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Saúde em Debate ISSN: 0103-1104 [email protected] Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Brasil Dorsa Figueiredo, Mariana; Onocko Campos, Rosana Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 143-149 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Rio de Janeiro, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773014 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Saúde em Debate

ISSN: 0103-1104

[email protected]

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

Brasil

Dorsa Figueiredo, Mariana; Onocko Campos, Rosana

Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede

multicêntrica

Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 143-149

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773014

Como citar este artigo

Número completo

Mais artigos

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Sistema de Informação Científica

Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal

Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

ARTIGO ORIGINAL I ORIGINALARTICLE

Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde:

o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

Mental Health andprimary health care:the matrix support building a multicentric net

"En medio de la marafia, Dios, la arafia':

143

Mariana Dorsa Figueiredo I

Rosana Onocko Campos 2

1Mestre; doutoranda em Saúde

Coleriva pelo Departamento de

Medicina Preventiva e Social da

Faculdade de Ciências Médicas da

Universidade Estadual de Campinas

(DMPSI FCMI UNlCAMI').

[email protected]

2 Doutora em Saúde Coleriv3;

professora do DMPS/FCM/UNICAMI'.

[email protected]

A1ejandra Pizarnik

RESUMO Neste artigo discute-se a inserção da Saúde Mental naAtenção Bdsica

como uma das necessidades atuaispara a continuidade da Refàrma Psiquidtrica,

considerando que a atenção em Saúde Mental deve serfeita dentro de uma rede

ampla e interligada de cuidados capaz de agenciar as demandas dos usudrios. Em

seguida, éproblematizado oapoio matricial como arranjo de gestãopara organizar

as ações de Saúde Mental na Atenção Básica esuapotencialidade como disparador

da ampliação da clínica das equipes interdisciplinarespara as dimensões subjetiva

e social dos sujeitos, a fim de produzir uma assistência resolutiva à saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Gestão; Saúde Mental; Atenção bdsica à saúde; Apoio

matricial.

ABSTRACT ln this article, it is argued the insertion 01Mental Health in the

basic system, as one 01the current necessities fór the continuity 01the Psychiatric

Refórm, considering that the attention to Mental Health must be made inside

an ample and linked net 01cares. After that, the matrix support is analyzed as a

powerful management arrangement to organize the actions 01Mental Health in

the basic attention andas a triggerfór the amplification olthe clinic in the health

teams, in order to produce a more resolute assistance to the health system.

KEYWORDS: Management; Mental Health; Primary health care; Matrix

support.

Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. n. 78/79/80, p. 143-149. jan.ldt."Z. 2008

Anotacao
Título do Artigo: SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE: O APOIO MATRICIAL NA CONSTRUÇÃO DE UMA REDE MULTICÊNTRICA Autor(es): Mariana Dorsa Figueiredo, Rosana Onocko Campos a_Mariana_Dorsa_Figueiredo a_Rosana_Onocko_Campos

144 FIGUEIREDO, M.O.; CAMPOS, R.O. • Sallde Mental e Atenç.ío Básica 11. Saúde: o apoio matricial na cOllsrruçáo de lima rede mulricêntrica

INTRODUÇÃO

Uma rede ou um emaranhado?

Duranre as últimas duas décadas, a implemenração

do modelo dos Cenrros de Atenção Psicossocial (CAPS)

tem sido o principal investimento da política de Saúde

Mental no Brasil. O processo de extensão da cobertura

desses serviços demonstra a crescenre e inrensiva difusão

da rede substitutiva de Saúde Menral pelo país, numa

trajetória frutífera de teversão do modelo assistencial cen­

trado no hospital psiquiátrico para um modelo baseado no

restabelecimento das relações afetivas e sociais dos sujeitos

e na reconquista de seu poder social. Com o desafio de

desconstruir conceitos sobre a loucura e romper com as

formas de tratamento já há muito tempo arraigadas na

lógica sanitária hegemônica (AMARANTE, 2001), o modelo

dos CAPS ganhou grande visibilidade no decorrer da Refor­

ma Psiquiátrica brasileira, ocupando wn lugar de destaque

na reorganização da assistência em Saúde Mental.

