teoria política i - uniasselvi

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2019 1 a Edição TEORIA POLÍTICA I Prof. Sandro Luiz Bazzanella Prof. Walter Marcos Knaesel Birkner

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Page 1: Teoria PolíTica i - UNIASSELVI

2019

1a Edição

Teoria PolíTica i

Prof. Sandro Luiz BazzanellaProf. Walter Marcos Knaesel Birkner

Page 2: Teoria PolíTica i - UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2019

Elaboração:

Prof. Sandro Luiz Bazzanella

Prof. Walter Marcos Knaesel Birkner

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

Impresso por:

B364t

Bazzanella, Sandro Luiz

Teoria política I. / Sandro Luiz Bazzanella; Walter Marcos Knaesel Birkner. – Indaial: UNIASSELVI, 2019.

231 p.; il.

ISBN 978-85-515-0300-3

1. Teoria política. – Brasil. I. Birkner, Walter Marcos Knaesel. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 320.1

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III

ApresentAçãoCaro acadêmico!

Estamos iniciando os estudos em Teoria Política. Faremos uma imergência no universo das ideias políticas que fundamentam a cultura política ocidental. Trata-se de compreender, ainda que introdutoriamente, como a política foi edificada, desde a sua estruturação até às instituições políticas que orientam nossas escolhas em relação à condição de viver em sociedade. Nesta perspectiva apresentaremos autores e seus conceitos através da história das ideias políticas da civilização ocidental, desde o Mundo Antigo, passando pela Idade Média, até chegarmos à modernidade em que vivemos até hoje, iniciada há mais de cinco séculos. Se somos os filhos da modernidade e, na medida em que iniciamos nossos estudos sobre a teoria política, é elementar que estejamos cientes dos significados de termos e conceitos igualmente fundamentais à nossa capacidade de compreender e verbalizar o mundo em que vivemos. Entre eles, está a ideia-conceito de modernidade e, se somos os filhos da modernidade, precisamos conhecer nossa paternidade.

Para tanto, faremos nossa exposição teórica da seguinte maneira:

Na Unidade 1 apresentaremos os fundamentos da teoria política desde a Grécia Antiga e seus dois principais pensadores políticos: Platão e Aristóteles. Em seguida, adentraremos à teoria política da Idade Média, até o limiar da modernidade.

Na segunda unidade compreenderemos propriamente o significado de modernidade, por meio da abordagem das análises e dos pressupostos de alguns dos principais pensadores constituintes desse período histórico e civilizatório. Começaremos pelo fundador da Ciência Política, Nicolau Maquiavel, e passaremos pelas ideias de autores iluministas que ajudaram a edificar o símbolo político da modernidade: o Estado moderno.

Na Unidade 3 conheceremos algumas das principais teorias políticas que fundamentaram as ideias liberais, entre conservadoras, libertárias e revolucionárias que, depuradas historicamente, nos conduziram à contemporaneidade, preparando o terreno para o século XX e seus desdobramentos políticos até os nossos dias.

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IV

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

NOTA

Agora, lembre-se: cada vez que encontrar alguma palavra, ideia e ou conceito cuja definição suscite alguma dúvida, não hesite em recorrer às fontes de consulta à disposição, seja nos livros, seja na internet, que também levarão aos livros, artigos e outras fontes de informação. Além disso, compreenda que o seu esforço de leitura e estudo trarão a satisfação incomensurável de conhecer as coisas, melhorar sua vida e o universo à sua volta.

Bons estudos!

Dr. Sandro Luiz BazzanellaDr. Walter Marcos Knaesel Birkner

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V

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

UNI

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UNIDADE 1 – ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO ............................................................ 1

TÓPICO 1 – MUNDO GREGO ANTIGO: A PHXSIS, A POLIS E A DEMOCRACIA .............. 31 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 32 O MUNDO GREGO ANTIGO E O CONCEITO DE PHYSIS: PRESSUPOSTOS TELEOLÓGICOS MATERIALIZADOS NA CONSTITUIÇÃO DA POLIS ............................. 5

2.1 A POLIS COMO O LOCUS QUALIFICAÇÃO DA VIDA DO CIDADÃO ............................. 83 O QUE OS GREGOS COMPREENDIAM POR DEMOCRACIA ............................................... 13RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 23AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 24

TÓPICO 2 – ANTIGUIDADE: SÓCRATES, PLATÃO E ARISTÓTELES .................................... 251 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 252 OS SOFISTAS E SÓCRATES.............................................................................................................. 26

2.1 A FILOSOFIA DE PLATÃO COMO REAÇÃO À MORTE DE SÓCRATES ............................ 352.2 ARISTÓTELES E O IDEAL DE RECONSTITUIÇÃO DA POLIS ............................................. 41

RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 48AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 49

TÓPICO 3 – IDADE MÉDIA: SANTO AGOSTINHO E SANTO TOMÁS DE AQUINO ........ 511 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 512 A CONSTITUIÇÃO DO OCIDENTE DE ROMA A JERUSALÉM: A COSMOVISÃO JUDAICO-CRISTÃO ......................................................................................... 52

2.1 A CONCEPÇÃO POLÍTICA DE SANTO AGOSTINHO ........................................................... 562.2 A CONCEPÇÃO POLÍTICA DE SÃO TOMÁS DE AQUINO .................................................. 60

LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 64RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 67AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 68

UNIDADE 2 – PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO ................................................................ 69

TÓPICO 1 – O REALISMO POLÍTICO DE MAQUIAVEL ............................................................. 711 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 712 RAZÃO CIENTÍFICA, ESTADO E PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO ........................ 713 A RUPTURA RENASCENTISTA DE MAQUIAVEL E O PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO ....................................................................................................................... 744 ANTROPOLOGIA DO PENSAMENTO POLÍTICO DE MAQUIAVEL ................................... 76

4.1 VIRTÙ E FORTUNA ........................................................................................................................ 76RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 81AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 82

TÓPICO 2 – CONTRATUALISTAS: LOCKE, HOBBES E ROUSSEAU ....................................... 831 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 832 O PODER SOBERANO: ESTADO OU SOCIEDADE CIVIL....................................................... 83

sumário

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VIII

3 O CONTRATO SOCIAL: ESTADO DE NATUREZA E SOCIEDADE....................................... 874 HOBBES E O ABSOLUTISMO – O ESTADO ACIMA DE TODOS .......................................... 885 HOMEM, LOBO DO HOMEM .......................................................................................................... 906 LOCKE E O LIBERALISMO ............................................................................................................... 937 O PRIMEIRO TRATADO .................................................................................................................... 968 O SEGUNDO TRATADO .................................................................................................................. 969 O ESTADO DE NATUREZA E O CONTRATO SOCIAL ............................................................. 99

9.1 PROPRIEDADE ..............................................................................................................................1009.2 ORGANIZAÇÃO DO GOVERNO ..............................................................................................102

10 ROUSSEAU E A DEMOCRACIA DIRETA .................................................................................10210.1 OS TRABALHOS MAIS CONHECIDOS DO AUTOR ...........................................................104

RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................112AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................113

TÓPICO 3 – ILUMINISMO: MONTESQUIEU, DAVID HUME E IMMANUEL KANT ........1151 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1152 MONTESQUIEU – TEORIA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES: EXECUTIVO, LEGISLATIVO E JUDICIÁRIO – O ESPÍRITO E ORIGEM DAS LEIS ................................1163 LIBERDADE ........................................................................................................................................1204 O ESPÍRITO DAS LEIS .....................................................................................................................1225 DAVID HUME – A CONCEPÇÃO DE NATUREZA HUMANA E O CONCEITO DE ESTADO .........................................................................................................................................125

5.1 VIDA E OBRA ................................................................................................................................1265.2 MATURIDADE INTELECTUAL .................................................................................................1275.3 CRENÇA .........................................................................................................................................1295.4 ESCRITOS MORAIS E HISTORIOGRÁFICOS ..........................................................................1295.5 A INFLUÊNCIA DE DAVID HUME ..........................................................................................131

5.5.1 Na condição de escritor .....................................................................................................1325.5.2 Na condição de historiador .................................................................................................1325.5.3 Na condição de economista ................................................................................................1325.5.4 Na condição de filósofo........................................................................................................133

5.6 A CONCEPÇÃO DE ESTADO .....................................................................................................1346 KANT – ESTADO, AUTONOMIA E ESCLARECIMENTO .......................................................135

6.1 PARA INÍCIO DE ESTUDO .........................................................................................................1366.2 UMA NATUREZA HUMANA ....................................................................................................1376.3 A AUTONOMIA DA VONTADE ................................................................................................1386.4 O DIREITO EM SUA RELAÇÃO COM A MORAL ..................................................................1386.5 O ESTADO POLÍTICO E O RESPEITO ÀS LEIS .......................................................................1396.6 UMA FEDERAÇÃO DE NAÇÕES LIVRES ...............................................................................140

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................141LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................141RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................143AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................144

UNIDADE 3 – LIBERALISMO, SOCIALISMO E FEDERALISMO ............................................145

TÓPICO 1 – TEORIAS CONSERVADORAS: LIBERALISMO DE BURKE, TOCQUEVILLE E STUART MILL ..............................................................................1471 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1472 O LIBERALISMO CONTRARREVOLUCIONÁRIO DE EDMUND BURKE ........................1483 SUA IDEIA ACERCA DA ORDEM PROVIDENCIAL PELA LEI HISTÓRICA NATURAL ............................................................................................................149

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IX

4 COMENTÁRIOS ACERCA DA REVOLUÇÃO FRANCESA ....................................................1525 O LIBERALISMO IGUALITÁRIO DE ALEXIS DE TOCQUEVILLE ......................................1556 O LIBERALISMO DE JOHN STUART MILL CONTRA A TIRANIA DA MAIORIA .........1637 SUA VIDA POLÍTICA E SEU TRABALHO INTELECTUAL ....................................................1648 SOBRE A LIBERDADE ......................................................................................................................167RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................172AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................174

TÓPICO 2 – CRÍTICA AO ESTADO E SOCIALISMO: KARL MARX E O MARXISMO ......1751 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1752 A CONCEPÇÃO MARXISTA DE ESTADO ..................................................................................1763 ASPECTOS BIOGRÁFICOS .............................................................................................................1764 MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO ...........................................................................1785 O COMUNISMO ................................................................................................................................1866 OS MARXISTAS REVISIONISTAS: GRAMSCI E GARAUDI ................................................1887 ANTÔNIO GRAMSCI .......................................................................................................................1908 ROGER GARAUDY ...........................................................................................................................1929 O REVISIONISMO MARXISTA DA ESCOLA DE FRANKFURT: MARCUSE, BLOCH, HORKHEIMER E ADORNO ...........................................................................................193

9.1 HERBERT MARCUSE ...................................................................................................................19410 ERNEST BLOCH ...............................................................................................................................19711 MAX HORKHEIMER E THEODOR ADORNO .........................................................................199RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................204AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................206

TÓPICO 3 – O FEDERALISTA: HAMILTON, JAY E MADISON ................................................2071 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................2072 O FEDERALISTA: UM LIVRO, UMA CONSTITUIÇÃO .........................................................2073 AS INOVAÇÕES DOS FEDERALISTAS .......................................................................................2094 A UNIDADE NACIONAL NA AUTONOMIA FEDERATIVA .................................................212LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................218RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................222AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................223

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................225

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UNIDADE 1

ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender a cosmovisão dos gregos antigos e como se constituíram os principias conceitos políticos do Ocidente;

• constatar a contribuição dos sofistas e contraponto com Sócrates em torno dos conceitos de política e democracia presente na Atenas do Século IV a.C.;

• analisar os conceitos da filosofia política de Platão para compreender a extensão de sua influência nas categorias políticas ao longo da trajetória da civilização Ocidental;

• compreender os conceitos políticos de Aristóteles e sua contribuição para os debates contemporâneos da Ciência Política;

• compreender aspectos da constituição política do Ocidente a partir da fusão de suas duas matrizes civilizatórias, a greco-romana e a judaico-cristã;

• analisar a concepção política de Santo Agostinho e sua contribuição para a constituição de uma concepção da política alinhada com a concepção de progresso;

• compreender a concepção política de Santo Tomás de Aquino a luz da matriz do pensamento aristotélico na transição entre mundo medieval e mundo moderno.

Esta unidade está organizada em três tópicos. Em cada um deles você encontrará diversas atividades que o ajudarão na compreensão das informações apresentadas.

TÓPICO 1 – MUNDO GREGO ANTIGO: A PHYSIS, A POLIS E A DEMOCRACIA

TÓPICO 2 – ANTIGUIDADE: SÓCRATES, PLATÃO E ARISTÓTELES

TÓPICO 3 – IDADE MÉDIA: SANTO AGOSTINHO E SÃO TOMÁS DE AQUINO

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TÓPICO 1UNIDADE 1

MUNDO GREGO ANTIGO: A PHXSIS, A

POLIS E A DEMOCRACIA

1 INTRODUÇÃOPor que estudar teoria política? A apresentação da pergunta pressupõe

tomar em consideração três conceitos fundamentais: estudar, teoria e política. Iniciemos pela compreensão do que significa estudar. Estudar é um verbo que pode ser conjugado no passado, no presente, ou no futuro. Neste caso, estudar é uma ação que se requer no presente. Trata-se, portanto, de uma ação exigente em relação a compreensão de um aspecto fundamental do fazer humano, a política. Mas, acima de tudo, estudar indica uma ação que transcende o senso comum, o olhar cotidiano, as opiniões sobre o que é, ou o que significa a política.

Nesta direção, estudar indica compreender o óbvio para além de suas obviedades corriqueiras, expressas a partir de visões reducionistas e preconceituosas, entre elas o fato dos indivíduos se referirem à política como atividade desonesta, ou como uma profissão a partir da qual indivíduos enriquecem às expensas dos recursos públicos. Mas, também de superar visões matizadas da política como a esfera ideal do fazer humano (dever ser), do alcance e da realização de prerrogativas altruístas, ou como, locus do alcance do bem, do belo e da justiça. Assim, estudar requer disposição para a compreensão da política como ela é, de suas formas humanas de funcionamento. Sob tais pressupostos, estudar é ampliar o horizonte compreensivo do mundo, da existência, das relações humanas que conformam a política em toda sua intensidade e legitimidade.

Por seu turno a palavra teoria etimologicamente de origem grega θεωρία, significa capacidade de contemplação, de observação e, de introspecção como estratégia de compreensão de uma determinada situação, ou de uma determinada realidade. O ato de contemplar a realidade é condição sine qua non da potência do pensamento, que instiga o indivíduo formular hipóteses, explicações prévias em relação a determinado fenômeno, seja ele individual, social ou mesmo natural. A comprovação, ou não, da hipótese inicialmente estabelecida como forma de compreensão prévia do fenômeno está vinculada à capacidade de observação do fenômeno, bem como da intensidade reflexiva mobilizada pelo observador na constituição de uma explicação ao fenômeno (teoria).

Ou seja, a necessidade de elaboração de uma teoria como estratégia de compreensão de um determinado fenômeno, parte do pressuposto de que a realidade em sua multiplicidade de aspectos constitutivos não se apresenta de forma imediata ao entendimento. O conhecimento científico requer empenho no questionamento

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UNIDADE 1 | ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

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dos acontecimentos, dos fatos e da multiplicidade informações e percepções que se apresentam de forma imediata aos sentidos. Assim, conhecer implica inicialmente a capacidade de selecionar e agrupar fatos e acontecimentos correlacioná-los temporalmente e espacialmente, bem como contextualizá-los socialmente.

A partir destes movimentos da potência do pensamento se estabelecem os conceitos. O conceito é a expressão sistematizada e unificada de um fenômeno em sua multiplicidade de modos de manifestação. Desta forma, o conceito é condição sine qua non para a composição e afirmação de uma teoria, cuja pretensão é a compreensão do fenômeno em suas especificidades, mas também em sua totalidade. Ou seja, estudar e a articular conceitos na constituição de uma teoria sobre a política é um dos trabalhos mais concretos que um ser humano pode executar, pois se trata de pensar o mundo e, os modos de ação constitutivos da vida qualificada politicamente disponíveis em determinadas circunstâncias.

Nesta perspectiva, uma teoria se apresenta como o horizonte de possibilidade de compreensão humana sobre o mundo em sua condição fenomênica. É resultante do compromisso de superação da imediaticidade e fugacidade espaço-temporal ao qual o homem é lançado no mundo. É a expressão da concretude do trabalho conceitual e intelectual. Nesta direção, a teoria política se circunscreve no âmbito das exigências e necessidades inerentes aos seres humanos em compreenderem o sentido e a finalidade de suas formas de vida circunstanciadas num determinado tempo e num determinado espaço.

A política, por sua vez, diz respeito a condição prática da vida humana em sociedade. Em função de sua incompletude o ser humano necessita da convivência com outros seres humanos para afirmar e executar estratégias de sobrevivência. Mas, ao humano não basta meramente sobreviver é preciso viver, qualificar a vida, conferir-lhe um sentido e uma finalidade. Estas exigências ontológicas determinam a condição política do humano. É nesta direção que Aristóteles (384 a 322 a.C.) define o homem como um animal político, (dzóon politikón) e, sobretudo, é um animal político porque é dotado de fala (zóon lógon ékhon). É por meio da linguagem, da fala, que o humano negocia com os demais humanos que com ele condividem tempos e espaços simultâneos à constituição de um espaço público a partir do qual é possível alcançar o bem viver e a finalidade última da existência qualificada que é a felicidade.

Mesmo considerando que nos encontramos distantes há mais de dois milênios da definição aristotélica do humano como um animal político, da importância da polis, do espaço público na constituição e qualificação da vida, integrados a sociedades modernas demograficamente extensas, bem como as formas de governos representativos, ao exercício da política por vias institucionais, os pressupostos definidores do humano de matriz aristotélica continuam válidos. Mas, com a modernidade e a ascensão do Estado moderno, da racionalidade científica, tecnológica, econômica, a política passou ser concebida também como esfera do conflito entre os diversos grupos sociais e seus interesses. Sob tais pressupostos, a política como lócus par excellence do conflito é também a única via da negociação e mediação do conflito.

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TÓPICO 1 | MUNDO GREGO ANTIGO: A PHXSIS, A POLIS E A DEMOCRACIA

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Nas sociedades globais contemporâneas em que estamos inseridos intensificam-se os conflitos e, ato contínuo se requer cada vez mais à política, mesmo que seja para criticá-la em sua inércia institucional. Esta condição conflitiva advém da percepção de inúmeros paradoxos civilizatórios, entre eles: a) A conformação de uma sociedade mundial de plena produção e pleno consumo num planeta cujos recursos naturais são finitos e, muitos destes recursos não são renováveis; b) A capacidade científica e tecnológica de produção de bens e serviços em escalas inimagináveis, mas a restrição a parcelas significativas da humanidade ao acesso de tais bens e serviços; c) A implementação da globalização econômica favorecendo restrito grupo de países e empresas que detém capacidade de agregar significativo valor a sua pauta de exportação em detrimento de povos países exportadores de matérias primas e de produtos desprovidos de valor tecnológico agregado; d) A economização da política institucional, submetida a variáveis da economia financeirizada, que se tornou um fim em si mesma, colocando a política e as instituições a serviço de sua lógica de acumulação; e) As transformações cientificas, tecnológicas e comunicacionais que incidem no desaparecimento de profissões, no desemprego, bem como em mudanças na forma das relações dos seres humanos consigo mesmo, e os demais seres humanos na vida em sociedade.

Estas variáveis conflitivas potencializam a percepção de incerteza, de que vivemos em sociedades globais de risco (Ulrich Beck), em sociedades líquidas (Zygmunt Bauman, 2016), ou em sociedades cujo paradigma ontológico é o campo de concentração potencializado em constante estado de exceção a produção de vida-nua. Vidas que podem ser controladas, vigiadas e descartadas de acordo com o interesse estratégico do poder soberano. É no âmbito destas contradições e paradoxos civilizatórios que se faz necessário e urgente estudar teoria política. Retomar os conceitos e categorias da política ocidental é de fundamental importância diante dos desafios civilizatórios em que nos encontramos inseridos. Reitere-se que a compreensão do que está acontecendo requer a retomada do debate político e, sobretudo a retomada das principais categorias que fundamenta o pensamento político ocidental, sobretudo, moderno e contemporâneo. Urge retomar o conceito de Estado, de soberania, de democracia, de estado de exceção, de fascismo, de totalitarismo, entre outras variáveis conceituais estratégicas para a compreensão de nossa contemporaneidade em curso.

2 O MUNDO GREGO ANTIGO E O CONCEITO DE PHYSIS: PRESSUPOSTOS TELEOLÓGICOS MATERIALIZADOS NA CONSTITUIÇÃO DA POLIS

Para compreender suficientemente os conceitos políticos que constituíram e constituem o ocidente na atualidade é preciso retornar ao mundo grego antigo. Foram os gregos antigos que estabeleceram as bases conceituais da civilização ocidental e o fizerem a partir da invenção da filosofia. Nesta direção é preciso ter presente que a invenção da filosofia não é o resultado exclusivo da genialidade grega em si mesma. A filosofia entendida aqui como o desenvolvimento de certo

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UNIDADE 1 | ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

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modo de uso da razão na compressão e ação sobre o mundo é o resultado de um conjunto de fatores geopolítico estratégicos, característicos do mundo antigo, bem como da necessidade de transcender a explicação do mundo oferecida pelos deuses.

Sem dúvida, os gregos sofreram a influência de outros povos. Todo povo desenvolve certas ideias sobre a vida e o mundo, desdobra certas concepções sobre a alma, sobre a origem do mundo a partir do caos, sobre os ciclos cósmicos e a unidade do universo, etc. Estas ideias, sobre a forma de mitos, estão presentes nas mais antigas religiões. Povos mais adiantados, como o do Egito e de outros países do Oriente Médio, chegaram até mesmo a desenvolver uma matemática, uma astronomia, uma medicina. Que o contato com todos estes povos não poderia deixar os gregos imunes, é óbvio. Muitos dos temas que vão ocupar os filósofos gregos estão longe de poderem ser considerados originais. Mas a despeito disto, pode-se dizer que os gregos constituem uma exceção e que nos legaram uma cultura altamente original (BORNHEIM, 1977, p. 8).

Assim, a filosofia se apresenta entre os gregos como a forma assumida pela potência da razão humana que assume a responsabilidade de compreensão do mundo em sua totalidade, bem como parâmetro para orientar a ação humana no mundo. “A Filosofia é um produto da cultura grega, devendo-se reconhecer que se trata de uma das mais importantes contribuições daquele povo antigo ao mundo ocidental” (BORNHEIM, 1977, p. 7). Ainda nesta direção é preciso reconhecer e salientar “que se instaura nas Grécia um tipo de comportamento humano mais acentuadamente racional. É este maior respeito à dimensão especificamente racional do homem, sem o qual é impossível pensar o surto da Filosofia, que caracteriza o povo grego” (BORNHEIM, 1977, 8).

Em sua obra Metafísica, Aristóteles argumenta que a filosofia nasceu do espanto, da admiração do homem perante a vastidão do cosmos em sua multiplicidade de formas de manifestação, bem como de sua ordem e harmonia, permitindo sob tais condições a percepção da beleza em sua totalidade expressa na relação microcósmica integrada no macrocosmo.

É importante salientar que os gregos antigos não possuíam um conceito de natureza na forma como os modernos a estabeleceram. “E aqui convém chamar a atenção para um desvio em que facilmente incorre o homem contemporâneo. Posto que a nossa compreensão do conceito de natureza é muito mais estreito e pobre que a grega “[...] (BORNHEIM, 1977, p. 14). Para a cosmovisão moderna, assentada na racionalidade científica e tecnológica a natureza se apresenta como algo externo à vida humana. A natureza se apresenta como objetivo a ser compreendido, dominado, racionalizado e utilizado a serviço dos interesses e da necessidade humana. Por seu turno os gregos antigos tomam o mundo como uma totalidade em que todos os entes e formas de vida que apresentam encontram-se integrados harmonicamente. A Physis é o conceito que expressa tal condição.

À physis pertencem o céu e a terra, a pedra e a planta, o animal e o homem, o acontecer humano como obra do homem e dos deuses, e, sobretudo, pertencem à physis os próprios deuses. Devido a esta amplidão e radicalidade a palavra physis designa outra coisa que no

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TÓPICO 1 | MUNDO GREGO ANTIGO: A PHXSIS, A POLIS E A DEMOCRACIA

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nosso conceito de natureza. Vale dizer que na base do conceito de physis não está a nossa experiência da natureza, pois a physis possibilita ao homem uma experiência totalmente outra que não a que nós temos frente a natureza (BORNHEIM, 1977, p. 14).

É sob tais pressupostos que a physis conforma a percepção da realidade a partir da qual os gregos antigos pensam e agem na constituição das categorias políticas que conformam a polis como lócus da realização e qualificação da vida humana. Ressalte-se ainda nesta direção, o caráter imanente que a religião grega assume neste contexto. Os deuses não transcendem a physis, mas se encontram integrados a ela. Tal concepção religiosa implica o fato de que mesmo considerando a dimensão divina, supra-humana que conforma a condição dos deuses, os mesmos não se sobrepõem de forma absoluta aos seres humanos. Participar da physis com as demais formas de existência requer dos deuses a condição da negociação, do compartilhamento dos anseios, dos desejos, das paixões e necessidades que circunscrevem as demais formas de vidas, sobretudo, a forma de vida humana.

A religião grega não é uma religião do livro. Afora algumas correntes sectárias e marginais, como o orfismo, ela não conhece texto sagrado ou escrituras sagradas, nos quais a verdade da fé se encontraria definida e depositada uma vez por todas. Não há lugar, dentro dela, para dogmatismo. As crenças que os mitos veiculam, enquanto acarretam a adesão não possuem nenhum caráter de força ou de obrigação; elas não constituem um corpo de doutrinas que fixam as raízes teóricas da piedade, assegurando aos fiéis, no plano intelectual, uma base de certeza indiscutível (VERNANT, 2002, p. 229).

A physis conforma a vida do homem grego antigo a partir da exigência de liberdade de pensamento e ação no reconhecimento da beleza e da harmonia em que se circunscreve a existência. Desprovidos de deuses transcendentes que circunscreveriam a physis e nela a vida humana num projeto de criação e numa economia da salvação, a partir de uma ação voluntariosa constitutiva do ato da criação, o grego antigo concebe a physis assim como ela se apresenta em sua totalidade.

A teologia antiga também é, assim, essencialmente uma poesia, o discurso sobre os deuses também é uma narrativa mítica. É na forma de relatos que constam suas aventuras lendárias, ao longo de acontecimentos dramáticos que, desde seu nascimento, marcam as carreiras dos deuses que as Potências do além são visadas, expressas, pensadas, em suas relações recíprocas, nas zonas de ação que lhes são atribuídas, nos tipos de poder que as caracterizam, em suas oposições e seus acordos, em seus modos particulares de intervenção sobre a terra e de afinidade com os homens (VERNANT, 2002, p. 230).

Sob tais pressupostos, o grego antigo é convocado a pensar e agir no seio da physis por própria conta e risco. “Pensar o todo do real a partir da physis é pensar a partir daquilo que determina a realidade e a totalidade do ente” (BORNHEIM, 1977, p. 14). Talvez este seja um dos motivos que levou Aristóteles, conforme anunciado anteriormente, a afirmar que a filosofia — como uma forma específica de uso da razão na interpretação do mundo — nasce do espanto, da

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admiração do homem diante do cosmos. O espanto, ou admiração não surgem espontaneamente. Resultam de um reconhecimento anterior de si mesmo, de sua condição no seio da physis, que lhe exige pensar e agir na qualificação da própria vida. Ou seja, o espanto e admiração não são expressões de ingenuidade, ou, de um ser humano acomodado no mundo, mas da percepção que a realidade o desafia à sua compreensão, de que não há salvação pela vida dos deuses, de que a justificativa qualificada de sua existência depende exclusivamente de sua capacidade, compartilhada com a disposição e a capacidade dos demais seres humanos em conformar um mundo no qual seja possível justificar a existência.

Nesta perspectiva, ao contemplar a physis (cosmos), o grego reconhece em sua constituição, equilíbrio, harmonia e beleza. Reconhece também que tais qualidades não são inatas, ou doadas por entidades transcendentes, mas o resultado do constante jogo de forças, da vontade de poder que move a physis em sua totalidade. Alcançar tais qualidades e constantemente afirmá-las é a exigência que se apresenta ao ser humano no cumprimento da determinação teleológica de sua existência circunscrita no âmbito da physis.

A dimensão cosmológica admirada e reconhecida em seus pressupostos se consubstancia na polis, na organização da cidade-comunidade, a partir da política como arte da negociação a partir de interesses individuais, do jogo de forças e da vontade de poder que movem os indivíduos em seus interesses específicos. Mas, a primazia pertence ao espaço público. É nele que se materializam a condição constitutiva da physis. O espaço público se constituirá como locus por excelência do exercício da ética como manifestação estética ação e qualificação da vida humana. Talvez possamos afirmar que esta é a condição política indispensável por todo e qualquer povo que almeja a condição de civilização.

2.1 A POLIS COMO O LOCUS QUALIFICAÇÃODA VIDA DO CIDADÃO

O homem grego imerso no contexto da physis se sente convocado a um uso específico da razão diante dos desafios cosmológicos que se lhe apresentam. Mas, se em seus momentos iniciais, a filosofia, na forma como os filósofos pré-socráticos a praticaram, voltava-se para a compreensão dos aspectos físicos, o ser da physis como forma de compreensão da “totalidade do real: do cosmos, dos deuses e das coisas particulares, do homem e da verdade, do movimento e da mudança, do animado e do inanimado, do comportamento humano e da sabedoria, da política e da justiça” (BORNHEIM, 1077, p. 14), volta-se também para a polis e para as questões políticas, éticas e estéticas.

O aparecimento da polis constitui, na história do pensamento grego, um acontecimento decisivo. [...], desde seu advento, que se pode situar entre os séculos VIII e VII, marca um começo, uma verdadeira invenção; por ela, a vida social e as relações entre os homens tomam uma forma nova, cuja originalidade será plenamente sentida pelos gregos (VERNANT, 1986, p. 34).

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Neste contexto é interessante notar a forma político-jurídica de cidades-estados adotadas pelos gregos, que não se apresenta como característica presente na maioria dos demais povos antigos, que se organizavam na forma de reinos em que o poder era exercido sob pressupostos teocráticos. As cidades-estados gregas tinha em comum hábitos, costumes, tradições, a língua grega antiga, mas, a despeito desta tradição comum, cada cidade-estado era autônoma em sua constituição política. “Entre os produtos marcantes do que é chamado de “milagre grego” [...], o mais característico é essa forma política original que é a Polis, a Cidade” (CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1985, p. 13).

Talvez se possa dizer que polis é resultado de extensa trajetória temporal que envolveu a colonização e conformação da Hélade a partir do II milênio a.C., marcada por políticas estruturais arcaicas, até o século VIII a.C., quando da conformação da cidade-estado de Esparta e Atenas, entre outras. Para o filósofo e historiador da filosofia política, o francês Philippe Nemo: “A Cidade grega surgiu graças a uma catástrofe: a destruição, por volta de 1200 a.C., das monarquias centralizadas de caráter sagrado do tipo miceniano existentes na Grécia. Seguiu-se uma longa Idade Média, séculos obscuros de que emergiu, finalmente, em meados do século VIII, uma realidade inaudita, produto de um ‘salto’ da evolução, a Cidade” (NEMO, 2005, p. 17).

O surgimento da polis fragmenta o poder mágico-religioso das monarquias micenianas, que centralizava o exercício do poder. A cidade grega passa a ser governada por magistrados que assumem as diversas funções administrativas. “A monarquia cedeu lugar à república. O poder político tornou-se coletivo – foi colocado en to meson, no meio da comunidade tornando-se ‘assunto de todos’” (NEMO, 2005, p. 17). A cidade de Atenas foi a protagonista desta transição, “onde por volta do ano 600 a.C. – Dracón e Sólon sucessivamente, foram encarregados de enunciar os princípios ordenadores das relações entre os membros da coletividade” (CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1985, p. 13).

Estes legisladores instauram os princípios fundamentais que irão reger a vida na polis “determinando com precisão a participação de cada um na defesa e na gestão das questões comuns da Cidade, as instâncias de onde devem provir as decisões que envolvem a coletividade, a arbitragem dos conflitos e a punição dos crimes e dos delitos” (CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1985, p. 14). Surge, assim, o espaço público onde os principais magistrados conduzem o debate político e a tomada de decisões de interesse da polis. “Ágora, a praça em que eram realizadas as assembleias dos cidadãos, e a mudança de estatura da escrita, que se tornou o meio de publicar os pensamentos, de oferecê-los ao julgamento de um público anônimo” (NEMO, 2005, p. 18).

Desde seus primórdios, a polis é locus par excellence da palavra. É por meio da palavra e do discurso, do exercício do contraditório como condição do exercício da política, que se instituem os debates na ágora, pois “o sistema da polis é primeiramente uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder. Torna-se instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade

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no Estado, o meio de comando e de domínio de outrem” (VERNANT, 1986, p. 34). A participação no espaço público, na ágora requeria o domínio da palavra, a arte do discurso, na medida em que as questões políticas estratégicas para afirmação e manutenção da Cidade exigiam o alcance do consenso por meio do exercício do contraditório. “Todas as questões de interesse geral que o soberano tinha por função regularizar e que definem o campo da arché são agora submetidas à arte oratória e deverão resolver-se na conclusão de um debate” (VERNANT, 1986, p. 35).

Sob tais pressupostos, é possível compreender porque tais autores situam o surgimento da polis como um “acontecimento” civilizatório decisivo. É na polis que se constitui a arte da política como arte do discurso, do comércio da palavra, a partir da qual os cidadãos colocam em disputa seus interesses privados, sob a condição de preservação do espaço público. Mais do que isto, é na preservação do espaço público onde se institui o debate, o exercício da palavra, do discurso que o cidadão transcende a existência como um mero fato biológico (zoé), submetido às leis da natureza e, qualifica sua vida (bios) ao contribuir com as condições públicas necessárias ao bem viver, a busca da felicidade. “A arte da política é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, através da função política” (VERNANT, 1986, p. 35).

A polis e, em seu centro, a ágora como espaço do exercício da linguagem, do discurso, do comércio da palavra constitutivos da arte da política requerem a garantia da liberdade de expressão dos cidadãos, bem como o acesso irrestrito aos mais diversos discursos que se apresentam no espaço público.

Uma característica da polis é o cunho de plena publicidade dada às manifestações mais importantes da vida social. [...] a polis existe apenas na medida em que se distinguiu um domínio público, nos dois sentidos diferentes, mas solidários do termo: um setor de interesse comum, opondo-se aos assuntos privados (VERNANT, 1986, p. 35).

Esta efervescência política constitutiva da polis pressupõe uma concepção jurídico-antropológica que superasse tendências de exercício tirânicas, ou aristocráticas que estiveram na origem da polis. “A polis no início (século VIII a.C.) é uma cidade-estado aristocrática, dominada por proprietários de terra. [...] tal aristocracia se enfraquece, tanto devido à competição entre os referidos proprietários, quanto pelo desenvolvimento do comércio e da colonização [...]” (ASSMANN; DUTRA, 2008, p. 10). Participar da ágora, do espaço público, exigia que os indivíduos se reconhecessem como “membros da sociedade civil, com acesso ao espaço público, aceitavam-se, de forma cada vez mais natural, como semelhantes, homoïoï, e iguais, isoï (NEMO, 2005, p. 18). A posição do homem grego na comunidade desvincula-se da condição de súdito em relação ao poder soberano do rei, bem como desvincula-se de determinações religiosas, ou de linhagens sanguíneas “para se basear em sua capacidade para, de um lado, combater na falange dos hoplitas e, de outro, apresentar argumentos racionais na ágora” (NEMO, 2005, p. 18).

O homem grego liberto de distinções e estruturas hierárquicas, que cerceavam o uso público da razão encontra-se em condições de igualdade

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discursiva, que lhe permitem observar, analisar, questionar qualquer discurso, seja o discurso de um magistrado, de um notável, ou mesmo de um cidadão humilde. Sob tais condições, qualquer cidadão poderia ser substituído por qualquer outro cidadão na medida em que não estivesse comprometido com a polis, com a afirmação do espaço público. “Surge, assim, um homem abstrato, igual a todos os outros perante a lei, no duplo sentido em que estava submetido a ela e participava de sua elaboração” (NEMO, 2005, p. 19).

Estamos diante do nascimento e afirmação do cidadão grego. O grego antigo tem ciência de que o exercício da cidadania se constituiu a partir da garantia e constante afirmação da igualdade entre os cidadãos que efetiva na esfera do uso público da razão e do direito. É importante, neste momento, ressaltar a constituição de polis, da cidade comunidade na forma apresentada até o presente momento, não se apresenta em totalidade de transformações extensiva a todas as cidades da comunidade grega. Tais mudanças de concepção antropológica, política e jurídica, bem como o próprio desenvolvimento da filosofia, é um fenômeno que se apresenta com maior intensidade em Atenas.

No que concerne ao exercício da cidadania é importante ter presente que em Atenas, somente eram considerados e admitidos como cidadãos na ágora os indivíduos que possuíam condições econômicas suficientes, que lhes permitissem dispor de tempo livre para o exigente exercício da política. Ou seja, exigia-se para o exercício da cidadania que o cidadão possuísse uma oikonomia suficiente para o cumprimento da cidadania que era participar ativamente dos debates públicos, assumir cargos administrativos quando convocado para tal função, bem como defender a cidade diante de ameaças estrangeiras.

Possuir uma oikonomia significa possuir uma casa (oikos), escravos, trabalhadores, membros da família, a partir dos quais se estabeleciam e governavam as relações de produção material necessárias à manutenção da vida biológica. Aqui se fazem necessárias duas observações que talvez possibilitem compreender aspectos da cosmovisão constitutiva da polis, cujos reflexos se apresentam em nossa contemporaneidade. A primeira reside no fato de que no mundo antigo a “economia” é compreendida majoritariamente como oikonomia. Atividade que se constitui no espaço das sombras (oikos) e cujas leis (nomia) gerais vinculam-se à atividade da produção e do consumo, necessárias à manutenção da vida biológica, definida pelos gregos pelo termo zoé. A segunda observação se circunscreve no fato de que as exigências da sobrevivência, do trabalho cotidiano impostas pela oikonomia impedem o exercício da vida qualificada, que os gregos designavam pelo termo bíos, e que somente se constitui pelo pleno exercício da política.

Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoe, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens e deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo (AGAMBEN, 2002, p. 9).

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A partir destas perspectivas, escravos, estrangeiros, artesãos, trabalhadores e mulheres não alcançavam o título de cidadãos e, portanto, não participavam dos debates na ágora e, por decorrência lógica, da cidadania ateniense.

A simples vida natural é, porém, excluída, no mundo clássico, da polis propriamente dita e resta firmemente confinada, como mera vida reprodutiva, ao âmbito do oikos. [...] a meta da comunidade perfeita, ele o faz justamente opondo o simples fato de viver (to zên) à vida politicamente qualificada (to eu zen): ginoméne mèn oûn toû zen béneken, oûsia dè toû eû zên “nascida em vista do viver, mas existente essencialmente em vista do viver bem” [...] (AGAMBEN, 2002, p. 10).

Ainda no âmbito das realizações do mundo grego antigo, a polis se constitui no locus privilegiado da distinção entre physis e nomos. As leis da physis são invariáveis. Submetem os homens e as demais formas de vida às leis da necessidade em sua condição cíclica do nascimento, do desenvolvimento e da morte a que estão submetidos todos os seres que vem à existência. Aos seres humanos compete contemplar diuturnamente os imperativos advindos das leis da necessidade. Quando bem-sucedidas as intervenções humanas em tais leis apenas conseguem retardar, ou acelerar determinados fenômenos naturais, que incidem sobre sua vida biológica. No reino da necessidade circunscrito pela physis não há espaço para o exercício da liberdade, apenas a obediência ao reino da necessidade.

No entanto, os gregos reconhecem o equilíbrio, a harmonia e a beleza no

jogo de forças cosmológicas constitutivas das leis de physis. As leis da necessidade obedecem a uma teleologia, a uma finalidade que, em fundo último, vinculam-se à própria manutenção da physis em sua totalidade. A constituição da polis, como espaço público do bem viver, do alcance da felicidade, condição teleológica que constitui a condição humana requer se transcenda as leis da necessidade da physis, transpondo seus princípios de equilíbrio, harmonia e beleza como mediadoras das relações humanas no espaço público. Trata-se da “ideia de que a própria lei, sendo humana, podia ser modificada livremente pelo homem e de que a ordem social podia ser modificada livremente pelo homem e de que a ordem social podia ser submetida à crítica e à mudança” (NEMO, 2005, p. 20).

A perspicácia dos gregos antigos transcende as leis da necessidade da physis, ao instituir o nomos (a lei, regra). Superam a necessidade imediata da lei para normatizar ações administrativas, a conduta dos governantes, bem como os direitos e deveres dos cidadãos. Mas, constatam que a legalidade da norma não se encerra em si mesmo. Ou seja, que a afirmação da legalidade de uma lei não é condição imediata de sua legitimidade, ou mesmo que não será suficiente para a manutenção ágora, do espaço público. Assim, os gregos constatam a necessidade constante da “discussão radical sobre as próprias regras da vida social. O que pressupunha uma tomada de consciência sobre a autonomia da ordem social em relação a ordem natural” (NEMO, 2005, p. 20).

O que está em jogo é o fato de que os gregos antigos constatam que a instituição da legalidade, ao fundar a ordem artificial criada pelos homens,

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constitutiva do mundo humano é “variável segundo os tempos e os lugares, submetida a críticas e reformas, a do nomos, resultante de uma convenção” (NEMO, 2005, p. 20).

Neste contexto, de criação e afirmação da polis, os gregos constatam que sua manutenção e constante aperfeiçoamento dependem, entre outros fatores já anunciados, de uma sólida formação humana e intelectual de seus membros. É sob tais pressupostos que se desenvolve uma proposta educacional que contemple uma formação integral suficiente para o exercício da cidadania. Surge a “Paideia” que constitui a proposta grega antiga de educação.

É fácil de compreender como pôde surgir a franca admiração por uma figura distinta, uma educação adequada e um movimento nobre, numa raça de homens acostumados, desde tempos imemoriais, a considerar estes valores como a mais alta excelência humana, e que, numa luta incessante, se tinha esforçado, com sagrada seriedade, por levar as forças do corpo e da alma à sua maior perfeição (JAEGER, 1995, p. 240).

É importante ter presente que a constituição de uma proposta educacional por parte de uma comunidade, ou de um povo, pressupõe a vontade manifesta deste povo em repassar às jovens gerações, os hábitos, os costumes, as crenças e, sobretudo, a ciência alcançada e acumulada em seus múltiplos campos de saber, sejam eles as ciências exatas, as ciências naturais e humanas. Este empenho educacional está comprometido com a manutenção da memória de seus principais líderes e representantes, com a formação adequada das crianças e dos jovens como forma de manutenção da condição civilizatória alcançada, e de seu grau de distinção frente às outras comunidades e povos. “É somente como o surgimento de uma ciência desinteressada, ‘liberal’, como atividade unicamente intelectual e desembaraçada de qualquer modalidade técnica, esportiva ou militar, que se criam as condições para organizar uma instituição especial dedicada a transmiti-la à juventude” (NEMO, 2005, p. 25).

Sob tais pressupostos é fundamental reconhecer que o desenvolvimento social, político, econômico e institucional de um povo está intimamente vinculado à excelência de sua proposta educacional. Assim, aprendemos com os gregos que a desconsideração com a educação é o caminho mais rápido para a mediocridade civilizatória.

3 O QUE OS GREGOS COMPREENDIAM POR DEMOCRACIA

Do ponto de vista etimológico, ciência que se caracteriza pelo estudo da origem dos termos, das palavras, democracia deriva do termo grego demokratía. Esta palavra é conformada a partir da junção das palavras “povo” (demos) e “domínio” (kratein). Nesta perspectiva, constitui-se o conceito de democracia vinculado ao domínio do povo, vontade do povo, em nome do povo, ou governo do povo.

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A democracia, no sentido etimológico da palavra, significa o “governo do povo”, o “governo da maioria”. Prevalece nesta primeira aproximação deste fenômeno político uma definição quantitativa. Basta lembrar que a democracia, na antiguidade grega, mais particularmente em Heródoto, é uma “forma de governo” entre duas outras: a monarquia ou “governo de um só” e a “aristocracia ou “governo de alguns” (ROSENFIELD, 1980, p. 7).

Talvez se possa afirmar que a questão da democracia para os gregos antigos não se apresenta como uma questão quantitativa, em que todos “devem” participar. Mas, se apresenta no âmbito qualitativo ao se questionarem sobre qual a melhor forma de governo. “Observa-se que a questão concernente à ‘forma de governo’ é, para o pensamento antigo, uma questão vital que diz respeito ao próprio valor de uma determinada forma de organização da política” (ROSENFIELD, 1980, p. 7). Afinal, trata-se do governo da polis, do espaço público que se constitui a possibilidade de uma vida qualificada, do bem viver, da busca da felicidade. É neste sentido que Heródoto apresenta uma classificação dos diversos regimes de governo:

• O bom regime é aquele no qual comanda apenas um — a monarquia —, que governa para sua glória e a de seus súditos?

