práticas psicológicas e dimensões de significação dos problemas de saúde mental

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  • 8/17/2019 Práticas Psicológicas e Dimensões de Significação dos Problemas de Saúde Mental

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    Práticas Psicológicas e

    Dimensões de Significaçãodos Problemas de SaúdeMental

    Psychological practices and semantic dimensions of mental health problems

          A    r     t      i

        g    o

     Mônica LimaUniversidade Federal do

    Vale do São Francisco

    Mônica deOliveira Nunes

    UniversidadeFederal da Bahia

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    PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (2), 294-311

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    Resumo: Buscou-se compreender como atuam os psicólogos e quaissignificados atribuem às práticas psicológicas desenvolvidas nos serviçospúblicos de saúde de Salvador. Utilizou-se o modelo teórico-metodológicode Sistema de Signos, Significados e Práticas. Entrevistaram-se 21psicólogos dos 24 vinculados à Secretaria Municipal de Saúde, com roteirossemi-estruturados. Observou-se a predominância da oferta de psicoterapiaindividual com orientação psicanalítica. Discutem-se duas modalidadesde práticas psicológicas ( psicoterapiase para-psicoterapias), considerando-se a inadequação das técnicas psicológicas a uma parte da populaçãodistante de um padrão intimista e detalhista de expressar os problemasde saúde. Identificaram-se duas dimensões de significação dos problemasde saúde; a) individual caracteriza-se pela estrutura psíquica do usuário,

    do tipo e da gravidade da doença; b) coletiva caracteriza-se pelos aspectossocioeconômicos e culturais. A escuta psicológica pode seguir umatendência mais asséptica  ou cautelosa em  relação às dimensõesidentificadas. Discute-se a hipótese de que há seleção socioeconômicae cultural da clientela.Palavras-Chaves: psicoterapia; saúde mental; serviços públicos de saúde;atendimento psicológico; signos, significados e práticas.

     Abstract:The aim of this study was to understand how psychologistsperform and what meanings they attribute to the psychological practicesdeveloped within the public health services in Salvador. A theoretic-

    methodological model of systems of signs, meanings and practices wasused. Twenty-one psychologists were interviewed from the 24 associatedwith the Municipal Department of Health, using semi-structuredinterviews. It was observed that the predominant service was individualpsychotherapy based on psychoanalysis. Two types of practices arediscussed: psychotherapy and para-psychotherapy. These practices wereconsidered inadequate for part of the population who were distant froma standard of intimacy and detail expressing health problems. Twodimensions of meaning related to health problems were identified: a)individual, characterized by the psychic structure of the patient, the type,and the acuteness of the disease. b) Collective, characterized by the

    socioeconomic and cultural aspects. Psychological listening could suggest a more aseptic or cautious tendency in relation to the dimensionsidentified. The study discusses the hypothesis that there is asocioeconomic and cultural selection of the clientele.Key words:  psychotherapy, mental health, public health services,psychological service, signs, meanings, and practices.

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    No Brasil, desde a década de 1980, algunspesquisadores têm estudado a difusão dosaber psicanalítico e a constituição da culturapsicanalítica. Estes estudos partem do

    pressuposto de que o saber psicanalítico surgiuem uma determinada circunstância doindividualismo no ocidente, propondomodalidades específicas de agenciamento ede emergência da subjetividade, típicas desujeitos que se pensam livres e iguais(Figueira, 1987). Esse pensamento é descritocomo desempenhando um papel orgânico efundamental nos valores, crenças eperspectivas ideológicas nos setores médios

    brasileiros, construindo uma “visão de mundopsicanalítico” (Figueira, 1987).

    Neste sentido, a difusão da culturapsicanalítica apresenta um certo “estilo devida”, a princípio, para as classes médias ealtas brasileiras, que direciona e dá sentido aaspectos significativos da vida, como asrelações amorosas, deliberação de ter e criarfilhos, escolha da carreira profissional (Russo,1993). Na Bahia, como em outros centros

    urbanos do país, ela esteve limitada àquelesque fazem parte de segmentos médiosintelectualizados e que caracterizam umacerta elite social, os quais, por terem maiorescondições econômicas e culturais, obtiveramacesso privilegiado aos conceitos, aos debatese aos serviços por ela oferecidos (Silva, 1995).

    O efeito da difusão da cultura psicanalíticatanto na vida cotidiana de leigos quanto na

    própria produção de conhecimento dentro decampos científicos é designado“psicologização” (Figueira, 1988). Russo(2002, p. 43) também descreve a difusão dapsicanálise como força motriz para o processode psicologização da sociedade, um modode organização da vida psíquica que supõe“a volta para dentro de si mesmo [...] umabusca “dentro de si” para o que antes estava“fora” – parâmetros, regras, orientação”.

    Práticas Psicológicas e Dimensões de Significação dos Problemas de Saúde Mental

    Em busca de compreender esse fenômenode psicologização, muitos autores procuraramanalisar a crescente difusão do  saber psicanalítico- psicológico  no cotidiano dos

    brasileiros nas últimas décadas do século XX,ora focalizando-a nas classes médias urbanas(Velho, 1987; Russo, 1993), ora nas classespopulares (Ropa & Duarte, 1985; Costa,1989; Bezerra-Junior, 1993). Esses últimosestudos questionam e problematizam apertinência do atendimento psicológico parauma população que sente, pensa e age a partirde princípios menos individualistas. Noentanto, faltam estudos que focalizem as

    práticas e concepções de psicólogos em umaspecto crucial que é articulação dasorientações teóricas com a prática concretade serviços públicos que se dirigemfundamentalmente às classes populares,particularmente para o contexto baiano.

    Um sujeito considerado mais afeito à práticapsicanalítica pertence também às classessociais mais altas e letradas e tem,

    supostamente, se beneficiado mais com estetratamento psicológico, freqüentementediferenciando-se de pessoas que pertencemàs ditas classes populares (Figueira, 1987;Costa, 1989; Bezerra-Júnior, 1993). Figueira(1987), para explicar a diferença deengajamento das pessoas no tratamentopsicanalítico, considera os própriosmecanismos sociais de estruturação desubjetividade e identidade, mais do que ofato de os clientes se pensarem ou não como“indivíduos”, ou seja, livres e iguais. O autorinclui em sua análise aspectos da própriainteração cotidiana, que ao serem excluídasou modificadas em favor dos rituais típicosdas práticas psicológicas  ( setting analítico),demarcam diferenças sociais e culturais, àsvezes intransponíveis. Ropa & Duarte (1985)apontam limitações do próprio saberpsiquiátrico-psicológico (psicanalítico), falta de

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    incentivos institucionais, contradiçõessocioeconômicas entre os profissionais eusuários que explicariam o descompasso entreas demandas da população e as práticas

    psicológicas oferecidas.

    É importante ressaltar que alguns estudospercebem como problemático atribuirnecessariamente à Psicanálise aresponsabilidade por esse descompasso, umavez que a mesma tem se constituído comoum importante horizonte de compreensão dosproblemas de saúde mental. Estudos maisrecentes como o de Figueiredo (1997)

    defende que o dispositivo psicanalítico nãofoi suficientemente colocado à prova para serrotulado como ineficaz ou impróprio paraatender às demandas da clientela que buscaos serviços públicos.

