uma abordagem antropolÓgica sobre o documentÁrio … · sobretudo, o documentário demonstra como...

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X 1 “O CORPO É UMA FANTASIA QUE NOS PERMITE FAZER UMA PERFORMANCE”: UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA SOBRE O DOCUMENTÁRIO ‘SHAPE OF SHAPELESSRonan A. Siqueira 1 Resumo: Devido sua relevância explicativa, teor descritivo não ficcional, apresento o documentário de média duração Shape of Shapeless(2010), do cineasta indiano radicado nos Estados Unidos, Jayan K. Cherian, através de uma abordagem antropológica. Este documentário revela estratégias de organização de um mundo registrado, como nos filmes etnográficos, levando ao espectador a realidade do “outro” mais profundamente. Em outras palavras, “A Forma do Amorfo” (tradução minha do título original), enuncia as representações de gênero e sexo à distinções físicas e corporeidade, que são reformuladas sobre os aspectos culturais, em formas de discursos transcritos no corpo e comportamento. No contexto, o participante Jon Cory é um artesão/restaurador bem sucedido na cidade de Nova Iorque, onde à noite, ele se apresenta como uma dançarina burlesca, sob o nome de Rose Wood. Sobretudo, o documentário demonstra como são encarados os questionamentos a respeito do corpo humano, performance artística, representação, gênero e religião. A ruptura/inclusão do ator social nos grupos identitátios é apresentada frente suas transformações estéticas do corpo, dentro de uma visão que extrapola a normatividade atrelada a aparência física ao sexo biológico. Mais do que a necessidade extrair conclusões que o filme poderia chegar, ou até mesmo as “verdades” a partir dessas conclusões, é apresentá-lo como ilustração, como o corpo é utilizado como uma fantasia que nos permite fazer uma pequena performance. Palvras- chaves: Corpo - Representação - Performance - Gênero O político e filósofo Chiu Kung, mais conhecido como Confúcio, já no século VI a.C. sugeriu que “uma imagem vale mais que mil palavras”. Mesmo se referindo ao uso de ideogramas às formas de comunicação simbólica, ele atribuía aos conceitos teóricos e complexos às explicações obtidas pelo uso da produção visual, que expressavam muito mais do que as palavras (STRATHERN, 2000). A expressão se tornou popular até os dias de hoje, sendo relacionada à facilidade de compreender situações e ideias pelo poder da comunicação através das imagens. Ainda que a expressão seja amplamente evocada e explorada pela publicidade e 1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, na Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGCSO - UFJF). 36036-900, Juiz de Fora - MG, Brasil. Bolsista da CAPES, Ministério da Educação do Brasil, Brasília DF 70040-020. Trabalho desenvolvido para a disciplina “Antropologia Visual”, ministrada pelo Professor Carlos Reyna Email: [email protected]

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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“O CORPO É UMA FANTASIA QUE NOS PERMITE FAZER UMA PERFORMANCE”:

UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA SOBRE O DOCUMENTÁRIO ‘SHAPE OF

SHAPELESS’

Ronan A. Siqueira1

Resumo: Devido sua relevância explicativa, teor descritivo não ficcional, apresento o

documentário de média duração ‘Shape of Shapeless’ (2010), do cineasta indiano radicado nos

Estados Unidos, Jayan K. Cherian, através de uma abordagem antropológica. Este documentário

revela estratégias de organização de um mundo registrado, como nos filmes etnográficos, levando

ao espectador a realidade do “outro” mais profundamente. Em outras palavras, “A Forma do

Amorfo” (tradução minha do título original), enuncia as representações de gênero e sexo à

distinções físicas e corporeidade, que são reformuladas sobre os aspectos culturais, em formas de

discursos transcritos no corpo e comportamento. No contexto, o participante Jon Cory é um

artesão/restaurador bem sucedido na cidade de Nova Iorque, onde à noite, ele se apresenta como

uma dançarina burlesca, sob o nome de Rose Wood. Sobretudo, o documentário demonstra como

são encarados os questionamentos a respeito do corpo humano, performance artística,

representação, gênero e religião. A ruptura/inclusão do ator social nos grupos identitátios é

apresentada frente suas transformações estéticas do corpo, dentro de uma visão que extrapola a

normatividade atrelada a aparência física ao sexo biológico. Mais do que a necessidade extrair

conclusões que o filme poderia chegar, ou até mesmo as “verdades” a partir dessas conclusões, é

apresentá-lo como ilustração, como “o corpo é utilizado como uma fantasia que nos permite fazer

uma pequena performance”.

