documentário e antropologia

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Nunca é demais relembrar que as relações do cinema com a An- tropologia remontam aos primórdios do cinematógrafo e de seus ances- traismaispróximos,aquelesdequemherdouquasetudo.

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  • ndice

    EDITORIALEditorial | Editors note | ditorial 1

    Documentrio e AntropologiaporMarcius Freire, Manuela Penafria 2

    ARTIGOSArtculos | Articles | Articles 5

    Jean Rouch - Filme etnogrfico e Antropologia Visualpor Jos da Silva Ribeiro 6

    Jean Rouch e a inveno do Outro no documentrioporMarcius Freire 55

    Jean Rouch e o Surrealismopor Daniela Dumaresq 66

    Antropologia e documentrio: da escrita ao cinemapor Joo Rapazote 82

    Estratgias flmicas do documentrio antropolgico: trs estudos de casopor Jos Francisco Serafim 114

    Fotoetnografia: a importncia da fotografia para o resgate etnogrficopor Paulo Csar Boni, Bruna Maria Moreschi 137

    ANLISE E CRTICA DE FILMESAnlisis y crtica de pelculas | Analysis and film re-view | Analyse et critique de films 159

    A criatividade que gera criatividadeporMariana Liz 160

    i

  • NDICE NDICE

    Pasolini y la antropologa urbana - Un documental de los aos setentapor Stefano Odorico 163

    Santiago F For Fakepor Aurlio Michiles 167

    Rear Window, Janela Indiscretapor Tito Cardoso e Cunha 171

    LEITURASLecturas | Readings | Comptes Rendus 173

    O documentrio segundo KracauerporManuela Penafria 174

    DISSERTAES E TESESTesis | Theses | Thses 187

    El Cine Documental de NO-DO (1943-1981)por lvaro Matud Juristo 188

    O Homem da Cmara de Filmar como obra futurista e o posicionamentotico de Dziga Vertovpor Sandra Fernandes Nunes 195

    Imagem e poltica: estudo sobre o cine-jornal brasileiro (1939-1942)por Daniela Domingues Leo Rgo 196

    Exploration filmique de Sanayeh, un quartier de Beyrouthpor Pascale Feghali 197

    Sobre heris, narradores e realismo: anlise de filmes de Jean Rouchpor Daniela Dumaresq 198

    Entreatos polticospor Carlos Andr Migliorini 200

    Habitants de chambres de bonnes Paris. tude filmique des usages delespace quotidienpor Anja Hess 201

    Artisanat et tradition au Maroc: tude danthropologie filmique sur les dinan-diers de la Mdina de Fspor Baptiste Buob 202

    ii

  • NDICE NDICE

    tudo verdade? A explorao no documentrio e o documentrio de explo-raopor Lcio De Franciscis dos Reis Piedade 204

    ENTREVISTAEntrevista | Interviews | Entretiens 207

    Entrevista a Manthia Diawarapor Joo Rapazote 208

    iii

  • EDITORIAL

    Editorial | Editors note | ditorial

  • Documentrio e Antropologia

    Marcius Freire, Manuela Penafria

    A presente edio da Doc on-line debrua-se sobre um tema quetem um significado especial para os estudos do documentrio. Comefeito, nunca demais relembrar que as relaes do cinema com a An-tropologia remontam aos primrdios do cinematgrafo e de seus ances-trais mais prximos, aqueles de quem herdou quase tudo. A histria nosconta que, antes daquele comboio entrar naGare de la Ciotat e do bbde Auguste fazer a sua refeio para o grande pblico, o "outro" noocidental j se mostrava em imagens moventes para olhares curiosos.De um lado do atlntico, Edison fez do seu estdio Black Maria o palcopara uma dana Sioux totalmente encenada que resultou numa fita kine-toscpica intitulada Sioux ghost dance(1894); enquanto na Frana, naPrimavera do ano seguinte, Flix-Louis Regnault registrava com umacmara cronofotogrfica de E. J. Marey uma mulher wolof elaborandoartefatos em argila na Exposition Ethnographique de lAfrique Occiden-tale, em Paris. Os Lumire, cujo invento seria apresentado publica-mente alguns meses depois, deu continuidade e intensificou esse inte-resse pela alteridade enviando os seus operadores aos recnditos maislongnquos do planeta de onde seriam trazidos filmes "pris sur le vif etpleins de vie vritable".

    Entre essa explorao do extico, do no ocidental e a utilizaodas imagens em movimento como instrumento ao servio do estudo dohomem, o caminho foi longo e muito ainda resta a ser feito. O dossi queora apresentamos tem como propsito ser uma pequena contribuiopara a pavimentao desse caminho.

    Assim, sobre as relaes do Documentrio com a Antropologia, temaproposto para esta terceira edio, a Revista Doc On-line, traz-nos umconjunto de artigos que discutem a obra do cineasta-antroplogo fran-cs Jean Rouch. Jos da Silva Ribeiro comenta e apresenta as entre-vistas que lhe realizou. Trata-se de um artigo que seguramente se cons-tituir num valioso material de apoio a todos os interessados na obra deJean Rouch, assim como nas problemticas que envolvem as ligaes

    Doc On-line, n.03, Dezembro 2007, www.doc.ubi.pt, pp. 2-3.

  • Documentrio e Antropologia 3

    entre a Antropologia e a imagem emmovimento. Marcius Freire destacao conceito proposto por Jean Rouch de "verdade provocada", um pro-cedimento usado pelo cineasta que conduz verdade do filme e exercitao alcance desse conceito no documentrio contemporneo. A partir dosfilmes La Punition e Gare du Nord, Daniela Dumaresq discute pertinen-temente as ligaes entre essas obras e o movimento surrealista. JooRapazote oferece-nos um extenso artigo sobre a Antropologia Visuale Jos Francisco Serafim reflecte sobre as estratgias de realizaode documentrios antropolgicos a partir da sua prpria experincia.Para concluir o conjunto de artigos seleccionados e para abranger asimportantes e histricas relaes da Antropologia com a imagem fixa,muito apraz aos editores tornar pblico o trabalho de Paulo Csar Bonie Bruna Maria Moreschi sobre a fotoetnografia onde apresentam um le-vantamento dos fotgrafos que tm contribuido significativamente parao "resgate antropolgico de povos e grupos sociais". Ainda neste n-mero, continuamos a apostar na divulgao de dissertaes e tesesna rea e na seco "anlise e crtica de filmes" apresentamos textossobre documentrios actuais assim como mais clssicos e, como vemsendo hbito, esta uma seco que prima por ser alargada a outrosfilmes que no trazem consigo a designao de documentrio, mas so-bre os quais se lanam olhares documentais. Por fim, destacamos aentrevista indita a Manthia Diawara realizada por Joo Rapazote quecompleta o nmero da DOC On-line dedicado Antropologia.

  • ARTIGOS

    Artculos | Articles | Articles

  • Jean Rouch - Filme etnogrfico e AntropologiaVisual

    Jos da Silva RibeiroCEMRI - Laboratrio de Antropologia Visual, Universidade Aberta

    [email protected]

    Resumo: Procuramos em torno de duas conversas com Jean Rouch ocor-ridas em 1992 e 1995 organizar algumas notas para utilizao dos estudantes.Posteriormente estas conversas foram editadas em DVD e utilizadas em mlti-plos contextos, nomeadamente na 12a Mostra Internacional do Filme Etnogr-fico do Rio de Janeiro. As contnuas solicitaes destes materiais levam-nosa organizar e a apresentar estas notas. Estamos certos de que as conversascom Rouch mereciam mais ampla reflexo e a participao de outros autores.Deixaremos esta misso para uma ulterior publicao. Apraz-nos disponibilizaraqui as lies de Rouch, referncia incontornvel do cinema etnogrfico.

    Palavras-chave: Filme etnogrfico, Antropologia Visual, Jean Rouch.Resumen: Para enmarcar el contenido de dos conversaciones que tuvi-

    mos con Jean Rouch en 1992 y en 1995, redactamos algunas notas para losestudiantes. Ms tarde, estas conversaciones fueron editadas en DVD y utili-zadas en mltiples ocasiones, como en la 12a Mostra Internacional do FilmeEtnogrfico do Rio de Janeiro. La continua demanda de estos materiales nosha llevado a organizar y presentar esas notas. Estamos seguros de que lasconversaciones con Rouch mereceran una discusin ms amplia y la parti-cipacin de otros autores. Pero vamos a dejar esa tarea para una posteriorpublicacin. Estamos muy satisfechos de poner a disposicin las lecciones deJean Rouch, que es una referencia inevitable del cine etnogrfico.

    Palabras clave: pelcula etnogrfica, Antropologa Visual, Jean RouchAbstract: From two interviews with Jean Rouch in 1992 and in 1995 we

    organized some notes for the students. Later these conversations were editedon DVD and used in multiple contexts, such as the 12a Mostra Internacionaldo Filme Etnogrfico do Rio de Janeiro. Continued demand for these materialsled us to edit and publish those notes. We are convinced that the conversationswith Rouch deserve wider discussion and the appraisal of other authors. Wewill leave that assignment for a later publication. We are are pleased to makeavailable Jean Rouchs lessons, a filmmaker who has become an inevitablereference in ethnographic film.

    Keywords: Ethnographic film, Visual Anthropology, Jean Rouch.

    Doc On-line, n.03, Dezembro 2007, www.doc.ubi.pt, pp. 6-54.

  • Jean Rouch - Filme etnogrfico ... 7

    Rsum: A partir de deux conversations avec Jean Rouch recueillies en1992 et en 1995, nous avons organis quelques notes pour les tudiants. Plustard, ces conversations ont t publies en DVD et utilises dans de multiplescontextes, tels que la 12a Mostra Internacional do Filme Etnogrfico do Rio deJaneiro. La demande continue concernant ces matriaux, nous a amen or-ganiser et prsenter ces notes. Nous sommes certains que les conversationsavec le cinaste mritent une plus large rflexion et la participation dautres au-teurs, mais nous rserverons ce travail pour une publication ultrieure. Noussommes nanmoins heureux de mettre ds maintenant disposition les leonsde Jean Rouch, incontournable rfrence du cinma ethnographique.

    Mots-cls: Film ethnographique, Anthropologie Visuelle, Jean Rouch.

    1. Filme Etnogrfico e Antropologia Visual

    OFilme etnogrfico ou o cinema etnogrfico entendido no sentidomais amplo abarca uma grande variedade de utilizao da ima-gem animada aplicada ao estudo do Homem na sua dimenso sociale cultural. Inclui frequentemente desde documentos improvisados (es-boos, ensaios flmicos) at produtos de investigao acabados e deconstruo muito elaborada. Os mtodos do cinema etnogrfico somuito variados e associados a tradies tericas diferenciadas como ameios e procedimentos1 utilizados. Assentam no entanto em algunsprincpios fundamentais: uma longa insero no terreno ou meio estu-dado frequentemente participante ou participada, uma atitude no di-rectiva fundada na confiana recproca valorizando as falas das pes-soas envolvidas na pesquisa, uma preocupao descritiva baseada naobservao e escuta aprofundadas independentemente da explicaodas funes, estruturas, valores e significados do que descrevem, uti-

    1 Claudine de France considera haver entre as inmeras atitudes metodolgicaspossveis duas tendncias opostas no filme etnogrfico - os filmes de exposio e fil-mes de explorao. A primeira pressupe procedimentos extra-cinematogrficos (es-crita precede a realizao do filme), a segunda utiliza o cinema como metodologia depesquisa, de explorao.

  • 8 Jos da Silva Ribeiro

    lizao privilegiada da msica e sonoridades locais na composio dabanda sonora.

