comércio desclassificaria. Portanto,

este liberto “suscita magicamente” uma condição que não é real: está preso

a sua condição de nascimento e, por este motivo, não faria parte da “boa

sociedade dos homens livres”.

Assim, pode-se adotar o gênero de vida de uma classe sem perten-

cer a ela, até mesmo sem pretensão alguma: isso era apenas uma questão

de dinheiro. Contudo, o que separaria Trimalquião da boa sociedade não

seria o dinheiro, nem sua vulgaridade, mas seu estatuto: não era um cida-

dão, e isto o separava da nobreza municipal e eqüestre. Ele não chegou a

lugar algum e muito menos possuía filhos que, algum dia, pudessem che-

gar. Teria sido um Princeps Libertinorum, ou seja, o primeiro entre os liber-

tos. Imitava os ricos da época, mas também adquiriu os gostos de sua pró-

pria categoria como, por exemplo, os jogos de circo. Seus valores (mérito

pessoal, dinheiro, riqueza, lucro, etc.), definiriam suas relações com as

classes inferiores e trairiam sua inferioridade, pois proclamavam seu desti-

no de sorte: o “berço”, o nascimento, não contava.

Petrônio teria captado a situação sócio-psicológica, demonstrando o

medo do desprezo e a interiorização do juízo dos outros. Assim, estes li-

bertos cairiam em desgraça, pois se julgariam a partir dos princípios sociais

dos homens livres. Segundo o autor, longe de provocar rebeldia ou uma

“luta de classes” (coisa impensável na época), a consciência de inferiorida-

de por parte dos dos libertos, supõem sua aceitação da ordem existente:

humilhados não se rebelam, mas se conformam. Não se sentiriam privados

e nem frustrados, pois a frustração é um sentimento típico dos que se con-

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sideram privados de algo sobre o qual se julga possuir direitos. Os libertos,

não procurariam nenhum lugar pois estariam bem neste, visto que ninguém

punha em discussão as barreiras de classe: todos tinham o seu lugar.

Trimalquião, portanto, só poderia pensar em um futuro “imaginário”:

uma “boa sociedade ilusória” adaptada ao mundo dos libertos. Sua catego-

ria social seria comparável àquela formada entre os negros nos Estados

Unidos (separados dos brancos pela segregação racial), ou seja, um extrato

social de “milionários de cor” que a “boa sociedade burguesa e branca”

mantêm à distância. Apenas na imitação encontrariam uma compensação

que substituísse o sentimento de inferioridade de nascimento. Sua existência

seria um “reino de ilusões”, um perene carnaval que esconderia uma angústia

secreta. Trimalquião seria, assim, a nobreza dos libertos. Colocaria o sentido

de sua vida na imitação dos homens livres; não teria consciência autônoma;

viveria em um universo “resplandecente e ilusório” no qual se esforçaria por

acreditar, visto não encontrar lugar nos papéis que lhe ofereciam a socieda-

de.

Portanto, e finalmente, o Satyricon desmentiria, segundo Veyne, a te-

oria de Rostovtzeff. A Sociedade Romana não teria estruturas capitalistas,

pois não existiria mentalidade capitalista. O mundo descrito por Rostovtzeff,

quando comparado com o Satyricon, pareceria irreal como os corpos da-

queles que não têm sombra7.

A Análise

7 Abordagem que retoma vários argumentos de Veyne, pode ser encontrada em Andreau (An-dreau, 1992)

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Classe e cultura no alto império romano: os libertos de Paul Veyne

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Após esta exposição do texto de Paul Veyne, é necessário ressaltar a

infelicidade das comparações que deixam transparecer um certo “racismo”,

no que se refere aos negros americanos e aos russos que emigraram para

a França. Pelo menos é possível visualizar o que o autor entende por “boa

sociedade” em Roma, nos Estados Unidos e na França: branca, com raí-

zes, que fundam dinastias, uma sociedade baseada na hereditariedade do

“sangue”. Quando o autor diz, “onde pensamos ‘sangue’ a Antigüidade pen-

sava ‘nome’”, comete um pequeno equívoco interno, visto que, como ele

mesmo afirma, o grande fosso que torna os libertos impossibilitados de par-

ticiparem da boa sociedade, de não conseguirem sair de seu estatuto jurídi-

co, no final, resume-se tão somente a sua condição de nascimento. Ou

seja, ainda seria o sangue o elemento de distinção entre os homens: aquilo

que se estabeleceria como fundador/mantenedor das hierarquias.

Do meu ponto de vista, um primeiro elemento que devemos abordar

com rigor, é a utilização e caracterização da fonte utilizada por Paul Veyne.