Palvras- chaves: Corpo - Representação - Performance - Gênero

O político e filósofo Chiu Kung, mais conhecido como Confúcio, já no século VI a.C.

sugeriu que “uma imagem vale mais que mil palavras”. Mesmo se referindo ao uso de

ideogramas às formas de comunicação simbólica, ele atribuía aos conceitos teóricos e complexos

às explicações obtidas pelo uso da produção visual, que expressavam muito mais do que as

palavras (STRATHERN, 2000). A expressão se tornou popular até os dias de hoje, sendo

relacionada à facilidade de compreender situações e ideias pelo poder da comunicação através

das imagens. Ainda que a expressão seja amplamente evocada e explorada pela publicidade e

1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, na Universidade Federal de Juiz de Fora

(PPGCSO - UFJF). 36036-900, Juiz de Fora - MG, Brasil. Bolsista da CAPES, Ministério da Educação do Brasil,

Brasília – DF 70040-020.

Trabalho desenvolvido para a disciplina “Antropologia Visual”, ministrada pelo Professor Carlos Reyna

Email: [email protected]

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propaganda, ela pode servir como ponto de partida para a explicação antropológica vinculada ao

uso de recursos visuais.

Segundo Marcius Freire (2006), devido ao desenvolvimento tecnológico de som e

imagem, os documentários têm, cada vez mais, se tornado comum. O autor afirma que “o filme

de não-ficção se perde e se encontra na sociedade do espetáculo.” Segundo ele, este estilo de

filme procura constantemente “estratégias de organização do mundo a ser registrado, no apelo de

outros suportes para levar ao espectador mais profundamente à realidade do outro” (2006: 63).

Documentário e representação de grupos identitários

“O que pode proporcionar o documentário em termos de entendimento sobre como as

pessoas se organizam em coletividades, como estabelecem sentido e valores, como conduzem e

compreendem as interações sociais em curso?” (NICHOLLS, 1981: 237). Segundo Jean Rouch

(1988), o filme do tipo documentário tem como fundamento principal a explicação de fatos e

compreensão do mundo que vivemos, sendo possível, desta maneira, apresentar sobre os mais

variados temas e assuntos. A partir dos parâmetros de filmagem desenvolvidos desde a criação da

fotografia e cinema, os registros e filmes etnográficos propõem revelar aspectos culturais

particulares, grupos identitários, sociedades e suas cosmologias, informando para o espectador

sobre situações, estilo de vida ou eventos históricos.

No caso do documentário em questão, ainda que o diretor ressalte apenas o estilo de vida

de uma única pessoa, portanto, uma biografia, a comunicação apresenta não somente o papel que

cabe ao protagonista - Jon Cory (JC) - e seus pontos de vista sobre sua “forma”/aparência fora do

padrão estético comum homem/mulher, mas, a relação de gênero entre indivíduos e sociedade.

A individualidade de seu tipo peculiar encarnado em sua corporalidade pode ser

compreendida como a representação de um grupo identitário notável no mundo, que vai além da

noção comumente adotada sobre a binaridade de gênero observáveis nos corpos humanos, objetos

e sujeitos de seu próprio fazer.

A pressuposição sobre a existência de grupos de pessoas coesos e estáveis como

representantes de uma determinada identidade é possível, basicamente, porque o

conceito tradicional de identidade tem uma relação estreita com: a) uma certa

visão representacionalista e essencialista das redes de relações sociais – as

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pessoas representariam, pois teriam incorporadas, em essência, suas classes, suas

raças, suas religiões etc.; b) o conceito de indivíduo como “um eu individido e

indivisível” (PINTO, 2002: 107-108).

Segundo Cherian, numa entrevista informal cedida por rede social, seu grande intuito em

Shape of Shapeless é de “explorar a jornada de Cory através dos seus vários gêneros e papéis

sociais, que ele afirma não se encaixar perfeitamente em nenhum deles.” Como registrado no

documentário, antes do momento em que ele faz um procedimento cirúrgico, no qual ele adquire

seus seios em seu corpo de homem, ele diz:

JC - Eu não me sinto homem. Eu não me sinto mulher. Eles [homem e mulher]

não tem uma identidade forte para com o meu corpo. Amanhã será meu último

dia no meu corpo de homem. Muitas pessoas dizem que eu tenho um problema

mental. Algumas pessoas sentem se muito fortes político e socialmente falando.