Porém, essa rede de atenção à doença mental grave,

ainda que inserida no rol das políticas públicas de saúde

e alinhada aos princípios do SUS, veio se constituindo

de forma bastante afastada da rede de Atenção Básica

à saúde, resultando num cerro descompasso entre as

práticas de Saúde Mental e as práticas de saúde em sua

acepção mais ampla. Essa configuração traz desdobra­

mentos imporrantes para o SUS, enquanto sistema

unificado e integral, assim como para a eficácia ranto da

Atenção Básica, quanto dos CAPS, devido a dificuldade

de estabelecer parcerias necessárias para uma atenção

resolutiva em Saúde Mental.

Uma atenção integral, como a pretendida pelo SUS,

só poderá ser alcançada através da troca de saberes, prá­

ticas e de profundas alterações nas estrururas de poder

estabelecidas, instiruindo uma lógica do trabalho inter-

Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008

disciplinar, por meio de wna rede inrerligada de serviços

de saúde, a qual permira a arriculação das ações que, em

Saúde Menral, é uma necessidade inquesrionável.

UMA REDE MULTICÊNTRICA

Considerando a complexidade das demandas em

Saúde Mental, há atualmente uma grande discussão

sobre a necessidade de arricular a assistência prestada

nos CAPS com outros serviços de saúde, equipamentos

sociais e a rede social nos territórios, na construção de

uma diversidade de possibilidades de produção de saúde,

desenvolvimento da autonomia e fortalecimento dos

vínculos sociais.

Ainda que a clínica das psicoses e das neuroses

graves esteja baseada em cuidados intensivos de especifi­

cidade de equipamentos como os CAPS (TEN6RJo, 2002),

a Atenção Básica rem um imporrante papel no processo

de reinserção social, já que está imersa nos territórios e

é, afinal, um espaço de produção de saúde, tanto para os

usuários, quanto para suas famílias. Além disso, atende

a uma diversidade de demandas em Saúde Mental e

é o espaço de promoção, prevenção e tratamento dos

principais problemas de saúde. A questão mencionada

aqui vai além da definição de qual serviço deveria se

incumbir das demandas de maior gravidade, se os CAPS

ou a Atenção Básica, também, e está na relação a ser

construída entre os dois tipos de serviços.

O Ministério da Saúde, em sua Portaria 336, define

que um CAPS deve:

responsabilizar-se { ..}pela organização da demandae da rede de cuidados em saúde mental no âmbito doseu território e{ ..} desempenhar opapel de reguladorda porta de entrada da rede assistencial. (BRASIL,

2004, p. 126).

FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menml e Atençáo Básica à Sallde: o apoio mauiciaJ na consrruçáo de uma rede multicêntrica 145

Ora, se os CAPS forem considerados ordenadores da

rede, como propõe o Ministério, não estará se reiterando

o foco nesse equipamento e o seu isolamento em relação

àquela rede ampla e entrelaçada de saúde que é tanto

almejada? Neste caso, seria mais apropriado trabalhar

com O conceito e imagem de uma rede multicêntrica,

em que o CAPS pode funcionar como agenciador das

demandas em Saúde Mental, mas no qual, por outro

lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos

na atenção se destacam, em determinado momento, de

acordo com O andamento do Projeto Terapêutico de cada

usuário, tendo uma rede que permita o entrelaçamento

das ações e relações. Uma rede pulsante e viva, que se

movimente para dar sustentação às necessidades dos

usuários, que seja sem centralidade, porém suficiente

para agenciar as demandas dos usuários, e se transformar

em um suporte efetivo para as dificuldades que esses, .

usuanos possuem.