    Costa (1989) acredita igualmente que apsicanálise pode ser utilizada como um dosrecursos de tratamento para a clientela quebusca os serviços públicos de saúde. Ele

    descreve o encontro de pessoas advindas dasclasses populares que se queixam de nervosocom os profissionais psi, buscando explicar a“apatia” teórico-técnica presente na concepçãoclínica. O autor nos adverte quanto apossibilidade reducionista de alimentarmos aconfiança na universalidade da classificaçãonosográfica e de um modelo de representaçãodo aparelho psíquico (Costa, 1989). Além disso,ele destaca a importância de considerarmos que“os distúrbios mentais só existem através decertos conflitos subjetivos, os quais, por seuturno, estão socioculturalmente condicionados”(Costa, 1989 p. 18).

    Neste artigo buscamos contribuir de modosingular com este debate nos remetendo auma abordagem sócio-antropológica,evidenciando os desafios decorrentes dooferecimento de práticas psicológicas para

    uma população advinda de classes populares,a partir das narrativas dos psicólogos. Nestadireção discutimos os signos e os significadosatribuídos às práticas psicológicas

    desenvolvidas pelos psicólogos de váriasorientações teóricas, ressaltando que em suamaioria são psicanalistas, a partir dos dadosempíricos da tese intitulada “AtuaçãoPsicológica em Serviços Públicos de Saúdede Salvador: do ponto de vista dospsicólogos” (Lima, 2005). Por fim, éimprescindível situar o leitor em relação àhermenêutica antropológica que fundamentaa leitura dos dados coletados, em detrimento

    de outras possibilidades analíticas do campoda psicologia e mesmo da antropologia.

    Modelo Teórico-Metodológico

    O trabalho de campo deste estudo ocorreuentre os anos de 2002 a 2003, quandoentrevistamos 21 psicólogos dos 24empregados na assistência direta à população,em cinco UBSs e três CSMs, vinculados à

    Secretaria de Saúde Municipal de Salvador,Bahia. A coleta e a análise de dados foraminspiradas no modelo teórico-metodológicodo Sistema de Signos, Significados e Práticasem Saúde Mental – S/ssp (Bibeau, 1992;Bibeau & Corin, 1995; Almeida-Filho &Caroso & Alves & Rabelo & Rodrigues &Bibeau & Corin, 1996; Almeida-Filho &Coelho & Peres, 1999; Almeida-Filho & Corin& Bibeau & Caroso & Alves & Rabelo &Uchoa & 2000; Almeida-Filho & Corin &Bibeau 2000).

    O S/ssp é constituído de três níveis para aabordagem de um problema de investigação:o factual, o narrativo e o interpretativo(Bibeau, 1992). No primeiro nível , factual,parte-se da idéia de que é preciso levantarfatos, eventos e ações concretas significativaspara os sujeitos da pesquisa. Além disso,

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    recolher dados complementares diversos,inclusive estatísticos relacionados aoproblema. Outro aspecto considerado nonível factual quer ressaltar a importância de

    tomar como ponto de partida os casos esituações concretas, no sentido de não noslimitarmos às representações meramenteabstratas da realidade.

    O nível narrativo diz respeito à coleta inicialde relatos espontâneos sobre a problemáticae identificação dos interlocutores-chave, quereconstruíram as suas experiências.Ressaltamos que tais narrativas são as

    principais unidades de análise da proposta,e não os casos propriamente ditos, marcandoum outro tipo de delineamento de pesquisa,que não o de estudo de caso advindo daclínica médica e psicológica, ou da correntesociológica (Bibeau, 1992).

    O nível interpretativo implica em consideraras interpretações dos interlocutores enquantouma interpretação nativa, à qual o pesquisador

    não pode se limitar. A hermenêuticaantropológica requer a passagem da meradescrição dos fatos e modelos explicativosnativos para a elaboração de umainterpretação, ou seja, um trabalhocooperativo analítico que propicie aemergência dos sentidos que podem escaparaos atores sociais (Bibeau, 1992).

    Utilizamos o seguinte procedimento para

    interpretação das narrativas: a) a identificaçãoe agrupamento dos termos utilizados pelospróprios psicólogos na reconstrução de suastrajetórias profissionais; b) a construção decategorias analíticas, considerando ossignificados que lhes são atribuídos, já queincentivamos relatos de situações concretasde trabalho, desde as abordagens de casosclínicos atendidos, até as descrições do dia adia do serviço.

     A in spi ração no S/ ssp nos conduz iu acompartilhar duas questões operacionais: 1)

    as vantagens de considerar as narrativasproduzidas pelos interlocutores

    (representantes de um campo científico, ouseja, não leigos) como qualquer

    conhecimento localmente construído,portanto, plural, fragmentado e atécontraditório como ponto de partida para a

    sua compreensão; 2) a idéia de que suashistórias concretas particulares na vivência dosdesafios da atuação psicológica não devemser lidos como “textos autônomos”, no

    sentido de resumi-los a experiências

    subjetivas e reificar as narrativas (Bibeau,1992). A hermenêutica antropológica de

    segundo nível é uma estratégia que combinaa submissão ao texto dos discursos coletados

    e a violência feita pelo pesquisador sobre estestextos[1].

     A antropologia interpretativa Geertz (2002)

    considera que a própria ação é constituída

    de significados e que pode ser lida como um

    texto. A inscrição etnográfica possibilita apassagem da mera descrição dos fatos e

    modelos explicativos nativos para a elaboração

    de uma interpretação do pesquisador (Geertz,

    1989; 2002). No entanto, estamos no lugar

    de quem “lê” e não de quem “escuta”,

    quando do tratamento dos dados coletados.

    No primeiro momento, no ato da entrevista

    tem-se a escuta e a produção de um diálogo

    com seus informantes-chaves: há uma

    interpretação, menos consciente, sobre o queé narrado. No segundo momento, a análise

    das narrativas nos coloca no papel de quem

    lê, o qual é enriquecido pela prévia

    participação na produção direta das narrativas,

    suas unidades de análise, mas que não se

    limita a este momento nem a tornaria inviável

    se não houvesse participado da mesma: o

    dito inscreve-se [2].

     [1] . O proc essointerpretativo pode ser 

     entendido a partir de quat ro regras bási cas apresentadas em aforismos por Bibeau e Corin (1995, p. 55-60). 1) “adquirir 

      fami liar idade com a superfície da realidade”,traduzido no esforço de

     ganhar familiaridade com o mundo do nat ivo, aprendendo sua língua, seus costumes e conhecendo suas atividades; 2) “olhar  por trás dos cenários e ler  nas entrelinhas”, ou seja, não se limitar ao que é  dado superficialmente, mas descortinar as camadas da realidade, buscando os significados intencionais ou voluntariament e escondidos. Neste sentido, considerando a analogia

     da cultura como textos(Geertz, 1989) produzidos na inte ração do pesquisador com e sobre seus informantes, buscar o“subtexto da cultura”; osinterstícios, os silêncios e

     os múltiplos disfarces dos conceitos nati vos; 3)“seguir os passos dos

     adivinhos”, retrata dois sentidos: a) a seleção de pessoas, auto ridades, contadores de histórias, ou seja, informantes-chaves que se autorizam a narrar  suas experiências e que são pessoas conhecedoras do obje to de inte resse do

     pesquisador; além disso: b) considerar que o processointerpretativo é da mesma

     natureza da“adivinhação”, não no

     sentido mágico da tarefa, mas que advém da poss ibil idade do pesquisador conectar os signos por ele selecionados,identificando-os dentro deum sistema de significados

     ou modo de pensamento que prevalece dentro do grupo estudado; 4) a quarta regra para desenvol ver ainterpretação antropológica

     sob bases conf iáve is

     ressa lta que cabe ao pesquisador “se comprometer no esforço cooperativo criativo” para compreender a realidade estudada. Neste sentido, é  preciso considerar que ainterpretação dos textosimplica numa cooperação

     entre o escritor e o leitor (Ricoeur, 1989, p. 1991)

     que deve ser capaz de preencher os espaçosvazios; considerar que osinformantes são co-autores

     ao fornecerem asinterpretações nativas.

