trans cri cao becker

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Sobre H Becker

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  • Transcrio Nome do entrevistado: Howard Becker

    Local da entrevista: So Francisco

    Data da entrevista: 29 de agosto de 2008

    Entrevistadores: Karina Kuschnir

    Transcrio e traduo: Arbel Griner

    Nome do projeto: Becker aos 80

    Depois que conclu Telling about society, [Falando da sociedade] comecei um projeto

    com um velho amigo, Robert Faulkner. Rob socilogo, e tambm um trompetista, somos amigos h muitos anos. Tocamos juntos com freqncia, mas nunca havamos trabalhado juntos como socilogos. Ele especialista em msica de Hollywood e escreveu dois timos livros, um sobre os msicos e o outro sobre os compositores que fazem trilha sonora para os filmes hollywoodianos. Ns comeamos a conversar sobre nossas experincias de tocar msica profissionalmente e reconhecemos que h uma questo maravilhosa para as cincias sociais na experincia cotidiana de msicos que tocam em bares, clubes ou locais para danar. Essa questo : toda noite, ao redor do mundo, em inmeros lugares, trs, ou quatro, ou cinco msicos que nunca se encontraram antes, que no se conhecem e que certamente nunca tocaram juntos, e sem terem uma partitura, sobem no palco e comeam a tocar. E eles tocam lindamente, sem problema. Portanto, a questo para o cientista social : como eles fazem isso?, o que no bvio. E a descoberta principal de nossa pesquisa que eles negociam. Eles tm que descobrir o que conhecem em comum, o que podem fazer juntos e desenvolver o que vo fazer medida que o fazem. As negociaes acontecem muito rapidamente. Podem ser simplesmente assim. s vezes basta um olhar.

    A principal concluso de nossa pesquisa que eles negociam, que eles precisam

    descobrir o que tm em comum, o que podem fazer juntos, e fazer a coisa funcionar ao mesmo tempo em que vo interagindo. As negociaes duram pouqussimo tempo. s vezes, s um olhar diz tudo... Todo o mistrio reside nesses poucos instantes em que eles descobrem o que iro tocar.

    O livro est terminado, ser publicado em julho de 2009 pela University of Chicago

    Press. meu trabalho mais recente. Foi timo trabalharmos juntos, foi uma parceria muito boa, tanto que decidimos fazer outro livro, que acabamos de iniciar e que se chamar Squawk.

    Devo acrescentar que uma das principais idias para a organizao desse livro a

    contribuio realmente maravilhosa que Gilberto Velho deu teoria do desvio h uns 30 anos atrs. Ele escreveu dois textos sobre acusaes, que eu tive a honra de traduzir, propondo que a teoria da rotulao deixava de perceber algo ao falar sempre sobre os desviantes. Ele disse que ns devamos falar sobre as acusaes, porque se voc fala sobre desviantes entra numa longa srie de problemas tericos que eu nunca achei que fossem srios, mas que outras pessoas achavam que eram, porque eram problemas de terminologia, de como se dizer as coisas, que nome dar s coisas. Se voc fala sobre acusaes, isso simplifica tudo porque no h problema em saber que algum acusa algum: Voc um criminoso!... no h dvida

  • Transcrio sobre isso. Gilberto tornou isso o ponto focal do estudo sobre desviantes. Acho que foi uma mudana maravilhosa, brilhante, a partir da qual pudemos avanar.

    L no fundo da minha mente, tenho a idia de outro livro que minha mulher est muito

    ansiosa para que eu escreva, sobre a comparao. Escrevi trs livros que lidam com problemas de se fazer cincia social, Tricks of the trade [Segredos e truques da pesquisa] e Telling about society, todos publicados pela Zahar. Tenho a idia de um quarto livro, sobre comparao, pois acredito que a comparao o principal mtodo das cincias sociais. No preciso dizer isso para antroplogos, pois todos sabem isso, mas muitos socilogos no. Ao longo dos anos, escrevi vrias coisas que usam o mtodo comparativo de diferentes formas, e acho que agora tenho que entender o que eu fiz nesses trabalhos, qual era realmente o meu mtodo.