    A sua gnese frequentemente associada ao nascimento do pr-prio cinema: para Claudine de France com os primeiros filmes Lumiredesde 1898 as imagens mostram e descrevem, independentementeda inteno, propsito ou dispositivo de pesquisa que lhe est subja-cente. Para Emilie de Brigard, o primeiro filme etnogrfico foi realizadoem 1895 por Flix-Louis Regnault, mdico especializado em anato-mia patolgica, que com a ajuda do assistente de Jules-Etienne Marey,Charles Comte, filmou uma mulher ouolof a fabricar uma pea de olariana exposio etnogrfica da frica Ocidental. Neste filme existe umainteno cientfica explcita: a de descrever um tcnica de cermica in-termediria entre a executada sem roda e com roda horizontal (Piault,2000). Afirmam-se assim duas tendncias ou polaridades marcadaspela presena ou ausncia intencional de um dispositivo de pesquisa ede uma problemtica. Marc Piault associa o nascimento do cinema e daAntropologia de terreno expanso industrial europeia de que o prpriocinema e a Antropologia fazem parte.

    S nos anos 1950 o filme etnogrfico se torna uma disciplina ins-titucional com especialistas de critrios reconhecidos (Brigard, 1979).Surgiram seus primeiros autores / realizadores e seus primeiros filmes:Jean Rouch, Les Matres Fous (1955), John Marshall, The Hunters(1958) Robert Gardner, Dead Birds (1964), e Tim Asch The Feast (1969).Na mesma poca foram criadas as primeiras instituies e programasde formao. Dentre estes, destacamos a criao do Comit du FilmEthnographique2 em 1953 por Jean Rouch, Enrico Fulchignoni, MarcelGriaule, Andr Leroi-Gourhan, Henri Langlois et Claude Lvi-Strauss,domiciliado no Muse de lHomme e os programas de formao: PIEF- Program in Ethnographic Film criado em 1966 por Robert Gardner eAsen Balicki na Universidade de Harvard e no mesmo ano a criao doLaboratoire de Audiovisuel en Sciences Religieuses por Jean Rouch,Claude Levi-Strauss, Germaine Dieterlen, na cole Pratique des Hau-tes tudes Sorbone. Em 1969 Rouch dirigia o curso de Cinma eSciences Humaines na Universidade de Nanterrre. Desde o seu incioo filme etnogrfico aparece com uma dupla vinculao aos antrop-logos e Antropologia (Marcel Griaule, Andr Leroi-Gourhan, Claude

    2Actualmente o Comit du Film Ethnographique dirigido por Marc-Henri Piault.

  • Jean Rouch - Filme etnogrfico ... 9

    Lvi-Strauss, Germaine Dieterlen, Asen Balicki) e ao cinema (EnricoFulchignoni, Enrico Fulchignoni, Henri Langlois). Jean Rouch aparececomo a sntese do antroplogo e do cineasta. Engenheiro como os cine-astas Russos dos anos 203 (Eisenstein e Vertov) a figura de refernciaparadigmtica do filme etnogrfico (Ginsburg, 1999). Esta ambiguidade,pelo menos aparente, no deixou de ser notada pelos antroplogos queusam as imagens. Para Jay Ruby o filme etnogrfico encerra algumasambiguidades. Nos Estados Unidos, devido aos filmes de Robert Gard-ner, John Marshall e Tim Asch, o filme etnogrfico constitui-se comomeio ou ferramenta educativa para muitos antroplogos. Por outro lado,segundo Ruby, o termo etnogrfico era entendido num sentido dema-siado amplo e at obsoleto na medida em que inclua todo o tipo de do-cumentrios que representavam um retrato emptico de algum aspectoda cultura em que a representao do outro extico se enquadravamda cultura ocidental dominante. Finalmente o filme etnogrfico aparecemais associado ao cinema e ao cinema documentrio do que propria-mente Antropologia enclausurando-se em grupos fechados, festivaisde cinema etnogrfico e formao espordica, no sistemtica.

    Na expresso cinema etnogrfico ou filme etnogrfico, a palavra et-nogrfico tem duas conotaes distintas. A primeira a do assunto quetrata - ethnos, o, povo, nao; graphein, , escrita, desenho,representao. O filme etnogrfico seria a representao de um povoatravs de um filme (Weinburger, 1994). Neste mbito se enquadramos filmes Nanook of the North de Flaherty e os ensaios sobre o cinemaetnogrfico escritos por MacDougall (1975, 1978) e Timothy Asch, JohnMarshall (1975), anlises feitas por cineastas que fotografaram ou fil-

    3Como os primeiros cineastas soviticos, Sergei Eisenstein e Dziga Vertov, Rouchtinha experincia profissional na engenharia e na arquitectura, era engenheiro de pon-tes e caladas. Segundo Jenkins esta experincia em Eisenstein e em Vertov nas reasda engenharia, arquitectura e design grfico favoreceu a fuso das artes e da enge-nharia numa altura em que a tecnologia era vista como a chave da transformao daRssia de um estado feudal para uma utopia dos trabalhadores. Construram as suasteorias numa linguagem derivada dos ambientes mais tcnicos, com Vertov celebrandoo homem com a mquina de cinema, parte artista e parte engenheiro, com Kuleshova falar dos seus primeiros trabalhos como experincias, com Eisenstein a escreversobre a edio da montagem relacionada com a reflexologia de Pavlov [. . . ] Qualquercompreenso terica era imediatamente convertida em aplicaes prticas. (Jenkins,1999).

  • 10 Jos da Silva Ribeiro

    maram culturas exticas. A segunda conotao do termo etnogrfico a de que h um enquadramento disciplinar especfico dentro do qual ofilme ou foi realizado a Etnografia, a Etnologia, a Antropologia. Esseenquadramento , em primeiro lugar, o da Etnografia enquanto descri-o cientfica associada Antropologia. Neste sentido, a srie de filmesde Asen de Balikci e Mary Rousseliere sobre os Esquims Netsilik e osescritos de Jay Ruby (1975) podem considerar-se etnogrficos e antro-polgicos. O cinema etnogrfico era sobretudo descritivo. As imagensfuncionando como arquivos de uma enciclopdia sobre as sociedadesno industriais, exticas ou rurais, eram captadas segundo os progra-mas da Antropologia clssica. Descrevem as tcnicas, o habitat, o ar-tesanato, as diferentes formas de agricultura, os rituais, as cerimnias,etc. Para Brigard, a mudana mais notvel do filme etnogrfico desdeas origens apareceu claramente depois da Segunda Guerra Mundial.Consistiu no deslocamento do centro de interesse do filme. Esta j notanto o do exterior, do longnquo e do extico mas do interior o seu pr-prio meio. O mesmo aconteceu na Antropologia, na Sociologia e nasCincias Sociais em geral se interessam por temas como a cidade omundo inteiro ou vive na cidade ou est a caminho da cidade; ento,se estudarmos as cidades, poderemos compreender o que se passa nomundo (Park), a emigrao, o tempo, os laboratrios cientficos (Rabi-now, Latour) e outros temas das denominadas sociedades complexas.Temas presentes na filmografia de Jean Rouch.

    Para Eliot Weinburger, o cinema etnogrfico pode ser um subg-nero do documentrio ou um ramo especializado da Antropologia eequilibra-se precariamente nos limites de ambos (1994) Alguns auto-res como Jay Ruby (1975), Emile de Brigard (1975), Heider (1976), EliotWeinburger (1994) argumentam que todos os filmes so etnogrficos:qualquer filme por mais ficcional um documento da vida contempor-nea (Weinburger, 1994). habitual definir filme etnogrfico como umrevelador dos modelos culturais. Segundo esta definio, depreende-se que todos os filmes so etnogrficos pelo contedo, pela forma oupor ambos. No entanto, alguns filmes so nitidamente mais reveladoresdo que outros (Brigard, 1979, p.21). Na verdade os filmes de ficocomo resultados de um processo criativo no so apenas puras ficeseles tem uma pretenso evidncia quotidiana, experincia; suge-rem um espao, uma histria, uma linguagem, um olhar sobre o mundo

  • Jean Rouch - Filme etnogrfico ... 11

    (Aug,1997). Jacques Aumont referir-se-ia dimenso antropolgica esocial dos estudos cinematogrficos e necessidade de entrecruz-loscom as cincias sociais (Aumont e All, 1989).

    A questo fundamental parece ser fundamentada por Franois La-plantine quando afirma que a questo fundamental da Etnografia (tam-bm do filme etnogrfico e do cinema documentrio) a passagem daobservao linguagem, diramos tambm a passagem do terreno imagem, ao discurso e ao pblico. As questes relacionadas com a re-cepo ou a apropriao dos filmes tornaram-se centrais nos processosde pesquisa, no percurso dos antroplogos cineastas, na reconfigura-o das prticas da Antropologia Visual (Rouch, Arlaud, Ruby).

    A Antropologia e a Etnografia decorrem em primeiro lugar da ideiade que as culturas se revelam atravs de formas e smbolos visuaissubjacentes aos gestos, cerimnias, rituais e artefactos situados emambientes construdos e naturais (Ruby, 1996). A aprendizagem ou apercepo de uma cultura, longnqua ou prxima, do outro ou a nossaprpria cultura, pressupe pois uma actividade de ateno que mobi-liza a sensibilidade do etnlogo: particularmente a vista e mais preci-samente o olhar. Olhar o contrrio de generalizar, globalizar, eleque constri o quadro (a vista), que acrescenta, corta, omite, constrie subjectivisa (Dibie, 1998, p.26). O olhar etnogrfico uma duplaconstruo: prope-se ver e mostrar o mundo e a forma de o cons-truir como linguagem e como processo de construo da linguagem.Como actividade perceptiva (interior e exterior, de si e do outro) fun-dada na ateno e orientao do olhar procura uma abordagem microsocial, isto , prope-se observar, o mais atenta e minuciosamente pos-svel tudo o que se encontra, incluindo e, talvez mesmo e acima detudo, os comportamentos aparentemente mais insignificantes os as-pectos acessrios do comportamento, alguns pequenos incidentes(Malinowski, 1993, p. 77), os gestos, as expresses corporais, os usosalimentares, os silncios, os suspiros, os sorrisos, as caretas, os ba-rulhos da cidade, os barulhos dos campos (Laplantine, 1996, p.13).Prope-se prestar ateno ao pormenor como revelador do todo. Aodetalhe que aponta para fora de uma singularidade ou especificidadecultural ou de uma determinada interaco, que possui uma fora deexpanso. Por isso a percepo etnogrfica no da ordem da depen-dncia imediata da vista, do conhecimento fulgurante da intuio, mas

  • 12 Jos da Silva Ribeiro

    da viso (e, por conseguinte do conhecimento) mediatizada, distanci-ada, diferida, reavaliada, instrumentalizada (caneta, gravador, mquinafotogrfica, cmara...) e, em todas as situaes, retrabalhada na escritaou nas imagens e nos sons. Ver imediatamente o mundo tal como ,cujo corolrio consistiria em descrever exactamente o que aparece sobos olhos, no seria realmente ver, mas crer e crer nomeadamente napossibilidade de eliminar a temporalidade. Seria reivindicar uma estabi-lidade ilusria do sentido daquilo que se v e negar vista e ao visvelo seu carcter inevitavelmente mutvel (Laplantine, 1996, p.15). A des-crio etnogrfica, etapa fundamental para a Antropologia no consisteapenas em ver, ou em ver e analisar, mas em mostrar, dizer ou escrevero que se v, isto o transformar o olhar em linguagem (Laplantine,1996). Os antroplogos tentaram compreender o olhar passando do vi-svel ao legvel. A Antropologia era uma disciplina verbal, dependentedas palavras (Mead, 1979) sobretudo quando o antroplogo contavaapenas com a memria dos informantes. O ver tornava-se indissociveldo ouvir, do interagir, da inscrio local (notas de campo e registos visu-ais e sonoros) memria do observado e do observador, da anlise eda interpretao, um continuum do terreno ao texto e ao pblico. A des-crio etnogrfica, no s enquanto escrita do visvel mas tambm darelao, da experincia de terreno, expe no s a ateno do inves-tigador (ateno orientada e tambm ateno flutuante), mas tambmuma preocupao particular de vigilncia relativamente linguagem, jque se trata de mostrar com palavras [imagens e sons], que no podemser insubstituveis, sobretudo quando se tem por objectivo dar conta, daforma mais minuciosa possvel, da especificidade das situaes, sem-pre inditas, com que somos confrontados. Na descrio etnogrficaesto em jogo as qualidades de observao, de sensibilidade, de inte-ligncia e de imaginao cientfica do investigador. a que se preparao etnlogo (= o que faz emergir a lgica prpria de determinada cul-tura). , enfim, a partir deste ver organizado num texto, que comea aelaborar-se um saber: o saber caracterstico dos antroplogos. Nestapassagem do visvel, do multisensorial (multissemitico) ou da experi-ncia linguagem h necessidade de estabelecer relaes entre o quefrequentemente era considerado como separado: a viso, o olhar, amemria, a imagem e o imaginrio, o sentido, a forma, a linguagem.Este empreendimento acima de tudo interdisciplinar apela a uma plu-

  • Jean Rouch - Filme etnogrfico ... 13

    ralidade de abordagens, que a Antropologia que no uma disciplinaauto-suficiente mas aberta tem de frequentar [considerar, de ter emconta]: as cincias naturais, a pintura, a fotografia, a fenomenologia,a hermenutica, a teoria da traduo, as cincias da linguagem, mastambm a literatura [o cinema e o hipermedia], que no [so] mais doque o pleno exerccio da linguagem (Laplantine, 1996, p.8).