Uma injustiça estará sendo corrigida. Tudo que eu tenho a dizer é que eu passei

muitas noites em frente ao espelho, chorando, porque eu sentia que meu corpo

não me representa como eu me identifico” (transcrição de áudio e tradução livre

minha, grifo meu)

Apesar do conteúdo do documentário consistir em descrever o modo de vida de Jon Cory,

ressalto que ele também revela questões comuns de um grupo identitário. O filme anuncia que

Cory, como objeto de estudo – ou ‘participante’, como a teoria antropológica contemporânea

sugere - não é apenas um ato da análise de seu posicionamento diante dos fatos vividos, mas uma

representação para todos aqueles que se identificam com sua própria categorização. Ele é como

um tipo, uma encarnação particular refletida de um grupo.

JC - Nas ruas que separam os dois lugares onde eu trabalho - o ‘Slippery Room’

e o ‘In the Box’ -, em apenas uma quadra, eu não posso andar pelas ruas

sozinho. Eu preciso estar junto de alguém a todo momento, escutando, você

sabe.... “matem as bichas”, “morte para os homossexuais”, “queimem essas

bichas” … e isto na cidade de Nova Iorque, num dos lugares mais livres do

mundo.

- Existem pelos menos oitenta países no mundo onde os transexuais e os

homossexuais são punidos por sentenças de penas de morte. Ainda existe ódio,

ainda existe ignorância humana e eu estou ciente de que se meus amigos

ficarem sabendo que eu fui assassinado, eles ficarão muito tristes mas, ainda,

não tão surpresos, porque eles sabem que isto [minha escolha] é um risco para

mim. (transcrição de áudio e tradução livre minha, grifo meu)

Nos depoimentos de Cory transcritos acima, são enfatizados o medo da violência contra a

população LGBT nos EUA. Mas seu depoimento revela um problema muito comum que ocorre

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em todo o mundo: a realidade de que um indivíduo que assume publicamente sua orientação

sexual ainda é motivo de perseguição, discriminação, preconceito e ódio.

De acordo com a Jusbrasil, um canal de acesso à informação pública do país, “a cada três

minutos, um homossexual sofre algum tipo de violência no Brasil2”, em um levantamento de

Janeiro de 2015 até outubro de 2015, as denúncias de preconceito e violência contra gays,

lésbicas, travestis e transexuais ultrapassavam 6.500 episódios.

Corpo, gênero e performatividade

A exaustiva enunciação da ciência clássica positivista, que os corpos primeiramente

pertencem a biologia, mostram-se inadequadas quando estilos de vidas são observados, em

especial àqueles pautados pelo auto aperfeiçoamento físico e transformação estético do próprio

corpo. Deste modo, o significado do corpo tem se tornado um problema para a linguística e

análises cultural e social (HANCOCK; HUGHES; JAGGER; PATERSON; RUSSELL; TULLE-

WINTON; TYLER, 2000). A sociologia implícita no corpo tornou-se uma tarefa sistemática de

atenção para pesquisadores.

Muito além de um organismo meramente biológico, o corpo é o lugar onde a linguagem e

a cultura se fazem presentes, cuja significação atribuída é, portanto, arbitrária e relacional. A

antropologia o confere como uma produção cultural carregada de valores e passível de

investigação, como demarcador de fronteiras entre o indivíduo e o mundo. Ele não é somente o

primeiro objeto técnico do ser humano, mas seu primeiro meio de relacionamento com outros,

que se encontra inserido dentro de um contexto. O indivíduo em sua relação cultural junto à

sociedade, considero a corporeidade - o corpo como significação fundamental de existência

individual e coletiva, em sua relação com o mundo (LE BRETON, 2006) - como indicativo de

construção de sujeitos e identidades.

Como observado no curta, durante o dia Cory é um artesão bem sucedido em seu estúdio

de restauração na cidade de Nova Iorque e à noite, ele se apresenta em vários clubes ao redor da

2 Disponível em: <http://adaorochas.jusbrasil.com.br/noticias/152845159/a-cada-tres-minutos-um-gay-sofre-

violencia-no-brasil>. Acesso em: 05 ago. 2016

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cidade como uma dançarina burlesca, sob o nome de RoseWood, que também é o nome de uma

madeira muito macia, que ele provavelmente utiliza em seu trabalho como restaurador e que tem

a característica de ser mais facilmente entalhada. Muito além da representatividade artística que o

caracteriza, o filme apresenta toda a ruptura do ator social frente as questões estéticas de corpo

numa sociedade, que extrapolam as visões normativamente legitimadas, ligadas a aparência do e

ao sexo biológico, bem como seus anseios, temores e dificuldades.