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    Nesta perspectiva, ler um texto significainterpretá-lo, ou seja, apropriar-se doestranho, no sentido de diminuir a distânciacultural (Ricouer, 1989; 1991). A tarefa da

    leitura é efetuar a referência para o mundo epara o sujeito, atualizando a ambiência e aaudiência. A escrita reivindica a leitura e istomodifica a relação autor-leitor, coloca o leitorno lugar de quem produz uma interpretaçãoseguindo a própria interpretação oferecida notexto.

    Para Geertz (2002), a interpretação pode sertambém exemplificada como sendo a

    passagem da experiência próxima àexperiência distante. Por experiência próximaentende-se o uso natural e sem esforço deexplicações sobre o que os semelhantesvêem, sentem, pensam e imaginam que osdemais membros do grupo entenderiamfacilmente; por sua vez, a experiência distanteé uma outra interpretação, não menos válidado que a anterior, elaborada para alcançarobjetivos científicos, filosóficos ou práticos.

    No terreno da interpretação, ao pesquisadorcabe não se limitar à experiência-próxima,mas considerá-la como ponto fundamentalde partida. Tomamos os relatos dos nossosinterlocutores como produzindo conceitos deexperiência-próxima, ainda que, em algunsmomentos, eles façam uso de conceitos quevêm de experiência-distante, pois sãotambém especialistas. Esta foi a nossaproposta interpretativa.

    Psicoterapias ePara-Psicoterapias: vertentesda atuação psicológica

    Muitos são os termos utilizados pelospsicólogos ao relatarem as atividades quedesenvolvem nos serviços públicos de saúde: psicoterapia, psicanálise, psicoterapia de base

     psicanalítica, psicoterapia breve, orientação,

    aconselhamento psicológico (individual ou em

     grupo), acompanhamento psicológico, terapia,

    terapia breve, (de) apoio, de suporte e de grupo.

     A despeito do tipo de prática psicológica

    oferecida, a escuta é considerada a ferramentaprincipal de atuação e é freqüentementeusada para qualificar e diferenciar sua práticadaquelas desenvolvidas por outros profissionais(incluindo os psi). À escuta são atribuídos umcaráter refinado, uma certa curiosidadedesvelada em um estado de permanenteatenção requintada por parte do psicólogo,além de uma ação de alerta e de interessesobre a fala significativa, que reconstrói a

    história dos sujeitos, revelada a partir de seussentimentos, emoções, desejos e conflitos. Osencontros clínicos são descritos como lugaresprivilegiados de acesso à subjetividade, debusca de autoconhecimento e crescimento.Neste sentido, as práticas psicológicasreivindicam o acesso à subjetividade noprocesso de saúde-doença-cuidado.

     A psicoterapia ocupa um caráter de “ideal

    de atuação” hierarquicamente superior àsdemais técnicas terapêuticas oferecidas. Ousuário é sempre recebido pelo psicólogocomo um possível candidato à psicoterapia,seja através de encaminhamento do próprioserviço ou da demanda espontânea. A maioriados psicólogos organiza seu trabalhooferecendo psicoterapia de base psicanalítica;as outras práticas terapêuticas são tidas comovariações necessárias e circunstanciais, em

    certa medida legitimadas quando háimpedimentos à realização da psicoterapia.De certa forma, estas últimas são tratadaspelos próprios profissionais como menosimportantes, porém mais adequadas ao perfilde uma parcela da clientela, sendo por issodenominadas por nós de para-psicoterapias.

    Os psicólogos, ao utilizarem o termopsicoterapia, apresentam os seguintes signos

     Mônica Lima & Mônica de Oliveira Nunes

     [2] Est e pro cedime nto reme te-s e as ideais de Ricoeur (1989; 1991) que parte da premissa de que o ato da leitura é diferente do ato do diálogo. Uma característica importante que marca esta diferença é que a escrita preserva o di scurso e o to rna disponível para a memóriaindividual e coletiva. O

     diálogo está para a fala, assim como, a escrita está

     para a leitura, uma vez  que a escrita toma o lugar  do discurso. No entanto, não há supremacia entre a fala e a escrita: “o que aparece na escr ita é o di scurso enquantointenção de dizer e [...] a

     escrita é uma inscrição directa desta intenção, mesmo se, his tór ica e ps icol ogicamente , a esc ri ta come çou por transcrever graficamente

     os signos da fa la”(Ricouer, 1989, p. 143).

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    e significados atribuídos ao mesmo: terapiade autoconhecimento, de competênciaexclusiva do psicólogo, realizada a partir dosconteúdos trazidos espontaneamente pelo

    usuário, baseada na capacidade interna eindividual do usuário de adequar-se àprodução de um discurso psicológico.Segundo esses profissionais, as psicoterapiasque realizam nos serviços públicos não são“análise” nem “psicanálise”. O fato dopsicólogo “interferir muito mais” ou ser “maisincisivo” nestes contextos de trabalho é ummarcador da diferenciação em relação àsatuações realizadas em consultório privado:

    Olha, a gente utiliza o referencial, né... é...psicanalítico aqui. E alguns pacientes,dependendo do tipo, da problemática dopaciente e da estrutura desse paciente -quando eu falo de estrutura, quer dizerestrutura psíquica – eu interfiro muito mais...do que interferiria no consultório, né? [...]uma necessidade – é a palavra exata – de...esse trabalho ser no menor tempo possível.

    Então, eu tenho que fazer um trabalho maisincisivo e, às vezes, eu sou muito menos...é... psicanalista aqui do que no consultório.[Psicóloga 02].

    Entre outros fatores que influenciam a nãorealização da “análise” ou “psicanálise” estãoos derivados: a) da estrutura institucionalinadequada (tipo de sala, falta de divã, etc),mas este tipo de questão é criativamentesuperada pelo profissional; b) dos dispositivosinstitucionais (tempo e números de sessão,pressão para alta psicológica e apredeterminação de quantidade de usuáriosa serem atendidos).