    Jay Ruby refere que alguns produtores e utilizadores de filmes et-nogrficos partem do pressuposto de que mostrar na sala de aula e nateleviso imagens positivas das pessoas e dos processos sociais e cul-turais que no so familiares ao pblico tem um efeito humanizante, eaumenta a tolerncia da audincia para as diferenas e a diversidadedas culturas, para a percepo da interculturalidade. No h provasdestes benefcios. A experincia mostra-nos o contrrio leitura et-nocntricas dos filmes. Abre-se pois um campo de investigao sobreo modo como os filmes etnogrficos proporcionam aos pblicos a per-cepo das culturas na sua diversidade ou como os filmes etnogrficocomunicam com o pblicos nos seus diversos contextos de utilizao no ensino, na comunicao. Trata-se pois de problematizar no sa produo do filme etnogrfico como uma questo investigvel, mastambm a forma como este estabelece a comunicao com o pblico,ou ainda como os pblicos lhe atribuem sentido, como se apropriamdeles e os integram nos seus sistemas de crena e de conhecimentodo outro. Poderemos focalizar ainda esta integrao em contextos dife-rentes as pessoas filmadas como integram as imagens acerca de siprprias num sistema de conhecimento (auto-conhecimento, reconhe-cimento) e das emoes; em situaes de ensino em que o filme apropriado com objectivos especficos de formao e acompanhado deinformao complementar (dispositivos crticos); em situaes de apre-sentao em espao pblico televiso, cinema, integrado ou no emprogramao temtica especfica, sujeita ou no a processos comple-mentares de reflexo sobre os filmes (guias de programao, notas deleitura, debate). Estas situaes foram amplamente desenvolvidas porJean Rouch. Em primeiro lugar na relao com o terreno e no desen-volvimento de uma Antropologia partilhada em que o pblico de seusfilmes era em primeiro lugar os seus prprios actores, sujeitos da inves-tigao. O segundo pblico das imagens filmadas seria a montadoraque com o realizador procura dar sentido s imagens filmadas na cons-

  • 14 Jos da Silva Ribeiro

    truo da narrativa. O processo de reflexividade, apropriao das ima-gens pelas pessoas filmadas, constitui uma outra forma de recepo,desencadeando frequentemente acesos debates como em Moi un Noire sobretudo em Chroniques dun t. Finalmente a apresentao dosfilmes em festivais Bilan du film ethnographique, ou nas sesses dosSeminrios de Rouch na Cinemateca Francesa constituem contextos deapropriao crtica dos filmes.

    Actualmente a integrao de dispositivos crticos (notas, processode realizao, fotografias, etc..) na apresentao dos filmes em DVDou na Internet (guies de leitura) demonstram-nos a necessidade e ointeresse em passar do visionamento simples (ver) do filme para a apro-priao (consulta) do filme. O visionamento repetido do filme permitirum conhecimento mais ntimo (Truffaut), a passagem do espectculodo filme na sala de cinema, ou de entretenimento na televiso ao co-nhecimento decorrente da consulta do filme, do visionamento repetido.Jean Rouch refere o que Langlois dizia para fazer cinema preciso tervisto 300 filmes. Eu posso-os obrigar a ver 300 filmes por ano, dis-por de uma boa videoteca para consulta, para visionamento repetido; uma condio essencial para a aprendizagem da realizao do filmeetnogrfico e da problemtica abordada no filme.

    Marc Piault aponta para uma hipercenografia do provvel ou do pos-svel em que a experincia das imagens (procedimento/conhecimentoantropolgico) passaria a ser submetida interpretao permanentedos espectadores e reinterpretao crtica dos seus protagonistasatravs da universalizao dos instrumentos (Internet, media digitais)e consequentemente das formas de discurso.

    Vejamos um paralelismo possvel entre a Antropologia e o documen-trio sugerido pelo texto de Elizabeth Sussex (1975) (v. tabela na pginaseguinte).

    Dziga Vertov e Robert Flaherty so considerados por Jean Rouch"pais fundadores", "percursores geniais" do cinema etnogrfico, cha-mando-os de figuras totmicas.

    A criao cinematogrfica para Flaherty, Nanook of the North (1922)baseava-se em princpios semelhantes aos que orientavam, na mesmapoca, os trabalhos de Malinowski nas Ilhas Trobriand (1915-16, 1917-18): 1) Longa durao da experincia no local: o tempo do contactoprvio, do conhecimento do objecto a filmar, da criao de laos de

  • Jean Rouch - Filme etnogrfico ... 15

    Documentrio AntropologiaO primeiro , obviamente, o relatoda viagem...

    No incio, tambm a Antropologiase baseava no relato de viagens dosexploradores, viajantes, mission-rios ou comerciantes.

    O segundo o da descoberta deFlaherty de que se pode fazer umfilme sobre as pessoas no local, isto, que se consegue uma compreen-so dramtica, um padro dram-tico, no local, com as pessoas. Mas claro que ele fez isso com povoslongnquos e nesse sentido foi umromntico.

    Malinowski, na mesma poca, anos20 do sc. XX, desenvolve uma ati-tude semelhante, ou seja, de um in-vestigador isolado empreende o tra-balho de campo junto de povos lon-gnquos, captando o ponto de vistado nativo.

    O terceiro o nosso captulo, o quedescobre o drama vivido soleirada nossa porta, o drama do quoti-diano.

    A Antropologia em casa ou de re-gresso a casa depois da fase colo-nial. Os temas abordados so osda sociedade complexa - a cidade,a emigrao, a cinciaE

    H um quarto captulo, o que muito interessante, e esse seriaaquele no qual as pessoas comeama falar, no sobre como fazer filmessobre as pessoas, mas com as pes-soas... [Antropologia partilhada deJean Rouch...]

    A partir do final dos anos 60 do sc.XX, com a independncia dos pa-ses colonizados, os povos adquiremvoz e participam na investigao. ,no entanto, a partir dos anos 80, quea relao entre os antroplogos eos sujeitos do inqurito concebidacomo um instrumento heurstico.

    No entanto, o captulo seguinte, ode fazer filmes com indivduos paraisso treinadas, tem o problema dese estar a fazer filmes com pes-soas e depois partir de novo. Ora,eu vejo o prximo captulo como ode fazer filmes de facto no terreno,e aqui sigo as ideias de Zavantini.Uma vez Zavantini fez um discursomuito engraado em que dizia queseria ptimo se todas as aldeias ita-lianas fossem equipadas com cma-ras para que pudessem fazer filmessobre elas prprias e escrever car-tas em cinema umas s outras, e istoera para ter uma grande piada. Eufui a nica que no se riu, porqueme parece que o prximo passo -no os aldees a mandaram cartasde cinema uns aos outros, mas elesprprios a fazerem filmes, onde co-loquem questes polticas ou de ou-tra natureza e at a expressarem-seem termos jornalsticos ou noutros.(Sussex 1973, p. 29-30)

    Tambm na Antropologia se de-senvolvem experincias desta na-tureza, sobretudo na Antropologiaps-colonial. (Appadurai).

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    confiana que permitam a participao das pessoas filmadas, enfim arodagem, o visionamento e a devoluo das imagens s pessoas filma-das. O filme aparece como um processo, constitui uma experincia in-terminvel, a que s uma "violncia" exterior lhe pode pr termo (com-promissos de distribuio, presses relativas encomenda.....). "Todosos meus filmes so apenas esboos - aproximaes ao que espero vira fazer um dia, ou que ser feito por outros [. . . ] fazer um filme comoprocurar uma pepita de ouro [. . . ] um filme a maior distncia entredois pontos" (Flaherty in Romaguerra, 1980, p.145). 2) Subordinaoda filmagem aos dados dessa experincia: os filmes obedecem a pro-jectos, a uma ideia prvia "filmar a majestade inicial dos povos" emNannok (1922), Man of Aran (1934). Nenhuma ideia , no entanto, de-senvolvida sem que seja ratificada pelos factos passados ou presentes,a grande maioria das ideias nascem do conhecimento directo da comu-nidade. 3) Importncia da devoluo das imagens s pessoas filmadasna conduo da experincia de realizao do filme. O filme desenvolve-se a partir do olhar do realizador, das anlises partilhadas das imagens,das conversas com os habitantes, da sucessiva repetio das tomadasde vista. Para isso Flaherty instala, sempre que possvel, laboratriose equipamentos de projeco do original dos filmes, rushes, no localchegando ao limiar de um germe de "criao colectiva" (esquims cor-rigem o filme depois do seu visionamento) o que postula o princpiodeterminante da descoberta de elementos a partir das prprias revela-es operadas pela cmara: a cmara v mais que o olho. Seus filmescomo a metodologia teve admiradores e detractores. de certa ma-neira irnico que Flaherty tenha sido atacado por fazer o que os antro-plogos fazem com virtual impunidade "o objectivo final que o etnlogono pode perder de vista , em suma, compreender o ponto de vista donativo, a sua relao com a vida, a sua viso do mundo" (Malinowski).

    Flaherty foi, na opinio de J. Rouch, "um etnlogo sem o saber esem o querer, dando talvez a maior lio de pacincia e de tenacidadeaos que se dedicam ao estudo dos outros homens. A sua pesquisa ma-naca da autenticidade obrigava a contactos prvios prolongados pre-cedendo uma observao minuciosa, uma tentativa de compreensomtua que poucos etngrafos profissionais se podem gabar" (1966,p.453), descobre as potencialidades da observao participante (paraHeusch, tambm cmara participante) que etnlogos e socilogos uti-

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    lizaro mais tarde, a sua atitude com Nanook resume a deontologia dapesquisa etnogrfica: alm do rigor do trabalho de observao e de in-tegrao, da existncia do projecto e do conhecimento minucioso dosmeios tcnicos, Flaherty no actua como mero caador de imagens.Adoptado por Allakariallak (Nannok no filme) e sua famlia, observa-os minuciosamente, procura a sua colaborao estreita, trata-os comoseres humanos, o que nem sempre aconteceu com os etnlogos cine-astas.