• ou aquele no qual comanda uma minoria — a oligarquia —, constituída de cidadãos reconhecidos como “superiores” por seu nascimento, sua riqueza, sua competência religiosa ou militar?

• ou aquele onde comanda a maioria — a democracia —, maioria constituída pela população dos camponeses, dos artesãos, dos comerciantes, dos marinheiros? (CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1985, p. 16).

DICAS

Heródoto — Historiador grego (485-425 a.C.). Também conhecido como o "Pai da História". Enquanto muitos homens recebem o crédito de terem "moldado" a história, há um de quem se pode dizer que a "criou". Heródoto desenvolveu os meios pelos quais nós, do mundo ocidental, podemos saber e avaliar a história e seus momentos mais importantes. Nascido em Halicarnasso, na Ásia Menor, ele teve um papel importante na revolução contra o tirano Lídames. Posteriormente, mudou-se para Atenas, onde começou a anotar sistematicamente a história de sua própria época — particularmente as guerras entre Grécia e Pérsia — e os fatos que a precederam. Embora acontecimentos anteriores já houvessem sido registrados, Heródoto é considerado o "Pai da História", por ter sido o primeiro homem a tentar um estudo ordenado e objetivo das inter-relações entre os eventos históricos. Heródoto viajou para o Egito e percorreu o Mediterrâneo, estudando as culturas dessas regiões e registrando os fatos do modo mais fiel possível para a época. Ao teorizar sobre a História, ele aplicou a tradicional ideia grega da moderação, ou meio termo, segundo a qual o equilíbrio é desejável, e o excesso e o desequilíbrio são a receita para o desastre. Devido a essa teoria, o arrogante Xerxes I estava inevitavelmente condenado à derrota.

FONTE: <https://www.sohistoria.com.br/biografias/herodoto/>. Acesso em: 27 mar. 2019.

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Por volta do século VIII a.C., Atenas era uma cidade-estado governada pela aristocracia e controlada politicamente pelos grandes proprietários de terra. Durante os séculos subsequentes, significativas transformações ocorreram, com significativas repercussões na ordem da política e da organização da cidade-estado, entre as quais: a) o desenvolvimento do comércio com as demais cidades-estados, com os povos circunvizinhos da Europa ocidental, do oriente próximo, do norte da África; b) aumento das desavenças internas e a competição entre os proprietários de terra; c) melhorias na capacidade militar substituindo a cavalaria pela infantaria composta por hoplitas, soldados que se apresentavam nos campos de batalha revestidos de armaduras, o que se apresentava como vantagem em combate; d) a constituição de uma frota marítima consistente que contribuíra para que Atenas se transformasse numa potência militar por volta do século V a.C., levou ao enfraquecimento da aristocracia por um lado e, por outro, ao aumento do número de cidadãos.

É neste contexto que se estabelece um quadro conflitivo entre a aristocracia decadente e sua resistência em relação à permanência no poder e, as reivindicações do povo (demos) de maior participação na vida política da polis. Foi com Sólon (638 – 558 a.C.), estadista, legislador e poeta, que governou Atenas no ano de 594 a.C., que se constituiu a polis como espaço público comum, em que os interesses individuais foram submetidos a regras coletivas e compartilhadas que se alcançou uma solução para o conflito.

A diké (justiça), embora continue divina, passa a ser reconhecida também como humana. As leis apresentam-se ditadas pelo Oráculo de Délfos, mas adquirem uma conotação comunitária. A força (kratos) da lei, que recorre também à violência, cria um espaço intermediário público e neutro para além dos interesses das facções. E tal espaço absorve também a religião (ASSMANN; DUTRA, 2008, p. 11).

Por volta do século VI a.C., após o conjunto de reformas política, econômica e social realizadas por Sólon, em Atenas, apresenta-se, novamente, um período conflituoso envolvendo famílias da aristocracia, que instituem no governo a tirana de Pisístrato (600 – 528 a.C.). Pisístrato, governou Atenas no período de 546 a 527 a.C. e tomou uma série de medidas no campo econômico, que contribuíram para a prosperidade de Atenas. No campo político preservou os avanços implantados por Sólon. Porém, procurou favorecer seus aliados indicando-os para os principais cargos administrativos e jurídicos da polis. Vencidos, a tirania e sua sequência de governos, foi com Clístenes (565 a 492 a.C.), a partir do século V a.C., por volta de 508 a.C., que a democracia se afirmou e permaneceu como um regime de governo razoavelmente estável durante 180 anos, até por volta do ano de 322 a.C. O período áureo da democracia ateniense foi alcançado entre as décadas de 440 a 430 a.C., também conhecido como o “século de Péricles”.

No final do século VI a.C. e durante a segunda metade do século seguinte, o poder democrático realizou uma série de reformas que estenderam o estatuto de cidadãos plenos à totalidade dos habitantes masculinos nascidos atenienses, assegurando-lhes assim a igualdade diante da lei (isonomia) e o acesso às magistraturas. É instituída uma centena de

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municipalidades, agrupadas em dez tribos, que são administradas por um conselho que compreende todos os cidadãos nelas englobados. O poder central é exercido pela Assembleia Popular, que reúne todos os cidadãos dez vezes por ano e nas circunstâncias graves; é ela que toma as decisões soberanamente, adota decretos, elege os magistrados encarregados do executivo, designa de seu seio os membros das câmaras de justiça; e o faz por maioria, todo cidadão tendo direito de palavra. As magistraturas executivas — dos estrategistas aos inspetores dos mercados — são colegiais, limitadas; e necessitam-se de sérias razões para que um magistrado seja reeleito para suas funções (CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1985, p. 16).

Péricles (495 – 429 a.C.) foi um general, político e orador eloquente, considerado um dos principais defensores da democracia ateniense. Péricles uniu as demais cidades-estados gregas na Liga Délia durante as guerras médicas, sobretudo procurando proteger-se dos ataques persas. Tais prerrogativas fortaleceram Atenas e a transformaram num centro político, econômico e cultural e educacional da Grécia Antiga. É neste contexto, favorável à afirmação da democracia que se institui o princípio da isonomia, “todos passam a estar submetidos à mesma lei, enquanto a rotatividade e o sorteio na participação em cargos públicos indicam que todos dispõem da mesma Arete e podem participar igualitariamente na vida comunitária” (ASSMANN; DUTRA, 2008, p. 11).

A democracia ateniense consolida assim “o princípio do governo pela lei e o da liberdade individual que lhe está indissoluvelmente associado, base cívica da qual serão construídos os Estados de direito modernos” (NEMO, 2005, p. 20). O princípio do governo pela lei afirma a prerrogativa de que todos os cidadãos estão submetidos a uma única regra. Imparcial. Estabelece condições iguais para todos os cidadãos. “A regra é pública, conhecida antecipadamente, bem definida e estável, o cidadão sabe a priori como agir para não ser submetido à coerção de quem quer que seja” (NEMO, 2005, p. 21).

Ciente das normas gerais, dos direitos e deveres que possui com a polis, é de responsabilidade do cidadão agir respeitosamente em relação aos direitos dos demais cidadãos e da polis, evitando assim o litígio com ambas as partes, bem como comprometer-se com a manutenção e fortalecimento do espaço público.

A característica de um regime de liberdade é o fato de estar respaldado apenas em regras gerais e não em ordens particulares ou ordens dadas em nome de todos. O juiz ou o governante dão ordens particulares somente nos casos em que se trate de preencher as inevitáveis lacunas da lei. Definitivamente, o que os gregos inventaram não foi, como se afirma habitualmente, a democracia, mas o “Estado de direito”. [...]. Pela primeira vez na História, um sistema social admite não ser fundado em comunidade de origem (NEMO, 2005, p. 22).

A democracia ateniense manteve-se consistente até por volta do ano 430 a.C. Em função de derrotas sofridas na guerra contra Esparta e, por extensão de crise econômica, dificuldade de gerenciamento de conflitos internos, fragilização da liderança ateniense no contexto do mundo grego antigo, desencadeia-se uma profunda crise da democracia. Porém, o período da crise ateniense resultará num

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conjunto de reflexões sobre os meios e fins da política, os diversos regimes de governo, a fragilidades da democracia, que atravessam a civilização ocidental e chegam aos nossos dias. Parte significativa das questões e tensões políticas que as sociedades contemporâneas vivenciam, salvaguardas as especificidades temporais se encontram refletidas em seus pormenores no pensamento de Sócrates, Platão e Aristóteles. Mas, no que concerne especificamente a democracia, os gregos nos legaram a percepção de que sua afirmação e manutenção estão vinculados ao comprometimento de todos os cidadãos com o debate diuturno no espaço público em torno da preservação do bem comum.

[...] Pericles. O que ele compreendera e seus sucessores haviam esquecido, é que a democracia — o melhor dos regimes de políticos, por garantir a isonomia e assegurar as liberdades privadas — exige uma constante atenção de todos os cidadãos. Ela só subsiste se os dirigentes que o povo escolheu não deixarem nunca de calcular e refletir sobre suas decisões. Regime de liberdade que leva aos grandes empreendimentos, ela entra em colapso quando esses não são conduzidos somente pelo princípio da inteligência (o nous), do intelecto calculador que não apenas elabora estratégias de prudência, mas visa também a não lesar nem favorecer nenhum dos grupos constitutivos da coletividade (CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1985, p. 17).

Ao que tudo indica e, no atual contexto da sociedade brasileira, urge retornar ao pensamento político grego antigo se quisermos compreender suficientemente o que significa construir um Estado democrático de direito, bem como afirmar que vivemos numa democracia. A afirmação de que vivemos numa sociedade democrática a partir do funcionamento das instituições, da liberdade de opinião pública, da preservação das liberdades individuais, do dever de votar, da garantia de propriedade, bem como dos contratos com rentistas e, fundos privados operadores da economia financeirizada não demonstra consistência democrática. Ou, dito de outro modo, democracia exige comprometimento dos cidadãos com a distinção entre espaço público e privado, entre interesses individuais e coletivos. A democracia é a esfera por excelência da ação comum na primazia da dimensão pública. Todo e qualquer discurso que se anuncia democrático desconsiderando tal condição é ilegítimo.

NOTA

UMA CIDADANIA REDUZIDA A DADOS BIOMÉTRICOS

Giorgio Agamben

“A segurança está entre aquelas palavras com sentidos tão abrangentes que nós nem prestamos mais muita atenção ao que ela significa. Erigido como prioridade política, esse apelo à manutenção da ordem muda constantemente seu pretexto (a subversão política, o terrorismo…), mas nunca seu propósito: governar as populações” (GIORGIO AGAMBEN).

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UNIDADE 1 | ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

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A expressão “por razões de segurança” funciona como um argumento de autoridade que, cortando qualquer discussão pela raiz, permite impor perspectivas e medidas inaceitáveis sem ela. É preciso opor-lhe a análise de um conceito de aparência banal, mas que parece ter suplantado qualquer outra noção política: a segurança.

Poderíamos pensar que o objetivo das políticas de segurança seja simplesmente prevenir os perigos, os problemas ou mesmo as catástrofes. A genealogia remonta a origem do conceito ao provérbio romano “Salus publica suprema lex” – “A salvação do povo é a lei suprema” – e, assim, a inscreve no paradigma do estado de exceção. Pensemos no senatus consultum ultimum e na ditadura em Roma;1 no princípio do direito canônico, segundo o qual “necessitas legem non habet” (“necessidade não tem lei”); nos Comitês de Salvação Pública2 durante a Revolução Francesa; ou ainda no artigo 48 da Constituição de Weimar (1919), fundamento jurídico do regime nacional socialista, que igualmente mencionava a “segurança pública”.

Embora correta, essa genealogia não permite compreender os dispositivos de segurança contemporâneos. Os procedimentos de exceção visam uma ameaça imediata e real, que deve ser eliminada ao se suspender por um período limitado as garantias da lei; as “razões de segurança” de que falamos hoje constituem, ao contrário, uma técnica de governo normal e permanente.

Mais do que no estado de exceção, Michel Foucault3 aconselha procurar a origem da segurança contemporânea no início da economia moderna, em François Quesnay (1694-1774) e nos fisiocratas.4 Se pouco depois do Tratado de Vestfália (1648)5 os grandes Estados absolutistas introduziram em seus discursos a ideia de que a soberania deveria velar pela segurança de seus súditos, foi preciso esperar Quesnay para que a seguridade — ou melhor, a “segurança” — se tornasse o conceito central da doutrina do governo. Seu artigo consagrado aos “Grãos” na Enciclopédia permanece, dois séculos e meio depois, indispensável para compreender o modo de governo atual. Voltaire diz que, desde que esse texto surgiu, os parisienses pararam de discutir teatro e literatura para falar de economia e agricultura… Um dos principais problemas que os governos então precisavam enfrentar era o da escassez de alimento e a fome. Até Quesnay, eles tentavam preveni-los criando celeiros públicos e proibindo a exportação de grãos. Mas essas medidas preventivas tinham efeitos negativos sobre a produção. A ideia de Quesnay foi inverter o procedimento: em vez de tentar prevenir a fome, era preciso deixá-la acontecer e, pela liberação do comércio exterior e interior, governá-la quando ocorresse. “Governar” retoma aqui seu sentido etimológico: um bom piloto – aquele que detém o governo – não pode evitar a tempestade, mas, se ela ocorre, ele deve ser capaz de dirigir seu barco.

É nesse sentido que devemos compreender a expressão atribuída a Quesnay, mas que, na verdade, ele nunca escreveu: “Laisser faire, laisser passer”. Longe de ser apenas a divisa do liberalismo econômico, ela designa um paradigma de governo que situa a segurança – Quesnay evoca a “segurança dos agricultores e trabalhadores” — não na prevenção dos problemas e desastres, mas na capacidade de canalizá-los numa direção útil.

É preciso considerar a implicação filosófica dessa inversão que perturba a relação hierárquica tradicional entre as causas e os efeitos: pois é vão, ou de qualquer modo custoso, governar as causas, é mais útil e mais seguro governar os efeitos. A importância desse axioma não é negligenciável: ele rege nossas sociedades, da economia à ecologia, da política externa e militar às medidas internas de segurança e de polícia. É ele também que permite compreender a convergência antes misteriosa entre um liberalismo absoluto na economia e um controle de segurança sem precedentes.

Tomemos dois exemplos para ilustrar essa aparente contradição. Primeiro, o da água potável. Ainda que se saiba que esta vai logo faltar numa grande parte do planeta,

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TÓPICO 1 | MUNDO GREGO ANTIGO: A PHXSIS, A POLIS E A DEMOCRACIA

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nenhum país segue uma política séria para evitar seu desperdício. Ao contrário, vê-se se desenvolverem e se multiplicarem, nos quatro cantos do globo, as técnicas e usinas para o tratamento de águas poluídas – um mercado considerável no futuro.

Segundo exemplo. Consideremos no presente os dispositivos biométricos, que são um dos aspectos mais inquietantes das tecnologias de segurança atuais. A biometria surgiu na França na segunda metade do século XIX. O criminologista Alphonse Bertillon (1853-1914) se apoiaria na fotografia signalética e nas medidas antropométricas para constituir seu “retrato falado”, que utiliza um léxico padronizado para descrever os indivíduos numa ficha com seus sinais. Pouco depois, na Inglaterra, um primo de Charles Darwin e grande admirador de Bertillon, Francis Galton (1822-1911), desenvolveu a técnica das impressões digitais. Esses dispositivos, evidentemente, não permitem prevenir os crimes, mas perseguir criminosos reincidentes. Encontramos aqui ainda a concepção de segurança dos fisiocratas: é apenas com o crime cometido que o Estado pode intervir com eficácia.

Pensadas para os delinquentes recidivos e os estrangeiros, as técnicas antropométricas permaneceram por muito tempo privilégio exclusivo deles. Em 1943, o Congresso dos Estados Unidos recusou o Citizen Identification Act (Ato de Identificação do Cidadão), que visava dotar todos os cidadãos de carteiras de identidade com suas impressões digitais. Foi apenas na segunda metade do século XX que elas se generalizaram. Mas a última novidade aconteceu há pouco tempo. Os scanners ópticos, que permitem revelar rapidamente as impressões digitais e a estrutura da íris, fizeram os dispositivos biométricos sair das delegacias de polícia para ancorar na vida cotidiana. Em certos países, a entrada nas cantinas escolares é controlada por um dispositivo de leitura óptica sobre o qual a criança pousa a mão distraidamente.

Leis mais severas que no fascismo

Preocupações se acumulam sobre os perigos de um controle absoluto e sem limites por parte de um poder que disporia de dados biométricos e genéticos de seus cidadãos. Com essas ferramentas, o extermínio dos judeus (ou qualquer outro genocídio imaginável), baseado numa documentação incomparavelmente mais eficaz, teria sido total e extremamente rápido. Em matéria de segurança, a legislação hoje em vigor nos países europeus é, em certos aspectos, sensivelmente mais severa do que a dos Estados fascistas do século XX. Na Itália, um texto único das leis sobre segurança pública (Testo Unico delle Leggi di Pubblica Sicurezza, Tulsp) adotado em 1926 pelo regime de Benito Mussolini está, no essencial, ainda em vigor; mas as leis contra o terrorismo votadas durante os “anos de chumbo” (de 1968 ao início dos anos 1980) restringiram sensivelmente as garantias nele contidas. Como a legislação francesa contra o terrorismo é ainda mais rigorosa que sua homóloga italiana, o resultado de uma comparação com a legislação fascista não seria muito diferente.

A crescente multiplicação de dispositivos de segurança testemunha uma mudança na conceituação política, a ponto de podermos legitimamente nos perguntar não apenas se as sociedades em que vivemos ainda podem ser qualificadas de democráticas, mas também e acima de tudo se elas ainda podem ser consideradas sociedades políticas.

No século V a.C., como demonstrou o historiador Christian Meier, uma transformação do modo de conceber a política já tinha se produzido na Grécia, por meio da politização (Politisierung) da cidadania. Uma vez que o pertencimento à cidade (a polis) era até então definido pelo estatuto e pela condição — nobres e membros das comunidades culturais, agricultores e comerciantes, senhores e clientes etc. —, o exercício da cidadania política se tornou um critério da identidade social. “Cria-se assim uma identidade política especificamente grega, na qual a ideia de que os indivíduos devem se conduzir como cidadãos encontra uma forma institucional”, escreve Meier. “O pertencimento a grupos constituídos com base nas comunidades econômicas ou religiosas foi relegado a segundo

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UNIDADE 1 | ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

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plano. À medida que os cidadãos de uma democracia se dedicavam à vida política, eles compreendiam a si mesmos como membros da polis. Polis e politeia, cidade e cidadania, se definem reciprocamente. A cidadania se torna assim uma atividade de uma forma de vida para aqueles para quem a polis, a cidade, constituía um domínio claramente distinto de oikos, a casa. A política se tornou um espaço público livre, oposto enquanto tal ao espaço privado onde reinava a necessidade.”6 Segundo Meier, esse processo de politização especificamente grego foi transmitido como herança à política ocidental, na qual a cidadania permaneceu — com altos e baixos, certamente — o fator decisivo.

É precisamente esse fator que hoje está se revertendo de modo progressivo: trata-se de um processo de despolitização. Antes limiar da politização ativa e irredutível, a cidadania se tornou uma condição puramente passiva, em que a ação ou a inação, o público e o privado se desvanecem e se confundem. O que se concretizava por uma atividade cotidiana e uma forma de vida se limita hoje a um estatuto jurídico e ao exercício de um direito de voto cada vez mais parecido com uma pesquisa de opinião.

“Todo cidadão é um terrorista potencial”

Os dispositivos de segurança têm desempenhado um papel decisivo nesse processo. A extensão progressiva a todos os cidadãos das técnicas de identificação outrora reservadas aos criminosos inevitavelmente afeta a identidade política. Pela primeira vez na história da humanidade, a identidade não é mais função da “pessoa” social e de seu reconhecimento, do “nome” e da “nominação”, mas de dados biológicos que não podem manter nenhuma relação com o sujeito, como os rabiscos sem sentido que meu polegar molhado de tinta deixou sobre a folha de papel ou a inscrição de seus genes na dupla hélice do DNA. O fato mais neutro e mais privado se torna assim o veículo de identidade social, removendo seu caráter público.

Se critérios biológicos, que em nada dependem da minha vontade, determinam minha identidade, então a construção de uma identidade política se torna problemática. Que tipo de relação eu posso estabelecer com minhas impressões digitais ou com meu código genético? O espaço da ética e da política que estamos acostumados a conceber perde seu sentido e exige ser repensado a partir do zero. Enquanto a cidadania grega se definia pela oposição entre o privado e o público, a casa (sede da vida reprodutiva) e a cidade (lugar do político), a cidadania moderna parece evoluir numa zona de indiferenciação entre o público e o privado, ou, para tomar emprestadas as palavras de Thomas Hobbes, entre o corpo físico e o corpo político.

Essa indiferenciação se materializa no vídeo de vigilância das ruas em nossas cidades. Tal dispositivo conheceu o mesmo destino que o das impressões digitais: concebido para prisões, ele tem sido progressivamente estendido para os lugares públicos. Um espaço vídeo vigiado não é mais uma ágora, não tem mais nenhuma característica pública; é uma zona cinzenta entre o público e o privado, a prisão e o fórum. Tal transformação tem uma multiplicidade de causas, entre as quais o desvio do poder moderno em relação à biopolítica ocupa lugar especial: trata-se de governar a vida biológica dos indivíduos (saúde, fecundidade, sexualidade etc.), e não mais apenas exercer uma soberania sobre o território. Esse deslocamento da noção de vida biológica para o centro da vida política explica o primado da identidade física sobre a identidade política.

Mas não podemos esquecer que o alinhamento da identidade social com a corporal começou com a preocupação de identificar os criminosos recidivos e os indivíduos perigosos. Portanto, não é surpreendente que os cidadãos, tratados como criminosos, acabem por aceitar como evidente que a relação normal entre o Estado e eles seja a suspeita, o fichamento e o controle. O axioma tácito, que é preciso aqui arriscar a anunciar é: “Todo cidadão — enquanto ser vivente — é um terrorista potencial”. Mas o que é um Estado, o que é uma sociedade regida por tal axioma? Podem ainda ser definidos como democráticos ou mesmo como políticos?

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TÓPICO 1 | MUNDO GREGO ANTIGO: A PHXSIS, A POLIS E A DEMOCRACIA

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Em seus cursos no Collège de France e em seu livro Vigiar e punir,7 Foucault esboça uma classificação tipológica dos Estados modernos. O filósofo mostra como o Estado do Antigo Regime, definido como um Estado territorial ou de soberania, cuja divisa era “fazer morrer e deixar viver”, evoluiu progressivamente para um Estado de população em que a população demográfica substitui o povo político e para um Estado de disciplina, cuja divisa se inverte em “fazer viver e deixar morrer”: um Estado que se ocupa da vida dos sujeitos para produzir corpos sãos, dóceis e disciplinados.

O Estado em que vivemos hoje na Europa não é um Estado de disciplina, mas — segundo a expressão de Gilles Deleuze — um “Estado de controle”: ele não tem por objetivo ordenar e disciplinar, mas gerir e controlar. Depois da violenta repressão das manifestações contra o G8 de Gênova, em julho de 2001, um funcionário da polícia italiana declarou que o governo não queria que a polícia mantivesse a ordem, mas gerasse a desordem. Por sua vez, os intelectuais norte-americanos que tentaram refletir sobre as mudanças constitucionais induzidas pelo Patriot Act (Lei Patriótica) e a legislação pós-11 de Setembro8 preferem falar de “Estado de segurança” (security State). Mas o que quer dizer “segurança” aqui?

Durante a Revolução Francesa, essa noção estava implicada com aquela de polícia. A lei de 16 de março de 1791 e depois a de 11 de agosto de 1792 introduziram na legislação francesa a ideia, que teria uma longa história na modernidade, de “polícia de segurança”. Nos debates precedentes à adoção dessas leis, parecia claro que polícia e segurança se definiam reciprocamente; mas os oradores — entre os quais Armand Gensonné, Marie-Jean Hérault de Séchelles, Jacques Pierre Brissot — não foram capazes de definir nem uma coisa nem outra. As discussões se mantiveram essencialmente nas relações entre a polícia e a justiça. Segundo Gensonné, trata-se de “dois poderes perfeitamente distintos e separados”; e, portanto, enquanto o papel do Poder Judiciário é nítido, o da polícia parece impossível de definir.

A análise do discurso dos deputados mostra que o lugar da polícia é impossível de ser decidido, e deve continuar assim, pois se estivesse inteiramente absorvida pela justiça a polícia não poderia mais existir. É a famosa “margem de apreciação” que ainda hoje caracteriza a atividade do agente de polícia: em relação à situação concreta que ameaça a segurança pública, ele age com soberania. Fazendo assim, não decide nem prepara — como se diz erroneamente — a decisão do juiz: toda decisão implica causas e a polícia intervém sobre os efeitos, isto é, sobre algo que não pode ser decidido.

Esse não decidido não se chama mais, como no século XVII, de “razão de Estado”, mas de “razões de segurança”. O security State é, portanto, um Estado de polícia, mesmo que a definição de polícia constitua um buraco negro na doutrina do direito público: quando no século XVIII surgiu na França o Traité de la police, de Nicolas de La Mare, e na Alemanha a Gesamte Policey-Wissenschaft, de Johann Heinrich Gottlob von Justi, a polícia foi reduzida à sua etimologia de  politeia  e tende a designar a política verdadeira, indicando o termo “política” nessa época apenas a política externa. Von Justi nomeia assim Politik a relação de um Estado com os outros e Polizei a relação de um Estado consigo mesmo: “A polícia é a relação de força de um Estado consigo mesmo”.

Ao se colocar sob o signo da segurança, o Estado moderno deixa o domínio da política para entrar numa no man’s land em que mal se percebem a geografia e as fronteiras e para a qual nos falta conceituação. Esse Estado, cujo nome remete etimologicamente a uma ausência de preocupação (securus: sine cura), nos deixa ainda mais preocupados com os perigos a que ele expõe a democracia, já que a via política se tornou impossível; pois democracia e vida política são — ao menos em nossa tradição — sinônimos.

Diante de tal Estado, é preciso repensar as estratégias tradicionais de conflito político. No paradigma securitário, todo conflito e toda tentativa mais ou menos violenta de reverter o poder oferecem ao Estado a oportunidade de administrar os efeitos em interesse

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UNIDADE 1 | ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

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próprio. É isso que mostra a dialética que associa diretamente terrorismo e reação do Estado numa espiral viciosa. A tradição política da modernidade pensou nas transformações políticas radicais sob a forma de uma revolução que age como o poder constituinte de uma nova ordem constituída. É preciso abandonar esse modelo para pensar mais numa potência puramente destituinte, que não fosse captada pelo dispositivo de segurança e precipitada na espiral viciosa da violência. Se quisermos interromper o desvio antidemocrático do Estado securitário, o problema das formas e dos meios de tal potência destituinte constitui a questão política essencial que nos fará pensar durante os próximos anos.

NOTAS:1  Em casos graves, a República romana previa a possibilidade de confiar, de modo excepcional, plenos poderes a um magistrado (o ditador).2 Comitês que deviam proteger a República contra os perigos de invasão e da guerra civil.3 Michel Foucault, Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France (1977-1978) [Segurança, território e população. Curso no Collège de France (1977-1978)], Gallimard/Seuil, Paris, 2004.4 A fisiografia baseia o desenvolvimento econômico na agricultura e defende a liberdade do comércio e da indústria.5 O Tratado de Vestfália encerrou a Guerra dos Trinta Anos opondo o campo dos Habsburgos, apoiados pela Igreja Católica, e os Estados alemães protestantes do Sacro Império. Ele inaugura uma ordem europeia fundada nos Estados-nação.6  Christian Meier, “Der Wandel der politisch-sozialen Begriffswelt im V Jahrhundert v.Chr.”. In: Reinhart Koselleck (org.), Historische Semantik und Begriffsgeschichte, Klett-Cotta, Stuttgart, 1979.7 Michel Foucault, Surveiller et punir [vigiar e punir], Gallimard, Paris, 1975.8 Ler Chase Madar, “Recrudescimento do aparato de segurança norte-americano”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2012.

FONTE:  <https://diplomatique.org.br/como-a-obsessao-por-seguranca-muda-a-democracia/>. Acesso em: 4 dez. 2018.

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Neste tópico você aprendeu que:

• A polis, a cidade-comunidade, é a materialização humana do cosmos, da physis. A physis produz no ser humano o sentimento de espanto e admiração frente à grandiosidade do universo, mas, sobretudo, por sua organização, equilíbrio e harmonia.

• Há, na physis, uma dimensão teleológica que conspira que cada ente nela existente cumpra adequadamente sua finalidade. Esta ordem os gregos antigos transferem para a polis, para o plano da política.

• A dimensão teleológica que concerne à vida humana é a busca de sua qualificação.

• A qualificação de uma vida está vinculada a sua participação e compromisso com o espaço público, com a ágora, com a busca do bem viver e da felicidade, que somente se realiza na plenitude da polis.

• Os gregos concebiam a democracia como decorrência do exercício da cidadania. A vida qualificada exigia o exercício da cidadania, o comprometimento com a polis, mas, sobretudo, com os debates públicos, que definiam os rumos da cidade-comunidade.

• A democracia era compreendida como resultante do pleno comprometimento com o espaço público, com a vitalidade da polis.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 Como se constituía a religião grega antiga? Qual é a sua contribuição na conformação da polis e da cidadania?

2 O que significa afirmar que a democracia para os gregos antigos se apresenta numa dimensão qualitativa, diferente dos dias atuais em que ela se apresenta como uma questão quantitativa?

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

ANTIGUIDADE: SÓCRATES, PLATÃO E

ARISTÓTELES

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Com a afirmação da polis ateniense, o cidadão assume condição privilegiada no debate e condução da dinâmica política, sobretudo com a instituição da democracia participativa direta como regime de governo. No contexto democrático ateniense, o exercício da cidadania se apresenta cotidiano e exigente. Participar dos debates públicos, das decisões estratégicas para manutenção do espaço público, bem como a possibilidade de ser indicado a exercer cargo público requeria consistente formação educacional, conhecimento das leis, de interesses militares estratégicos.

Sob tais condições políticas surgem os sofistas. Conhecedores das tradições, dos costumes e das leis das mais diversas cidades-estados gregas, bem como detentores da arte da retórica e da oratória passam a ser contratados pelos cidadãos para aprimorarem seus conhecimentos, bem como para educarem os futuros cidadãos. Assim, os sofistas vendem um conhecimento especializado necessário ao exercício da cidadania na ágora. Para esses mestres diante dos interesses públicos não há possibilidade de acesso e afirmação da verdade, mas sim do alcance de convenções que equalizam os mais diversos interesses em disputa. Sócrates contrapõem-se à estratégia dos sofistas e passa questionar as bases conceituais da democracia ateniense.

Os questionamentos de Sócrates incomodam os cidadãos. O filósofo da ironia e da maiêutica questionava as falácias conceituais a partir das quais os cidadãos apoiavam seus posicionamentos políticos. Tal condição fez com que os cidadãos denunciassem Sócrates de subversão da juventude, bem como de desrespeito com os deuses da cidade. Processado, Sócrates foi condenado à morte pela ingestão de cicuta em 399 a.C. Este fato foi decisivo para que Platão, discípulo de Sócrates ao longo de mais de 20 anos, decidisse dedicar-se exclusivamente à filosofia com intuito de pensar e compreender as causas que levaram os cidadãos a condenar à morte o mais sábio dos cidadãos atenienses.

Nesta perspectiva, a filosofia política de Platão nasce da crise da democracia ateniense. Tratava-se naquele contexto de compreender os equívocos produzidos pela democracia, bem como de se questionar a melhor forma de governo da polis. Entre os diversos diálogos socráticos, que colocam em debate as condições de possibilidade de acesso à verdade, ao bem, ao belo e a justiça, Platão escreve o diálogo A República em que propõe a forma ideal de organização política de

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UNIDADE 1 | ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

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uma polis. Aristóteles, discípulo de Platão, se inscreve no contexto da derrocada da democracia ateniense e, nesta direção suas reflexões políticas presentes mais especificamente nas obras: A Política e Ética a Nicômaco, procuram afirmar a natureza política do humano, bem como a relação entre política, ética e estética.

São estes debates, e as categorias políticas deles derivadas no mundo antigo e que se fazem presentes até os dias de hoje, a que você terá acesso nesta unidade do Livro Didático de Teoria Política I.

2 OS SOFISTAS E SÓCRATES

No contexto da efervescência política, econômica, cultural e das exigências da democracia ateniense surgem os sofistas. Os sofistas se apresentam como uma espécie de educadores em diversas partes do mundo grego antigo. “A palavra sophistes vinha sendo usada havia muito tempo como um termo genérico para designar pessoas que eram ao mesmo tempo sábias e hábeis. Podia ser aplicada igualmente a poetas, a carpinteiros, a médicos e a estadistas” (LUCE, 1994, p. 82).

Porém, a partir de 450 a.C. passam a designar homens que se movem de cidade em cidade oferecendo e vendendo cursos de aprimoramento pessoal sobre os mais diversos temas e assuntos. Tal fato se justifica em função das demandas dos indivíduos e dos cidadãos por conhecimentos específicos que lhes permitam acompanhar e participar das transformações políticas, jurídicas e econômicas em curso.

A abertura lhes foi proporcionada pela crescente expectativa na educação grega em geral, e particularmente pelo avanço da democracia no estilo ateniense. Como o poder político tendeu a concentrar-se em grandes assembleias e júris populares, a arte da oratória pública eficiente elevou-se a um preço cada vez mais alto, e os pretendentes a políticos estavam dispostos a pagar altos honorários a qualquer um que pudesse transmiti-la (LUCE, 1994, p. 82).

Os sofistas “ensinavam por meio de conferências públicas ou seminários privados, e esperavam ser, e eram bem pagos por sua atividade” (LUCE, 1994, p. 82). A importância que os sofistas alcançaram nas cidades-estados gregas e, sobretudo em Atenas, tornaram-se alvo de duras críticas em vários aspectos. Uma das críticas residia no fato de cobrarem por seus ensinamentos.

O sofista tem algumas características que acabaram sendo preocupantes para a cultura ateniense e que o tornaram odiado por parte desta cultura. Ele é um intelectual de profissão, é estrangeiro, e ensina a pagamento: estas são as grandes acusações dirigidas ao sofista. Ele realiza, portanto, negócio com o saber, é um artesão do conhecimento (HÖSLE, 2018, p. 2).

Seus críticos, entre eles Platão, argumentam que o alcance do conhecimento requer disciplina, empenho e autoconhecimento. O caminho do conhecimento é árduo. Requer abandonar os preconceitos, o senso comum, crenças e hábitos que

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TÓPICO 2 | ANTIGUIDADE: SÓCRATES, PLATÃO E ARISTÓTELES

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impedem o alcance dos conceitos e, por decorrência uma adequada compreensão da realidade. A crítica é implacável, pois afirma que não basta pagar com o intuito de adquirir o conhecimento. Esta crença de orientação pragmática dissemina a mediocridade, a equivocada percepção de que o conhecimento está desvinculado da vida da polis, do espaço público, da vida dos cidadãos.

Referências aos sofistas como pagos por seu trabalho são frequentes em Platão, e ocorrem também em Xenofonte, Isócrates e Aristóteles. O caráter dos sofistas pode ter mudado, mas permaneceram profissionais desde Protágoras até os tempos de Isócrates pelo menos. “Os que vendem sua sabedoria por dinheiro a quem a queira, são chamados sofistas”, diz Sócrates em Xenofonte (Men. 1.6.13), e acrescenta um comentário mais cáustico do que qualquer coisa em Platão. [...]. Aristóteles descreve o sofista como alguém que faz dinheiro de uma sabedoria aparente, mas irreal, e pondo de lado a zombaria, esta e outras passagens são provas de que sofistas pagos ainda existem em seu tempo (GUTHRIE, 2007, p. 39).

Noutra perspectiva, mas de certa forma vinculada à crítica acima anunciada, encontra-se o questionamento sobre o que ensinavam aos sofistas. Sob determinados aspectos, mais precisamente no âmbito político e jurídico a atividade letiva dos sofistas questionava os fundamentos sobre os quais se assentavam discursos marcados pela pretensão de afirmação de verdades incontestes. Questões da sofística também incidiam sobre aspectos morais, questionando-os intensamente. “A sofística é o primeiro grande momento iluminístico da história. [...] um movimento que é peculiar da cultura grega. Nunca houve uma tentativa de pôr em dúvida, baseando-se em argumentos racionais, os valores aceitos pela sociedade. Isto é o que acontece com a sofística” (HÖSLE, 2018, p. 2). Ainda nesta direção, nos deparamos com os seguintes argumentos que expressão preocupação em relação ao ensino proferido pelos sofistas.

A preocupação parece ter-se especialmente volta para a espécie de assuntos que os sofistas professavam ensinar, especialmente a Arete. Protágoras, interrogado sobre o que Hipócrates aprenderá dele, replica (Prot. 318e). “O cuidado adequado de seus próprios negócios, para que possa administrar melhor sua casa e família, e o cuidado dos negócios do Estado, para se tornar poder real na Cidade quer como orador, quer como homem de ação”. [...] Embora alguns deles ensinassem muitas outras coisas também, tudo inclusive avanço político em seu currículo, e a chave para este, na Atenas democrática, era o poder do discurso persuasivo. [...]. Ora, “ensinar a arte da política e empreender fazer dos homens bons cidadãos” (Prot. 319ª) era o que precisamente em Atenas se considerava o campo especial do amador e do cavalheiro (GUTHRIE, 2007, p. 41).

As críticas aos sofistas se multiplicavam a partir destas variáveis, mas também pelo fato de serem estrangeiros, de não gozarem do título de cidadania e, mesmo assim abordarem questões inerentes a ágora.

O ódio em que incorriam aos olhos do establishment era não só devido aos assuntos que professavam, mas também seu próprio status estava contra eles. Não só pretendiam dar instrução no que em Atenas se pensava ser para as pessoas certas uma espécie de segunda natureza, mas eles mesmos não eram líderes atenienses nem mesmo cidadãos (GUTHRIE, 2007, p. 42).

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UNIDADE 1 | ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

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Entre os diversos ensinamentos oferecidos pelos sofistas encontrava-se a areté, a arte da retórica e oratória, que se constitui na habilidade de articulação de argumentos na composição de um discurso com a finalidade de persuasão do oponente. Ou dito de outra forma, os sofistas demonstram o poder da palavra na composição do discurso, questionam as bases metafísica sobre as quais se fundamentam a pretensão de afirmação da verdade como totalidade inquestionável. Vejamos um trecho do sofista Górgias presente em seu famoso discurso Elogia de Helena:

A palavra é uma grande dominadora que, com pequeníssimo e sumamente invisível corpo realiza obras diviníssimas, pois pode fazer cessar o medo e tirar as dores, infundir a alegria e inspirar a piedade... O discurso, persuadindo a alma, obriga-a, convencida ter fé nas palavras e a consentir nos fatos... A persuasão, unida à palavra, impressiona a alma como quer... o poder do discurso com respeito à disposição da alma é idêntico ao dos remédios em relação à natureza do corpo. Com efeito, assim como os diferentes remédios expelem do corpo de cada um diferentes humores, e alguns fazem cessar o mal, outros a vida, assim também entre os discursos alguns afligem e outros deleitam, outros espantam, outros exercitam até o ardor os seus ouvintes, outros envenenam e fascinam a alma com persuasões malvadas (MONDOLFO, 1970, p. 119).

A partir das perspectivas apresentadas anteriormente pode-se afirmar que as questões centrais orientavam os ensinamentos dos sofistas vinculavam-se, sobretudo as questões que dizem respeito à conduta de vida do cidadão na polis. Os mestres da Areté desvinculam-se dos problemas que estão na origem da filosofia desenvolvidos pelos filósofos pré-socráticos e, que diziam respeito ao inquérito sobre a physis como totalidade da existência e do mundo assentada em princípios teleológicos expressando equilíbrio, harmonia e beleza.

[...] os sofistas afastaram-se da especulação acerca da natureza e da preocupação filosófica com a realidade suprema, e se concentraram em assuntos que pareciam ter relevância direta em relação a conduta na vida humana. Discutiam os fundamentos da lei e da moral, e questionaram os méritos dos diferentes sistemas políticos, criando assim os fundamentos do estudo sistemático da ética e da política (LUCE, 1994, p. 82).

A condição errante dos sofistas pela Grécia e mundo antigo, lhes permitia entrar em contato com as mais diversas culturas e costumes, constatando que diante de um acontecimento característico da condição humana cada povo agia de forma diferente e partindo do pressuposto que sua forma de agir era a adequada. A percepção de tal condição levou parte dos sofistas a considerar “que se não há qualquer base comum ou natural para o costume, não podem existir padrões absolutos de moralidade, e daí foi um curto passo para a opinião de que as restrições morais eram meramente convencionais, e portanto, contrárias à natureza” (LUCE, 1994, p. 85).

O fato de os sofistas ensinarem aos cidadãos a arte da retórica, da persuasão pelo discurso, de certo relativismo moral, bem como assumirem uma posição epistemológica cética em relação à capacidade humana de alcance e afirmação da verdade argumentando que o conhecimento está vinculado ao sujeito que afirma

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que conhece, rendeu aos sofistas duras críticas por parte dos filósofos. “Sócrates e Platão nunca teriam existido sem os sofistas é repetido por Jaeger (Paid. I. 288) [...]” (GUTHRIE, 2007, p. 49). Reforçando o argumento constitutivo do parágrafo analisemos esta passagem:

Constituía parte da instrução retórica ensinar o aluno a argumentar com igual êxito sobre ambos os lados da questão. Como Protágoras disse, “Sobre cada tópico há dois argumentos contrários entre si”. Ele visava a treinar seus alunos para elogiar e censurar as mesmas coisas, em particular escorar o argumento mais fraco para que aparecesse mais forte. O ensino retórico não se restringia à forma e ao estilo, mas lidava também com a substância do que se dizia. Como se podia deixar de inculcar a crença de que toda verdade era relativa e ninguém conhecia alguma coisa como certa? A verdade era individual e temporária, e não universal e permanente, pois a verdade para o homem era simplesmente aquela de que podia ser persuadido, e era possível persuadir qualquer de que preto era branco. Pode haver crença, mas nunca conhecimento (GUTHRIE, 2007, p. 52).

A tradição da história da filosofia consagrou entre os inúmeros sofistas dois deles. Trata-se de Protágoras de Abdera e Górgias de Leontini. Pertence a Protágoras de Abdera (490 – 420 a.C.), a seguinte máxima: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”. Esta famosa passagem é considerada “o manifesto-chave do humanismo grego. Se ‘homem’ significa aqui cada ‘ser humano individualmente’ [...], as palavras com efeito traçam uma linha em volta de um indivíduo com suas preocupações pessoais e lhe garantem que ele é o melhor juiz da verdade naquela área particular” (LUCE, 1994, p. 84). O sofista valoriza a capacidade de julgamento do indivíduo, bem como sua liberdade de opinião. “Protágoras provavelmente teria adotado a linha pragmática no sentido de que a verdade consiste em crenças e opiniões operando para o benefício de um indivíduo ou de uma comunidade” (LUCE, 1994, p. 84). Outra variável interpretativa sobre a máxima de Protágoras pode ser analisada na seguinte passagem:

A famosa frase segundo a qual o homem é a medida de todos os valores foi interpretada de maneiras diferentes, entendo “o homem” como gênero humano contraposto ao divino, ou então como o homem no sentido de indivíduo singular. Mas provavelmente a tese de Protágoras pode ser definida desta forma: não há justiça que tenha origem em princípios transcendentes ou externos ao mundo humano; a justiça do mundo humano é o que é decidido pela lei; é justo o que alei da cidade considera tal; a lei da cidade é promulgada por uma maioria democrática dentro da cidade; portanto, a cidade, os homens enquanto membros da cidade são a medida de todos valores porque promulgam as leis que sancionam o justo e o injusto. Esta tese de Protágoras é tese perigosa para a própria democracia para a qual quer oferecer fundamento e justificação inclusive moral (VIGETTI, 2018, p. 5).

À Górgias de Leontinos aproximadamente (483-376 a.C.) pertence a expressão do ceticismo em relação às condições de possibilidade do conhecimento na seguinte máxima: “É impossível conhecer. Porém, se for possível conhecer é impossível comunicar. Mas, se for possível comunicar é impossível compreender”. Num primeiro momento, Górgias questiona o caráter objetivo e a pretensão de

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validade universal do conhecimento humano, mas mesmo que aceitemos esta possibilidade este conhecimento é inacessível em sua universalidade aos indivíduos, uma vez que a via de sua expressão é a linguagem com seus sentidos e significados específicos a partir das experiências vitais constitutiva de cada indivíduo.

A respeito da análise da linguagem, a sofistica tem um grande mérito exatamente por causa da desconfiança com o conhecimento humano é que criticamos a linguagem. [...]. O que Górgias dizia, além da cisão da unidade do ser, pensamento e palavra, que encontramos também em Parmênides, deve conduzir a uma crítica da linguagem. Importa descobrir que a linguagem, a palavra e o pensamento não são idênticos, mas que há distinções entre os mesmos, como, por exemplo, no caso da homonímia (HÖSLE, 2018, p. 5).