A ideia do título denota a ideia de que existem concepções sobre a forma do corpo para

representações de gênero: uma forma. Em outras palavras, “um formato para o que não forma”

(tradução livre minha), enuncia as questões de representação de gênero e sexo que são

socialmente construídas, distinções físicas reformuladas sobre os aspectos culturais em formas de

discursos transcritos no corpo e comportamento.

Apesar de homens e mulheres participarem de posições diferentes na sociedade, na teoria

antropológica sobre questões de gênero, Margareth Mead em seu livro “Sexo e Temperamento”,

originalmente publicado em 1935, revelou como os papéis sexuais apresentam padrões distintos

em diferentes culturas, desconstruindo a maneira como nossa fixação sobre o universo feminino e

masculino são construções sociais. Numa pesquisa realizada em três sociedades na Nova Guiné,

entre as tribos Aparesh, Mundugumor e Tchambulli, a autora revelou como a interação individual

dentro de cada configuração cultural, a partir da socialização, cria padrões de formação de

personalidade do indivíduo. Ela explorou este aspecto humano numa perspectiva que atendeu as

questões de gênero e aos papéis sexuais dentro das culturas, diferentemente dos moldes norte-

americanos, em detrimento a moralização e normatização.

Nas tribos pesquisadas, ela constatou que os papéis sexuais masculino e feminino eram

opostos aos dos Estados Unidos (das sociedades Ocidentais como um todo) ou que ambos os

sexos compartilhavam de uma mesma configuração, sem distinção de papéis segundo seus sexos

biológicos. A autora deixa claro, portanto, que as concepções binárias entre homem/mulher

representam apenas um padrão.

Dos discursos de Jon Cory, podemos observar como sua ideia de gênero ultrapassa as

dimensões pré-estabelecidas socialmente, como ele expõe sua personalidade em relação ao

gênero e como ele assume uma postura de muito além da simples binaridade. Sua atenção parte

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do ponto que em seu corpo estão inscritos os discursos e que ele pode moldá-lo de maneira flúida

e bastante flexível.

Os discursos que habitam nos corpos, como Judith Butler (1993) desenvolvera,

acomodam-se no corpo e são carregados como parte viva pelo indivíduo, como seu próprio

sangue, sem o qual ninguém pode viver. “Uma forma performativa para constituir a materialidade

dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a

diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual” (BUTLER, 1993: 2).

Butler desconstruiu que a natureza regula as noções de gênero nas culturas, ou seja, das tensões

relativas a partir da dicotomia entre as duas esferas que são representantes do estado geral do

pensamento contemporâneo. Tal relação foi caracterizada por suas mais diversas diferenças e

oposições, assumindo hierarquias para resolvê-la como fatos universalmente dados ou realidades

construídas. A autora propôs que a distinção entre sexo e gênero são expressadas nos corpos

desde o início de suas existências sociais e que não existe uma outra forma de existência humana

que não seja social, o que significa que não existe um “corpo natural” que pré-exista as inscrições

culturais.

Isto parece avançar em direção a conclusão que gênero não é uma coisa que uma

pessoa é mas alguma coisa que uma pessoa faz, um ato, ou mais precisamente,

uma sequência de fatos, um verbo ao invés de um substantivo, um “fazer” ao

invés de “ser”. (BUTLER 1990: 25, livre tradução minha).

No entanto, Butler não declara que gênero é uma performance, mas sim uma parte da

construção discursiva do corpo que não pode ser separada da linguagem que o classifica e o

constitui em alguma instância de grau performativo. Ela afirma que é muito mais adequado

pensar o gênero como uma performatividade do corpo, pelas experiências relacionais e pelo

caráter dramático que apresenta do que por sua identidade (BUTLER, 1990).

De acordo com Marilyn Strathern, ocorre uma impossibilidade de pensar o gênero apenas

por classificações duais, pois, como por ela observado entre os melanésios, a forma de

classificação é compreendida como uma sobreposição, dada por um caráter relacional do gênero.