    KK: Voc tem ttulos timos para seus livros. Voc j tem um ttulo para esse? Sim, eu tenho. Na verdade, o ttulo o motivo pelo qual eu realmente quero escrever o

    livro: What about Mozart? What about murder? [E sobre Mozart? E sobre assassinato?]. uma comparao dos problemas que surgem na sociologia da arte, na sociologia dos desviantes e na sociologia da cincia.

    Interessei-me por essa questo quando publiquei Outsiders, h muitos anos [1963].

    Eu estava em San Francisco e me convidaram para ir a Berkeley, na Universidade da Califrnia, para falar sobre o novo livro. O diretor do Centro para o Estudo de Direito e Sociedade era um socilogo maravilhoso, muito distinto, Philip Selznick. Eu sabia que ele no concordava realmente com minhas idias sobre desviantes, ele acreditava que algumas coisas eram realmente desviantes, e no apenas rtulos. Dei ento minha palestra e ao final Selznick estava de p no fundo da sala, fumando seu charuto, e disse: Isso muito interessante, mas diga-me: e sobre assassinato? Isso no realmente desviante? Percebi imediatamente que a pergunta envolvia uma espcie de armadilha verbal, que expliquei a ele. Mas ele no estava satisfeito. O problema era que ele queria que a sociologia dissesse que alguma coisa era nefasta, m, malvola... e no apenas dizer que essa era uma opinio pessoal, ou mesmo a opinio de algumas pessoas legais. Ele queria que a cincia dissesse que era m. Eu acho que a cincia simplesmente no pode dizer isso. Ela pode dizer como as coisas funcionam, mas voc quem pode decidir o que bom e o que mau.

    Alguns anos depois eu estava dando aulas na Northwestern. havia me interessado pela

    sociologia da arte e escrito Art Worlds, e o reitor era um filsofo especializado em esttica, portanto ele ficou interessado em meu trabalho. Ele decidiu organizar uma srie de palestras de professores seniores e perguntou se eu poderia dar a primeira e falar sobre meu novo livro. Bem... suspeitei que ele me achasse um pouco relativista demais, mas... o que posso fazer? Eu sou! Dei ento minha palestra e falei sobre como a arte uma construo social etc. Logo que terminei, vi que o reitor estava... muito insatisfeito. Ele levantou a mo e fez a primeira pergunta: Howie, e sobre Mozart? Agora eu compreendo toda a estrutura de seu argumento: o que ele queria dizer que, afinal de contas, todo mundo sabe que Mozart realmente foi um gnio artstico e que portanto o que ele fez era arte, e que isso no era apenas uma questo de definio. Ele perguntou: Voc no concorda que Mozart era um gnio? Eu disse: Claro que concordo, mas eu tambm acho que o saxofonista Lester Young um gnio, e no acho

  • Transcrio que voc concorde comigo, se que voc j ouviu falar dele. E eu no tenho como provar a voc que Lester Young um gnio e que o que ele faz arte, e voc no tem como provar que esses dois artistas so geniais, mesmo que estivssemos de acordo. O fato de concordarmos no resolveria a questo. Bem... ele no ficou satisfeito. Ento achei que tinha dois casos.

    O mesmo tipo de questo aparece quando se discute cincia. Quem realmente acredita

    na cincia, acredita que ela um tipo especial de conhecimento, que ela realmente verdadeira, que a cincia soluciona todos os problemas sobre arte, sobre tica e sobre comportamentos desviantes. Essas pessoas perguntam: Voc acha que a cincia uma mera construo social? Como voc teria coragem de voar num avio se no acreditasse na cincia?. Esta , na realidade, a mesma questo. E Bruno Latour tem uma resposta tima: acredito na cincia na mesma medida em que os cientistas acreditam, nada alm disso. Isso porque, como suas pesquisas repetidamente mostram, os cientistas no acreditam exatamente na verdade da cincia porque eles sabem que tudo que as pessoas acreditavam que fosse verdadeiro depois revelou-se no ser, e esse conhecimento foi substitudo por outro mais completo. claro que eles sempre acham que a verso atual correta. Mas eles sabem, em suas conscincias, que pode no ser. Portanto, Bruno diz: Acredito na mesma medida em que eles, pois eles tambm no acreditam.