O Satyricon não é um “documento” nem no sentido que assim o entendiam

os positivistas8, ou seja, não possui a qualidade de, por seu próprio conteú-

do, “mostrar as coisas tal como, realmente, aconteceram”9: é um romance.

Quero dizer com isto que este possui uma lógica interna própria, um motivo

pelo qual as coisas apareçam colocadas desta ou daquela forma: resumin-

do, ele é como qualquer “fonte” ou “evidência”, não se explica simplesmente

pela crítica interna e externa ao documento (muito embora essas sejam ne-

cessárias!). Mais que isto, se faz necessário utilizar de abordagens desen-

8 Os historiadores da “Escola Metódica” (Reis, 1995).9 Veja-se Funari : “Documentos: análise tradicional e hermenêutica contemporânea” (Funari,1995: 14-22).

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volvidas pela crítica literária10, sociologia da literatura, semiótica, antropolo-

gia, e mesmo pelas abordagens dentro do próprio campo historiográfico que

vêm se desenvolvendo a algumas décadas. Mesmo assim, o Satyricon

permanece uma obra sui generis, visto que a complexidade de se estabele-

cer a usual tríade autor-obra-público, acarreta uma série de dificuldades aos

estudiosos no que se refere à aplicação de qualquer abordagem herméti-

ca11.

Assim, não é unânime que o autor da obra seja Titus Petronius Niger,

sufragado em 62, e identificado em uma tabuinha encontrada em Hercula-

no, em 1946. Ao contrário, o número dos prováveis autores da obra, gira em

torno de dezesseis possíveis Petrônios, sendo que alguns estudiosos resol-

veram trabalhar com a hipótese de que fariam a análise de uma obra cujo

autor se tornou conhecido pelo nome de Petrônio (Gonçalves, 1995). Sabe-

se que o autor, seja lá quem for, ao contrário do que afirma Veyne, possuía

um grande conhecimento das influências populares e orientais (Ha-

das,1929; Perrochat,1961) na linguagem utilizada pelos libertos (Aqua-

ti,1991, 1994, 1995 e 1997). Outro importante dado, é que não temos idéia

a que público se dirigia o texto ou mesmo suas funções. Alguns identifica-

ram o público a que se destinava o livro como a “Corte de Nero” ou a no-

breza em geral, tendo por função o puro divertimento das elites, o que é

impossível de verificar, visto que esta fonte só é mencionada pela tradição

textual apenas em finais do século III e inícios do IV. 10 Existe uma ampla bibliografia sobre o assunto em termos nacionais e internacionais. Apenasem território nacional, entre as produções recentes, cabe destacar os trabalhos de Paulo Ro-berto Guapiaçú, Salvatore D’Onófrio, José Guimarães Mello, Edson Lourenço Molinari, Arioval-do Augusto Peterlini e Cláudio Aquati, entre outros. Em termos internacionais, não caberia,aqui, a exposição de autores que se dedicam ao tema de um ponto de vista literário (o númerodesses autores é enorme!). Ademais, nos autores brasileiros citados encontram-se as referên-cias internacionais básicas sobre o tema.11 A não ser que se aceite umas das tradições que, “tradicionalmente”, se remetam a obra.

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Classe e cultura no alto império romano: os libertos de Paul Veyne

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Quanto ao tratamento dado a seus personagens, é importante res-

saltar que se trata de um romance que possui um personagem principal, e

que este faz o papel de narrador12 na obra: Encôlpios, um homem livre, um

estudante das “belas letras” (História, Filosofia, Literatura, etc.). Nesta con-

dição, de aluno, este personagem é convidado ao Banquete na casa do li-

berto-rico Trimalquião13, e é nesta condição que Encôlpios é humilhado e

desprezado pelos libertos presentes. Quero dizer com isto que os chama-

dos “sentimentos de inferioridade” tão ressaltados por Paul Veyne, são os

sentimentos do narrador. É o narrador que não encontra um “lugar” naquela

realidade social14.

