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S U M Á R I O INTRODUÇÃO ___________________________________________________________ 1 REMANESCENTES DE COMUNIDADES DE QUILOMBOS____________________ 2 I VALE DO RIBEIRA ____________________________________________________ 5 I - 1. Caracterização ______________________________________________________________5 I – 2. Povoamento _______________________________________________________________5 I – 3. Formação dos quilombos _____________________________________________________8 I – 4. A história recente__________________________________________________________10 II A COMUNIDADE DE PEDRO CUBAS DE CIMA _________________________ 14 II – 1. Formação e conexões regionais_______________________________________________14 II – 2. Ocupação histórica e atual de Pedro Cubas de Cima ______________________________17 III - PADRÃO DE OCUPAÇÃO DO ESPAÇO, USO DOS RECURSOS NATURAIS, FORMAS DE SOCIABILIDADE. ___________________________________________ 23 III – 1. Patrimônio histórico e cultural_______________________________________________23 III – 2. Economia e organização social ______________________________________________25 IV AS TRANSFORMAÇÕES NO TERRITÓRIO E MODO DE VIDA QUILOMBOLA: SITUAÇÃO ATUAL_______________________________________ 29 IV – 1. Alguns problemas atuais ___________________________________________________32 V Considerações finais ___________________________________________________ 35 VI - MORADORES ATUAIS _______________________________________________ 38 Bibliografia ______________________________________________________________ 41 Fontes documentais Departamento do Arquivo do Estado de São Paulo-(ASP) ____ 43 Sites pesquisados _________________________________________________________ 43

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S U M Á R I O

INTRODUÇÃO ___________________________________________________________ 1

REMANESCENTES DE COMUNIDADES DE QUILOMBOS____________________ 2

I – VALE DO RIBEIRA ____________________________________________________ 5I - 1. Caracterização ______________________________________________________________5I – 2. Povoamento _______________________________________________________________5I – 3. Formação dos quilombos _____________________________________________________8I – 4. A história recente__________________________________________________________10

II – A COMUNIDADE DE PEDRO CUBAS DE CIMA _________________________ 14II – 1. Formação e conexões regionais_______________________________________________14II – 2. Ocupação histórica e atual de Pedro Cubas de Cima ______________________________17

III - PADRÃO DE OCUPAÇÃO DO ESPAÇO, USO DOS RECURSOS NATURAIS, FORMAS DE SOCIABILIDADE. ___________________________________________ 23

III – 1. Patrimônio histórico e cultural_______________________________________________23III – 2. Economia e organização social ______________________________________________25

IV – AS TRANSFORMAÇÕES NO TERRITÓRIO E MODO DE VIDA QUILOMBOLA: SITUAÇÃO ATUAL_______________________________________ 29

IV – 1. Alguns problemas atuais ___________________________________________________32

V – Considerações finais ___________________________________________________ 35

VI - MORADORES ATUAIS _______________________________________________ 38

Bibliografia______________________________________________________________ 41

Fontes documentais – Departamento do Arquivo do Estado de São Paulo-(ASP) ____ 43

Sites pesquisados _________________________________________________________ 43

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INTRODUÇÃO

Este relatório apóia-se num conjunto de dados recolhidos em levantamentos históricos, antropológicos e sócio-econômicos produzidos por diversos autores e instituições (vide bibliografia no final) e por dados primários coletados em trabalho de campo realizado em novembro e dezembro de 2002 e em março de 2003. Dentre o material de apoio destacam-se o laudo antropológico “Comunidades Negras de Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Sapatu, Nhunguara, André Lopes, Maria Rosa e Pilões, no Vale do Rio Ribeira de Iguape - SP”1; o Relatório Técnico Científico sobre os Remanescentes da Comunidade de Quilombo de Pedro Cubas, no Vale do Ribeira / São Paulo, de Cleyde Rodrigues Amorim, ITESP, 1998 e a dissertação de mestrado de Rosana Mirales “A identidade quilombola das comunidades Pedro Cubas e Ivaporunduva”, PUC-SP, 1998.Com base nessa pesquisa apresentamos os elementos históricos e antropológicos comprobatórios da condição de remanescentes de quilombos dos moradores da comunidade rural de Pedro Cubas de Cima, no município de Eldorado, São Paulo. A comprovação de tal condição visa propiciar o direito de titulação de seu território previsto no artigo no. 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, o qual afirma que: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”

REMANESCENTES DE COMUNIDADES DE QUILOMBOSPara que as comunidades sejam consideradas remanescentes de quilombos, não é preciso que tenham sido constituídas por escravos fugitivos, nem que tenham se mantido em total isolamento por muito tempo. Até as décadas de 1970/1980 a historiografia oficial ainda reproduzia a descrição e definição “arqueológica” de quilombo como “negros fugidos”, rebeldes indisciplinados que, enganando os senhores, fugiam para as matas onde se juntavam em bandos e, escondidos, desafiavam as autoridades públicas. Eram caracterizados como malfeitores e um perigo para a ordem reinante. Entretanto, essa visão escravocrata e das elites dominantes passou a ser contestada por uma nova consciência histórica de estudiosos brasileiros, despertada no contexto mais amplo dos processos de descolonização da África após a segunda guerra mundial. Com base em novas pesquisas históricas estabelece-se uma perspectiva mais ampla na qual os quilombos são vistos como

1 Tal laudo encontra-se publicado em Andrade, Tânia; Pereira, Carlos Alberto Claro; Oliveira Andrade, Márcia Regina de (Editores) – Negros do Ribeira: Reconhecimento Étnico e Conquista do Território. 2a. Edição, Secretaria da Justiça e da defesa da cidadania e Fundação Instituto de Terras de São Paulo “José Gomes da Silva”, São Paulo, 2000. O laudo, de autoria de Adolfo Neves de Oliveira Junior, Deborah Stucchi, Miriam de Fátima Chagas e Sheila dos Santos Brasileiro, foi realizado para a Procuradoria da República no Estado de São Paulo, para instruir o Inquérito Civil Público no. 05/06, subsidiando o Ministério Público Federal na defesa dos direitos das comunidades Remanescentes de Quilombo do Vale do Ribeira.

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“expressões de uma tremenda agressão à pessoa humana, eram o testemunho de práticas hoje definidas e condenadas em tratados internacionais como“crimes contra a humanidade”, configurando uma injustiça histórica ainda à espera de reparação” (Dallari, 2001:11) . Segundo Acevedo e Castro (1998:28, 29) “o quilombo enquanto categoria histórica detém um significado de resistência e auto-afirmação do grupo diante da ordem escravista... Esse significado, localizado no tempo tem, na atualidade, uma reinterpretação jurídica quando é empregado para legitimar reivindicações pelos territórios ancestrais introduzidas pelos denominados remanescentes de quilombos. A reatualização ou resemantização do termo ocorre, a partir da década de 80, como resultado das mobilizações de grupos rurais, do movimento negro e de entidades de apoio às lutas pelo reconhecimento jurídico das terras de antiga ocupação, entre elas as dos remanescentes de quilombos. No âmago, estão as questões das chamadas terra de preto ou terra de quilombolas associadas ao forte sentimento de fazer parte da história de um grupo específico identificado com um território”.Além disso, o que as pesquisas e estudos acumulados mostraram é que, ainda que relativamente isolados, os quilombos mantinham relações econômicas e políticas regionais, como no rio Trombetas, no Pará, onde os quilombolas mantinham relações de troca com vários grupos indígenas e com povoações rurais (Acevedo e Castro (1998); como no Mato Grosso, onde os quilombolas do Vale do Guaporé mantinham relações ora de troca ora de conflito com os índios Nambiquara e com povoações rurais (Bandeira, 1988) , etc. Na mesma linha Gomes (1996) chama a atenção para a articulação dos quilombos com a sociedade envolvente, através da manutenção de relações comerciais e, principalmente, pela constituição de um campo de relações – um “campo negro” - de interesses comuns entre quilombolas, negros escravos não quilombolas, negros livres e mesmo brancos, comerciantes, proprietários rurais e habitantes de povoados regionais, etc. Esse campo de relações sociais é que possibilitava a formação e manutenção dos quilombos à margem da legalidade, mas, ao mesmo tempo, imbricados organicamente na lógica de reprodução da sociedade escravista que os criou.Ficou demonstrado também que, além dos quilombos remanescentes do período em que vigorava a escravidão, muitos outros se formaram após a sua abolição em 1888 pois, “desde que extinto o direito de propriedade sobre os negros, estes foram abandonados à própria sorte e para muitos o quilombo era um imperativo de sobrevivência. Desprovidos de qualquer patrimônio, vivendo na mais absoluta miséria, os negros foram forçados a conviver numa sociedade que os considerava inferiores e nem mesmo os respeitava como seres humanos. A par disso, ainda tiveram que enfrentar as resistências e os preconceitos de uma sociedade que desprezava sua cultura e abominava suas crenças religiosas. Assim, muitos dos quilombos formados anteriormente não se desfizeram e outros se constituíram, porque continuarem a ser para muitos a única possibilidade de viver em liberdade, segundo sua cultura e preservando sua dignidade.”(Dallari, 2001: 11, 12.)Portanto, mesmo sendo um marco formal para os negros do Brasil, a data de 1888 não tem importância decisiva na definição dos quilombos. Estes se formaram por escravos

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libertos, por insurretos e também por negros livres, antes e depois da abolição da escravidão.“Enquanto vigora a escravidão, os quilombos cumprem a função de abrigar as populações negras configurando um tipo de resistência. Finda a escravidão, sabemos que a Lei Áurea só vem formalizar uma realidade conquistada pelas populações negras uma vez que quase todos os escravos já se haviam liberto quando da assinatura da lei, os quilombos serão os espaços onde muitos negros, excluídos pela nova ordem que se configura, poderão sobreviver física e culturalmente. ... É portanto, perfeitamente lógico falar-se em quilombos mesmo após 1888. (Oliveira, 2001: 31).Desse modo, ao se examinar a territorialidade dos quilombos que já foram objeto de estudos históricos e antropológicos constata-se que foram diversos seus processos de formação: fugas, heranças, doações e até mesmo através de compra de terras. Quilombos formaram-se também após a abolição da escravidão com a ocupação de áreas abandonadas, ou adquiridas por antigos escravos, formando povoados e bairros rurais. Seus territórios configuram sua luta por liberdade e pela criação de uma identidade própria, estabelecendo-se uma dinâmica de reprodução sociocultural baseada na ocupação e uso comunal do espaço, organizada socialmente através das relações de parentesco e grupais, cuja imemorialidade se reafirma permanentemente.Assim, por remanescentes das comunidades de quilombos adotamos o entendimento da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) que considera como remanescente de quilombo “toda comunidade rural negra que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais tem forte vínculo com o passado”.Desse modo, entendemos que as comunidades remanescentes de quilombos tem sua base de constituição no contexto histórico da escravidão no Brasil, cada uma delas produzida em processos regionais específicos, no decorrer dos quais se estruturaram como grupos de identidade étnica diferenciada dos outros grupos com os quais formavam um sistema étnico, em situações de conflito/cooperação social, estabelecendo um modo sociocultural específico de ocupação de espaço e uso dos recursos naturais. São, portanto, comunidades que se constituíram e criaram sua identidade através da apropriação histórica e cultural de um território determinado, cujo espaço é marcado por memórias do tempo vivido pela população e que, ao mesmo tempo, define a identidade dessa população.

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I – VALE DO RIBEIRA

I - 1. Caracterização

As cabeceiras do rio Ribeira do Iguape se localizam no Paraná, no município de Serro Azul e sua bacia se estende por uma vasta região de aproximadamente 16.528 km2, abarcando territórios dos Estados de São Paulo (70%) e Paraná (30%). Embora localizada ao sul do Trópico de Capricórnio, seu clima é tropical, quente e úmido, com uma temperatura média anual entre 18 e 22o. centígrados. O inverno é relativamente frio, ocorrendo de zero a 10 geadas por ano.Sua topografia irregular, o solo e o clima, contribuíram para o desenvolvimento de um complexo mosaico de ecossistemas variando das extensivas restingas perto da costa até a densa floresta úmida tropical nas encostas da Serra de Paranapiacaba. Essa variedade de formações, genericamente conhecida como “Mata Atlântica”, abriga uma das maiores taxas de biodiversidade do mundo. Embora localizada relativamente próxima da cidade de São Paulo e de sua área metropolitana, a mais industrializada e de maior população do Brasil, a região do Vale do Ribeira (que ocupa 10% do território paulista) tem a menor taxa de densidade populacional e concentra a maior parte dos remanescentes da Mata Atlântica do Estado de São Paulo. Aproximadamente 60% da área do Vale do rio Ribeira de Iguape são recobertos por essa vegetação, sujeita a restrições legais de uso de diversos graus e, além disso, 20% do território do Vale do Ribeira é constituído de Parques, Estações Ecológicas e outros tipos de unidades de conservação ambiental.A Bacia Hidrográfica do rio Ribeira do Iguape é composta por 23 municípios2, com uma área total de 16.771 km2 e uma população de mais de 300 mil habitantes. Em dois destes municípios concentram-se as comunidades remanescentes de quilombos: no município de Iporanga localizam-se os quilombos de Pilões e Maria Rosa. Pedro Cubas de Cima, a comunidade de que trata este relatório, localiza-se no município vizinho de Eldorado, assim como os quilombos de Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Nhunguara, André Lopes, Sapatu e Galvão. A cidade de Eldorado, uma estância turística, fica na margem direita do rio Ribeira de Iguape, a 242 km da cidade de São Paulo, tem 14.134 habitantes (censo IBGE 2000), sendo 6.974 na área urbana (49,34%) e 7.160 na área rural (50,66%).