A explanação até aqui desenvolvida, sobre o contexto político do mundo grego antigo, mais especificamente vinculada à democracia ateniense, bem como as ideias, os posicionamentos e, os questionamentos apresentados pelos sofistas à moral, às pretensões de universalidade do conhecimento, à pretensão à verdade, guia da ação política na ágora, bem como as críticas que lhes foram dirigidas é de fundamental importância para compreendermos a constituição de conceitos e teorias políticas, que constituíram o ocidente e, se encontram presentes e atuantes, salvaguardadas transformações sociais e temporais até os dias de hoje.

As culturas da Antiguidade greco-romana permanecem relevantes para nós não porque compartilhamos de suas crenças, mas porque continuamos a nos inquietar com muitas de suas questões. Afinal, ainda não conseguimos equacionar ou resolver satisfatoriamente as preocupações, ansiedades e dilemas suscitados pelos antigos (WILSON, 2013, p. 10).

Nesta direção, o filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben (2002), ao analisar aspectos da política, do direito, da economia e da democracia na contemporaneidade, argumenta que estamos diante do desafio de rever os conceitos e categorias político-jurídicas ocidentais, que se constituíram na trajetória do ocidente. Tais conceitos e formas de ação política nos colocaram diante de experiências pavorosas de exercício do poder, entre eles, os estados totalitários (nazismo e fascismo) das primeiras décadas do século XX. Para o filósofo, tais eventos não se apresentam como fatos isolados, mas constituem a própria lógica da constituição política ocidental.

A decadência da democracia moderna e o seu progressivo convergir com os estados totalitários nas sociedades pós-democráticas espetaculares [...] têm, talvez, sua raiz nesta aporia que marca o seu início e que a cinge em secreta cumplicidade com o seu inimigo mais aguerrido. A nossa política não conhece hoje outro valor [...] que a vida, e até que as contradições que isto implica não forem solucionadas, nazismo e fascismo, que havia feito da decisão sobre a vida nua o critério político supremo, permanecerão desgraçadamente atuais (AGAMBEN, 2002, p. 18).

O argumento acima apresentado por Agamben é corroborado pela autora Emily Wilson ao afirmar que “O julgamento de Sócrates é o primeiro caso na história em que um governo democrático, agindo conforme a lei condenou uma

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pessoa à morte por suas crenças”, e conclui a autora: “O julgamento de Sócrates e seu resultado assinalam um problema político com o qual as democracias até hoje têm que lidar, ou seja: o que fazer com os dissidentes” (WILSON, 2013, p. 10).

Mas quem foi Sócrates? Quais foram suas contribuições para a filosofia política? Quais foram suas críticas aos sofistas? Por que foi condenado à morte? Tais questões são cruciais para a compreensão da teoria (filosofia) política grega e ocidental até nossos dias. Evidentemente, nos limites da composição deste texto, não será possível desenvolver tais questões em seus aspectos derradeiros, mas nos permitirão apresentar alguns aspectos na composição do compreensivo em torno da conformação destas categorias de pensamento e sua incidência na teoria política ocidental.

Sócrates (469 – 399 a.C.) era filho de Atenas, que naquele contexto alcançara realizações artísticas, políticas, econômicas e militares expressivas. Iniciou-se nos estudos amparado pela filosofia de Anaxágoras. Como cidadão ateniense cumpriu seu dever, defender a cidade e seus interesses em diversas batalhas. Relatos de seus companheiros de armas o descrevem como um soldado corajoso, com atos de heroísmo em combate e, sobretudo zeloso pela sua inteireza moral. “Sócrates como um homem que falava a verdade ao poder, que era destemido de sua reputação, que acreditava numa vida devotada à busca da verdade e que patrocinava a ideia de que a virtude é essencial para a felicidade” (WILSON, 2013, p. 14).

Cidadão ateniense, Sócrates dedicava-se cotidianamente ao diálogo e ao debate com seus concidadãos na ágora. Nada escreveu e, nesta direção, “O problema socrático consiste em saber qual foi exatamente o ensinamento filosófico de Sócrates” (MONDIN, 1981, p. 46). No entanto, relatos de seus críticos, entre eles Aristófanes de Xenofonte, contemporâneo de Sócrates, bem como de Platão, seu discípulo ao longo de 20 anos, bem como de Aristóteles, que o conheceu por meio de Platão, dão conta de seus ensinamentos em praça pública.

Sócrates assumiu como missão:

Incitar os homens a se preocuparem antes de tudo com os interesses da própria alma, procurando adquirir a sabedoria e a virtude. [...] Sócrates propôs-se livrar seus concidadãos da influência nefasta dos sofistas, que punham em dúvida o conhecimento da uma verdade suprema e de uma lei moral absoluta [...] (MONDIN, 1981, p. 47).

Em seus diálogos em praça pública imbuído de sua missão, Sócrates desenvolve um método dialógico para alcance da verdade articulado em dois momentos. E método da “ironia e da maiêutica”. A ironia se apresenta num primeiro momento como um intenso questionamento das concepções, dos preconceitos e da pretensão de verdade do interlocutor. O propósito de Sócrates é possibilitar ao seu interlocutor o reconhecimento dos equívocos interpretativos e analíticos sobre os quais assentam suas concepções da realidade. “A ‘ironia’ é considerada para descrever qualquer tipo de brecha entre aparência e realidade” (WILSON, 2013, p. 53). Ainda, nesta direção, a ironia tem uma função educativa, de potencializar aos cidadãos o aprendizado adequado para bem agir na polis. Ato contínuo, o

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interlocutor diante da percepção de suas inconsistências de suas opiniões, de seu desprezo pela compreensão adequada dos conceitos e, portanto, dos limites na compreensão da realidade, talvez se veja estimulado, ou mesmo se conta da necessidade de ampliar seu saber. “Por razões de seu método [...] seus diálogos levantam uma questão, mas não dão solução. Servem para pôr o interrogado no caminho da solução para que ele mesmo a encontre” (MONDIN, 1981, p. 48).

Sob estes aspectos, é possível considerar que Sócrates demonstra, quanto menor a capacidade compreensiva de um ser humano em relação ao mundo, a si mesmo, e aos outros cidadãos, mais fácil ele se torna refém de outros que o controlam em suas opiniões, ideias e até em sua forma de vida. Ou seja, menor sua liberdade na medida em que se submete à segurança que a determinação de outrem lhe impõe. Ainda nesta perspectiva, também está próximo de apoiar soluções ditatoriais, ou mesmo totalitárias. “A perspectiva socrática do comportamento humano é extremamente chocante para qualquer sociedade que dependa de um sistema judicial comum” (WILSON, 2013, p. 67).

A democracia ateniense por volta do século IV a.C. em função das dificuldades da guerra contra Esparta, entre outras razões já apontadas anteriormente entra em crise. Sócrates é contemporâneo dos sofistas. É seu adversário ferrenho. Sua proposta político-filosófica se opõem aos ensinamentos de nuances relativistas no plano da moral, bem como de nuances céticos em relação à possibilidade do conhecimento e da verdade, o que na perspectiva de Sócrates comprometiam o espaço público, o bem viver, a busca da felicidade como manifestação do exercício da liberdade, que se constitui nos limites da vontade, dos interesses privados, sobre a coisa pública.

Sócrates tece duras críticas aos sofistas pelo fato de buscarem apenas o sucesso e, de ensinarem tais estratégias aos seus discípulos e, para tal finalidade sugerem que é preciso constituir uma carreira. Noutra perspectiva, Sócrates critica os sofistas por expressar publicamente a pretensão de possuírem conhecimentos sobre os mais variados assuntos e, assim saberem de tudo, bem como, sobre sua convicção de que podem ensinar os outros. Assim, afirmam os sofistas que aprender é coisa facílima, basta pagar o justo valor pelos conhecimentos desejados, que os obterão, afinal o valor de qualquer conhecimento, e prerrogativas morais é relativo e de foro subjetivo. “Segundo os sofistas, aprender é coisa facílima. Afirmam por isso que por um preço módico podem garantir aos discípulos o conhecimento da retórica e a arte de governar” (MONDIN, 1981, p. 48).

Os posicionamentos e as teses defendidas pelos sofistas se contrapõem ao posicionamento de Sócrates, que busca a verdade, que provoca seus discípulos para que assim também o façam. E para o alcance do conhecimento, da verdade é preciso afastar-se das pretensões de honra, de cargos, ou de toda e qualquer situação que impeça a superação de preconceitos, de equívocos interpretativos, de falácias argumentativas. Alcançar o conhecimento e a verdade é uma tarefa individual, exigente e disciplinada. Requer disposição para o diálogo com os mestres e, sobretudo, o exercício da autonomia na constituição dos pressupostos cognitivos e morais para

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agir adequadamente na ágora. “Para Sócrates, é somente lenta e progressivamente que se chega ao conhecimento da verdade, esclarecendo as próprias ideias e definindo as questões sempre com mais precisão” (MONDIN, 1981, p. 49).

Sob tais pressupostos é preciso considerar que Sócrates era um personagem singular no âmbito da democracia ateniense. Presente diuturnamente na ágora questionava incansavelmente seus concidadãos. “Seus alunos vinham de todas as partes da sociedade. Sócrates conversava com meninos, generais, poetas e fazendeiros, metecos, escravos — até, muitas vezes, com mulheres” (WILSON, 2013, p. 98). Admirado e respeitado por muitos cidadãos, também era odiado por outros. Foi acusado publicamente de incitar os jovens contra a democracia, de desrespeitar a leis da polis, bem como de impiedade com os deuses da cidade.

Conforme a lei ateniense, as acusações eram sempre apresentadas por cidadãos individuais. Não havia algo como um julgamento apresentado pela cidade. [...] Era um sistema no qual as queixas pessoais significavam muito. Sócrates teve três promotores: o instigador principal do julgamento, Meleto, e dois companheiros, Licon e Ânito. Os três representavam as três diferentes profissões que tinham razões para odiar Sócrates: os poetas, os políticos e os artesãos. Estes eram todos os grupos cuja reivindicação tradicional para a sabedoria o filósofo tinha questionado. É provável que os três promotores também tivessem razões pessoais para ter rancor dele (WILSON, 2013, p. 98).

Sócrates vai a julgamento. Faz sua própria defesa. É condenado pelos cidadãos de Atenas à morte por envenenamento por meio da ingestão de cicuta, uma espécie de veneno extraído de planta de mesmo nome que atua sobre o sistema nervoso central paralisando aos poucos as funções vitais. Em função de fato de ser um cidadão ateniense, de ser uma personalidade conhecida e admirada por alguns, foi o concedido a Sócrates alternativas à pena capital. Entre elas, retirar-se da cidade, ou então pagar uma fiança. Ambas propostas foram rejeitadas por Sócrates por se apresentarem como uma afronta a sua condição de cidadão, mas sobretudo porque admiti-las seria uma desonra descomunal, bem como uma mostra inconteste de incoerência entre pensamento e vida. Sócrates nos deixa esta passagem memorável em seu discurso defesa, após ter ciência do veredicto fatal.

Vós também, senhores juízes, deveis bem esperar da morte e considerar particularmente esta verdade: não há para o homem bom, nenhum mal, que na vida, que na morte, e os deuses não descuidam de seu destino. O meu não é efeito do acaso; vejo claramente que será melhor para mim morrer agora e ficar livre de fadigas. Por isso é que a advertência nada me impediu. Não me insurjo absolutamente contra os que votaram contra mim ou me acusaram e condenaram com esse modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dana: nisso merecem censura. [...]. Bem é chegada a hora de partirmos eu para a morte, vós para a vida. Quem segue o melhor rumo, se eu, se vós, é segredo para todos, menos para divindade (SÓCRATES 41d, 1973, p. 33).

A contribuição da morte de Sócrates perpassa a civilização Ocidental. Estamos diante das variáveis políticas que nos afligem até os dias de hoje e, sobretudo na atualidade em função da democracia de massas em que estamos inseridos. Entre as questões podemos apresentar as seguintes: o exercício da

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política é uma prerrogativa de todo e qualquer indivíduo que aspira a condição de cidadão, ou a complexidade das relações de poder entre os seres humanos requerem indivíduos especializados? A democracia como regime político, ampliando a participação dos indivíduos e das massas, tem tendência a sempre produzirem a tirania da maioria sobre a minoria? Ou por reverso, a habilidade do exercício do poder por parte de minoria pode conduzir democracias a regimes totalitários? Por que, em certos momentos de crise, há uma tendência de acusação e até de ódio há democracia em que os indivíduos anseiam por um líder, um messias, que prometa a salvação, que diga o que fazer, que resolva a situação? Por que, em contextos de crise e de discursos em defesa da democracia se promovem cerceamentos, perseguições e tentativas de aniquilamento de ideias e ideologias?

O filósofo francês Jacques Rancière nos adverte para o fato de que mesmo entre os gregos antigos a democracia não se apresentava como o melhor regime de governo e, de que na trajetória da civilização ocidental é possível identificar o ódio a democracia:

O ódio a democracia não é novidade. É tão velho quanto à democracia, e por uma razão muito simples: a própria palavra é a expressão de um ódio. Foi primeiro um insulto na Grécia antiga por aqueles que viam a ruína de toda ordem legítima no inominável governo da multidão. Continuou como sinônimo de abominação para todos os que acreditavam que o poder cabia direto aos que a ele eram destinados por nascimento ou eleitos por suas competências (RANCIÉRE, 2014, p. 8).

A morte de Sócrates em 399 a.C., perpassa o Ocidente no que concerne ao debate sobre o regime de governo adequado. Trata-se no atual contexto nos perguntarmos o que significa a democracia em nossos dias, ou mesmo de questionar: o que se entende por democracia em sociedades marcadas pela hegemonia dos indivíduos ensimesmados e preocupados quase que exclusivamente com as garantias de trabalho, de acesso à produção e ao consumo? O que significa a democracia numa sociedade espetacularizada?

DICAS

Prezado acadêmico! Segue indicativo de filme para estudos e aprofundamentos.

Sócrates é um filme espanhol, italiano e francês de 1971, dirigido por Roberto Rossellini. O filme foi dirigido pelo consagrado cineasta Roberto Rossellini, um dos maiores nomes do neorrealismo italiano. A esta altura de sua vida, o diretor, então com 64 anos, dedicava-se, sobretudo a produzir filmes de viés educativo para a televisão. Sócrates, portanto, encaixa-se perfeitamente na categoria já que aborda um pouco da trajetória de Sócrates (470 – 333 a.C.), um dos maiores pensadores da Grécia Antiga. Por isso, a obra cinematográfica é um excelente objeto para o estudo dirigido relativo à reflexão filosófica bem como sobre o período clássico.

Fonte: <https://www.resumoescolar.com.br/filosofia/socrates-estudo-dirigido-do-filme/>. Acesso em: 4 dez. 2018.

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2.1 A FILOSOFIA DE PLATÃO COMO REAÇÃOÀ MORTE DE SÓCRATES

A filosofia de Platão e, sobretudo para os estudos dos conceitos da teoria política constantes neste livro didático, inicia com um fato fúnebre: a morte de Sócrates. Mas a filosofia platônica — em si o fundamento de toda a filosofia ocidental posterior, incluindo a do próprio Aristóteles — começa com pesar. Neste sentido, Platão faz dois movimentos. O primeiro compreender as razões que levaram os cidadãos, a democracia ateniense condenar à morte o mais sábio e corajoso de seus membros. É este fato escandaloso que Platão procura compreender: como a democracia ateniense constituída no exercício da palavra rompe com o logos, com o conhecimento e, pautada em opiniões irascíveis produz a barbárie da morte de Sócrates.

Os atenienses mataram precisamente o único dentre eles que, mais do que se deleitar com belos discursos, esforçava-se por encontrar o logos justo, íntegro, aquele que é a expressão do próprio ser das coisas. A “justiça” de Atenas matou o único ateniense para quem a palavra “justiça” devia ter um significado real, verificável, definível. E em vez de escutar os discursos que Sócrates pudesse ter para eles sobre a justiça, os atenienses escolheram puni-lo por sua recusa de encantá-los com “belos discursos”, que não dizem nada sobre seu objeto (ROGUE, 2005, p. 11).

O segundo movimento era compreender o que significa alcançar o conhecimento, a verdade e a lisura no comportamento moral e, de que forma tais conhecimento poderiam contribuir na conformação de um sistema político capaz de evitar tragédias como a cometida contra Sócrates.

Platão queria encontrar respostas para as questões que Sócrates — na vida e na morte — havia formulado e, deixado sem resposta. Se a Atenas democrática pôde executar o homem que era “o mais corajoso, o mais sábio e o mais justo de nosso tempo”, então Platão precisava imaginar um novo sistema social no qual os filósofos fossem [...] não proscritos, mas reis (WILSON, 2013, p. 122).

Nesta perspectiva, “o problema para o qual desde o primeiro instante se orienta o pensamento de Platão é o problema de Estado” (JAEGER, 1995, p. 749). O próprio Platão afirma tal condição na Carta VII, um escrito, dirigido aos seus amigos, em que apresenta sua trajetória filosófica, bem como a importância da filosofia para compreender aspectos da vida humana. “Desde jovem [...] passei por uma experiência comum a muitos e me decidi firmemente a uma coisa: apenas em condição de dispor de minha vontade, logo dedicar-me à vida política” (Platão, 2008 apud REALE, p. 236).

Platão (427 – 347 a.C.) nasceu em Atenas. Descendente de famílias nobres, foi discípulo de Sócrates. “A convivência com Sócrates foi o fato que exerceu maior influência na formação da personalidade de Platão” (MONDIN, 1981, p. 55). Temendo perseguições dos cidadãos que condenaram Sócrates, Platão deixa

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Atenas e viaja por várias cidades da Grécia e da Itália. Volta a Atenas em 387 onde fundou a “Academia”. “A Academia [...] é a primeira universidade, sendo a estrutura de seu programa constituída pela matemática e pela geometria” (MONDIN, 1981, p. 56). Nesta direção, a contribuição de Platão atravessa os séculos e se constitui num dos legados fundamentais da civilização ocidental.

Ao longo de sua vida Platão escreveu muitas obras que podem ser assim classificadas: diálogos socráticos; diálogos polêmicos; diálogos da maturidade e os diálogos da velhice, além de cartas. O exercício filosófico de Platão expresso em sua obra,

[...] retoma, em seguimento ao seu mestre, uma investigação que tem por meta encontrar o acordo entre o logos e as coisas. Herda primeiro seu método de discussão, feito de perguntas e respostas entre dois interlocutores: a dialética. Esse método, muito valorizado nos primeiros diálogos de Platão, os diálogos socráticos, é antes de tudo um método de definição: com seus interlocutores, Sócrates se perguntará o que é a coragem (Laques), a piedade (Eutífron), a sabedoria (Cármides) etc. Cada vez, trata-se de aproximar-se tanto quanto possível de uma definição justa do objeto, de um acordo perfeito entre a palavra e a coisa. [...] Platão herda também convicções morais de Sócrates. Ninguém é mau voluntariamente: a injustiça, as ações feias, tudo isso pertence ao âmbito de uma ignorância fundamental. Cada um concorda em dizer que a justiça é mais bela que a injustiça; se alguns apesar disso, afundam nas ações injustas é por ignorância real dessa justiça, a qual, no entanto, reconhecem como bela (ROGUE, 2005, p. 11-12).

É a partir de tais pressupostos que Platão desenvolve sua filosofia política. “Os ensinamentos políticos de Platão, encontram-se disseminados em muitos escritos, mas estão desenvolvidos de modo mais extenso e sistemático em três obras [...]: República, Política, Leis [...]” (MONDIN, 1981, p. 75). Para nossos estudos, nos concentraremos em argumentos e conceitos presentes na obra República, em função dos limites do caderno diante da extensão do debate proposto por Platão.

É preciso ter presente em Platão que não se apresenta um conceito de Estado como constituído na modernidade e, presente em nossos dias. O Estado moderno, entre outras características, é conformado por um território, por uma população, bem como com um ordenamento jurídico estabelecido na forma de uma carta constitucional, que se apresenta na forma de lei como garantia institucional da democracia representativa. “Ora o que significa para Platão o Estado? A sua República não é uma obra de direito político ou administrativo, de legislação ou de política, no sentido atual. Platão não parte de um povo histórico existente, como Atenas ou Esparta” (JAEGER, 1995, p. 750). Ou seja, para além das especificidades que as diversas formas de organização política podem assumir entre os mais variados povos, Platão procura refletir a conformação de atitudes e disposições de alma presente nos seres humanos na conformação de um regime de governo adequado.

O Estado de Platão versa, em última análise, sobre a alma do Homem. O que ele nos diz do Estado como tal e de sua estrutura, a chamada concepção orgânica do Estado [...], não tem outra função senão apresentar-

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nos a “imagem reflexa ampliada” da alma e da sua estrutura respectiva. E nem é numa atitude primariamente teórica que Platão se situa diante do problema da alma, mas antes numa atitude prática: na atitude do modelador de almas. A formação da alma é a alavanca com a qual faz o seu Sócrates mover todo o Estado. O sentido do Estado, tal qual a sua obra fundamental o revela [...]. É, se nos apoiarmos na sua essência superior, a educação. [...]. Platão ilumina filosoficamente na comunidade estatal um dos pressupostos existências permanentes da Paidéia grega. Mas sobre a forma da paideia coloca ao mesmo tempo em primeiro plano aquele aspecto do Estado cujo descuido constitui a seu ver a razão principal da desvalorização e degenerescência da vida política do seu tempo. Desse modo, a politeia e a Paideia, entre as quais muita gente devia ver, já naquele tempo, apenas relações muito vagas, tornam-se os pontos cardeais da obra de Platão (JAEGER, 1995, p. 751-752).

Em oposição aos sofistas, que defendiam que a origem do Estado é o resultado de um acordo, de uma convenção entre os seres humanos pautado em um raciocínio pragmático de alcançar os melhores benefícios privados, aceitariam dispor de suas vidas no seio de uma organização política. Platão procura demonstrar que o Estado tem sua origem natural. Os homens são limitados em suas condições de existência. A luta pela sobrevivência e manutenção da vida requer a aproximação e convivência com outros seres humanos. “Ele encontrou suas origens em necessidades e carências humanas, tais como alimentos e abrigo, que levam os seres humanos a se associarem para obter proteção e ajuda mútuas” (LUCE, 1994, p. 104).

O homem não basta a si mesmo. Para sua sobrevivência ele necessita do auxílio dos demais seres humano. Considerando que cada homem tem habilidades específicas “para satisfazer a todas as suas necessidades o homem deve, por isso, associar-se a outros homens e dividir com eles as várias ocupações” (MONDIN, 1984, p. 75). Nesta perspectiva, a divisão das tarefas converge em Platão na conformação do Estado ideal assentado em três classes: os trabalhadores, os guerreiros e os magistrados. Assim, compete ao Estado identificar aqueles que têm aptidão para trabalhos manuais, entre eles produzir alimentos, construir casas, fabricar roupas e calçados e potencializar suas aptidões. Juntamente com os comerciantes serão responsáveis pela economia, mas não participarão do governo do Estado. Nesta perspectiva, cabe ao Estado identificar crianças talentosas para compor a classe dos guerreiros, ou dos guardiões do Estado. Estas crianças:

[...] passam então pelo tipo de educação chamado de “escola secundária”, diferente do treinamento vocacional de aprendizes e artífices. Quando os “guardiães” chegam aos dezoito anos, são novamente examinados para revelar quais são os dotados de uma aptidão real para dirigir, e somente um pequeno grupo de elite pode prosseguir para os estudos de terceiro nível. Depois de um curso longo e árduo incluindo geometria e astronomia, e uma aprendizado “dialético” em filosofia, eles emergem como “guardiães-governantes”. Os outros permanecem como “guardiães ajudantes”, dando assistência aos governantes em assuntos militares e executivos (LUCE, 1994, p. 104).

Platão dedica na sua obra República atenção específica à educação dos guerreiros e dos governantes, na medida em que cada uma destas funções exige

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uma virtude específica. A virtude por excelência dos guerreiros é a coragem e, a virtude característica do governante é a sabedoria. É tarefa cardeal da Paideia, da educação, é potencializar estas duas virtudes nestas duas classes, bem como promover, de forma geral, a virtude da justiça e da temperança como forma de manter as diversas classes que compõem o Estado. No que concerne às virtudes cardeais da justiça e da temperança Platão sinaliza que “A justiça (dikaiosyne) induz os cidadãos a desempenharem perfeitamente suas funções, sem invadirem o campos das outras classes. A temperança (sophrosyne) assegura a subordinação dos governados aos governantes” (MONDIN, 1981, p. 76).

Ressalte-se que na República, Platão argumenta de que, também, as mulheres devem receber a mesma educação conferida aos homens e, desta forma, estarem aptas a serem eleitas para o exercício do governo. Platão projeta um Estado ideal, uma utopia. Contribui com o debate ético em torno da questão de saber qual a melhor forma de governo. Ou dito noutra perspectiva, uma forma de governo que não repita o acontecimento pavoroso levado adiante pela democracia ateniense de ter matado o mais sábio dos homens. Assim, as três classes que compõem o Estado se apresentam como as três partes da alma que, se adequadamente conformadas pela educação provida pelo Estado, podem constituir o ideal do bem viver, na justiça e na verdade.

Platão vê como axiomático que as três classes refletem as três “partes” da “alma”. “Alma nesse contexto quer dizer “caráter” ou “personalidade”, e “parte” é melhor compreendida como motivação ou tendência. Platão pensa que há três “tendências” ou “impulsos” principais que levam a natureza humana a agir: o aquisitivo, o combativo e o intelectual (LUCE, 1994, p. 105).

Sob tais perspectivas, a concepção antropológica presente em Platão e, que incide na constituição do Estado, apresenta-se marcadamente realista, com certa tendência ao pessimismo, pois concebe o humano imerso no mundo sensível Marcão pela degenerescência, pelo engano, pela distorção das ideias unas eternas e imutáveis. No contexto do mundo sensível em que se encontra o homem é dotado de potencialidades das mais diversas possíveis. Deixado a própria sorte, desprovida da ação educativa do Estado para o adequado agir, para o exercício das virtudes da justiça, da temperança, da coragem e da sabedoria, os homens tendem a barbárie, ao pavoroso, pois desconsideram a ideia do bem, da justiça e da verdade constitutiva da vida na polis.

Na base da personalidade humana está uma massa desordenada de instintos e desejos que ele chama de “elemento apetitivo”. Acima, e distinta desta parte mais baixa de nossa natureza, está o “elemento impetuoso”. Ele é a nossa parte que sente cólera e indignação, e onde a ambição e o amor-próprio estão principalmente situados. A parte mais elevada de nossa alma se chama “elemento racional”. [...] A existência das partes diferentes é provada pelo conflito de impulsos que sentimos com tanta frequência. [...] Platão não está advogando a supressão total do desejo. Desejos por alimento, bebida e sexo representam um papel no sentido de assegurar a sobrevivência do indivíduo e do grupo. Ele quer dizer que devem operar sob o controle dos elementos superiores se a personalidade deve funcionar como uma unidade harmoniosa e

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bem integrada. A função do elemento racional é planejar e coordenar todas as nossas atividades da melhor maneira possível, tendo em vista nossos interesses a longo prazo (LUCE, 1994, p. 105-106).

Na República, Platão argumenta que o Estado, para obter cidadãos adequados a sua manutenção, precisa intervir na procriação e na educação dos filhos. Sob pressupostos de eugenia, o Estado orienta e observa que os matrimônios se concretizem entre homens e mulheres que gozem de plena saúde, inteligência e beleza e, sob tais condições, incentivados a terem filhos. Após a infância, a educação dos filhos deve ficar a encargo do Estado e, neste caso, os filhos devem ser afastados da família evitando vícios, indulgências e fraquezas que comprometem o caráter e a personalidade dos adolescentes e jovens. O rigor educacional a que são submetidos permitirá ao Estado identificar suas habilidades e competências necessárias a manutenção do Estado, bem como a constituição do espaço público cuja finalidade última é bem viver.

Para superar os problemas advindos do exercício de uma forma de governo vinculada ao mundo sensível, as opiniões, ao relativismo e, mesmo ao ceticismo propagado, sobretudo pelos sofistas em relação a conhecimento das ideias, unas, eternas e imutáveis, enfim, da verdade, Platão propõe a vinculação entre filosofia e política. Platão assim se expressa na Carta VII: “Acabei por entender que todas as cidades de agora são mal governadas, pois têm legislação quase incurável, e falta uma preparação extraordinária aliada à fortuna” e, segue o filósofo:

Fui obrigado a dizer, louvando a verdadeira filosofia, que a ela cabe discernir o politicamente junto em tudo dos indivíduos, e que a espécie dos homens não renunciará aos males antes que a espécie dos que filosofam correta e verdadeiramente chegue ao poder político, ou a espécie dos que tem soberania nas cidade por alguma graça divina, filosofe realmente (PLATÃO, 2008, p. 51).

A ação política não pode basear-se na opinião (doxa), mas sim no conhecimento (episteme). Opiniões se apresentam descomprometidas com a verdade. Manifestam-se a partir da vontade e dos interesses de quem as emite em função do contexto e, dos jogos de poder em curso.

A cidade não pode estar fundada na opinião, nem na convenção. O consenso não pode ser critério de justiça, ou de bem, ou de verdade. Só alguém que conhece o todo, e o conhece objetivamente, ou seja, tendo por base o objeto mesmo, e não o sujeito, pode conhecer o todo da cidade, e só ele poderá governar para o bem da cidade, e por isso para o bem de todas as suas partes, de todos os cidadãos (ASSMANN; DUTRA, 2008, p. 78).

Em seus escritos sobre política — mais especificamente na República —, Platão coloca em jogo a relação entre conhecimento, opinião, verdade, bem, política, ética e pedagogia. Ou seja, o governante ideal da polis é o rei-filósofo, pois possui conhecimento da totalidade, bem como capacidade e bom senso para o exercício da justiça. O rei-filósofo possui sabedoria para discernir o fato de que a lei não é um fim em si mesmo, mas apenas um meio que pode alcançar legitimidade da medida de sua justa interpretação e aplicação.

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Nesta perspectiva, uma das características do governo do rei-filósofo, “do bom governo é que ele tem como finalidade o bem do homem” (MONDIN, 1981, p. 76). Porém, o bem do homem, não significa aqui o “viver bem”, ou, a garantia da mera sobrevivência tão comum em nossos dias em nossas sociedades de produtores e consumidores em tempo quase que integral. Mas, a busca do “bem viver”, a qualificação da vida por meio da ação política, ética e justa que somente se constitui na ágora, na praça pública. Porém, a sabedoria do rei-filósofo também lhe permite ter ciência de que maioria dos seres humanos tem preferência, ou disposição para levar suas vidas imersos na cotidianidade de seus afazeres, de suas opiniões, presos a máximas e considerações de outrem.

A política acontecerá na companhia de pessoas (cidadãos) diferentes no saber, na companhia de quem nunca entenderá bem a razão do governante. A verdade deverá ser realizada entre homens que nunca alcançaram de fato a verdade (epistéme), mas só percebem a opinião (doxa). Com isso a tensão nunca irá desaparecer entre governantes e governados (ASSMANN; DUTRA, 2008, p. 85).

Ao governo do Rei-filósofo, ou do rei que governa segundo as leis, considerados por Platão como duas formas de bom governo, o filósofo grego apresenta quatro formas de governos inadequados para o alcance do bem, da verdade e da justiça. Trata-se da timocracia, que se caracteriza pelo governo dos ambiciosos; da oligarquia que se constitui como o governo daqueles que detém poder econômico; da democracia, cujas principais características se apresentam por ser o governo das multidões movidas pela opinião, pelo desejo de simplesmente viver bem, bem como pela agitação das massas; da tirania, que se caracteriza por governos movidos pelo despotismo, pelas paixões e, pela violência.

O Estado ideal, para Platão, é aquele que constitui e garante o bem viver a partir do reconhecimento e da afirmação do bem, da justiça e da verdade. Esta é “a finalidade ética e política da atividade filosófica, ou seja, de que a filosofia nasce a partir do desejo de construir uma cidade humana perfeita, ou então nasce do desejo de criticar e enfrentar toda cidade humana imperfeita para que nunca a consideremos como definitiva” (ASSMANN; DUTRA, 2008, p. 82). Ainda nesta direção, talvez se possa afirmar que a obra de Platão nos propõe compreender a política em sua tríplice dimensão, como ciência, como técnica e como arte. “Não há a pretensão de corrigir e curar todos os males e estabelecer a unidade absoluta; compete ao sábio político buscar a harmonia e a unidade, porém, articulando, meticulosamente, os diferentes ‘tecidos’ que compõem a cidade” (ASSMANN; DUTRA, 2008, p. 143).

Desde o mundo grego Antigo até os nossos dias “não encontramos motivos tão prestimosos assim que justifiquem a preservação do mito de que a democracia seja o melhor, mais apropriado, e o mais justo dos regimes políticos” (ASSMANN; DUTRA, 2008, p.142). Neste sentido, argumenta o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1924-2017):

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Na realidade, nunca houve uma era de ouro da democracia. As aspirações, os mais importantes sistemas teóricos e as melhores intenções não foram exatamente postos em prática. A própria ideia de democracia é vaga e flutuante, às vezes indefinível na sua complexidade (BAUMAN, 2016, p. 153).

Mesmo considerando tais perspectivas, desde a antiguidade, questionar a democracia em seus elementos constitutivos pode render a quem o faz dissabores e outras consequências. Na atualidade, tudo indica que estamos diante de tarefa similar, enfrentada por Platão e, por inúmeros outros filósofos ao longo dos tempos: trata-se de assumir a tarefa da potência do pensamento no tempo presente e questionar as bases das democracias de massas espetacularizadas, na quais nos encontramos inseridos, na perspectiva do filósofo e jurista Giorgio Agamben (1942).

Diante de nossos olhos está para ser realizada, onde quer que seja, a “grande transformação” que empurra um após o outro os reinos da terra (repúblicas e monarquias, tiranias e democracias, federações e Estados nacionais) na direção do Estado espetacular integrado (Debord) e ao “capital-parlamentarismo” (Badiou), que constitui o estágio extremo da forma-Estado (AGAMBEN, 2015, p. 101).

Estamos, uma vez mais, assim como Platão, compelidos a pensar urgentemente as condições de possibilidade de formas de vida qualificadas a partir de sua ação comum e conjunta no espaço público, na amizade, no Bem e na Justiça.

2.2 ARISTÓTELES E O IDEAL DE RECONSTITUIÇÃODA POLIS

Aristóteles nasceu em 384 a.C., em Estagira, na Calcídica, na Grécia e morreu em 322 a.C., em Cálcis, na Eubeia. Sua importância na história do pensamento do Ocidente é de primeira grandeza. É, ao lado de Platão, um dos dois maiores nomes da filosofia ocidental, pois encontramos nas obras desses homens as bases da teoria política moderna e da contemporânea ciência política.

O pensamento de Aristóteles marca na Antiguidade grega, um ponto culminante nunca igualado. Desde sua recepção no Ocidente latino, a partir do século XIII, ele se manteve, na maior parte das vezes, como uma referência obrigatória na reflexão filosófica sobre o Estado e sobre o direito (BODEÜS, 2007, p. 17).

Ele foi o autor de um sistema filosófico e científico que veio a se tornar a estrutura da escolástica cristã, isto é, do método de pensamento das escolas monásticas medievais que conciliaram a fé cristã com um sistema de pensamento racional. Além disso, seu pensamento permitiu a construção do importante elo com a filosofia islâmica medieval. A grandeza lógica e ética de suas ideias é tal que permanecem incorporadas no pensamento ocidental mesmo depois das revoluções intelectuais do Renascimento, da Reforma e do Iluminismo. “Pesquisador incansável, tratou todos os temas como o mesmo afinco e profundidade. Tais

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produtos da mente aristotélica estão presentes ainda hoje nos estudos acadêmicos sobre metafísica, ética e teoria política etc.” (ARISTÓTELES, 2013, p. 14).

A dimensão da obra intelectual de Aristóteles era múltipla, abrangendo a maioria das ciências e muitas das artes. Faziam parte do seu interesse áreas como a biologia, a botânica, a química, a ética, a história, a lógica, a metafísica, a retórica, a filosofia da mente, a filosofia da ciência, a física, a poética, a teoria política, a psicologia, além da zoologia. Foi o fundador da lógica formal, concebendo para ela um sistema acabado que por séculos foi considerado como a soma de todas as disciplinas. Aristóteles foi pioneiro no estudo da zoologia, tanto observacional quanto teórica, em que alguns de seus trabalhos permaneceram insuperáveis até o século XIX. Não obstante, foi, sobretudo, um filósofo. Seus escritos sobre ética e teoria política, mas também sobre metafísica e filosofia da ciência, continuam sendo estudados, e seu trabalho continua sendo uma corrente poderosa no debate filosófico e político contemporâneo.

Aristóteles foi um aluno destacado da Acadêmica de Platão. Segundo os cronologistas, iniciou seus estudos por volta dos 17 anos permanecendo até a morte de Platão. Adepto da Teoria das Ideias por muito tempo, foi constituindo seu sistema filosófico aos poucos, a partir da crítica ao Mundo das Ideias. Após a morte de Platão, Aristóteles sai da Academia, tornando-se conselheiro de governante na Ásia Menor e, mais tarde, por volta de 343 a.C., tutor de Alexandre (o grande), futuro rei da Macedônia. Por volta de 336 a.C., Aristóteles retorna à Atenas e funda sua própria escola. “Em Atenas abriu [...] uma escola que recebeu o nome de “peripatética” porque ele dava suas preleções num corredor (perípatos) do Liceu. [...], dedicava-se preferencialmente aos estudos das ciências naturais” (MONDIN, 1981, p. 82).

Em relação à ciência política, Aristóteles pode ser considerado o grande precursor. Antes dele, Sócrates e os sofistas haviam debatido problemas de política e ética, assim como seu mestre Platão. Este último procurou demonstrar que o bom exercício do poder e a melhor ordem da coisa pública seria o resultado de uma incessante busca da verdade. Mas foi com Aristóteles que a política passou a ser compreendida como um campo de conhecimento autônomo. Como campo de estudos próprio, passa a ter seu próprio objeto, qual seja, o poder e todas as coisas a ele relacionadas. E o primeiro grande tratado sobre o tema é a obra de Aristóteles, intitulada A política. Nesse livro, o autor nos ensina que todo homem é um animal político em sociedade e que o precede. Exemplificando a influência de seu pensamento, lembremos que Émile Durkheim, um dos clássicos da sociologia, faz a mesma afirmação em relação à precedência da Sociedade sobre os indivíduos.

É, portanto, evidente que toda Cidade está na natureza e que o homem é naturalmente feito para a sociedade política. aquele que, por sua natureza e não por obra do acaso, existisse sem nenhuma pátria seria um indivíduo detestável, muito acima ou muito abaixo do homem, segundo Homero: Um ser sem lar, sem família e sem leis (ARISTÓTELES, 2006, p. 4).

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A política é uma obra elementar à formação politológica, pois que atravessa os tempos e continua atual. Na referida obra, Aristóteles nos traz uma explanação a respeito das causas do surgimento do Estado, ou seja, daquilo que denomina de a Sociedade política, ao afirmar que a origem desta está relacionada a fatores inerentes à própria natureza. Seguindo esse pressuposto, o filósofo argumenta o seguinte:

O Estado, ou sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a que se propôs a natureza. O todo existe necessariamente antes da parte. As sociedades domésticas e os indivíduos não senão as partes integrantes da Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por seus poderes e suas funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os membros da Cidade: nenhuma pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se ficar sem eles, ou é um deus, ou um bruto. Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade (ARISTÓTELES, 2006, p. 5).

Desse modo, o homem seria um animal social ou, na expressão mais própria do autor, um animal político, por demonstrar uma propensão natural a viver em comunidade. Portanto, o desejo de viver coletivamente seria um fator originário da própria natureza humana. É a única maneira de alcançar a felicidade. Do mesmo modo que a família, também a comunidade de famílias seria o resultado decorrente desse instinto natural, e as relações de cooperação entre os indivíduos se expandem gerando uma divisão do trabalho social (outra ideia amplamente tratada por Émile Durkheim). Através dessa divisão social, os indivíduos conseguem melhor realizar o abastecimento de suas necessidades. E a vida em sociedade passa a ser a forma por excelência da espécie humana, onde os sentimentos e as necessidades são compartilhados. É no contexto da convivência que se constrói todo o processo de educação e do desenvolvimento da inteligência humana. É a partir dali, e não antes dessa experiência humana, que as regras, leis e ideias em geral surgem.

Conquanto isso nos pareça muito normal, precisamos lembrar que esse tipo de interpretação sobre a natureza biológica da política e sobre a natureza política do conhecimento humano, apareceu, pela primeira vez, ali na Grécia de Platão e Aristóteles. Até então, e mesmo depois do período greco-romano, as explicações eram de caráter religioso e ponto final. Foi somente com a civilização grega e durante o Império Romano que se estabeleceu um método racional de compreensão da realidade. E, oportunamente, podemos chamar a isso de um processo de humanização do conhecimento. E devemos oportunamente lembrar que essa forma de explicação sobre a natureza humana e não divina das coisas, praticamente desapareceu durante a Idade Média. Ela reapareceu pela primeira vez já na alta Idade Média (séc. XIII), justamente com a escolástica, cujo principal pensador foi São Tomás de Aquino. Não obstante, é no século XVI que ela toma vigor, inaugurando o humanismo e a modernidade, significando justamente o ressurgimento do conhecimento greco-romano que permitiu ao Ocidente a edificação da ciência moderna.

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Voltando às origens do Estado, segundo Aristóteles, foram o acasalamento e a reunião de vários casais que geraram a divisão do trabalho social e o surgimento da cidade. Por decorrência, surge a polis (cidade), caracterizada pela autarquia, que significa a autossuficiência econômica, como também pela inevitabilidade de um governo e de uma constituição política. A vida na polis exige um poder responsável pela formulação e ou pela aplicação de leis para que os indivíduos vivam entre si e não se destruam, como vai sugerir o aristotélico Thomas Hobbes muito tempo depois, no século XVII. E será, precisamente, essa maneira de organização da vida, através da polis, que Aristóteles compreende como sendo o que nos distingue dos outros animais. Viver em sociedade impõe o estabelecimento de regras de caráter moral. Tais regras determinam, para todos, o que é bom e o que não é, o que é justo e o que não é, o que é produtivo e o seu contrário. E sendo necessárias, tais regras requerem um guardião, o que dá origem ao Estado. “Mas, assim como o homem civilizado é o melhor de todos os animais, aquele que não conhece nem justiça nem leis é o pior de todos. [...]. O discernimento e o respeito ao direito formam a base da vida social e os juízes são seus primeiros órgãos” (ARISTÓTELES, 2006, p. 6).

Nesse sentido, o tratado de Aristóteles revela progressivamente as origens da concepção organicista da política. Nessa perspectiva, a sociedade é um organismo composto de partes integrantes que necessitam estar integradas e essa ligação tem de ser feita por um ente político, o Estado. Desse modo, os indivíduos seriam as partes integrantes da família, assim como as famílias são parte integrante da sociedade que, a sua vez, deve ser coordenada pala parte cerebral que mantém a todos integrados: o Estado. Os membros integrantes só têm algum significado, e funções, na medida em que integrados a um corpo, neste caso um corpo político. Por este raciocínio, sugere Aristóteles que os indivíduos não são propriamente autônomos, portanto, dependentes do organismo social. E o corpo social precisa de um ordenamento de regras que permita o funcionamento harmonioso e equilibrado, para que cada um cumpra suas funções para a saúde do corpo. E quem comanda é o Estado.

A forma de governar o Estado dependerá da organização própria de cada ordem política. A constituição social e política de cada comunidade definirá quem pode e deve exercer o poder, pelo critério da virtude de cada cidadão. Não se trata da possibilidade de que qualquer homem possa assumir as funções de exercício do poder, mas somente aqueles dotados de virtude. As formas de exercício do poder são diversificadas de acordo com a classificação dos cidadãos e do grau em que cada um pode interferir no exercício da governança. Aristóteles define três tipos de governo, classificando-os entre justos e injustos, e cuja definição não está relacionada ao número dos que governam, mas diz respeito aos objetivos do governo, que serão justos se republicanos forem. Por isso, podem haver governos justos de um só, de alguns ou de muitos. Cada governo desses pode, por circunstâncias variadas, degenerar-se e tornar-se injusto, desviado do real interesse público.

O governo através do qual o poder é exercido apenas por um homem denomina-se monarquia. Mesmo que este homem tenha todo o poder, seu governo será justo na medida em que o interesse deste governo esteja voltado ao bem

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comum. Se, ao contrário, o governo de um só homem não estiver voltado para o interesse da maioria, então será considerado uma tirania, que significa o governo injusto de um só. O tirano é aquele que oprime os seus subordinados e faz com que o objetivo exclusivo do exercício do poder seja o de sua própria satisfação. “O que distingue estes Estados é que eles eram ao mesmo tempo legítimos – por ter sido a monarquia concedida voluntariamente — e tirânicos — porque o poder se exercia despoticamente e conforme o arbítrio dos príncipes” (ARISTÓTELES, 2006, p. 118).