    Os contributos de Vertov para o filme etnogrfico so muito diversi-ficados. Em primeiro a cidade, o cinema, a mudana, a tecnologia, aliderana poltica tornam-se objecto do filme e do questionamento so-ciolgico e antropolgico. Em segundo lugar a prtica cinematogrficainserida num processo social e poltico de mudana. Esta prtica cine-matogrfica, cinema olhar (cin-olho), assenta em trs princpios funda-mentais: 1) o cinema como processo de desvelar o real, a actualidade,a vida quotidiana, utilizando todas as tcnicas de rodagem, todas aspotencialidades das imagens em movimento, todas as invenes e m-todos susceptveis de o fazer; 2) a superioridade da cmara em relaoao olhar humano; 3) uma nova concepo de montagem.

    percepo catica do olhar humano e s limitaes impostas pelaimobilidade, contrape as possibilidades do olhar mecnico e mvelda cmara: A cmara, para Vertov, um olho mecnico em perp-tuo movimento, que liberta o homem da sua imobilidade, aproximando-se e afastando-se das coisas, penetrando nelas, deslocando-se, atra-vessando multides, caindo e levantando-se ao ritmo dos movimentos.Esse olhar mecnico organiza a percepo: "se fotografarmos o queo homem viu, obter-se- naturalmente uma grande confuso. Se mon-tarmos habilmente tudo quanto se filmou, o resultado ser um poucomais claro. Se eliminarmos as escrias que perturbam, ainda ser me-lhor. Obteremos deste modo uma memria organizada das impressesde um olhar vulgar [...] O olho mecnico procura s apalpadelas nocaos dos acontecimentos visuais um caminho para o seu movimento oupara as suas hesitaes e experimenta, alongando o tempo, desmem-brando os movimentos ou absorvendo o tempo em si prprio, engolindoos anos, esquematizando assim os processos inacessveis ao olhar hu-mano" (Vertov em Granja, 1981, p.45). A observao da cmara, resul-tado das experincias e da confiana dos operadores, contribui assim

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    para desvendar o real e para educar ou organizar o olhar do especta-dor. Finalmente a montagem: para Vertov cada plano nada valia por si,isoladamente, como as palavras no texto ou na poesia, mas em funodas conexes, da articulao com os outros planos no nada, emsi, fora de qualquer contexto, mas, na relao estabelecida entre ele eos outros, torna-se expressivo do conjunto. Um pouco como um indiv-duo isolado de todo o universo seria reduzido ao insignificante social ecultural e no se conceberia fora de determinaes puramente biolgi-cas, tornar-se-ia pelo contrrio representativo, exprimiria sua maneira,original, irredutvel, um ou vrios conjuntos se a observao fosse sus-ceptvel de o ligar a eles. Enfim, a sua prpria existncia s se situarianecessariamente e ganharia sentido na relao constantemente esta-belecida com este ambiente no qual s pode agir sendo a expressoagida. A construo de um filme poderia ser considerada como umempreendimento metafrico da produo do sentido pelo homem na di-nmica da sociedade que exprime e sobre a qual exerce a sua aco(Piault, 2000).

    A montagem no cinema artstico , para Vertov, a colagem dascenas rodadas separadamente em funo de um argumento mais oumenos elaborado pelo encenador. montagem num filme sem actorese sem argumento, atribuda uma significao diferente e uma impor-tncia acrescida. a montagem que dar ao filme a sua estrutura e asua significao, que far emergir os temas do discurso flmico. A mon-tagem acontece desde a primeira observao at ao filme definitivo: nomomento da observao, depois da observao, durante a rodagem,depois da rodagem, organizao grosso modo daquilo que foi filmadoem funo dos ndices de base e das tomadas de vista para a pesquisadas sequncias, montagem definitiva, reorganizao de todos os ma-teriais na melhor sucesso salientando a ideia chave do filme. Vertovapresentaria assim as seis etapas da montagem (Sadoul, 1971):a) Montagem no momento da observao observao do olho desar-mado em qualquer stio ou momento.b) Montagem depois da observao organizao mental do que se viuem funo de determinados indcios caractersticos (especficos).c) Montagem durante a rodagem orientao da cmara para o lugarinspeccionado (observado /analisado) na primeira fase e adaptao scondies modificadas.

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    d) Montagem depois da rodagem organizao geral (em grosso) doque se filmou em funo dos ndices de base.e) A Olhada busca de fragmentos de montagem, orientao instant-nea das imagens de ligao precisa (necessrias). A regra de ouro quese recomenda trplice: Olhada, velocidade, preciso.f) Montagem definitiva reorganizao de todo o material na melhorsucesso possvel e clculo cifrado de agrupamentos de montagem (in-tervalos).

    O filme O Homem da Cmara de Filmar (1929) constitui como queuma lio visual sobre a metodologia proposta por Vertov de utilizaoda cmara, do processo de montagem, da actividade e do saber fazercinematogrficos. Apresenta um duplo discurso, os olhares sobre umacidade desde que amanhece at ao cair da tarde4 auto-encenao dacidade, "a representao do quotidiano", e a encenao do cineasta, osbastidores do cinema, "os gestos cinematogrficos" (Guronnet: 1987)desde a preparao da rodagem montagem, da preparao minuciosado projector projeco do filme. O filme volta-se sobre si prprio. realista e formalista. Apresenta-se como filme no filme, ecr no ecr,comunica com o pblico ao mesmo tempo que realiza uma descons-truo completa do cinema pelo cinema. Procura dizer a verdade "cinema verdade- e dizer como a produz, indicando o modo de a cap-tar. Poderamos afirmar que o filme seduz e procura a identificao ea adeso do pblico ao mesmo tempo que se distancia, permitindo umolhar crtico, ou talvez mais do que isto um olhar capaz de compreendera prpria produo do filme, a linguagem cinematogrfica, atravs dovisionamento dos prprios mecanismos de criao. O filme constitui umdocumento etnogrfico do quotidiano da cidade e da criao cinemato-grfica.

    Tambm ao nvel da organizao da prtica cinematogrfica (produ-o/reflexo/criao/ ambiente tecnolgico/ processo social e poltico)Vertov se aproximou do cinema etnogrfico (ou o cinema etnogrfico deVetov): em O Homem da Cmara de Filmar : a) uma equipa pequena,familiar dirigida por si prprio, autor supervisor da experincia, Elizaveta

    4 Neste sentido The Man With a Movie Camera (1929) parece aproximar-se dofilme de Rutman, Berlim, Sinfonia de uma metrpole (1927), no entanto este filmes visionado por Vertov dois anos depois de apresentado The Man With a MovieCamera, em 1931 ano em que Manoel de Oliveira realiza Douro Faina Fluvial.

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    Svilova, sua mulher, a montadora ou assistente de montagem, e o seuirmo, Mikhail Kaufman, o principal operador de cmara responsvelpela fotografia; b) uma filosofia ou teoria e prtica do cinema que mar-cou profundamente a sua histria criando espao para reflexo aprofun-dada, debates acalorados e influenciando muitos cineastas (Jean LucGodard, Chris Marker, etc.); c) um grupo de pesquisa, reflexo e inter-veno artstica kinoks que formaliza os princpios (manifestos) dessateoria e dessa prtica, frequentemente denominada de forma sinttica a vida no imprevisto; d) um ambiente tecnolgico5 (tecnosfera) dosfinais dos anos 20 do Sculo XX Cmaras de corda, magazins peque-nos, possibilidades de registo de cada tomada de apenas 1,5 minutos(Lumires 55s) ausncia de som sncrono;6 e) finalmente um contextohistrico e sociopoltico da revoluo sovitica.

    Rouch identifica Vertov como um dos seus mestres, as suas teo-rias contm em potncia todo o cinema de hoje, todos os problemas dofilme etnogrfico e antropolgico, todos os problemas do filme inquritode televiso e o emprego das cmaras vivas de hoje. No tendo re-alizado filmes sociolgicos ou etnogrficos, desempenhou, no entanto,um papel determinante na reflexo e evoluo do cinema documentrio(1966, pp.444-447).

    Podemos acrescentar a estas inevitveis referncias outros nomesque iniciaram ou deram nimo dimenso etnogrfica do cinema: Ed-ward Curtis, Thomas Reis, Jean Vigo, Jean Epstein, Alberto Caval-canti, John Grierson, Walther Ruttmann, Luis Bunuel e Joris Ivens. EmPortugal poderamos referenciar Manoel de Oliveira, Douro faina fluvial(1931) que, na linha do filme das sinfonias urbanas de Cavalcanti, Rienque les heures (1926), Ruttmann, Berlim, Sinfonia de Uma Metrpole(1927) de Vertov, o Homem e a Cmara de filmar (1929), Jean Vigo,A propos de Nice (1930), abordam a cidade. Representando as cida-des poder-se- compreender o que se passa no mundo. Jean Rouch,1917-2004, foi, no entanto, a figura incontornvel e a referncia primeirado cinema etnogrfico no apenas pela quantidade de filmes realizados

    5 Win Wenders em 2003 retoma a tecnologia dos anos 20, cmara de manivelaoriginal no filme The soul of a man na reconstituio de material de arquivo.

    6 A primeira entrevista da histria do cinema mundial com som sncrono foi reali-zada por Vertov entrevista com Belik - a mulher que falava com Bton no filme TrsCantos sobre Lenine (1934).

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    mas pela qualidade das obras, a contnua inovao nos procedimentosde pesquisa, a criao de estruturas fundamentais para o desenvolvi-mento do gnero criao do Comit du Film Ethnographique, do Bilandu Film e Ethnographique, organizao da formao em Frana e suaextenso da formao e da sua influncia aos mais diversos pases daEuropa, frica, Amrica Latina.

    2. Jean Rouch em Portugal, com um aperto demos amigasEn une poigne de mains amies, fleuve qui, par dessous les ponts, ou-vre la porte de la mer. . . foi o filme que Rouch realizou no Porto comManoel de Oliveira em 1996 degustando um porto velho falava com oManoel sobre as pontes do Douro e imediatamente nos pusemos deacordo de todas as pontes a que foi construda por Gustave Eiffel, an-tes de construir a torre de Paris, era a grande obra de arte. Em menosde cinco minutos o projecto deste filme foi criado. Manoel escreveriaum poema que filmaramos com os nossos amigos. O encontro e aideia do filme punham em relao numa mesma obra os dois cineastasamigos, dois filmes Douro Faina Fluvial (1931) de Manoel de Oliveirae Beau Navire (1990) de Jean Rouch, duas cidades, duas formas defilmar a moderna poesia do ferro e do ao (Jos Rgio), as obras dearte de um mesmo engenheiro - Gustave Eiffel. Rouch sempre referiacomo Manoel de Oliveira filmara a Ponte D. Lus a partir do rio Douroem Douro Faina Fluvial (1931) e como ele prprio filmara a Torre Eiffel:o terceiro filme em que consegui um plano-sequncia em que mos-trava o que se passava debaixo das saias da senhora Torre Eiffel. Porisso, deitei-me em cima de um carro e aproximei-me da Torre Eiffel aolusco-fusco [. . . ] o cu estava completamente azul e a iluminao faziacontraste com o cu to azul enquanto ela ficava toda dourada. Por issotinha uma jia de ouro sobre um fundo azul. E eu via a minha Torre Eif-fel debaixo [. . . ] Por isso, tive a ideia de juntar um poema de que gostomuito, que um poema de Baudelaire a uma crioula e que eu, cito decor: Quando andas, com a tua saia larga, varrendo o ar... (Rouch,1992).