I – 2. Povoamento

Na época da colonização portuguesa, a bacia do rio Ribeira do Iguape era habitada por povos de origem tupi, os Carijó, da família lingüística Guarani. Era também uma área

2 Seus limites territoriais legais foram definidos pelo Decreto Estadual (Estado de São Paulo) no. 38.455 de 21/03/94. Os municípios que a compõe são: Apiaí, Barra do Chapéu, Barra do Turvo, Cajati, Cananéia, Eldorado, Iguape, Ilha Comprida, Iporanga, Itaoca, Itapirapuã Paulista, Itariri, Jacupiranga, Juquiá, Juquitiba, Miracatu, Pariquera-Açu, Pedro de Toledo, Registro, Ribeira, São Lourenço da Serra, Sete Barras e Tapiraí.

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de perambulação sazonal dos Guaianá, do tronco lingüístico Jê que, no inverno, desciam do planalto para o litoral em busca de pesca. No Brasil colonial o território que viria a se constituir no Estado de São Paulo e, principalmente, na cidade de São Paulo, caracterizava-se como uma zona de passagem, sem abrigar nenhuma atividade econômica de forte expressão. Praticou-se uma pequena mineração de lavagem nos dois primeiros séculos e uma agricultura insignificante da caráter puramente local. Segundo Prado Jr. (1969:67) “As grandes fontes da vida paulista serão o comércio de escravos indígenas, preados no alto sertão e vendidos nos centros agrícolas do litoral; comércio de gado que vem dos campos do sul... e finalmente, quando se descobre ouro em Minas Gerais, São Paulo será por algum tempo a única ou principal via de acesso a ele”. No início da colonização, principalmente através da prática do “cunhadismo” (Ribeiro, 1995: 81-83), sistema indígena de incorporar estranhos à sua comunidade através da oferta de uma moça em casamento e o conseqüente estabelecimento de laços de parentesco e participação na rede de reciprocidade tribal, estabeleceram-se relações de aliança e troca entre a população indígena local e os europeus, formando-se os primeiros núcleos de povoamento no Brasil. “O primeiro e principal desses núcleos é o paulista, assentado muito precocemente na costa. Centrava-se ao redor de João Ramalho e de seu companheiro Antônio Rodrigues.... Por longo tempo foi fácil aliciar índios para esses imensos esforços, tal era a atração das ferramentas e bugigangas. Com os anos, surgiram dificuldades, porque os índios queriam melhor retribuição por seus serviços, seja porque os paus de tinta ficavam cada vez mais escassos e longínquos; seja porque as roças que abriam para os brancos em troca do escambo tinham que ser cada vez maiores dado o número crescente deles; seja porque os índios estavam saciados dos artigos que os brancos lhes davam”. (Ribeiro, 1995:92)Assim, poucos anos após o início da colonização portuguesa no Brasil, a escravização indígena começou a se impor como forma de conscrição de mão de obra. Darcy Ribeiro (1995) aponta que já em meados do século XVI havia em São Vicente perto de 3 mil escravos índios trabalhando em seis engenhos de açúcar, aumentando também, por conseqüência, os enfrentamentos de índios vizinhos para a captura de escravos e, aumentando cada vez mais o número de bandeiras para buscá-los cada vez mais longe. A declaração de uma guerra justa contra os Carijó em 1585 serviu de fato precursor da estratégia de tomar cativos tupi e guarani no decorrer de guerras justas, prática que, iniciada em São Vicente no século XVI, logo se generalizou (Monteiro, 1994). Como afirma Ribeiro (1995:100) “Custando uma quinta parte do preço de um negro importado, o índio cativo se converteu no escravo dos pobres, numa sociedade em que os europeus deixaram de fazer qualquer trabalho manual. Toda tarefa cansativa, fora do eito privilegiado da economia de exportação, que cabia aos negros, recaía sobre o índio.”As condições geográficas do Vale do Ribeira caracterizadas por uma cadeia de serras e por inúmeras cachoeiras perigosas, dificultavam o acesso dos colonizadores e aventureiros que foram se estabelecendo como mineradores ao longo do rio Ribeira, tornando-se importante refúgio para os índios perseguidos pelos bandeirantes.

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Conforme aponta Stucchi (2000: 61), em 1647 é registrada em Cananéia e Iguape a presença dos Carijó. Em 1809 as autoridades de Xiririca3 preocupavam-se com a “chegada dos Bugres os quais se tem aproximado à Ribeira e porque poderão chegar à Freguesia e seos cítios” (Ordenanças de Itanhaém, Iguape e Xiririca – Manuscritos –Ordem 287, Caixa 50/ASP, apud Stucchi, 2000:61). De acordo com a mesma fonte, a Vice-Presidência da Província de São Paulo determinou, em 1835, que os indígenas existentes na região fossem distribuídos entre os habitantes de Iguape.Stucchi (2000:61) destaca que a região do rio Turvo “abrigou indígenas em fuga, oriundos de Cananéia e Ilha do Cardoso, que chegavam pelo rio das Minas, atravessando o sertão do Faxinal.” E que a presença indígena na região foi marcante na formação da sociedade local, mormente pelo “legado cultural e tecnológico que foi apropriado e redefinido pelas populações negras e ribeirinhas em São Paulo: as técnicas de pesca, a agricultura itinerante e a própria toponímia regional.”No século XVI o rio Ribeira de Iguape era usado como caminho para as bandeiras que visavam atingir a bacia do rio do Prata. O núcleo de Iguape já existia em 1537 e, assim como Cananéia, era elo de ligação marítima do interior com outros centros da Capitania de São Vicente. Iguape, que mantinha o domínio da navegação do Rio Ribeira, articulava-se melhor com o interior que começava a ser povoado a partir das escarpas da Serra do Mar (Paranapiacaba). Os primeiros achados auríferos foram reportados já no início do século XVII, mas apenas no século XVIII foram achados veios mais ricos na bacia do rio Ribeira.Iguape foi elevada a Vila em 1635, ano em que se instalou a Casa da Oficina Real da Fundição de Ouro, constituindo-se no centro da concentração dos mineradores até a descoberta de ouro rio acima, no início do século XVIII, quando houve um deslocamento da população propiciando a formação dos povoados de Ivaporunduva, Iporanga, Apiaí, Paranapanema e Xiririca, onde se encontravam os veios auríferos mais ricos.Conforme aponta Mirales (1998: 13), Xiririca originou-se de uma aldeia indígena, vinculando-se à Vila de Iguape até 1842, quando se tornou município, vindo a chamar-se Eldorado em 1948. Iporanga era Distrito de Apiaí, tornando-se município em 1873. A interiorização dos aventureiros atrás das jazidas de ouro, promoveu também o desenvolvimento de uma agricultura de subsistência.A Casa da Oficina Real da Fundição de Ouro funcionou até 1763, quando do incremento da mineração em Minas Gerais. Seu fechamento sinaliza o fim do período mais expressivo da mineração na região, ainda que a exploração do ouro tenha continuado em menor escala em Eldorado/Xiririca até meados do século XIX, quando finalmente o ouro de aluvião se esgotou.Com o declínio das atividades de mineração, iniciou-se na região o plantio de arroz para exportação e desenvolveu-se uma agricultura variada. Em Xiririca passou-se a produzir cana, mandioca (e farinha de mandioca), café, feijão, fumo e milho.

3 Xiririca, do tupi xiri’rica- corredeira, lugar onde as águas se aceleram pela declividade do terreno – era o antigo nome do município de Eldorado.

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A vinda da família real para o Brasil, em 1809, estimulou um aumento da demanda por alimentos e, especialmente a cultura do arroz passou a ser feita em maior escala. Gomes (1996) aponta também o incremento da produção agrícola em regiões do Rio de Janeiro, inclusive de quilombos localizados na zona rural, para atender a demanda da Corte portuguesa no Brasil. No Vale do Ribeira a monocultura do arroz torna-se o principal cultivo, voltado para a exportação e para o abastecimento de outras províncias da Colônia, em especial a do Rio de Janeiro. Conforme aponta Gomes (1966, apud Stucchi,2000:63) “A produção era escoada pelas precárias vias terrestres: em 1830 iniciou-se a abertura de um caminho que deveria unir a Baixada a Itapetininga, mas que ficou interrompido tendo em vista as dificuldades para a transposição da Serra Queimada, e outros, que conduziam Xiririca a Capão Bonito de Paranapanema, e Iporanga a Itapeva, mas que, em 1872 estavam obstruídos. De todo modo, uma modificação importante ocorreria com a instalação da navegação a vapor, fazendo o transporte entre Iguape e Xiririca.Em 1855, foi construída uma grande obra nas imediações de Iguape, onde chegavam as canoas que desciam o arroz destinado à exportação. A abertura do Valo Grandeobjetivava reduzir o tempo no transporte de mercadorias através da abertura desse atalho para a chegada das canoas ao porto. Porém, em poucos anos o Valo Grande provocou o assoreamento do porto e a obstrução da barra, praticamente interrompendo as comunicações portuárias entre Iguape e Santos.

I – 3. Formação dos quilombos

A concentração no Vale do Ribeira do maior número de comunidades remanescentes de quilombos do Estado de São Paulo deve-se à atividade mineradora que ocorreu na região em meados do século XVII, realizada em grande parte com a utilização de mão de obra de negros escravizados. No final do ciclo da mineração muitos deles permaneceram na região, ocupando terras, desenvolvendo uma agricultura de subsistência, uma identidade específica e formas de organização sociocultural próprias.Durante todo o período da mineração Iguape foi um centro da comercialização de escravos. Estes eram vendidos na Praça do Rosário, no mesmo local onde se localizava a forca, próximo da Fonte do Senhor onde ficava o pelourinho (Mirales, 1998:13). Ainda que Iguape concentrasse o maior número de escravos, muitos negros oriundos de Angola, Moçambique e da Guiné eram levados a outras localidades, rio acima. A tradição oral das comunidades remanescentes de quilombos da região também registra esse fato, como vemos no depoimento de Moacir Lúcio da Rosa, de Pedro Cubas de Cima, transcrito em Mirales (1998: 13):“Não tinha estrada, era muito dificultoso. Trafegava uma lancha muito grande, que vinha do lado de Iguape, entrava por Registro e chegava aqui (Eldorado/Xiririca) vendendo escravos. E os patrões compravam lá nos portos de Iguape, Cananéia, São Vicente. Traziam e revendiam para aqueles que comercializavam pessoas, escravizavam e da qual o meu tataravô chegou nessa condição, nessa família que somos até hoje.”A mineração, o cultivo do arroz em várzeas e a construção do Valo Grande foram trabalhos realizados majoritariamente por escravos, ainda que, comparativamente, no

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auge da época da mineração a mão de obra escrava tenha sido pouco usada nas atividades agrícolas, concentrando-se no garimpo. Com o declínio da mineração os escravos continuaram sendo usados apenas pelos fazendeiros mais abastados e nas fazendas maiores. Porém, de modo geral, o número de escravos passa a diminuir em relação ao período anterior.Com o fim da escravidão em 1888 e o descenso da produção agrícola para exportação, ao mesmo tempo em que aumentou número de pequenos produtores agrícolas autônomos, diminuiu o tamanho da população branca na região. Isso se explica pela posição ocupada pelos ex-escravos no contexto regional. Isto é, num processo que se iniciou na ordem escravocrata, através das fugas, da compra da liberdade e da alforria4 já se constituíam comunidades rurais livres (os quilombos), dedicadas a uma agricultura de subsistência e à venda de excedentes na região. A transformação do escravo em pequeno produtor rural autônomo se acentuou após a abolição da escravidão quando, com o relativo esvaziamento da população branca, passaram a ocupar as terras abandonadas e também as mais distantes dos centros, num processo de ocupação e uso produtivo da “capuava”, isto é, das regiões florestadas mais distantes do rio, nos interiores. Como nos mostra Stucchi (2000), com relação a Ivaporunduva, mas que caracteriza a dinâmica populacional de toda a região: “com o descenso da produção aurífera, ocorreu a gradativa saída da população branca da região, sendo os escravos alforriados ou simplesmente abandonados e ampliando-se as áreas ocupadas pela população negra de Ivaporunduva. A curva descendente da presença branca na região correspondeu ao abandono de Ivaporunduva como localidade por onde “se andava expeditamente noite e dia” transformado em espaço “cuberto de matos, despido de tantas cazas e ranxarias, sem a pastaria de gados”(Livro de Tombo da Paróquia de Xiririca).Desse modo, instalando-se em áreas livres, ao longo das margens dos tributários do rio Ribeira, plantavam arroz, feijão, milho (e outras culturas minoritárias como a batata, cará, abóbora, etc.) e participavam em pequena escala do comércio fluvial. Ao lado da atividade agrícola, praticavam a caça, a pesca e a coleta, organizando-se em núcleos familiares, ligados por laços de parentesco, compadrio e vizinhança, articulando-se dessa forma em comunidades mais amplas.Assim, reafirmando esta conclusão, Stucchi (2000: 65) afirma que: “A história da ocupação do Vale do Ribeira de Iguape confunde-se com a história da formação das comunidades negras que participaram dos grandes ciclos econômicos de maneira marginal, porém articulada com os ocupantes brancos da região. A presença autônoma ou relativamente autônoma das comunidades negras na região durante o período escravagista brasileiro permitiu a configuração de territorialidades tradicionalmente constituídas, que se redefiniram ao longo do tempo, consolidando-se como os inúmeros bairros rurais habitados predominantemente por negros do vale do rio Ribeira de Iguape.”