    A maioria das coisas boas que aconteceram na minha vida resultou de acasos, de

    coincidncias, certamente no de algo que tenha feito de forma proposital, intencional ou planejada. Eu cheguei ao Brasil... eu tinha um amigo chamado... no consigo lembrar seu nome agora. Ele era um psiclogo americano que trabalhava na Fundao Ford, no Rio de Janeiro. Ele era responsvel pelo ensino superior, e um dia me ligou do Brasil isso foi em 1975 ou 1976 e disse: Voc precisa vir at aqui porque h um antroplogo que conhece seu trabalho e que est muito interessado, voc podia vir dar aulas com ele por alguns meses. Seria legal. Disse a ele: Richie, eu nem sei exatamente onde fica o Brasil, tudo que conheo do Brasil Bossa Nova e samba, porque toco piano... Ele disse: No, voc precisa vir agora, no vero. Eu sempre passava o vero em San Francisco, onde frio e maravilhoso. Finalmente ele me convenceu de que eu deveria ir no ano seguinte, mas que antes disso me mandaria o antroplogo brasileiro a Chicago durante suas frias de vero, que eram em janeiro.

    Gilberto Velho era esse jovem, ele chegou em Chicago em janeiro, estava nevando,

    gelado. Gilberto saiu do avio depois ele me disse que quase desistiu e voltou para casa imediatamente. Ele me perguntou: O que um pobre carioca como eu est fazendo num lugar como esse? Mas ele foi muito bravo, muito corajoso, e ficou por um ms. E fez amizade com muitas pessoas no departamento de sociologia da Northwestern. Eu acho, no segredo, que o que Gilberto faz certamente tanto sociologia quanto antropologia. Depois ele voltou para o Brasil e mais tarde eu fui ensinar por dois meses no Museu Nacional, com Gilberto. Eu dei aulas em ingls, embora no ano anterior minha viagem eu estivesse nervoso e tivesse estudado portugus, ia ao laboratrio de lnguas da universidade toda manh por uma hora, e assim adquiri algum conhecimento do portugus.

    Tambm li os livros que Gilberto me havia enviado. engraado, pois antes de nos

    conhecermos ele havia lido meus livros, e eu havia lido dois livros que ele me enviara, com muita dificuldade, porque no sabia portugus, mas peguei um dicionrio e traduzia palavra

  • Transcrio por palavra, e depois de um tempo eu realmente podia ler. Mas eu imaginei que Gilberto Velho, como um importante antroplogo, fosse uma pessoa mais velha, com uma longa barba, que tambm como ele me imaginava, e quando ele saiu do avio e nos vimos, ele comeou a rir porque essa imagem era to ridcula...

    Ento ns demos o curso e encontramos muitas pessoas naquele primeiro ano, no

    consigo me lembrar de todos. As pessoas me deram um monte de coisas para ler, e eu as li. E, claro, quanto mais lia portugus, melhor lia. Eu podia mesmo falar um pouco. Tambm colecionei uma grande pilha de discos isso, antes dos CDs , eram LPs -, e voltei para casa com todo esse material. Como conseqncia, eu realmente conheci mais a msica brasileira do que 99% dos msicos americanos.

    Gilberto e eu permanecemos em contato. Ele me convidou de novo para uma grande

    conferncia de trs dias sobre sade mental, na qual eu era um personagem menor. Os grandes nomes eram Erving Goffman embora tenha sido eu quem supostamente convenceu Goffman a vir ao Brasil , Thomas Zaas, um terico sobre sade mental muito conhecido, e Shere Hite, a escritora de livros sobre sexo. Foi uma experincia engraada. Permanecei no Rio por duas semanas, e depois voltei novamente ao Museu Nacional em 1990, com uma bolsa da Fullbright.