    Esta mesma metfora ou associao tinha sido j referida em O

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    Le beau navire

    Je veux te raconter, molle enchanteresse!Les diverses beauts qui parent ta jeunesse;Je veux te peindre ta beaut,O lenfance sallie la maturit.Quand tu vas balayant lair de ta jupe large,Tu fais leffet dun beau vaisseau qui prend le large,Charg de toile, et va roulantSuivant un rhythme doux, et paresseux, et lent.Sur ton cou large et rond, sur tes paules grasses,Ta tte se pavane avec dtranges grces;Dun air placide et triomphantTu passes ton chemin, majestueuse enfant.Je veux te raconter, molle enchanteresse!Les diverses beauts qui parent ta jeunesse;Je veux te peindre ta beaut,O lenfance sallie la maturit.Ta gorge qui savance et qui pousse la moire,Ta gorge triomphante est une belle armoireDont les panneaux bombs et clairsComme les boucliers accrochent des clairs;Boucliers provoquants, arms de pointes roses!Armoire doux secrets, pleine de bonnes choses,De vins, de parfums, de liqueursQui feraient dlirer les cerveaux et les cIJurs!Quand tu vas balayant lair de ta jupe large,Tu fais leffet dun beau vaisseau qui prend le large,Charg de toile, et va roulantSuivant un rythme doux, et paresseux, et lent.Tes nobles jambes, sous les volants quelles chassent,Tourmentent les dsirs obscurs et les agacent,Comme deux sorcires qui fontTourner un philtre noir dans un vase profond.Tes bras, qui se joueraient des prcoces hercules,Sont des boas luisants les solides mules,Faits pour serrer obstinment,Comme pour limprimer dans ton cIJur, ton amant.Sur ton cou large et rond, sur tes paules grasses,Ta tte se pavane avec dtrange grces;Dun air placide et triomphantTu passes ton chemin, majestueuse enfant.

    A bela nau

    Eu te quero contar, lnguida feiticeira,Tudo o que te orna e te faz bela por inteira!Quero pintar tua beleza,Na qual a infncia se conjuga madureza.Quando vais, sacudindo no ar a saia larga,s como a bela nau que rumo s ondas larga,Cheio de vus soltos ao vento,Seguindo um ritmo doce e preguioso e lento.Sobre a robusta espdua e o pescoo rolio,Tua cabea se ergue envolta em graa e vio;A um tempo s triunfante e mansa,Prossegues teu caminho, majestosa criana.Eu te quero contar, lnguida feiticeira,Tudo o que te orna e te faz bela por inteira!Quero pintar tua beleza,Na qual a infncia se conjuga madureza.Teu colo que arfa sob o traje fluido e vrio,Teu colo vitorioso como um belo armrio,Cujos claros gomos convexosComo os broqueis capturam rtilos reflexos;Provocantes broqueis de agudas pontas rosas!Armrios cheios de iguarias to preciosas:Vinhos, perfumes e licoresQue o corao e a mente inundam de torpores!Quando vais, sacudindo no ar a saia larga,s como a bela nau que rumo s ondas larga,Cheia de vus soltos ao vento,Seguindo um ritmo doce e preguioso e lento.As nobres pernas, sob os folhos que se amassam,Os maus desejos atormentam e espicaam,Quais duas bruxas que, ao acaso,Um negro filtro vo mexendo em fundo vaso.Teus barcos, que aos tits enfrentam nas porfias,So slidos rivais das vboras sombrias,Feitos para o fatal abraoE para o amante eternizar em teu regao.Sobre a robusta espdua e o pescoo rolio,Tua cabea se ergue envolta em graa e vio;A um tempo s triunfante e mansa,Prossegues teu caminho, majestosa criana...

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    Tambor (1979) de Volker Schloendorff quando Oskar debaixo da TorreEiffel olha para cima e uma pessoa lhe pergunta o que voc est apensar?. E ele responde, na barra de saia da minha av7.

    O encontro de Rouch com Manoel de Oliveira d-se em 1955, me-diado por Georges Sadoul, no contexto de uma reunio de cineastasrealizada em Paris. Rouch tinha acabado de realizar Les Matres Fous.Este primeiro encontro no pareceu muito promissor mas acabou porcolocar os dois cineastas num caminho de mltiplos encontros e de for-mas de reconhecimento mtuo.

    Seria difcil conceber a presena de Jean Rouch em Portugal an-tes de Abril de 1974. O pas mantinha as colnias e, desde 1960, umaguerra na Guin-Bissau, em Angola e em Moambique. Temas e ideiascaros na obra de Rouch frica, migraes, a Antropologia partilhadaeram interditos em Portugal. Os estudos de terreno na rea das cin-cias humanas eram vigiados pelo regime o gegrafo Orlando Ribeiro,o lingustica Lindley Cintra, os musiclogos Lopes-Graa e Michel Gia-cometti. A Antropologia era quase exclusivamente ensinada no Institutode Cincias Sociais e Poltica Ultramarina onde se formavam os admi-nistradores coloniais. Nestas circunstncias, no obstante Rouch, atento, ter produzido quase uma centena de filmes, estes no eram co-nhecidos em Portugal e na Universidade entrava com mais facilidade apolcia que o cinema.

    Logo aps Abril de 1974 Rouch vem vrias vezes a Portugal, sobre-tudo ao Porto, a convite do director do Instituto Franco-Portugais (Cen-tro Cultural Francs do Porto) Jacques dArthuys, diplomata de carreira,conselheiro cultural em Valparaiso, conselheiro de comunicao do pre-sidente Salvador Allende, ento transferido para o Porto. Segundo JeanRouch foi a que iniciou com dArthuys as experincias em super-8. De-senvolveram conjuntamente a ideia de criar ateliers de super-8 compequenas cmaras sonoras com som sncrono (Rouch, 1979). JeanRouch havia encontrado no formato super 8 uma ferramenta ideal parainiciar um programa de ensino dedicado Antropologia Visual na uni-versidade em Frana. Estes ateliers viriam a ser realizados mais tardeentre 1978 e 1980 em Moambique com o objectivo de formar em tc-nicas do cinema documentrio os quadros e trabalhadores do Centrode Estudos de Comunicao da Universidade Eduardo Mondlane em

    7 Referncia aos primeiros planos do filme O Tambor (1979).

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    Maputo. Esta formao foi realizada por um grupo de jovens cineas-tas - Philippe Constantini, Miguel Alencar, Nadine Wanono, FranoiseFoucault coordenados por Jean Rouch e Jacques dArthuys, ento no-meado conselheiro cultural em Maputo. Durante a sua estada em Mo-ambique, Jean Rouch fez o filme Makwayela, composto de planos-sequncia. Este documento apresenta uma dana originria da fricado Sul, onde vrios trabalhadores moambicanos trabalhavam nas mi-nas de ouro. Este filme chamou a ateno de Jacques dArthuys e JeanRouch para a necessidade de fornecer aos moambicanos ferramentaspara o registo visual e sonoro da sua histria e da efervescncia quereinou entre 1975-1980, durante os primeiros anos da independncia.

    Jean-Luc Godard e Anne Marie Mieville juntaram-se ao projecto du-rante a difuso dos filmes realizados pelos estudantes nas aldeias einteressaram-se pela forma como as imagens eram percepcionadas pe-los camponeses. O projecto de Godard e de Mieville excedeu clara-mente o mbito de formao em que os jovens realizadores estavamimplicados. Eles negociavam com os lderes moambicanos a propostade uma televiso em Moambique. Este projecto,8 intitulado o nasci-mento de uma nao, questionava os modos de comunicao numateleviso do Estado, previa uma colaborao entre a sua empresa deproduo Sonimage e o governo de Moambique e inspirava-se na ex-perincias que Armand Mattelart junto de Salvador Allende. Este pro-grama da televiso nunca se veio a realizar.

    As experincias desenvolvidas no Porto e em Moambique sob ainfluncia de de Jacques dArthuys contriburam definitivamente para onascimento em 1981, dos Ateliers Varan - Association Varan Ateliers,membro do CILECT (Centre International de Liaison des coles de Ci-nma et de Tlvision) e consultora da UNESCO. Embora fundada emJaneiro de 1981, a sua origem remonta a meados dos de 1970 em Por-tugal e em finais da mesma dcada em Moambique. Deveu-se sobre-tudo influncia de Jacques dArthuys, ao encontro com Jean Rouch e

    8 Ver a propsito o filme Kuxa Kanema - O Nascimento do Cinema (2003) deMargarida Cardoso que documenta esta poca da histria do pas e do nascimento docinema em Moambique. Particularmente interessante a diversidade de cinemas queso propostos e realizados baseados nas mltiplas influncias (Jugoslava, Francesa,Brasileira, etc. . . ) e a relao do cinema com a construo da nova nao ou maisambicioso que isto de um Homem novo, de uma sociedade nova.

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    proposta feita por ambos a vrios cineastas para irem filmar o que sepassava em Moambique. Neste contexto propor que os moambica-nos se filmem eles mesmos. Propondo-se formar os futuros cineastasatravs da iniciao realizao de filmes documentrios. O desenvol-vimento e a disperso pelo mundo desta primeira experincia, reuniualgumas dezenas de profissionais (realizadores, montadores, operado-res, engenheiros de som, etc.) que, mais tarde viriam a criar os AteliersVaran transmitindo suas prticas profissionais em estgios e ateliersque organizam (Mariana Otero).

    Philippe Constantini antes da estada em Moambique, tinha vindopara Portugal em finais de 1974 decidido a ficar.Encontrara Jean Rouch9

    na Universidade de Nanterre em 1969 quando este dirigia o curso deCinma et Sciences Humaines. Constantini estudava no Departa-mento de Sociologia e Etnologia daquela Universidade. Em Portugalparticipou no filme Mscaras (1976) de Nomia Delgado como enge-nheiro de som e na Cinequipa trabalhou no filme Arcozelo: procurados restos das comunidades judaicas (1977) de Fernando Matos Silva.Leu Jorge Dias e com apoio da Fundao Calouste Gulbenkian partiuem 1976 para Vilar de Perdizes onde realiza com Anna Glogowsky Terrade Abril (longa-metragem), INA, Frana, 1977; Les cousins dAmrique,INA, Frana, 1984, Lhorloge du village, INA, Frana, 1989. Estes filmesso rodados no interior norte de Portugal, Vilar de Perdizes, Montalegre,nos Estados Unidos, Massachusetts e nos arredores de Paris - Meudon,Hauts-de-Seine. Em Terra de Abril tem a inteno de filmar o Auto daPaixo, realizado ao vivo com pessoas da aldeia que interpretam as per-sonagens da Paixo de Cristo, ento realizado regularmente na alturada Pscoa, e as primeiras eleies para a primeira Assembleia da Re-pblica realizadas em 25 de Abril de 1976 [PS 34,89, o PSD 24,35,o CDS - 15,98 e o PCP 14, 39]. O filme Terra de Abril (Vilar de Perdi-zes) (1977) aborda a vida quotidiana da aldeia em tempo de eleiesque coincide com a preparao e representao do Auto da Paixo. Osegundo filme da trilogia de Philippe Constantini, realizado em Portugal, Les cousins dAmrique (1984). O filme rodado em Vilar de Perdizesonde um emigrante constri uma imensa manso, estilo americano, com

    9 Em 1985, Constantini colabora com Rouch, como operador de imagem, no filmeFolie ordinaire dune fille de Cham, sobre as relaes entre habitantes da Martinicainternados num hospital psiquitrico em Paris, h mais de 50 anos.