Assim, destaca-se a necessidade da integração dos

serviços, há casos comuns entre os serviços, ou si tuações

que dizem respeito tanto aos CAPS quanro à Atenção

Básica. Seria o caso do usuário do CAPS, aquele da

região de abrangência de determinada equipe da UBS

ou o garoto usuário de drogas que em dado momento

precisa de uma contensão de crise. Nestas situações é

fundamental a articulação dos serviços, a discussão do

caso comum e o envolvimenro dos diversos arores no

-caso em q uestao.

É emergente a discussão sobre a inserção da Saúde

Mental no Programa de Saúde da Família (PSF), já

que tem sido crescente a demanda pela atenção aos

transrornos psíquicos leves, mais prevalentes, manifestos

geralmente sob a forma de queixas somáticas e 'nervosas',

transtornos de ansiedade, quadros depressivos, relacio­

nados a problemas sociais e familiares, decorrentes do

abuso de psicotrópicos. Para além destes transtornos,

são diversos os problemas advindos das faltas concretas

na vida, geradas pela ordem socioeconâmica vigente. A

miséria em que se encontra a maior parte da população

brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se

traduz em condições de existência favoráveis às dificul­

dades afetivas, emocionais e relacionais.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)

os problemas de Saúde Mental respondem por 12% da

carga mundial de doenças (OMS, 2001). No Brasil, o

Ministério da Saúde avalia que cerca de 3% da popula­

ção apresenta transtornos mentais severos e necessita de

cuidados contínuos, intensivos (específicos dos CAPS).

Nove por cento da população apresenta transtornos

mentais leves e de 6 a 8% apresentam transtornos de­

correntes do uso prejudicial de álcool e outras drogas,

pelos quais a Atenção Básica que deve responsabilizar-se

(BRASIL, 2003).

Existe, ainda, um componente subjetivo associado

ao processo de adoecimento. Muitas vezes ele atua como

entrave ao tratamenro, à adesão as práticas preventivas e

até mesmo como intensificador da doença. Por exemplo,

uma pessoa que já não vê tanto valor na vida e não mais

se importa se o cigarro potencializa sua doença cardíaca;• A _ • A •

ou o paciente com cancer que nao encontra reslstenCla

para enfrentar a doença. Esses casos poderiam se bene­

ficiar com a ampliação da clínica das equipes do PSF

(CAMPOS, G.WS., 2003).

Atualmente, o desenvolvimento do PSF na rede de

Atenção Básica vem tencionando a incorporação das

dimensões subjetiva e social na prática clínica, através

do princípio da atenção integral ao sujeito e por meio

do vínculo, a fim de propiciar maior resolutividade

aos problemas de saúde. Isso faz com que as equipes

se deparem cotidianamente com problemas de Saúde

Mental. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra

que 56% das equipes de PSF referem realizar 'alguma

ação de Saúde Mental' (BRASIL, 2003), ainda que essas

equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar com

esta demanda. Por outro lado, por sua proximidade

com as famílias e as comunidades, elas se constituem

Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. n. 78/79/80. p. 143-149. jan.ldt."Z. 2008

146 FIGUEIREDO, M.O.; CAMPOS, R.O. • Sallde Mental e Atenç.ío Básica 11. Saúde: o apoio matricial na cOllsrruçáo de lima rede mulricêntrica

num recurso estratégico para o enfrentamento do

sofrimento psíquico.

Além disso, a OMS e o Ministério da Saúde esti­

mam que quase 80% dos usuários encaminhados aos

profissionais de Saúde Mental não trazem, a priori,

uma demanda específica que justifique a necessidade

de uma atenção especializada (BRASIL, 2003). É o caso

da senhora que se costuma denominar 'poli-queixosà,

e que representa uma demanda freqüente para a Aten­

ção Básica. Se for ampliada a escuta, é possível deparar

com sua existência pobre de sentido, com a ausência de

espaços de convivência, lazer e trabalho. Nesses casos,

o empreendimento de longos processos psicoterápicos

e a administração de antidepressivos são insuficientes

como únicas respostas, sendo preciso mobilizar outros

dispositivos de atenção, disparadores de produção de

vida, de fortalecimento da auto-estima e de sociabilidade

(CAMPOS; NASCIMENTO, 2003).