4 Os processos de alforria na região se nortearam através de Decreto do Império, datado de 1872, o qual estabelecia os critérios para a alforria de escravos, tais como os aspectos morais, o comportamento, o estado civil e a idade. Além disso, no contexto da escravidão ocorriam variados processos de resistência, que iam da fuga ao confronto, originando os quilombos. (Mirales, 1998: 14)

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I – 4. A história recente

No início do século XX, um novo ciclo econômico foi inaugurado com o estabelecimento de migrantes japoneses em cerca de 50 mil hectares de terra doada pelo governo do Estado de São Paulo e transformando algumas fazendas e sítios em cooperativas, principalmente nos municípios de Registro, Sete Barras e Pariquera-Açu. De acordo com Sampaio e Furlan (1993), cada família ganhou 24 hectares de terra, assim como apoio governamental, técnico e educacional. Sua produção comercial era principalmente arroz e chá, o qual tornou-se o principal produto agrícola na região média do Vale do Ribeira, em Registro. Por volta dos anos de 1930, com o desenvolvimento industrial de São Paulo, a região do Vale do Ribeira ganhou uma importância adicional como grande produtora de banana, cultura que se espalhou rapidamente pelo baixo e médio Ribeira.A partir da década de 1950 tem-se início a um conjunto de transformações que irão modificar as condições vigentes até então e, ao mesmo tempo, dar visibilidade às comunidades negras rurais da região. Em primeiro lugar, nessa década foi introduzida uma nova modalidade econômica, marcante até hoje no cotidiano das comunidades rurais da região: a extração comercial do palmito juçara, tornando-se o Vale do Ribeira o maior fornecedor do produto no Estado de São Paulo e ensejando a criação de indústrias nas cidades de Eldorado, Juquiá, Miracatu, Iguape, Jacupiranga e Registro. A produção do palmito provocou uma relativa diminuição do esforço despendido nas roças familiares por parte dos moradores de algumas das comunidades. Entretanto, pouco mais de uma década após sua introdução, a extração do palmito ou de outros produtos florestais em áreas de preservação permanente, sem portar uma licença da autoridade competente, foi tornada ilegal5. No período de 1956/60 foi construída a BR-2, atualmente BR-116 fazendo a ligação com os Estados do sul do Brasil, asfaltada durante o regime militar (1964-84) dando novo estímulo ao desenvolvimento agrícola e turístico. A terra se valorizou na região e, com isso, acentuou-se a violência na luta pela manutenção das posses, pressionadas cada vez mais por grileiros. Na mesma década o Estado passa a intervir na região através de políticas mais definidas e de forma mais organizada que antes, por meio da criação de unidades de conservação ambiental e de uma política de construção de hidrelétricas. Foi na década de 1950 que ocorreram os primeiros estudos de viabilidade voltados para o aproveitamento hidrelétrico do rio Ribeira.

5 A proibição é estabelecida pela Lei no. 4.771 de 15/09/1965 do Código Florestal. Se a extração do palmito ocorrer um dos Parques, o ato poderá ser qualificado como “causar danos aos Parques Nacionais, Estaduais ou Municipais”, também considerado contravenção penal pela letra “d” do Artigo 26. O autor ainda poderá, além disso, ser indiciado por “furto”, delito qualificado pelo Código Penal.

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Esses estudos e a ameaça de inundação de parcelas significativas dos territórios ocupados pelas comunidades negras suscitou uma maior organização e visibilidade destes grupos. (Carril, 1995: 130-131).Na década de 1970, em resposta a interiorização de grupo guerrilheiro na região, o governo militar, a par da repressão armada, adotou uma política de regularização fundiária e de reconhecimento das terras devolutas, que estavam ocupadas por posseiros e grileiros. Foi criada a Superintendência de Desenvolvimento do Litoral Paulista (SUDELPA), com o propósito de promover o desenvolvimento econômico e social do Vale do Ribeira e litoral, buscando a integração dessas regiões ao restante do Estado. Esse órgão buscava integrar políticas públicas e regularizar as terras, tendo investido bastante na abertura de estradas na região.Na década de 1980, o Plano Diretor de Desenvolvimento Agrícola do Vale do Ribeira (1985), sugeria a adoção de políticas de preservação ambiental, regularização fundiária e assessoria técnica aos pequenos proprietários e posseiros. Na mesma época, a Procuradoria do Patrimônio Imobiliário reconhecia os perímetros – unidades geográficas tomadas como referência para os levantamentos necessários à regularização fundiária. Instalaram-se também na região o Programa de Regularização Fundiária e o Departamento Estadual de Proteção aos Recursos Naturais. Boa parte dos conflitos mais recentes, que desencadearam pressões e processos de expulsão de famílias remanescentes de quilombos nesse “campo negro” do Vale do Ribeira, deram-se na esteira dessas políticas de regularização fundiária. Em geral, grileiros utilizavam-se do artifício de “comprar” de uma família um pequeno terreno previamente invadido e, valendo-se da dificuldade dos moradores em lidar com documentação escrita, estabelecia em documentos de compra e venda ou através de outros artifícios, uma área muito maior do que a área previamente acordada. Com base nisso e através de invasão muitas vezes armada, procuravam assenhorar-se da totalidade das terras de muitas famílias que tradicionalmente as habitavam.Além disso, segundo Carril (1995) quase metade da área do Vale do Ribeira - 700 mil hectares de um total de cerca de 1,5 milhões de hectares – passaram a ser considerados terra devoluta. Sobre estas terras onde está situada a maior parte das áreas de remanescentes de quilombos é que são criadas, majoritariamente, as unidades de conservação do Vale do Ribeira, sob o pressuposto de que em terras devolutas não deve existir presença humana, ignorando-se a ocupação centenária das muitas comunidades negras da região. Assim, em 1958 é criado o PETAR – Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira, com 35.884 hectares, como parte de estratégia para o controle da extração do palmito. Em 1988 foi incorporada ao PETAR uma área de terras devolutas, através de decreto estadual. Esse parque passou a impactar diretamente as comunidades de quilombos de Pilões e Maria Rosa, por força das limitações de uso derivadas da legislação ambiental, as quais discutiremos mais a frente.O Parque Estadual de Jacupiranga, criado em 1969, é o maior parque do Estado de São Paulo, com cerca de 150 mil hectares, incidindo sobre os municípios de Jacupiranga, Iporanga, Cajati, Eldorado, Barra do Turvo e Cananéia. Implantado em áreas habitadas por moradores não desapropriados ou indenizados, com loteamentos clandestinos,

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fazendas, bananais, com várias comunidades negras no seu interior, é fonte permanente de conflitos. De acordo com Stucchi (2000: 115) as comunidades remanescentes de quilombos de Nhunguara e André Lopes foram sendo empurradas para as bordas do Parque, onde residem a maior parte dos moradores e ficou exposta a conflitos fundiários, antes inexistentes, com fazendeiros.Em 1982 foi criado o Parque Estadual Carlos Botelho, reunindo quatro reservas florestais criadas anteriormente na década de 1940, incidindo sobre os municípios de São Miguel Arcanjo, Sete Barras e Tapiraí. Com 37.664 hectares é o único Parque Estadual do Vale com sua situação fundiária totalmente regularizada e sem impactos discerníveis sobre as comunidades de remanescentes de quilombos.Em 1995 foi criado o Parque Estadual Intervales cujo núcleo é a Fazenda Intervales, antiga propriedade do Estado de São Paulo, acrescido de duas glebas consideradas terras devolutas. É o único parque administrado pela Fundação Florestal. Parte das áreas consideradas devolutas que compõem o Parque eram ocupadas pelas comunidades negras de São Pedro, Maria Rosa, Pilões, Ivaporunduva e Pedro Cubas, ocasionando nova fonte de conflitos.Estas unidades de conservação, a criação de áreas de proteção ambiental (APAs) e a incrementação de legislação ambiental, especialmente após 1988, promoveram o aumento da fiscalização e tornaram-se uma fonte de violência e repressão aos moradores das comunidades rurais, cerceados no exercício de seu modo de vida pelas proibições que passaram a recair sobre muitas de suas práticas de subsistência.Stucchi (2000: 115/116) sintetiza os impactos sobre as comunidades negras:“A maioria do território tradicional das comunidades negras do Vale do Ribeira foi abrangida e afetada de maneira direta ou indireta pelas Unidades de Conservação criadas após a década de 1940, assim como a implantação da Área de Proteção Ambiental da Serra do Mar, em 1984, que abangeu parte de 11 municípios do Vale. Com aproximadamente 469.450 hectares, a APA da Serra do Mar fecha um circuito geográfico com as outras Unidades de Conservação do Vale do Ribeira, sobrepondo-se a elas em algumas áreas, que incide em, praticamente, toda a região em que estão localizadas as comunidades negras estudadas. O zoneamento da APA da Serra do Mar criou uma extensa área reservada de Zona de Vida Silvestre (ZVS) incluída nos territórios ocupados pelas comunidades, onde é proibido ou regulado o uso dos sistemas naturais. A criação da APA da Serra do Mar promoveu a intensificação das atividades fiscalizadoras na região, de modo que, a partir da década de 1980, viu-se dificultada ou impedida, na maioria das situações, a atividade agrícola. Embora não seja proibido o manejo agrícola no interior da APA, faz-se necessária uma licença expedida pelo órgão estadual licenciador, em que o requerente deve apresentar o título de propriedade da área a ser desmatada. Este requisito exclui a imensa maioria dos moradores das comunidades negras, classificados institucionalmente como posseiros. Na ausência dessa licença a Polícia Florestal autua o morador, que responderá administrativa e civilmente pelo ato.”Relembra Stucchi que, com a nova lei ambiental promulgada em 1998, o morador poderá ainda ser indiciado criminalmente.

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Assim, além da extração do palmito ter-se tornado prática ilegal a partir de 1965, paulatinamente outras práticas, mais tradicionais, também foram sendo dificultadas e criminalizadas, inviabilizando a subsistência destas comunidades. Como acentua Carril (1995: 114), esse conjunto de restrições ao modo de vida das comunidades negras (e outras comunidades rurais da região) levou-as a intensificar a extração do palmito que tornou-se sua principal fonte de subsistência. É uma atividade menos arriscada a ser flagrada pela fiscalização do que o plantio das roças, cujas clareiras e queimadas logo denunciavam sua existência.

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II – A COMUNIDADE DE PEDRO CUBAS DE CIMA

II – 1. Formação e conexões regionais

A Vila de Santa Catarina, núcleo “urbano” da comunidade de Pedro Cubas, se localiza a 10 km. do Rio Ribeira, próximo à foz do rio Ivaporunduvinha, que deságua no rio Pedro Cubas. A estrada para a Vila foi, no passado, o caminho para o planalto de São Paulo, atravessando a Serra de Paranapiacaba. Dizem os mais antigos que o barco subia até a nascente do rio Pedro Cubas, de onde se seguia por uma trilha que levava ao planalto, sendo lembrados pelos moradores atuais vários casos de antepassados de pessoas da comunidade que, antigamente, eram contratados para levar mercadorias para o planalto e seguiam esse caminho. No final do século XIX, com o declínio da mineração e o fim da escravidão tornou-sedifícil aos proprietários, no contexto do esvaziamento econômico da região, o custo de manutenção de grandes áreas de terras e as despesas com antigos escravos. Assim, os negros procuravam subsistir fixando-se nas terras desocupadas tornando-se pequenos produtores rurais, com uma agricultura basicamente de subsistência. Portanto, como enfatizamos antes, o acesso à terra pelos escravos ou ex-escravos deu-se de várias as formas, desde a ocupação pura e simples de áreas isoladas até a doação ou a venda pelos donos aos ex-escravos. Conforme acentua Mirales (1998: 23) “a doação de terras significava o pagamento de dívidas decorrentes dos processos de alforria, as quais foram compradas ou cedidas, bem como da liberação de mão de obra escrava. Os patrões, não tendo mais condições políticas e econômicas de escravizar, facilitaram os processos que levaram a população a se tornar auto suficiente. Em alguns casos, sabe-se que desta forma, os antigos donos dos escravos mantinham as terras sob seu controle.”De acordo com o acervo da memória da comunidade, passado aos moradores atuais através de gerações, as terras ocupadas eram abundantes, cada um morava em seu sítio, agregando sua família e parentela, formando núcleos sobre toda essa região, um “campo negro” ligado por trilhas entre as famílias e as comunidades.Quanto à região do rio Pedro Cubas há referências históricas sobre a existência desse quilombo, como em (Krug, 1908:23, apud Mirales, 1998): “Numa das fazendas desta região, o logar chama-se, se a memória não me falha, Pedro Cubas, acha-se muito ouro. O nome do logar proveo do nome de um escravo, que depois de ter aprendido com seu senhor em Yporanga a arte de batear, fugio, para ali fixar residência”.Assim como outras áreas de quilombo, muitas das famílias que o compunham, juntando-se às primeiras que o formaram, acabaram por construir casa em “terrenos doados pela Santa”, provocando o crescimento de uma vila, no caso, o da Vila de Santa Catarina. Ali, o sítio Pai Romão foi doado a Edwiges Maria da Conceição que destinou um terreno à Santa Catarina. Muitas das pessoas que moram em posses mais retiradas também mantém casa na Vila, para onde se dirigem nos dias de festa ou reunião ou para outros afazeres.