Ela enfatiza como esta orientação modifica-se entre a unidade e composição, ou seja, na relação

entre indivíduo e sociedade, pois o estado único das identidades só são encontradas dentro das

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relações sociais constantes e não somente entre o masculino e o feminino. “Por isso, toda

condição "unitária" da pessoa tem que ser comunicada como urna condição "múltipla", porque é

isso o que a comunicação faz com ela. A natureza múltipla, divisível, das constituições das

pessoas revela-se em suas relações internas (STRATHERN, 2006: 461).

JC - Eu amo o ato de ‘pintar’ um gênero. Para mim é também um

personagem que você pode, você sabe... um personagem, um gênero ou

alguma coisa que a gente pode criar e recriar. Tipo um velho ditado (...)

Ele está escrito e pode ser apagado, pode ser reescrito. (transcrição de

áudio e tradução livre minha, grifo meu).

Vale a pena destacar que, na vida cotidiana participamos de experiências e redes de

relações bem particulares, determinadas pela escolha de estilos de vida. Minha atenção é

compreender as singularidades e significados culturais do corpo, que assumem um

relacionamento estreito na medida que confere sua individualização. Quando sua ênfase dá-se

pela sua apresentação, no que diz respeito ao seu potencial maleável, temos nos tornado

responsáveis pelos traços estéticos, pelo design de nossos próprios corpos (GIDDENS, 1991).

Nessa difusão, as possibilidades do indivíduo de auto transformação têm se estendido a

identidade sexual. A partir da modernidade, ela tem sido encarada muito mais que uma

necessidade, mas como uma escolha de um estilo de vida, dentre outras (GIDDENS, 1992).

Tratando o corpo e a sexualidade como projetos de identidade, como possibilidades que se

estendem para além da concepção fixa, dada pela fundação biológica, a expressão física corporal

envolve novos caminhos do ser no próprio corpo.

Performance artística

As drags queens são geralmente homens homossexuais que gostam de se caracterizar

como mulheres de forma mais exagerada, para fazer performances de dublagem de músicas ou

para diversão, para sair a noite em bares e boates que atendam o público gay. Cory não se

“monta” durante o dia (termo utilizado para a transformação de drag queens – “estar montada”

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significa estar rigorosamente transformada) mas durante a noite ele se apresenta como uma, em

bares locais do cenário artístico, cujas as atrações são performances burlescas.

Como já exposto, Cory não se reconhece em nenhum dos estereótipos de gênero correntes

do discurso dominante: nem homem e nem mulher. Ele é um artista performático em Nova

Iorque e Rose Wood é sua personagem, ou o nome pelo qual é conhecido na cena artística, pois

assume uma posição mais feminina. Tal ‘hiperfeminilização’ nos remete à “repetição estilizada

de atos” (BUTLER, 2003: 200), que produz uma efetivação do gênero hiperfeminino entre as

drag queens com o auxílio de assessórios como perucas, maquiagens e roupas extravagantes

utilizadas para a caracterização. Sua narrativa histórica revela uma potencialidade, de certa

forma, recorrente em seu discursos e até mesmo em suas encenações.

Para Robert Allen, a dimensão desse tipo de performance não se trata apenas de um

entretenimento popular mas, um complexo transformador do fenômeno cultural por ter um teor

mais avesso, muitas vezes repulsivo das representações do feminino e masculino. Para ele, o

traço mais característico das performances burlescas é o desafio de crítica sobre o natural e o

convencional, pela incongruência monstruosa e “antinatural” nas inversões ou paródias de uma

realidade profana. A ideia do burlesco é a de contestação ao estado conservador da classe

dominante e seus costumes sociais, por meio de performances artísticas aleatórias e grotescas,

improváveis e com combinações surpreendentes, capazes de multiplicar os gêneros de

entretenimento popular e artístico (ALLEN, 1991). O título de seu livro, “Horrible pretiness”,

resume a ideia do que transparece o essencial nas performances burlescas.

JC - Umas das coisas que eu faço [sobre as performances], uns dizem

que é absurdo, nojento. Eu não faço isto por fazer, eu as faço para

mostrar. Eu acho que eu as faço para mostras para as pessoas a

falsidade, o vazio que existe nessa vida. Eu as mostro um personagem

sobre elas mesmo e toda sua vida. (transcrição de áudio e tradução livre

minha, grifo meu)

- Meu corpo se tornou um veículo de expressão para mim e com ele a

paridade de usá-lo de maneiras irônicas, horas de forma violentas,

outras de forma agressiva para acordar as pessoas, para dar-lhes a

experiência o que elas são. (transcrição de áudio e tradução livre minha)