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    uma enorme piscina interior e em Massachusetts onde pequeno em-preiteiro. A casa confina a megalomania. O seu proprietrio afirma quequando vem de frias trabalha muito para fazer a casa que sua mulherainda no conhece a no ser por fotografias. Em Massachusetts re-criam a cultura local de Vilar de Perdizes - matana do porco, cultivo davinha, a rede de sociabilidade. Praticam clandestinamente, num terrenovazio, certos actos proibidos como a matana do porco. Embora te-nham trocado o mundo rural tradicional pelo mundo ps-industrial seuscomportamentos adaptam-se a esta situao conciliando no seu quo-tidiano prticas pertencentes a um e outro dos mundos em presena.Esta conciliao uma constante na emigrao dos anos de 1960 e 70para a Europa em que o nacional no medeia a ligao do local com otransnacional. A emigrao como salto (Christian de Chalonge). Saltoera a histria da emigrao clandestina de emigrantes indocumentados,mas tambm a separao e as rupturas brutais (sociais e culturais), adesobedincia e a resistncia ou mesmo a fuga. Alguns emigrantesapelidaram-se de fugitivos (Madeira), eram por vezes desertores, oucomo tal considerados, que precisavam de amnistia para regressaremao pas. Doze anos depois Philippe Constantini realiza Lhorloge du vil-lage, 1989. Neste filme o realizador filma um casal, originrio de Vilarde Perdizes, no seu prprio pas, Frana regio parisiense. A mulher empregada domstica em Meudon (comunidade na regio administra-tiva de le-de-France, no departamento de Hauts-de-Seine, na periferiasudoeste de Paris) e seu marido taxista (chauffeur de txi). Constantinialojara-se, durante as estadas no terreno e a realizao do filme, numacasa enorme e bem mobilada que este casal construra em Vilar de Per-dizes que contrastava com o exguo alojamento em Paris e mesmo comos apartamentos onde fazia limpezas. O realizador assume um posici-onamento de maior proximidade, filma a partilha e a relao construdacom o casal e a vinda destes a Portugal. Tambm o alemo ThomasHarlan, na dcada de 1970, com Jacques dArthuys realizou um filme,Torre Bela (1975) com o apoio da Agncia Francesa de Imagens sobreo que ia acontecendo em Portugal, partindo de um caso aparentementenico em que exrcito colonial portugus parecia transformar-se no em-brio de um exrcito popular. O filme aborda a ocupao da herdadeTorre Bela.

    Por c havia alguns contactos dos exilados, jovens que recusavam

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    ir para a guerra, emigrantes, que assistiam em Paris aos seminrios efilmes de Rouch ou liam obras de Antropologia antes de realizar seusfilmes. Assim a sua influncia rompeu as barreiras do regime e algunsrealizadores associavam na sua obra cinematogrfica a ideia de cinemacom a de Antropologia (ou de Antropologia Visual) e de filme etnogr-fico como Antnio Campos em A Almadraba Atuneira (1961), Vilarinhodas Furnas (1971), Falamos de Rio de Onor (1974). Estes dois lti-mos realizados a partir das obras homnimas de um dos fundadores daAntropologia em Portugal Jorge Dias.

    Antnio Reis exaltava nos seus filmes uma certa nobreza do real,da natureza e do humano com uma forte carga potica em Jaime, 1974e Trs-os-Montes, 1976. Este ltimo filme mereceu de Rouch um largoelogio. Numa carta dirigida ao Centro Portugus de Cinema em 1976escreve: Para mim, este filme a revelao de uma nova linguagemcinematogrfica. Nunca, tanto quanto sei, um realizador se havia em-penhado, com tal obstinao, na expresso cinematogrfica de uma re-gio: quero dizer, a difcil comunho entre homens, paisagens e esta-es. S um poeta insensato poderia exibir um objecto to inquietante.Apesar da barreira de uma linguagem spera como o granito das mon-tanhas, aparecem, de repente, na curva de um caminho novo, os fan-tasmas de um mito sem dvida essencial j que o reconhecemos antesmesmo de o conhecer.

    Ricardo Costa regista, com recursos escassos, os passos de umarevoluo inesperada (Cravos de Abril - 1974/76) e corre o pas, escre-vendo no real, improvisando ao sabor dos eventos : mar, plancie, mon-tanha. E acerca de Rouch filma Paroles, conversas com Jean Rouch emLe renard e Le corps tranger com Jean Rouch e Germaine Dieterlen.

    NosCem anos do cinema organizado pelo Instituto Franco-Portugais,e com alguma frequncia nos mltiplos eventos que o Instituto organizasobre o cinema Francs (1989, 1992, 1993, 1995), contactei pela pri-meira vez com Jean Rouch e com seus filmes. Em 1992 por ele convi-dado, participei na apresentao pblica do Museu do Homem da tesede Doctorat DEtat de Annie Comolli e no ano seguinte filmamos parteda conversa com Rouch que apresentamos em Filme Etnogrfico e An-tropologia Visual (2004) a segunda parte encontro com Manoel deOliveira foi filmada em 1995 aquando da presena de Rouch na Mostrade Cinema Etnogrfico Francs, organizada pela Universidade Aberta

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    (CEMRI) e Instituto de Cincias do Trabalho e da Empresa (CEAS). Esteperodo marcado pela apresentao sistemtica da obra de Rouchem Portugal tendo como acto fundador o Seminrio de Investigao emAntropologia Visual orientado por Marc Piault no Porto em Setembro de1993.

    Rouch participa ainda na comisso de honra (jri) de doutoramentohonoris causae de Manoel de Oliveira na Faculdade de Arquitectura daUniversidade do Porto (1985) com quem mantm relaes de amizadee o identifica como sua esperana de vida (Oliveira completar emDezembro de 2008 100 anos). Como na realizao do filme En unepoigne de mains amies, Rouch percorreu muitas vezes a cidade e asmargens do Douro a p, de automvel, de helicptero, voltando aospassos anteriores, inspirado pelo vento, pelo rio e pela amizade.

    Em Fevereiro de 2004, quando realizvamos com Srgio Bairon daPUCSP um workshop em Antropologia Visual e Hipermedia no Porto,com os parceiros que fizeram connosco o percurso dos encontros comJean Rouch, recebemos a notcia de sua morte. Este filme ou, a monta-gem destas imagens e o hipermedia Antropologia Visual e Hipermedia(2007) foram a nossa homenagem ao mestre e ao amigo recordandouma das afirmaes de Rouch:

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    Une poigne de mains amies (1996)

    ENTREVISTA10 COMENTADA COM JEANROUCH

    1. De Vertov e Flaherty a Jean Rouch - Condi-es para a realizao do cinema etnogrfico Em 1923, Dziga Vertov dizia: Sou o cinema-olho, sou o olho mec-nico, sou a mquina que vos mostra o mundo como s ela o pode ver.Setenta anos depois, esta afirmao pode definir o cinema etnogrfico?

    No pode defini-lo mas, de algum modo, pode ser condio parasua realizao. Se no fizermos o que afirma, no vale a pena fazercinema. Para falar em linguagem matemtica poderamos dizer que uma condio necessria mas no uma condio suficiente. Paratentar captar os momentos de realidade necessrio: 1o estar sozinho;2o conhecer suficientemente as pessoas com quem se trabalha e 3o

    [dominar a tcnica] que a tcnica no seja um obstculo.Quer dizer, fazer o que dizia Vertov: fazermos, ns prprios, uma

    tcnica do corpo que permita deslocarmo-nos com uma cmara.11 ComClaudine de France tivemos aulas de ginstica dadas pela mulher domimo Marcel Marceau12 que nos ensinou a fazer respirao ventral.

    10Tentaremos manter o mais possvel na entrevista as marcas da oralidade e acres-centar notas que nos permitam entender melhor a densidade da lio de Jean Rouch.

    11 Actualmente no Master recherche arts, lettres et langues; Mention cinema; Spe-cialit: cinmas, arts et cultures 2007/2008 existe ainda o ensino das Techniquescorporelles du tournage la main (Caroline Lardy, Nadine Michau, Anja Hess) -www.u-paris10.fr/servlet/com.univ.utils.

    12 Descendente de judeus mortos em Auschwitz, Marcel Marceau elevou a mmicaa uma forma de arte suprema, o poeta do silncio que foi, aps a Segunda Guerra

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    Respirar, estar estvel. . . Ter, num dado momento uma noo do es-pao, que se tem nos msculos. Por exemplo, o que ela nos mandavafazer era pegar num copo, imagina que isto um copo, p-lo num outrolugar e sem ver voltar a p-lo no antigo lugar. Ter esta noo instant-nea de espao e isso est nos msculos. Mesmo um pequeno olhar, acmara v-lo-. V-lo-emos mais tarde.

    No ficar embaraado com a tcnica. Conhec-la. a lio deVertov. Tive mestres como Vertov, que escreveram toda esta teoria eque a aplicavam. Mas, a cmara isso. Foi ele o primeiro a fazer ci-nema sonoro em Entusiasmo (1929), a gravar o som real. Toda a gentedisse: um escndalo, uma porcaria, muito barulho, s CharlesChaplin que lhe enviou um telegrama a dizer: Som industrial, sommaravilhoso! Por isso, foi algum que pegava na verdade tal como erae com um mnimo de intermedirios [mediao], tentava grav-la emimagens e/ou sons. A segunda personagem essencial, para mim, foiRobert Flaherty. Robert Flaherty no escreveu nada como teoria. Anica teoria que escreveu e que penso que ter sido suficiente, comoum livro inteiro. . . Dizia: Penso que o cinema do futuro ser feito pelosamadores. Quer dizer, pessoas que gostam do que fazem. Creio que um pouco a definio que posso aplicar a mim prprio. Flaherty desem-penhou um papel muito importante para mim. O primeiro filme que vina minha vida foi Nanook of the North (1922),quando tinha cinco anos.Por isso, entrei no cinema com Flaherty, mais tarde com Vertov, depoisdescobri a cinemateca francesa, e todo o resto. . . .

    Voc participou nos seminrios de Flaherty, na Califrnia.Sim, a viva de Flaherty convidou-me para apresentar na Califr-

    nia Moi, un noir (1958) e outros filmes, e a encontrei toda a equipa docinema canadiano: Michel Brault, Claude Jutra, todas as pessoas comquem filmmos Chronique dun t. Se quiser, o cinema umamfia in-ternacional, a prova que estou aqui. Pessoas que esto apaixonadaspelo que fazem, e sempre disponveis a aprender. Quando filmei Ch-ronique dun t, um filme que fizemos com Edgar Morin, em 1960. O

    Mundial, o artfice do renascimento da arte da pantomina. Durante muitos anos, comuma sensibilidade tocante, a figura frgil e bela do arlequim denunciou tenazmente ocomodismo, o egosmo, a covardia, a mesquinhez, a misria e a prepotncia da espciehumana, elevando a mmica a patamares nunca antes atingidos, e erguendo bem alto achama eterna e libertadora da expresso artstica.

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    cinema comeava a ter som que podia ser sncrono, mas os aparelhosno eram isolados, faziam barulho. No se sabia fazer isso muito bem.Eu tinha tcnicos, excelentes tcnicos, e um dia pedi-lhes para anda-rem na rua com uma cmara e eles disseram-me: No aprendemosisso. Ento chamei o Michel Brault. Michel Brault ensinou-nos a andar,a utilizar as objectivas intermutveis as grandes angulares, etc. Estva-mos assim prontos para filmar em qualquer espao, sem luz, em menosde quinze segundos, e dizia: A luz real insubstituvel. Aprendemoscom ele a subir num autocarro [filmando]. Seguimos um operrio quese levantava de manh, subia para um autocarro, ns subamos com acmara, descamos com a cmara e ele treinava, todas as manhs, istoassim parece fcil [mas no ]. Morava, ainda mora, beira do rio Ri-chelieu, perto de Montreal e todas as manhs fazia uma milha, um qui-lmetro e cinco, andando para a frente e para trs e, na ida, tinha visto,dizia ele, uma pedra que era preciso evitar. Era a mesma coisa que nostinha ensinado a viva de Marcel Marceau. Isto , poder sentar-se numapoltrona, sem olhar para ela. isso a arte do mimo. Fazamos tambmum pouco de teoria [reflexo] sobre mmica. Reflectamos que as pes-soas s tm o rosto para se exprimirem, por isso, devem deslocar-sede um modo contnuo, calmo. Sem isso, se andarmos assim, ao fim decinco minutos, os espectadores esto cansados e j no podem seguir.Ns andvamos de modo completamente anormal, pondo a ponta do pantes do calcanhar para no... O outro elemento amortecer estes mo-vimentos. Por isso pensamos: a cmara deve ser o rosto do mimo se forlevada na mo.13 Se fizermos uma ginstica de mmica para aprenderestas coisas isto torna-se completamente natural.