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Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima configuram hoje duas comunidades remanescentes de quilombos cuja diferenciação decorre da maior ou menor proximidade da Vila de Santa Catarina. Pedro Cubas, área de comunidade remanescente de quilombo já reconhecida em 1998, congrega as famílias moradoras da Vila e das áreas localizadas na parte baixa do rio Pedro Cubas. Pedro Cubas de Cima congrega as famílias que vivem nas áreas ao longo dos afluentes mais próximos das cabeceiras, nos altos do rio Pedro Cubas, nas localidades conhecidas como Cerrado Grande, Penteado, Bromado, Boqueirão/Pedrinha, Itopava, Rio dos Peixes, Areado, Areadinho e Braço Grande.A formação de Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima também está associada à formação dos outros quilombos da região, em especial o de Ivaporunduva, pois muitos dos troncos familiares registrados em Ivaporunduva por volta de 1840 também aparecem em Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima, registrados no Livro de Terras de Xiririca/Eldorado. De acordo com a memória da comunidade o início da ocupação das terras banhadas pelo rio Pedro Cubas deve-se a Gregório Marinho, escravo da fazenda Caiacanga, de propriedade de Miguel Antonio Jorge, que era filho de um comprador de escravos que viveu no século XVIII. Os registros históricos tendem a confirmar essa hipótese. A família Marinho aparece como um dos troncos fundadores tanto de Ivaporunduva como de Pedro Cubas. Da fazenda de Miguel Antonio Jorge6, vários escravos fugiram, formando quilombos na região. Um deles foi Gregório Marinho. De acordo com Stucchi (2000:80), em 1849, quando Gregório Marinho batizou sua filha Rosa, ele aparecia como residente no córrego Mundéo, em Ivaporunduva. Já em 1856, registrava7 um sítio em Pedro Cubas, cujas divisas encontravam as terras de Miguel Antonio Jorge e as de Manuel Antunes de Almeida. Em 1849 Vicente Marinho residia em Ivaporunduva e batizava seu filho Generoso. Em 1857 registrava8 duas ocupações de mais de 10 anos uma no Córrego Comprido e outra “na paragem denominada Penteadinho, no rio de Pedro Cubas”.No Laudo Antropológico referente às comunidades negras de Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Nhunguara, André Lopes, Maria Rosa e Pilões (Stucchi e outros, 2000), demonstra-se claramente através de cuidadoso levantamento histórico que Ivaporunduva foi o bairro negro mais antigo da região e representou um núcleo de referência para a formação de outros bairros negros localizados às margens do rio Ribeira e de seus afluentes.“A formação destes bairros negros deu-se com a ocupação das áreas disponíveis a partir da teia formada pelas águas, importante canal de comunicação entre os povoados negros que foram se constituindo.(...) Trata-se de populações que habitavam as margens do

6 Na documentação histórica Miguel Antonio Jorge, ora mencionado como português ora como espanhol, encontrava-se estabelecido na região pelo menos desde 1830 e morreu por volta de 1880. Foi vereador e delegado de polícia, forte comerciante na região, dono de extensas plantações de arroz e uma fábrica de aguardente. A fazenda Caiacanca, de sua propriedade, foi denunciada em 1854 como “coito de quantos criminozos há nesta cidade, daquella villa e de Serra Acima, tem com os seus escravos para mais de 300 pessoas” (Ofícios Diversos – Ordem 1339 – Lata 544/ASP, apud Stucchi, 2000:69)7 Sob o assento no 465 doLivro de Terras de Xiririca. 8 Sob o assento no 488 do Livro de Terras de Xiririca.

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Ribeira e as ‘de muitos rios navegáveis que nelle desaguão (...) tais como o rio Pardo de 3 dias de viagem, rio Batatal de dia e meio, rio dos Pilões de 3 dias, rio de Pedro Cubas de dois dias, rio Taquary de dia e meio, rio de Xiririca de um dia, rio do Etá de 3 dias”.(Ofícios diversos Xiririca – ordem 130 – Lata 545 –ASP, apud Stucchi, 2000: 74.)No relato da formação dos diversos bairros enfocados em tal laudo, torna-se evidente a posição de Ivaporunduva e também de São Pedro, como focos irradiadores de ocupantes negros transformados em pequenos produtores rurais que, desbravando novos lugares através do trabalho, repovoaram a região após o declínio da mineração. Ainda que relativamente autônomos, esses bairros se articulavam através de relações de parentesco estabelecidas pelo pertencimento a uma mesma família ou através do casamento e compadrio. Assim é que muitas das famílias presentes em Pedro Cubas de Cima tem parentes em várias outras comunidades de quilombos da região.Além do tronco Marinho, encontra-se também a família Furquim como uma das mais antigas de Pedro Cubas de Cima, ocupando o sítio Areadinho, de Sebastião Furquim, mais de 80 anos, o mais velho da família. Pois bem, no quilombo de São Pedro, encontra-se Bernardo Furquim como um dos fundadores daquele bairro e do qual descendem a maior parte dos seus habitantes. Ana Faustina, uma das filhas de Bernardo Furquim casou-se com João Vieira, do tronco familiar relacionado à ocupação do sertão de André Lopes. Duas filhas dessa união propiciaram a ocupação inicial de Nhunguara, André Lopes e Pedro Cubas. Por outro lado, a ocupação do bairro de Nhunguara está associada a três troncos principais: Vieira, Dias e Maia. O tronco dos Vieira penetrou a partir de 1830 pelos sertões de Nhunguara, espraiando-se em seguida pelas terras disponíveis de André Lopes e de Pedro Cubas de Cima. De acordo com entrevista de Maria Adelaide Pedrosa publicada em Stucchi (2000: 84) “André Lopes de cima é do João Vieira e André Lopes de baixo é dos Maia, avô desse João que tem aí. Aqui é André Lopes de Cima, é dos Vieira e dos Dias”. O tronco Dias aparece relacionado tanto com Pedro Cubas de Cima, quanto com Nhunguara. Manoel Dias e Cecília Pupo residiam em Pedro Cubas em 1847, segundo consta dos documentos eclesiais. Entre os moradores antigos de Pedro Cubas de Cima, descendentes das famílias fundadoras, encontram-se hoje também os Dias, os Vieira, além dos Furquim e outros troncos formadores do campo sociocultural negro do Vale do Ribeira. Dessa forma, por descendência e através da aliança por casamento entre as famílias fundadoras, estabeleceu-se uma sociabilidade formadora e mantenedora dos vários bairros negros do vale do Ribeira, cada um dos quais com uma identidade específica, mas que apresentam no conjunto uma continuidade histórica e sociocultural.Como aponta Stucchi (2000:76) “É notável a funcionalidade das alianças de casamento ocorridas nas primeiras gerações entre moradores não parentes residentes em localidades diferentes, como fator de ampliação e consolidação da ocupação territorial. As uniões conjugais mais ou menos estáveis entre primos paralelos ou cruzados e entre tios e sobrinhas são fator de povoamento e repovoamento de regiões antigamente pouco habitadas, e que foram sendo ocupadas, principalmente, por grupos de um mesmo tronco familiar. A memória genealógica dos informantes permite reconstituir os deslocamentos relativos à ocupação dos territórios até, pelo menos, cinco gerações anteriores”.

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II – 2. Ocupação histórica e atual de Pedro Cubas de Cima – Cerrado

Grande, Bromado, Boqueirão/Pedrinhas, Penteado, Penteadinho, Rio dos Peixes,

Itopava, Areado, Areadinho e Braço Grande.

As várias localidades formadoras do território de Pedro Cubas de Cima são de ocupação antiga desses diversos troncos familiares que, da forma acima descrita, povoaram a região desde meados do século XVIII. Nessas terras, outros moradores negros também foram entrando através da prática da cessão de áreas, forma de acesso à terra utilizada desde antes mesmo da abolição, através da qual as famílias negras já estabelecidas cediam uma parte do território ocupado para os recém chegados necessitados. Com base na memória dos habitantes e nos documentos históricos disponíveis, passamos a apresentar a ocupação histórica de Pedro Cubas de Cima, procurando indicar a ligação entre os moradores atuais e os ocupantes mais antigos.Estaremos chamando de bairro as localidades mais amplas, formadas por vários sítiosde ocupação familiar, os quais se articulam mais estreitamente e compartilham uma identidade comum forjada por uma convivência histórica que remonta várias gerações. Os sítios são aqui entendidos como parcialidades internas aos bairros, local de ocupação de troncos familiares específicos. Entretanto, é importante enfatizar que no uso dos moradores as categorias bairro e sítiosão muitas vezes imprecisas, pois ambas acabam por referir-se não diretamente a um determinado território físico mas, inversamente, referem-se a uma trama das relações sociais a qual, a partir da posição estrutural do falante, define o território físico de referência. Assim, é comum a pessoa dizer que é do bairro de Pedro Cubas, apesar de morar no Areadinho (sítio de Pedro Cubas de Cima) pois no contexto da conversa a referência são relações sociais que se estendem até a Vila de Santa Catarina e, dessa maneira, todas as localidades de Pedro Cubas de Cima são vistas com pertencentes ao bairro de Pedro Cubas. Porém, se a referência são questões pertinentes apenas às localidades internas de Pedro Cubas de Cima, este último constitui-se um bairro, diferenciado de Pedro Cubas. De forma semelhante, uma localidade interna de Pedro Cubas de Cima pode ser às vezes referida como bairro. Por exemplo, o Sr. Santino Dias declarou em seu depoimento que foram seus antepassados que iniciaram o bairro de Bromado, localidade interna a Pedro Cubas de Cima, que, dependendo do contexto de referência pode ser referida como sítio localizado no bairro de Pedro Cubas de Cima..Porém, para efeito descritivo da área a que se refere este relatório, estaremos usando a categoria bairro, para nos referirmos à Pedro Cubas de Cima e a categoria sítios ou localidades para nos referirmos às regiões internas a este bairro, em geral associadas a um ou mais de um tronco familiar formador. Cerrado Grande abarca a área ocupada pelas famílias, aparentadas, de Moacir Lúcio da Rosa e as famílias Vieira e Ferreira que ali se mantém até os dias atuais. O bisavô (Sr. Laurindo Rosa ), o avô (Salustiano Pedro da Silva) e o pai (Isidoro Lúcio da Silva) de Moacir Lúcio da Rosa, são todos nascidos em Pedro Cubas de Cima. Sua

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mãe, Maria Rosa da Silva, nasceu no bairro da Anta Gorda, na região. Conforme o depoimento de Moacir Rosa, seu avô paterno era neto de escravo e o avô materno era filho de escravo. Essa terra que ocupa agora é do cunhado de seu avô. A mãe de seu avô (sua bisavó) era da família Vieira. Com Moacir Lúcio moram sua esposa, Jaci Leal Rosa e seus dois netos, Rafael e Gabriel. Seus quatro filhos, casados, moram em Curitiba mas pensam em voltar assim que as terras forem regularizadas. Diz ele que antigamente, “De Pedro Cubas (refere-se à Vila de Sta. Catarina) até aqui era uma família só, poishavia casamentos entre elas.” “A comunidade se manteve pois tinha muito racismo entre os negros, não se casavam com brancos”. (transcrito por Mirales, 1998: 14).Nas proximidades agrupam-se as 5 casas da família Vieira e Ferreira, com vários casamentos entre si e um casal da família Macêncio, outro tronco familiar comum ao campo negro do Vale do Ribeira. É local de ocupação tradicional da família Vieira que ali se mantém até hoje. O mesmo ocorre com os Ferreira: um dos moradores, Rubens José dos Santos Ferreira nasceu aqui no bairro, assim como seu pai (Moacir Franco Artulino do Prado), sua mãe (Helena Maria Ferreira), seu avô e seus descendentes atuais, filhos e netos.Ainda em Cerrado Grande e parte já em Bromado vive a família do Sr. Joaquim Braz e de seu filho, José Ribeiro da Costa. Ambos são nascidos onde vivem hoje, assim como seus avós do lado paterno e materno.A área da fazenda Penteado, ocupada por não-quilombolas, que faz parte do território de Pedro Cubas de Cima, é reivindicada pela família de Antonio Benedito Jorge. As fontes históricas levam a crer que seja parte das terras registradas pelos Marinho, no século XIX. Em 1857 Vicente Marinho registra uma propriedade no Livro de Terras de Xiririca, “na paragem denominada penteadinho, no rio de Pedro Cubas. Gregório Marinho, por sua vez, registrou em 1856 um sítio em Pedro Cubas, fazendo divisa com as terras de Miguel Antonio Jorge e Manuel Antunes de Almeida. De acordo com os depoimentos dos moradores de Pedro Cubas de Cima e com os registros históricos, os Marinho foram os formadores do Sítio Cata Alta e do Sítio Pai Romão, limítrofe ao primeiro. Segundo Antonio Benedito Jorge, aquela área hoje ocupada pela Fazenda Penteado faz parte do Sítio Pai Romão. Sua avó, Edwiges Maria da Conceição tornou-se herdeira (doou parte para a Santa Catarina, onde hoje é a Vila de Pedro Cubas). Ela se casou com José Silvério da Costa, de Catas Alta, que cedeu parte para Cesarino Ferreira. Este último permitiu que um homem chamado Calvino fizesse pesquisa mineral na área. Tendo conseguido uma licença de lavra, Calvino apossou-se e vendeu a área para Eli, de Curitiba, o qual finalmente a vendeu para o dono atual. Nesse processo foram sendo pressionados e acabaram ficando fora da terra.Na década de 1980, outros moradores do Sítio Pai Romão, descendentes de Edwiges Maria da Conceição, foram despejados a mando de Abel Bernardino de Santos, de Jundiaí que, por processos semelhantes, havia se apossado da terra. Contra ele lutaram por quase 20 anos. Segundo os moradores, “ele invadia e tomava a terra pela força, com capangas armados. Queimava as casas, houve mortes. Muita gente vendeu, de medo. Dito Chapéu foi despejado mais de uma vez, assim como o Antonio Benedito Jorge e Adão Rolim Dias”. De acordo com os depoimentos dos moradores, o grileiro vinha com a polícia de Eldorado e os despejava. Mas o povo não ia embora – saíam de