A aristocracia é a segunda forma de governo descrita por Aristóteles, que representa o governo de uma minoria. Literalmente, significa o governo dos melhores cidadãos da cidade, nos quais se identificam os mais valorosos sinais da virtude, entre elas, a sabedoria e a liderança necessárias para que a sociedade possa ser governada com responsabilidade e prudência. Essa elite de homens notáveis deve representar a parte responsável por dirigir o Estado. Entretanto, se uma elite no poder usa o Estado principalmente ou exclusivamente para atender aos seus próprios fins, então estará corrompida a ideia de um governo aristocrático. Ao invés disso, instaura-se o governo de oligarquias, constituído de indivíduos da mesma família, ou de poucas delas, da mesma classe social ou, contemporaneamente, do mesmo partido. Ali, o interesse não está no bem republicano, senão, nos próprios interesses de locupletação dos recursos econômicos produzidos por todos.

A terceira forma de exercício do poder se realiza através da República (res = coisa + pública), que, para o filósofo grego, significava a forma mais justa de governo. Na República, um número maior de pessoas tem o direito de exercer sua cidadania, o que assegura a participação direta nos processos decisórios dos governos. Essa forma é justa na medida em que a presença ativa de muitos cidadãos seja a característica principal das decisões com o objetivo de garantir o interesse republicano. Todavia, também essa forma de governo pode degenerar-se. Pode manter as aparências de um regime republicano, contando com a participação de muitos, mas corromper-se no seu oposto, qual seja, a demagogia. Essa significa o governo das massas, das multidões, em que os governantes atendem somente os interesses dos mais pobres. Suas demandas nem sempre são as mais justas e o atendimento às suas reivindicações pode gerar uma tirania da maioria sobre as minorias, ocasionando instabilidade, desperdícios de recursos e, por fim, violência e atraso.

Portanto, para Aristóteles, independentemente da forma, o bom governo é aquele cuja preocupação é sempre com o bem republicano, distante dos mais inconfessados desejos privados. Mas isso também é bastante óbvio, porque ninguém discordará disso. O que interessa é saber o que fazer para garanti-lo. Para isso, Aristóteles sugere que o poder político não seja orientado simplesmente por indivíduos, mas sim por instituições. A Sociedade política deve funcionar a partir, e através, de um arranjo legal que imprima certa impessoalidade às ações de mando. Monarquia, Aristocracia e República são, portanto, modelos ideais de constituição política que serão tanto mais justas quanto mais forem orientadas por leis e seus governantes constrangidos a segui-las, a fim de que haja justiça e bom exemplo.

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Aristóteles pensou diferente de seu mestre Platão, que afirmava que a principal condição para o bom exercício do mando é a sabedoria do “rei filósofo”, isto é, o conhecimento do governante que determinava o bom governo. Para Aristóteles, não há uma só forma de governo que seja simplesmente a melhor. Será provável que uma multidão reúna mais virtudes do que somente um indivíduo, ou ainda uma minoria. Por essa razão, mais justo será o governo no qual muitos indivíduos participem das escolhas públicas e as compartilhem entre si na forma de mando e obediência. Nessa perspectiva, a melhor forma de governo entre as três acaba sendo a forma Republicana, porque nela a comunidade dos cidadãos aceita que a maioria dos indivíduos seja incluída e atendida. É a forma de governo em que os governantes se sentem mais pressionados e controlados. É onde os diálogos e os debates se intensificam e tendem a gerar as melhores soluções.

No outro extremo, a pior de todas as formas de governo é aquela em que os cidadãos estejam reduzidos ao status de súditos e a consequente subserviência a um só indivíduo cujo objetivo é o máximo de satisfação pessoal, ou seja, a Tirania. Nessa perspectiva, trata-se do tipo de governo que inverte a própria noção de cidadão, ao não respeitar a diversidade de virtudes e a complexidade social, privando a todos de expressarem suas demandas e sugestões no exercício do poder. A Tirania seria, portanto, a inversão da própria natureza do poder, baseado nas demandas cooperativas entre os seres humanos, que resultam na agregação e na constituição do bem comum. Quando, portanto, a razão que compreende a natureza do poder é substituída pela força escravizadora de um único senhor, a polis degenera e a comunidade política retrocede. É nesse momento, em que a política dá lugar à opressão, que a própria condição política dos homens se demonstra paradoxal, incidindo sobre a natureza do homem como um animal político. A tirania era seu maior medo.

A respeito desse conceito, podemos compreender as ressalvas de Aristóteles em relação a esta forma de governo, ao lermos a definição presente no dicionário de filosofia Nicola Abbagnano. Vejamos:

Forma de governo em que o arbítrio de uma ou várias pessoas representa a lei. O conceito de T. foi elaborado pelos gregos, juntamente com o de constituição livre. A definição de tirano já se encontra nos versos de Eurípedes: “Não há pior inimigo que um tirano numa cidade, sob o qual desaparecem todas as leis comuns, e só uma pessoa comanda, tendo a lei em suas mãos” (Suppl., II 429-32). Segundo Platão, a T. é consequência da excessiva liberdade em que as vezes incidem as democracias. “Ao fugir da fumaça da servidão – como se diz – sob um governo de homens livres, o povo acaba caindo, com a T., no fogo da servidão sob o despotismo de servos e, em troca daquela liberdade excessiva e inoportuna, é obrigado a vestir a túnica do escravo e a sujeitar-se à mais triste e amarga das servidões, a de ser servo dos servos” (Rep., VII, 509 b-c). Aristóteles diz que a T. acumula os males da democracia e os da oligarquia. Da oligarquia extrai a finalidade, que é a riqueza (única condição para se manter o poder e o luxo), bem como a falta de confiança no povo, que é privado de armas, e a agressão à população, que é afastada das cidades e espalhada pelo campo. Da democracia tomo a luta contra os notáveis, sua destruição pública ou oculta, o seu exílio (Pol., V1, 1311 a 8 ss). [...] O conceito de T. acompanhou a formação

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do liberalismo político porque serviu de pedra de toque ou de símbolo para tudo o que o liberalismo condenava. Como tal, também constitui um dos temas da retórica revolucionária e liberal a partir do século XVI. Hoje esse termo é bem menos usado, não porque os regimes tirânicos tenham desaparecido ou porque não haja mais o perigo de que estes se instaurem mesmo onde vigore certo grau de liberdade, mas apenas porque ele parece pertencer a uma espécie de retórica fora de moda. Absolutismo ou totalitarismo são os termos que substituíram tirania, mas o conceito não mudou, e estas mesmas palavras significam ainda: regime no qual o arbítrio individual ocupa o lugar da lei; escravidão imposta por escravos; governo que não pode ser mudado nem corrigido, a não ser pela violência (ABBAGNANO, p. 1142).

Para Aristóteles a finalidade da existência humana é o alcance do bem viver e, por decorrência lógica da felicidade. O alcance de tal condição exige que a vida humana se constitua numa vida qualificada (Bíos), virtuosa e comprometida com a res-pública, com o cumprimento das leis, com as instituições e, com a disposição dos indivíduos em alcançar dentro de suas possibilidades a perfeição humana. “A perfeição de uma cidade não provém propriamente nem essencialmente dos meios vantajosos que ela tem a seu dispor; ela é em função da maneira pela qual seus órgãos constitutivos são ordenados, isto é, permitem que os cidadãos atinjam a perfeição e a felicidade” (BODÉÜS, 2007, p. 106).

Nesta perspectiva, o Estado surge e se constitui com o meio adequado ao alcance da finalidade da vida humana que a felicidade. Ou seja, o Estado potencializa as virtudes humanas, as capacidades de cada ser humano que em suas diferenças constituem o espaço público e o tornam o locus por excelência do bem viver.

A cidade perfeita seria aquela, por conseguinte, que respeitasse de algum modo essas diferenças e, contrariamente à democracia igualitarista, reservasse as funções laboriosas à maioria daqueles para quem a felicidade é a simples prosperidade ligada aos frutos do trabalho, e a própria cidadania à minoria daqueles para quem a felicidade coincide com o exercício de excelências humanas, as do julgamento e do comando, inspiradas por uma virtude de justiça sem reservas (BODÉÜS, 2007, p. 106).

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico você aprendeu que:

• Por volta do século V a.C. a Grécia Antiga, mais especificamente Atenas, alcançaram significativo desenvolvimento militar, econômico, político e artístico.

• Institui-se a ágora e com ela um código de leis escritas cujo fundamento era o princípio da isonomia, da igualdade de todos os cidadãos perante a lei e, o princípio da isegoria, do direito de manifestação na assembleia dos cidadãos.

• Neste contexto de afirmação da democracia como resultante do pleno exercício da cidadania surgiram os sofistas. Mestres da oratória e da retórica se propunham ensinar aos gregos antigos estas artes discursivas necessárias à participação na ágora.

• Detentores de vasto conhecimento se propunham a ensinar os cidadãos interessados mediante pagamento. Seus ensinamentos estavam calcados sob o pressuposto do relativismo cético.

• Sócrates, contemporâneo dos sofistas, foi um crítico da democracia dos ensinamentos dos mestres da oratória e da retórica. Sócrates questionava os cidadãos atenienses em seus fundamentos conceituais. Através do método da ironia e da maiêutica procurava demonstrar a seus interlocutores as deficiências de seu modo de compreender a polis e, sobretudo agir nela. Foi acusado de corromper a juventude, de impiedade com os deuses da cidade. Foi condenado à morte em 399 a.C.

• Com a morte de Sócrates, Platão, seu discípulo por mais de 20 anos, desenvolve sua obra filosófica a partir deste acontecimento pavoroso produzido pela democracia: condenar à morte o mais sábio de todos os homens. Toda sua filosofia é um esforço monumental de demonstração de que a verdade una, eterna e imutável existe e, que o trabalho de justificação de uma vida é transitar do senso comum ao mundo das ideias.

• Em sua obra República, Platão apresenta seu projeto político, de uma polis isenta das opiniões e dos equívocos e, da degeneração da democracia. O governo da República somente pode ser confiada ao rei-filósofo.

• Aristóteles convive com o aprofundamento da crise da polis e da democracia ateniense. Discípulo de Platão, mas diferente de seu mestre Aristóteles, não descreve uma República ideal, mas considera a polis o locus por excelência do ser humano, da qualificação de sua vida, bem como da busca do bem viver e da felicidade. Aristóteles analisa as diversas formas de governo: a tirania, a aristocracia e a forma republicana.

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1 Qual é a importância que a educação (Paideia) assume na República de Platão? Você concorda com Platão de que o nível de educação dos cidadãos influencia na dinâmica da democracia?

2 Por que para Aristóteles a forma republicana de governo é mais justa e adequada?

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 3

IDADE MÉDIA: SANTO AGOSTINHO E

SANTO TOMÁS DE AQUINO

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Compreender as categorias políticas, econômicas e jurídicas da modernidade e, sobretudo da atualidade, exige constatar que a constituição da civilização ocidental é o resultado da fusão de duas matrizes civilizatórias, a greco-romana e a judaico-cristã. Com a derrocada do Império Romano, o cristianismo, a partir de sua institucionalização na Igreja Católica Apostólica Romana, transformou-se na guardiã da cosmovisão advinda do mundo antigo. Ao conformar fé e razão na leitura e interpretação das verdades reveladas, a teológica católica fornece as bases conceituais que orientam a ação política no mundo medieval.

Neste tópico, estudaremos a concepção política de Santo Agostinho, o principal representante da Patrística, que se caracteriza pelo esforço inicial dos santos padres da Igreja em conformar um corpo teórico e conceitual à teologia e, por extensão a toda atividade humana, entre elas a política. A cosmovisão da Patrística está assentada numa releitura da filosofia de Platão. Assim, o platonismo da Patrística justifica a existência de duas cidades: a cidade dos homens, caracterizada pela dor, sofrimento e, degenerescência e a cidade de Deus, caracterizada pela perfeição, pela sua condição de divina. A obra dos homens e, sobretudo do governante, da política é contribuir para o exercício da virtude em função do alcance da cidade de Deus.

Na continuidade destes estudos, analisaremos o pensamento de São Tomás de Aquino, que se insere no movimento da Escolástica na baixa Idade Média, entre os séculos IX a XV d.C. A cosmovisão Escolástica se constitui como resposta conjunto de transformações econômicas, sociais, demográficas e políticas ocorridas durante a Idade Média e, que passam a exigir que a teologia pensasse e constituísse uma proposta de educação e de política para os novos tempos. Apoiado na filosofia aristotélica e, aqui, sobretudo em suas reflexões sobre a política, Tomás de Aquino retomará, entre outras questões o debate em tono das melhores formas de governo.

Sob tais pressupostos, afirma-se entre estudiosos e pesquisadores

a percepção de que a compreensão do mundo em que nos encontramos na contemporaneidade, suas categorias, políticas, econômicas e jurídicas requer um retorno à teologia e suas extensas reflexões e concepções ao longo de mais de mil anos. Ou seja, trata-se, sobretudo de nos questionar o que significa modernidade.

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UNIDADE 1 | ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

Ou, ainda, de que talvez jamais tenhamos sido de fato modernos uma vez que nossa visão de mundo se assenta na fusão da matriz greco-romana e judaico-cristã que nos trouxe até o presente momento.

2 A CONSTITUIÇÃO DO OCIDENTE DE ROMA A JERUSALÉM: A COSMOVISÃO JUDAICO-CRISTÃ

O Ocidente é o resultado da conformação de duas matrizes civilizatórias que incidem diretamente sobre a conformação de suas categorias políticas. Da matriz greco-romana, o Ocidente herdou, como vimos, a invenção da razão com sua característica inquiridora em relação à physis, à vida qualificada como decorrência da afirmação e adequada manutenção do espaço público, como espaço do bem viver. O princípio da isonomia, da igualdade de todos perante a lei, bem como a afirmação da democracia e da cidadania. Ainda dos gregos antigos, nos vêm as primeiras e fundamentais críticas das mais diversas formas de governo. E, sobretudo, a advertência dos riscos constantes da ascensão da tirania e do totalitarismo, quando os cidadãos se retiram da ágora, ou ensimesmados e envoltos por suas preocupações cotidianas abandonam o compromisso com o constante aperfeiçoamento das instituições da res-pública.

Os gregos antigos nos legaram a percepção de governos legítimos necessitam submeter-se ao império das leis, mas foi dos romanos que herdamos a elaboração sistemática do direito na forma de um ordenamento jurídico organizado em suas diversas instâncias diante das especificidades das mais variadas formas de afronta à lei e à ordem pública. “Ora, se o direito deve tornar possível a cooperação pacífica e fecunda entre os homens, delimitando as fronteiras entre o meu e o seu, é claro que ele desempenhará esse papel com uma eficácia ainda maior na medida em que souber definir com maior precisão essas fronteiras” (NEMO, 2005, p. 31).

É importante ter presente que Roma, em função de suas conquistas no mundo antigo, se tornou o maior império. Conquistaram os gregos e inúmeros outros povos. Porém, a extensão e o esforço de domínio dos povos conquistados, fez com que Roma constituísse um Estado cosmopolita. “O Estado romano era obrigado a criar as condições harmoniosas entre homens de diferentes procedências que, no melting-pot romano, deparavam com múltiplas oportunidades de encontro e de litígio (NEMO, 2005, p. 32).

Assim, o aperfeiçoamento das leis, dos ordenamentos jurídicos é uma herança romana, “feito pelos magistrados e jurisconsultos romanos” (NEMO, 2005, p. 31). Uma tarefa grandiosa, senão civilizatória.

No período de alguns séculos, tais magistrados constituíram um sistema elaborado — sem equivalente nas civilizações anteriores — de direito privado. [...], ao executarem esse trabalho, os romanos mudaram completamente a concepção, até então vigente, a respeito do homem e da pessoa humana (NEMO, 2005, p. 31).

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Os romanos constituíram uma estrutura judiciária sem precedentes no Ocidente. Respeitando os costumes e as tradições de cada cultura todos os litígios passam a ser analisados e julgados por juízes com intuito de estabelecer a justa medida em torno dos conflitos.

Assim, a estrutura judiciária romana [...] em que o juiz pode julgar segundo os precedentes, sem ficar confinado em um código rígido — estava dotada de um instrumento de rara flexibilidade, associando certa continuidade — pela retomada, de magistratura em magistratura, de um mesmo corpus de fórmulas testadas — a uma capacidade permanente de inovação (NEMO, 2005, p. 34).

Assim, o que os romanos legaram ao Ocidente foi a consciência da existência de uma lei comum a todos os homens e promovida pelo esforço humano de compartilhamento do mundo:

A fonte do direito já não se encontrava no mito nem nos costumes, tampouco em uma revelação religiosa, mas na natureza objetiva. Com esta era universal, cognoscível pela razão e pela consciência, a fórmula do pretor tinha, em si mesma, vocação para ser universalmente aceita (NEMO, 2005, p. 35).

O legado romano ao Ocidente, entre outras contribuições, incide sobre a ciência política moderna e contemporânea ao reconhecer a importância do princípio da isonomia, da igualdade de todos perante a lei, mas, sobretudo, da importância em relação à afirmação e independência das instituições judiciárias como garantia das instituições políticas e da ordem necessárias às democracias representativas atuais. Mesmo constatando, que sistemas jurídicos, em determinados momentos e diante de certos conflitos, justificam e legitimam o exercício do estado de exceção exercido pelo poder soberano, é impensável a possibilidade de existência de uma sociedade complexa desprovida de estrutura judiciária. Ou seja, nos Estados modernos, o poder judiciário e o ordenamento jurídico apresentam condição da garantia da ordem, do cerceamento da barbárie e, mesmo de denúncia de sistemas de governos ditatoriais e, de nuances totalitários.

Assim, compreender aspectos constitutivos do Ocidente, sobretudo

categorias políticas e, questões que incidem na ciência política até os dias hoje pressupõem o reconhecimento das contribuições greco-romanas e sua fusão com a cosmovisão judaica e cristã. “Os dois eventos importantes do primeiro milênio [...] são incontestavelmente o êxito político das duas religiões reveladas: a Cristandade e o Islã. Suas visões de mundo, parentes e diversas, irão marcar duradouramente as ideias e os costumes” (CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1985, p. 27).

Gregos e romanos são povos politeístas, cujas divindades vinculam-se aos seres humanos a partir de uma visão de mundo imanente. As relações entre homens e deuses são complexas, negociadas, politicamente estabelecidas de acordo com os interesses e as recompensas possíveis, ou almejadas. O politeísmo praticado pelos gregos e pelos romanos está desprovido de textos sagrados revelados. Exigem dos seres humanos constante capacidade de interpretação, de

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negociação com os deuses, bem como o fato de reconhecer a condição “trágica” dos seres humanos em seus limites vitais, existenciais e políticos.

Por seu turno, as religiões monoteístas de origem oriental e que adentram o Ocidente greco-romano, se apresentam como religiões reveladas, cuja intenção da revelação se encontra registrada em seus textos sagrados. Neste âmbito, o mundo é obra da criação e requer do homem duas virtudes: a obediência à lei divina e a aceitação de que Deus tem um projeto de salvação aos seres humanos.

Uma e outra encontram suas raízes nos textos sagrados do povo judaico, reunidos no se chama de Velho Testamento. Esses textos têm de original, em comparação com a tradição greco-latina, o fato de afirmarem a preeminência absoluta de um Deus único, pessoal e criador, senhor da lei; e a queda do homem, que se perdeu por causa de seus pecados, bem como a possibilidade da redenção, oferecida por Deus em sua bondade aos homens que quiserem escutá-lo. Ao profundo naturalismo greco-latino, esse monoteísmo opõe uma concepção do homem como criatura que mantém com seu criador relações pessoais e espirituais e uma concepção de comunidade como sendo fundada num projeto ético-político, não numa relação jurídica, mas numa aliança religiosa. Disso resultam singulares noções de liberdade e da responsabilidade e, portanto, da ação histórica, que o cristianismo e o Islã irão reativar, cada um a seu modo (CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1985, p. 28).

Compreender as categorias e os conceitos políticos, jurídicos e econômicos nos quais nos encontramos inseridos na modernidade e contemporaneidade requer reconhecer a fusão destas duas matrizes, a greco-romana e a judaico-cristã que constituem o ocidente no percurso destes dois mil e quinhentos de civilização ocidental. Desconsiderá-las além de miopia intelectual representa estreiteza na análise de percepções e comportamentos políticos de indivíduos e sociedades circunscritos na contemporaneidade. Posicionamentos preconceituosos desta natureza se caracterizam como iconoclastas e, não raras vezes, produzem e potencializam uma razão instrumental que difunde a ideia de que basta apenas mais um arranjo político para que alcancemos a perfeição política e democrática. Nesta direção, um dos riscos da ciência política é pretender apresentar-se excessivamente pragmática e empírica em relação aos fenômenos e as contradições políticas em curso. Ou seja, como se fosse uma variável das diversas engenharias que se caracterizam pela precisão dos cálculos a partir dos quais toda a realidade pode ser compreendida, projetada ajustada para o seu máximo funcionamento.

A matriz judaico-cristã, cuja característica basilar apresenta-se na perspectiva de um Deus monoteísta, que impõe a lei a partir das prerrogativas apresenta significativas contribuições à civilização ocidental, entre elas, ideia de progresso. A cosmovisão judaico-cristã concebe o mundo como obra da criação de um Deus voluntarioso. “O mundo [...] é criado com o tempo por Deus, que é eterno. Há um começo absoluto do tempo e do universo porque todas as coisas dependem de Deus, que é sempre o mesmo” (ALLEN, 2010, p. 38).

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A narrativa judaico-cristã circunscreve um projeto da criação e uma economia da salvação do ser humano criado à imagem e semelhança do criador. Ou seja, o mundo e, nele o ser humano como a figura central da obra da criação participam de uma dimensão teleológica. Há uma finalidade na obra da criação que se realiza escatologicamente no tempo presente, em direção a um tempo por vir em que a vida humana alcança sua plenitude ao participar da eternidade na cidade de Deus. É esta condição tripartite de tempo que se constitui de passado, presente e futuro, contendo em si uma finalidade que realiza no tempo presente que subjaz a ideia de progresso. Santo Agostinho na obra Confissões apresenta nesta perspectiva uma definição de tempo, que sucintamente pode ser assim apresentado: “O passado então existe como memória; o futuro existe como expectação; e o presente existe como atenção. Assim, para nós existir como seres temporais significa agir agora com memória e antecipação” (ALLEN; SPRINGSTED, 2010, p. 38).

A cosmovisão greco-romana esta desprovida da concepção de tempo tripartite entre passado, presente e futuro e, portanto a ideia de progresso como marcha adiante, como evolução humana não se apresenta como anseio no mundo antigo. A concepção de tempo entre gregos e romanos vinculava-se à noção de physis como totalidade da existência. A dimensão teleológica que subjaz a esta cosmovisão implica a realização da plenitude das forças, da beleza, da harmonia de que participam todos os seres presentes na existência. Não há uma meta temporal a atingir, apenas a realização plena da vida em sua condição contingente e trágica.

Nenhuma civilização não ocidental parece ter desejado deliberadamente o progresso. O mundo greco-romano, apesar de ter contribuído de facto para a história das civilizações com mudanças relevantes [...], não chegou a desejar deliberadamente a mudança como tal, nem a pensar o progresso indefinido como constitutivo da marcha normal da humanidade (NEMO, 2005, p. 45).

Assim, na concepção de tempo judaico-cristã, circunscreve-se a ideia de progresso na qual se insere o ser humano. Ou seja:

A moral judeu-cristã do amor e da compaixão é que, ao propor uma sensibilidade inédita do sofrimento humano, um espírito — sem equivalente na história anterior conhecida — de rebelião contra a ideia de normalidade do mal, deu o primeiro impulso à dinâmica do progresso no plano histórico (NEMO, 2005, p. 45).

Sob tais pressupostos se estabelece a ideia de pessoa humana, finita em sua condição, mas partícipe da obra da criação de projeto de salvação. Reconhecida pelo criador em sua individualidade participa da comunidade cristã no âmbito em que estabelece e se concretiza o projeto de salvação. Nesta direção, “a moral bíblica é, essencialmente, uma moral da compaixão, que ela conduz a uma percepção mais aguda do que nunca do sofrimento humano” (NEMO, 2005, p. 45).

Assim, no projeto da criação se circunscreve uma política e uma economia da salvação. A tarefa por excelência da vida humana, seja no plano individual

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e, sobretudo comunitário que se amplia para a concepção de humanidade se circunscreve numa constante luta contra o mal, contra a dor e o sofrimento humano. Trata-se de constituir uma forma de vida que ao reconhecer o projeto da criação se empenha em sua manutenção e engrandecimento confiante na justiça divina que concederá a cada ser humano a vida eterna na cidade de Deus.

Mais especificamente no plano político, a cosmovisão judaico-cristã se

secularizara em projetos políticos messiânicos, milenaristas e utópicos presentes até os dias atuais. O pressuposto que subjaz a tais propostas políticas é de que “outro mundo é possível”. Afinal, se o mundo em curso é perpassado pela exploração e expropriação de homens, mulheres, crianças, jovens e adolescentes, de largas parcelas da humanidade é preciso pensar e articular outras formas de organização política, que estabeleçam a justiça social transformando o mundo em um ligar digno para a morada humana. “Nas sociedades judaico-cristãs, esse espírito de transformação assumirá várias configurações – messianismo, apocaliptismo, milenarismo, utopismo – na expectativa de versões secularizadas, tais como as doutrinas modernas do progresso” (NEMO, 2005, p. 51).

2.1 A CONCEPÇÃO POLÍTICA DE SANTO AGOSTINHO

Neste momento estamos diante de uma viragem política. A ágora grega já não existe mais. A civitas romana entra em colapso com a decadência do Império Romano. As estruturas políticas e de poder do mundo antigo estão em decomposição. O Edito de Milão em 313 d.C. proclamado pelo imperador Constantino extingue a perseguição aos cristãos e declara o Império Romano neutro em relação ao credo religioso. Uma nova ordem social e política está em curso, fundindo perspectivas greco-romanas com a cosmovisão judaico-cristã. Neste contexto, e “desde seus primeiros séculos, o cristianismo põe — notadamente através de São Paulo, que comenta e ordena a palavra de Cristo — um problema decisivo: o da relação entre o crente e a ordem temporal” (CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1985, p. 28).

É no contexto desta crise que o pensamento político de Santo Agostinho se constitui vinculado à tradição greco-romana e a judaico-cristã. Este período também é conhecido na história da filosofia como “Patrística”, movimento filosófico presente nos três primeiros séculos do cristianismo. Movimento constituído por pensadores denominados de “Pais da Igreja”, a Patrística estabeleceu os fundamentos filosóficos e teológicos da Igreja Católica Apostólica Romana. A Patrística se subdivide em dois movimentos distintos, mas convergentes em seus propósitos constituir as bases teóricas e conceituais da Igreja, trata-se assim da patrística na área cultura de língua grega e a patrística latina, da qual Santo Agostinho é um dos seus principais representantes.

Com o nome de patrística entende-se o período de pensamento cristão que se seguiu à época neotestamentária, e chega até o começo da Escolática: isto é, os séculos II a VIII da era vulgar. Este período da cultura cristã é designado com o nome de Patrística, porquanto

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representa o pensamento dos Padres da Igreja, que são os construtores da teologia católica, guias, mestres da doutrina cristã. [...] A Patrística é contemporânea do último período do pensamento grego, o período religioso, com o qual tem fecundo contato, entretanto dele diferenciando-se profundamente, sobretudo com o teísmo se diferencia do panteísmo. É também contemporâneo do império romano, com o qual também polemiza, e que terminará por se cristianizar depois de Constantino (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1961, p. 147).

Santo Agostinho nasceu em Tagaste em 354 d.C. e morreu em Hipona, norte da África, em 430 d.C. A trajetória de vida de Agostinho pode ser dividida em dois momentos. Antes de sua conversão ao cristianismo estuda filosofia concentrando-se, sobretudo na retórica. E após sua conversão quando concentra seus interesses em estudos da Sagrada Escritura e, por extensão nos estudos teológicos.

Para compreendermos as contribuições do pensamento político de Santo Agostinho para a teoria política é preciso ter presente que Agostinho se insere no pensamento neoplatônico, característico dos primeiros séculos dos primeiros movimentos de conformação do pensamento teológico naquele contexto. Em linhas gerais a cosmovisão platônica se estabelece na divisão entre mundo sensível e mundo das ideias. O mundo sensível (doxa) no qual estamos inseridos é captado pelos sentidos e, como tal se apresenta como cópia do mundo das ideias (epsiteme). Para Platão, conhecimentos da realidade, das ideias unas, eternas e imutáveis de verdade, do bem e, do belo requerem o empenho em transcender o mundo das aparências sensíveis, da opinião. Permanecer no âmbito das aparências, das opiniões significa ficar preso a visões distorcidas da realidade, do mundo impedindo a adequada compreensão dos fatos e, dos acontecimentos e, portanto, propenso ao erro e aos equívocos próprios das opiniões. Para Platão esta era a condição da democracia ateniense que condenou à morte o mais sábio dos homens: Sócrates.

Em Agostinho, não se encontra uma obra específica sobre a política, mas a concepção política perpassa sua obra e, de forma mais específica na obra De Civitas Die (A Cidade de Deus). O Bispo de Hipona, coerente com os pressupostos neoplatônicos, divide o mundo em duas cidades. A Cidade dos homens e a Cidade de Deus. Assim, seu pensamento político parte do pressuposto da transcendência do ser humano, o que significa que a política é atividade característica da Cidade dos homens em função do alcance da Cidade de Deus. É por meio da política que os homens podem alcançar a paz, a tranquilidade e bem entre os homens, condição necessária e preparatória para o alcance da Cidade de Deus.

A arte das artes, ars artium, para os Padres da Igreja, era o governo das almas, regimen animarum. Por muito tempo, o governo dos reis não foi senão um auxiliar bastante grosseiro, encarregado da manutenção da ordem da disciplina dos corpos. [...], nenhum dos termos habituais que utilizamos, desde o século XVI e XVII, para descrever o exercício do poder — Estados, povo, território, por exemplo — existe ou ocupa o mesmo lugar no vocabulário medieval (SENNELLART, 2006, p. 24).

Nesta perspectiva, para Agostinho exercer a política, somente faz sentido se tal função estiver a serviço do projeto da salvação. O exercício da política

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desprovido desta finalidade vincula-se aos interesses individuais de arrebanhar fama e poder e, nesta direção, se sobrepõe aos interesses da comunidade cristã conduzindo, necessariamente, à injustiças sociais, à violência, à revoltas, impossibilitando ao cristão de conduzir-se pelo caminho do bem e da justiça, condições fundamentais para o alcance da Cidade celeste. Sob tais pressupostos, o exercício do poder temporal se apresenta adequado e legítimo na medida em que é conduzido à luz da vontade, e da bondade divina.

Sob tais perspectivas, o que está pressuposto na concepção política de Santo Agostinho é a preservação e a potencialização da dignidade humana. Ou seja, o ser humano, na condição de imagem e semelhança do criador, é portador de dignidade humana e divina. Transcendente em sua condição humana é imprescindível que ao longo de sua vida terrena observe e cultive os valores circunscritos na obra da criação. Nesta direção, a função da política vai além do mero estabelecimento de condições materiais necessárias à manutenção da vida, ao bem-estar físico dos seres humanos, mas deve colaborar para o exercício da piedade, dos valores cristãos, da concórdia entre as pessoas e as comunidades cristãs.

Assim, o governante deve demonstrar que se preocupa com o bem material da comunidade cristã, não medindo esforços para que as condições necessárias a sobrevivência estejam disponíveis, possibilitando uma convivência justa e fraterna. Desta forma, reside na atividade política uma dimensão comunitária, que requer as condições materiais para a vivência adequada dos valores cristãos. Mas, se encontra também uma dimensão teológica, na medida em que o exercício adequado da vida cristã na Cidade dos homens é condição sine qua non para o alcance da Cidade de Deus, corroborando assim com o projeto da criação e da economia da salvação.

Para Agostinho o fundamento ético do Estado perpassa pelo fundamento ético dos homens, uma vez que o Estado é composto por seres humanos que somente realizarão plenamente seus interesses na esfera da política e, do Estado na medida em que a ação estiver amparada nos valores do Evangelho. Se a justiça e a fraternidade entre os homens não se constituir como fundamento da vida cristã não haverá Estado, e nenhum sistema político será capaz de promover o ser humano em sua dignidade e reconhecer seus direitos na Cidade dos homens.

Nesta direção, a concepção social e política de Agostinho está permeada pela cosmovisão cristã. A existência, e a função do Estado, se justifica em função dos indivíduos e da comunidade cristã e, somente se efetivará, ou alcançará êxito na medida em que os governantes estiverem alinhados e comprometidos com a verdade absoluta, com o projeto divino.

Tal como o definem os Discursos de Gregório de Nazianza e, como algumas inflexões agostinianas, a Regula Pastoralis, o regimem eclesiástico designa portanto um governo não violento dos homens que, pelo controle de sua vida afetiva e moral, pelo conhecimento dos segredos de seu coração e pelo emprego de uma pedagogia finamente individualizada, procura conduzi-los à perfeição (SENELLART, 2006, p. 29).

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A contribuição do pensamento político de Agostinho para a teoria política ocidental moderna e contemporânea é crucial, na medida em que com o cristianismo e sua ênfase no valor da pessoa humana, e da comunidade cristã, se estabelecem no Ocidente a noção dos direitos individuais e dos direitos sociais. É preciso considerar, também, que uma das tarefas cruciais da política é a promoção da justiça social. Este conceito alcança toda sua intensidade no contexto de um mundo globalizado, multilateral, tecnologicamente desenvolvido e produtivamente intenso, quando nos deparamos com a fome, com a miséria, com a morte violenta de homens, mulheres e jovens, oriundas das precárias condições de vida a que estão submetidos. Assim, o conceito de justiça social requer o constante repensar da política como ação humana de promoção do bem comum e, da economia como meio para o alcance desta finalidade, superando a condição de fim em si mesma que alcança na atualidade.

IMPORTANTE

Para visualização do contexto social, político, econômico e cultural em que viveu, bem como os desafios que enfrentou Santo Agostino, indicamos o filme: Santo Agostinho – O Declínio do Império Romano. Eis a sinopse: o Filme começa com o idoso Agostinho aos setenta anos recordando sua vida pouco antes de morrer, assediado em Hipona, em 430, pelos exércitos vândalos. Narra-se, assim, a vida do santo, seus excessos e transgressões, até a crise existencial que o levou à conversão, são narrados pelo próprio Agostinho, ancião. Sediado em Hipona, o doutor da Igreja faz uma resenha de sua tormentosa juventude. Agostinho viveu num momento crucial da história. A decadência do Império Romano e o fim da Antiguidade Clássica. Em 410 foi testemunha da tomada de Roma pelos visigodos de Alarico. Foi nesse mundo convulsionado por lutas internas que Agostinho exerceu o magistério sacerdotal e escreveu sua obra, de tão decisiva importância na história do pensamento cristão. A obra mencionada no filme é uma das mais importantes de Agostinho: Civitas Dei ou Cidade de Deus. Outro papel destacado é o de Santa Mônica (Monica Guerritore), como guia da salvação do seu filho. Ao ouvir os famosos sermões de Santo Ambrósio, que por meio da Palavra anunciada, a Verdade começou a mudar sua vida. Agostinho faz um filme de sua juventude. O Papa Emérito Bento XVI assistiu ao filme na residência de Castel Gandolfo com a Diretoria da Rádio e Televisão Italiana, a RAI. Após o término da projeção, Bento XVI elogiou o trabalho do diretor Duguay e afirmou que o filme “representa toda a realidade da vida humana, com todos os problemas, as tristezas, os insucessos, bem como o fato de que, ao final, a Verdade é mais forte que qualquer obstáculo e encontra o homem”.

Direção: Christian Duguay. Elenco: Sonia Aquino, Dietrich Hollinderbäumer, Cosimo Fusco, Andrea Giordana, Franco Nero, Alessandro Preziosi e Matteo Urzia.

FONTE: <http://www.vozesdapaz.com.br/mensagens/2018/08/dica-de-filme-santo-agostinho-o-declinio-do-imperio-romano/>. Acesso em: 4 dez. 2018.

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UNIDADE 1 | ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

2.2 A CONCEPÇÃO POLÍTICA DE SÃO TOMÁS DE AQUINO

O pensamento político de Tomás de Aquino se insere na Baixa Idade Média, entre os séculos IX e XIV d.C., e no movimento filosófico intitulado Escolástica. A Escolástica representa a consolidação da teologia cristã católica que afirmou a razão a serviço da fé no conhecimento das verdades reveladas. Também é neste período que os filósofos e teólogos passaram a ter acesso aos textos de Aristóteles por meio de traduções para latim feitas pelos filósofos árabes, entre eles Avicena (980 a 1.037 d.C.) e Averróis (1.126 a 1.198 d.C.). Após a morte de Aristóteles, sua biblioteca foi entregue a Teofrasto, seu sucessor no Liceu. Este repassou a biblioteca para seu herdeiro Neleu de Scepsis. Porém, após a morte de Neleu, em função das instabilidades políticas, os manuscritos foram escondidos. Permaneceram durante cerca de dois séculos, até que Sila os descobriu e os trouxe para Roma, onde foram organizados e publicados por Andrónico de Rodes. o décimo sucessor de Aristóteles no Liceu.

A escolástica representa o último período do pensamento cristão, que vai do começo do século IX até ao fim do século XV, isto é, da constituição do sacro romano império bárbaro, ao fim da Idade Média, que se assinala geralmente com a descoberta da América (1492). Este período do pensamento cristão se designa com o nome de escolástica, porquanto era a filosofia ensinada nas escolas da época, pelos mestres chamados, por isso, escolásticos. As matérias ensinadas nas escolas medievais era representadas pela chamadas artes liberais, divididas em trivo – gramática, retórica; dialética e quadrivio – aritmética, geometria, astronomia, música. A escolástica surge, historicamente, do especial desenvolvimento da dialética. Diversamente da patrística, cujo interesse é sobretudo religioso e cuja glória está na elaboração da teologia católica, o interesse da escolástica será, sobretudo, especulativo e a sua glória será a elaboração da filosofia cristã. Tal elaboração, porém, será plenamente racional e crítica apenas em Tomás de Aquino, com o qual a escolástica atinge o seu supremo fastígio. Até ao Aquinate, sobrevive a tendência platônico-agostoniana, característica da patrística (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1961, p. 169).

Entre os séculos, XI e XIV d.C. da Idade Média inicia-se na Europa Ocidental um conjunto de transformações que colocam em crise o feudalismo como modo de organização social e de produção da vida e, por extensão da nobre feudal. Entre estas transformações encontram-se a melhoria das técnicas de produção agrícola, o aumento demográfico, o ressurgimento do comércio, de associações mercantis, de cidades livres e, o contado com os povos indígenas do novo mundo. Também a Igreja Católica passa por transformações, entre elas, o surgimento de novas ordens religiosas, as reformas da Igreja de Roma em função do “Cisma do Oriente” em 1.054, em que a Igreja Católica se divide em duas, uma com sede em Roma governada pelo Papa e, outra com sede em Constantinopla governada pelo Patriarca. É também, neste período, a realização de expedições militares de inspiração cristã para libertar Jerusalém das mãos dos ímpios e, mantê-las sob domínio cristão.

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TÓPICO 3 | IDADE MÉDIA: SANTO AGOSTINHO E SANTO TOMÁS DE AQUINO

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É também deste período a criação pelo Papa Gregório IX o Tribunal da Santa Inquisição com intuito de combater heresias que ameaçavam os dogmas católicos. Ressaltem-se ainda, neste contexto, publicações nas áreas de filosofia, matemática, física, astronomia e, em outras áreas independentes da tutela da Igreja.

E, contudo, no século XIV que começa a dissolução das instituições até então hegemônicas (Igreja e Sacro Império), o aumento do poder real com o aparecimento das monarquias nacionais (França, Inglaterra), o desgaste e eclipse o papado, a emergência do reformismo filosófico e da secularização da política (WOLKMER, 2001, p. 5)

É neste contexto que se insere Tomás de Aquino. Nasceu em Roccaseca, no sul do Lácio, em 1.221. Foi frade dominicano e, entre 1.248 a 1.252 foi aluno do também frade, filósofo, escritor, astrólogo e teólogo dominicano de origem germânica Alberto Magno (1.200 a 1280). Tomás de Aquino foi professor nas principais universidades europeias, entre elas Colônia, Bolonha, Roma e Nápoles. Morreu em 1274 no mosteiro cisterciense de Fossanova no Lácio, hoje território italiano.

Expoente máximo entre os escolásticos, verdadeiro gênio metafísico e um dos maiores pensadores de todos os tempos, Tomás de Aquino elaborou um sistema de saber admirável pela transparência lógica e pela conexão orgânica entre as partes, de índole mais aristotélica do que platônico-agostiniana (REALE; ANTISERI, 2007, p. 211).

A filosofia política de Tomás de Aquino encontra-se especificamente na obra intitulada: De regimine principium (Do governo dos príncipes). Nesta obra, Aquino trata da natureza do Estado, das formas de governo, bem como relação entre Estado e Igreja. Vinculado majoritariamente ao pensamento aristotélico o expoente máximo da escolástica afirma que a origem do Estado se circunscreve a partir da disposição natural do homem para a constituição da polis. É de sua natureza a associação com outros seres humanos, como forma de garantir a materialidade da vida, mas, sobretudo, como forma de qualificá-la, de alcance do bem-viver da felicidade. Ainda, nesta direção, os indivíduos reconhecem a importância da associação e da divisão das tarefas como forma racional de garantir a sobrevivência.

Santo Tomás constrói uma doutrina teológica do poder e do Estado. Primeiramente, compreende que a natureza humana tem fins terrenos e necessita de uma autoridade social. Se o poder em sua essência tem uma origem divina, é captado e se realiza através da própria natureza do homem, capaz de seu exercício e sua aplicação (WOLKMER, 2001, p. 6).

E, é nesta perspectiva que se estabelece sua concepção de Estado, conforme argumenta Battista Mondin na passagem a seguir:

O Estado é uma sociedade, mais ainda, uma sociedade perfeita. É sociedade porque é “coadunatio plurium ad aliquid communiter agendum” (“união de muitos para fazerem alguma coisa em comum”). É sociedade perfeita porque tem um fim próprio, o bonnun commune (o bem comum) e os meios suficientes para realizá-lo; o Estado tem

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os meios suficientes para realizar um modo de vida tal que permita a todos os cidadãos terem aquilo de que necessitam para viverem como homens (MONDIN, 1981, p. 184).

O filósofo da escolástica se posicionou também em relação às formas de governo e considerou a monarquia constitucional como a melhor forma de governo. Aqui se evidencia o esforço da teoria política de Aquino em compreender as mudanças e as tendências do seu tempo, entre elas as transformações políticas e econômicas de fins da Idade Média, que irão conduzir a conformação das monarquias absolutistas. Mas, como todo pensador político, atento aos sinais dos tempos, o Aquinate antecipa em alguns séculos a instauração das monarquias constitucionais, entre elas e, talvez uma das primeiras a monarquia constitucional inglesa que se instaura a partir de 1688 com a Revolução Gloriosa.

E sua obra De regimine principium, Tomás de Aquino aborda a questão da relação entre Igreja e Estado. Na perspectiva do filósofo, o Estado tem a incumbência de alcançar a perfeição terrena, o bem comum neste mundo, enquanto a Igreja tem a incumbência do alcance do bem comum, em âmbito sobrenatural seu grau de perfeição é maior que o do Estado, devendo este se submeter ao poder da Igreja.

Segundo ele, sendo o Estado, no seu âmbito, uma sociedade perfeita, goza de perfeita autonomia; mas sendo o fim da Igreja o bonnum supernaturale (o bem sobrenatural), é ele superior ao do Estado (que é simplesmente o bonum commune, o bem comum, neste mundo). A Igreja é uma sociedade mais perfeita, devendo o Estado, por ser subordinado a ela em tudo o que concerne ao fim sobrenatural do homem. O Estado depende, pois da Igreja, não diretamente, mas indiretamente (MONDIN, 1981, p. 184).

Neste contexto, é importante ressaltar para os estudos de teoria política dois conceitos, que deste a origem da civilização ocidental se apresentam clarividentes e nas entrelinhas dos escritos até o presente momento. O primeiro conceito refere-se à finalidade da organização política o “Estado”, que somente se justifica como meio de constituição e garantia do espaço público, do bem comum como forma de bem-viver e de qualificação da vida humana. O segundo conceito, ou, sobretudo, argumento demonstra que em cada contexto e, de acordo com a cosmovisão determinante a forma de organização política das mais distintas sociedades humanas assume contornos específicos em função dos desafios que se apresentam naquele contexto. Tal condição se evidencia na cidade-estado grega, na civitas romana, nas comunidades cristãs medievais e, nas monarquias constitucionais que se instauram em fins da Idade Média e início da modernidade.

Ou seja, é importante ter presente no âmbito dos estudos de Teoria Política de que o Estado não é um absoluto, de que ele assume a forma apropriada a cada tempo no qual se circunscrevem os desafios que se apresentam aos seres humanos. Entre estes desafios, encontra-se a necessidade de conferir um sentido e uma finalidade à vida humana. Desafio este que se constitui na relação com os demais seres humanos na vida em sociedade. A vida ensimesmada, individualizada não

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TÓPICO 3 | IDADE MÉDIA: SANTO AGOSTINHO E SANTO TOMÁS DE AQUINO

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constitui condição suficiente para uma vida qualificada. E isto requer a existência do espaço público, locus por excelência do encontro e do confronto com o outro, das relações de poder e, até de disputa pelo poder, mas cuja finalidade última é a preservação do espaço público.