Além da própria fonte não ser analisada em sua lógica interna, existe

um certo recorte bem operado entre outras fontes. Por exemplo, na passa-

gem citada como “tentativas de bruscas rupturas nas obrigações devidas

aos patronos pelos libertos”, a fonte deveria ser citada em sua parte impor-

tante: Tácito, nos informa, nos Anais XIII, 26-27, que a discussão se travou

no Senado entre os que eram a favor de reduzir os libertos novamente à

escravidão e os contrários a essa idéia. A solução foi que se tratasse do

assunto caso-a-caso e que não se deveria promulgar uma lei geral pois “era

muito grande a classe dos libertos, e dela se constituíam as tribos, as decú-

rias, e toda a categoria dos empregados, magistrados e sacerdotes, assim

como as coortes recrutadas nas cidades, e muitos cavaleiros e senadores

não tinham outra origem (...)”15. Além disso, na época do Imperador Cláudio

12 Veja-se Cândido et alii ( Cândido, 1987).13 Uma análise comparativa possível é aquela que estuda as inscrições de época romana (Qui-roga, 1991; D’Arms, 1981) ou com relevos funerários (Gonçalves, 1996). Assim, torna-se tam-bém possível verificar a verossimilhança da obra com um suposto real.14 Cf. Keith Hopkins (Hopkins, 1965 e 1993).15 Um outro recorte está relacionado com a tomada do termo “cicaro” (“menino querido”) por“puer delicatus” (“menino gostoso, delicado”). Veja-se Veyne, p. 17: “É o que faz pelo seu puer

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já havia surgido um problema com os libertos ingratos (Suetônio, XXV, 3) e,

antes disso, a lei Aelia Gentia, do ano 4 d. C., permitia ao senhor desterrar

seus libertos até cem milhas de distância ou mesmo condená-los a traba-

lhos forçados. Assim, é possível visualizar um processo no qual os libertos

vão, paulatinamente, forçando a transformação de suas relações reais junto

aos seus patroni16.

Eis uma diferença marcante em relação à abordagem de Paul Veyne:

para este, onde existe a lei, existe a ordem17. A lei não reflete uma “deman-

da por mais ordem”, não é tomada como uma forma de “controle e discipli-

namento das coisas, das idéias e dos cidadãos” (Alves, 1996:36): ela é o

delicatus um dos libertos do Satyricon...” (cf. ERNOUT, Alfred. Pétrone. Le Satiricon. Paris: LesBelles Lettres, 1962, XLVI, 3 , (“Et iam tibi discipulus crescit cicaro meus”).16 Autores como Nicholas Horsfall discordam radicalmente da abordagem que visa reforçar osideais das elites romanas, ideais reforçados em quase toda a literatura sobre o Satyricon. Deacordo com Funari (Funari, 1998), Horsfall, “denuncia o “coro uníssono de desprezo” pela cultu-ra popular romana (pp. 33-34). Segundo o modelo dominante, a grande maioria, vítima dasnecessidades econômicas, da prepotência aristocrática e da instrumentalização política, estariacondenada ao analfabetismo e à ignorância, depauperada intelectual e culturalmente. Horsfalldiscorda radicalmente deste esquema e prefere propor um modelo bipolar (pace Ginsburg): “hábons motivos para aceitar a existência de uma outra cultura ‘paralela’, popular, também essarica e vigorosa, à sua maneira, fundada não sobre os textos literários, mas sobre a música, ascanções, o teatro, a memória, os jogos” (p.34). Ainda contra a corrente, característica, aliás,marcante do livro, o autor não concorda com a interpretação canônica (e.g. Walsh), segundo aqual Petrônio, no Satyricon, apresenta os libertos como dignos de desprezo, mas, ao contrário,os libertos aparentam amar seu modo de falar, assim como demonstram usar com entusiasmoe com criatividade sua língua. Não se consideravam ignorantes, no plano lingüístico, mas cria-tivos (p.38)”.17 Andrea Carandini já apontava algumas contradições nas abordagens de Veyne: “Non è quin-di facile inquadrare Veyne in modo preciso nella storia del suo tempo. Nelle grandi linee – sen-za scendere nella tipologia di diversi gruppi intellettuale – mi sembra ch’egli sai uno dei risusci-tatori del soggettivismo neopositivista di R. Aron (...) – ma i precedenti risalgno a Weber, Ri-ckert e Dilthey (...). Per altro verso il nostro Autore, che si definisce antistrutturalista, há unavisione dualistica della realtà non lontana da quella di Lévi-Strauss: da una parte l’essenziale,l’ordine, il necessario, lo strutturale (la scienza di Veyne); dall’altra il superficiale, il disordine,l’acidentale, l’eventuale (la storia di Veyne)” (Carandini,1979: 351). Além destes problemas, deseu “conservadorismo” e “bizantinismo”, “Alla visione limitata della storia di Veyne non potevanon seguire una idea limitata della figura dello storico (...). Lo storico neutrale di Veyne nondeve distinguere figure e movimenti che abbiano reppresentato validamente una situazionereale da figure e movimenti che abbiano espresso la realtà com coscienza deformata. Nel rac-conto di un itinerario, che è la storia, tutte le tappe sarebbero uguali ”. (idem, 352)

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reflexo de uma “verdade” social que existe “desde sempre”. Assim, não

existe luta de interesses, nem de classes, nem de categorias sociais, nem

de ordens18. Existe ordem19! Esta seria a única utopia possível entre a imi-

tação e a compulsão20. É por este motivo que este “embrião de classe soci-

al”, que teria aspectos do capitalismo comercial, atinge apenas uma peque-

na fase de, mais ou menos, uns 300 anos dentro do império: ressalte-se,

metade da História do Brasil!