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sua própria casa mas ficavam na casa de parentes na Barra do Batatal. Muitos perderam lavoura, casa, móveis e ferramentas. “Adão foi despejado 4 vezes. Numa das vezes em que foi expulso passou quatro anos na Favela Educandário na rodovia Raposo Tavares”. Depois de muita luta a justiça lhes deu ganho de causa e a regularização da área da Comunidade de Pedro Cubas como área de comunidade remanescente de quilombo lhes garantiu a retomada de posse daquela parcela do Sítio Pai Romão. Entretanto, a área ocupada pela Fazenda Penteado ficou de fora da área regularizada da comunidade de Pedro Cubas, mas incide sobre a área requerida pela comunidade de Pedro Cubas de Cima.Em Bromado vive a família Dias, com um núcleo de 5 casas, formando um único sítio, do Sr. Santino Dias, filhos e netos. De acordo com a memória da comunidade foi o bisavô do Sr. Santino Dias que abriu esse sítio: Sr. Pedro Macêncio Dias. Lá nasceram e viveram seu avô Tertuliano Dias e sua esposa Dona Maria Isolina Dias. Todos seus antepassados conhecidos lá nasceram. A família do Sr. Santino Dias ali viveu até cerca de 1975, quando foram tentar a vida fora. Dizem que na época começou a haver muita doença, muitas brigas por terra e vários tipos de problemas. Porém, afirmam nunca terem vendido a terra e conseguiram voltar a ela cerca de 5 anos atrás tendo se estabelecido e começado a lutar pelo seu reconhecimento. O Sr. Santino enumera quase 60 pessoas, entre irmãos e irmãs, casados e com filhos, primos, netos, que encontram-se espalhados fora da área planejando voltar assim que for regularizada a terra do quilombo.Ainda em Bromado9 vive também, em sítio vizinho à família Dias, a família de Maria Urbana Tié Furquim, prima irmã do pai do Sr. Santino Dias e parente do Sr. Sebastião Furquim, morador do sítio Areadinho, mais para cima do rio.Dona Maria Urbana nasceu ali em Pedro Cubas de Cima, assim como seus antepassados (sua mãe Laurinda Maria Antonia, seu pai Antonio Tié, sua avó materna Maria Eulália, seu avô paterno José Tié e sua avó paterna Emília Dias). Seu primeiro marido foi Durvalino Furquim, já falecido, com o qual teve três filhos, todos casados. Um dos filhos mora na Barra do Batatal, outro em Eldorado e outro fora da região. Ela casou-se de novo em 1969 com o Sr. Agenor, da Barra do Batatal.Seu pai Antonio Tié morreu por volta de 1975 e, no contexto de pressões sobre a área naquela década, a mãe e alguns dos irmãos foram tentar a vida em São Paulo. Logo em seguida ela e o marido mudaram-se para a Barra do Batatal, a cerca de 13 kms dali, de onde tentou manter a posse da terra, exercendo uma vigilância esporádica, vindo de vez em quando para limpar o terreno, plantar um pouco de banana, etc. Declara nunca haver vendido nenhuma porção da área da família. Porém, a partir dos anos 1980 passaram a ser barrados por pessoas que se diziam proprietárias. Todos os anos tentavam entrar de novo na terra, mas eram barrados, não lhes permitindo roçar nenhum pedaço da terra, ou

9 Os sítios encontrados no interior do bairro de Pedro Cubas de Cima não tem divisas definidas com precisão, referindo-se a extensões de terra e de vegetação utilizadas de forma permanente ou esporádica pelas famílias que os habitam. Assim, seus limites aproximados sempre se sobrepõem. Os sítios de Boqueirão/Pedrinhas, nesse contexto, são apontados como extensões de capuava de Bromado e Cerrado Grande.

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mesmo entrar no terreno, apesar de nunca haverem vendido a terra e não haver nenhum morador permanente.Conforme os depoimentos de Maria Urbana, de sua irmã Edvina e dos outros moradores, em 1997 tentaram voltar em definitivo, mas já tinha gente morando e impediram sua permanência. Por sugestão do Sr. Adão Rolim Dias (morador de Pedro Cubas) fixaram-se num outro lugar, mais atrás, que também faz parte da terra deles e da família Dias. A partir daí uma série de incidentes acompanhou sua volta à terra. O ocupante/fazendeiro/invasor chamado Jairo morava em São Paulo e quem tomava conta era um caseiro. Este, por não receber pagamento ou receber de forma muito irregular, abandonou o trabalho e Maria Urbana voltou a ocupar seu terreno. O fazendeiro veio de São Paulo apresentou denúncia à polícia que ordenou que parassem de trabalhar naquela terra, o que eles foram obrigados a fazer. Um ano depois continuava tudo abandonado e Maria Urbana voltou a trabalhar na terra. O fazendeiro voltou novamente, com três capangas e ameaçou-os para que saíssem. Além disso, deu queixa na justiça. A comunidade de quilombo se uniu em torno de Dona Maria Urbana e resolveram brigar na justiça também. O juiz marcou uma audiência mas o invasor Jairo não compareceu. Depois de três anos de ausência do fazendeiro o juiz deu-lhes ganho de causa e permissão de ocupação da terra. O tal de Jairo nunca mais apareceu e eles retomaram as terras da família. Segundo o depoimento da família, restou ainda um invasor de parte da área, chamado Nedir, que ocupa exatamente o lugar onde morava a avó de Dona Maria Urbana.No sítio Areadinho vive a família do Sr. Sebastião Furquim, com mais de 80 anos de idade. Seus avós foram nascidos no tempo da escravidão e foram também dos primeiros ocupantes dessa área. Toda sua família, até hoje, é nascida no bairro. Segundo seu depoimento seu pai, Nascimento Furquim Rodrigues e sua mãe, Brasilícia Escolástica da Silva, nasceram em Pedro Cubas de Cima, “no tempo de quilombo. Não tinha estrada, era tudo por água, levava 4 dias prá ir e 4 dias prá voltar”. Também no quilombo nasceram seu avô paterno Divino Machado, seu avô materno Vicentinho Dias e sua avó materna, Olímpia Dias da Silva.No rio dos Peixes, moram Pedro Pereira, sua esposa Juride Costa Pereira, fihos casados, noras, genros e netos. Dona Juride é filha do Sr.Joaquim Braz Pereira e de Dona Maria Jandira Dias, ali nascidos, assim como seus antepassados.Ao lado do sítio dos Pereira localiza-se o sítio de Gasparino Dias de Andrade, casado com a irmã de Dona Juride, Rosária Dias de Andrade. A mãe de Dona Rosária Dias de Andrade, Maria Jandira Dias é nascida ali e era prima de Dario Dias, pai do Sr. Santino Dias, família com a qual tem laços de parentesco bastante próximos. A avó paterna de Dona Rosário, Dona Bastiana Batista, era também avó de Antonio Batista, cuja família remanescente de comunidade de quilombo foi a última a ocupar a Fazenda Braço Grande, parte da área reivindicada pela comunidade de Pedro Cubas de Cima.A área do rio Itopava é da família de Antonio Tié, pai de Maria Urbana Tié Furquim (que vive em Bromado ao lado da família Dias), que a ocupou até mais ou menos 1975, quando faleceu. Parte de sua área é hoje ocupada pela Fazenda Nossa Senhora de Fátima que se localiza quase que totalmente sobre o sítio da família Tavares Rafael,

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descendentes de escravos. João Rafael tinha lá uma casa de comércio, ao redor da qual passou a existir um pequeno agrupamento de casas, uma “vilinha”, segundo dizem os quilombolas atuais. Segundo os habitantes da comunidade, a família Tavares Rafael vendeu parte do terreno para a fazenda e os proprietários apossaram-se de tudo, inclusive das terras limítrofes, da família Tié, expulsando-os de lá. O primeiro comprador teria sido Pedro Ramos, o que se apossou de todo o terreno e vendeu para Orlando Barbosa, depois para Dadao Magaro, para César Leite e, finalmente, para o dono atual. Parte da área da fazenda era de João Tavares Rafael, a divisa do córrego para o fundo era do pai de Dona Maria Urbano Tié, Sr. Antonio Tié. Dali fazia divisa com o Sr. Sebastião Furquim do sítio Areadinho e este, por sua vez, fazia divisa com a fazenda Braço Grande, que era ocupada por Antonio Batista, quilombola também como eles. Quanto ao sítio Braço Grande, situado ao longo do córrego Braço Grande, nas cabeceiras mais longínquas do rio Pedro Cubas e de mais difícil acesso, constituía-se a zona de refúgio por excelência dos negros quilombolas. De acordo com o depoimento do Sr. Sebastião Furquim e dos demais moradores de Pedro Cubas de Cima, aquela área foi primeiro ocupada pelo próprio Pedro Cubas, escravo fugido que deu o nome ao rio. Foi em seguida ocupada por Belizário e por outros descendentes quilombolas até ser apropriada por pessoas de fora que dela fizeram a Fazenda Braço Grande. Entretanto, mesmo ocupada por pessoas de fora nunca deixou de existir família quilombola naquela área que ali se mantiveram como caseiros, como foi o caso de Antonio Batista, descendente de Gregório Marinho, que lá ficou até recentemente. Muitos quilombolas nasceram, cresceram e criaram seus filhos ali, a exemplo de Jairo Batista, neto de Arnaldo Batista e marido de Araci Dias Vieira Santos. A área do Sítio Braço Grande, além de ser território de ancestral ocupação quilombola e de seus remanescentes, se reveste hoje em dia de uma importância fundamental para a reprodução sociocultural da comunidade Pedro Cubas de Cima: no seu interior existem bananais e cerca de 10 alqueires de capoeira, locais de roças antigas, onde é possível o uso agrícola tradicional necessário para a reprodução da comunidade. Com as restrições ambientais que pesam sobre eles, já que áreas de mata não podem mais ser derrubadas, essa área do sítio Braço Grande tornou-se muito importante. Além disso, constitui-se num reservatório em uso de materiais de coleta, necessários para a confecção do artesanato e de inúmeros artefatos de uso diário pelas famílias moradoras (tais como pilões, cestos, etc.), e fonte também de vegetais de uso medicinal. Finalmente, a área do sítio Braço Grande compreende algumas das mais importantes cabeceiras do rio Pedro Cubas.Este é o território reivindicado pela comunidade de Pedro Cubas de Cima, composto pelos sítios histórica e tradicionalmente ocupados pelas famílias formadoras do quilombo e suas áreas de uso comum, as quais abarcam o conjunto de cabeceiras do rio Pedro Cubas. Além de configurar um território de ocupação centenária, a inclusão de todas as cabeceiras do rio Pedro Cubas torna-se sumamente importante para a continuidade da conservação ambiental das terras da comunidade, assegurando a ela os meios de controle sobre a qualidade das águas do rio. Como veremos mais adiante, de acordo com o depoimento da comunidade, atualmente o rio Pedro Cubas já se encontra

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ameaçado por atividades de pessoas “de fora”, que destoam do padrão de ocupação do espaço e uso dos recursos naturais desenvolvido tradicionalmente pelos moradores remanescentes da comunidade de quilombo.

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III - PADRÃO DE OCUPAÇÃO DO ESPAÇO, USO DOS RECURSOS

NATURAIS, FORMAS DE SOCIABILIDADE.

III – 1. Patrimônio histórico e cultural

Antes de caracterizar as formas de ocupação e uso do espaço da comunidade remanescente de quilombo Pedro Cubas de Cima, é importante enfatizar a especificidade e a complexidade dos laços que ligam os habitantes ao território que ocupam. Apesar de compartilhar dos padrões adaptativos e sistemas de manejo semelhantes aos dos camponeses e posseiros comuns, estas comunidades que conformam o campo negro da região se constituíram no processo de formação e povoamento das cabeceiras desses afluentes do rio Ribeira, conforme expusemos anteriormente, e forjaram uma identidade étnica específica, calcada e sustentada pela história em comum e pela memória social. Todas as sociedades humanas se especializam em criar laços com o mundo que as rodeia, é este modo particular de criação que fundamenta as bases da cultura e da diversidade, com o dinamismo que as caracteriza. Os sentidos e aplicabilidade dessas criações transformam-se com o tempo, repassadas de geração para geração, e a memória desse trajeto criativo percorrido até o presente constitui o que denominamos identidade. Esta memória, que é seletiva, não se refere portanto apenas aos dados objetivos e factuais de uma história congelada, ao contrário, está dotada de subjetividades e da capacidade de reinterpretação e recriação constantes, próprias ao fluxo indeterminado dos acontecimentos, e do caráter vivo e mutante que caracteriza a vida, a história e a cultura. É nestes termos que contemporaneamente o meio ambiente - físico e natural - está incluído pelos órgãos públicos federais, instituições de ensino e pesquisa, como Patrimônio de Cultura e História, ou seja, se nos centros urbanos edificações são tombadas como base física dotada de memória e de significações históricas e imaginárias, as populações humanas que habitam a floresta e as zonas rurais possuem em seu ambiente físico e natural as mesmas bases de constituição de referenciais simbólicos e significações históricas. Árvores, matas, igarapés, fontes são hoje considerados monumentos, posto que também edificam marcos, memórias e histórias através do que significam para as populações locais. Estas criaram com esses espaços não apenas laços de sobrevivência, mas laços que definem modos de ser, de viver, de interpretar os eventos, acontecimentos e, sobretudo, relações que garantem as condições de reprodução sócio cultural de um modo particular de estar no mundo. É assim, portanto, que devemos encarar os conhecimentos e formas de manejo e uso das espécies animais, de rios, lagos e solos pela comunidade de Pedro Cubas de Cima. No tocante ao patrimônio histórico-cultural de cunho arquitetônico, é possível afirmar que não há edificações de valor histórico na área estudada. Todas as edificações existentes são recentes.