    Eu tive muita sorte em minha vida. Conheci trs grandes professores. Everett Hughes

    foi um, os outros dois no foram cientistas sociais. Um deles foi a pessoa que me ensinou piano para jazz, Lennie Tristano. Ele era uma espcie de professor legendrio, porque nunca tocava em pblico. H algumas gravaes dele. Um notvel pianista de jazz. E o terceiro professor foi algum no muito conhecido, um fotgrafo chamado Philip Perkis,, com quem eu tive aulas num vero em So Francisco. Ele totalmente responsvel por meu interesse de longa durao pela fotografia, foi resultado de seus ensinamentos. Todos esses trs foram professores maravilhosos, pois eles no diziam a voc para fazer isso ou aquilo: eles abriam seus olhos e sua mente.

    Eu no sei, um, dois ou trs livros. Alguns livros me influenciaram muito quando eu os

    li pela primeira vez. O motivo pelo qual cursei sociologia, depois que me graduei... eu era muito jovem... uma histria complicada, mas... eu ainda morava com meus pais, tinha uns 18 ou 19 anos. Meu pai no admitiria que eu parasse de estudar. Eu tocava piano em tempo integral na 63th Street, em Chicago, e a maneira mais fcil era continuar indo para a faculdade, mas agora eu tinha que escolher um tema. O que eu deveria estudar? Eu estava prestes a escolher literatura, porque eu gostava de ler, mas naquele vero eu li um livro famoso sobre o gueto negro de Chicago, Black Metropolis [de St. Clair Drake & Horace R. Cayton, 1945], e aquele livro era emocionante. E fiquei com essa imagem de.... eu sempre tive interesse pela antropologia, mas no me agradava a idia de ir... eu era como o Gilberto [Velho]: eu gostaria de fazer antropologia, mas queria dormir na minha prpria cama, comer o tipo de comida que eu gostava, no queria ir para a Nova Guin, dormir numa barraca e comer insetos qualquer que fosse o meu esteretipo do que era antropologia. E agora eu via que poderia ser um antroplogo, mas estando em casa, estudando sua prpria cidade, e eu pensei... sim! E provavelmente o lugar para fazer isso era a sociologia,

  • Transcrio

    Eu no sei, um, dois ou trs livros. Alguns livros me influenciaram muito quando eu os li pela primeira vez. O motivo pelo qual cursei sociologia, depois que me graduei... eu era muito jovem... uma histria complicada, mas... eu ainda morava com meus pais, tinha uns 18 ou 19 anos. Meu pai no admitiria que eu parasse de estudar. Eu tocava piano em tempo integral na 63th Street, em Chicago, e a maneira mais fcil era continuar indo para a faculdade, mas agora eu tinha que escolher um tema. O que eu deveria estudar? Eu estava prestes a escolher literatura, porque eu gostava de ler, mas naquele vero eu li um livro famoso sobre o gueto negro de Chicago, Black Metropolis [de St. Clair Drake & Horace R. Cayton, 1945], e aquele livro era emocionante. E fiquei com essa imagem de.... eu sempre tive interesse pela antropologia, mas no me agradava a idia de ir... eu era como o Gilberto [Velho]: eu gostaria de fazer antropologia, mas queria dormir na minha prpria cama, comer o tipo de comida que eu gostava, no queria ir para a Nova Guin, dormir numa barraca e comer insetos qualquer que fosse o meu esteretipo do que era antropologia. E agora eu via que poderia ser um antroplogo, mas estando em casa, estudando sua prpria cidade, e eu pensei... sim! E provavelmente o lugar para fazer isso era a sociologia, ento me inscrevi no Departamento de Sociologia e... voc sabe, uma coisa leva outra...