    2. Richard Leacock eMario Ruspoli Cmaraviva (living camera) e cinema directo o que se pode chamar a cmara viva?

    A cmara viva foi Leacock que nos ensinou isso, j tnhamos vistoantes vrios desses nomes em muitas salas do cinema verdade, emhomenagem a Vertov, mas a mais bela frmula era de um dos nossos

    13 Ver Tcnicas corporais de rodagem mo de Claudine de France.

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    colegas que infelizmente j morreu - Mario Ruspoli14, um homem quegostava dos carros de corrida como Rossellini. Nos carros de corridaantigos a coisa mais importante era o que se chama a tomada de vistasdirecta, quer dizer a quarta, na qual o motor faz directamente marcha-atrs sem intermedirios. a que tem o melhor rendimento. Segundoele, o cinema que fazamos tinha uma tomada directa sobre a reali-dade. um jogo de palavras automobilstico e cinematografista emque comparamos a tomada de imagem tomada directa. um cinemaque capta directamente a realidade. Foi ele que fez a mais bela [clas-sificao, nomeao, associao] por isso que se chamava a estecinema o cinema directo. H alguns anos, quando vim pela primeiravez ao Porto foi para abrir [um atelier de tomada directa] com JacquesDArthuys. No posso deixar de pensar nele com uma imensa tristeza.Morreu uma noite no Rio de Janeiro. Tnhamos aberto aqui os ateliersde tomada de vistas directa que exportmos para Maputo, Moambique,que voltaram para Frana, os ateliers Varan que foram para a Amricado Sul e que, at ao fim da vida, Jacques DArthuys tentava abrir emtodo o lado - o cinema directo. Era o que estava a fazer quando estavano Rio. Por isso, para ns isto uma religio. Um dos meus colegas,Baratier fez um filme depois de Chronique dun t (1961) que se cha-mava Drage au poivre (1963).Nesse filme, Drage au poivre, fala-secontinuamente, eu tenho a minha cmara tu tens a tua cmara e o teumicro-gravata. ao acontecer tudo isto que ele filma a brincadeira.Efectivamente, verdade que uma brincadeira, mas isso influenciouquase tudo o que fazemos hoje.

    3. Equvocos do Cinema-Verdade Realidadee fico no cinema directo Voltemos a Vertov. No manifesto de 1920 escreve: O drama cinema-togrfico o pio do povo. Ser que traduzir o acontecimento na suadimenso mais objectiva, mais verdadeira, a funo e o objecto dofilme etnogrfico?

    Sim, podemos dizer, um a propsito de Dziga Vertov, que era de

    14 Mario Ruspoli filmou em 1958 Les hommes de la baleine (24 min) nos Aores.

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    uma poca15 muito especial. verdade, mas no uma razo paraeliminar a fico. Para mim a fico to verdade como a realidade. Apartir do momento em que aprendo as regras do jogo, que parecem ab-surdas, [construo] praticamente a improvisao total. E aprendi issoem frica. Trabalhando com analfabetos, sigo tradies orais. E nuncaescrevi nenhum argumento seno para pedir dinheiro aos produtores.Em geral, os filmes que fao no tm nada a ver com o argumentoque estava escrito. Para mim, o grande momento a improvisao. Eapercebemo-nos de repente por isso que preciso moderar Vertov.A presena de uma cmara muda tudo. Fazemos em frente de umacmara, mesmo se as pessoas no a vem, o que normalmente nofaramos. Isto uma das chaves da liberdade. Tem um exemplo: umdos primeiros filmes que fiz, fi-lo com uma pequena cmara Bel-Howellque era preciso dar-lhe corda de 25 em 25 segundos, no filme Jaguar[filmado em 1954]. Trs dos meus amigos africanos tentavam atraves-sar socapa [clandestinamente] uma fronteira, a fronteira do Togo e ofuturo Gana, a Gold Coast [Costa do Ouro] na altura, sem documentos.No encontrmos como. No sabamos o que fazer. Havia feitios, ha-via tudo o que se quisesse. J no sei quem se lembrou disso, se foiDamour, se fui eu, porque improvismos foi colectivo. E se filmasseso polcia encarregado do controlo? Podamos passar por trs. E entofilmmos o polcia e na imagem, vemse as pessoas que passam portrs. Atravessaram, de facto, ilegalmente a fronteira porque eu filmavaum polcia que estava todo orgulhoso por estar a ser filmado. Aqui estum exemplo de como a fico muda as coisas. Depois disto, como tinhavisto a cmara, voltou-se. Tudo possvel com uma cmara.

    15 Em 1929, ano da apresentao pblica do filme O homem e a Cmara de Filmara situao poltica na URSS mudou substancialmente. Assim o filme foi produto dapoca herica da revoluo bolchevique, uma das ltimas manifestaes de agitaode efervescncia criativa que se lhe seguira, antes de os entraves do realismo socialistavirem reprimir a stima arte. Sobre o pretexto da colectivizao e da industrializaovai surgir uma verdadeira guerra civil contra o povo e neste novo contexto a vidahumana perdeu o valor, o indivduo encontrava-se agora indefeso perante o Estado. Ovoluntarismo e a mobilizao popular da primeira fase da revoluo chegara ao fim. Avida no imprevisto no tinha mais sentido e os objectivos do cinema definidos porLenine tambm no.

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    4. Montagem do Filme Etnogrfico - Regra dasaproximaes sucessivas E a montagem, no filme etnogrfico? No constitui uma reconstruodo real?

    Claro, claro, a partir do momento em que, qualquer coisa, um ritual,ou uma tecnologia que dura um dia, dois dias, trs semanas reduzidaa um, dez ou vinte minutos, esta espcie de contraco do tempo ab-solutamente normal. E a que se torna complicado. Est a talvez aparte mais importante que consiste em dar essa noo do tempo comum tempo abreviado (encurtado) - talvez meio, dois teros, trs quar-tos. . . Isso complicado e difcil de fazer. Por isso, o mtodo que aplico,e vale o que vale, consiste, antes de mais, em que a montadora nodeve assistir filmagem [rodagem]. [Sabes por que so mulheres quemfaz a montagem? Talvez porque so elas que do luz. isso, so par-teiras, do luz. Do luz uma criana difcil de nascer que um filme].Por isso s v o que est no ecr. Ela no ver seno o que filmamos.Eu digo: Mas havia algum que olhava para mim, ento porque queno filmaste? Por isso ela no tem de saber mais. S v o que estali e naquele momento. Comea um trabalho em que conta a histriaque eu quero contar, simplesmente com as imagens que tenho e aque entramos numa operao que extraordinria, numa colaboraoa dois. Eu, compar-la-ia, facilmente a, enfim... ao que eu chamo umpiano a quatro mos. Tocamos todos a mesma histria e a a regra dojogo curiosamente a mesma regra das Ponts et Chausses. O que meensinaram na Escola de Ponts et Chausses foi a regra das aproxima-es sucessivas, uma regra da arquitectura de hoje. No se pode fazera montagem de um filme de uma s vez. Por isso, tenta-se, e, se noresulta, pouco a pouco, suprimindo uma imagem, encontrando uma as-tcia, chega-se a contar uma histria que se passa, digamos, num dia,em alguns segundos. Isso extraordinrio e, nesse momento, o queaparece , com certeza, ser fiel ao que gravei mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa de completamente diferente, tornou-se um espectculo,tornou-se qualquer coisa que se pode dar a ver a outros e esperamosque os outros possam compreender. Por vezes somos muito tentadosa no fazer isso. Eu fiz muitos filmes em plano-sequncia, isto , pla-nos em que se respeita a durao do tempo. Primeiro, complicado

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    e raramente se consegue. Penso que os melhores filmes que pude fa-zer e nos quais aprendi tudo o digo agora foram os primeiros filmes em16 milmetros que Braunberger16 produziu, como Matres Fous (1955)e outros que ampliou para 35mm. Nessa poca, em 1954, 55 no haviamesa de montagem de 16mm. Ainda se colavam as imagens raspandocom uma grande navalha de barba, carregando com o polegar. A mesade montagem, moviola, s existia em 35. Por isso Braunberger amplioutodos os filmes para 35 milmetros e pediu a uma montadora, SuzanneBaron, que tinha sido a montadora de Jacques Tati, em Les Jours deFte (1949), para montar esse filme que parecia um filme sem ps nemcabea [Matres fous], muito difcil de compreender. Eu tinha filmado emdois dias um ritual que era muito difcil de compreender, tinha imagenspor vezes muito duras. O filme foi filmado em dois dias e montado em 3meses. Primeiro, porque no era sncrono mas o som era real. Por isso,a primeira coisa a fazer era tirar do som o momento em que se ouvia obarulho da cmara, peg-lo um pouco antes ou um pouco depois. Erapreciso sincronizar, era o mesmo som mas no eram exactamente asmesmas coisas que l estavam, que (eram) ditas. Segundo, porque secontava uma histria louca e nessa histria as pessoas falavam uma ln-gua que ningum compreendia. Por isso era preciso ter uma traduoto fiel quanto possvel [da fala] do que tinha sido filmado. Terceiro, erapreciso fazer um filme. De repente apercebi-me que a montagem estquase distncia de uma imagem. A montadora Suzanne Baron, quefazia a montagem, deixava colada, como sempre, sobre a mesa, as ima-gens de um plano de montagem. Voltava no dia seguinte, revia algumas,acrescentava duas, suprimia uma e, a um dado momento, chega-se aotempo perfeito. Eu aprendi isso curiosamente com o prprio JacquesTati.

    Quando fiz a montagem de Matres Fous, como era muito longo,Jacques Tati tinha-me vindo perguntar se podia utilizar a sua mulher damontagem e a minha mesa de montagem para um filme que estava a

    16 Pierre Braunberger realizador, actor e produtor, produziu alguns dos filmes deJean Rouch Les fils de leau (1948), Jaguar (1953), Les Matres fous (1955),Ma mreleau (1955), La Chasse au lion larc (1957), Moi un Noir (1958), La pyramide hu-naine (1959), La punition (1960), La fleur de lge = Les adolescents : Les veuves dequinze ans (1964), Petit petit (1970) Dionysos (1984). No seu estdio Lhomond des-cobriu novos talentos da Nouvelle Vague Jean-Pierre Malville, Franois Truffault,Jean-Luc Godard, Alain Resnais.

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    fazer. Bom, eu concordei e ele vinha todas as noites e eu perguntei-lhe: Mas, Senhor Tati, qual o filme que est a terminar? E ele diz:Les Vacances de Monsieur Hulot (As frias do Senhor Hulot). LesVacances de Monsieur Hulot (1953) estava nas salas h trs meses. Elecom Suzanne Baron, tinham duas cpias, iam s salas, acrescentavam,na minha mesa montagem, duas ou trs imagens, viam se as pessoasriam mais (ainda riam) e, pouco a pouco, trs meses depois de ter sadoo filme, afinou-o [apresentou outra verso final]. Aqui est o que amontagem do cinema. E isso, eu aprendi com esse homemmaravilhoso[Jacques Tati]. Ele dizia-me: O mais difcil no cinema o gag, o fazerrir. Diz ele: pena que no haja uma meia imagem, era uma meiaimagem... No chegmos a tempo (falhmos). Estava a um centsimo.Era a centsima parte anterior que era necessria, infelizmente no atemos.

    Tive a sorte de trabalhar com pessoas como estas, que viam queeu fazia filmes completamente diferentes deles e que eram seduzidos(eram cativados) pelo facto de eu trabalhar com Suzanne Baron e comum produtor como Braunberger que tinha produzido Buuel, Renoir, Go-dard, etc.. Por isso, evidentemente, eu estava muito orgulhoso, sim,estava orgulhoso, verdade porque tive os melhores mestres que sepodia ter.

    5. A Ideia, a Improvisao, a Tcnica A bici-cleta no faz um campeo Em que que a tcnica influencia o filme etnogrfico, sabendo quehoje os meios de expresso do visual esto, de uma certa forma, aoalcance de toda a gente?