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Por outro lado, apesar de recentes, os modelos de casa, de casas de farinha, assim como dos implementos e ferramentas utilizadas para o fabrico de farinha e para o trabalho agrícola são elementos importantes e vivos do patrimônio histórico-cultural da comunidade investigada. As formas de cooperação e de uso revelam muito do padrão de sociabilidade vigente e de sua permanência histórica; revelam o uso atual de muitos dos recursos naturais da região (palhas, fibras, madeiras, ervas, espécies vegetais e animais etc.); indicam a extensão de áreas que servem a práticas de coleta produtiva e, finalmente, mostram aspectos do conhecimento tradicional atuantes ainda hoje em dia.Não há no conceito de Patrimônio Histórico Cultural uma definição estrita, acabada, conclusiva. Isso se deve não pela ausência de fundamentos e referenciais teóricos mas, pelo contrário, o que está em questão na compreensão deste conceito de Patrimônio é o eixo histórico e cultural sempre abordado (sobretudo a partir do século XX) de modo a considerar o dinamismo, a interdependência e a ordem simbólica que constituem os sentidos da história e da cultura, sejam de um lugar, de uma comunidade, de um povo, de uma nação. Nesta perspectiva, a idéia de Patrimônio associa-se diretamente ao papel da memória e da identidade como referenciais sempre atuantes, presentes, e em constante elaboração na definição de um patrimônio considerado coletivo. Durante muito tempo a noção de Patrimônio esteve ainda atrelada a conjuntos arquitetônicos, edificações, e construção de marcos físicos que intencionavam imprimir numa coletividade um caráter de memória social fundadora de uma identidade nacional. Desse modo o sentido do Patrimônio Histórico Cultural consistia numa política cultural do Estado Nação e das classes dominantes, revelando a arbitrariedade na seleção de ícones, símbolos, heróis e monumentos a serem cultuados e preservados como marcos históricos e referências ideais com as quais a nação deveria se identificar. Não parece por acaso a resistência das classes populares em freqüentar museus e instituições denominadas espaços culturais ainda que muitas vezes a visita seja gratuita, posto que de fato, com raras exceções, não é a garantia da preservação de sua memória que está ali exposta - ao contrário. "A produção cultural das camadas pobres não se arquiva e, portanto, uma vez produzida, pode ser rapidamente perdida." (Durham, 1984:32)É, por fim, a partir da década de 50 que se inicia um processo de revisão, ou melhor dizendo, de aprofundamento das condições de compreensão dos significados da idéia de Patrimônio Histórico Cultural. Neste longo debate sem condições de reprodução neste relatório, importa destacar que as idéias vigentes até então sobre divisões entre alta e baixa cultura - cultura erudita e popular foram se desgastando e revelando através de diversos estudos e abordagens a ausência de fundamentos sólidos e a razão estritamente ideológica das distinções que estabelecia, sendo conseqüentemente, na atualidade, idéias abolidas, descartadas e que entraram em relativo desuso na teoria e prática social. Assim podemos concluir que a constituição de um Patrimônio Coletivo não edifica suas bases a partir de critérios arbitrários que selecionam através da orientação físicaelementos a serem eleitos por uma elite letrada como marcos de memória e identidade social. Em nossos dias Patrimônio Histórico Cultural é algo reconhecido pela coletividade como condição para a reprodução de um modo específico de ser, de viver,

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de experienciar as relações com a natureza, com os objetos e as relações sociais e afetivas. É esse entendimento que está expresso na Constituição Brasileira, conforme reproduzimos no quadro que se segue e que, no seu último item, faz referência expressa aos sítios de reminiscências históricas de antigos quilombos.

QUADRO 1 - Constituição Federal do Brasil, artigo 216, seção II – Educação

Artigo 216, Seção II - Educação

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:I – as formas de expressão;II - os modos de criar, fazer e viver;III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.§ 1o. O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.§ 2o. Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.§ 3o. A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.§ 4o. Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.§ 5o. Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. Dito isso, passaremos a caracterizar o padrão de ocupação do espaço, de uso dos recursos naturais e as formas de sociabilidade da comunidade de Pedro Cubas de Cima.

III – 2. Economia e organização social

Em termos econômicos, sua forma de organização é a da pequena produção, caracterizada pela agricultura de coivara, com consorciamento de várias espécies, voltada para a subsistência e apenas em parte para o mercado. Apóia-se também na pesca, na caça e na coleta. Configura-se como um sistema de manejo marcado pela complementariedade e alternabilidade entre extrativismo e agricultura em sistemas ecológicos particulares e, por vezes, a pequena pecuária. Esse sistema de manejo típico do campesinato, constitui-se num patrimônio histórico e cultural de enorme importância.

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Nele, a influência indígena é marcante. Dos povos indígenas incorporaram sua base alimentar constituída pelo plantio do milho, mandioca, abóbora, feijões, amendoim, batata-doce, cará, etc. Adotaram os produtos de coleta compondo sua dieta com a extração do palmito e de inúmeras frutas nativas como o maracujá, pitanga, goiaba, bananas, mamão e tantas outras. E, como complemento essencial, apoiaram-se na caça e pesca. Isto implicou na adoção de técnicas de plantio indígenas (roça consorciada, itinerante, com base na queimada, tipo de coivara) de artefatos como as peneiras, os pilões, o ralo, das técnicas de fabrico e uso de canoas, redes e armadilhas de pesca, de cobertura de casas rurais com material vegetal e outros implementos que fazem parte da cultura rústica brasileira. A base alimentar indígena foi ampliada e mesclada com espécies vegetais trazidas de fora, como o trigo, o arroz branco, legumes, bananas exóticas e outros, naturalizadas e incorporadas à dieta da população. A influência indígena também se manifestou nas formas de organização para o trabalho e nas formas de sociabilidade. No modelo de "cultura rústica" (Ribeiro, 1995) as famílias são as unidades de produção e consumo que, através de relações de ajuda baseadas na reciprocidade (na instituição do "mutirão", nas festas religiosas, etc.) se articulam umas com as outras em estruturas frouxas mas mais abrangentes que constituíram os 'bairros rurais". Os quilombolas são uma variante dessa “cultura rústica” brasileira. Aproximam-se também do modelo “modo de produção doméstico ou familiar”, conforme descrito por Shallins, (1974: 118) no qual:“A produção é uma função doméstica. A família está como tal diretamente engajada no processo econômico e em grande parte o controla. Suas próprias relações internas, como entre marido e mulher, pai e filho, são relações de produção. Os bens que as pessoas produzem assim como a alocação do trabalho são na maior parte das vezes estipulações domésticas. As decisões são tomadas em relação às necessidades domésticas.: a produção desenvolve-se para atender às exigências familiares.Apresso-me a acrescentar que os grupos domésticos não são autosuficientes, embora geralmente produzam a maior parte do que consomem. A produção doméstica não é descrita exatamente como produção para uso; isto é, para consumo direto. As famílias também podem produzir para troca, assim conseguindo indiretamente o que precisam. Ainda assim é “o que eles precisam” que governa a produção, e não o lucro que possam ter. O interesse na troca permanece como um interesse de consumo, e não como um interesse capitalista. Talvez a melhor definição seja “produção para aprovisionamento”.Como salienta Woortman (1981), referindo-se ao campesinato em geral, esse sistema estruturado com base na autonomia familiar fundamenta uma ética camponesa que, assentada no trabalho como elemento de legitimação da posse da terra e nas relações familiares como o contexto que possibilita a prática desse trabalho, constrói um mundo de relações horizontais e marcado pela lógica da reciprocidade entre as unidades familiares que o compõem. Nessa situação, aponta Stucchi (2000: 124): “Produção de bens materiais e produção de significados sociais se entrelaçam, interdependentes e mutuamente determinantes,

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permitindo a exploração dos recursos naturais e a concomitante produção de vida social de forma relativamente autônoma frente à economia e às relações sociais características do Estado-Nação brasileiros”... A expressão de ambas formas de produção – produção material e produção de significados culturais – sobre uma porção de espaço geográfico constitui o território tradicional, cuja característica de tradicionalidade, em sua face social, é expressa pelo conjunto distintivo de relações sociais entabuladas por seus membros, assentadas sobre os pilares da ética referida acima.”Esse sistema, gestado entre os quilombolas do Vale do Ribeira no contexto do processo de colonização portuguesa e das frentes de expansão regionais, foi pressionado em diversos momentos por “picos” isolados ou combinados de exploração mineral, da introdução da monocultura do arroz, ou da banana, ou do chá, da extração do palmito juçara, etc. Os agentes dessas atividades sempre tenderam a fazer da agricultura monocultora ou do extrativismo um exclusivismo econômico, organizando a produção com fins lucrativos, tendendo a quebrar as regras de alternabilidade e complementariedade entre o extrativismo e a agricultura. Entretanto, as populações locais de quilombolas sempre conseguiram manter essa tendência contrabalançada pela continuidade da produção para a subsistência e para a reprodução das relações de reciprocidade e de ajuda mútua. Estas, articulam as famílias entre si e se expressam também nas festas religiosas e profanas que mantêm viva a dinâmica entre as várias famílias e até entre as comunidades do campo negro do Vale do Ribeira. Nesse sistema no qual a família é a unidade básica da produção e consumo, só se usa força de trabalho adicional para tarefas de maior vulto, como derrubadas, construção de casas, colheitas, etc. Para estas ocasiões é comum o mutirão ou ainda a troca de dias entre vizinhos e parentes. “Baseada na mão de obra familiar, a economia agrícola e extrativa das comunidades negras do Vale do Ribeira assenta-se sobre a possibilidade de assegurar os produtos básicos para o consumo familiar, ao tempo em que a atividade extrativa – basicamente de palmito, realizada clandestinamente na maior parte da região, e de produtos como o sapé e taquara, utilizados para a cobertura das casas e fabricação de alguns utensílios –além do trabalho assalariado, complementam a renda familiar, provendo as unidades familiares com os recursos necessários à aquisição de bens e utensílios diversos, não produzidos localmente”. (Stucchi, 2000: 127)Conforme o depoimento dos moradores, antigamente as terras eram abundantes e as roças eram feitas geralmente nas várzeas. As famílias ocupavam cada qual o seu sítio, e através das trilhas estabelecia-se a ligação entre os sítios e os bairros. Cada residência abrigava um núcleo familiar ou dois, quando o genro permanecia por um tempo na casa do sogro, mas geralmente o matrimônio inaugurava uma nova casa que podia ser no mesmo sítio ou, mais frequentemente no da família do marido. Lembram-se de que haviam clareiras nas quais se realizavam festas juntando as pessoas de diversas comunidades que “dançavam catira, fandango, monada, cana verde e cobrinha. Faziam aquele tamborim de couro de gato, couro de raposa, de couro de

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tamanduá, quande eles matavam eles aproveitavam o couro, curtia e fazia os tamborins. Faziam pandeiro, aqueles zabumba e junto com o violão e a rabeca”.10

Não havia limites rigidamente definidos entre os sítios familiares, ainda que todos soubessem aproximadamente o âmbito de sua posse, definido na verdade pelo uso continuado de terras para plantio e pela exploração de recursos naturais por determinada família. Havia ainda territórios de uso comum, formados por grandes trechos de floresta nos quais as pessoas transitavam, praticavam a caça e a coleta de frutos silvestres, palhas, cipós, remédios, fibras, madeira, etc.As roças eram feitas perto das casas e também na capuava. Eram mudadas de lugar depois de alguns poucos anos, na medida da perda de fertilidade do solo. As aberturas pequenas (de meio a 3 hectares em média) e as grandes extensões de terra disponíveis propiciavam um longo tempo de recuperação antes de nova utilização, permitindo a reconstituição natural da floresta.Plantavam milho fofo, mandioca de vários tipos (para comer ou fazer farinha), cará, inhame, batata doce, taioba, abóbora, cana de açúcar, arroz, feijão, bananas e outros cultivares. Criavam galinhas, porcos e patos.As hortas tinham papel importante nesse economia de pequeno produtor. Havia as hortas especializadas em ervas e plantas medicinais, como erva cidreira e outras; e as de hortaliças, como cebola, alfavaca, cheiro-verde, cebolinha, alface, pimentão, couve, etc. Plantava-se também nos quintais, ao redor das casas várias espécies vegetais como a taioba, o coentro, o gengibre. Nestes locais plantava-se também grande variedade de frutas como o mamão, mixirica, laranja, manga, limão, goiaba, jabuticaba, abacaxi, e muitas outras, além das sempre presentes bananas.A caça parece ter sido praticada regularmente, atenuando-se durante o período reprodutivo das espécies e, juntamente com a pesca, constituía a grande fonte de proteínas. A mata era fonte de recursos variados e abundantes, tais como o palmito, cipós, ervas medicinais, madeira, óleos, palhas, etc.Além disso, produziam de forma artesanal vários tipos de artefatos, como cestos, peneiras, e outros utensílios de uso cotidiano.