Sob tais prerrogativas, estamos na contemporaneidade diante do desafio de pensar e repensar o Estado, circunscrito num mundo globalizado economicamente, mundializado em seus avanços científicos e tecnológicos, tanto quando em seus efeitos colaterais, entre eles a questão ambiental. Trata-se, portanto, de refletir profundamente o papel do Estado e das formas de governo neste contexto de mundo e de seus desafios a qualificação da vida humana. Assim, como nas sociedades antigas e medievais somos convocados a pensar a categorias políticas nas quais estamos inseridos, suas insuficiências e suas possibilidades como condição necessária de garantir sentido e finalidade a vida humana e sociedade.

UNI

Para aprofundamentos segue o indicativo do filme Ágora.

O filme relata a história de Hipátia, filósofa e professora em Alexandria, no Egito entre os anos 355 e 415 d.C. Única personagem feminina do filme, Hipátia ensina filosofia, matemática e astronomia na Escola de Alexandria, junto à Biblioteca. Resultante de uma cultura iniciada com Alexandre Magno, passando depois pela dominação romana, Alexandria é agitada por ideais religiosos diversos: o cristianismo, que passou de religião intolerada para religião intolerante, convive com o judaísmo do povo hebreu e a cultura greco-romana.

Diretor: Alejandro Amenába. Ano: 2009. País: Espanha.

Fonte: <http://projetoseeduc.cecierj.edu.br/eja/recurso-multimidia-professor/filosofia/novaeja/m3u08/Unid8_item1_agora.pdf>. Acesso em: 4 dez. 2018.

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UNIDADE 1 | ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

LEITURA COMPLEMENTAR

DEFESA DE SÓCRATESExórdio

Platão

Não sei, Atenienses, que influência exerceram meus acusadores em vosso espírito; a mim próprio, quase me fizeram esquecer quem sou, tal a força de persuasão de sua eloquência. Verdade, porém, a bem dizer, não proferiram nenhuma. Uma, sobretudo, me assombrou das muitas aleivosias que assacaram: a recomendação de cautela para não vos deixardes embair pelo orador formidável que sou. Com efeito, não corarem de me haver eu de desmentir prontamente com os fatos, ao mostrar-me um orador nada formidável, eis o que me pareceu o maior de seus descaramentos, salvo se essa gente chama formidável a quem diz a verdade; se é o que entendem, eu cá admitiria que, em contraste com eles, sou um orador. Seja como for, repito-o, verdade eles não proferiram nenhuma ou quase nenhuma; de mim, porém, vós ides ouvir a verdade inteira. Mas não, por Zeus, Atenienses, não ouvireis discursos como os deles, aprimorados em nomes e verbos, em estilo florido; serão expressões espontâneas, nos termos que me ocorrerem, porque deposito confiança na justiça do que digo; nem espere outra coisa quem quer de vós. Deveras, senhores, não ficaria bem, a um velho como eu, vir diante de vós plasmar seus discursos como um rapazola. Faço-vos, no entanto, um pedido, Atenienses, uma súplica premente; se ouvirdes, na minha defesa, a mesma linguagem que habitualmente emprego na praça, junto das bancas, onde tantos dentre vós me tendes escutado, e noutros lugares, não a estranheis nem vos amotineis por isso. Acontece que venho ao tribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade; sinto-me, assim, completamente estrangeiro à linguagem do local. Se eu fosse de fato um estrangeiro, sem dúvida me desculparíeis o sotaque e o linguajar de minha criação; peço-vos nesta ocasião a mesma tolerância, que é de justiça a meu ver, para minha linguagem — que poderia ser talvez pior, talvez melhor — e que examineis com atenção se o que digo é justo ou não. Nisso reside o mérito de um juiz; o de um orador, em dizer a verdade.

DUAS CLASSES DE ACUSADORES

Cumpre, Atenienses, me defenda, em primeiro lugar, das primeiras aleivosias contra mim e dos primeiros acusadores; depois, das recentes e dos recentes. Com efeito, muitos acusadores tenho junto de vós, há muitos anos, que nada dizem de verdadeiro. A esses tenho mais medo que aos da roda de Ãnito1 , posto que estes também são temíveis. Mais temíveis, porém, senhores, são aqueles, que, encarregando-se da educação da maioria de vós desde meninos, fizeram-vos crer, com acusações inteiramente falsas, que existe certo Sócrates, homem instruído, que estuda os fenômenos celestes, que investigou tudo o que há debaixo da terra e que faz prevalecer a razão mais fraca. Por terem espalhado esse boato, Atenienses, são esses os meus acusadores temíveis, porque os seus

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TÓPICO 1 | MUNDO GREGO ANTIGO: A PHXSIS, A POLIS E A DEMOCRACIA

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ouvintes acham que os investigadores daquelas matérias não creem tampouco nos deuses. Depois, esses acusadores são numerosos e vêm acusando há muito tempo; mais ainda, falavam convosco na idade em que mais crédulos podíeis ser, quando alguns de vós éreis crianças ou rapazes, e a acusação era feita a inteira revelia, sem defensor algum. De tudo, o que tem menos sentido é não se poderem dizer nem saber os seus nomes, salvo quando se trata, porventura, de um autor de comédias. Os que, por inveja, ou malquerença, vos procuravam convencer, mais os que, convencidos, por sua vez convenciam a outros, todos esses são os mais embaraçosos; nem sequer é possível citar aqui em juízo nenhum deles e refutá-lo; o defensor é inevitavelmente obrigado a combater como que sombras, a replicar sem tréplica. Em conclusão, concordai comigo em que meus acusadores são de duas classes: os que acabam de acusar-me e os de antanho, a quem aludi; admiti, também, que destes me deva defender em primeiro lugar, pois que a suas acusações destes ouvido primeiro e muito mais que às dos últimos. Bem, Atenienses, é mister que apresente minha defesa, que empreenda delir em vós os efeitos dessa calúnia, a que destes guarida por tantos anos, e isso em prazo tão curto. Eu quisera que assim acontecesse, para o meu e para o vosso bem, e que lograsse êxito a minha defesa; considero, porém, a empresa difícil e não tenho a mínima ilusão a esse respeito. Seja como for, que tomem as coisas o rumo que aprouver ao deus, mas cumpre obedecer à lei e apresentar defesa.

ACUSAÇÕES ANTIGAS

Recapitulemos, portanto, desde o começo, qual foi a acusação donde procede a calúnia contra mim, dando crédito à qual, me moveu Meleto2 o presente processo. Vejamos: que é mesmo o que afirmam os caluniadores em sua difamação? Como se faz com o texto das acusações, leiamos o das suas: "Sócrates é réu de pesquisar indiscretamente o que há sob a terra e nos céus, de fazer que prevaleça a razão mais fraca e de ensinar aos outros o mesmo comportamento." É mais ou menos isso, pois é o que vós próprios víeis na comédia de Aristófanes3 — um Sócrates transportado pela cena, apregoando que caminhava pelo ar e proferindo muitas outras sandices sobre assuntos de que não entende nada. Dizendo isso, não desejo menoscabar tais conhecimentos, se é que os possui alguém — não será desse crime que me há de processar Meleto — mas a verdade é que não tenho deles, Atenienses, a mais vaga noção. Invoco o testemunho da maioria de vós mesmos, pedindo que vos informeis mutuamente e digam aqueles que alguma vez ouviram minhas conversas — há muitos deles entre vós. Dizei-o, pois, mutuamente, a ver se algum de vós me ouviu alguma vez discorrer, por pouco que fosse, sobre tais assuntos. Assim ficareis sabendo que é do mesmo estofo tudo o mais que por aí se fala de mim. Na realidade, não têm fundamento nenhum essas balelas; tampouco falará verdade quem vos disser que ganho dinheiro lecionando. Sem embargo, acho bonito ser capaz de ensinar, como Górgias de Leontino4 , Pródico de Ceos e Hípias de Élis. Cada um deles, senhores, é capaz de ir de cidade em cidade, persuadindo os moços — que podem frequentar um de seus concidadãos a sua escolha e de graça — a deixarem essa companhia e virem 20c para a sua, pagando e ficandolhes, ainda, agradecidos. Por sinal, encontra-se entre nós outro sábio, um de Paros; veio para

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UNIDADE 1 | ORIGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO

uma temporada segundo soube. Fui, por acaso, visitar um homem, que tem pago a sofistas mais dinheiro que todos os outros reunidos; trata-se de Cálias, filho de Hiponico. Eu lhe perguntava (ele tem dois filhos): "Cálias, dizia eu, se teus filhos fossem potros ou garrotes, saberíamos a quem ajustar como treinador para lhes aprimorar as qualidades adequadas; seria um adestrador de cavalos ou um lavrador; como, porém, eles são homens, quem pensas tomar como seu treinador? Quem é mestre nas qualidades de homem e de cidadão? Suponho que pensaste nisso, por teres filhos. Existe algum, — dizia eu — ou não existe? — Existe, sim, — disse ele. — Quem é? — tornei eu; de onde é? quanto cobra? — É Eveno, ó Sócrates,— respondeu ele — de Paros, por cinco minas." Fiquei, então, com inveja desse Eveno, se é que é senhor dessa arte e leciona a tão bom preço. Por mim, bem que me orgulharia e ensoberbeceria de ter a mesma ciência! Pena é que não a tenho, Atenienses.

NOTAS:1 Ânito, rico industrial e político, fracassou como general no ano 409 a.C. e, processado por isso, salvou-se corrompendo os juízes. Passando ao partido popular, cooperou na derrubada da tirania dos Trinta e tornou-se muito influente. Figura, com Meleto e Lição, entre os acusadores de Sócrates no processo. (N. do T.) 2 Meleto, ou Melito, poeta de segunda ordem, cuja obra não chegou até nós. (N. do T.) 3 Aristófanes. célebre e grande comediógrafo; punha em cena personagens e temas da época, polemizando a respeito de política, costumes e ideias. Na comédia das Nuvens, ridiculariza e calunia a Sócrates, apresentando-o como um charlatão. (N. do T.)

FONTE: PLATÃO. Defesa de Sócrates. In: Sócrates. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editor Victor Civita, 1972. p. 11- 13. Disponível em: <https://dynamicon.com.br/wp-content/uploads/2017/02/Defesa-de-S%C3%B3crates-de-Plat%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 1 abr. 2019.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico você aprendeu que:

• A civilização Ocidental é a confluência de duas matrizes civilizatórias, a greco-romana e a judaico-cristã. Roma e Jerusalém são as duas cidades que demarcam a cosmovisão Ocidental moderna. Ou seja, para compreendermos os conceitos políticos modernos e contemporâneos em que nos encontramos inseridos é crucial analisar a trajetória de conformação destes conceitos nas duas linhas de pensamento que perpassam a Idade Média: a Patrística e a Escolástica.

• A Patrística é a primeira escola de pensamento judaico-cristã que se estabelece nos primeiros séculos da era cristã. Seu principal representante é Santo Agostinho. Para a Patrística o papel do governante é prover seus súditos com as condições materiais necessárias a manutenção da vida. Mas, sobretudo governar sob os pressupostos da virtude para que sirva de espelho aos seres humanos na busca da verdade e da salvação. No exercício do governo, o governante necessita reconhecer e pautar sua ação política sob os pressupostos divinos.

• A Escolástica se estabelece na Baixa Idade Média, a partir do século IX. Alcança seu apogeu no século XIII d.C. com São Tomás de Aquino. Enquanto a Patrística vincula-se de forma mais intensa ao pensamento dualista de Platão, expressa na obra De Civitas Dei, a Escolástica vincula-se de forma mais específica ao pensamento de Aristóteles. Em seus escritos políticos São Tomás de Aquino, a exemplo de Aristóteles faz uma análise das diversas formas de governo, apontando para a monarquia constitucional como a melhor forma de governo.

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1 Para Santo Agostinho qual é o sentido do exercício da política?

2 Como São Tomás de Aquino concebe o Estado?

AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 2

PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir desta unidade, você será capaz de:

• compreender o pensamento político moderno no Ocidente através da ótica de seus mais notáveis pensadores;

• perceber que a condição política contemporânea é resultado de um esforço de gerações de pensadores que nos permitem identificar uma linha evolutiva na constituição da teoria política moderna, que fundamenta nossas instituições políticas;

• entender os fundamentos valorativos e racionais do Estado Moderno.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – O REALISMO POLÍTICO DE MAQUIAVEL

TÓPICO 2 – CONTRATUALISTAS: LOCKE, HOBBES E ROUSSEAU

TÓPICO 3 – ILUMINISMO: MONTESQUIEU, DAVID HUME E IMMANUEL KANT

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TÓPICO 1

O REALISMO POLÍTICO DE

MAQUIAVEL

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

No presente tópico faremos uma abordagem introdutória sobre o sentido do conceito e do fenômeno da modernidade. Traremos uma definição do termo, do ponto de vista de sua representação histórica e civilizatória, demonstrando que tal definição carrega o peso da maior transformação cultural, política e econômica há mais de cinco séculos.

Na sequência, apresentaremos a concepção política de Maquiavel, o fundador da Ciência Política. Através desta abordagem, compreenderemos o significado do antropocentrismo, que está no centro da definição sobre a modernidade. Entenderemos como esse entendimento se expressa na concepção política do Ocidente, e como o mencionado iniciador do pensamento político moderno verbalizou essa concepção.

Não obstante, nós veremos como terá sido a concepção de homem livre e racional, que define e expressa a modernidade, que irá fundamentar as teorias políticas modernas que nos levaram à constituição histórica do Estado Moderno. E compreenderemos, afinal, porque o pensador renascentista italiano Nicolau Machiavel foi considerado o pai da ciência política e um gênio do pensamento moderno, com reflexos fundamentais até os dias de hoje.

2 RAZÃO CIENTÍFICA, ESTADO E PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO

Somos os filhos da modernidade. Com o movimento humanista que emergiu lenta e progressivamente por volta do século XV, o Ocidente em curso tomou nova forma. A inteligência humana rompeu as correntes que a aprisionavam, o planeta se arredondou e o homem se tornou o centro do Universo. Moderno significa nova forma, atual, do tempo presente, em oposição ao velho, relacionado à Idade Média. Este longo período histórico é caracterizado pelo teocentrismo, onde Deus era o centro do universo, tudo sabia e tudo podia, enquanto os homens viviam na cegueira da ignorância. Em oposição, o humanismo, que fundamenta a Modernidade, é caracterizado pela crença do homem na sua própria capacidade de entender o mundo e transforma-lo à sua volta. Isso colocou o homem no centro do universo e a isso se deu o nome de antropocentrismo. Nessa perspectiva,

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO POLÍTICO

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pioneiros do pensamento humanista, deixam de buscar explicações nos céus e, através do pensamento racional, passam a compreender as coisas do mundo humano como produto humano e não como a simples vontade divina.

Niccolò Maquiavel foi um destes humanistas. A ele se atribui a paternidade da ciência política, expressão do pensamento político moderno. Ora, por que é moderno? Justamente porque a partir de Maquiavel a política passa a ser vista cada vez mais como produto das vontades e interesses humanos. Em outras palavras, o método de análise e interpretação do autor italiano consiste em descrever a política como ela realmente é, isto é, como produto humano e não vontade divina. Assim, ele não se preocupa em sugerir conselhos morais aos governantes. Nessa perspectiva, sua análise separa a política da moral, a religião do Estado. Mas não o faz por um ímpeto antirreligioso, muito menos imoral. O faz com a convicção de que a política deve ser compreendida como ela realmente funciona, segundo interesses humanos. E o entendimento da política deve ser a partir da tentativa de compreender a perspicácia, as virtudes da inteligência humana na busca e manutenção pelo poder e na defesa de um território e seu povo. Para ele, não importa que o rei seja bom. O importante é que saiba defender seu território e seu povo.

Filho de seu tempo, Maquiavel foi um pensador original e corajoso, disposto a enfrentar o status quo do pensamento medieval, orientado pela Igreja. Ele compreendeu e demonstrou de modo muito original, e inovador para a sua época, qual a lógica da política, dos comportamentos orientados pela busca e manutenção do poder. A importante distinção entre religião e Estado por ele sugerida representa uma das mais importantes características da formação do Estado Moderno no Ocidente. Maquiavel demonstrava que a indistinção dessas duas esferas impedia, com frequência, boas decisões políticas. Nessa perspectiva, ele defendia que a ordem interna e a segurança às ameaças externas de uma nação dependiam do rei justo e eficiente e não do rei benevolente, submetido ao poder moral da Igreja. Transformemos isso em um exemplo: se o filho do rei rouba, o rei benevolente o perdoa em nome da moral cristã e do amor. Já o rei justo manda matar o próprio filho, para que sirva de exemplo aos outros.

Essa distinção entre moral e política se tornou clássica na teoria política moderna. E, de fato, ela explica a natureza do Estado moderno no Ocidente e sua evolução na perspectiva de uma ordem racional, crescentemente marcada pela independência e autoridade exclusiva do Estado na esfera da política. Se isso parece contemporaneamente normal, é preciso entender esse fenômeno como um rompimento da ordem política da antiguidade, em que os governantes eram submetidos, no mínimo influenciados, pela autoridade moral da Igreja, uma constante na Idade Média. Tal distinção foi crescentemente aceita na teoria política ocidental, caracterizando a ideia do Estado laico. Naturalmente, o Estado não é ausente da influência da moral, no entanto, é independente dela. Nessa perspectiva, no início do século XX, o sociólogo alemão Max Weber promoveu a importante distinção entre a ética das convicções, cuja morada é a esfera da religião, e a ética da responsabilidade, que predomina no terreno da política. Na ética das convicções, independentemente do resultado da ação, o que importa são as intenções. Na ética da responsabilidade, o que importa é o resultado.

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TÓPICO 1 | O REALISMO POLÍTICO DE MAQUIAVEL

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NOTA

Foi essa a explicação que deu o ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso em certa ocasião, na medida em que buscava apoio no Congresso para garantir a estabilidade do Plano Real, que combateu eficazmente a inflação crônica da economia brasileira. Perguntado sobre o que achava das críticas ao fato de, na condição de presidente da república, ter buscado apoio de partidos e lideranças políticas “de direita” e alinhadas à extinta ditadura, respondeu que na política existe uma ética da responsabilidade. Nesse sentido, desde que os fins sejam públicos, seria preciso negociar com todas as forças políticas, a fim de manter o interesse geral da Nação.

Precisamente, é aí que aparece o espectro da ideia, provavelmente a mais conhecida de Maquiavel, segundo a qual, na política, os fins justificam os meios. Na seara da moral e da religião, os indivíduos são frequente ou predominantemente julgados pelas intenções de seus atos, e podem ser perdoados por seus erros. Na esfera da política, no entanto, o governante ou o legislador são julgados pelos seus resultados. Deve estar claro, para nós, que a ideia de que os fins justificam os meios, não serve simplesmente para justificar todo e qualquer mau ato, como a corrupção, a mentira, a vingança e a irresponsabilidade, o nepotismo, além da pura incompetência e do despreparo. Tampouco, deve se confundir os fins da política com fins meramente particularistas, de interesse próprio. Embora isso aconteça, não é esse o fim da política. A finalidade na política é a conquista e a permanência no poder. E esta depende da capacidade de cumprir a finalidade pública, que é manter a paz interna e a segurança contra a ameaça externa. Assim, um político será mais lembrado pelas suas realizações do que pelas suas boas maneiras e intenções.

Essas são características que definem, ao longo do tempo, o tipo de interpretação sobre o mundo real da política que, não por acaso, denominamos de realismo político. É o realismo, isto é, a visão da política como ela realmente é, que conforma o que denominamos de ciência política. E, devemos a Maquiavel o ponto de partida do método de análise da política. Ele é baseado no uso da razão, da lógica e da observação dos fatos oriundos dos comportamentos dos atores políticos, procurando identificar os interesses, os objetivos, orientados pelas premissas do autor renascentista que distinguem a política da moral, ou, se quisermos, a religião do Estado. Nesse sentido, quando reivindicamos a moralidade e a ética na justiça, agimos como cidadãos com senso republicano. Quando defendemos a liberdade individual ou coletiva e o conjunto de direitos que cabem a homens e mulheres em sociedade, estamos agindo eticamente em defesa da democracia. Não obstante, para compreendermos objetivamente a política pelo olhar frio da ciência, devemos sempre nos lembrar de quais são os fins a serem alcançados.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO POLÍTICO

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3 A RUPTURA RENASCENTISTA DE MAQUIAVEL E O PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO

O Renascimento literalmente quer dizer um renascer do homem greco-romano, isto é um renascimento das ideias da antiguidade clássica, isto é, da antiga Grécia e da antiga Roma. Trata-se do renascer da visão antropológica dos antigos gregos e romanos que, como sabemos, foram culturalmente sucumbidos pelo cristianismo.

Assim como outras grandes religiões, o cristianismo colocou Deus no centro do universo e determinou a cosmologia da Idade Média, que durou até o século XV. A partir daí é que ressurgem alguns dos mais importantes ideais da antiguidade greco-romana. É nessa direção que renasce a concepção do homem autônomo, aquele que é capaz de compreender o mundo e transformá-lo à sua volta. Como já dissemos, trata-se da passagem da visão teocêntrica para uma perspectiva antropocêntrica, em que o homem, ser humano, passa a se entender como o centro de todas as coisas do universo e medida de todas as coisas. O renascimento (do homem) sugere a ruptura com a visão de mundo medieval, que é orientada pela teologia e sua perspectiva de distanciamento dos interesses do mundo terreno, secular. No lugar dessa concepção medieval, ressurge o interesse nas coisas do dia a dia, da vida mundana e material.

É justamente este o princípio humanista da ciência, do uso da razão e do fazer humano. É quando também a política, que nunca deixou de existir, passa a merecer a atenção filosófica que lhe devia ser dispensada. A política, essencialmente, tem a ver com o fazer, em oposição à passividade e à contemplação do mundo. E sua interpretação no contexto da emergência da modernidade, não poderia deixar de lhe ser devida. É por excelência, o palco em que se revela a natureza ativa e transformadora do ser humano. E é nesse contexto, de ressurgimento de certos valores e ideias, ou seja, do renascimento do homem como espécie capaz de compreender o mundo e transformá-lo à sua volta, que aspectos como a honra a gloria, a conquista, as mudanças de toda ordem, da luta pela liberdade e pela autonomia que voltam a ter o sentido que tinham aos antigo gregos e romanos. E é com o renascimento do homem que damos sentido ao termo modernidade e compreendemos também o significado da palavra indivíduo.

Autores literalmente renascentistas, como Maquiavel e Pico Dela Mirandola, defenderão a ideia de que todo indivíduo pode superar os obstáculos que lhe são impostos e buscar a glória e a virtude, conceito expresso por Maquiavel. Em sua obra O príncipe, Nicolau Maquiavel procura demonstrar que o principal objetivo da política é a conquista e a manutenção do poder, no que a virtù é a principal qualidade do governante. Essa ideia de que a busca pelo poder e sua manutenção seja a principal finalidade dos homens em política, orienta quase que predominantemente a teoria política desde então.

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TÓPICO 1 | O REALISMO POLÍTICO DE MAQUIAVEL

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DICAS

Maquiavel considera que o poder não depende apenas do destino, mas, sobretudo, da astúcia de governante em manter-se sob o comando de uma nação que o respeitasse, temesse e, sendo possível, o amasse. Tal astúcia representa uma inovação no pensamento político, outorgando ao homem a responsabilidade por seu sucesso, através da junção das forças intelectuais e animais presentes em cada indivíduo. Assim, ao príncipe não bastaria a força de um leão para o domínio de um território, mas, sobretudo, a astúcia de uma raposa para manter-se no controle, sabendo como agir, quando mentir e o que deveria aparentar aos seus governados.

FONTE: <https://filosofojr.wordpress.com/2012/09/19/o-conceito-de-virtu-a-politica-e-a-etica/>. Acesso em: 29 mar. 2019.

É essa concepção que paira sobre a máxima de que os fins justificam os meios. Embora não seja unanimidade, a herança de tal concepção aparece nas teorias contemporâneas da política com muita força. Um exemplo disso é o individualismo metodológico na ciência política, cuja premissa orienta as análises da teoria da escolha racional, entre outras congêneres. A ideia, a priori, é a de que a política precisa ser compreendida a partir da lógica da ação individual. E a orientação básica dos indivíduos em política, tal qual na economia, é de que suas ações serão sempre pautadas pelo interesse egoísta prioritariamente. Só depois é que outros interesses podem ser considerados e, qualquer ação que não seja assim, não deve sequer ser considerada uma ação racional. É só um exemplo da força do pensamento de Maquiavel presente hoje.

O Príncipe, é verdade, se constitui em um livro de conselhos ao governante. Mas não se trata de conselhos morais e sim de sugestões estratégicas de como conquistar o Estado e manter o poder e tornar-se, portanto, o governo estável. Nessa perspectiva, a obra de Maquiavel se distingue da “abstração filosófica, etérea e especulativa”, muito comum à sua época. Em outras palavras, o autor não parte de uma concepção de mundo moralmente ideal, de perfeições, cuja intenção final fosse a correção moral das ações humanas na política. Ao contrário, seu ponto de partida é a realidade política como lhe parece ser e sua intenção, com isso, é estabelecer quais as estratégias mais eficientes diante da realidade, a fim de que os fins sejam alcançados. Nessa direção, a rigor, os meios necessários para alcançá-los têm menor importância, já que a realidade nua e crua demonstra que é assim que os homens agem efetivamente na busca do poder e na sua manutenção. O que Maquiavel demonstrava é que as ações regidas pela moral e, portanto, orientadas pela divina sabedoria que distingue o bem do mal, sucumbem ao império das ações humanas na política, racionais e egoístas. Portanto, não é Deus e sim o homem que está no centro das coisas da política. É o que podemos chamar de uma concepção renascentista.

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FIGURA 1 - NICOLAU MAQUIAVEL

FONTE: <https://www.newsstandhub.com/files/l-opinione-della-liberta/images/il-liberismo-di-sinistra/bbb01caecc6f9aa01680ad12734dcd04.jpg>. Acesso em: 29 mar. 2019.

4 ANTROPOLOGIA DO PENSAMENTO POLÍTICODE MAQUIAVEL

IMPORTANTE

Esse assim denominado realismo político aparecerá nitidamente na obra Leviatã de Thomas Hobbes, um século depois. Baseado no pressuposto de que o homem é o lobo do homem, o autor inglês apresenta uma visão moralmente pessimista do ser humano, levando-o a fundamentar sua concepção do Estado moderno.

4.1 VIRTÙ E FORTUNA

Expressando sua visão humanista, portanto moderna, sobre a natureza das ações em política, Maquiavel desenvolve o conceito de virtù, a fim de dar conselhos ao governante. A virtù do grego, é o correlato de virtus, do romano e nos leva ao significado de virtude. É o conjunto de qualidades que todo governante precisa ter para conquistar e manter o poder. Todavia, autores como Cícero, predecessores de Maquiavel, já tratavam o tema da virtude do governante, com forte conotação de obrigações morais. O que Maquiavel fará, de modo inovador, é contrapor esse tratamento moral ao realismo da política. Para o autor, seria um erro aconselhar o governante a pautar suas ações de forma primordialmente moral, visto que isso poderia bem custar a perda do reino ou a derrota de uma nação. Diferentemente, um governante virtuoso seria aquele que conseguisse fazer escolhas a partir da melhor consideração possível das circunstâncias. O meio moral pode ser importante, mas não pode se sobrepor aos fins últimos de uma nação: paz interna e segurança contra o invasor. Veja-se como se pronuncia o autor:

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Resta agora ver quais devem ser os modos e os atos de governo de um príncipe para com os súditos ou para com os amigos. E porque sei que muitos escreveram sobre isso, temo, escrevendo eu também, ser considerado presunçoso, sobretudo porque, ao debater esta matéria, afasto-me do modo de raciocinar dos outros. Mas, sendo a minha intenção escrever coisa útil a quem escute, pareceu-me mais convincente ir direto à verdade efetiva da coisa do que à imaginação dessa. E muitos imaginaram repúblicas e principados que nunca foram vistos, nem conhecidos de verdade. Porque há tanta diferença entre como se vive e como se deveria viver, que quem deixa aquele e segue o que se deveria fazer aprende mais rapidamente a sua ruína que sua preservação: porque um homem que deseja ser bom em todas as situações, é inevitável que se destrua entre tantos que não são bons. Assim, é necessário a um príncipe que deseja conservar-se no poder aprender a não ser bom, e sê-lo e não sê-lo conforme a necessidade. (MAQUIAVEL, s.d., p. 90).

Aqui temos a melhor compreensão possível sobre o realismo político do autor e o que ele entende por virtù. Típico do pensamento moderno que Maquiavel ajudou a inaugurar, trata-se do esforço de entender as coisas como elas realmente são e não como deveriam ser. Aliás, é justamente isso que separa a noção, igualmente moderna, de ciência de todas as outras formas de conhecimento. Isso inclui a separação inclusive entre a filosofia e as chamadas ciências sociais, incluindo a ciência política. A ciência é filha da modernidade e as ciências sociais surgiram com esse espírito. Portanto, a virtude de um político tem a ver com as escolhas racionais que é capaz de tomar a fim de proteger sua nação e seu reino. De pouco adianta um governante de boas intenções e fiel aos preceitos morais mais elevados se ele não é exitoso nessa tarefa primordial da política. Para reconhecer as virtudes de um governante, portanto, é preciso admitir até mesmo suas atitudes práticas maldosas, ardilosas e dissimuladas, entre outras, que não seriam aprovadas segundo julgamentos da moral cristã.

Outra ideia tratada por Maquiavel foi a de fortuna, que também podemos

traduzir por sorte ou riqueza. Podemos afirmar, grosso modo, que, na cultura da antiguidade greco-romana, a deusa Fortuna era compreendida como a deusa da sorte por ela consentida a alguns, de forma aleatória. Na alegoria política de Cícero, no entanto, ela aparece como uma mulher a ser conquistada, o que apenas o homem de virtù conseguiria. Só os homens viris e de coragem poderiam possuí-la. É para esse homem que ela irá sorrir. Mas, durante a Idade Média, “de mulher a ser conquistada, ela passa a ser indiferente aos homens, não sendo possível conquistá-la”. Na visão cristã, a obsessão por conquistar a fortuna seria vã, por ser uma busca terrena, contraria aos verdadeiros desígnios humanos, associados à busca pela elevação espiritual e moral, única forma de felicidade e caminho para a vida eterna centrada no amor de Deus. Maquiavel, assim como outros autores renascentistas, recupera a ideia da fortuna como algo a ser conquistado na política. Critica os que consideram o bom governo como desígnio de Deus e sugere a devida consideração à importância do livre arbítrio como resultado da fortuna de um governante, como se lê a seguir:

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Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de forma que os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas coisas, mas deixar-se governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais aceita nos nossos tempos pela grande modificação das coisas que foi vista e que se observa todos os dias, independentemente de qualquer conjetura humana. Pensando nisso algumas vezes, em parte inclinei-me em favor dessa opinião. Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses rios torrenciais que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores e os edifícios, carregam terra de um lugar para outro; todos fogem diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso não impedia que os homens, quando a época era de calma, tomassem providências com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso. Da mesma forma acontece com a sorte, a qual demonstra o seu poderio onde não existe virtude preparada para resistir e, aí, volta seu ímpeto em direção ao ponto onde sabe não foram construídos diques e anteparos para contê-la, E, se considerardes a Itália, que é a sede destas variações e aquela que lhes deu motivo, vereis ser ela uma região sem diques e sem qualquer anteparo, eis que se protegida por convenientes forças militares, como a Alemanha, a Espanha e a França, ou esse transbordamento não teria feito as grandes alterações que fez, ou não teria ocorrido. Penso que isto seja suficiente quanto ao que tinha a dizer acerca da oposição que se pode antepor à sorte em geral (MAQUIAVEL, s.d., p. 145).

Dessa maneira, o autor renascentista ajuda a construir o pensamento humanista que, ao longo dos séculos seguintes, conformou o pensamento ocidental. Trata-se de um entendimento que não é mais baseado na simples predestinação divina do cotidiano dos homens. Ao contrário, o pensamento humanista é baseado na potenciação humana. Nesse sentido, a ideia do livre arbítrio, utilizada por Maquiavel, é revalorizada no pensamento cristão, em consonância com o período renascentista. Desse modo, a fortuna é não apenas revalorizada, como também depende de o homem de virtude alcançá-la na política. Ou seja, sugerem os pensadores renascentistas, que os homens que chegam ao poder e conseguem nele se manter, não são obra do mero acaso ou da vontade divina, mas sim de suas capacidades individuais, relacionadas à inteligência, à astúcia e à vitalidade, de modo geral. Maquiavel entende que, mesmo aqueles que alcançaram o poder pela sorte, nele não permanecem por muito tempo. Sem virtude, sucumbirão na certa.

NOTA

O Renascimento, sinônimo de humanismo (não confundir com humanitarismo), despertou no homem e na mulher do Ocidente, a consciência sobre a capacidade de entender o mundo à sua volta e a possibilidade de transformá-lo.

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O acaso e o imponderável fazem parte dos acontecimentos humanos, é fato indiscutível e não seria diferente na política. Para a sorte, como para o infortúnio, é preciso estar preparado, sendo essa a virtude do bom governante. O virtuoso conquista a fortuna, mas ainda que a fortuna lhe favoreça nessa empreitada, mantê-la ao seu lado não dependerá do acaso nem da vontade divina. Dependerá, sempre, de suas virtudes pessoais como a capacidade de liderança, a coragem, a impetuosidade, entre outros atributos que possamos identificar nas grandes personagens da história dos homens e suas conquistas. E a alegoria sobre a fortuna deixa isso bastante evidente. Em tempos de politicamente correto, uma leitura contemporânea do Príncipe esbarra em analogias não condizentes com a perspectiva liberal-democrática do século XXI. A maior evidência disto é justamente o tratamento por analogia que Maquiavel confere à fortuna, como se pode ver nas palavras a seguir:

Concluo, pois, que “variando a fortuna e obstinando-se os homens em sua maneira de ser, eles serão felizes enquanto ambas as coisas estiverem de acordo; mas, quando elas discordarem, serão infelizes. Estou certo de que é melhor ser impetuoso do que prudente, porque a fortuna é mulher e, para ter-lhe o domínio, mister se faz bater nela e contrariá-la. E costuma-se reconhecer que a mulher se deixa subjugar mais por estes do que por aqueles que agem de maneira indiferente. A fortuna, como mulher, é sempre amiga dos jovens, pois são menos circunspectos, mais impetuosos e com maior audácia a dominam (MAQUIAVEL, s.d., p. 31).

A modernidade, ancorada na racionalidade científica e técnica, prescinde, agora, dos pressupostos teocêntricos. Não há mais espaço para Deus e suas imposições moralizantes, bem como para a deificação do mundo e da natureza. Maquiavel foi odiado por isso, justamente por sua originalidade. Inovar o pensamento político sempre causa furor conservador. Foi por separar a moral da política, a Igreja do Estado, e conferir ao homem a autonomia que lhe é devida, que fez despertar a execração de muitos à sua obra. Estudou a política com realismo, isto é, procurou demonstrar as relações de poder e as coisas do Estado como realmente são e não como deveriam ser. Por isso, é considerado o pai da ciência política. Não incorreu em juízos de valor moral, o que a rigor constitui uma regra fundamental para a ciência, filha da modernidade. Ao olhar para a política com objetividade, permitiu o reconhecimento do império da vontade humana sobre as coisas da política, sobretudo, como os homens realmente agem para alcançar o poder e nele se manter. Sua obsessão fora a de identificar os fatores necessários para que a Itália de seu tempo pudesse ter governos mais estáveis, capazes de conter a instabilidade interna e de uni-la como nação forte e poderosa contra as ameaças externas.

Na Modernidade, o homem passa a compreender sua mente como a fonte do conhecimento.

ATENCAO

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FIGURA 2 – A MENTE COMO FONTE DE CONHECIMENTO

FONTE: <sersaberblog.blogspot.com>. Acesso em: 29 mar. 2019.

Bem no fim, é só olhar para o cenário da política de hoje e você, caro leitor, verá que Maquiavel tinha razão. No contexto dos jogos de poder, os homens – e mulheres – agem de modo racional, seja em busca de reprováveis objetivos privados, corporativos ou em busca do interesse público. A política permite a presença da moral e, mais que isso, a moral e a ética são necessárias. Mas as decisões que prevalecem, mesmo em nome da moral (dos bons costumes), tem um caráter intrinsecamente racional. Portanto, não se iluda com a política, pois ela não é nem o campo do bem, nem do mal. É o campo das disputas e das decisões mais hábeis. É a guerra por outros meios, diria o filósofo político alemão Carl Schmitt. Então, não nos iludamos, porque ilusão causa desilusão e aversão ao que nos iludiu. Sejamos realistas, é o que diria Maquiavel. As estratégias eleitorais, por exemplo, são baseadas na conquista pelo poder por grupos de interesse e não em projetos cujos interesses de seus autores estejam acima do mero poder.

Isso não anula a política como o campo da realização dos melhores interesses republicanos. Ora, se isso não fosse possível, não só viveríamos no pior dos mundos, como já teríamos nos matado a todos. Os filmes de ficção futurista estão repletos desses alertas, assim como aqueles filmes que retratam os meandros do poder. No fundo, eles reproduzem a visão antropológica implícita o pensamento amoral de autores como Maquiavel e Hobbes, este último que veremos a seguir. Se considerarmos os acontecimentos políticos que culminaram no resultado das eleições de 2018 no Brasil, poderemos constatar como é preciso considerar as recomendações dos pensadores modernos sobre a política. Eles nos ajudam a entender nossos desapontamentos, mas também explicam porque podemos ter expectativas quanto às alternativas aos nossos problemas públicos. E, como dizia outra filósofa política alemã, Hannah Arendt, se a política não nos leva ao céu, livra-nos, contudo, do pior dos infernos.

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RESUMO DO TÓPICO 1Neste tópico, você aprendeu que:

● Alguns conceitos que se apresentam nos fundamentos das Teorias Políticas modernas no Ocidente significam uma formulação de ruptura histórica com a Idade Média, isto é, a mudança da visão teocêntrica para a visão antropocêntrica, com todas as suas características, entre as principais, a saber:

● O homem como medida de todas as coisas e sua libertação da cosmovisão religiosa através do pensamento racional. Nessa ruptura histórica estão as origens da ciência, da noção de indivíduo dotado de razão e liberdade como características que aprendemos a considerar como direitos fundamentais do ser humano.

● A partir dessa ruptura renascentista, será essa concepção de homem livre e racional que irá fundamentar as teorias políticas modernas que nos levaram à constituição histórica do Estado Moderno.

● Nesta perspectiva moderna renascentista, a constituição do pensamento político moderno, com todas as suas consequências na vida da Sociedade Ocidental, começa com o gênio italiano Nicolau Maquiavel, considerado o pai da ciência política.

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AUTOATIVIDADE

1 Quais são as características essenciais do pensamento moderno? Considere a concepção antropológica, descrevendo como o homem passa a ver a si próprio e como essa nova concepção interfere no desenvolvimento da ciência e da política.

2 Descreva como Maquiavel analisa a política, como entende que deva ser o comportamento do governante, demonstrando ser um pensador moderno, através do seu realismo político.

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TÓPICO 2

CONTRATUALISTAS: LOCKE, HOBBES E

ROUSSEAU

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

No tópico que segue, compreenderemos o significado de poder soberano que fundamenta e justifica a necessidade do Estado. Esta noção é fundamental para a compreensão que precisamos ter sobre o papel do Estado moderno, acima de quem ninguém deve estar. Por outro lado, também veremos que a noção de soberano se forja às circunstâncias históricas determinadas pela ascensão das democracias.

Por extensão, entenderemos como se define, através dos mais conhecidos pensadores contratualistas, a ideia do contrato social entre a Sociedade e o Estado. A instituição desta ideia de um acordo entre a Sociedade civil e a Sociedade política é um marco histórico definidor dos rumos da organização política e, por extensão, econômica e cultural das nações. A própria definição de indivíduo portador de direitos e deveres recebe das discussões e proposições sobre o contrato social seus fundamentos.

E tais fundamentos, devemos ao esforço teórico de muitos pensadores. Não obstante, é imprescindível reconhecer em John Locke, Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau a responsabilidade de terem proposto as bases desse contrato que definiu o formato geral do Estado moderno, suas atribuições e a base de sua legitimidade.

2 O PODER SOBERANO: ESTADO OU SOCIEDADE CIVIL

O poder soberano existe? Sim, existe, mas quem é esse tal e o que ele quer dizer? Primeiramente, diga-se o que é o poder que está acima de tudo e de todos, como fosse Deus pairando sobre nossas cabeças. E a ideia é exatamente esta, ou seja, um poder acima de tudo e de todos. Durante toda a Idade Média, esse todo poderoso é Deus, nosso senhor. Mas, a partir da modernidade, o homem ocidental recebe de seu pai, todo poderoso, a grande dádiva: o livre arbítrio. Deus continua sendo o todo poderoso, dono do universo, comandando, desde o céu, esse mundo infinito. Mas, aqui na terra, permite aos homens organizarem a vida coletiva segundo suas necessidades seculares. Usando o livre arbítrio e imitando a ideia do todo poderoso, os seres humanos produzem, com a bênção de Deus, o todo poderoso do mundo finito: o Estado é esse o soberano e, em nome da vontade dos filhos de Deus, é quem deve manter a ordem terrena. Mas não se esqueça: é em nome da vontade dos filhos de Deus, que somos nós, que constituímos a sociedade civil.

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Nessa perspectiva, o Estado é nossa maneira humana, terrena, de copiar a suposta ordem divina. Em meio ao caos das paixões, seres humanos vivendo coletivamente precisam ordenar o mundo que lhes pertence. O poder soberano reflete, no fundo, uma necessidade humana em sociedade. Precisamos de regras e precisamos que alguém garanta que elas sejam cumpridas. Assim nasce o poder político, que já estava aí quando nascemos e continuará existindo, enquanto houver humanidade. Gostemos ou não, precisamos dele tanto quanto adolescentes rebeldes sabem, no fundo, que precisam de disciplina, de educação e de autoridade dos pais e das leis, para controlar seus ímpetos mais humanos e egoístas. O Estado é, portanto, o resultado, se não do desejo, mas da necessidade que temos de estabelecer leis e garantir que, através de um poder soberano, sejam cumpridas. Esse estado é o resultado da evolução humana dos formatos do poder através dos tempos.

Podemos admitir que, na origem, o Estado tenha nascido pelo uso da força. Pensemos na Idade Média, no contexto da sociedade feudal. O feudo era a propriedade de um senhor que, por sua liderança guerreira e de seus antecedentes, conquistou e manteve extensões de terra, no interior da qual vivem pessoas sob seu comando, o que era garantido por um exército e um conjunto de leis, cujo respeito era garantido pelo seu exército, que nada mais é do que a configuração do monopólio do uso da violência, nas palavras de Weber. A origem do Estado moderno, como o conhecemos, é resultado das lutas entre senhores feudais, em que os que venciam com seus exércitos, submetiam os outros ao seu mando e ampliavam a extensão territorial de seus domínios. É a origem dos Estados-nação, instaurando o poder soberano, centrado na figura do rei, que nada mais era do que o mais forte dos senhores feudais.

DICAS

Soberania significa a condição de não estar submetido a nenhuma ordem superior, ao contrário, de ter total independência e, no contexto do poder político, submeter todo e qualquer outro ao seu comando. O jurista francês Jean Bodin (1530-1596) é uma importante indicação sobre o assunto.

Não obstante, a forma do Estado moderno — leia-se, do Estado-nação —, se aperfeiçoou, através dos tempos. Isso não ocorreu de forma natural, diga-se, espontânea, seja pela clarividência ou pela benevolência dos reis. A evolução das formas de organização e racionalização do Estado evoluíram, principalmente, impulsionadas pelo avanço das pressões sociais. Quando governantes são bem-sucedidos, fazem melhorar as condições do povo e o número de habitantes cresce. Esse crescimento causa pressões sociais, por meio de diversas demandas para a melhoria de vida dos que estão sob o jugo do rei. E, por mais forte que seja seu exército, por maior que seja sua capacidade de controle sobre a população e

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seu território, o governante precisa atender aos seus súditos, os que constituem a sociedade. Assim, o Estado moderno reordenou-se, através dos séculos, até chegar às formas democráticas que conhecemos hoje e cuja legitimidade está assentada na vontade um tanto desordenada da Sociedade civil.

Portanto, o poder do soberano é legítimo na medida em que está respaldado pela concordância da sociedade civil. Somos nós, que constituímos a Sociedade, que outorgamos/conferimos o poder soberano ao Estado. O Estado é nossa instituição política maior, responsável por manter a coesão da vida em sociedade. Nessa perspectiva, é simples compreender as razões de seu surgimento. Ele é o resultado da conveniência que os homens entenderam ser de organizar e de racionalizar o convívio social. Portanto, precisamos entender, desde já, que a convivência entre seres humanos e os diversos grupos sociais que se formam em um mesmo espaço territorial, precisam estabelecer regras. Tais regras precisam expressar as próprias necessidades humanas vitais e precisam ser asseguradas por alguém. Este “alguém” é o Estado. Portanto, o Estado é o guardião das regras no interior de um território delimitado, dentro do qual vive uma população que lhe confere autoridade para exercer o poder em nome dessa sociedade.