Na perspectiva antropológica de Victor Turner, sobre os rituais que marcam o limiar entre

duas instâncias, Allen explica que as performances burlescas oferecerem uma experiência

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“liminóide”, por ser um “fenômeno cultural que tende ser produzido por um grupo social para

outro, ao invés de ser uma experiência comum compartilhada do mesmo grupo” (ALLEN, 1991:

37, tradução livre minha). Essas experiências oferecidas, muito além de se destacarem pela crítica

sobre as normas e os papéis dos indivíduos na vida cotidiana, segundo Allen, não

necessariamente marcam um momento da metamorfose para o participante, mas apresentam um

ocasião: a importância cultural dessas performances, nas quais identidades ordinárias, papéis

sociais e sexuais, comportamento e outras marcar sociais que são levantadas mostra a estrutura

social e ordem cultural predominante.

A artista plástica e professora do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de

Juiz de Fora (IAD -UFJF), Priscilla de Paula explica sobre a questão do estranhamento e o papel

crítico das performances do corpo na esfera artística e cultural:

Há um estranhamento com relação a essa forma de expressão,

principalmente quando a colocamos frente a frente com outras

linguagens, cuja tradição de séculos garante que suas práticas sejam

circunscritas dentro de discurso supostamente mais direto e claro. Porém,

tal característica da performance, isso que chamamos de “degeneração”,

ou seja, um desvio parcial ou total dos discursos mais tradicionais, será

também sua qualidade mais sedutora (PAULA, 2014: 1)

Ela ainda ressalta que, a performance como um tipo de linguagem na cena

contemporânea, apresenta-se em constante atualização com a rapidez de sua propagação e a

relação entre artista, público e crítica “tornam alguns trabalhos excessivamente perturbadores,

ruidosos, chegando ao ponto de levar a performance ao limite do aceitável.” (2014: 2)

Corpo, mente e alma

JC - Eu passei por um período pesado de muita droga, cigarros, álcool, sexo,

drogas e rock’n’roll... tudo que eu posso imaginar que seja destrutível para o

corpo. Eu estava envolvido nisso entre 1975 até 1979. Então, depois disso passei

um período de tempo me limpando, tentando ajustar minha mente, meu corpo e

meu coração. (…)

- Quanto mais profundamente eu me envolvia no processo de recuperação, eu

fazia questão de conhecer mais seres que vinham para Nova Iorque e, que

consideram o poder de iluminação. Num ponto da minha vida eu conheci um

professor, um guru, que me elevou por um período de anos, até que chegou a um

ponto que suas palavras, seus ensinamentos e todas aquelas coisas ficaram tão

internas que eu me transformei nos meus próprios ossos e músculos, que não foi

mais realmente necessário ser um estudante de uma voz externa. Eu atingi uma

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liberdade com isso e, com essa liberdade, minha real identidade, minha única

identidade realmente emergiu. (transcrição de áudio e tradução livre minha)

De acordo o psicólogo e teólogo Richard L. Gorsuch em seu artigo sobre religião e

recuperação do abuso de drogas e outras substâncias, “Religious aspects of substance abuse and

recovery” (1995), a religião exerce um mecanismo de suporte mostrando-se como uma variável

positiva no tratamento, em comparação às instituições não-religiosas que poderiam ser ajudadas a

partir da prática religiosa no tratamento. A relação entre religião e drogas, incluindo o álcool,

segundo Gorsuch, tem uma complexa e longa história, uma vez que, entre as religiões modernas

como a cristã, os judeus e os muçulmanos têm um índice menor de usuários de drogas. A questão

que o autor demonstra é que o contato de pessoas com as práticas religiosas está associada a um

aspecto de controle, pelas relações sociais envolvidas dentro da socialização religiosa e aceitação

de normas anti-abuso, cujo tratamento torna-se mais eficaz, atingindo o resultado esperado.

Mas, o que nos interessa, é a observação da ideia do sagrado atuando na dimensão social,

como a religião ocupa um lugar muito importante na vida das pessoas. A antropologia, desde os

primeiros estudos na história da civilização primitiva, como os de Tylor e Frazer, revelou como a

magia e os rituais produzem efeitos especiais e atuam eficazmente entre o homem e a coisa, como

o animismo primitivo e a magia para toda elaboração de um sistema de sobrevivência, a partir de

classificações que separam as instâncias e a produção de vida pelas esferas do sagrado e do

profano, mitos e tabus. A partir de então, Marcel Mauss (2003) amplia o conceito de magia,

explicando como a ordem mágica e os rituais “primitivos” às condições sociológicas são

sustentadas nas representações coletivas. Seu desenvolvimento teórico reluz a magia para além de

uma técnica individual e demonstra que a mágica produz um efeito na medida em que ela se

desenvolve com a crença, fazendo parte de uma ordem racional utilitária e simbólica.