     Acho que a gente não tem nenhum.. .nenhuma estrutura pra fazer um trabalhopsicoterápico bom aqui dentro. A gente fazum trabalho, que eu chamo muito mais de

    uma psicoterapia de apoio. Apesar de apsicoterapia de apoio ser considerada umapsicoterapia breve, eu tenho alguns pacientesque já têm mais de três anos comigo, que eunão vejo condições de mexer, de afastá-los.[Psicóloga 02]

    Um terceiro desafio nos parece, no entanto,bem mais significativo: c) a inadequação dastécnicas dos psicólogos  a uma parte dapopulação que busca os serviços, seja porconta da estrutura psíquica do usuário, dasexpressões incomuns de sofrimento, dascondições socioeconômicas da população e,

    principalmente, do distanciamento daclientela em relação a um estilo intimista eintrospectivo de expressar emoções esentimentos:

    [...] eu acho que não chegariam numconsultório particular, entendeu? Assim, todotipo de patologia, todo tipo de rede familiarque você possa imaginar, e tal, assim, é aí que você percebe que é uma realidade

    completamente diferente, que você que temque se adaptar àquele, e não você quererque o paciente se adapte ao seu referencial,entendeu? [Psicóloga 03]

    Dois aspectos são importantes de seremdestacados em relação à percepção dosentrevistados sobre a realidade e a clientelaatendida nos serviços públicos de saúde. Oprimeiro diz respeito à maior diversidade

    clínica e de redes familiares mais difíceis dechegarem ao consultório particular. O segundoaspecto está relacionado à necessidade deadaptação da atuação psicológica para darconta dessa realidade. A maioria dos usuáriosparece não apresentar determinadascaracterísticas que favoreçam o engajamentoque o trabalho psicológico exige. No relatoabaixo, chama à atenção o fato de oprofissional ter a necessidade de mexer no

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     [...] eu acho quenão chegariamnum consultório

     particular,entendeu? Assim,

    todo tipo de patologia, todotipo de rede

    familiar que você possa imaginar, etal, assim, é aí que

    você percebe queé uma realidadecompletamente

    diferente, quevocê que tem quese adaptar àquele,e não você querer que o paciente se

    adapte ao seu

     referencial,entendeu? 

      Psicóloga 03

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    próprio referencial clínico de base, sejaincluindo outras leituras, escolhendodeterminadas técnicas em detrimento deoutras que julga mais pertinentes, ou mesmo

    vislumbrando a mudança do referencialteórico para uma outra abordagem teóricaincompatível com a anterior para dar contada diversidade da clientela atendida.

    É uma coisa assim que eu até criticava muito[...]o, sempre criticava muito essas pessoasque faziam desse modelo um monte de coisa,mas, ao chegar aqui, eu percebi que eu tinhaque me flexibilizar mesmo assim um pouco,

    porque senão eu não ia tá podendo atendernem 5% dessa população, né, eu ia táoferecendo um serviço mui-to elitizado prao que essa população pede e solicita, temcapacidade assim, às vezes, de compreensão.Então, meu referencial teórico mudou, eutive que passar a ler outras coisas assim.[Psicóloga 03]

    Que mecanismos poderiam estar por trás

    dessa aparente dissonância entre a orientaçãoteórica dos psicólogos e as demandas dospacientes? Para desenvolvermos essadiscussão, lançaremos mão de Figueira (1978,p. 59) no texto em que ele descreve comoas pessoas orientam-se no processo de buscaterapêutica frente à diversidade de sistemassimbólicos. Segundo o autor, um sistemasimbólico pode ser entendido como umamatriz de “significados socialmente

    objetivados e subjetivamente reais”, na quala biografia do indivíduo se inscreve. Umsistema simbólico tem caráter “ordenador,fornecendo, ao sujeito que o adote, umaperspectiva coerente para a apreensãosubjetiva das diferentes fases de suabiografia”. Figueira (1978) identificou trêsestilos de relação de um sujeito com ossistemas simbólicos: o isolamento, arelativização e a desorientação. Invertendo

    aqui o sujeito de referência da análise realizadapelo autor dos que buscam o tratamento(usuários) para os que o oferecem (psicólogos),consideramos que os psicólogos têm

    disponível uma gama de sistemas simbólicos,ainda que circunscrita ao seu próprio campodisciplinar, podendo lançar mão desse arsenalao se depararem em sua trajetória profissionalcom questões que dificultam a realização doseu trabalho. Na relação de isolamento, osujeito se orientaria totalmente por um sistemasimbólico específico. Este “fornece ao sujeitouma weltanschauung capaz de dotar o mundoe sua experiência social de sentido e lógica,

    não deixando brechas por onde possa insinuar-se o desconhecido” (Figueira, 1978, p. 63).O estilo de relativização permite que o sujeitomantenha uma relação mais amistosa comoutros sistemas. Há “possibilidade derelativizar a própria visão de mundo, captando-lhe os delineamentos, limites, potencialexplicativo e vantagens” (Figueira, 1978, p.64). No outro extremo, temos a desorientação,onde, por motivos os mais diversos, os sujeitos

    “se encontram impotentes diante dapluralidade, oscilam entre visões de mundo,conjunto de normas e grupos de referênciacontraditórios, o que vem acompanhado deum estraçalhamento de fidelidade e aliança”(Figueira, 1978, p. 65).

    Os profissionais entrevistados, frente aosdesafios encontrados para a realização do seutrabalho, podem vir a desenvolver uma certa

    relativização ou desorientação em relação aoseu próprio sistema simbólico, ao sinalizarema necessidade de flexibilização e adequaçãoda sua atuação. Uma das hipóteses de Figueira(1978) é que a relação de isolamento dopaciente estabelecida com um determinadosistema simbólico aumenta o poder debenefício do mesmo, no que diz respeito aoaproveitamento do tratamento psicológico. Anossa hipótese segue um caminho contrário:

     Mônica Lima & Mônica de Oliveira Nunes PSICOLOGIA CIÊNCIA EPROFISSÃO, 2006, 26 (2), 294-311

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     Na relação deisolamento, osujeito se orientariatotalmente por umsistema simbólicoespecífico. Este“fornece ao sujeitoumaweltanschauungcapaz de dotar omundo e suaexperiência social de sentido elógica, nãodeixando brechas

     por onde possainsinuar-se odesconhecido” 

    Figueira

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    o estilo de isolamento do profissional podedificultar ou mesmo inviabilizar o maior ganhopsicoterapêutico do paciente,particularmente daqueles que se distanciam

    do sistema simbólico do terapeuta, já queapostamos que um estilo de relativizaçãopode apurar a sua escuta psicológica,tornando-a mais sensível aos conteúdossocioculturais.

     A adoção de um estilo ou outro pode aindadecorrer da percepção do profissional de quehá lacunas dentro do seu sistema simbólicoe de que neste não há respostas adequadas

    para a superação de obstáculos interpretativossobre as experiências de sofrimento dos seuspacientes. No caso de isolamento, seria justificada a introdução de leituras e mesmode técnicas não propostas pelo seu sistemasimbólico de origem, mas complementares;no segundo caso, de desorientação,vislumbrar-se-ia a mudança de um sistemapara outro teoricamente incompatível.