Entre as fartas e esclarecedoras definições que existem sobre o Estado, lancemos mão de um dos autores clássicos da Sociologia, profundo estudioso do tema. Trata-se da concepção do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), segundo a qual “o Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima. Ele é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território" (WEBER, 1982, apud FREUND, 1987, p. 159). Assim, encontramos a ideia de que o Estado é necessariamente constituído por uma relação de dominação entre homens. Isto é, são homens que dominam outros homens através do uso exclusivo e monopolizado da violência, respaldada em lei, que a usam como ameaça ou de fato para manter a ordem social. O detalhe é que esse uso é, segundo o autor, legítimo e tal legitimidade está assentada nos outros homens, nos comandados, que constituem a Sociedade (WEBER, 1982 apud FREUND, 1987, p. 160).

Mas o que entendemos por sociedade merece uma resumida advertência. Não se trata, simplesmente de um conjunto aglomerado e amorfo de indivíduos. Ou, como diria outro clássico da sociologia, o francês Emile Durkheim (1858-1917), a sociedade não é a simples soma de indivíduos, mas o seu amálgama. Embora possamos ver a sociedade como uma composição de indivíduos cuidando de suas vidas, esse cuidar da vida é algo intrincado em rede de relações de dependência. Essas redes se tornam tão mais complexas e numerosas quando consideramos a sociedade na modernidade, que é também o tempo de surgimento do Estado moderno. Nessa perspectiva, temos que considerar o conceito de sociedade civil, já utilizado por autores do século, por perceber que a sociedade que respalda o Estado é um composto coletivo complexo.

Por mais despóticos que sejam seus governos, enquanto durarem, sua legitimidade estará respaldada nessa sociedade civil. E quanto mais avançamos

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na história, ainda que com recuos, evoluímos para essa condição de que o poder só é soberano se for legítimo e só é legítimo se assentado na vontade da sociedade civil. Esta sociedade civil é, por sua vez, entendida como o resultado de uma sociedade complexa. Do ponto de vista politológico, isso implica admitir que a relação entre Estado e Sociedade não é simplesmente de uma relação de mando e obediência. É sim uma relação entre um ente legitimado pela Sociedade civil que, por sua vez, é constituída por indivíduos e grupos sociais que constituem papéis e funções e status. Esses papéis são exercidos por pessoas e são instituídos de poder. E esse poder conferido é legítimo na medida em que tais papéis e funções funcionem de maneira interdependente e cumpram a necessidade geral dos indivíduos em sociedade: contribuir para a convivência em sociedade.

Essa é a característica geral do que entendemos por sociedade civil, isto é, uma sociedade que, ao longo dos tempos, se fortalece através das instituições que cria e que se refletem nos objetivos gerais do Estado guardião. A ideia de sociedade civil está em oposição, portanto, a simples ideia da soma de indivíduos. Para o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), a sociedade civil é uma sociedade organizada e assentada na lei que ela institui, através do Estado. Essa ideia se opõe ao estado de natureza dos seres humanos, isto é, de uma simples soma de indivíduos movidos por seus instintos, de todos contra todos. Ao contrário, é uma sociedade e é civil na medida em que todos, com as exceções de sempre, se percebem constrangidos em favor de objetivos comuns, coletivos.

Nessa perspectiva de Kant, que encontramos em vários formuladores dos conceitos de Sociedade e Estado, está o gérmen da ideia de contrato social. É a ideia que explica filosoficamente porque o Estado existe. Embora não haja uma única definição, todas estão contidas na ideia maior, que se trata de um acordo entre os homens sobre um ente paralelo à sociedade que eles desejam constituir deve existir para servir aos objetivos gerais dessa sociedade. É importante que compreendamos essa ideia, porque foi a principal ideia-força utilizada na filosofia política moderna para explicar o surgimento do Estado. Por extensão, é preciso insistir na força das ideias. Ideia como essa continua implícita nas formulações da Ciência política contemporaneamente, mesmo que raramente seja mencionada. É mais que uma ideia, é um paradigma, a partir do qual, tudo ao que ela se refere, passa a se orientar reflexivamente e partir dela ou no entorno dela.

Assim, é a necessidade de uma ordem social que é necessária a fim de que os indivíduos possam viver em relativa harmonia. Os indivíduos entram em consenso de que não é possível viver em sociedade sem que uma ordem política, um conjunto de regras de convivência seja estabelecida e que seja seguida pelos indivíduos que compõem essa sociedade. E a garantia de que essa vontade geral dos indivíduos seja realmente obedecida depende do estabelecimento de um poder soberano que represente a todos e que seja o guardião dessas regras, estimulando e ou constrangendo os indivíduos a cumpri-las. A denominação que se dá a esse acordo é o que conhecemos por contrato social, em que os indivíduos abrem mão de seus interesses mais particulares e de seus instintos em favor de um interesse coletivo, isto é, daquilo que a maioria tem em comum de interesses

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e que precisa ser respeitado por todos para que a convivência em sociedade se torne possível. Isso é o contrato social e quem o estabelece é a sociedade civil.

3 O CONTRATO SOCIAL: ESTADO DE NATUREZAE SOCIEDADE

Fruto da evolução da história, essa sociedade civil fomos nós e foram nossos antepassados, geração a geração, que constituímos. Da forma como a conhecemos e nela vivemos hoje, ela é fruto da evolução da história e é hoje uma sociedade empoderada, cada vez mais. Esse empoderamento é o resultado histórico das pressões, das expressões das demandas dos indivíduos ao longo do tempo que, como dissemos, desembocam nas democracias, equilibrando e tornando sempre mais complexas e intermediadas as relações entre o Estado e a Sociedade. Nesse sentido, é possível afirmar: esse movimento histórico tem produzido desde a sua origem, uma espécie de deslocamento do centro de poder, para uma dispersão do poder, isto é, novas formas de organização do poder baseadas na ideia mestra da descentralização, paradigma do século XXI, que será discutida lá na frente. O resultado disso é o Estado democrático e de direitos tal qual o conhecemos, versão atual do contrato social que um dia os homens firmaram entre si e que não tem data de vigência para acabar.

FIGURA 3 - A GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS JUSTIFICA O ESTADO SOBERANO

FONTE: <https://baierle.me/2016/04/07/la-guerra-de-todos-contra-todos/>. Acesso em: 29 mar. 2019.

Seja como for e vier a ser, o Estado é, bem no fim, o resultado de um contrato social respaldado pelos indivíduos em sociedade. Esse respaldo social está explicitado na obra dos três mais conhecidos contratualistas da teoria política moderna. Não são os únicos, mas os mais conhecidos e consagrados acerca desse conceito. São eles, Thomas Hobbes (1588-1679). John Locke (1632-1704) e Jean Jacques Rousseau (1712-1778). O site Sabedoria Política faz a correta lembrança de outros nomes que de algum modo celebraram a ideia, entre eles, J. Althusius (1557-1638), Baruch Spinoza (1632-1677) e Samuel Pufendorf (1632-1694). Que você tenha, afortunadamente, as oportunidades de lê-los. De todo modo, estudaremos as ideias dos mais conhecidos sobre a ideia do contrato social.

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Nessa, perspectiva, é importante a devida atenção às abordagens interpretativas a seguir, pois elas pretendem demonstrar aos que aqui leem, quanto as respectivas concepções sobre o conceito de contrato social e dos conceitos de Estado soberano e Sociedade civil marcaram o pensamento político e o quanto elas estão e estarão, contemporaneamente e no futuro, presentes na concepção da ordem política ocidental, nas entrelinhas das constituições de cada país, na cabeça de juristas e legisladores, nos permitindo compreender, ainda que introdutoriamente, os fundamentos da nossa ordem política que invariavelmente afeta nossas vidas.

4 HOBBES E O ABSOLUTISMO – O ESTADOACIMA DE TODOS

Thomas Hobbes nasceu em 5 de abril de 1588, na Inglaterra. Estudou em Oxford, onde passou a maior parte do tempo a ler livros de viagem e estudar cartas e mapas, e onde se formou em 1608. Sua trajetória intelectual reflete a observação atenta ao cenário político de seu país, controlado pela monarquia dos Tudor, cujos passos acompanhava atentamente. Sua preocupação é com a forma de condução do governo monárquico em relação à ordem interna e à vulnerabilidade da Inglaterra às invasões de outras potências. Notadamente, seu país vivia a ameaça de invasão pelas forças da Espanha, potência da época. Tal perigo iminente lhe atormenta e impulsiona todo o seu trabalho intelectual de grande criatividade e perspicácia. Na mesma perspectiva do italiano Maquiavel, Thomas Hobbes está preocupado em compreender o exercício do poder monárquico e fundamentar as bases de uma proposta de governo que torne seu país invulnerável à desordem interna e às invasões externas.

Tendo tido a oportunidade de viajar à Itália e França, o filósofo inglês conheceu duas importantes personagens da ciência de seu tempo. Encontrou-se com Galileu Galilei e com René Descartes, cuja ciência e filosofia o impressionavam. Em Paris, refugia-se depois de ter publicado De Cive (O cidadão). Posteriormente, escreveu sua obra-prima, Leviatã ou matéria, forma e poder da comunidade eclesiástica e civil, um estudo filosófico sobre o absolutismo político que sucedeu a supremacia da Igreja medieval. A obra foi publicada no ano seguinte, 1651, englobando todo o seu pensamento. No final do livro colocou que os súditos tinham o direito de abandonar o soberano que não mais os podia proteger em favor de um novo soberano que pudesse fazê-lo. Esta posição foi considerada como ofensa ao herdeiro Carlos II, exilado em Paris enquanto a república sucedia a Carlos I na Inglaterra. Hobbes foi olhado como oportunista e repudiado pelos exilados de Paris, ao mesmo tempo que o governo francês o tinha sob suspeita devido a seus ataques ao papado.

Em fins do mesmo ano de 1651, Hobbes voltou à Inglaterra procurando estar em paz com o novo regime. Tendo retornado à Inglaterra aos 63 anos Hobbes por mais vinte anos manteve sua energia e combatividade, envolvendo-se em várias polêmicas no campo científico e religioso. Hobbes morreu em 1679, famoso no exterior, apesar de detestado por muitos inimigos na Inglaterra. Sua

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reputação foi logo superada pela de John Locke. Somente no século XVIII seu pensamento ganhou nova importância. É hoje considerado um dos grandes pensadores políticos da Inglaterra.

DICAS

O Leviatã, de Hobbes, é considerada uma das mais importantes obras da filosofia política de todos os tempos. Ali está a mais notável justificativa sobre a necessidade do Estado forte e centralizado.

A concepção do Estado como ente soberano, literalmente acima de todos, atinge a sua plenitude na teoria política do contratualista e filósofo inglês Thomas Hobbes. Se não está entre os autores mais celebrados da teoria política moderna, por outro lado, está entre os mais reconhecidos pela sua influência no pensamento político ocidental. Acontece que a obra de Hobbes está superficialmente associada ao pensamento autoritário, quando não totalitário, a respeito da concepção do Estado, portanto, da ordem política e da relação entre o Estado e a Sociedade. Intimamente associada a tal impressão, está a incômoda percepção antropológica do filósofo inglês sobre a natureza humana. Trata-se da conhecida premissa de que os homens são, por natureza de sua espécie, egoístas e que, deixados à sua natureza, tornam-se inimigos entre si. É esta a concepção antropológica que fundamenta toda sua teoria política, traduzida na famosa frase de que o homem é o lobo do homem e, portanto, somente um Estado forte, centralizador e com autoridade soberana, pode impedir a guerra de todos contra todos.

A obra mais emblemática de Hobbes é, também, uma das mais referenciadas de todos os tempos no pensamento político ocidental. Trata-se de Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Ali estão as ideias do contrato social, do poder soberano e da relação entre o Estado e a Sociedade, fundamentadas na sua concepção antropológica do homem egoísta. Originalmente, o Leviatã é uma figura bíblica do livro de Jó, do Velho Testamento. Ele aparece no diálogo entre Deus e seu discípulo, como monstro marítimo cuja grandiosidade física e força descomunal, criatura divina, seria indestrutível, salvo que o próprio criador o destruísse. Implacável. Na capa original da obra de Hobbes, de 1651, muitas vezes reproduzida nas capas de incontáveis edições até hoje, o Leviatã aparece como a figura de um homem, representando o rei soberano, cujo organismo e força são constituídos por todos os homens do reino. A ideia da alegoria, portanto é comparar a força indestrutível do monstro bíblico à força do Estado soberano.

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No interessante sitio eletrônico do Portal dos Mitos, aparece a seguinte passagem bíblica:

O Livro de Jó, capítulos 40 e 41, aponta a imagem mais impressionante do Leviathan, descrevendo-o como o maior (ou o mais poderoso) dos monstros aquáticos. No diálogo entre Deus e Jó, o primeiro procede a uma série de indagações que revelam as características do monstro, tais como "ninguém é bastante ousado para provocá-lo" ou "Quando se levanta, tremem as ondas do mar, as vagas do mar se afastam. Se uma espada a toca, ela não resiste, nem a lança, nem a azagaia, nem o dardo. O ferro para ele é palha, o bronze pau podre".

FONTE: <http://portal-dos-mitos.blogspot.com/2012/09/leviata.html>. Acesso em: 29 mar. 2019.

5 HOMEM, LOBO DO HOMEM

A ideia geral que Thomas Hobbes expressa para justificar o poder soberano do Estado é a seguinte: os homens em seu estado de natureza agem de modo egoísta, já que o seu instinto de sobrevivência os impulsiona instintivamente a buscar a autoproteção. Assim, os homens convivendo no estado de natureza, tornam-se naturalmente inimigos e destrutivos. Mas existe um paradoxo, e qual é? Acontece que, ao mesmo tempo em que são movidos por esse instinto egoísta, os homens percebem que viver em sociedade é melhor do que viver isoladamente. O mesmo instinto de sobrevivência resulta numa predisposição egoísta e agressiva, enquanto também o leva a viver em grupo, em busca de segurança. É claro que essa dicotomia causa aos homens uma constante aflição, afinal, é necessário resolver essa oposição interna e ao mesmo tempo coletiva. Se, paralelamente, vivo em sociedade porque isso me torna menos vulnerável à agressão de invasores longínquos, também não me livro da ameaça constante de que alguém próximo me apunhale pelas costas.

Homo lúpus homini: como resolver a equação? Ah, Deus? Deus está ocupado com outras coisas e, afinal, para que serve o livre arbítrio, senão para ser utilizado? Esta é a posição de um pensador moderno. O pensador moderno é um humanista. E o que é um humanista? É todo aquele que acredita na capacidade do ser humano em compreender o mundo a sua volta e ordená-lo segundo seus interesses e sua vontade. Mesmo pressupondo a onipotência divina, e justamente por isso, é natural se perguntar: por que, afinal, Deus não resolve tudo isso? Parece-nos simples, ora: se for por intervenção divina que os homens terão resolvidas as suas celeumas interpessoais, por que então o livre arbítrio nos foi conferido? Seria para decidir por nossas escolhas afetivas? Não. Estas em geral cedem aos impulsos das paixões, e para isso já temos o coração. O livre arbítrio serve, justamente, para resolver nossos problemas cotidianos, que se expressam na convivência com os outros.

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Na medida em que reconhecemos nossos instintos de sobrevivência, nos igualamos às outras espécies animais e vegetais. Na natureza, como na vida em sociedade, as disputas por poder e os conflitos daí oriundos fazem parte da convivência. A busca pela sobrevivência e a necessidade de proteção é inerente aos serves vivos. Não obstante, a convivência também é a regra. Como então resolvemos esta equação? Admitimos que egoístas somos, não obstante reconhecemos o convívio com os outros é melhor proteção do que vivermos isolados. Assim, necessariamente estabelecemos e ou concordamos com regras de convivência. Ou ainda, simplesmente nos submetemos às regras que aqueles que alcançam o poder estabelecem. E assim fazemos porque não há alternativa melhor. Submetemo-nos a um poder soberano porque concordamos, mesmo a contragosto de nossos instintos egoístas, que não há melhor alternativa. Assim legitimamos o poder soberano. É Deus no céu e o Estado na terra.

Thomas Hobbes conferiu ao Estado uma importante alcunha, denominando-o de o “Deus mortal”.

Nossa explicação vulgarmente teológica da teoria política de Thomas Hobbes procura resumir a própria teologia política do autor em questão. Sua obra prima, o Leviatã é um exímio tratado sobre o contrato social em que o filósofo inglês justifica a necessidade do poder soberano do Estado assentando sua explicação na própria Bíblia. No contexto do século XVII, era conveniente e prudente lançar mão de explicações assentadas no caráter sobrenatural a respeito de algo tão humano, demasiadamente humano como a política. Não há receios em se admitir que é uma obra de gênio. Thomas Hobbes conferiu ao Estado uma importante alcunha, denominando-o de o “Deus mortal”. Isso reflete bem a intenção de transpor a ideia de um poder soberano do mundo divino para o mundo terreno. Assim, como já dissemos, o poder soberano do Estado seria uma imitação do poder de Deus, divinamente autorizada. Num universo ainda dominado pelo absolutismo religioso, a justificativa de um poder absoluto na terra só seria mesmo aceita, por convencimento, através de uma explicação teológica que mantivesse a vinculação simbólica entre religião e política, única maneira de convencer o povo e garantir a estabilidade.

Mas não nos enganemos: Hobbes é um homem do seu tempo, um humanista e, subjacente à sua teologia política, está a firme intenção de mostrar aos homens que o domínio da política não pertence ao sobrenatural. Pertence aos homens, às suas necessidades sociais e às suas vontades de poder e mando. A explicação teológica é apenas uma conveniência a fim de convencer o leitor sobre a natureza mundana da política. Ali está presente uma habilidosa conexão discursiva entre os conceitos religiosos e os conceitos políticos e jurídicos, e estão conectadas noções de pecado e crime, de moral e direito, de código jurídico e Bíblia (CASTELO BRANCO, 2004, p.40apud FERREIRA et al. 2011, p. 82). Assim:

Demonstrando que o significado do conceito de secularização no Leviatã pode ser pensado como a conversão de um Deus Todo-poderoso na figura de um soberano intramundano onipotente cujas mãos detém o bastão espiritual do controle da manifestação externa

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das crenças e o poder coercitivo da espada [...], pois a união dos poderes invisíveis aos poderes visíveis garantia a estabilidade e previsibilidade dos governos de domínios temporais.

Com o mesmo realismo humanista que impulsionou as reflexões do florentino Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes conferiu explicação racional e terrena à política. Apesar do cunho teológico da explicação, o autor retira qualquer justificativa divina para as coisas mundanas da política, revelando a crueza das relações de poder, demonstrando-as não como a vontade divina, mas fruto do livre arbítrio humano. Política é o resultado das disputas de poder, assim como o Estado é uma necessidade percebida pelos homens e por eles criado. Como sugere, mais uma vez, Hobbes busca a salvação dos homens neste mundo no interior de um corpo político. O que salva os homens, portanto, não é a proteção divina, mas a boa obra política, através do Estado. Na dupla expressão do filósofo inglês, se fora do Estado “o homem é o lobo do homem”, no interior do Estado ele adquire o caráter de cidadão, onde o “homem é um deus para o homem” (HOBBES, 1998, p. 3).

E, por último, ainda cabe dizer que essa antropologia pessimista, isto é, a visão de que o homem é um egoísta de natureza destrutiva. Isso fez com que Hobbes firmasse o caráter conservador e centralizador do Estado em defesa da vida, isto é, da segurança. Conquanto admita que os homens apreciem a liberdade, sabem que ela não ao tem valor se não estiver acompanhada da proteção à vida. Nessa perspectiva, o esforço intelectual de Hobbes é entendido, por autores contemporâneos, como uma obra em defesa do Estado absolutista, aquele em que o poder deve estar concentrado na figura do rei. A concentração do poder no Estado seria, para Hobbes, a melhor garantia de controle sobre a natureza egoística dos homens. Seria a forma mais segura de assegurar a paz, condição que Hobbes sempre considerou mais almejada do que a liberdade.

Por consequência dessa posição, Hobbes é tido como fonte inspiradora e ou justificadora dos regimes restritivos às liberdades individuais. Assim, atribui-se a ele a fonte moral a justificar as experiências autoritárias. Naturalmente, é sempre útil considerar o contexto de cada época e as circunstâncias que levam os autores a se posicionar. É o que nos advertem os cientistas sociais, incluindo os historiadores. A Inglaterra de Hobbes vive situações de instabilidade interna e ameaça externa. Ainda assim, o autor não se propõe simplesmente a admitir isso. Ele está, no final das contas, filosofando sobre uma suposta e provável natureza humana, que não tem a ver com o contexto social e histórico, mas, literalmente, com a natureza humana e atemporal. Trata-se de uma discussão riquíssima e longe de um final conclusivo. Mas é importante que percebamos que, séculos depois, Hobbes continue sendo um pensador influente. E sempre que nos deparamos com críticas mais ou menos superficiais à democracia e suas insuficiências, existe uma possibilidade de que elas convirjam para os pressupostos hobbesianos do Estado forte e centralizado.

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IMPORTANTE

Extraído do sítio eletrônico denominado Portal da História, na seção Teoria Polícia, podemos ler o seguinte trecho do Capítulo 13, da obra Leviatã:

“O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os votos), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com a sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a consequência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento dos seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza que foram expostas nos capítulos décimo quarto e décimo quinto”.

FONTE: <http://www.arqnet.pt/portal/teoria/leviata_17cap.html>. Acesso em: 29 mar. 2019.

Afinal, é isso. Estamos abordando as principais características e a influência de um pensador cuja obra inspirou constituições e regimes de governos. Sua visão pessimista da natureza humana é também denominada de realismo político, mesmo rótulo atribuído a Maquiavel e que permeia o imaginário da teoria política moderna e ocidental. Quando um autor, como Max Weber, já no século XX, define o poder do Estado como “o monopólio exclusivo do uso da força”, ali está a expressão do pensamento de Hobbes. Sua justificativa do Estado forte e soberano, isto é, acima de todas as forças tem este significado. A rigor, sua retórica do medo justifica as medidas de segurança, fazendo com que a liberdade ceda ao império da proteção à vida. Nessa perspectiva, trata-se de admitir que o Estado fora criado para isso: garantir a proteção dos indivíduos que, em última instância, devem abdicar de parte de sua liberdade em troca da segurança de todos.

6 LOCKE E O LIBERALISMO

John Locke foi um filósofo inglês e está entre os principais nomes da teoria política moderna no Ocidente. Nasceu em 1632, em Wrington, Somerset, Inglaterra, e morreu em 1704, em High Laver, Essex. Ele é reconhecido como o fundador do empirismo, sendo de sua autoria a primeira formulação sistemática em defesa do liberalismo político. O Iluminismo europeu recebeu importantes contribuições deste autor, tanto quanto foram caras as suas ideias para a Constituição dos Estados Unidos, de 1776. Seu pensamento filosófico é assemelhado aos fundadores da ciência moderna, especialmente a Robert Boyle, a Isaac Newton e outros membros da Royal Society inglesa. Fundamental é destacar que a sua politologia está fundamentada no pressuposto geral, segundo o qual, a constituição da Sociedade humana é o resultado de um contrato social entre os cidadãos e na importância da tolerância, especialmente em questões religiosas. Muito do que ele defendia no campo da política foi aceito na Inglaterra

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após a Revolução Gloriosa de 1688-89 e nos Estados Unidos após a declaração de independência do país em 1776.

A obra mais famosa de John Locke denomina-se Ensaio sobre o entendimento humano (1689). Ali, o autor desenvolve a sua teoria sobre como os seres humanos formulam suas ideias e, por decorrência, como se processa a origem e o desenvolvimento do conhecimento humano através da experiência. O entendimento que temos do conceito de empirismo está justamente no pressuposto de que o conhecimento não é uma dádiva, ao contrário, é fruto da experiência humana, isto é, a partir do contato dos seres humanos com os objetos, com a realidade. Do ponto de vista da teoria política, sua obra mais importante denomina-se Dois Tratados sobre o Governo (primeira edição publicada em 1690), na qual ele defendeu uma teoria da autoridade política baseada em direitos e liberdades individuais naturais e no consentimento dos governados. Essa é a origem do contrato social em Locke, em que o poder político do Estado só é legitimo se assentado no consentimento dos governados.

IMPORTANTE

John Locke é considerado o “pai” do liberalismo, pela defesa intransigente da liberdade individual, da propriedade e da vida. A propriedade privada seria a condição necessária a todo o indivíduo para o exercício da liberdade e preservação de sua vida. O estado só seria legítimo se garantisse aos indivíduos a proteção a esses direitos. Veja-se que a propriedade privada adquire aí um valor fundamental.

No prefácio de Dois Tratados sobre o Governo, o pensador inglês deixa explícito que as duas partes dessa obra possuem uma sequência natural e que no todo constituem uma defesa da Revolução Gloriosa (1688-1689). Conhecida também como a Revolução não sangrenta, foi o movimento que destronou o rei católico Jaime III, da Dinastia Stuart, tendo sido substituído pelo protestante Guilherme de Occam. É importante compreender que o protestantismo, como um movimento religioso que encarna o espírito humanista e moderno de seu tempo. Por quê? Porque reconhece que a grande dádiva divina é o livre arbítrio, através do qual os homens têm o poder de compreender as coisas terrenas – o que inclui a política – e reordená-las segundo sua vontade e capacidade. John Locke escreveu esses dois tratados para refutar as teses de Robert Filmer (1588-1653). Em Patriarca, ou o poder natural dos reis, Filmer procura justificar o poder absoluto dos reis em quaisquer sejam as circunstâncias, já que isso seria resultado direto da vontade divina. Para John Locke, ao contrário, o poder não estava assentado na vontade de Deus e sim no consentimento de seus filhos, no uso do livre arbítrio.

Não obstante, a teoria política de Locke foi orientada por seus pressupostos religiosos. Ao longo de sua vida ele demonstrou sua crença na existência de um

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Deus criador e a noção de que todos os humanos devem servi-lo em virtude desse vínculo original de vida. Deus criou os humanos para um determinado propósito, a saber, viver uma vida de acordo com suas leis e assim herdar a salvação eterna. Mais importante ainda para a filosofia de Locke, Deus deu aos humanos apenas aquelas habilidades intelectuais e outras necessárias para alcançar este objetivo. Assim, usando a capacidade da razão, os homens são capazes de descobrir, por si mesmos, que Deus existe. Por consequência, são capazes de identificar suas leis e os deveres que eles acarretam; estão aptos a adquirir conhecimento suficiente para realizar seus deveres e construir uma vida bem-sucedida. É exatamente a definição do livre arbítrio que está em questão. Assim, os humanos podem reconhecer que algumas ações, como deixar de educar os filhos ou descumprir contratos, são atitudes moralmente repreensíveis e contrárias à lei natural, que é idêntica à lei de Deus.

A estrutura cristã essencialmente protestante da filosofia de John Locke significava que sua atitude em relação ao catolicismo romano seria sempre hostil. Ele rejeitou a alegação de infalibilidade papal, afirmando que não haveria como comprová-la. Com essa obstinada crítica aos vícios da Igreja tradicional, encarnava o espírito de seu tempo e ajudava a fomentar, com suas ideias, uma cultura de valorização dos indivíduos, fazendo da sua Inglaterra o berço do liberalismo. Como um humanista de seu tempo e amante da liberdade, Locke temia as dimensões políticas do catolicismo como uma ameaça à autonomia inglesa, especialmente depois que Luís XIV, em 1685, revogou o Edito de Nantes, que concedia liberdade religiosa para os huguenotes, que eram protestantes.

FIGURA 4 - JOHN LOCKE

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/ee/John_Locke._Coloured_stipple_engraving_by_J._Godby_after_G._Wellcome_V0003673.jpg>. Acesso em: 16 abr. 2019.

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7 O PRIMEIRO TRATADO

Como afirmamos anteriormente, John Locke dirigiu suas críticas ao principal formulador da teologia política em defesa do monarca, como fonte do poder absoluto a ele atribuído por Deus. O primeiro tratado significou uma dedicação exclusiva à refutação de Patriarca. Ali, Robert Filmer defendeu a teoria do direito divino dos reis. Assim, a autoridade de cada rei seria o resultado de uma vontade divina e assim sancionada. Nessa elucubração, o rei seria descendente direto de Adão, o primeiro homem, o primeiro filho de Deus. Por ser o primogênito de Deus, Adão seria, portanto, o herdeiro natural do reino de Deus na terra e seus sucessores seriam seus descendentes diretos, com direito ao trono. De acordo com a Bíblia, o primeiro rei é o pai da humanidade. Locke afirma que a doutrina de Filmer desafia o "senso comum". O direito de decidir pela primeira subvenção de Adão não poderia ser apoiado por qualquer registro histórico ou qualquer outra evidência, e qualquer contrato que Deus e Adão firmassem não seria obrigatório para descendentes remotos, milhares de anos depois, mesmo que uma linha de descendência pudesse ser identificada. Sua refutação foi amplamente aceita e a teoria do direito divino dos reis deixou de ser levada a sério na Inglaterra depois de 1688.

DICAS

O Instituto Liberal é um sítio de buscas brasileiro bastante útil sobre o liberalismo, onde podem ser encontrados livros e artigos em PDF sobre o tema homônimo. O endereço eletrônico é https://www.institutoliberal.org.br/livros-online/.

8 O SEGUNDO TRATADO

O segundo tratado inicia com a lembrança do que for apresentado e defendido no primeiro tratado. Na sequência, Locke vai direto ao “fígado” de seu interlocutor oponente, com o firme propósito de demonstrar que o contrato social que legitima o poder do soberano só pode ser enquanto tal se originário do poder dos homens em comunidade. Nessa perspectiva, trata-se da mesma premissa a justificativa da existência e legitimidade do Estado por parte de seu conterrâneo Thomas Hobbes. Isto é, o poder é político e não divino, portanto, obra da vontade e consentimento dos homens. Veja-se, na sequência, como John Locke inicia sua argumentação:

O ensaio anterior mostrou que: 1º) Adão não tinha, nem por direito natural de paternidade nem por

específica doação de Deus, tal autoridade sobre seus filhos ou domínio sobre o mundo, como se pretendeu.

2º) Se ele os tivesse, ainda assim seus herdeiros não teriam direito a eles. 3º) Se seus herdeiros tivessem, na ausência de uma lei da natureza ou lei

específica de Deus que permita identificar qual o herdeiro legítimo

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em cada caso particular, o direito de sucessão, e consequentemente o de governar, não poderia ser determinado com certeza.

4º) Mesmo se ele tivesse sido determinado, não se sabe mais qual a linhagem mais antiga da posteridade de Adão e, depois de tanto tempo, entre as raças humanas e as famílias do mundo, nenhuma está acima das outras para pretender ser a mais antiga e, portanto, aspirar ao direito de herança. Creio que, uma vez estabelecidas todas essas premissas, é impossível aos governantes que vivem atualmente sobre a terra tirar qualquer proveito ou derivar a menor sombra de qualquer autoridade daquela que se supõe a fonte de todo o poder, ‘os direitos de prerrogativa privada de Adão e sua autoridade paterna’. Assim, a menos que se queira fornecer argumentos àqueles que acreditam que todo governo terrestre é produto apenas da força e da violência, e que em sua vida em comum os homens não seguem outras regras senão as dos animais selvagens, em que o mais forte é quem manda, e assim justificando para sempre a desordem e a maldade, o tumulto, a sedição e a rebelião (coisas contra as quais protestam tão veementemente os seguidores dessa hipótese), será preciso necessariamente descobrir outra gênese para o governo, outra origem para o poder político e outra maneira para designar e conhecer as pessoas que dele estão investidas, além daquelas que Sir Robert Filmer nos ensinou (LOCKE, 2007, p. 264).

A magnífica importância das ideias políticas do filósofo inglês setecentista está, em boa medida, sintetizada na sequência desse trecho do argumento de seu Segundo Tratado. Ali, John Locke termina o primeiro capítulo de sua digressão acerca do poder político como sendo

o direito de fazer leis, aplicando a pena de morte, ou, por via de consequência, qualquer pena menos severa, a fim de regulamentar e de preservar a propriedade, e de empregar a força da comunidade, na execução de tais leis e em defesa da riqueza comum contra a agressão do estrangeiro, e tudo isso apenas para o bem público (LOCKE. 2007, p. 71).

Muito do restante do Tratado é um comentário sobre este parágrafo. Nessa perspectiva, Locke afirma sua convicção de que o poder soberano só é legítimo na medida em que esteja constitucionalmente comprometido com a defesa dos direitos naturais dos homens. Perceba-se, nas mencionadas palavras, a ênfase no emprego da “força da Comunidade” a respaldar as leis, em defesa do que considera fundamental, isto é, a propriedade privada e a vida dos cidadãos no interesse público.

A ideia da “força da comunidade” é central na obra do liberal John Locke. Normalmente, os intérpretes e narradores da obra desse contratualista e jus naturalista inglês, enfatizam sua defesa da liberdade e da autonomia do homem. O que escapa a esses intérpretes é a percepção mais profunda do pensamento desse autor, qual seja: sua ideia de que a Sociedade e suas instituições são uma construção humana em coletividade, isto é, em comunidade. É no exercício da liberdade em comunidade que homens e mulheres, aos trancos e barrancos, e no exercício do enfrentamento de seus conflitos, paixões, interesses e vontades, que se constrói aquilo que de algum modo outro contratualista, o francês Jean Jaques Rousseau chamou de “a vontade geral”. Esses autores, denominados por

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nós de contratualistas, estão empenhados em demonstrar, como faz Locke, que a Sociedade, a política, as leis e o Estado, seu guardião, tudo é o resultado do convívio de homens e mulheres em comunidade.

DICAS

FONTE: <http://twixar.me/YDRK>. Acesso em: 29 mar. 2019.

A “força da Comunidade” é uma ideia que aparece muito bem em um dos maiores clássicos do western, intitulado O homem que matou o facínora, na versão brasileira. É um clássico de 1962, dirigido por John Ford e estrelado por outros três “monstros” imortais do cinema: John Wayne, James Stewart e Lee Marvin, além de Vera Miles, entre outros.

O Estado, portanto, é o resultado de um contrato, uma convenção, entre os seres humanos, de estabelecer as regras de convivência entre eles. O mundo não é dado, é construído a duras penas, requerendo a constante vigilância dos homens de bem. Em outras palavras, o mundo natural dos homens deve ceder lugar à Sociedade civil. Somente ali, de fato, os direitos naturais dos homens à segurança, à liberdade e à propriedade podem realmente ser resguardados da violência instintiva, que também lhes é inerente, como o próprio Hobbes já avisava.

Através de alguns trechos retirados de uma publicação no jornal Correio da Cidadania, vejam o que comenta o Professor de Filosofia da PUC-SP, Cassiano Terra Rodrigues, sobre o filme O Homem que matou o facínora:

O filme tem uma típica estrutura mítica; [...] (onde) encontramos três personagens principais: Ransom Stoddart, (James Stewart), o mesmo narrador do início, que conta como chegou à pequena e Isolana Shinbone numa diligência, jovem advogado, ainda antes da ferrovia; Liberty Valance (Lee Marvin), pistoleiro e perigo local; e Tom Doniphon (John Wayne), [...] que logo identificamos como o mocinho. Essas três personagens já foram identificadas na tripartição das potências da alma apresentadas por Platão em sua República. Liberty Valance corresponderia à potência irascível da alma, sede dos desejos ligados ao baixo ventre, às

ATENCAO

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necessidades mais básicas do ser humano, que o levam à busca da satisfação, sem mais, de seus apetites físicos mais imediatos. Liberty Valance, como seu próprio nome parece indicar, representa o desregramento das paixões, a vigência da liberdade irrefreada dos sentidos. Seu exato oposto seriam Ransom Stoddart, o representante da capacidade racional da alma [...], a capacidade humana de raciocinar, de ser lógico e autocontrolado, de estabelecer relações entre meios e fins, e mais, de conhecer os próprios fins. Como advogado, ele representa a lei, na sua generalidade e convencionalidade. Entre eles está Tom Doniphon, dotado de uma nobreza natural, bruta, não lapidada; Doniphon representa a potência anímica timocrática, isto é, a coragem e o senso de dever, que por participar mais da racionalidade, deve vigiar e controlar a falta de medida da irascibilidade; no entanto, permanece uma capacidade de agir, e não de raciocinar. Para Platão, a justiça na alma no ser humano e da sociedade política, só pode acontecer se houver uma ordem harmoniosa entre essas três potências; [...].

No filme [...] entre essas três capacidades anímicas estabelece-se uma relação tensa, de equilíbrio frágil. No filme, parece que a impulsividade e a bruta espontaneidade da coragem brutal jamais deixarão a parte brutal dominar absoluta; no entanto, a mera belicosidade não consegue derrubar a racionalidade, já que esta é protegida pela força da coragem. Ora, dessa forma, o conflito que John Ford nos apresenta pode ser descrito em termos da passagem de um mundo natural de autossuficiência e individualismo nobiliário para um estado civil, uma sociedade formal e legalmente unificada, na qual não tem mais lugar o código de honra segundo o qual a violência é necessária para se manter alguma ordem. Ora, como então passar da vingança à justiça? Em outras palavras, para que os EUA nasçam de fato, é preciso que o Velho Oeste morra.

O conflito entre um estado natural de prevalência das paixões individuais e um estado civil politicamente organizado é tema constante nas teorias políticas da modernidade. Pensemos em John Locke, Thomas Hobbes, Benedito Espinoza e Jean Jacques Rousseau. Em todos esses pensadores, há um forte dualismo: de um lado, o estado de natureza, de outro, o estado político. O mesmo dualismo está presente no filme.

FONTE: : <http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5358:cassiano040111&catid=60:cassiano-terra-rodrigues&Itemid=130>. Acesso em: 29 mar. 2019.

9 O ESTADO DE NATUREZA E O CONTRATO SOCIAL

O entendimento que John Locke tem a respeito do que significa o poder político está inserido em uma dimensão instantaneamente moral. Para o autor, o poder político reside, acima de tudo, no “direito” de fazer leis e aplicá-las para “o bem público”. Esse poder não significa simplesmente a “capacidade” de fazê-lo, mas sobretudo a “capacidade moralmente sancionada de fazê-lo”. A moralidade permeia todo o tecido da Sociedade, e é esse fato que torna a Sociedade legítima. Mais que isso, é esse fato que torna o poder legítimo e soberano, sendo esse o sentido e o fundamento da constituição e do exercício do poder no Estado moderno. Não há, portanto, a menor possibilidade de que o poder seja aceito sem que a sua base institucional e operacional esteja assentada na formação moral da Sociedade. Se o governante, quem quer que seja, ou mesmo as instituições políticas não estiverem em consonância com a moralidade, cedo ou tarde, governos e instituições quedam, sendo legítimo que os indivíduos em Sociedade o façam.

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O relato de Locke da sociedade política é baseado em uma consideração hipotética da condição humana antes do início da vida comunitária. Nesse "estado de natureza", os seres humanos são inteiramente livres. Mas essa liberdade não é um estado de licença completa, porque está dentro dos limites da lei da natureza. É um estado de igualdade, que é em si um elemento central do relato do autor. Em contraste marcante com o mundo de Filmer, não há uma hierarquia natural entre os humanos e sim igualdade. Cada pessoa é naturalmente livre e igual sob a lei da natureza, sujeita apenas à vontade do “Criador infinitamente sábio”. Cada pessoa, além disso, é obrigada a reforçar, assim como obedecer a esta lei. É esse dever que dá aos humanos o direito de punir os infratores.

Todavia, nesse estado de natureza, é também óbvio que colocar o direito de punir nas mãos de cada homem e mulher conduz a consequentes situações de injustiça e violência. Isso pode ser remediado se os seres humanos firmarem um contrato entre si para reconhecer, de comum acordo, um governo civil com o poder de fazer cumprir a lei da natureza entre os cidadãos daquele estado. Embora qualquer contrato seja legítimo, desde que não infrinja a lei da natureza, muitas vezes acontece que um contrato só pode ser executado se houver alguma autoridade humana maior para exigir o cumprimento dele. Decorrência disso é uma função absolutamente primordial da Sociedade estabelecer a estrutura através da qual os contratos legítimos, livremente celebrados, podem ser executados. Essa condição é imperativa, pois a ausência de um ente soberano que represente e garanta a vontade moral da Sociedade torna muito difícil, senão impossível nas sociedades de muitos indivíduos e suas muitas diferenças, de garantir seus direitos naturais no próprio estado de natureza e fora da Sociedade civil.

9.1 PROPRIEDADE

Antes de discutir mais detalhadamente a criação da Sociedade política, Locke fornece um longo relato de sua noção de propriedade, que é de importância central para a sua teoria política. Cada pessoa, de acordo com o filósofo inglês, tem propriedade em sua própria pessoa. Em outras palavras, cada pessoa literalmente possui seu próprio corpo, o que faz surgir o sentimento de propriedade. Outras pessoas não podem usar o corpo de uma pessoa para nenhum propósito sem a devida permissão. Não obstante, é perfeitamente possível adquirir propriedade além do próprio corpo por meio do trabalho, no gozo do livre arbítrio. Ao incluir as suas atividades e o resultado do seu trabalho na Sociedade, os homens transformam e melhoram a Sociedade em que vivem. Dessa forma, adquirem o direito aos frutos desse trabalho. Se a mão de obra transforma um campo estéril em colheitas ou uma pilha de madeira em uma casa, então o produto valioso desse trabalho, as colheitas ou a casa, torna-se uma propriedade. Essa perspectiva de Locke faz dele um precursor da teoria trabalhista do valor, que foi exposta em diferentes formas pelos economistas clássicos do século XIX, como David Ricardo e Karl Marx.

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DICAS

Um excelente livro sobre a propriedade privada é do historiador inglês Richard Pipes. Em seu livro Propriedade e Liberdade, ela oferece uma genealogia histórica sobre o tema. PIPES, Richard. Propriedade e liberdade. Rio de Janeiro: Record, 1999.

Claramente, cada pessoa tem direito ao máximo do produto de seu trabalho que precisa para sobreviver. Mas, de acordo com Locke (2007), no estado de natureza não se tem o direito de acumular produtos excedentes – é preciso compartilhá-los com os menos afortunados. Essa é uma lição de ouro. Deus “deu ao mundo para os homens em comum a condição de aproveitar ao máximo a vida” (LOCKE, 2007, p. 98). A introdução do dinheiro, embora alterasse radicalmente a base econômica da sociedade, seria em si uma contingência, pois o dinheiro não tem valor intrínseco, mas depende apenas da sua utilidade na convenção. Subjacente a essa noção claramente moral sobre a propriedade e o trabalho, está o caráter moderno desse pensamento. Em outras palavras, entenda-se o seguinte: os homens são por direito livres para pensar, decidir e agir racionalmente. O trabalho é a principal forma de exercer esse direito e o fruto do seu trabalho deve ser reconhecido legitimamente como de sua propriedade.

A propriedade é, por sua vez, a forma de os homens reproduzirem seus direitos de liberdade e de preservação de suas vidas, de suas famílias e de sua Sociedade. A propriedade é, portanto, condição inalienável do exercício de sua liberdade e de preservação de sua vida. Sendo considerada essencial, ela faz parte da moralidade da própria Sociedade, constituída por esses homens. E, novamente, vem a lição de ouro: pode-se acumular, mas é preciso igualmente agir em prol dos que necessitam. Trata-se de uma ideia tipicamente protestante e moderna. A ética protestante, convergente com a visão de mundo pequeno-burguesa, está relacionada intimamente com o trabalho e a propriedade. O trabalho passa a ter um valor moral. Não é mais um meio de sobrevivência, mas sim uma forma de demonstrar o amor a Deus. E o aumento das posses também não é mais condenado como apego às coisas mundanas.

Particularmente, em relação ao comportamento do capitalista, lucrar deixa de ser pecado. O pecado era gastar à toa. O que então deve fazer o capitalista temente a Deus? Reinvestir na sua propriedade, aumentando o seu negócio e demonstrando, desse modo, o seu amor a Deus, através do aumento de suas posses, já que esse aumento era fruto de seu trabalho e o trabalho tinha um fundamento moral, exatamente o de demonstrar a gratidão a Deus. Como

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consequência, o capitalista estava também gerando oportunidades para que outros pudessem igualmente demonstrar seu amor a Deus. A principal ideia protestante e burguesa era a de acumular, mas não gastar e sim investir a fim de melhorar de vida, mas sobretudo de demonstrar seu agradecimento a Deus. Portanto, a defesa que John Locke faz da propriedade como fruto do trabalho é uma ideia em perfeita sintonia com a modernidade, influenciada pelo protestantismo que, a sua vez, expressava a visão de mundo burguesa, baseada na liberdade e na propriedade privada.

9.2 ORGANIZAÇÃO DO GOVERNO

Locke retorna à sociedade política no capítulo VIII do Segundo tratado. Na comunidade criada pelo contrato social, a vontade da maioria deve prevalecer, sujeita à lei da natureza. O corpo legislativo é central, mas não pode criar leis que violem a lei da natureza, porque a aplicação da lei natural em relação à vida, liberdade e propriedade é a lógica de todo o sistema. As leis devem aplicar-se equitativamente a todos os cidadãos e não favorecer interesses seccionais particulares, e deve haver uma divisão de poderes legislativos, executivos e judiciais. A legislatura pode, com o acordo da maioria, impor os impostos que são necessários para cumprir os fins do estado – incluindo, é claro, sua defesa. Se o poder executivo falhar em fornecer as condições sob as quais as pessoas podem usufruir de seus direitos sob a lei natural, então as pessoas têm o direito de removê-lo, pela força, se necessário. Assim, a revolução, in extremis, é permissível – como Locke obviamente achava que era em 1688.