O sagrado e o profano constituem duas esferas que se opõem, orientando a maneira

humana de ser no mundo. Elas são situações existenciais que conduzem o homem ao longo da

sua história e produção dos modos de vida. A religião pode ser muito bem definida a partir dessa

dicotomia, como apresentado por Durkheim como um ‘fato social’, de uma realidade que destaca

a importância religiosa a um sentido da experiência sagrada, da percepção da religião como uma

cosmologia organizada para e a partir da vida coletiva “orgânica”.

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Mary Douglas, em “Pureza e Perigo” (1976), destacou como os rituais de pureza e

impureza criam unidades pela experiência, capazes de classificar as esferas que se opõem – o

sagrado e o profano – às contribuições positivas de reparação da ordem social. A noção de

poluição é apresentada por ela como uma manifestação da vida social que estabelece um diálogo

entre a crença e classificação, que se expressa para uma visão geral da ordem. Dessa maneira, as

drogas ocupam em nossa sociedade a esfera do profano, quando não utilizadas sobre controle

religioso ou médico em suas práticas e prescrições. Elas são encaradas como fatores sociais de

poluição que abalam a ordem coletiva, precisando ser evitadas ou abandonadas da vida diária.

No curta, Jon Cory revela que encontrou nas práticas de meditação de tradição Hindu os

meios para sua “iluminação” espiritual, que remetem a sacralidade religiosa, como auxílio e

manutenção de sua recuperação do abuso de drogas. Em seus discursos, a prática é evocada

como um elemento positivo a partir de sua experiência como indivíduo à esfera sagrada, para

uma libertação de suas tensões com o corpo em virtude de sua consciência frente a iluminação de

sua alma.

Podemos questionar a ideia de libertação da dependência das drogas através da religião

mas, como exposto no curta, toda experiência mística produz um significado de refúgio do

pensamento humano, numa dimensão que o indivíduo se encontra pela aproximação da esfera do

sagrado e reconstrução do ser.

Técnicas de filmagem e exposição da realidade do “outro”

Bronislaw Malinowski foi um dos mais importantes antropólogos do século XX por ter

desenvolvido o método fundamental da pesquisa de campo, cunhada pelo termo “observação

participante”. Ao lado de George Frazer, dentre outros, a abordagem funcionalista desenvolvida

por Malinowski derrubou os paradigmas evolucionistas, enfatizando a importância do estudo do

comportamento e relações sociais dentro do contexto cultural dos próprios nativos de uma

sociedade, numa imersão participante de observação. Ele considerou as diferenças entre normas e

ações e suas mais observáveis diferenças ao que os indivíduos fazem, falam e significam. Ainda

que sua visão funcionalista definiu a cultura como um aparato humano de transformação da

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natureza para a sobrevivência, sua contribuição para a antropologia como etnógrafo e seu método

de pesquisa permanecem vivas até os dias de hoje.

A participação observante é baseada na vivência entre as pessoas por um período de

tempo para a coleta de dados, por meio da contínua e sistemática observação de vidas e suas

atividades, aprendizagem da língua, etc. Para Malinowski, um etnógrafo aprofunda em seu objeto

de estudo por meio de anotações diárias e entrevistas para atingir as interpretações feitas pelos

seus próprios informantes, pelas quais mais tarde serão analisadas. Sua etnografia nas ilhas

Trombiand é apresentada em sua clássica obra “Argonautas do Pacífico” (1984 [1922]).