     A conjugação de fatores destacados acima,que aparecem nas narrativas dos nossosinterlocutores, reforça o uso e a importânciade uma determinada prática em detrimentode outra. Neste sentido, a princípio as para-psicoterapias [orientação, aconselhamento,terapia breve, (de) apoio, (de) suporte,acompanhamento] correspondem a variaçõesda atuação psicológica “ideal” (psicoterapia). A diferenciação entre tais vertentes tem

    como pano de fundo a própria culturapsicológica da assistência à saúde mentalhierarquizada que coloca todas as outrasterapêuticas não medicamentosas comotendo importância e eficácia secundárias oucomplementares. Do ponto de vista dosnossos entrevistados, esta diferença sugereainda um outro nível hierárquico dentro dasintervenções psicológicas desenvolvidaspelos psicólogos. Neste caso, decorrente do

    fato de ser necessário adequar a atuaçãopsicológica em resposta a determinadasparticularidades apresentadas pela populaçãoatendida: o discurso de muitos usuários sobre

    os seus problemas de saúde é fortementemarcado por problemas socioeconômicos eculturais específicos.

     A nossa hipóte se é que, em si tuaçõesconcretas de escuta psicológica, o que podecontribuir para a compreensão da realizaçãode uma prática psicoterápica em detrimentode outra, ou da conjugação de teorias e detécnicas diferentes, parte do modo como os

    psicólogos lidam e interpretam as dimensõesde significação dos problemas de saúde daclientela (Lima, 2005).

     Atuações psicológicas:dimensões de significação efunção psicoterapêutica

    Identificamos duas grandes dimensões designificação atreladas aos relatos dos

    psicólogos sobre as práticas psicológicas e,conseqüentemente, fonte potencial de guiada escuta psicológica. Dimensões designificação de um problema de saúdereferem-se a um conjunto de aspectosqualitativamente importantes e valorados porquem interpreta um determinado problemade saúde, atribuindo-lhes algum significadoe sentido, aos quais podemos relacionar paracompreendermos o problema e as respostas

    elaboradas para o seu manejo. Observamosdois componentes principais que marcamprincipalmente as atribuições presentes nessadimensão de significação. Um delescaracterizaria o que chamamos de dimensãoindividual (psíquica e biológica), definida apartir da estrutura psíquica do usuário(psicótica ou neurótica), ou pelo tipo egravidade da doença propriamente dita(transtornos mentais leves, moderados e

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     Dimensões designificação de um

     problema desaúde referem-sea um conjunto de

    aspectosqualitativamente

    importantes evalorados por 

    quem interpretaum determinado

     problema desaúde, atribuindo-

    lhes algumsignificado e

    sentido, aos quais podemos

     relacionar paracompreendermos

    o problema e as respostas

    elaboradas para oseu manejo.

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    graves); geralmente são aspectos que seremetem a interpretações de cunho maisinterno dos problemas de saúde. O outrocomponente diz respeito à dimensão de

    significação coletiva, melhor caracterizadapelos aspectos socioeconômicos e culturaisevidenciados nas interpretações dospsicólogos; a princípio, tudo aquilo a que nãose poderia dar respostas clínicas, mas que estáem jogo na produção de sentido dosofrimento.

     Atuações psicológicas:dimensão de significação

    individual

    Uma das perspectivas da dimensão designificação individual que orienta a atuaçãopsicológica diz respeito à relação entre o tipoe a gravidade da doença, e não à pessoadoente. Neste sentido, os problemas gravesde saúde mental, como as esquizofrenias, asdepressões e ansiedades acentuadas seriamtratadas com para-psicoterapias, qualificadas

    como apoio, orientação ou suporte.Destacamos um dos fragmentos narrativos dosnossos informantes abaixo:

    ●  Psicoterapia como suporte ou apoioPessoas em... crise muito acentuada, crisede ansiedade muito forte, depressão muitotambém acentuada, então fazem uso demedicação e a psicoterapia fica mais comoum suporte assim, mais como um apoio, né.

    [Psicólogo 04]

     As para-psicoterapias comumente aparecemdescritas em situações em que o seuemprego envolve uma funçãopsicoterapêutica secundária quandocomparadas à atuação idealizada. Em relatosque as descrevem há também a percepçãode que o uso de medicação é um marcadorpotencial hierárquico que coloca as para-

    psicoterapias em segundo plano em relaçãoà sua capacidade de trazer benefíciospalpáveis aos usuários.

     Jucá (2003) discute a relação terapêuticapsiquiatra-usuário de ambulatório de umhospital psiquiátrico, do ponto de vista dosprimeiros “é visível a tendência dehierarquizar as várias terapêuticas, onde opsiquiatra aparece no ápice e as outrasintervenções se caracterizam como trabalhosde ‘apoio’” (Jucá, 2003, p. 154). Chama aatenção para a ausência do reconhecimentodo trabalho psicológico como um dos

    elementos compensadores. Paradoxalmente,no discurso dos usuários, há indicativo deganho terapêutico quando se pode dispor deacompanhamento psicoterápico, interpretadocomo um espaço de ressignificacão da suacondição de “doente mental”, concomitanteao trabalho de manutenção (Jucá, 2003). Noentanto, a única menção feita por um dospsiquiatras remete-se à idéia de que otrabalho psicológico, neste caso psicanalítico,

    pode funcionar como um fator indiretamentedescompensador (Jucá, 2003). Tal atributodescompensador foi endereçado ao papel queos pastores tendem a exercer nos usuáriosem tratamento religioso, os quais seguemseus conselhos interrompendo o uso domedicamento (Jucá, 2003).

    Nas falas dos psicólogos entrevistados, há umatendência de a psicoterapia ser vista como

    mais indicada para alguns casos específicos,geralmente coincidindo com as demandastrazidas pelos neuróticos, principalmente paraos psicólogos que não estão preparados paraatender a clientela de psicóticos, que é amaioria dos profissionais. Há casos em que aescuta psicológica é vista como um “apoio”,qualificada aqui como para-psicoterapia, masque não desautoriza um trabalho psicológico,mesmo para psicóticos:

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    porque é mais um apoio que eu dou a ela; éuma escuta, claro, eu escuto, ela fala!... Temum discurso, inclusive, espontâneo, apesarde desorganizado, porque ela tem uma

    estrutura bem comprometida, mas ela nãoaceita [interromper, ter alta]. Ela vem todasemana. [Psicóloga 02]

     Acompanhando um pouco mais a históriadessa paciente, percebemos que elacomeçou a ser atendida há três anos, tem33 anos, fez a primeira crise de esquizofreniaaos 19 anos e tem um filho. Foi encaminhadapelo psiquiatra para o tratamento psicológico.

    Em algum momento foi morar em Arembepee recomendada pela psicóloga a continuarseu tratamento na cidade para a qual semudara. Apesar da distância, esta propostanão foi bem aceita pela usuária, quecontinuou comparecendo ao ambulatório embusca de dar continuidade ao seuatendimento psicológico, sendo acolhida pelapsicóloga:

    E eu comecei um trabalho com ela e tudomais... consegui, inclusive, ligar as trompasdela fora daqui, [..] parir todo ano, porqueela não tem nenhuma censura [...] é aquelaconfusão toda. [...] E chorava e pedia. Eunão ia deixar essa paciente sem atendimento.[...]. Depois do retorno, ela já ‘tá comigotem mais de três anos, porque... e ela nãofalta! [Psicóloga 02]

    Nos relatos acima, percebemos que apsicóloga qualifica o tratamento psicológicocomo um apoio. Esta adjetivação decorreriado fato de se tratar de uma pessoa comestrutura psicótica, ou por incluir estratégiaspouco convencionais à atuação de umpsicólogo, por exemplo, a cooperação paraviabilizar uma cirurgia de ligadura de trompa?Estimular a produção de discurso espontâneo,apesar de “desorganizado” e desenvolver um

    acompanhamento sistemático através de“escuta” semanal não dariam a esta atuaçãopsicológica um estatuto de psicoterapia? Nãopercebemos justificativas que possam vir a

    qualificar este tipo de atuação psicológicacomo secundária no tratamento da usuáriase não as decorrentes de uma visãoreducionista do transtorno mental, quetenderia a desqualificar o cuidado da saúdemental pautado no manejo da subjetividadede transtornos graves.