O significado da visão de Locke da sociedade política dificilmente pode ser exagerado. Sua integração do individualismo dentro da estrutura da lei da natureza e sua descrição das origens e limites da autoridade governamental legítima inspiraram a Declaração de Independência dos EUA (1776) e as linhas gerais do sistema de governo adotado na Constituição dos EUA. George Washington, o primeiro presidente dos Estados Unidos, certa vez descreveu Locke como "o maior homem que já viveu". Na França também, os princípios lockeanos encontraram expressão clara na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e outras justificativas da Revolução Francesa de 1789.

10 ROUSSEAU E A DEMOCRACIA DIRETA

Jean Jacques Rousseau nasceu em Genebra, na parte francesa da Suíça, em 28 de junho de 1778 e faleceu em 2 de julho de 1778, na França. Foi filósofo, escritor e teórico da política, tendo publicado vários tratados e novelas que inspiraram os líderes da Revolução Francesa e toda uma geração do romantismo nas artes, desde a literatura, passando pela música, até a pintura. Sua concepção antropológica sobre a natureza humana e a relação homem —sociedade tornou-se um paradigma. A ideia de que os homens nascem bons e iguais entre si, mas

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a Sociedade corrompe essa natureza e institui a desigualdade, é fundante para a concepção contemporânea de democracia. Sua perspectiva antropológica impulsionou reflexões, discursos e narrativas, assim como inspirou e justificou movimentos e posições políticas. Paralelamente, permitiu a redefinição sobre o que entendemos deva ser a constituição e o objetivo do Estado moderno. Assim ao estudar as cartas magnas das democracias, a presença de suas ideias é de inevitável percepção.

FIGURA 5 - JEAN-JACQUES ROUSSEAU

FONTE: <https://p0.storage.canalblog.com/08/89/1528208/115376355_o.jpg>.Acesso em: 16 abr. 2019.

Concordam analistas da teoria política que Rousseau foi o menos acadêmico dos filósofos da política moderna e, paradoxalmente, o mais influente deles em certos aspectos. Seu modo de pensar determinou uma espécie de encerramento da Era da Razão. Ele colocou a filosofia política e a reflexão ética em novos patamares. Seu pensamento interferiu, quando não revolucionou, a concepção estética na música, na literatura e na pintura. Por extensão disso, interferiu no comportamento das pessoas e seus estilos de vida, ensinando pais a refletirem sobre a educação de seus filhos, sugerindo formas diferentes de educar. Nessa perspectiva, introduziu a emoção, a amizade e o amor no lugar da educação formal — daí o confronto com a “Era da razão”. Ele também disseminou a atenção à religião entre os que haviam descartado os dogmas religiosos do modo de ver o mundo. Chamou à atenção para a importância da natureza e, sobretudo, foi um advogado da liberdade, que tratou como uma aspiração universal.

Quando Rousseau nasceu, sua mãe morreu no parto. Ele foi, então, educado pelo pai, que o ensinou a acreditar que a cidade de seu nascimento era uma república tão esplêndida quanto fora Esparta ou a antiga Roma. O filósofo suíço nutria também um elevado ego, isto é, uma autoimagem gloriosa de sua própria importância em relação aos outros. Este sujeito egocêntrico tornou-se relojoeiro, mas ascendeu socialmente ao casar-se com uma mulher de família rica. Usando e abusando dos privilégios sociais que a condição de nobreza lhe conferia, teve problemas com as autoridades civis, o que o levou a sair de Genebra para evitar a prisão. Na província de Savoia, Rousseau teve a sorte de conhecer

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sua benfeitora, a baronesa de Warens, que lhe forneceu um refúgio em sua casa e o empregou como seu mordomo. O elevado refinamento e a generosidade dessa mulher lhe possibilitaram uma educação muito instrutiva.

Madame de Warens era uma suíça convertida ao catolicismo que fugiu de seu esposo para Savoia com o filho do jardineiro. Lá, tornou-se missionária especializada na conversão de jovens protestantes. Sua moral intrigava Rousseau, mesmo quando eles se tornaram amantes. Não obstante, tratava-se de uma mulher inteligente e de bom gosto, cuja influência foi decisiva para a triunfante vivência de Rousseau, posteriormente, em Paris. Embora convertida ao catolicismo, a baronesa carregava muito do otimismo sentimental e pueril dos pietistas místicos que foram seus professores em Berna. A concepção de bondade humana que Rousseau refletiu em sua obra vem dessa influência, embora distinta do conservadorismo e do radicalismo daqueles. Aquele jovem em apuros que chegou à casa da baronesa como um tímido aprendiz sem escolaridade alguma, tornou-se, posteriormente um grande filósofo. Sua influência é notável no pensamento político ocidental e está refletido nas cartas constitucionais dos países democráticos, de maneira mais frequente que outros clássicos abordados neste capítulo.

10.1 OS TRABALHOS MAIS CONHECIDOS DO AUTOR

Como parte do que Rousseau chamou de sua própria "reforma" moral, ou melhoria de seu próprio caráter, ele fez uma retrospectiva de sua vida, relembrando muitos dos rígidos princípios que tivera aprendido na infância, em sua Genebra. Em determinado momento da vida, resolveu retornar à sua cidade natal, quando então decidiu repudiar seu catolicismo e buscar a readmissão na igreja protestante que o batizou. Nesse interim, conheceu uma empregada de lavanderia analfabeta chamada Thérèse Levasseur, que viria a ser sua amante. Para surpresa de seus amigos, ele a levou com ele para Genebra, apresentando-a como enfermeira. Embora sua presença causasse alguns murmúrios, Rousseau foi readmitido facilmente à comunhão calvinista, sua fama literária o fez muito bem-vindo a uma cidade que se orgulhava tanto de sua cultura quanto de sua moral.

Rousseau já havia concluído seu segundo Discurso, respondendo a uma pergunta feita pela Academia de Dijon: “Qual é a origem da desigualdade entre os homens e é justificada pela lei natural?” A resposta a esse desafio foi uma obra-prima da filosofia antropológica, isto é, da visão de homem no Ocidente. Ali o autor desenvolve o argumento de que os homens são por natureza bons, mas que desde as suas infâncias passam por sucessivas etapas, através das quais passam da inocência primitiva até chegarem às formas mais acabadas de corrupção moral).

Rousseau inicia seu Discurso sobre a origem da desigualdade diferenciando seus dois tipos, quais sejam, a natural e a artificial. A primeira seria decorrente de diferenças de força, inteligência, enquanto a segunda vem das convenções que governam as sociedades. São as desigualdades do último tipo que ele se propôs a explicar. Adotando o que ele achava ser o método "científico" de investigar

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tais origens, o autor formula uma elucubração em que procura reconstituir as primeiras fases da vida humana na Terra. Ele sugere que os humanos originais não eram seres sociais, mas inteiramente solitários, e nessa medida ele concorda com a explicação de Thomas Hobbes sobre o estado de natureza. Mas, em contraste com a visão do pessimista inglês de que a vida humana em tal condição deve ter sido "pobre, desagradável, brutal e curta", Rousseau afirma que os humanos originais, embora reconhecidamente solitários, eram saudáveis, felizes, bons e livres. Os vícios humanos, argumentou, são socialmente adquiridos.

Rousseau inocenta a natureza e responsabiliza a Sociedade pela desigualdade. Sugere que paixões que geram vícios dificilmente existiam no estado de natureza, mas começaram a aparecer desde que as pessoas constituíram sociedades. Essas teriam iniciado quando as pessoas construíram suas primeiras moradias, na forma de cabanas, que estimularam a coabitação de homens e mulheres. Isso gerou o costume de viver em família e de se associar aos vizinhos. Essa "sociedade nascente", como Rousseau a denomina, foi boa e marcou a “idade de ouro” da história da humanidade. Mas foi extinta porque, ao longo do tempo, a paixão do amor fez nascer também a paixão do ciúme. Os vizinhos começaram a comparar suas habilidades e realizações uns com os outros, e isso representou o início da desigualdade e do vício. As pessoas começaram a exigir consideração e respeito. Seu amor próprio inocente se transformou em orgulho culposo, pois cada pessoa queria ser melhor do que todos os outros.

Esse fato inicial teria sido devastadoramente potencializado com a introdução da propriedade e do sentimento de posse, avançando mais um passo decisivo em direção à desigualdade. A partir da existência e dissipação desses dois sentimentos tóxicos, os homens e mulheres perdem a sua inocência, tornando lei e governo necessários como um meio necessário de protegê-los uns dos outros. Rousseau lamenta o conceito "fatal" de propriedade em uma de suas passagens mais eloquentes, descrevendo os "horrores" que resultaram do êxodo dos humanos do paraíso em que a terra não pertencia a ninguém para um mundo de disputas sem volta. Essas passagens em seu segundo Discurso foram muito influentes no pensamento revolucionário de autores como Karl Marx e Friedrich Engels, que propuseram uma nova sociedade a partir do fim da propriedade privada. Perceba-se que a solução de Locke é o problema de Rousseau. Enquanto o inglês advoga pelo direito à propriedade, Rousseau vê o sentimento de posse como o objeto de intoxicação dos homens.

IMPORTANTE

A cisma sobre a propriedade privada está presente em boa parte da literatura sociológica ocidental e tem sua origem moderna no romantismo de Rousseau. De um lado, seus defensores, liberais conservadores; de outro, seus detratores, revolucionários e críticos do capitalismo selvagem.

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A sociedade civil, como Rousseau a descreve, passa a existir para servir a dois propósitos: fornecer a paz a todos e garantir o direito de propriedade a qualquer um que tenha a sorte de possuir bens. É, portanto, de alguma vantagem para todos, mas principalmente para a vantagem dos ricos, uma vez que transforma sua propriedade de fato em posse legítima e mantém os pobres despossuídos. Nessa perspectiva, o contrato social que fundamenta o Estado é um tanto fraudulento e impositivo pelos poderosos, já que os pobres ficam muito mais fora dele do que os ricos. Mesmo assim, os ricos não seriam mais felizes na sociedade civil do que os pobres porque as pessoas na sociedade nunca estão satisfeitas. A sociedade leva as pessoas a se odiarem na medida em que seus interesses entram em conflito, e o melhor a fazer é esconderem sua hostilidade por trás de uma máscara de cortesia. Assim, Rousseau considera a desigualdade não como um problema isolado, mas como uma das causas que tornam os seres humanos alienados de sua condição inicial, genuinamente boa.

Em seu segundo Discurso sobre a origem da desigualdade, Rousseau faz uma dedicatória em homenagem à república de Genebra, que ele reverencia e elogia como cidade-estado exemplar por ter alcançado o equilíbrio ideal entre “a igualdade que a natureza estabeleceu entre os homens e a desigualdade que instituíram” (ROUSSEAU, 1753 apud LAHDE, 2008, p. 89) entre si. Segundo Rousseau, a constituição política que vê em Genebra foi aquela em que as pessoas mais aptas moralmente foram eleitas pelos cidadãos e colocadas nas mais altas posições de autoridade. Ao modo de Platão, Rousseau sempre acreditou que uma Sociedade justa seria aquela em que todos estivessem em seu devido lugar. E tendo concluído o segundo Discurso para explicar como as pessoas haviam perdido sua liberdade no passado, ele começa a escrever seu livro mais conhecido por todos que se interessam pela teoria política moderna. Trata-se de O contrato social (1762), por meio do qual se preocupa em demonstrar como os homens poderiam recuperar sua liberdade e reestabelecer a igualdade no futuro.

O Contrato Social inicia com a frase lapidar, que se tornou seu provérbio mais conhecido e de impacto indisputável: “O homem nasce livre e em toda parte ele se encontra acorrentado”. Na sequência, Rousseau desenvolve o argumento segundo o qual os homens não precisam estar acorrentados, porque não é de sua natureza a falta de liberdade, o desconforto, o sofrimento e a subserviência. Se uma Sociedade civil ou um Estado pudesse basear-se em um contrato social genuíno, teria de sê-lo através da expressão livre da vontade geral. Portanto, em oposição ao contrato social fraudulento, assim descrito no Discurso sobre a Origem da desigualdade, todas as pessoas precisariam ter o direito de influir na formação dessa vontade coletiva com independência. O contrato social que deveria legitimar a constituição do Estado deveria garantir a liberdade republicana. E essa liberdade deve ser encontrada em obediência a uma lei autoimposta. Dessa forma, o Estado só pode ser legitimado se expressar e garantir essa vontade geral, fruto do consentimento dos homens.

A definição de Rousseau sobre a liberdade política traz um problema óbvio. Em princípio, não há problemas em aceitar que um indivíduo é livre se

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ele obedece apenas às regras que ele prescreveu para si mesmo. Isto é aceitável porque um indivíduo é uma pessoa com uma única vontade. Entretanto, se pensamos uma Sociedade, então, ao contrário, estamos nos referindo a um conjunto de indivíduos com suas vontades individuais, e o conflito entre vontades muitas vezes distintas é um fato inevitável. A resposta que Rousseau nos oferece a esse dilema é definir a Sociedade civil como uma pessoa artificial unida por uma vontade geral. O contrato social que dá origem à sociedade é, portanto, um acordo e um compromisso que mantém a Sociedade como um grupo de responsabilização coletiva. A república de Rousseau é uma criação da vontade geral, isto é, de uma vontade que nunca falha entre os membros. E o objetivo geral é a promoção do interesse público, comum, citadino ou nacional, ainda que esse possa conflitar por vezes com interesse de cada um.

Rousseau é possivelmente o autor mais influente entre os defensores da democracia. Sua visão antropológica sobre a natureza boa do ser humano é muito bem aceita, embora seja considerada ingênua ou no mínimo anacrônica para boa parte dos cientistas políticos. É por trás de leis consideradas excessivamente protecionistas aos direitos individuais que encontraremos a visão do “bom selvagem” do autor.

ATENCAO

A definição de Rousseau da liberdade política levanta um problema óbvio. Por enquanto pode ser prontamente aceito que um indivíduo é livre se ele obedece apenas às regras que ele prescreve para si mesmo, isto é assim porque um indivíduo é uma pessoa com uma única vontade. Uma sociedade, ao contrário, é um conjunto de pessoas com um conjunto de vontades individuais, e o conflito entre vontades separadas é um fato da experiência universal. A resposta de Rousseau ao problema é definir a sociedade civil como uma pessoa artificial unida por uma vontade geral, ou volonté générale. O contrato social que dá origem à sociedade é um compromisso, e a sociedade permanece como um grupo prometido. A república de Rousseau é uma criação da vontade geral — de uma vontade que nunca falha em todo e qualquer membro para promover o interesse público, comum ou nacional — mesmo que possa conflitar por vezes com interesse pessoal.

Nesse aspecto, o pensamento de Rousseau se parece bastante com o de Hobbes quando os dois sugerem que o pacto, através do contrato social, implica uma inclusão de todos na Sociedade civil desde que todos concordem em outorgar seus direitos a um único ente. Nessa condição, todos alienam seus direitos ao Estado. Rousseau, no entanto, representa esse ato como uma forma de troca de direitos pela qual as pessoas desistem dos direitos naturais em troca de direitos civis. A barganha é interessante porque o que se entrega são direitos de valor duvidoso, cuja realização depende unicamente do próprio poder de um indivíduo. Enquanto isso, o que o indivíduo obtém em troca são direitos que são legítimos e aplicados pela força coletiva da comunidade.

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Uma das frases mais enfáticas da obra Contrato Social é aquela em que o autor afirma a necessidade imperiosa de "forçar um homem a ser livre". Tal é a obsessão de Rousseau em resgatar o bom selvagem que chega a ter um caráter impositivo. No limite, a ênfase discursiva na defesa de um indivíduo indefeso e eventualmente “inconsciente” de seus direitos e de sua própria vontade sugere a sua tutela e flerta com interpretações de um certo totalitarismo democrático. Ele não afirma que toda uma sociedade pode ser forçada a ser livre, mas que um indivíduo ocasional, que é escravizado por suas paixões ao ponto de desobedecer a lei, pode ter seus direitos restaurados pela força à obediência à vontade geral que existe dentro dele próprio. A pessoa que é coagida pela Sociedade por uma violação da lei pode, na opinião de Rousseau, ser trazida de volta à consciência de seus próprios interesses verdadeiros. Seja como for, esse tipo de assertiva sempre pode ser usado para justificar a força do Estado sobre indivíduos em nome do interesse coletivo. Veja como se trata o problema, no seguinte capítulo, sobre o poder soberano:

VII – Do soberanoVê-se, por esta fórmula, que o ato de associação encerra um acordo recíproco do público com os particulares, e que cada indivíduo, contratante, por assim dizer, consigo mesmo, se acha obrigado sob uma dupla relação, a saber: como membro do soberano para com os particulares, e como membro do Estado para com o soberano. Mas não se pode aqui aplicar a máxima do direito civil, que ninguém está obrigado aos acordos tomados consigo mesmo; porque há grande diferença entre obrigar-se consigo mesmo ou com um todo de que se faz parte.[...]Ora, sendo formado o soberano tão-só dos particulares que o compõem, não há nem pode haver interesse contrário ao deles; por conseguinte, não necessita a autoridade soberana de fiador para com os vassalos, por ser impossível queira o corpo prejudicar todos os membros, e por, como logo veremos, não lhe ser possível prejudicar nenhum em particular. O soberano, somente pelo que é, é sempre tudo o que deve ser. Não sucede, porém, o mesmo com os vassalos em relação ao soberano, perante o qual, malgrado o interesse comum, ninguém responderia por suas obrigações, se ele não encontrasse os meios de fazer com que lhe fossem fiéis.Com efeito, cada indivíduo pode, como homem, ter uma vontade particular contrária ou dessemelhante à vontade geral que possui na qualidade de cidadão. O interesse particular pode faltar-lhe de maneira totalmente diversa da que lhe fala o interesse comum: sua existência absoluta, e naturalmente independente, pode fazê-lo encarar o que deve à causa comum como uma contribuição gratuita, cuja perda será menos prejudicial aos outros que o pagamento oneroso para si; e, olhando a pessoa moral que constitui o Estado como um ser de razão, pois que não se trata de um homem, ele desfrutará dos direitos do cidadão, sem querer preencher os deveres do vassalo: injustiça, cujo progresso causaria a ruína do corpo político.A fim de que não constitua, pois, um formulário inútil, o pacto social contém tacitamente esta obrigação, a única a poder dar forças às outras: quem se recusar a obedecer à vontade geral a isto será constrangido pelo corpo em conjunto, o que apenas significa que será forçado a ser livre. Assim é esta condição: oferecendo os cidadãos à pátria, protege-os de toda dependência pessoal; condição que promove o artifício e o jogo da máquina política e que é a única a tornar legítimas as obrigações civis, as quais, sem isso, seriam absurdas, tirânicas e sujeitas aos maiores abusos (ROUSSEAU, 1997, p. 73).

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DICAS

Para uma consulta preliminar, leia mais em Ler mais, disponível em: <https://apeiron.webnode.com/estado-sociedade-e-poder/rousseau-trechos-da-obra-do-contrato-social/>.

Apesar dessa desconfiança para muitos autores contemporâneos, Rousseau é tido como o patrono da democracia e do Estado de bem-estar social. De todo modo, haveria uma dicotomia radical entre a lei verdadeira e a lei atual, na opinião de Rousseau. A lei atual, que ele descreveu no Discurso sobre a origem da desigualdade, simplesmente protege o estado normal das coisas em Sociedade. A lei verdadeira, como descrita no Contrato Social, é simplesmente a lei de ferro, inquebrantável. E o que assegura que ela seja justa é que ela seja feita pelo povo em sua capacidade coletiva e soberana e que seja obedecida pelas mesmas pessoas em suas capacidades individuais como sujeitos. Rousseau está confiante de que tais leis não podem ser injustas porque é inconcebível que qualquer pessoa faça leis injustas para si mesma. E nessa perspectiva, o filósofo suíço aproxima-se do alemão Emanuel Kant, que entendia que obedecer a uma lei que expressa a minha vontade é a própria expressão da liberdade política.

Rousseau, no entanto, é um pensador profundo e está preocupado com o fato de que a maioria de um povo não representa necessariamente seus cidadãos mais inteligentes. De fato, ele concorda com Platão, que a maioria dos indivíduos é constituída de estúpidos. Lembremos que, embora naturalmente bom, o bom selvagem teve a sua natureza pervertida pelo ciúme e pelo egoísmo. Assim, a vontade geral, embora sempre moralmente correta, às vezes, é equivocada a ponto de representar grande injustiça para com uma parte dos indivíduos, ou mesmo um só. Por isso, Rousseau sugere que o povo precisa de um ente legislador – constituído de grandes mentes ao espelho de um Sólon, um Licurgo ou um Calvino. Naturalmente, a função desse ente legislador seria a de elaborar uma constituição e um sistema de leis. Ele até sugere que tais legisladores precisam reivindicar inspiração divina para persuadir a multidão estúpida a aceitar e endossar as leis que lhe são oferecidas.

Essa sugestão ecoa uma proposta semelhante de autoria de Maquiavel, um teórico político que Rousseau admirava e cujo amor pelo governo republicano ele compartilhava. Uma influência ainda mais clara do pensador italiano pode ser percebida no capítulo de Rousseau sobre religião civil, onde ele argumenta que o cristianismo, apesar de sua verdade, é inútil como religião republicana. Por estar vinculada ao mundo invisível, não haveria o que ensinar às pessoas em relação às virtudes que são necessárias à política, como coragem, virilidade e patriotismo. Rousseau não vai tão longe quanto Maquiavel ao propor um renascimento dos cultos pagãos, mas propõe uma religião com um conteúdo teológico mínimo destinado a fortalecer o cultivo de virtudes marciais. É compreensível que as

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autoridades de Genebra, profundamente convencidas de que a igreja nacional de sua pequena república era ao mesmo tempo uma igreja verdadeiramente cristã e uma creche de patriotismo, reagiram com ira.

Em 1762, no entanto, quando o Contrato social foi publicado, Rousseau desistiu de pensar em se instalar em Genebra. Depois de recuperar os direitos de seu cidadão em 1754, ele retornou a Paris e para a companhia de seus amigos enciclopedistas, havendo um grande trabalho a fazer. Mas ele ficou cada vez menos à vontade nessa sociedade mundana e começou a brigar com seus colegas filósofos. Um artigo para a Enciclopédia sobre Genebra, escrito por d'Alembert por iniciativa de Voltaire, incomodou Rousseau em parte ao sugerir que os pastores da cidade haviam passado da severidade calvinista para a frouxidão unitarista e, em parte, propondo que um teatro fosse erguido ali. Rousseau apressou-se em imprimir uma defesa da ortodoxia calvinista dos pastores e um ataque elaborado ao teatro como uma instituição que só poderia prejudicar uma comunidade inocente como Genebra.

Então, com tudo o mais que se poderia dizer sobre a obra e o engajamento político de Jean Jacques Rousseau, contentemo-nos em lembrar sumariamente a sua grande contribuição ao pensamento político moderno. Nessa perspectiva, é importante relembrar o seguinte: Rousseau é um contratualista. Ele entende que o Estado deve ser o resultado da expressão da vontade geral dos indivíduos. E o que querem os indivíduos? Liberdade e justiça. E os indivíduos que não compreendem isso, precisam ser enquadrados de modo a respeitarem a vontade geral. A vontade geral, que clama por liberdade e justiça, é resultado da substituição das vontades individuais em nome da vontade coletiva. E isso acontece, segundo Rousseau, porque os indivíduos têm uma natureza boa; por conseguinte, tem também a consciência de que a vontade coletiva é, bem no fim, o melhor a cada um. É outra maneira de dizer o mesmo que Hobbes e Locke disseram, isto é, que os indivíduos reconhecem a necessidade de estabelecer regras para a vida em comum.

E como essas regras podem ser garantidas? Através de um ente comumente aceito que tenha força de lei para garantir que sejam cumpridas. Este ente com força superior aos indivíduos e em nome deles é o Estado, que dever ser constituído por homens moralmente e intelectualmente capazes de interpretar a vontade geral. Rousseau é um profundo moralista que acredita que esses homens bons realmente existem e o povo, na sua bondade natural, consegue identificá-los. São esses que devem constituir as leis que garantam os direitos naturais, que são a liberdade e a justiça e, assim, fazer com que sejam cumpridas. Essa é a base do contrato social. Se a Sociedade é injusta e os homens e mulheres não são livres, é porque o contrato é uma farsa. Essa farsa seria produzida por alguma facção de homens que, dominados por interesses próprios e alheios à vontade geral, estabeleceram as regras à força. E, sendo assim, é legítimo que o povo lute para tirá-los do poder, nem que seja à força.

Seu pressuposto é de que os homens nascem bons e iguais entre si, mas a sociedade os corrompe. É aparentemente contraditório, pois: o que é a sociedade

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TÓPICO 2 | CONTRATUALISTAS: LOCKE, HOBBES E ROUSSEAU

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se não constituída por esses homens? Acontece, segundo a elucubração do filósofo, que ao se agruparem, invariavelmente surgem as paixões, os egoísmos e as disputas daí decorrentes. O sentimento mais expressivo nesse conflito é o desejo de propriedade, isto é, a necessidade de posse por terras e, inclusive, por outras pessoas. E a luta pela propriedade é a maior causadora das desigualdades entre os homens. Assim, é preciso que os homens e mulheres, na sua natural e generosa sabedoria, escolham os melhores entre eles para governarem. Estes comporão o Estado, guardião da liberdade e da justiça. A eles é atribuída a grandiosa tarefa de restituir a natureza boa dos homens, atacando todas as formas de desigualdade entre eles, desde a sua raiz, qual seja, a propriedade privada, fonte de todos os males. Alguma dúvida sobre a origem retórica da utopia socialista?

Sem dúvida, a máxima de que o homem é bom por natureza e é a Sociedade é quem corrompe essa natureza boa, tornou-se um paradigma do pensamento político e social no Ocidente. Essa ideia fundamenta todo um arcabouço sociológico que fundamenta as constituições democráticas e penetra o imaginário social através de narrativas discursivas de grande potencial de convencimento. Permite, inclusive, a vitimização dos indivíduos, teórica e juridicamente amparada. Goste-se ou não dessa premissa, ela é inerente à construção da política no Ocidente, com vais e vens. Essa ideia-força formula o contraponto antropológico mais importante da história do pensamento ocidental. Estamos falando justamente da dicotomia entre “o bom selvagem” de Rousseau e “o homem lobo do homem” de Thomas Hobbes. Seja como for, a máxima de Rousseau também é inerente ao maior projeto político-institucional do Ocidente no século XX e seu nome é o Estado de direitos e de bem-estar social.

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RESUMO DO TÓPICO 2Neste tópico, você aprendeu que:

• O contratualismo é uma parte fundamental do pensamento político moderno, pois está caracterizado pelo esforço de pensadores em justificar a existência e a necessidade do Estado moderno.

• Para os contratualistas, entre os quais, Hobbes, Locke e Rousseau, a legitimidade do poder estaria no estabelecimento de um contrato social entre os homens que, reconhecendo a necessidade das leis para intermediar as relações entre eles, elegem um ente político.

• O ente político é o Estado, que representa ou deve representar os direitos naturais dos seres humanos, a partir dos quais o poder deve ser exercido e cujas leis por este poder asseguradas devem representar justamente esses direitos naturais.

• A ideia do contrato social está presente até os dias de hoje em nossas vidas, por meio da organização política de nossas sociedades, respaldada por cartas constitucionais que inspiram as leis.

• As constituições nacionais das democracias contemporâneas refletem as concepções contratualistas formuladas por grandes pensadores, entre os quais os três que tratamos nesta unidade.

• Para Thomas Hobbes, a vida, isto é, a preservação da segurança é o principal direito natural que o Estado deve preservar e em nome do que é legítimo que os governantes exerçam o poder. Sua teoria do Estado parte do pressuposto de que os homens são egoístas e deixados livres, se matariam uns aos outros. Por isso o Estado é necessário e o poder deve ser exercido de maneira forte e centralizada.

• Para John Locke, além da vida, a liberdade e a propriedade privada seriam direitos naturais dos homens. Na medida em que o Estado seja capaz de garantir tais direitos, ali reside a legitimidade do mando. Se os governantes não garantem tais direitos, perdem a legitimidade que o poder lhes conferiu através do contrato social. Sua concepção antropológica não sugere uma natureza egoísta ou bondosa, apenas reconhece que os homens vivendo em sociedade precisam de leis que lhes garantam seus principais direitos naturais.

• Para Jean Jacques Rousseau, o contrato social só pode ser legítimo se a vontade geral dos homens for respeitada. Os homens nasceriam livres e iguais entre si. Além disso, seriam bons em sua natureza, mas a Sociedade os corrompe desde o surgimento da propriedade privada. Portanto, os indivíduos em geral são vítimas da sociedade, cabendo aos mais sábios e justos entre eles conquistarem o poder e o exercerem em nome da vontade geral. Se a sociedade corrompe a natureza boa dos homens, então a tarefa permanente do Estado é a de restituir essa natureza benigna, reestabelecendo a liberdade e a igualdade entre os homens.

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AUTOATIVIDADE

1 Diferencie as concepções antropológicas, isto é, compreensão sobre a natureza humana de Thomas Hobbes e de Jean Jacques Rousseau e diga qual é a principal tarefa do Estado para cada um deles, no contrato social.

2 Descreva a concepção antropológica de John Locke, diga quais são os principais direitos naturais dos homens e qual o papel do Estado no contrato social.

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TÓPICO 3

ILUMINISMO: MONTESQUIEU, DAVID

HUME E IMMANUEL KANT

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Neste tópico, acompanharemos a sofisticação teórica que o pensamento político ocidental alcançou, ajustado pela depuração do contratualismo nas obras de três pensadores iluministas. O iluminismo, como sabemos, é o movimento de ideias que parte do pressuposto de que tudo o que existe pode e deve ser conhecido pela razão, insista-se, pelo uso exclusivo do pensamento racional.

Esta postura é o resultado de um amadurecimento histórico do pensamento moderno, que tem o homem como centro e medida de todas as coisas, capaz de compreender e transformar o mundo à sua volta. O iluminismo, nessa direção, é a afirmação histórica da modernidade. Nessa perspectiva, foi uma postura, digamos assim, decisiva para evolução do pensamento científico e a descoberta, tanto quanto a invenção e a compreensão de muitas coisas.

Esse resultado estende-se ao pensamento humano e social, tendo iniciado na filosofia, e especificamente na filosofia social, cujos desdobramentos racionais e empíricos permitiram o surgimento e desenvolvimento das denominadas ciências sociais, leia-se, a Antropologia, a Sociologia e a Ciência Política. Assim, é justo identificar os autores que contribuíram para o desenvolvimento das teorias políticas modernas que estruturam a Ciência Política, entre os principais, os que apresentaremos a seguir.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO POLÍTICO

FONTE: <http://photos.geni.com/p13/95/d7/47/64/534448393b44552b/montesquieu_original.jpg>. Acesso em: 16 abr. 2019.

Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu, nasceu em Château La Brède, perto de Bordeaux, França, em 18 de janeiro de 1869 e faleceu a 10 de fevereiro de 1755 em Paris. Foi um filósofo político de importância primordial ao pensamento político moderno no Ocidente. E, através de sua principal obra, O espírito das leis, legou à teoria política uma excepcional justificativa sobre a divisão e o equilíbrio dos poderes na composição do Estado moderno. Sem receios, falar da divisão do trabalho na ordem política entre executivo, legislativo e judiciário é, antes de tudo, verbalizar as originais ideias de Montesquieu. Com incrível lucidez, o filósofo francês nos proporciona algo absolutamente digno da denominação do que entendemos por uma obra clássica. Trata-se de escritos fundamentais, no sentido literal da expressão, à ordem política ocidental. Ali, além de um claro tratado de divisão dos poderes e suas atribuições, está também a marca da moderação na política, um caro conselho que, com frequência, nos permite compreender a maior estabilidade de algumas democracias, comparadas a outras.

De família de posses, Montesquieu teve uma sólida educação baseada em ideias modernas. Baseadas no humanismo e precursoras do iluminismo francês do século XVIII. Depois de ter sido escolarizado em casa, o jovem nobre continuou seus estudos a partir de 1705, na faculdade de direito da Universidade de Bordeaux, colando grau três anos depois. Financeiramente seguro aos 27 anos por conta de heranças, Montesquieu estabeleceu-se profissionalmente para o

2 MONTESQUIEU – TEORIA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES: EXECUTIVO, LEGISLATIVO E JUDICIÁRIO – O ESPÍRITO E ORIGEM DAS LEIS

FIGURA 6 - BARÃO DE MONTESQUIEU

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exercício de função judicial. Combinando afazeres profissionais com sua atividade intelectual, iniciou sua primeira grande empreitada ao fazer um rigoroso estudo sobre o direito romano. Além disso, aprofundou seus conhecimentos em várias ciências, desde a física, passando pela biologia e geologia.

FIGURA 7 - PRIMEIRA CAPA DE CARTAS PERSAS

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Cartas_Persas>. Acesso em: 16 abr. 2019.

No ano de 1722, publica Cartas persas, uma sátira da sociedade francesa em que narra a imaginária visita de dois viajantes persas e suas impressões sobre Paris. A obra zomba do reinado de Luís XIV, que recentemente havia findado. É uma crítica a todas as classes sociais e se tornou um dos livros mais lidos de seu tempo, identificada como uma obra iluminista. As teses de Hobbes sobre a natureza humana e a sua justificativa do Estado como poder que se impõe são também tratadas nas Cartas persas. Também traz uma contribuição introdutória à demografia. A comparação entre as civilizações cristã e islâmica é recorrente ali. Há uma contundente ridicularização da fé católica romana ao analisar a controvérsia sobre a bula papal Unigenitus, pronunciada contra os jansenistas, grupo católico dissidente que se tornou protestante. O livro é totalmente marcado por um novo espírito de crítica vigorosa, desrespeitosa e iconoclasta, portanto, imbuída do espírito moderno e convergente com os pressupostos iluministas de fé exclusiva na razão. No clima de efervescência cultural da Europa, Montesquieu tornou-se conhecido e suas ideias fomentaram o ambiente cultural profícuo de Paris.

Sua estada em Paris, todavia, foi marcada pelo crescente desinteresse com o trabalho dia a dia no Parlamento em Bordeaux, onde era seu ofício. Não lhe agradava perceber que pensadores menos vigorosos que eles faziam mais sucesso do que ele em suas atividades jurídicas na ordem política. Sendo proprietário de um belo escritório, o vendeu para recuperar parte da fortuna que havia gasto com a vida perdulária que levava na capital provisória da França. Então, decide mudar para Paris, em sua tentativa fazer parte da Academia Francesa. No mesmo ano de 1727, em que vende seu escritório, uma vaga se abre na Academia e Montesquieu tinha conhecidos influentes naquele salão da vaidade intelectual. E foi com o

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apoio e a defesa firme de Madame de Lambert que ele foi eleito, tomando sua cadeira em 24 de janeiro de 1728.

Sem se acomodar, contudo, deixa sua esposa em La Brède com plenos poderes sobre a propriedade, e viaja em turnê a Viena no ano seguinte com o amigo Lord Waldegrave, embaixador britânico em Paris, a fim de estudos. Montesquieu escreveu então um relato de suas viagens que fora tão interessante quanto qualquer outro do século XVIII. Em Viena, conheceu o soldado e estadista, o príncipe Eugênio de Saboia, e discutiu a política francesa com ele. Na Hungria, esteve para examinar as minas. Posteriormente, entrou na Itália e, depois fazer turismo em Veneza, passou a visitar outras regiões italianas, encantado pelo país. Examinando atentamente as galerias de Florença, com o caderno na mão, ele aprimorou seu senso estético. Em Roma, apresentou seu inédito poema em latim, intitulado Antilucrécio. Em Nápoles, testemunhou ceticamente a liquefação do sangue do santo padroeiro da cidade. Da Itália, Montesquieu foi para a Alemanha, depois para a Holanda e, finalmente, em fins de 1729, foi morar na Inglaterra, onde permaneceu por dois anos, tendo sido, segundo ele próprio, o seu período intelectual mais criativo.

Depois disso, volta à França e passa a se dedicar sistematicamente a escrever. Disso resulta que, em 1734, publica um pequeno tratado sobre a causa da grandeza dos romanos e de sua decadência. Este escrito veio a ser posteriormente um dos capítulos de sua obra prima, Espírito das leis, que só seria publicado 14 anos depois, em 1748. Alguns dos autores mais influentes no pensamento de Montesquieu foram Vico, Maquiavel, Hobbes e Locke. Esses pensadores representaram importantes desafios interpretativos ao filósofo francês, obrigando-o a considerar devidamente as principais formulações desses mestres da teoria política moderna em seu grande livro. A erudição ali demonstrada revela os traços do enciclopedista que foi, juntamente com outros grandes autores europeus. Sua importância é amplamente reconhecida pelos autores contemporâneos, a ponto de ser considerado um dos precursores da sociologia e da geografia, além de ser lembrado sempre como o formulador da tese dos três poderes.

NOTA

O barão de Montesquieu é considerado um dos precursores do surgimento da Sociologia, segundo o sociólogo francês Raymond Aron em Etapas do pensamento sociológico, publicado pela Editora Martins Fontes.

Seu grande tratado intitulado O espírito das leis é uma das maiores obras de toda a história da teoria política, como também da jurisprudência do Ocidente. Ali, o autor reúne as principais contribuições do pensamento político anteriores

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à sua. Contemplou os principais aspectos de grandes teóricos e as incorporou de maneira crítica e propositiva à sua análise, ainda que se distinguindo de todas em alguns aspectos. Da multiplicidade de temas que Montesquieu abordou, nenhum deles permaneceu sem a mais minuciosa ponderação e contribuições originais. Diferentemente de Hobbes e Jean Bodin, por exemplo, Montesquieu defendeu a moderação como o princípio basilar a ser materializado através de instituições que obtivessem o equilíbrio desejável. Os mencionados filósofos não acreditavam em uma divisão do poder que não fosse centralizada em um poder e verticalizada. Já para Montesquieu, o poder deveria ser dividido e controlado por poderes paralelos entre si. Três aspectos na mencionada obra são de importância lapidar.

IMPORTANTE

Livros, diálogos e ideias são os emblemas do Iluminismo.

FIGURA 8 - O ILUMINISMO, OS LIVROS E OS DEBATES

FONTE: <https://www.sohistoria.com.br/resumos/iluminismo.php>. Acesso em: 1 abr. 2019.

A primeira delas é sua classificação das formas de governos. O filósofo francês descartou as ideias tradicionais sobre as divisões clássicas das formas de governo entre monarquia, aristocracia e democracia. Com originalidade, Montesquieu formulou sua própria interpretação, conferindo a cada forma de governo um princípio gerador do melhor desempenho em cada caso. Nessa perspectiva: a república seria baseada na virtude, enquanto a monarquia seria baseada na honra e despotismo seria baseado no medo. Com essa nova classificação das formas de governo, o teórico francês queria demonstrar que o bom governo não se baseava na localização do poder político, mas sobretudo na maneira como cada governo conduz a política.

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A segunda característica mais importante a ser observada em sua obra, é justamente a sua defesa em relação à separação de poderes. Dividindo a autoridade política nos poderes legislativo, executivo e judiciário, Montesquieu observou que a promoção mais efetiva da liberdade através do Estado se daria justamente pela divisão e descentralização do corpo político. Seu modelo de tal estado era a Inglaterra, que ele viu do ponto de vista da oposição conservadora ao líder Whig, Robert Walpole, como expresso nos escritos polêmicos de Bolingbroke. O capítulo em que ele expressou essa doutrina — o Livro XI, capítulo 6, o mais famoso de todo o livro — permaneceu em suas gavetas, salvo revisão ou correção, desde que foi redigido em 1734. Tornou-se imediatamente a mais importante peça de escrita política do século XVIII. Embora sua precisão tenha sido mais recentemente contestada, em seu próprio século ela foi admirada e mantida autoritária, mesmo na Inglaterra; inspirou a Declaração dos Direitos do Homem e a Constituição dos Estados Unidos.

A terceira das doutrinas mais celebradas de Montesquieu é a influência política do clima. Baseando-se em doutrinas encontradas em sua leitura, na experiência de suas viagens e em experimentos – reconhecidamente um tanto ingênuos – conduzidos em Bordeaux, ele enfatizou o efeito do clima, principalmente pensando em calor e frio, na estrutura física do indivíduo, e, como consequência, na perspectiva intelectual da sociedade. Essa influência, afirma ele, não é salvo nas sociedades primitivas, insuperável. É dever do legislador neutralizá-lo. Montesquieu cuidou (como seus críticos nem sempre perceberam) de insistir que o clima é apenas um dos muitos fatores em uma assembleia de causas secundárias que ele chamou de “espírito geral”. Os outros fatores (leis, religião e máximas do governo os mais importantes) são de natureza não física, e sua influência, comparada com a do clima, cresce à medida que a civilização avança.

IMPORTANTE

Montesquieu é dono de uma das mais interessantes parábolas do institucionalismo na ciência política e no direito. O autor sugere que boas instituições geram homens e mulheres bons, embora não se deva esquecer que, originalmente, é necessário que existam bons homens e mulheres para o surgimento de boas instituições. Lembra-te: na linguagem da Ciência Política e do Direito, instituições significam leis, ainda que possam também significar costumes, o que é mais comum na Sociologia. não obstante, quando alguém fala, por exemplo, em “instituições democráticas”, está falando do conjunto de leis através das quais se procura resguardar a democracia.

3 LIBERDADE

Sua compreensão sobre os problemas da democracia o levaram a importante formulação sobre o conceito de liberdade. Montesquieu entendia

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que a ideia de liberdade era pronunciada de variadas maneiras, sugerindo, por conseguinte uma definição mais adequada à ordem política. Ele rejeitou a concepção de liberdade como o autogoverno do povo. Mais enfático foi ao afirmar que a compreensão sobre a liberdade pudesse estar relacionada à ausência de impedimentos e punições. Tratou essa defesa irrestrita da liberdade como uma “liberdade filosófica”, contrapondo-a à sua concepção de “liberdade política”. Nessa perspectiva de seu realismo político, não haveria liberdade política possível diante dessas duas condições negativas, que associa à concepção de “liberdade filosófica”. Nessa perspectiva, o filósofo francês assim prossegue:

[...] e cada um chamou liberdade ao governo que se adequava aos seus costumes ou às suas inclinações; e, como, numa república nem sempre temos diante dos nossos olhos e de forma tão presente os instrumentos dos males de que nos queixamos, e, mesmo como nesta forma de governo, as leis parecem falar mais e os executores da lei menos, ela é colocada geralmente nas repúblicas e excluídas das monarquias. Finalmente, como nas democracias o povo parecer quase fazer o que deseja, ligou-se a liberdade a essas formas de governo e confundiu-se o poder do povo com sua liberdade (MONTESQUIEU, 1979, p. 147).

Assim, a liberdade não é simplesmente a liberdade do povo, na sua vontade muitas vezes caótica e tirânica. O autor sugere prudência. Levando em conta, portanto, a relação do cidadão com a liberdade política, esta deve significar a segurança dos indivíduos ao abrigo das leis constitucionalmente asseguradas, que apontem o respeito dos cidadãos entre si e os limites à ação do Estado. A liberdade de um cidadão é, dessa maneira, a calmaria dos ímpetos individuais. E essa condição de segurança dos indivíduos uns para com os outros deve ser garantida pelos governantes, a fim de que um cidadão não necessite temer outro cidadão. Dessa forma, onde existe lei, a liberdade dos indivíduos não pode ser outra coisa senão a de:

Fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar”. E, continuando sua digressão, Montesquieu afirma que “a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo que elas proibissem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder (MONTESQUIEU, 1979, p. 147).

Para tanto, uma ordem política baseada no pressuposto da liberdade requer um sistema político baseado no equilibro de poderes. A origem do poder não está baseada no mesmo pressuposto antropológico de Thomas Hobbes. Lembremo-nos de que a justificativa do inglês ao poder soberano reside na ideia de que os homens são egoístas e que esse egoísmo só é freado pelo poder soberano. Na perspectiva de Montesquieu, “o poder freia o poder”. Sendo mais claro, a ideia é a de que os abusos de poder devem ser freados justamente por outro poder equivalente. Então, ao invés de concebermos o poder soberano como algo uno e indivisível acima das cabeças dos homens, ele deve ser entendido como um poder subdividido internamente. E o objetivo dessa subdivisão deve ser a autovigilância. Assim, o poder deve ser dividido entre os que fazem as leis,

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entre os que executam essas leis e entre os que são encarregados, com poder de polícia, de garantir que elas sejam cumpridas.

Desse modo, a liberdade política só pode ser assegurada por um Estado onde seja moderado o exercício do poder. Essa moderação, por sua vez, só se pode realizar através de uma equilibrada divisão das forças, capaz de produzir um resultado racional, portanto, justo. Essa perspectiva está inspirada na experiência inglesa que Montesquieu conheceu, observando-a atentamente e reconhecendo na força das assembleias as limitações do poder despótico. O autor percebia que as limitações de um conjunto de forças imposto por outro era a melhor maneira de obter equilíbrio, justiça e maior estabilidade política. Essa perspectiva revela o propósito de harmonizar o fenômeno da democracia representativa com a intenção de limitar o poder do soberano. Isso seria possível com a edificação de um sistema de salvaguardas constitucionais na ordem política, através da instituição de três conjuntos de forças componentes do Estado, quais fossem: o poder legislativo, o poder executivo e o poder judiciário.