    No. completamente falso. No verdade, no verdade... Pri-meiro, esto ao alcance de toda a gente como uma bicicleta mas nemtoda a gente o Fausto Coppi. No exageremos! H outra coisa, necessrio diz-lo, o olhar, [o ponto de vista]. No sei se porquesou engenheiro, mas nunca marco, nunca fao o meu enquadramento.Fao o meu enquadramento e ele muda sempre de lugar. Como seiandar com uma cmara, enquadro-te aqui, assim [faz gesto de enqua-dramento], e sei que a um dado momento, vais levantar-te. . . No mo-

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    mento em que vais levantar-te, tenho de esperar que num dado mo-mento quando nos levantamos, olhamos um pouco para o ar. a quese v. Por isso, a sequncia... Levanto-me, volto a captar-te. isso, conhecer muito bem esta profisso. Comparo isto ao msico do ver-dadeiro jazz, ao msico que nunca tinha feito [estudado] solfejo. Pes-soas como Louis Amstrong. . . Lembro-me de Duke Ellington, que ocampeo do improviso, que precisava de ter vrios msicos e que, nomomento certo, de repente, entrava na msica. O cinema isso. Numdeterminado momento com uma cmara entramos num filme e maisnada. No paramos seno quando j no h pelcula, no fim de ummomento.

    Antigamente quando tinha uma pequena cmara com 25 segundosde autonomia, no mximo, eu dizia que quando se faz a montagem que se pensa. verdade. Mas a partir do momento em que obtivemoscmaras que permitiam fazer planos de 10 minutos, isso acabou. So-mos tentados pela ideia do plano-sequncia. Fiz mais ou menos 150filmes, at hoje s consegui verdadeiramente trs planos-sequncia. E,posso dizer, que dessas trs vezes foi minuciosamente preparado. Voudar os trs exemplos. O primeiro plano de sequncia [que fiz] era um ri-tual de possesso,17 quando um danarino vai ser possudo. Ora, o queeu queria fazer era v-lo antes e que a possesso acontecesse poucomais ou menos ao meio do filme ou antes 5 minutos de terminar. A preciso observar bem. preciso conhecer um pouco o acontecimentoque se vai passar, ver quando as pessoas comeam a entrar em transe.Ests a ver, como se falasses com um bbado. Sabes que ele vaicair em cima da mesa. Se queres filmar, preciso comear a faz-lo5 minutos antes que ele tenha bebido de mais e caia. complicadover isso. Mas isso que se pede. Filmei um plano de sequncia destemodo, com um homem que est possudo em frente da cmara e quefazia este gnero de ritual. Fiz talvez dez experincias [tentativas, re-peties]. Quando acontecia demasiado cedo ou demasiado tarde nofuncionava. O segundo, um filme de fico que se chama Gare duNord (1964) que fiz com uns colegas da Nouvelle Vague, como Godard,Rohmer, Paris Vu par... (1964) A filmei um plano-sequncia de duasvezes dez minutos. A ligao era feita no elevador, porque s tnhamosdez minutos de autonomia. O primeiro plano, comemo-lo sete vezes

    17 Trata-se do filme Tourou et Bitti - Les tambours davant (1971).

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    e escolhemos a quinta. Ao fim de sete vezes as pessoas j no sa-biam o que diziam, por isso acabou. E o plano no exterior comemo-loquatro vezes e ficmos com o primeiro, porque era o melhor. difcilde fazer. . . O terceiro filme em que consegui um plano-sequncia umfilme de dois minutos sobre a Torre Eiffel. A ideia tinha partido de algunsde realizadores para fazer um filme de dois minutos sobre a Torre Eiffel.Eu tive a ideia, muito indecente, de ir ver o que se passava debaixo dassaias da senhora Torre Eiffel. Por isso, deitei-me em cima de um carro eaproximei-me da Torre Eiffel ao lusco-fusco. O sol j se tinha posto masainda no totalmente noite. O cu estava completamente azul e a ilu-minao fazia com que a torre, [em contraste com] cu to azul, ficassetoda dourada. Tinha assim uma jia de ouro sobre um fundo azul. Eeu via a minha Torre Eiffel debaixo. Por isso filmei assim e rodei, e aest Torre Eiffel... Vamos embora j tenho a Torre Eiffel ao contrrio,em 2 minutos. Havia, no entanto, uma dificuldade, recomecei, mas noconsegui. A dificuldade que havia um pequeno passeio e tinha havidoum choque [passo em falso e abano, movimento brusco de cmara].Por isso, tive a ideia de colocar por cima das imagens um poema deque gosto muito. Um poema de Baudelaire a uma crioula que, cito decor: Quando andas varrendo o ar com o a tua saia larga (assim estaresolvido o filme a Torre Eiffel.. Le beau navire, 19) Fazes-me pensarnum navio que se faz ao largo, e vai andando seguindo um ritmo deserenos suaves e preguiosos balanos. Eu coloquei quando andasno momento do choque [abano. . . ]. Assim a palavra tornava invisvelo choque da cmara. Trs planos-sequncia em 50 anos de prtica no muito. O plano-sequncia muito difcil. Evidentemente o exemplo dofilme La Corde (1948), de Hitchcock estava penosamente preparado.Era um truque de encenao, em cada plano, todos os movimentos decmara estavam preparados. Isso uma grande arte.

    6. Como Fazer um Filme Saber para onde sevai, formao tcnica, ver filmes Segundo o Senhor, qual deveria ser a formao de algum que querfazer filmes etnogrficos?

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    Primeiro, aprender a fazer versos latinos.18 O latim uma coisaessencial que se abandonou. Foi um erro enorme, os grandes poetasfranceses faziam versos latinos, Rimbaud, Baudelaire, que acabei decitar, faziam versos latinos. Porqu? Porque um verso latino constri-se pelas ltimas palavras, para obter a rima. Por isso, constri-se aocontrrio, o cinema isso. A narrativa cinematogrfica deve saber paraonde se vai. Assim monta-se um filme ao contrrio. Parte-se da ltimaimagem e faz-se a montagem para sabermos para onde vamos. E assim que eu fao a montagem e tambm assim que fao a realiza-o. Plano a plano. Eu filmo, sempre que possvel, os meus filmes, nemsempre possvel, por ordem [sequncia temporal]. Como tenho cen-rios naturais, no h cenrios a construir, fcil partir de uma histriae saber como terminamos cada sequncia e a, de repente, h um mo-mento extraordinrio, quando se filma com pessoas que improvisam, euprprio improviso e a um determinado momento, algum tem a ltimapalavra e ter a ltima palavra contar uma boa histria. Em francsdizemos uma histria sem ps nem cabea. A cabea est frentedos ps, por isso que muito importante sabermos para onde vamos. isso que faz o raccord. Na dana a mesma coisa. O importante aparagem. Em msica a mesma coisa, a pausa, por isso, a primeiracoisa aprender esta espcie de ritmo, de montar as coisas pelo fim.

    A segunda coisa aprender a manipular e, se possvel, fazer umaformao tcnica completa. Eventualmente, argumento, se no se for

    18 A ligao da poesia ao cinema foi tambm referida por outros realizadores. Ei-senstein formulava a sua prtica de montagem a partir do estudo dos ideogramasjaponeses que com traos aludem simbolicamente s coisas representadas. Eisensteinassinalava que a justaposio do signo olho ao signo agua resultava o conceitopranto (lgrimas). Aplicado ao cinema implicava toda uma dialctica, porque aconjugao das duas imagens sucessivas poderia estabelecer uma relao causa efeitoentre elas. Paralelamente esse achados, que traziam ao espectador determinadas per-cepes dos elementos narrativos, no poder esquecer-se que a montagem tambmpor definio, uma forma, de dar ritmo ao relato como se tratasse de msica, ou dosversos do poema. Frances Flaherty, para explicar a arte do seu marido, referia-se poesia japonesa haikai: a forma como os velhos mestres do Haiku renem os trsversos do seu poema seria semelhante do cineasta que junta as tomadas de vista doseu filme. Num esprito idntico, Tarkovski invoca a poesia haikai: Os poetas japo-neses sabiam exprimir a sua relao com a realidade. No observavam apenas, massondavam com calma, sem v agitao, o sentido eterno. Quanto mais precisa aobservao, mais nica e mais se aproxima da imagem.

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    analfabeto [em tcnicas narrativas], mas cada vez mais difcil, comono se teve latim!... Aprender a carregar uma cmara, regul-la. Apren-der a manipular a imagem. Se quisermos utilizar iluminao, aprendera fazer iluminao, o que no fcil. . . Depois aprender a manusearuma cmara, isto aprender a enquadrar, a improvisar um enquadra-mento... Pessoalmente penso que o realizador deve ser o seu prpriooperador de cmara. Um enquadramento improvisa-se ao longo de ummovimento. Por exemplo [mmica da situao de filmagem], se eu tefilmar aqui, h atrs uma janela, h outra de que mal me apercebo, porisso, tenho de avanar muito lentamente para ver as duas janelas queesto a com a iluminao. Esse momento o momento certo das coi-sas como decorrem... Devemos por isso ter os reflexos [capacidade]de modificar o enquadramento no decorrer de uma aco e isso nose pode fazer com um operador, no podemos dizer-lhe [dar-lhe ins-trues, indicaes acerca do enquadramento que desejamos]. Se eletiver o sentido da imagem, ter medo de o fazer.

    O ltimo elemento correr todos os riscos e filmar mesmo se nohouver luz, filmar com a objectiva totalmente aberta, a boa abertura deuma objectiva est um ponto acima da abertura total, por isso, precisoconhecer essas mquinas e isso demora muito, e para isso precisover os filmes dos outros, nos quais se descobrem esses elementos etentar fazer como eles. O que era a Nouvelle Vague? Era um grupo demidos que era da Escola Buissonnire de Langlois que chegava Ruade Ulm. Estvamos sentados na primeira fila, porqu? Porque na pri-meira fila podamos esticar-nos. Se o filme fosse mau, adormecamose adormecamos bem. Numa m cadeira aborrecido para os outros[pelo incomodo para os outros]. Na primeira fila no h ningum nossafrente. Langlois tinha-nos [Godard, Truffaut e Rohmer, toda essa gente eno nos conhecamos] dito: Querem ser cineastas?, Bom, para fazercinema preciso ter visto 300 filmes. Eu posso-os obrigar a ver 300 fil-mes num ano. E num ano, obrigou-nos a ver 300 filmes. No incio, nosabamos dizer para onde amos, mas pouco a pouco compreendemostudo. Esse , penso eu, o mtodo. Ter uma boa cinemateca, com todosos filmes. Os filmes fracassados, os que no valem nada, tambm. Teruma boa manipulao da cmara, saber o que quer dizer, saber o que um diafragma, saber a abertura, etc.. Aprender a montar, comeandopelo fim. Obrigo as montadoras com quem trabalho a comear pelo fim.

  • Jean Rouch - Filme etnogrfico ... 41

    Para fazer a montagem de um filme, v-se por ordem, depois dizemos,vamos montar a partir da ltima bobine. Assim sabemos para onde va-mos. [Quando, nas aulas de Francs, penso que se do aqui aulas deFrancs Bom, no sei quem d as aulas de redaco em lngua fran-cesa? Para fazer ma redaco, no meu tempo, dizia-se: Escreves aintroduo geral, o que escreves muito mau. . .mas lana-te. Fazes aprimeira parte, na primeira parte, h ideias que chegam e, de repente,na primeira parte dizes: Para onde vou quando isto acabar? Comono tens tempo, tens duas horas para fazer uma coisa [redaco] com-pleta, ento, nesse momento escreves a concluso. Quando escrevesa concluso, escreves a terceira parte, voltas primeira que no boa,acrescentas umas coisas e acabas com a introduo. Fazer uma redac-o francesa isso.] Bem, um filme a mesma coisa. Isto , desde oprincpio do filme, deve saber-se para onde se vai.

    7. Um Princpio Fundamental Devolver spessoas filmadas o filme que fizemosNo fil