    Há uma tendência, que aparece nas narrativasdos psicólogos, de que a psicoterapia seja

    mais adequada ao tratamento de neuróticosdo que de psicóticos, muito mais pelaconsciência em relação ao despreparoindividual de cada profissional em tratar osúltimos. Nesta direção, focalizando o olharnos usuários “não-psicóticos”, encontraremosoutro tipo de seleção socioculturalmenteorientada em relação aos próprios neuróticos,clientela básica dos psicólogos nos serviçosvisitados. Esta seleção recai na capacidade de

    compreensão do tratamento psicológico porparte dos mesmos, que traz subjacente aidéia de que pessoas, por serem “maisinformadas e mais esclarecidas”, estariammais aptas à psicoterapia. É possível que esta“seleção” esteja operando por causa daconfusão entre competência psicológica e acapacidade universal de expressar conflitospsíquicos (Bezerra-Júnior, 1993). Confusãorevelada pela expectativa do profissional de

    que haja, por parte do usuário, a capacidadede descrição detalhista e minuciosa dossentimentos e emoções associados aosofrimento e à tendência de buscarexplicações fora do aparente, recorrendo aoseu mundo interno, típica da competênciapsicológica (Costa, 1989).

    Nesse particular, entra em jogo maisexplicitamente a segunda perspectiva

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    atribuída à dimensão individual: é a pessoa,e não só a doença, que define o sentidoatribuído às práticas psicológicas. Osignificado atribuído à prática ocorre a partir

    da capacidade individual do sujeito, ou dasua competência psicológica, podendo,então, exercer função psicoterapêuticaprincipal. Nas narrativas dos entrevistados, adescrição de pessoas que supostamente têmdemanda psicológica, ou competênciapsicológica, para a psicoterapia, inclui asseguintes características: “passar da queixa àdemanda”; “ter determinado nível dequestionamento, aprofundamento”; “ter

    insight”; “trazer conteúdos para seremtrabalhados”; “busca o potencial que temdentro dele”; “se questiona”; “interesse defazer uma auto-avaliação”; “compreendermelhor as coisas”; “buscar oautoconhecimento”; “capacidade paraelaborações”.

     As narrativas abaixo são exemplares emdescrever que o tipo de prática oferecida está

    em função de determinadas características dapessoa, que, se não conduzem a explicaçõesdeterministas, ao menos trazem subjacentesuma associação que buscamos aqui explicitar. As para- psicoterap ias (orient aç ão ,acompanhamento e terapia breve, etc) sãooferecidas para os menos aptos a umaprodução discursiva de estados emocionais esentimentos e são assim relacionadas pelospsicólogos:

    ● Terapia breve

    Olha, no Serviço Público a gente nãotrabalha... a gente trabalha com umaabordagem psicanalítica, mas a gente nãotrabalha com psicanálise, tá. A gente introduza psicanálise, mas, aqui não tem nem umespaço físico que permita isso, né, e também,[diz o nome da entrevistadora], você sabe,

    fazer um tipo de terapia com umaprofundamento maior, exige o quê, um nívelintelectual, um nível de associação maiselaborado, que a nossa clientela nem sempre

    apresenta. Outra coisa é o tempo que a gentetem aqui, de um ano. Então de um ano, agente tem que fazer uma terapia breve, agente não pode focar na questão principalque é a que o usuário traz [...] A: Mas semdescartar o inconsciente. [Psicóloga 06]

    Elas evidenciam ainda que a psicoterapiarequer, como condição para sua realizaçãosatisfatória, a presença de pessoas com maior

    capacidade de associação de idéias, quetenham nível intelectual elevado, o que,segundo alguns informantes, não coincidenecessariamente com maior nível econômico.

    tem outras pessoas que têm escolaridadebásica, ou nenhuma e que ficam também.Eu acho que é uma coisa muito mais, assim,interna, da formação do sujeito, da pessoa,do questionamento, da relação que teve com

    a vida pregressa, familiar, com a família deorigem. [...] claro que o nível intelectual entratambém, mas eu não generalizaria, não diriaque é por isso. [...] eu atendo, uma senhora;ela é lavadeira, não teve nem primeiro grau,é uma pessoas super sofrida, veio do interior,né?! uma coisa muito delicada a situação dela,e ela tem, assim, uns insights fantásticos, elatem umas colocações muito boas, ela sequestiona, ela é muito envolvida no trabalho,no atendimento, comprometida mesmo.[Psicóloga 07]

    Tais ponderações feitas pelos entrevistadossobre como os aspectos socioeconômicosdeterminam a natureza e a expressão dosofrimento psíquico demonstram acomplexidade que envolve a qualificação daescuta psicológica e exigem a relativizaçãode como os critérios que compõem cada

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    uma das vertentes aqui definidas mantêmentre si uma espécie de borrosidade maisdo que de determinação unilateral. Nestadireção, na narrativa destacada acima,

    podemos também perceber que há pessoasque não têm escolaridade alta, mas queconseguem permanecer e obter benefíciosdo processo psicoterápico. Há, ainda, emalgumas narrativas, a preocupação de tomarvários aspectos como conjugados e nãoatribuir a adesão e a melhora de um pacientea um motivo isoladamente. No entanto, évisível a tendência de atribuir os benefíciospsicoterápicos a uma certa capacidade

    interna da pessoa de lidar com os seusproblemas, que particulariza um dado modode se relacionar com o contexto familiar ecom a sua vida pregressa, como maisimportantes para a adesão à psicoterapia. Paraalguns entrevistados, o comprometimentopsíquico ou físico acentuado do usuário podedesautorizar qualquer intervençãopsicológica, no sentido de ganhopsicoterapêutico, ao menos no sistema

    ambulatorial:

    Eu tenho poucos pacientes que eu possodizer que estão em processo de psicoterapia,tenho alguns em acompanhamentopsicológico, a maioria, mas no processo depsicoterapia, de se comprometer de vir e talsão poucos mesmo. [...] Eu acredito queaqui a gente atende uma parcela dapopulação com, eu acho que talvez o menor

    nível econômico e educacional de Salvador,que é a população do subúrbio, então não ésó a questão de ser público, é questão deser mesmo... a total ausência às vezes deum hábito ou de um interesse de fazer, defazer uma auto-avaliação, de compreendermelhor as coisas, um nível de alienaçãomental muito grande, [...] talvez se adequemmais a uma TO [terapia ocupacional], a umaoficina, alguma coisa assim. Porque é uma

    psicoterapia que, muitas vezes, a gente dáinício, mas a gente percebe que não vai terum rendimento muito grande e aquelepaciente acaba abandonando mesmo, é o que

    acaba acontecendo mesmo com boa partedessa população. [Psicóloga 03]

    Todos os psicólogos consideram a dimensãobiológica do sofrimento como garantia de queé preciso intervenção medicamentosa paradiminuir o sofrimento; às vezes, a intervençãomedicamentosa é condição sine qua non paraentrada dos usuários com problemas psíquicosgraves no trabalho psicológico. Por outro lado,

    do ponto de vista dos psicólogos, depois doemprego do trabalho psicológico, a suspensãoou diminuição dos psicofármacos é ummarcador da melhora do paciente e da eficáciado processo psicoterapêutico.