Neste sentido, é impossível existir qualquer “classe”21, visto que para

Paul Veyne não existe “consciência de classe”22, revolucionária, não existe

utopia imaginável além daquela proporcionada pelas regras ditadas pelas

elites aristocráticas23. Os libertos são seres “sem memória”, iguais a nós.

Existe o simulacro, a imitação, a imagem; não existe um processo históri-

18 Contra esta interpretação, veja-se Hopkins (Hopkins, 1965) e Weawer (Weawer, 1967).19 Atualmente alguns historiadores propõe a utilização do termo “desordem” para explicar amobilidade social que possuiu como efeito o antagonismo entre as classes sociais romanas(Mouritsen, 1996).20 Cláudio Aquati considera que “ o fato de Trimalquião e outros libertos revelarem seu passadode escravo não seja escolha sua, mas um hábito, uma compulsão que não conseguem escon-der ou de que não se podem livrar, ou melhor, é uma atitude da qual eles nem se dão conta,pois do contrário seguramente fariam questão de negar para assim agir de outra forma, segun-do sugere sua psicologia mostrada (ou recriada) por Petrônio” (Aquati, 1997:211 – nota n. 291).Todavia, o autor não se arrisca a “estender para os libertos de maneira geral o retrato criadopor Petrônio” (Idem, Ibidem).21 Mario Mazza propõe uma outra forma de se entender o conceito de classe social, a partir doredimensionamento de elementos teóricos marxistas (Mazza, 1978).22 Quanto a utilização mecânica do conceito de classe social, veja-se Annequin (Annequin,1978).23 Weawer demonstra que os critérios de competência profissional exigidos aos libertos naadministração do Império é a causa de um constante conflito entre libertos e aristocracia: “Thesecret of administrations’s success is revealead as a kind of class struggle: the true Romanequestrians against the upstart oriental freedmen, with virtue and superior breeding, but notnecessarily superior intellect or education, inevitably winning the day” (Weawer, idem, p. 18).Neste sentido, Carandini já apontava que a interpretação de Veyne torna os valores da classedominante, o bem comum de toda a sociedade: “Per altro verso, il dotto non ha alcuna missio-ne da svolgere: deve pertanto guardarsi dal conservare i valori di una civiltà trasformandoli damonopolio delle classi dominanti in bene comune di tutta una società”. (Carandini,1979:352).

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co24, visto não existir sujeitos históricos. A sociedade é perpassada por mi-

cropoderes25 os quais criam múltiplos espaços demarcados: são os espa-

ços, de acordo com Marilena Chauí, “incopossíveis” (Chauí,1992: 31-32).

Estes espaços “colidem, se excluem e, no entanto, coexistem”.

O texto de Veyne, e aqui podemos considerar também aquele exis-

tente na História da Vida Privada26, nos coloca espaços existindo simulta-

neamente, sem nenhuma comunicação possível além daquela estabelecida

pela lei. A única relação possível, com estes vários espaços, é a de espec-

tador. “Cada espaço com sua lógica própria”. Entretanto, na falta da exis-

tência de um referencial comum que consiga dar lógica e sentido à aborda-

gem, utiliza-se de referenciais pessoais: como diria Hobsbawm (1998:211),

“Há somente uma voz e uma concepção: a do autor”. Os libertos são, as-

sim, um dos elementos dessa “pós-modernidade romana”, “vivendo no tem-

po do Espírito Santo: tudo é imaterial... tudo flui... nada bate em nada...

voa... voa... imaterialmente, como se fosse o espírito que paira sobre as

águas” (Chauí, idem, p. 32). A História não é, nesse sentido, uma “resposta

(elaborada evidentemente por meio dos documentos) a uma pergunta que

se faz ao passado” (Marrou,s/d:53), ela é a tentativa de descrição da factici-

dade do fato, criado pela ficção e, sendo assim, não se pode “evitar a (...)

acusação de ‘positivismo’” (Hobsbawm, idem:210).