Assim, na continuidade da Reforma Psiquiátrica... -,,',' ..

e para propIcIar maIOr conSlstenCla as Intervençoes

em Saúde Mental, torna-se fundamental desenvolver

estratégias que modulem a inserção da Saúde Mental

na Atenção Básica, promovendo a interlocução entre

os diferentes profissionais e serviços de saúde e qualifi­

cando as equipes de Saúde da Família para uma atenção

ampliada em saúde que contemple a subjetividade e o

conjunto de relações sociais que determinam desejos,

interesses e necessidades, conforme Gastão Wagner de

Souza Campos (2000; 2003).

Campos (1999) propôs, ainda, a reorganização da

Atenção Básica, a partir do arranjo de gestão denominado

por ele como apoio matricial. Esse arranjo permite se inse­

rir a Saúde Men tal e outras áreas especializadas na Atenção

Básica, ao mesmo tempo em que opera como disparador

da ampliação da clínica das equipes locais de saúde. Trata­

se de uma importante discussão na atualidade, já que a

estratégia do apoio matricial foi recentemente incorporada

em nível nacional a partir da Portaria nO 154, na qual o

Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan.ldez. 2008

Ministério da Saúde (BRASIL, 2008) aprovou a criação

dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Similar

ao modelo do apoio matricial que ora apresentamos, os

NASF são compostos por profissionais de diferentes áreas

especializadas as quais atuarão no apoio às Equipes de

Saúde da Família, ampliando a abrangência das ações e

resolutividade dessas equipes.

O APOIO MATRICIAL: IMBRICANDO SAÚDE

E SAÚDE MENTAL

"Onde a brasa mora e devora o breu

Como a chuva molha o que se escondeuO seu olhar melhora o meu"

Arnaldo Antunes e Paulo Tatit

Na proposta de Campos (1999), profundas refor­

mas estruturais seriam necessárias para produzir saúde

com maior grau de resolutividade e desalienar os tra­

balhadores em relação ao objetivo de seu trabalho. O

autor propõe uma rotação dos organogramas, de modo

que os antigos departamentos especializados (outrora

verticais) passam a ser horizontais, oferecendo apoio

especializado às equipes interdisciplinares.

Essas equipes, denominadas pelo autor como

Equipes de Referência, têm como princípio a adscri­

ção de clientela, garantindo um sistema de referência

e valorizando o vínculo entre profissionais e usuários.

A relação terapêutica, horizontal no tempo, passa en­

tão a ser a linha reguladora do processo de trabalho.

Assim, toda vez que o usuário procura o serviço, ele

é atendido por sua Equipe de Referência, o que per­

mite o acompanhamento do processo saúde/doença/

intervenção (CAMPOS, 1999). Gradativamente, isto es­

timula a responsabilização pela produção de saúde, pois

quando o usuário passa a ter um nome e uma história,

FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menral e Atençáo Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede mulricênrrica 147

a implicação da equipe rende a aumentar e as resposras

profissionais a serem menos esrereoripadas. As Equipes

de Referência, porranro, seriam responsáveis por realizar

os projeros rerapêuricos, promovendo, assim, o vínculo

e a responsabilização.

Dessa forma, o apoio marricial seria uma ferramen­

ra para agenciar a indispensável insrrumentalização das

equipes na ampliação da clínica', subverrendo O modelo

médico dominanre que se rraduz na fragmentação do

rrabalho e na produção excessiva de encaminhamentos,

muiras vezes desnecessários, às diversas especialidades,

segundo Rosana Onocko Campos (2003).