    Outro aspecto que merece especialconsideração é o fato de existir umapropensão à mudança do perfil da clientelaatendida pelos psicólogos nos serviços

    visitados, descrita como uma “demandadiferenciada”. Neste particular, observa-seque há uma inclusão mais recente da “classemédia empobrecida”, ou pessoas “maisesclarecidas”, que têm buscado atendimentopsicológico nos serviços públicos de saúde,considerada mais apta à psicoterapia.Introduz-se aí, com mais evidência, adimensão social da seleção dos pacientes paraesse tipo de atendimento.

     Atuações Psicológicas:Dimensão de significaçãocoletiva

     A dimensão de significação coletiva inclui osaspectos socioeconômicos e culturais dosproblemas de saúde, que podem serpercebidos como qualitativamente relevantespara a compreensão dos mesmos. Em sua

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    perspectiva socioeconômica, é interpretadapelos interlocutores como um entrave àspráticas psicológicas. Neste sentido, a atuaçãopsicológica oferecida nos serviços públicos de

    saúde visitados não teria funçãopsicoterapêutica:

    tem muito caso, até mesmo pela região muitopobre, então tem muito caso que a gente vêé que uma pessoa tá encaminhada, muitasvezes não é nem a questão da psicoterapia,mas a questão é de fome, questão de faltade trabalho, da dignidade mesmo...[Psicóloga 05]

     A narrativa abaixo traz uma descrição muitoemblemática sobre a determinação docontexto socioeconômico desfavorável deuma família para o comprometimento dodesenvolvimento psicológico de uma criança.Destacamos a percepção da psicóloga sobreo limite da atuação psicológica oferecida paralidar com o problema de saúde, que temcomo palco um contexto típico de uma

    parcela das classes populares. O foco daintervenção psicológica acaba se restringindoa torná-la mais resignada, no sentido deconviver com a falta de amor da mãe, quenão tem tempo de demonstrar essesentimento dada a sua condição detrabalhadora pobre. O significado atribuído àdimensão social é restritivo e determinista emrelação à sua influência sobre o estar nomundo de pessoas que pertencem às classes

    populares:

    E tem uma coisa assim, que é uma questãosocial séria, que muitas vezes durante estetempo, me dá meio desespero, assim! Porquevocê não tem muito o que fazer. Você alertaos pais, você orienta os pais, você discute,trabalha com eles a questão da relação pai-filho, mãe-filho. Mas, e aí? Ele não tem acondição de melhorar isso, porque não tem

    tempo, a mãe chega em casa de noite, vaifazer o quê? Vai cozinhar para o outro dia,vai fazer isso, isso e aquilo. Qual é o tempoque a mãe tem de colocar o filho do lado,

    deitar a cabecinha no colo “e aí, filho, o quequê você fez hoje?” [...] O que eu tenhotrabalhado, aqui, é pra ela conviver bem comisso. Saber conviver com essas questões,mas... ele vai sentir falta, vai sentir falta, vaificar essa defasagem, vai ficar defasado, vaisentir essa falta de amor, de carinho, deatenção. Eu não sei como é que vai ser isso,não é, mais tarde? [Psicóloga 08]

    Muitos dos fragmentos resumem o sofrimentopsíquico a uma única dimensão, às vezesdando ênfase à biológica, e em outras àpsíquica, em detrimento da importância docontexto social como constituinte dessesofrimento; este é visto como determinantede uma condição imutável. Há ainda, para adimensão de significação coletiva, um outroaspecto que diz respeito a expressõesculturais de sofrimento distantes da visão de

    mundo psicologizada, que autorizam umaescuta psicológica muitas vezes truncada,quando não a desautorizam totalmente. Noprimeiro caso, o psicólogo tenta aproximar o“texto” trazido pelo usuário de descriçõesmais conhecidas, a exemplo do discurso dodeprimido, mas que não parece trazer muitosganhos para o processo psicoterapêutico:

    essa depressão, que elas chamam de umnervoso, vamos dizer assim, né, todo essetexto, eu tô sentindo um nervoso. Essenervoso indefinido, que eu acho que é maisuma coisa depressiva, que é a minha clientelabásica (risos) [...] agora eu não sei identificarum caso, ou um exemplo. Mas é muito assim,mulheres que não sabem o que fazer da suavida, que não, que tão angustiadas, porquetão em casa e aí, maridos, né, que bebem,ou que têm a vida deles, ou que têm outra

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    tem muito caso,até mesmo pela

     região muito pobre, então temmuito caso que agente vê é queuma pessoa táencaminhada,muitas vezes não énem a questão da

     psicoterapia, masa questão é defome, questão defalta de trabalho,da dignidademesmo...

    Psicóloga 05

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    mulher, entendeu? Então a vida delas seresume a quê, né, a cuidar da casa, dos filhos,né, não têm um parceiro, enfim... ouquando tem, às vezes têm um parceiro mais

    legal e tudo, elas sentem um vazio que nãosabem explicar por quê, entendeu? Aí achamque é porque deixaram de estudar, deixaramde ter uma profissão, entendeu, abriram mãoda vida, enfim... Enfim, eu acho que é umacoisa que a gente já sabe, né, que é a faltade perspectiva mesmo... Mas, o que é queeu teria mais pra falar sobre isso, que eu nãosei? (risos) [Psicóloga 09].

    Outro aspecto que chama atenção é o fatode ser tão difícil para esta psicóloga relatarum único caso destes que ela tenhaacompanhado, ainda que sejam essasmulheres as que mais lhe procuram. Nestaperspectiva, é razoável inferir que aentrevistada parece tomar os discursos desofrimento das usuárias que atende excluindoqualquer outra possibilidade de significaçãoque esteja além das suas dificuldades

    concretas de vida; os conteúdos trazidospelas suas pacientes não fazem sentido paraa escuta oferecida. Nessas situações, quandonão é possível a ancoragem de um textomenos familiar em um outro mais conhecido,pode haver a criação de uma nova categoria,como por exemplo, os discursos desofrimento serem rotulados como “neurosesde dona de casa”:

     A gente percebe muito aqui no ambulatórioaquelas neuroses das donas de casa, aquela“ah doutora, eu não durmo, porque meumarido está com outra”, “eu não durmo,porque meu filho sei lá o que, eu não seimais o que fazer”. Outras coisas assim.[Psicóloga 09]

     A “neurose de donas de casa” como categoriaetnográfica, encontrada entre os nossos

    interlocutores, padece do mesmo mal das“neuroses sociais” descritas por Nunes (1993). A pr incípio, es te tipo de expres são desofrimento, nervoso ou neuroses de dona de

    casa, tende a ser desqualificado pelosprofissionais psi. Alguns dos chavões que sepode ouvir são que tais pessoas “só fica[m]na queixa” ou “não têm demanda”, ou seja,não conseguem ter um nível profundo dequestionamento. Na literatura antropológica,o nervoso é considerado um idioma culturaltípico das classes populares (Duarte, 1986;Costa, 1989; Bezerra-Júnior, 1993; Silveira,2000). Segundo Silveira (2000), ouvindo

    mulheres nervosas que buscavamatendimento em serviços públicos de saúde,numa cidade ao sul do Brasil, o nervoso podeser entendido como um idioma com usos efinalidades importantes para a conduta médica.