10 Depoimento de Moacir Lúcio da Rosa, transcrito em Mirales,1998:23.

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IV – AS TRANSFORMAÇÕES NO TERRITÓRIO E MODO DE VIDA

QUILOMBOLA: SITUAÇÃO ATUAL

Seu território foi sendo, a partir da década de 1950 e de modo mais acentuado na década de 1970, penetrado por outros agentes (não remanescentes de quilombos) e atividades, alterando em parte a geografia e o modo de vida local, provocando mudanças nos limites territoriais, no acesso à áreas de usos tradicionais, na qualidade do meio ambiente e nas formas de organização social.Mesmo assim, hoje em dia o sistema acima caracterizado se mantém em suas linhas gerais, mas com várias limitações derivadas dos processos de ordenamento territorial e ambiental estabelecidos nas últimas décadas, que impactaram esse sistema de manejo de diversas formas.Os primeiros impactos deram-se a partir da década de 1950, com a abertura da estrada que liga Eldorado a Iporanga e à Caverna do Diabo, coincidindo com o início da extração comercial do palmito na região.A esse respeito diz o Sr. Sebastião Furquim que “O palmito foi um azar. Começou a entrar tanta gente estranha, acabou com os bichos do mato. Invadiram tudo.” De fato, a abertura dessa estrada quebrou o isolamento relativo das comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira e forneceu a via de transporte que permitiu o comércio e sustentou a extração predatória do palmito na qual, em maior ou menor grau, os moradores locais foram sendo incorporados.De um lado houve um relativo abandono das roças familiares e os habitantes passaram num primeiro momento a vender o palmito in natura. A partir da proibição da extração do palmito em 1965, a atividade de beneficiamento foi sendo gradativamente interiorizada e o palmito passou a sair da floresta já pronto para ser transportado, rotulado e comercializado. Apesar da extração e beneficiamento serem realizados pelos moradores, a maior parte do lucro destina-se ao palmiteiro.11 Como já apontamos anteriormente, a criação de unidades de conservação na região nos anos que se seguiram e a imposição da legislação ambiental, limitando as atividades econômicas tradicionais das comunidades, criaram um tremendo incentivo às atividades de extração ilegal de palmito, muito mais difícil de ser detectada e punida que a abertura de uma roça em trecho de mata. Para a feitura das roças agora necessitam de uma licença de plantio e estão sujeitos à uma legislação ambiental restritiva, só podendo desmatar as capoeiras de até um ano e meio de formação. Dessa maneira, diminui a fertilidade das terras usadas para o plantio (não agüentam dois anos de plantio seguidos), aumenta exponencialmente a necessidade de limpeza do terreno (quanto mais nova a capoeira mais crescem as ervas daninhas) e contraria-se a lógica da agricultura itinerante que, ao movimentar-se por uma grande

11 De acordo com Stucchi (2000: 135) “... a caixa contendo 12 vidros médios era vendida pelos moradores, em fevereiro de 1997, por R$ 12,00, sendo revendida pelo palmiteiro aos supermercados e atacadistas da região e de São Paulo por cerca de R$ 40,00”.

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área, permitia ao mesmo tempo a preservação e renovação da cobertura florestal, plantando sempre em novos locais e em melhores condições.Outro tipo de impacto foi derivado, contraditoriamente, dos processos de regularização fundiária da região, principalmente a partir da década de 1970 quando, aliados às novas perspectivas econômicas trazidas pela abertura de estradas (BR –116 e as ligações com Eldorado, Iporanga, etc.), induziram uma maior ocupação da região e ampliaram as pressões sobre o território tradicional do campo negro do Vale do Ribeira. Essas pressões, no caso de Pedro Cubas de Cima, se fizeram sentir nos vários conflitos envolvendo os antigos moradores remanescentes da comunidade de quilombo e “novos proprietários” que, através de vários processos intentavam se apossar da terra. Os moradores contam vários casos de grileiros que os ameçaram para que saíssem da terra que ocupam há tanto tempo. Muitos venderam sob ameaça “por 400 telhas e 1.000 pés de banana”. Outros foram expulsos sem nada. Outros saíram pensando em voltar mais tarde. Boa parte conseguiu resistir e permanecer ao menos numa parte de sua terra. Alguns destes casos já foram mencionados neste relatório, ocorridos com as famílias de Antonio Benedito Jorge, Dona Maria Urbana Tié Furquim, João Tavares Rafael e vários outros.Esses conflitos provocaram uma mudança no território do quilombo, como dizem os moradores, abrigando ocupantes de fora da comunidade e, ao mesmo tempo, estimulando e mesmo forçando o afastamento de vários membros da comunidade em busca de melhores condições de vida. Pode-se notar, observando-se comparativamente o mapa histórico e o mapa atual, que as mudanças ocorreram quase todas entre as décadas de 1950 e 1970, período em que saíram várias pessoas da comunidade. Por outro lado, a organização dos grupos negros da região em torno das ameaças de inundação provocadas pelos planos de aproveitamento hidrelétrico do Rio Ribeira do Iguape trouxeram nova visibilidade a estas comunidades. Essa nova visibilidade e as possibilidades de regularização das terras de quilombo, abertas pela Constituição Federal de 1988, fizeram renascer a esperança de uma garantia de seus direitos e da consecução de melhores condições de vida no território da comunidade, reforçando a resistência dos moradores aos que consideravam invasores do território e induzindo um movimento de retorno daqueles que haviam saído. Dessa forma, em Pedro Cubas de Cima vários moradores voltaram, refazendo famílias momentaneamente dispersas, num movimento que ainda não se completou totalmente. Vários moradores esperam a volta de irmãos e outros parentes que haviam saído de casa e que preparam agora seu retorno. Em geral as famílias tem uma roça perto da casa e outra ou outras na capuava, mais para o interior. Por um lado isso parece ser uma estratégia para se evitar a fiscalização, uma vez que o acesso é mais difícil. Por outro lado, é parte do processo de manutenção ou retomada da posse de suas terras, que passaram a ser ameaçadas principalmente a partir da década de 1970. Nas roças atuais observadas12, realizadas de modo tradicional, as aberturas eram de meio a dois hectares onde se plantava, de modo consorciado, a macaxeira (mandioca 12 Foram visitadas várias roças durante o levantamento de campo, para aferir as espécies plantadas, observar a divisão do trabalho e conversar com os que lá trabalhavam. Vimos, em especial, as roças da família Dias, do Sr. Gasparino, a roça comunitária de Pedro Cubas, uma das roças de Maria Urbana Tié e de alguns outros moradores.

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mansa), a mandioca (das variedades mata fome, amarela, roxa, branca, de fritura), feijão, milho (semente própria, tradicional), abóbora, pepino, batata (mais perto da beira do rio), batata roxa, cará, cará de espinho, inhame, mangarito, taioba, cana de açúcar. Em algumas famílias observa-se que há ainda roças separadas nas quais planta-se arroz e banana da terra.Em geral as derrubadas em capoeira fina são feitas em novembro/dezembro e as realizadas em local de mata, nas capuavas mais distantes, em agosto/setembro/outubro.As hortas perto das casas continuam existindo e constituem importante recurso na economia da comunidade. São elas que fornecem as hortaliças e legumes, os temperos, os chás e ervas medicinais mais usadas. Assim como ao redor de todas as casas encontram-se grande variedade de frutas e outros cultivares de uso regular, como os já mencionados anteriormente.A caça já quase não é praticada, pela diminuição da fauna local e por ter sido criminalizada pela legislação ambiental. Mesmo assim, parece que é ainda eventualmente realizada, respeitando-se sempre a época de reprodução de cada tipo de animal. Um dos entrevistados afirmou que “essa época a gente não mexe com isso, porque os bichos estão criando, tá tudo com filhote”.A pesca é praticada no rio Pedro Cubas, com vara, linha e anzol e também com o covo, armadilha feita de taquara com amarração de cipó, onde os peixes que penetram não conseguem mais sair. As espécies mais pescadas são o lambari, cascudo, cará, nhundiá, traíra, bagre e aniá. Em todas as casas criam-se galinhas soltas no quintal, ao redor do galinheiro. Criam-se porcos também, mas estes sempre em chiqueiros. Outros animais também são criados, como patos, perus, até alguns poucos eqüinos e algumas cabeças de gado.Quase todas as famílias tem uma casa de farinha, munida de um ralador para fazer a massa de mandioca, de um espremedor ou burro para espremer a massa e de um forno à lenha, onde a massa, ralada e espremida, é torrada produzindo-se a farinha. A família que tem casa de farinha coloca-a à disposição daquelas que não a tem. Nesse caso, participam do fabrico da farinha o dono da roça, o dono da casa de farinha, e um ajudante, sendo que os dois últimos recebem uma parte da farinha produzida como retribuição.Exploram vários recursos da floresta através da coleta. Usam a taquara de lixa para fazer cestos e peneiras. A taquara de lixa só nasce, segundo os moradores, em áreas de floresta antiga, onde nunca se queimou. Os cestos feitos de taquara de lixa são depois revestidos de argila e usados como recipientes para guardar milho, feijão, ou outras sementes. Todos os entrevistados declaram usar “remédios caseiros” quando adoentados e, para isso, também coletam na mata várias espécies vegetais de uso medicinal como “a saranduvinha, o mentrasco, a guavirova, algodão, erva de bicho... cozinhamos tudo edamos banho. Outros a gente guarda no fogo, esfrega na mão, coloca na bacia, aquela água fervendo fumo e dá banho. O abuto é pra banho e prá beber. Cozinha ele pra tomar banho e queima no fogo. Tem no terreiro. Só o abuto que tem mais longe, porque é de cipó”13

13 Entrevista com Maria das Dores Cravo, em Pedro Cubas, 1996. Mirales, 1998: 33.

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Coletam também o cipó imbé, usado para fazer varal ou rede. Usam a palha de coqueiro jutaí, indaiá e açaí para coberturas, assim como o sapé. Coletam sementes de palmeira juçara para fazer mudas. Usam vários tipos de madeira, como, por exemplo, a bancatirana utilizada para mourões de cerca, e outras espécies usadas como lenha, para fazer barrote, para tirar embira, etc.As fontes de renda monetária provêm de eventuais vendas de artesanato, de pequena e esporádica comercialização de excedentes agrícolas, da aposentadoria dos mais velhos e do assalariamento eventual.Em geral o trabalho assalariado é mais realizado por aqueles que perderam a terra e, muitas vezes nela ficam como caseiros ou empregados. Os outros membros da comunidade trabalham fora de modo mais esporádico, fazendo empreitas (contratação de serviços pagos pelo produto do trabalho em atividade específica) nas fazendas da região ou como diaristas, quando recebem por dia de trabalho.Ocorre também a saída de moças e rapazes em busca de trabalho e da continuidade de seus estudos. Em Pedro Cubas de Cima não há escola, apenas na Barra do Batatal (de 1a. a 8a. série), onde estudam as crianças, transportadas por ônibus da Prefeitura de Eldorado. Por outro lado, parece ser comum também a volta de muitas dessas pessoas depois de anos de vida fora da comunidade, com a qual mantêm seus laços de filiação ao longo do tempo.

IV – 1. Alguns problemas atuais

Afora as questões já levantadas, os moradores de Pedro Cubas de Cima tem vivido um conjunto de problemas decorrentes, principalmente, da presença e atividades dos que eles denominam moradores “de fora do quilombo” que, nas últimas décadas, passaram a desenvolver atividades no interior do território quilombola. - Expansão das áreas de pasto

Uma das reclamações constantes é a extensão crescente dos pastos, embora a criação de gado comece a representar para alguns uma perspectiva desejável. Porém, como diz o Sr. Sebastião Furquim “palmito foi um azar, acabou com os trechos de mato, entrou muita gente estranha. Boi também não vale nada, estraga mato, estraga tudo.”Embora muitas das famílias tenham algumas poucas reses, sua criação nunca foi extensiva nem significativa na economia tradicional, apesar de bastante funcional. Em geral, as áreas desmatadas para a agricultura, depois de alguns anos de plantio acabavam perdendo a fertilidade e, nessa condição, nelas nascia o capim sereno, praga que impede o crescimento da capoeira num terreno desmatado. Os terrenos em que nascia esse capim eram usados como pasto para as poucas reses existentes, impedindo sua proliferação e permitindo a regeneração da mata. Como se podia sempre abrir novas áreas agrícolas, a criação de gado em escala diminuta se articulava produtivamente (além de fornecer carne e leite para consumo) com a agricultura e extrativismo. Na atual situação de limitação ao sistema de manejo tradicional imposta pela legislação e fiscalização ambiental e pela escassez de novas terras, o capim sereno tende a

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proliferar nas áreas desmatadas transformando-as em áreas de pasto, as quais dificilmente permitem a regeneração da capoeira. Os “de fora” são sempre os maiores criadores de gado, ampliando as áreas desmatadas que, por força do processo descrito acima, tornam-se permanentes favorecendo a gradativa diminuição da já restrita área agriculturável.- Agricultura monocultora e mecanizada

Contrastando com o sistema de manejo tradicional ainda em exercício, outras iniciativas tem sido tentadas. As dificuldades de plantio e produção criadas pelas limitações impostas pela legislação ambiental tem, contraditoriamente, estimulado alguns quilombolas, sob influência de ocupantes não quilombolas e de políticos de Eldorado (Prefeito e vereador) a investir neste ano de 2002 numa experiência de plantio coletivo, de monocultura de feijão e de milho com finalidades comerciais, em áreas de terras devolutas no interior das terras da comunidade, com a utilização de trator e fertilizantes. Não se tem elementos ainda para avaliar os resultados e implicações de tal atividade. Entretanto, esse projeto da Prefeitura de Eldorado, realizado fora da lógica do sistema de manejo típico da comunidade de Pedro Cubas de Cima, tem sido bastante criticado por muitos dos habitantes que, em sua maioria, não quiseram participar. Em primeiro lugar, consideram que isso os tem feito abandonar em parte as roças familiares consorciadas e, portanto, criando dependência monetária maior do que é produzido lá fora. Em segundo lugar, consideram que esse tipo de plantio estraga a terra, pois desmata áreas muito grandes que só muito mais lentamente se regeneram. E, argumentam, o uso de agrotóxicos poderá também poluir as águas do rio, coisa que parece já vir acontecendo. Finalmente, argumentam que essa atividade é dirigida por pessoas de fora da comunidade que tiram proveito do trabalho e da terra dos membros da comunidade.Consideram, portanto, que o projeto da Prefeitura foi feito à revelia dos quilombolas. Dizem que há não-quilombolas que fazem parte do projeto mas não trabalham: contratam quilombolas para trabalhar no lugar deles. “Até parece escravidão, de novo. Seis meses de trabalho e só recebeu 80 reais”. Além disso, o projeto é feito em terras de invasor da comunidade, o qual recebe 10% do produzido como arrendamento.- Poluição e assoreamento do rio Pedro Cubas

Na época do levantamento de campo, em novembro e dezembro de 2002, os moradores reclamavam da poluição das águas do rio Pedro Cubas, causada pelas atividades de plantio e terraplanagem que vinham sendo feitas pela Fazenda Nossa Senhora de Fátima. Essa fazenda desenvolve plantio de arroz na várzea do rio Pedro Cubas e para isso alterou um pouco o curso do rio, desviando-o para irrigar o arroz através de canais abertos com trator. Além disso derrubou trechos de mata ciliar e aterrou margens, liberando muita terra ao longo da corrente do rio. Denunciam também que o uso de fertilizantes e agrotóxicos tem diminuído a quantidade de peixes no rio e alterado o sabor e a cor da água que é usada pelos moradores. Segundo eles, a água apresenta-se em certos dias com aspecto esbranquiçado, com odor e aparência ruins, parecendo coincidir com o uso de adubação e de defensivos agrícolas. A derrubada da mata ciliar tem, além disso, provocado o assoreamento do rio.