O apoio marricial se configura como um suporre

récnico especializado (CAMPOS, 1999) que é oferrado a

uma equipe inrerdisciplinar de saúde, a fim de ampliar

seu campo de amação e qualificar suas ações. Ele pode

ser realizado por profissionais de diversas áreas especia­

lizadas, mas esramos romando aqui a especificidade da

Saúde Mental, considerando que as questões subjerivas

transpassam quaisquer problemas de saúde e devem ser

abordadas em roda relação rerapêutica.

A proposta é que os profissionais possam aprender a

lidar com os sujeiros em sua complexidade, incorporan­

do as dimensões subjeriva e social do ser humano, mas

que esrejam acompanhados por alguém especializado

que lhes dê suporre para compreender e intervir nesre

campo. No apoio matricial da Saúde Mental, conhe­

cimentos e ações, hisroricamente reconhecidos como

inerentes à área 'psi', são oferrados aos profissionais de

saúde de uma equipe, de modo a auxiliá-los a ampliar

sua clínica e a sua escuta, a acolher o sofrimenro psí­

quico e a lidar com a subjetividade dos usuários. Seria

uma oferta do núcleo profissional 'psi' ao campo dos

profissionais de saúde (CAMPOS, 2000), na construção

de um novo saber, um saber que se pretende transdis-

ciplinar. A rransdisciplinaridade que, no sentido dado

por Passos e Barros (2000) é urna das grandes apostas

do apoio matricial.

A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo desustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeitode desestabilização {..} da unidade das disciplinas edos especialismos. (p. 76).

A Saúde Mental sai do eixo das especialidades e passa

a compor a rede matricial de apoio. Consumi uma linha

de interseção entre as diferentes áreas, a fim de superar a

lógica da especialização e da fragmentação do trabalho e

romper com o sistema de referência e contra-referência,

que produzem encaminhamenros consecutivos para as

diferentes especialidades e que se traduzem em desrespon­

sabilização pela produção de saúde (CAMPOS, 1999).

A parrir de discussões clínicas conjuntas, apoio para

a construção de projeros terapêuricos ou mesmo inter­

venções conjuntas concretas com as equipes (consultas,

visiras domiciliares, entre outras), os profissionais matri­

ciais podem contribuir para o aumento da capacidade

resoluriva das equipes, qualificando-as para uma arenção

ampliada em saúde que contemple a complexidade da

vida dos sujeiros.

Os atendimentos conjuntos com o profissional ma­

rricial têm uma imporrante função pedagógica, já que as

equipes podem aprender in loco a inrervir no campo da

Saúde Mental e se aurorizar nas ações que nem sempre

cabem nos prorocolos, lidando com situações de exclu­

são social, violência, luro, as mais diversas perdas, que

não devem ser encaminhadas e sim acolhidas durante a

própria consulta clínica. Ou ainda quando se trata de um

usuário de referência do CAPS que está em tratamenro na

Atenção Básica: muitas vezes, os profissionais sentem-se

inseguros para lidar com pacientes psicóticos ou com

ICampos, G. WS. (2003) denomina clínica ampliada, uma resignificação da clínica tradicional, de modo a deslocar sua ênfase na doença para cenrrâ-Ia numsujeiro concreto e singular, porrador de cerra enfermidade. Ampliar a clínica significa que os profissionais possam aprender a lidar com os sujeiros em sua tota­lidade, considerando o biológico como dererminanre do processo saúde e doença, mas rambém incorporando em suas práticas as dimensões subjetiva, social ecultural como outros determinanres.

Smidum ~bnt~, Rio de Janeiro, v. 32, n. 7809/80, p. 143-149, jan.ldez.. 2008

148 FIGUEIREDO, M.O.; CAMPOS, R.O. • Sallde Mental e Atenç.ío Básica 11. Saúde: o apoio matricial na cOllsrruçáo de lima rede mulricêntrica

quadros psiquiátricos mais graves e o atendimenro

conjunto com O apoiador matricial pode proporcionar

um encontro desmistificador do sofrimento psíquico e

da doença mental, ajudando a diminuir O preconceito

e a segregação da loucura.