     A escuta do idioma do nervoso pôde revelarexperiências semanticamente significativas ecriadas dentro de redes de interação socialparticulares, sendo possível destacar papéise funções sociais que sustentam a vida das

    pessoas, incluindo as experiências desofrimento. As queixas de nervoso remeteramà opressão da ou na vida diária, problemas dasexualidade, dificuldades de relacionamentosocial, entre outros, justificando a pertinênciaem relacionar suas causas aos seussignificados, reafirmando que a doença nãoé um acontecimento meramente biológico,mas um acontecimento que demonstra umaconjuntura pessoal, social e política adversa.

     Ainda em alguns relatos aparece uma visãoreducionista da complexa relação entreconteúdos religiosos e a expressão desofrimento psicológico como tendo carátereminentemente psicopatológico. Talassociação tende a inviabilizar um maior poderinterpretativo do conflito psicológico, mesmoquando os conteúdos mágico-religiosos foramemitidos por pessoas com estrutura psíquicamenos comprometida. A nossa hipótese é de

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    que as pessoas que sofrem de nervoso, e quesofrem por conseqüência de olhado, ououtras nosologias populares, constroem seus“textos” alicerçados em uma visão de mundo

    pouco individualista, por isso pouco sensívelaos ouvidos inadvertidos dos psicólogos. Aparece, na descrição dos casos clínicosrelatados pelos entrevistados, a dificuldadede escutarem um discurso muito diferentedo que estão acostumados a receber naclínica particular. A busca de supervisão clínicademonstra o empenho de alguns psicólogose a própria necessidade de estarem maisatentos a esses impasses:

    Não, mas eu acho assim, poxa, eu tenho quedar a uma pessoa, que não pode me procurara nível particular, a mesma qualidade noatendimento que eu dou a uma que pode.Eu não me permito fazer essa diferença. Queeu acho que você, tipo... Eu tinha um colegaaqui que ele dizia: “[diz seu nome], mas eunão vou atender a essa senhora, porque elanão sabe nem falar. Ela só vem falar que não

    tem dinheiro, que ela... das questões sociaisdela”. Aí ele virou para mim e, esse colegameu que dava supervisão aqui, falou assim:“e ela não tem... você... ela não merece serouvida por conta disso?”, entendeu? Elamerece o mesmo nível de atenção que vocêdá a um que consegue um nível deelaboração, que ela não tem, ela não alcança.Tá... ouvir as questões sociais, você tátratando essa pessoa. Você está tratando

    dentro dos limites dela. [Psicóloga 09].

    Fica evidente a dificuldade de atribuir sentidoaos conteúdos culturais para a construção dediferentes modos de expressão dasubjetividade. Não seriam o “nervoso”, ouas “neuroses de dona de casa”, ou o sofrerde “olhado”, maneiras de sentir, pensar eproduzir, provenientes de modelos diferentesde subjetividade? Quais as vantagens de se

     Mônica Lima & Mônica de Oliveira Nunes

    considerar tal hipótese? A partir do modocomo os psicólogos escutam as dimensõesde significação dos problemas de saúde,identificamos que há duas vertentes da escuta

    psicológica assumidas em tais situaçõesconcretas de escuta: 1) a primeira vertente,a escuta cautelosa, é aquela cuidadosa eprudente, que inclui as “impurezas” nosentido de compreender a visão de mundodaquele que produz a fala, considerando acompetência psicológica (Bezerra-Junior,1993) como marcador social e não comoselecionador da clientela; 2) a segundavertente, a escuta asséptica, que elimina, a

     priori, conteúdos “psicologicamente poucorefinados”, está marcada pela miopiaetnocêntrica (Costa, 1989). É justamenteaquela que não encontra funçãopsicoterapêutica nas experiências desofrimentos onde incidem fortemente taisparticularidades das dimensões de significaçãoque se apresentam no discurso de parte dosusuários que buscam os serviços públicos desaúde visitados, sugerindo que há uma

    seleção socioeconômica e culturalmente daclientela.

    Considerações finais

    Distinguimos duas vertentes de atuaçãopsicológica: as psicoterapias e as para-psicoterapias, considerando o modo como ospsicólogos lidam em situações concretas comas dimensões de significação dos problemas

    de saúde apresentados pelos usuários quebuscam atendimento psicológico. Apsicoterapia ocupa um caráter de “ideal deatuação” hierarquicamente superior às demaisatividades. As para-psicoterapias, ainda quetoscamente, parecem-nos um reflexo de umatentativa de não excluir definitivamente umagrande parte das pessoas que buscam osserviços públicos de saúde, pouco afeitas aotipo de “refinamento” da psicoterapia. Parece-

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    nos uma possibilidade truncada de absorver

    pessoas em cujo discurso aparecem, mais

    explicitamente, elementos socioeconômicos

    e culturais distantes de um certo modelo

    interpretativo do sofrimento psíquico tomado

    com padrão. Nesta direção, observamos que

    a escuta psicológica ora assumia uma

    tendência cautelosa, ora asséptica. A escuta

    psicológica dá ênfase à dimensão individual,

    atribuindo-lhe maior função psicoterapêutica,

    tende a desqualificar a dimensão coletiva,

    que escapa ao jogo da produção de sentido

    do sofrimento. Tais modalidades referem-se,

    grosso modo e respectivamente, a uma

    postura profissional psicoterapêutica mais ou

    menos sócio-culturalmente sensível.

    PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (2), 294-311

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    Práticas Psicológicas e Dimensões de Significação dos Problemas de Saúde Mental

  • 8/17/2019 Práticas Psicológicas e Dimensões de Significação dos Problemas de Saúde Mental

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     Mônica Lima & Mônica de Oliveira Nunes

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    Recebido 06/10/05 Reformulado 27/04/06 Aprovado 26/06/06

     Mônica LimaProfessora Adjunta da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).

    Psicóloga e Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva/UFBA Rua Nelson Galo. N° 256 Ed. Aida Nunes. Rio Vermelho. Salvador-Bahia.

    E-mails:[email protected] Telefone: 71-81197638

    Mônica de Oliveira NunesProfessora Adjunta do Instituto de Saúde Coletiva – UFBA

    Psiquiatra e Doutora em Antropologia Médica pela Universidade de Montreal Rua Sotero Monteiro, 207, ap. 401, Pituba. CEP41820-050, Salvador, Bahia

    E-mail: [email protected] Telefone: (71)3263-7435

    Referências

    PSICOLOGIA CIÊNCIA EPROFISSÃO, 2006, 26 (2), 294-311

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