Pesquisadores como Margareth Mead e Bateson, baseando-se no mesmo método de

pesquisa, ainda adotaram fotografias para os registros (MEAD, 2003 [1975]) e, mais tarde, a

câmera de vídeo, assim como, gravadores de áudio que também foram empregados para

informações mais precisas sobre as falas e comportamento das sociedades investigadas. Em suas

próprias palavras, Mead ressalta:

The diaries of earlier fieldworkers like Malinowski (in the Trobriands),

Deacon (who died of blackwater fever in the New Hebrides), and Olsen

(ill days on end in the Andean highlands) are quiet suficiente to document

the savings that modern technology has given us. The time and energy

made available by modern and mechanical Technologies can now be

diverted to using same technology to improve our anthropological

records (2003: 7, grifo meu)

A utilização das técnicas de gravação ao uso de som e imagem têm sido instrumentos de

observação, transcrição e interpretação de realidades sociais diferentes. Elas têm sido utilizadas

como ferramentas de pesquisas relacionadas aos fenômenos sociais e culturais para sua difusão,

muito além de utilizadas como ilustração. “O filme e o vídeo podem chegar mais próximos da

realidade do tempo e do movimento ou as variedades de realidades psicológicas nas relações

interpessoais, desde a captação de sutilezas imperceptíveis a olho nu, como as relações sociais”

(REYNA, 2006:3).

Não é diferente que fotografias, filmes, gravações de áudio e todos os demais recursos

audiovisuais têm cada vez mais efeito e participação na nossa realidade, por questões do avanço

técnico e acessibilidade. Exemplo disso é a disposição da portabilidade dessas ferramentas, que

se encontram resumidas em apenas um objeto que cabe em nossos bolsos, na palma de nossas

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mãos: o smarthphone. Talvez, segundo Madianou (2014), mais do que qualquer outra tecnologia,

eles ganham destaque nesta convergência tecnológica de comunicação. Os smartphones

combinam características dos tradicionais telefones móveis, computadores pessoais e internet,

hibridizando não apenas as tecnologias e as plataformas mas também as práticas, os hábitos e

modos de acesso e utilização de seus usuários. Com implicações para a comunicação, eles são

dispositivos que podem facilmente ser empregados como recurso à coleta de dados etnográficos,

expandindo nossos horizontes. Apesar dessas técnicas de registro terem se fundado perante uma

organização do mundo, sob um olhar “ocidental”, elas aproximaram a antropologia das imagens

técnicas e são consideradas hoje como uma questão de método. (BARBOSA; CUNHA, 2006)

O personagem do curta, Cory/Wood, tomado como fonte de inspiração para a produção

do documentário e, assim, deste paper, não foi produzido por meio de um script ficcional escrito

por um diretor. Ele não foi tirado do seu contexto sociocultural, nem tampouco desvinculado de

sua vida cotidiana. Seu comportamento se desdobrou independentemente da presença de câmeras,

como sua própria aparência no mundo e em suas performances burlescas. Por isso, o curta Shape

of Shapeless pode ser interpretado como um dado rico sob a forma de documentário, para

questões a respeito da relação gênero e corpo, corpo e mente, conceitos e padrões sociais

tradicionalmente reproduzidos. Por apresentar o estilo de narração em voz over realizado pelo

próprio protagonista, sobre a sua visão de mundo, como o “outro” nos filmes etnográficos,

conforme Jean Rouch (1993) apresentou, mais do que a necessidade de retirar conclusões que um

filme pode chegar, ou até mesmo as “verdades” a partir dessas conclusões, o processo de sua

realização é seu verdadeiro objetivo. Os filmes etnográficos e filmes documentários com

relevância antropológica podem ser compreendidos, dessa maneira, como uma documentação

histórica de dada realidade.

Bibliografia:

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violencia-no-brasil>. Acesso em: 05 ago. 2016.

Body is a Costume that We Use to do a Performance

Abstract: Due to its explanatory relevance, its nonfictional and descriptive content, I propose to

present the medium-length documentary ‘Shape of Shapeless’ (2010) directed by the Indian

filmmaker based in the United States, Jayan K. Cherian, through an anthropological approach.

This documentary reveals strategies of organizing a registered world, as in ethnographic films,

taking the viewer the reality of the "other" more deeply. In other words, "The Form of the

Amorphous", enunciates the representations of gender and sex to physical and corporeal

distinctions, which are reformulated on the cultural aspects, in forms of speech transcribed in the

body and behavior. In its context, the participant Jon Cory is a successful craftsman/restorer

based in New York City, where at night he performs as a burlesque dancer under the name of

Rose Wood. Above all, the documentary demonstrates how the questions about human body,

artistic performance, representation, gender and religion are faced. The rupture / inclusion of the

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social actor in groups is presented in front of their aesthetic body transformations, within a vision

that extrapolates normativity tied to physical appearance to biological sex. More than the need to

draw conclusions that the film could reach, or even the "truths" from these conclusions, is to

present it as illustration, how the body is used as a costume that allows us to do a performance.

Keywords: Body - Representativeness - Performance – Gender