Nesse sentido, o trabalho na lógica matricial permi­

te distinguir as situações individuais e sociais, comuns

à vida cotidiana, que podem ser acompanhadas pela

Equipe de Referência e por outros recursos sociais do

entorno, daquelas demandas que necessitam de uma

atenção especializada da Saúde Mental a ser oferecida

na própria Unidade Básica pelos profissionais matriciais

ou de acordo com o risco, vulnerabilidade e gravidade,

pelo CAPS da região de abrangência. Pretende-se, com

isso, produzir co-responsabilização entre Equipe de

Referência e profissionais matriciais, de modo que o

encaminhamento preserve o vínculo e possa ser feito

de forma dialogada.

Assim, é possível promover a eqüidade e o acesso,

garantindo coeficientes terapêuticos de acordo com as

vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário, fa­

vorecendo a construção de novos dispositivos de atenção

em resposta às diferentes necessidades dos usuários e a

articulação entre os profissionais na elaboração de proje­

tos terapêuticos pensados para cada situação singular.

O apoio matricial, portanto, provoca e explicita

uma intensa imprecisão das fronteiras entre os diversos

papéis e as diversas áreas de atuação profissional. Quando

as questões subjetivas não se encaixam na rigidez dos

diagnósticos, como as dificuldades afetivas e relacionais,

a capacidade maior ou menor de enfrentar os problemas

cotidianos, a potência do apoio matricial está justamente

em desfazer a delimitação entre as diferentes disciplinas e

tecnologias, e, através das discussões de caso e da regulação

de Auxo, evitar práticas que levam à 'psiquiatrização' e à

'medicalização' do sofrimento humano.

Stltid~~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008

Segundo Campos (1999), essa reordenação do

desenho institucional da rede de Atenção Básica per­

mite que a complexidade da vida dos sujeitos e de suas

necessidades seja trazida para o coletivo e possa ser

enfrentada através do trabalho conjunto, favorecendo

a gestão do processo de trabalho e a formação de outra

subjetividade profissional, centrada no diálogo e na

transdisci plinaridade.

No entanto, deve-se reconhecer que a mudança

da lógica de trabalho proposta pelo apoio matricial

não é fácil de ser assumida pelas equipes e não ocorre

automaticamente. Ela deve ser especificamente traba­

lhada junto às equipes, instalando espaços destinados

à reAexão e análise crítica sobre o próprio trabalho, e

que possam ser continentes aos problemas na relação

entre a equipe, aos preconceitos em relação à loucura,

à dificuldade de entrar em contato com o sofrimento

do outro e à sobrecarga trazida pela lida diária com

a pobreza e a violência. Todas essas questões podem

dificultar o trabalho com o apoio matricial, se os pro­

fissionais não tiverem espaços de reAexão e formação

permanentes para processá-las, que sejam capazes de

realimentar constantemente a potencialidade do apoio

matricial, enquanto arranjo transformador das práticas

hegemônicas na saúde.

Assim, afirmamos a importância de espaços

coletivos em que se possa agenciar uma rede na qual

saúde e Saúde Mental sejam tomadas como instân­

cias interligadas e complementares. Uma rede que,

sobretudo, incite o movimento de acordo com as

necessidades sociais e de saúde das pessoas às quais

ela se destina. Uma rede efetiva de ajuda e socorro ao

usuário da Saúde Mental e não uma teia na qual ele

fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da

desresponsabilização, uma rede de salvamento e não

de captura e impotência.

FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menml e Atençáo Básica à Sallde: o apoio mauiciaJ na consrruçáo de uma rede multicêntrica 149

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Recebido: abr.l2008

Aprovado: nov.l2008

Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. n. 78/79/80. p. 143-149. jan.ldt.oz. 2008