Não é por acaso que o texto de Veyne, na História da Vida Privada,

retome a análise do Vida de Trimalquião: a coleção dirige-se ao consumo 24 Crítica que já era dirigida, também, por Mario Mazza, à obra de Moses Finley (Mazza,1978:506).25 Talvez, uma versão melhor elaborada deste conceitual, sejam as chamadas “relações diretasde poder” de Fábio Faversani em sua dissertação de Mestrado, inspirada na Escola de Cam-bridge (Faversani, 1995). Veja-se, também, a crítica elaborada por Faversani à Paul Veyne:págs. 158-163.26 VEYNE, Paul. (org.) História da Vida Privada 1. Do Império Romano ao Ano Mil. São Paulo:Companhia das Letras, 1991.

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da sociedade pós-moderna, criando a “imagem” de uma sociedade romana

baseada em uma concepção weberiana de “sociedade administrada” (Ja-

meson,1996:225). A análise de Veyne é o simulacro de nossa sociedade;

demonstra as “maneiras pelas quais as ideologias conscientes de revolta,

revolução e até de crítica negativa são – mais do que meramente cooptadas

pelo sistema – parte funcional das estratégias internas do próprio sistema”

(idem, 216). Teríamos, assim, uma sociedade romana que por “mágica”

(MacMullen apud Funari, 1998:2-3), pela superioridade cultural, dominaria a

todos: algo parecido com a mundialização da cultura americana.

Cultura, aqui, seria como uma certa doença que se contrai e corrói o

cérebro: talvez uma espécie de arte pós-moderna: a arte não imitaria a vida,

mas qualquer coisa ditada pelas elites (talvez a moda!). Mais que isso, cul-

tura não seria mais “as estruturas de significado através das quais os ho-

mens dão forma à sua experiência”27 (Geertz, 1989:207), e muito menos

práticas que definem um certo habitus28, como o entendia Pierre Bourdieu

(Bourdieu,1983: 83-121), mas o simulacro de uma idéia a ser conformada e

consumida como legítima e única.

Esta é uma das formas que assume o discurso histórico atualmente29:

um “instrumento de poder” de efeito “normativo” (Guarinello, 1994:185) que

se torna, cada vez mais, um produto de consumo e do habitus científico.

Quanto mais se consome, mais se produz, mais se acumula capital científi-

co, mais se adquiri prestígio e status. Assim, como na velha e boa tradição

27 Portanto, “esperteza, trabalho, mérito pessoal, crédito e desejo de lucro e de enriquecimen-to”, na análise de Veyne, perdem sua dimensão de “significados culturais” que poderiam de-terminar uma classe social (Mazza, 1978), para se tornarem determinantes de um “vício social”,contraposto à “virtude” das elites Antigas e dos intelectuais contemporâneos.28 Veja-se o emprego do termo aplicado à sociedade etrusca em Guarinello (Guarinello,1986/87:49-62).29 Alguns preferem designá-la “pseudo história” (Calhoun, 1993).

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positivista, agora sobre a roupagem neo-liberal, assumimos candidamente a

realização desse ideal oligárquico como verdadeiro, e jamais colocamos em

questão as condições sociais de sua realização30.

Finalizando, gostaria de fazer minhas as reflexões do professor José

Miguel Arias Neto31: “William Blake possui uma fórmula lapidar: a oposição

é a verdadeira amizade. Neste sentido não há amizade entre os membros

de uma oligarquia, apenas temor e companheirismo nas horas de fortuna.

Diz Étienne: ‘ (...) há uma espécie de boa-fé entre os ladrões durante a par-

tilha do roubo – pois todos são pares e companheiros (...) e não querem,

desunindo-se, diminuir sua força.’

A amizade, na academia, é oposição, fundada na liberdade e no tra-

balho, conforme observa Marilena Chauí: ‘Trabalho da reflexão sobre a

matéria da experiência, trabalho da escrita sobre a reflexão e trabalho da

leitura sobre a escrita (...) O texto (...) engendra os textos de seus leitores

(...) O pensamento compartilhado. Outrora a filosofia o nomeava: diálogo’.

Iniciemos, pois este diálogo amigo e livre”.

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30 Não se trata aqui da crítica moral, inútil e cristã, à sociedade de consumo: isto é uma cons-tatação. Como já havia ressaltado Jean Baudrillard: “O discurso negativo constitui a residênciasecundária do intelectual. Assim como a sociedade da Idade Média se equilibrava em Deus eno Diabo, assim a nossa se baseia no consumo E (sic!) na sua denúncia” (Baudrillard,1995:210).31 Debate sobre o livro “O Eldorado”, em 01 de abril de 1998. Apresentação, p. 07 (manuscritoinédito).

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