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Os moradores já denunciaram o caso mais de uma vez aos órgãos ambientais mas, de acordo com eles, nenhuma providência foi tomada. Esta situação é considerada a mais grave, pois, em geral, a maioria das famílias consome a água retirada diretamente do rio. Raras são as que se servem de água de poço ou de alguma nascente. Problemas com invasores

A tensão entre os membros da comunidade remanescente de quilombo Pedro Cubas de Cima e os “de fora” é permanente e se traduze em pequenas disputas sempre renovadas, que podem ser exemplificadas através dos casos referidos acima e muitos outros como, por exemplo:- o problema da cerca – limites – entre Sr. Antonio Gomes e Aquilino Dias. Antonio Gomes é posseiro, casou com uma quilombola mas já faz alguns anos que se separou. Tem filhos com ela, mas os moradores dizem que a terra que de direito é da ex-mulher e dos filhos não é aquela que ele ocupa. Esta seria da família Dias. A área ocupada por Antonio Gomes era do avô de Aquilino, Sr. Mariano Dias.- o gado solto depois da colheita no local da roça de feijão mecanizada, esburacou muito o chão do caminho que leva aos núcleos familiares dos Pereira e de Dias Andrade, para grande irritação deste moradores que, quando chove, devem caminhar com atenção redobrada para não tropeçarem em buracos ocultos e se machucarem.

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V – Considerações finaisComo procuramos mostrar nesse relatório o processo de formação de Pedro Cubas de Cima remonta ao período colonial, associado ao processo de decadência da mineração no Vale do Ribeira no século XVIII, consolidando-se durante o século XIX com a decadência das lavouras comerciais de arroz. Articula-se com a formação do conjunto de comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira14, compondo com elas um campo sociocultural negro na região. Esse campo social negro se formou pelo relacionamento antigo, constatado em genealogias, que envolveu negros fugidos, negros livres, escravos e mesmo não-negros, como os comerciantes de armazéns da beira do rio Ribeira do Iguape que comercializavam parte da produção das comunidades negras, estabelecendo sua articulação com a sociedade regional.Como explica Gomes (1996: 278)15: “Podemos ver bem mais que uma simples relação econômica em todas essas conexões entre quilombolas, escravos nas plantações, taberneiros e remadores, e que também podiam envolver caixeiros-viajantes, mascates, lavradores, agregados, escravos urbanos, arrendatários, fazendeiros e até mesmo autoridades locais (muitas das quais donas de fazendas). Esses contatos acabaram por constituir a base de uma teia maior de interesses e relações sociais diversas, da qual os quilombolas souberam tirar proveito fundamental para aumentar a manutenção de sua autonomia. Aí foi gestado um genuíno campo negro. Essa rede complexa de relações sociais adquiriu lógica própria, na qual se entrecruzavam interesses, solidariedades, tensões e conflitos.O que denominamos campo negro é essa complexa rede social. Uma rede que podia envolver em determinadas regiões escravistas brasileiras inúmeros movimentos sociais e práticas sócio-econômicas em torno de interesses diversos. O campo negro, construído lentamente, acabou por se tornar palco de luta e solidariedade entre os diversos personagens que vivenciavam o mundo da escravidão.”No caso específico da comunidade de Pedro Cubas de Cima, como vimos, sua formação tem sua origem na ocupação da bacia e das cabeceiras do rio Pedro Cubas no século XVIII, por escravos fugidos da fazenda Caiacanga e por libertos, como os Marinho, que ali se fixam inicialmente. Outras famílias seguiram-se a esta (os Vieira, Furquim, Dias, Ferreira, etc.) e o levantamento destes troncos familiares presentes nesta como em outras das comunidades desse campo negro, mostra como a formação de todas elas se relaciona e obedece ao movimento de ocupação dos espaços vazios da região pela população negra. Ao mesmo tempo, os levantamentos genealógicos e a memória dos moradores permite estabelecer a ligação entre os moradores atuais e as antigas famílias formadoras do quilombo.É interessante mostrar que, apesar de cada uma destas comunidades guardarem uma identidade específica frente às outras e principalmente frente aos “de fora” (os quais por sua vez também reconhecem sua alteridade) elas compartilham uma história comum e laços de parentesco, sociais e culturais. Essa história e identidades compartilhadas se

14 São elas: Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Sapatu, Nhunguara, André Lopes, Maria Rosa e Pilões.15 Também citado em Stucchi, 2000: 175.

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expressam nas estórias do “negro d’água”, versão mítica, paralela à versão histórica, da formação destas comunidades.Em Pedro Cubas de Cima, todos os moradores concordam na sua “fundação” a partir da vinda dos Marinho e quase todos dizem dele descender. Entretanto, consideram que o primeiro Marinho era um negro d’água. Estes seres vivem num mundo localizado no fundo dos rios. Os rios seriam como que canais de comunicação entre os dois mundos e é comum que no fim da tarde pessoas do mundo d’água venham se refrescar na terra. Nessas ocasiões ainda podem ser vistos. Como retrata Mirales (1998: 72), sintetizando um certo padrão nas muitas versões recolhidas em sua pesquisa na região: “Às vezes a gente da terra captura gente da água, com redes, tarrafas, laços e cordas. Também é comum o negro d’água levar as mulheres da terra para seu mundo. Há casos de homens e de uma mulher da água que foram capturados pela gente da terra. Quando isso ocorre, às vezes juntam-se à comunidade: casam, constituem família e se tornam, com o passar das gerações, parentes de todos.”Pudemos constatar que em Pedro Cubas de Cima, ao lado da versão registrada na documentação histórica, pelo menos alguns dos moradores também compartilham da crença nessa origem da família Marinho. Segundo eles há notícias de outros negros d’água pegos antigamente em Ivaporunduva, em Nhunguara (também da família Marinho) e em outros bairros negros. Mirales (1998), indica outras referências ao mesmo mito no Dossiê Comunidades Negras do Vale do Ribeira,produzido pela Sudelpa em1986.De acordo com as associações das várias comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira, a continuidade de seus territórios sempre foi ameaçada por freqüentes invasões e expropriações por parte de fazendeiros, grileiros e do poder público. Como o território é condição de sua existência, de sobrevivência não só física mas também sociocultural, esses negros do Vale do Ribeira passaram, no início dos anos 90 a se organizar para pleitear seus direitos, que haviam sido recém instituídos na Constituição de 1988. Nesse processo conseguiram o reconhecimento da maior parte do território negro do Vale do Ribeira, fazendo reconhecer e regularizando a posse territorial das comunidades de Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Sapatu, Nhunguara, André Lopes, Maria Rosa e Pilões. A comunidade de Pedro Cubas de Cima demorou mais para conseguir o grau de organização requerido para reivindicar seus direitos. Muitas das famílias moradoras, como vimos, fragmentaram-se por força das pressões que vivenciaram a partir da década de 1950 e principalmente na década de 1970, quando vários moradores saíram da área para tentar vida melhor fora da comunidade. Ao mesmo tempo, a intrusão de outros ocupantes “de fora” também passou a contribuir para o enfraquecimento dos laços comunitários dos que lá ficaram, além de impedir cada vez mais o acesso das famílias quilombolas ao território tradicional de uso. Entretanto, a crescente auto organização das outras comunidades negras do Vale do Ribeira e o sucesso na luta pelo reconhecimento de suas terras, tiveram o mérito de fazer renascer a esperança da comunidade Pedro Cubas de Cima.

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Aquelas comunidades defenderam e conseguiram o reconhecimento do regime de usufruto comum do território. Sua origem e história comuns, suas formas de coesão próprias forjaram a identidade política de remanescentes de quilombos e fundamentaram a criação de associações que recebem o título de propriedade coletiva da terra, cuja distribuição interna e planos de uso são geridos pelos associados.Os moradores de Pedro Cubas de Cima que conseguiram manter-se na terra, acreditando na possibilidade do reconhecimento de seus direitos territoriais e culturais, entraram em contato com os irmãos, filhos e parentes próximos que tentavam viver, enfrentando grandes dificuldades, fora da área. Como resultado, em meados dos anos 1990 os moradores que resistiram às pressões passaram a receber de volta os parentes que haviam saído, num processo que se avoluma, ensejando a reconstituição de famílias antes fragmentadas e possibilitando a criação de uma associação da comunidade.Mais a frente apresentamos a lista dos moradores atuais, que encaramos ainda como uma lista mínima provisória, já que, de acordo com todas as famílias, todos esperam a volta em breve de parentes próximos que retornam para viver nas terras do quilombo. Com base na documentação histórica e antropológica analisada, nos levantamentos de campo realizados e na memória dos moradores, podemos afirmar que a comunidade Pedro Cubas de Cima é, consoante a definição adotada pela Associação Brasileira de Antropologia, “uma comunidade rural negra que agrupa descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais tem forte vínculocom o passado”, constituindo-se portanto, numa comunidade remanescente de quilombo.

Concluímos:

· De acordo com as definições que embasam os critérios oficiais de reconhecimento adotados pelo Estado de São Paulo, os membros da comunidade de Pedro Cubas de Cima são considerados remanescentes de comunidade de quilombos, e devem, portanto, gozar dos direitos que tal identificação lhes assegura.

· É urgente que se realize a regularização fundiária do território quilombola aqui demonstrado.

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VI - MORADORES ATUAIS

Optamos por apresentar a lista de moradores organizada em núcleos familiares, e não em famílias nucleares, procurando retratar de forma mais fiel o padrão de assentamento vigente na comunidade.

Núcleo Familiar Lúcio da Rosa – 1 casa

Moacir Lúcio da RosaJaci Leal RosaRafael Leal RosaGabriel Leal Rosa

Núcleo Famíliar Vieira/Ferreira – 5 casas

Rubens José dos Santos FerreiraElizângela Macêncio VieiraMoacir FerreiraMiro VieiraJuliana Dias dos SantosValdecir dos Santos FerreiraJosé Miro MacêncioMaria Helena Ferreira

Núcleo Familiar Braz Costa - 3 casas

Joaquim BrazMaria José da CostaJosé Ribeiro da CostaRosinei Costa

Núcleo Familiar Pereira – 1 casa

Pedro PereiraJuride Costa PereiraGenivaldo PereiraJoelma Costa PereiraJean Pereira de MoraisGisele Pereira de MoraisJurema Costa PereiraAntonio PereiraGenal Pereira

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Núcleo Familiar Dias de Andrade – 2 casas

Gasparino Dias de AndradeRosária Dias de Andrade Luiz Carlos de AndradeAntonio Marciano de AndradeJoaquim Costa de AndradeRosemeire Dias de AndradeRoseli Dias de AndradeGilmar Gomes CostaAntonio Marciano de Andrade Maria Aparecida LourençoJussara Sueli DiasJadson Dias Andrade.

Núcleo Familiar Tié Furquim - 2 casas

Maria Urbana Tié FurquimAgenor de PontesEdivina Maria TiéMoisés Bráz da Silva.Laurentina Maria TiéLeonardo Ferreira Leite

Núcleo Familiar Dias - 5 casas

Aquilino DiasRosemeire Dias AndradeNoêmia Dias de AndradeMalvina Ferreira de Morais, 63Natália Dias dos SantosJuraci Ferreira Dias Rose Siqueira da LuzWilliam Dias SiqueiraTamiris Dias SiqueiraBeatriz Dias SiqueiraLuis Dias de AndradeAdriana Maceni de OliveiraDavina Ferreira dos SantosArnaldo Manoel dos SantosLaodicéia Ferreira dos SantosOzéias Ferreira dos Santos

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Joezel Ferreira dos SantosJaciel Ferreira dos SantosJonatas Ferreira dos SantosLauriete Ferreira dos SantosAdilson Ferreira dos SantosJoabe Ferreira dos SantosSantino Dias

Núcleo Familiar Furquim – 3 casas

Sebastião FurquimMarcos Furquim e esposaJosé Roberto FurquimMelândia do Carmo dos SantosOrlando Furquim

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RINALDO SERGIO VIEIRA ARRUDA ANTROPÓLOGO

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