4 O ESPÍRITO DAS LEIS

Agora, cabe compreender como o filósofo enciclopedista francês analisa os três poderes que constituem o Estado inglês, quais seja, o monarca, a nobreza e o povo. Ali, o legislativo é composto tanto pela nobreza como pelos representantes do povo, cada um destes com sua respectiva assembleia e deliberações separadamente realizadas. A Câmara dos Lordes representa os interesses da nobreza, enquanto a Câmara dos Comuns tem a função de defender os interesses do povo. O exercício do povo não se faz diretamente, porque não estaria apto a fazê-lo. Então, o poder se manifesta através de seus representantes, aqueles aptos a discutir as questões públicas e encarregados que são de formular, derrubar ou modificar leis. Dessa forma, comenta Montesquieu (1979, p. 150), “reconheceram-se as principais regras do regime representativo moderno, tais como as que se impuseram na Inglaterra, assim como nos países civilizados”.

O poder da nobreza é hereditário e representa um segmento em separado da Sociedade, constituído pela Câmara dos Lordes. Ela participa igualmente de forma indireta do poder legislativo, repartindo o poder com os representantes da Câmara dos Comuns. Explica Montesquieu (1979), que a nobreza constitui uma parcela minoritária da Sociedade, com direitos distinguidos pelo nascimento e que precisa ter uma representação distinguida pela sua condição social e pela sua importância na condução dos interesses econômicos da nação. Se o poder fosse distribuído segundo a sua proporção numérica, seus pleitos em geral jamais seriam aprovados, em função de sua inferioridade numérica em Sociedade. Por isso, tem o direito a um foro separado. E, segue o autor, contemporizando a respeito dessa divisão de poder, ao observar que “a participação que (a nobreza) toma na legislação, deve ser proporcional às outras vantagens que tem no estado. O que acontecerá se formar um corpo que tenha o

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direito de sustar as iniciativas do povo, tal como o povo tem o direito de sustas as deles (MONTESQUIEU, 1979, p. 151).

Ao monarca, a sua vez, está destinada à função executiva, uma vez que esse poder é melhor operacionalizado por um do que por vários. O monarca deve garantir a paz e promover a guerra e todas as outras questões relacionadas a outras nações. Observa Montesquieu (1979), que não fosse a presença do monarca e se o poder de execução estivesse em mãos do poder legislativo, a liberdade política deixaria de existir, pois a união dos dois poderes (executivo e legislativo) tenderia a promover o monopólio do poder, que seria exercido sempre pelas mesmas pessoas. Embora a cooperação entre esses poderes seja fundamental, a sua divisão é igualmente essencial. O poder legislativo deve cooperar com o executivo. Deve avaliar em que grau as leis foram executadas corretamente pelo executivo. Quanto a este poder, não deve interferir na formulação das leis.

E há, por fim, o poder judiciário, aquele que deve ter a responsabilidade de resolver as disputas que envolvem os diversos indivíduos envolvidos em situações de crime. Deve, entre tudo, resolver os conflitos entre os outros poderes, com base nas leis criadas, e somente nelas. Não se deve temer os magistrados, senão as leis. Nessa perspectiva, Montesquieu afirma que o poder não cede aos interesses segmentados. Esse poder deve ser outorgado a “pessoas extraídas do corpo do povo num certo período do ano, de modo prescrito por lei, para formar um tribunal que dure apenas o tempo necessário” (MONTESQUIEU, 1979, p. 149). Ainda que o poder de julgar não deva estar vinculado a qualquer facção do legislativo, o Barão insiste que os nobres deverão ser julgados apenas por seus pares, já que os membros mais poderosos de uma Sociedade estarão permanentemente “expostos à inveja”. Se fossem julgados pelos representantes do povo, seguramente as subjetividades relacionadas às diferenças de classe se imporiam injustamente no julgamento.

A teoria do Barão de Montesquieu, sobre a separação dos poderes, se notabiliza pelo fato de propor que os poderes legislativo, executivo e judiciário não se concentrem em um só, como era comum nas monarquias, em que o poder absoluto estava concentrado na figura do monarca. A fim de que o poder fosse da melhor forma exercido e o Estado encontrasse o melhor modo de obter a estabilidade e a garantia dos direitos dos indivíduos para a prosperidade da nação, esses três poderes deveriam constituir-se em órgãos distintos e independentes entre si, porem harmônicos, refletindo o espirito das leis e por elas se orientando. Durante o absolutismo, lembram Freire, Wagner e Barbosa (2011, p. 141), “a arbitrariedade com que os governantes agiam tinha respaldo na concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa ou de um reduzido grupo, o que causava o completo desrespeito às liberdades individuais”.

Outro aspecto importante em “Do espírito das leis” é que ao analisar a Carta magna inglesa, Montesquieu está interessado em observar atentamente a diferença de classes sociais e as hierarquias daí correspondentes no interior do regime monárquico. O devido equilíbrio entre essas forças é o desafio da estabilidade dos

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governos, sendo necessário satisfazer as partes sempre que possível. Na moderação estaria a chave de um bom governo e jamais nos extremos. A institucionalização disso, através de leis inspiradas na Constituição resultaria numa sociedade não apenas estável, mas também livre, na qual nenhuma das forças deve exceder-se, devendo ser constitucionalmente controlada, cada qual, pela outra ou por outras. A paz é estabelecida justamente pelo equilíbrio resultante de consensos negociados.

Não obstante, o modo de ordenamento dessa sociedade equilibrada deve ser baseado na forma aristocrática. O equilíbrio só é possível na medida em que os cidadãos temam os demais, isto é, em que haja a ameaça permanente à punição pelos desvios. A classe hierarquicamente mais elevada, no caso, a nobreza, é fundamental para a preservação de valores e garantia do progresso econômico e, por essa razão, deve ter seus direitos assegurados pelas leis. É essa a inspiração que lhe proporciona a análise da Constituição inglesa. Por conta do equilíbrio entre as classes, como também do equilíbrio entre os poderes, o engenhoso arranjo legal da monarquia inglesa permitia a o bom governo e a estabilidade social. Estavam ali os fundamentos que asseguravam uma sociedade livre e próspera. O que permitia a segurança dos cidadãos era o respeito às leis e a moderação dos governos, alcançada pelo estabelecimento de limites constitucionais à atuação das forças sociais.

FIGURA 9 - DIREITOS DO HOMEM

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/41fGJtIg9aL._SX325_BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 16 abr. 2019.

Ao lado da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do inglês Thomas Paine, a teoria da divisão e limitação dos poderes entre si foi fonte inspiradora à Constituição dos Estados Unidos da América. Por extensão disso, todas as constituições republicanas que se seguiram posteriormente, incluíram a ideia da divisão dos três poderes, a exemplo do Brasil. Dos ensinamentos de Montesquieu surge a brilhante percepção a inspirar o liberalismo político, qual seja, a de que o poder é legitimo na medida em que não seja exercido de modo abusivo. Portanto, não é somente importante definir de que fonte o poder se origina e em nome da qual é justificado e será exercido, sendo esta a ideia central dos contratualistas.

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Mais importante, para o filósofo conservador francês, é a determinação da forma de governo, pois é esta que poderá garantir a efetividade do exercício do poder e a satisfação real do povo, e não apenas justifica-lo perante os indivíduos.

A história do pensamento político ocidental está profundamente marcada pelas contribuições de Montesquieu, notadamente, por meio de “do espírito das leis”. Sua atualidade é incontestável e se explicita notavelmente através da observação das atuais constituições liberais democráticas pelo Mundo afora. O reconhecimento acerca disso nos permite compreender a principal característica dos clássicos do pensamento político que apresentamos neste livro, qual seja, a sua herança ao longo do tempo, depois de suas formulações. Suas ideias sobrevivem, nos vais e vens do processo histórico, não sem interrupções e recusas eventuais e parciais, até que se sedimentam, preservando o essencial, o conteúdo da forma como foram originalmente apresentadas.

FIGURA 10 - DO ESPÍRITO DAS LEIS

FONTE: <https://m.media-amazon.com/images/I/91EOvEvh+gL._AC_UL436_.jpg>.Acesso em: 16 abr. 2019.

5 DAVID HUME – A CONCEPÇÃO DE NATUREZA HUMANAE O CONCEITO DE ESTADO

UNI

Do espírito das leis é, sem dúvida, um clássico da literatura política. Sua importância é difícil de mensurar, mas é possível e prudente observar que se trata de um livro inspirador à compreensão clássica na Ciência Política e no Direito, da força civilizatória que as instituições legais tem sobre os comportamentos dos indivíduos. Além disso, a relação que Montesquieu estabeleceu entre as leis e a cultura e o ambiente geográfico, fazem do Livro uma referência fundadora na Sociologia, na Antropologia e também na Geografia Humana.

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5.1 VIDA E OBRA

David Hume foi um filósofo escocês nascido a 7 de maio de 1711, em Edimburgo, capital de seu País e faleceu em 25 de agosto de 1776, na mesma cidade. Historiador, economista e ensaísta reconhecido, sobretudo pelo seu trabalho em prol do empirismo e ceticismo filosóficos. David Hume entendeu a filosofia como uma ciência exclusivamente indutiva e experimental, cujo conhecimento nunca é anterior ao contato com a realidade, jamais imanente, como sugeria predominantemente a filosofia de sua época. Nessa direção, ele partia do mesmo pressuposto de John Locke, segundo o qual, os homens, ao nascerem, não são mais que tábulas rasas. Considerando o método do físico inglês Isaac Newton e orientado pela epistemologia empirista de Locke, Hume reconhece que nenhuma teoria do conhecimento é plenamente possível. Somente a experiência nos traz impressões que transformamos, intersubjetivamente, em verdades, segundo nossas capacidades de compreensão e só. Apesar do seu relevante esforço em prol do empirismo, Hume também é considerado um moralista.

O filósofo empirista escocês ingressou na Universidade de Edimburgo na tenra idade de 12 anos. Estudou direito, mas seu interesse estava na literatura e na filosofia e, depois de ter passado três anos na França, aos 24 anos começou a escrever seu “Tratado sobre a natureza humana”. Foi sua primeira tentativa de produzir um sistema filosófico completo. Dividido em três partes, a primeira intitula-se “Do entendimento”, em que apresenta sua interpretação sobre: 1) a origem das ideias; 2) nossas concepções de espaço e tempo; 3) conhecimento e probabilidade, incluindo a natureza da causalidade, além de 4), as implicações céticas dessas teorias. Na segunda parte, intitulada “Das paixões”, o autor explica o sistema afetivo-emocional dos seres humanos e atribui uma importante determinação da razão humana sobre os sentimentos. Na terceira parte, Hume fala a respeito da moral, definindo a bondade moral como sentimentos de aprovação ou desaprovação que os homens manifestam ao levar em conta o comportamento humano diante das consequências de seus atos, para si como para as outras pessoas.

Ainda que o mencionado tratado exponha, de modo completo, o pensamento de Hume, ao final de sua vida, o autor rejeitou seus pensamentos de juventude, reconhecendo que apenas os escritos posteriores a essa obra deveriam ser devidamente considerados. Realmente, se trata de um livro um tanto ambíguo acerca da concepção da razão humana e carregado de declarações e confissões pessoais exibicionistas. Mas isso não impediu que, principalmente, a primeira parte do seu livro, tenha sido um dos tratados mais lidos até hoje no meio universitário ocidental. É preciso entender que o que conhecemos atualmente como uma só obra, foram, na verdade, três livros. O terceiro, denominado “Das paixões”, não foi bem recebido pelo público, o que o entristeceu. Todavia, sua postura autocrítica lhe permitiu recuperação intelectual e o devido reconhecimento de seus leitores quando, posteriormente, publicou Ensaios, Moral e Política, em 1742. Talvez encorajado por isso, ele se

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tornou um candidato para a cadeira de filosofia moral em Edimburgo em 1744. Isso não impediu que seus críticos o acusassem de heresia ou ateísmo, por sua concepção empirista do conhecimento.

FIGURA 11 - DAVID HUME

FONTE: <https://cdn.britannica.com/s:190x500/08/131908-004-A3DFC9A4.jpg>. Acesso em: 16 abr. 2019.

5.2 MATURIDADE INTELECTUAL

Depois da mencionada obra, veio outra, intitulada Ensaio sobre o entendimento humano, em que resolve reescrever o primeiro livro, ou seja, a primeira parte do seu Tradado sobre a natureza humana. Ali, adiciona seu ensaio Sobre milagres, em que nega que milagres possam ser efetivamente comprovados por qualquer possa parecer evidências, nem pelo mais sábio dos homens. Por isso, principalmente, foi acusado de herege e ateu. Este documento é mais conhecido como Uma investigação sobre o entendimento humano. Além dessa obra revista, publicou também Investigação sobre os princípios da moral (1751), que fora uma revisão do Livro III, ou seja, da terceira parte do Tratado. Foi nessas obras posteriores que Hume expressou seu pensamento maduro.

Uma investigação sobre o entendimento humano é uma tentativa de definir os princípios do conhecimento humano. Apresenta de maneira rigorosamente lógica os principais aspectos constituintes do raciocínio humano acerca dos fenômenos e dos acontecimentos, explicando como ocorrem as sinapses do conhecimento. Hume sugere uma dupla classificação dos objetos da consciência. Primeiramente, ele trata esses objetos como “impressões” surgidas da consciência interna, que gera as sensações. Nessa perspectiva, nossas ideias seriam oriundas dessas impressões ou sensações, que associamos a outras que, quando se encaixam, geram as ideias que traduzimos em palavras. É a partir dessa premissa que o filósofo escocês formula uma teoria do significado da linguagem. A palavra só tem sentido se trouxerem à mente um objeto que provenha de uma impressão através de um processo mental de associação. Em outras palavras, seria um

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circuito de impressões, sensações, que ligaria variadas impressões, conectando-as, encaixando-as, produzindo sinapses e gerando conhecimento.

Teríamos, portanto, uma capacidade genuína de aproximar nossas diferentes e inúmeras sensações sobre as coisas do mundo, da mesma maneira que hodiernamente um computador aproxima informações. Na medida em que elas combinem entre si, formam uma nova impressão e geramos as ideias. Além disso, existem duas abordagens para a constituição das ideias. A primeira é analítica, que está focada nas relações que a ideia tem entre si. E existe uma abordagem empírica, que está focada nos fatos, nos acontecimentos propriamente realizados. Ideias podem ser preservadas em nosso cérebro como significados e suas conexões lógicas. Essas conexões são o resultado da combinação lógica de nossas impressões, que é também uma conexão estética. E esse sistema de conexão estética das nossas impressões fica à nossa disposição à cada inspeção que fazemos quando precisamos.

David Hume considera que todo o conhecimento vem da experiência: é a base do empirismo.

ATENCAO

David Hume lança mão da ideia de um triângulo plano, que usa como exemplo, para sua explicação sobre a formulação do conhecimento. A ideia do triângulo plano implica a igualdade de seus ângulos internos em dois ângulos retos, e a ideia de movimento significariam as ideias de espaço e tempo, independentemente de haver realmente coisas como triângulos e movimento. Tão somente nessa rede de conexões entre os significados se geraria o conhecimento, passível de comprovação. As questões de fato, concretamente, vêm antes de nossa mente unicamente como eles são, de fato, sem revelar as relações lógicas. Suas características e conexões devem ser aceitas como se nos apresentam. Assim, por exemplo: o chumbo é pesado e o fogo queima. Isto representa as coisas como são de fato, sem nossa interferência. Mas quando relacionamos o chumbo com a fabricação de solda e munição, ou quando usamos o fogo para nos aquecermos, aí estamos construindo conhecimento humano, fruto dessas conexões lógicas que são as sinapses do conhecimento.

A partir dessa perspectiva, Hume desenvolveu sua doutrina sobre a causalidade. Esta ideia, Hume a justifica para sugerir uma "conexão necessária" entre os fatos em si. Quando consideramos qualquer fato ou fenômeno como causalmente ligados, o que estamos realmente fazendo é perceber esteticamente que eles, com frequência, caminham juntos e de maneira uniforme. Nesse tipo de conexão, a ideia que formulamos a respeito de um fato ou fenômeno já traz a ideia, o significado que está contido no outro fato ou fenômeno. Uma conexão habitual é, dessa forma, estabelecida em nossas mentes. E, assim como em outras, o processo de sinapses é sentido como compulsão. Esse sentimento, conclui

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Hume, é a única fonte de impressão que temos. Essa fonte de impressão, através das quais produzimos todas essas relações lógicas na perspectiva de fazer com que as coisas tenham sentido para nós, é como David Hume definiu a teoria da causalidade, isto é, das causas do nosso conhecimento.

5.3 CRENÇA

Na perspectiva de sua teoria da causalidade, Hume compreende o processo cognitivo como de inferência causal. Desde modo, ele introduz o conceito de crença. Quando as pessoas veem um vidro caindo, elas não somente pensam que o vidro quebrou, mas acreditam que o vidro quebrará ao se chocar com a superfície. Numa outra situação, quando os seres humanos observam o solo frequentemente molhado, elas pensam em chuva, não obstante, acreditam que choveu. Desse modo, acreditar é um aspecto fundamental no processo de dedução do pensamento, permitindo uma relação causal lógica que dá sentido aos fatos e fenômenos. Na sequência, o autor passa então a buscar a natureza da crença, considerando-a uma espécie de força vital que acompanha o processo de apreensão da realidade, produzindo as ideias, ou seja, o conhecimento. Dito de outro modo, acreditar é a força vital do nosso conhecimento. E essa força está inicialmente contida nas nossas impressões e sensações, reproduzindo-se nas ideias como que, alegoricamente falando, por transferência genética. Nesse processo de inferência causal, um observador passa de uma impressão para uma ideia regularmente associada a ela. No processo, o aspecto da força vital contida nas impressões e sensações como que infecta nossas ideias.

Não se preocupe, acadêmico, se isso lhe parecer muito abstrato. Se conseguimos compreender muito sobre a realidade, o mundo, a vida, seus fatos e fenômenos, incluindo a complexidade humana, foi por esforços como o de David Hume, sem os recursos que temos hoje. A crença na causalidade e na semelhança do futuro com o passado seriam apenas crenças naturais, a cuja natureza humana está propensa por pura necessidade de sobrevivência. Em outras palavras, é preciso compreender o mundo obsessivamente, para evitar que ele devore as pessoas. Assim, a crença é um fator essencial à sobrevivência dos seres humanos. Sua constituição, não obstante, é intuitiva e dedutiva e que não podem ser simplesmente demonstradas pela razão ou pela observação empírica. Mesmo assim, Hume reafirma que os homens e mulheres tem o poder da crença em sua natureza, sendo sensato utiliza-la. O filósofo adverte que devemos sempre testar nossas crenças, mas que sendo elas inerentes à nossa natureza, devemos mesmo fazer uso delas, sempre as testando. Isso é mais ou menos como disse um dia Sócrates, considerado o homem mais sábio entre os gregos de seu tempo: “Só sei que nada sei”.

5.4 ESCRITOS MORAIS E HISTORIOGRÁFICOS

A obra intitulada Investigação sobre os princípios da moral representa um amadurecimento das reflexões de David Hume. Ali, o autor revela sua felicidade com o fato de que a base de toda a ida dos seres humanos, de suas relações entre si

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e para com o meio ambiente, ser de fato um fator inerente à constituição humana. Assim, a felicidade e o conhecimento são algo possível, porquê, conquanto sejam despertados socialmente, são possíveis por conta da essência dos seres humanos. Nesta obra, ele afirma a moralidade humana, igualmente proveniente da nossa crença em compreender o mundo, é uma qualidade digna de aprovação. Por conseguinte, propõe-se a investigar os fundamentos mais profundos das aprovações e os encontra igualmente nos nossos sentimentos e sensações. Nossas escolhas morais se baseiam, portanto, em nossos sentimentos morais. As qualidades são valorizadas sejam por sua utilidade ou por sua afabilidade, em cada caso, para seus donos ou para outros. O sistema moral de Hume visa a felicidade dos outros e a auto felicidade. Não obstante, o amor aos outros é, segundo o autor, a maior parte da moralidade. Dessa forma, Hume enfatiza o altruísmo, composto pelos sentimentos morais que seriam também inerentes aos humanos. Seria próprio da natureza humana “rir com as risadas e lamentar-se com os aflitos e buscar o bem dos outros, assim como o seu próprio”. Hume considerou essa a sua melhor obra.

Após a publicação dessas obras, Hume passou vários anos (1751 a 1763) em Edimburgo, com duas pausas em Londres. Foi feita uma tentativa de nomeá-lo como sucessor de Adam Smith, o economista escocês (mais tarde seu amigo próximo), na cadeira de lógica em Glasgow, mas o boato do ateísmo prevaleceu novamente. Em 1752, no entanto, Hume foi nomeado depositário da Biblioteca dos Advogados em Edimburgo. Lá, "mestre de 30.000 volumes", ele poderia satisfazer um desejo de alguns anos para se voltar para a escrita histórica. Sua História da Inglaterra, estendendo-se da invasão de César até 1688, saiu em seis volumes in-quarto entre 1754 e 1762, precedido por Discursos políticos (1752). Seus escritos recentes começaram a torná-lo conhecido, mas esses dois lhe deram fama, tanto no exterior quanto em casa. Ele também escreveu Four Dissertations(1757), que considerou como uma ninharia, embora incluísse uma reescrita do Livro II do Tratado (completando sua reformulação expurgada deste trabalho) e um brilhante estudo da História natural da religião, 1762. James Boswell, o biógrafo de Samuel Johnson, chamou Hume de "o maior escritor da Inglaterra" e a Igreja Católica Romana, em 1761, reconheceu suas contribuições filosóficas e literárias, colocando todos os seus escritos no Index Librorum Prohibitorum, sua lista de proibições.

O acontecimento mais curioso de sua vida se sucede em 1763, quando Hume partiu da Inglaterra para assumir o cargo de secretário da Embaixada Britânica em Paris. Sua estada na França foi gloriosa, uma vez que ele tenha sido reconhecido pela sua eminente sabedoria, seu raciocínio arguto e seu estilo de escrita, além sua humildade e bom humor. Esteve lá até 1766, quando retornou a Londres, onde se tornou subsecretário de Estado, convidando Rousseau para trabalhar e morar consigo numa bela casa de campo. Mas desentendeu-se com o filósofo suíço, escrevendo e publicando posteriormente suas correspondências com Rousseau, sob o título de Um conciso e verdadeiro relato acerca da disputa entre o Sr. Hume e o Sr. Rousseau (1766).

Em 1769, um pouco cansado da vida pública e da Inglaterra também, estabeleceu novamente uma residência em sua cidade natal, Edimburgo. Ali,

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desfrutou da companhia intelectual e afetiva de antigos amigos, mas também novos, tendo tempo na vida para revisar seus textos. Ele publicou mais cinco edições de sua história entre 1762 e 1773, bem como oito edições de seus escritos reunidos (omitindo o Tratado, História e efêmeras) sob o título Ensaios e Tratados entre 1753 e 1772. Também preparou a edição final desta coleção, que apareceu postumamente (1777), e Dialogues Concerning Natural Religion, em que ele refutou os argumentos cosmológicos e teleológicos sobre a existência de Deus. A publicação desse trabalho foi represada, a conselho de amigos, e publicada postumamente, em 1779. Ele morreu em sua casa em Edimburgo depois de uma longa doença e foi enterrado em Calton Hill.

Adam Smith, seu executor literário, acrescentou à vida uma carta que conclui com seu julgamento sobre seu amigo como "aproximando-se quase da ideia de um homem perfeitamente sábio e virtuoso como talvez a natureza da fragilidade humana permita" (SMITH, 1947 apud STROUD, 2008, p. 190). Com ministros da religião entre eles, certamente o admiravam e amavam, e havia homens mais jovens devedores à sua influência ou ao seu bolso. Grande número de pessoas só ouvira dizer que ele era ateu e simplesmente se perguntavam como, portanto, seria sua passagem da vida para a morte. Mas um velho amigo que o visitou em sua enfermidade, relatou esse episódio de maneira interessante. Em um trecho de seus Documentos privados, o amigo descrevia que, ao visitar Hume em sua última doença, o filósofo escocês o proferiu uma desarmada defesa, alegre e muito animada de sua descrença na imortalidade.

5.5 A INFLUÊNCIA DE DAVID HUME

David Hume foi reconhecidamente um dos mais influentes pensadores de seu século de vida. Uma de suas reconhecidas qualidades intelectuais reside justamente na sua decisão de rever seus escritos, admitindo erros e os corrigindo, como também complementando assertivas. Nessa perspectiva, é útil distinguir sua importância sob quatro aspectos, a saber:

FIGURA 12 - DAVID HUME, STATUE IN EDINBURGH

FONTE: <http://twixar.me/fzRK>. Acesso em: 16. abr 2019

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5.5.1 Na condição de escritor Como escritor, o estilo de Hume foi reconhecido por seus contemporâneos

e continua sendo uma referência na forma de redigir. Ele contribui para a definição dos padrões clássicos de sua época. Sua forma de escrever é bastante caracterizada pela busca de imparcialidade e pela ausência de julgamentos de valor, orgulhando-se de resguardar-se de suas emoções nos textos. Sua forma de abordagem é moderada e sutil, muito embora seja contundente na ênfase e na defesa de suas ideias. Isso não impede que a leitura de sua obra nos faça observar o prazer da escrita e da reflexão filosófica. Segundo alguns de seus intérpretes, sua forma de escrever remete aos caprichos do artista, caracterizando-se pela suavidade tanto quanto pela clareza de tonalidade solar na apresentação de suas ideias. Assim, Hume é considerado um dos melhores escritores de prosa científica em inglês de todos os tempos.

5.5.2 Na condição de historiador

Entre o ano de sua morte e o ano de 1894, haviam surgido mais de 50 edições de seu livro História da Inglaterra, narrando desde a invasão de Júlio Cesar até a Revolução Gloriosa de 1688. Escreveu também História natural da religião, em que o autor ousa observar a religião de um ponto de vista científico, por isso mesmo, considerado uma obra de caráter sociológico sobre o tema. The Student's Hume (1859) foi outra obra várias vezes reeditada, tendo permanecido como uma das mais lidas na Europa, até o início do século XX. Nos dias atuais, considera-se ultrapassado o seu trabalho historiográfico. No entanto, seu esforço deve ser considerado uma empreitada de reconhecida importância cultural. Em sua época, Hume foi inovador, estando bastante à frente de seu tempo e de seus predecessores. Isso pode ser dito justamente pelo rigor e cuidado no trato de seus objetos, notadamente pela elevada capacidade de tratar dos assuntos de modo imparcial, caracterizando-o como um pensador moderno. Suas contribuições à história da política são inegáveis, traçando os feitos de reis e estadistas, mas também demonstrando os interesses intelectuais dos cidadãos instruídos. Isso pode ser percebido, por exemplo, nas páginas sobre o reinado de James II, no fim do Capítulo II de História da Inglaterra e sobre literatura e ciência sob a Commonwealth no final do Capítulo III. As pessoas e os eventos foram entrelaçados em padrões causais que forneceram uma narrativa com os objetivos e os pontos de descanso dos ambientes sociais recorrentes. Esse passaria a ser o padrão de futuros livros de história.

5.5.3 Na condição de economista

David Hume progride analiticamente na condição de economista em seus Discursos políticos, incorporados em Ensaios e Tratados como a Parte II de Ensaios, moral e política. É difícil mensurar até que ponto foi a sua influência na obra do inglês Adam Smith. Mas é certo que esses dois autores demonstraram aspectos

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muito semelhantes em suas formas de análise. Ambos cultivaram o hábito salutar de ilustrar, de acomodar historicamente seus objetos de observação. Hume não chegou a formular um sistema analítico completo de teoria econômica, como fez Smith em A Riqueza das Nações. Todavia, Hume introduziu várias das novas ideias em torno das quais a “economia clássica” do século XVIII foi construída. Seu nível de percepção pode ser obtido a partir de suas principais alegações.

A riqueza, segundo o autor, não estaria no dinheiro, mas nas mercadorias, pelo valor que os homens a elas atribuem em função de suas utilidades e necessidades embutidas. Também observou que a quantidade de dinheiro em circulação deve ser mantida relacionada com a quantidade de bens no Mercado. Também fazia observar que uma baixa taxa de juros é um sintoma não de falta de dinheiro, mas de comércio em alta. Além disso, dizia que nenhuma nação pode continuar exportando apenas pelo padrão ouro. Influenciou na constituição do liberalismo econômico e na teoria das vantagens comparativas, ao afirmar que cada nação tem vantagens especiais de matérias-primas, relacionadas a clima e habilidade, de modo que o livre comércio de produtos seria, no geral, benéfico a todos. Também afirmava que as nações pobres assim o são porque não produzem o suficiente para que possam participar dessa troca em condições de relativa igualdade. Hume compreendeu o avanço de uma economia agrícola para uma economia industrial como pré-condição do desenvolvimento das nações.

5.5.4 Na condição de filósofo

Hume concebeu a filosofia como a ciência indutiva da natureza humana e concluiu que os seres humanos são criaturas mais sensíveis e práticas, o que ultrapassa a razão. Para muitos filósofos e historiadores, a importância de seu trabalho estaria no fato de que ninguém menos que Immanuel Kant concebeu sua filosofia crítica numa resposta a Hume. A respeito disso, Kant disse que Hume o havia despertado de seu "sono dogmático". Hume foi uma das influências que levou Auguste Comte, matemático e sociólogo francês do século XIX, a desenvolver o positivismo. Na Grã-Bretanha, a influência positiva de Hume é vista em Jeremy Bentham, jurista e filósofo do início do século XIX. Este autor inglês ajudou a formular o utilitarismo, que consiste na teoria moral de que a conduta correta deveria ser determinada pela utilidade das consequências dos atos humanos. Essa teoria foi mais alongadamente desenvolvida pelo filósofo e economista inglês John Stuart Mill, no final do século XIX.

Ao lançar dúvidas sobre a suposição de um elo necessário entre causa e efeito, Hume foi também o primeiro filósofo do mundo pós-medieval a reformular o ceticismo dos antigos. Sua reformulação, além disso, foi realizada de uma maneira nova e convincente. Embora admirasse Newton, o enfraquecimento da causalidade de Hume colocou em questão a base filosófica da ciência de Newton como uma maneira de olhar o mundo, na medida em que a ciência se baseava na identificação de algumas leis causais fundamentais que governam o universo. Como resultado, os positivistas do século XIX foram obrigados a considerar o questionamento de

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causalidade de Hume para que tivessem sucesso em seu objetivo de fazer da ciência a estrutura central do pensamento humano. Durante grande parte do século XX, foi o naturalismo de Hume, e não o seu ceticismo, que atraiu a atenção, dos filósofos analíticos. O naturalismo de Hume reside em sua crença de que a justificação filosófica poderia estar enraizada apenas nas regularidades do mundo natural. O ponto fundamental dessa disputa filosófica estava no fato de que parecia fornecer uma solução para os problemas decorrentes da tradição cética que o próprio Hume, em seu outro papel filosófico, havia feito tanto para revigorar.

O ceticismo é, para além do seu significado literal, a doutrina que sugere que o espírito humano não pode atingir a verdade na sua plenitude. A partir desse pressuposto de humildade científica, o procedimento metodológico e intelectual da dúvida torna-se permanente. Trata-se, então, de reconhecer a incapacidade inata de compreender a realidade na sua plenitude.

ATENCAO

5.6 A CONCEPÇÃO DE ESTADO

Em seu importante tratado sobre A história da Inglaterra, David Hume expressa sua concepção política. Ali, o autor promove uma análise e uma interpretação acerca da trajetória política inglesa a partir da vida e dos comportamentos de príncipes, de reis, de legisladores e do exército. Sua abordagem, não obstante, ultrapassa a narrativa historiográfica, inspirando a postura do historiador sociólogo. Hume promove interfaces entre a política e importantes esferas da sociedade, como a religião, as artes, a ciência, os costumes e a economia. Seu pressuposto básico, e nisso influencia pensadores como Immanuel Kant, reside na noção de que a mola propulsora da história é a luta constante pela liberdade, contra os poderes estabelecidos por aqueles que ocupam o poder. Esses devem ser constrangidos a garantir a liberdade, através dos arranjos legais permanentemente comprometidos com tal condição, a exemplo da Constituição inglesa. A mencionada obra culmina na conclusão de que a carta magna da nação britânica é justamente o resultado desse embate histórico.

UNI

David Hume influenciou o pensamento do último grande pensador iluminista, considerado por muitos o maior filósofo da Modernidade, pela abrangência de seu pensamento: o alemão Immanuel Kant.

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E para compreendermos preliminarmente a concepção de Estado e sua utilidade para David Hume, lembremos que David Hume não comunga com os contratualistas e seu pressuposto de que os homens teriam direitos naturais e que o Estado ou, se quisermos, o poder soberano acima dos homens seja originado de uma convenção entre os indivíduos. Ele não comunga da ideia de que o poder se origine necessariamente na legitimidade de quem governa porque o poder lhe tenha sido outorgado. Com muita frequência, admite o filósofo escocês, o poder é fruto da usurpação, da força e do terror. Não obstante, sua preocupação está em explicar que a sustentabilidade de quem está no poder, no médio ou longo prazos, depende da capacidade de o governante, quem quer que seja e em qualquer regime, de criar as condições para a melhor distribuição possível da justiça entre os homens, além de garantir a liberdade.

6 KANT – ESTADO, AUTONOMIA E ESCLARECIMENTO

“O problema do estabelecimento do Estado tem solução, inclusive para um povo de demônios, por muito forte que soe (desde que tenham entendimento)” (KANT, 2011, p. 366).

Immanuel Kant nasceu na cidade de Königsberg em 22 de abril de 1724. Königsberg já fez parte da Polônia, já pertenceu ao Império Alemão e à União Soviética. Na época de Kant pertencia à Prússia Oriental. Hoje pertence à Rússia e é chamada de Kaliningrado.

Kant nunca saiu de sua cidade natal, que era um importante centro comercial em decorrência do porto pelo qual chegavam, via Mar Báltico, mais que produtos, também as notícias do mundo. Além disso, a cidade era um importante centro universitário em decorrência da Universidade de Königsberg, fundada em 1544, hoje Universidade Immanuel Kant.

FIGURA13 - IMMANUEL KANT (1724-1804)

FONTE: <http://twixar.me/yzRK>. Acesso em: 16 abr. 2019.

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O filósofo nasceu em uma família pobre e muito religiosa, ligada ao luteranismo. Seu pai trabalhava como artesão de couro. Graças ao pastor da família, que era também o reitor do Collegium Fridericianum, Kant teve a oportunidade de ter acesso a uma estrutura educacional de qualidade, na qual estudou latim suficiente para ingressar na Universidade aos dezesseis anos (em 1740), permanecendo nela até os vinte anos (1744). Trabalhou como professor particular por anos, nas casas de seus alunos, retornando à Universidade em 1755 para continuar os seus estudos, recebendo então os títulos de mestre e de doutor em Filosofia, podendo agora lecionar na Universidade. Kant nunca se casou, apesar de ter ficado noivo por duas vezes.

Após dedicar mais de dez anos na redação do livro, publicou em 1781 a Crítica da Razão Pura, uma das obras mais importantes da história da filosofia, na qual o autor discute a possibilidade do conhecimento. Em 1788 publica a Crítica da Razão Prática, na qual o filósofo discute filosofia moral. Já em 1790 chega às mãos dos leitores a Crítica da Faculdade do Juízo, obra na qual Kant discute os juízos reflexivos, divididos entre os juízos estéticos e os juízos teleológicos e com a qual encerra o seu projeto crítico.

Em 12 de fevereiro de 1804, aos 79 anos, Immanuel Kant morre, em decorrência de complicações inerentes ao Mal de Alzheimer. Morreu como um dos professores mais bem pagos da Prússia Oriental, tendo sido reconhecida e valorizada a sua contribuição para a modernidade ainda em vida. É tido como um dos maiores filósofos de todos os tempos, tendo influenciado de modo decisivo toda a filosofia feita após as suas Críticas.

6.1 PARA INÍCIO DE ESTUDO

Nosso principal objetivo aqui é apresentar ao leitor uma introdução a linhas gerais da filosofia kantiana, naquilo que mais pode vir a auxiliá-lo na compreensão da filosofia política desse pensador. Para isso, menciona-se desde já que, segundo esse filósofo do final do setecentos alemão, todas as questões da filosofia podem ser remetidas a uma, a saber: “o que é o homem?” É na tentativa de responder a essa questão principal que o filósofo discorre sobre tópicos como a antropologia filosófica, a teleologia, a filosofia teorética, a estética, a filosofia da religião, a ética e a filosofia política.

O pensamento de Kant é como um organismo, se desenvolvendo desde dentro, em um sistema, como deve ser uma ideia, e não por agregação de partes, não um agregado. Assim, mesmo tendo presente a nossa preocupação principal neste tópico, ou seja, o pensamento político de Kant, cada um dos tópicos que abordaremos na sequência fará referência a um pano de fundo mais amplo e menções ocasionais a outros debates, mesmo que abordados de modo rápido, serão salutares.

Desde uma concepção de homem a partir de uma antropologia filosófica, passando pela função da educação, da civilização, das organizações políticas e sociais, a teoria kantiana segue a direção de promover condições de possibilidades das disposições naturais do sujeito.

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6.2 UMA NATUREZA HUMANA Segundo Kant, o ser humano possui duas direções de disposições

naturais: disposições naturais para a animalidade e disposições naturais para a humanidade. As disposições naturais para a animalidade tratam da manutenção da vida enquanto indivíduo e enquanto espécie. Já as disposições naturais para a humanidade estão relacionadas com o uso da razão, uma disposição para agir moralmente. Ambas as direções dessas disposições naturais precisam ser mantidas e possuem legitimidade em sua esfera de domínios. Com isso, menciona-se que, em Kant, não se defende tentar “calar” as disposições para a animalidade, ou querer extirpá-las. O filósofo salienta, no entanto, que as inclinações animais, o instinto, não devem tomar o lugar da razão.

Ambos os grupos de disposições naturais teriam uma função tendo-se em vista uma perspectiva mais ampla (para além do próprio indivíduo ou mesmo para além de situações contingentes). Todas as disposições que nos são naturais, mesmo não sendo as disposições que visam à moralidade, toscas disposições, também essas colaboram para o desenvolvimento do plano maior da natureza. Para que o homem possa agir livremente, sair da rudeza animal, a natureza teria atribuído também a razão ao homem. Com isso, o homem tem condições de não ser dominado pelas inclinações. Mas a passagem da rudeza da animalidade para um agir livre não se inicia com um cenário somente atrativo, implica superação inclusive do medo do novo cenário, assumindo o controle do que antes ficava a cargo somente da natureza.

As inclinações animais simplesmente se desdobram. Já a razão precisa ser desenvolvida. Nesse sentido é que entra o papel da educação. A concepção de educação possui, assim, íntima relação com uma noção de natureza humana. O ser humano possui uma disposição para o uso da razão. A educação se faz propícia para ajudar o ser humano a desenvolver o seu uso da razão, visando a civilização. A noção de civilização, para Kant, é o domínio das paixões. O sujeito é civilizado na mesma medida em que consegue dominar as suas paixões. A educação é um meio pelo qual o homem consegue sair da menoridade, dominar as suas paixões, alcançar a capacidade de pensar por própria conta e risco, de modo autônomo.

NOTA

Immanuel Kant é considerado o “suprassumo” do Iluminismo. Como já sabemos, o Iluminismo foi o movimento de pensadores que, com a finalidade geral e alegórica de “iluminar” o conhecimento sobre a realidade, fez a grande aposta na razão. Em outras palavras, exclusivamente através do pensamento racional a realidade deveria ser pensada. Nada que não pudesse ser logicamente demonstrado mereceria o atributo de verdade. Na Alemanha, as ideias de Kant foram muito importantes para a concepção do Estado nacional e do sistema educacional.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO POLÍTICO

6.3 A AUTONOMIA DA VONTADE Fazer simplesmente o que se quer não é ser livre. Podemos desejar

com base em instintos, e assim sermos escravos de nossos sentidos, escravos de nossos instintos. A liberdade está relacionada com uma ação que possui na razão seu motivo suficiente, para além de preferências ou interesses pessoais, circunstanciais, ou mesmo para além de ameaças de punição, ou de perspectivas de recompensas pela ação. Há quem faça o correto somente por medo de punição terrestre, ou, visando a recompensas terrestres. Para esse grupo, a vigilância deve ser constante, uma vez que, por exemplo, quando não houver um radar na estrada o sujeito sente-se à vontade para ultrapassar o limite de velocidade. Há quem faça o correto somente por medo de punição divina, ou, visando recompensas divinas. Tendo em vista esse grupo, a religião pode vir a ser útil. E há quem faça o correto por mais que não houvesse ameaça de punição de qualquer espécie e nem visando recompensas de qualquer tipo, fazendo o que é correto simplesmente porque refletiu sobre a situação e a razão é o motivo suficiente para o agir.

A noção de autonomia é a de ser o autor das próprias leis, ou seja, não executar uma lei simplesmente porque alguém, ou uma placa, um livro ou a sociedade mandou. E sim porque o próprio sujeito refletiu e encontrou em sua própria razão a ação a ser seguida. O caminho para a autonomia é o desenvolvimento do uso da razão. Seguir os instintos é parte do plano da natureza para os animais. Mas, simplesmente seguir os instintos é insuficiente para seguir esse mesmo plano, em se tratando do ser humano. A natureza nos deu a razão, e, como a natureza não faz nada supérfluo, a razão é para ser usada, desenvolvida. O ambiente de insegurança, de violência, de guerra não é o ambiente mais propício para o desenvolvimento das disposições naturais dos seres humanos. E, como nem todos os seres humanos agem de modo correto simplesmente porque assim é racional que o façam, uma constituição civil com condições de paz parece ser o caminho para não somente a sobrevivência, mas, também, para o desenvolvimento das disposições naturais, para o uso da razão, em direção ao esclarecimento.

NOTA

Kant é um defensor intransigente da liberdade e da autonomia dos indivíduos. Sugere que as pessoas em geral tem a capacidade de compreender racionalmente o mundo e de formular juízos éticos. Assim, todo ser humano deveria ter acesso a uma educação racional, o que ajudaria a construir uma nação justa e próspera.

6.4 O DIREITO EM SUA RELAÇÃO COM A MORAL

Para Kant, o único direito inato do sujeito é o direito à liberdade. Essa é a base para o sistema jurídico de um Estado, sistemas jurídicos que sempre

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são louvados pelos Estados, mesmo que apenas em aparência. A razão faz parte da natureza humana. O seu uso, o seu desenvolvimento possibilita ao sujeito a ação livre. O ser humano não é uma coisa, e, assim, não possui preço. Coisas possuem preço, podem ser compradas, vendidas, podem ser propriedade. Pessoas possuem dignidade. Os seres humanos não podem ser usados como um mero meio para algo, para a vontade de outros. Cada sujeito é um fim em si mesmo, possui dignidade e direito à liberdade. Com isso, ainda que, como vimos, nem todos os sujeitos encontrem em sua própria razão o fundamento da ação, há de ser considerada uma configuração social que lhes permita fazê-lo, ou, ainda, que dê condições de que os que os indivíduos ajam por dever o possam fazê-lo. O sistema jurídico tem, assim, que possibilitar essas condições do agir por dever.

Para a ação moral, a ação por dever, não importa simplesmente a ação e sim o motivo da ação. Dois sujeitos podem ter a mesma ação diante da mesma situação e um deles ter agido moralmente e o outro não. Isso tendo em vista o motivo da ação. Para o agir moral, importa que o sujeito seja o autor da própria lei, tenha refletido sobre a situação e tenha encontrado em sua própria razão pura o motivo para a ação. Para o sistema jurídico isso não importa. O que importa para o sistema jurídico é a ação em si, por mais que a ação tenha sido executada por ameaças de punição ou visando recompensas. Somente a ação moral é uma ação livre.

6.5 O ESTADO POLÍTICO E O RESPEITO ÀS LEIS O Estado político é o supremo proprietário da terra e o seu objetivo é

regular a propriedade privada. Por ser o supremo proprietário da terra possui a autoridade de tributar os mais ricos visando favorecer os mais pobres. É o Estado quem protege os direitos de seus cidadãos, inclusive o direito à propriedade privada e o direito à liberdade. O modo de governo pode ser republicano ou despótico. A constituição republicana, pautada na representatividade, é tida pelo filósofo como a mais perfeita, sendo compatível com os três princípios da sociedade civil, a saber, a liberdade (enquanto homem), a igualdade (enquanto súdito) e a independência (enquanto cidadão). Para Kant, o poder não pode ser concentrado em um único sujeito, concordando com a divisão dos poderes exposta no Livro XI Do Espírito das Leis, de Montesquieu. A democracia (enquanto forma de Estado, que pode ser autocrático, aristocrático ou democrático) é tida por Kant com desconfiança, uma vez que o pensador entende a democracia como tendendo continuamente ao despotismo.

Mesmo em uma configuração diversa da republicana, como a de um Estado despótico, é dever dos cidadãos obedecer às leis. Juridicamente, devemos obedecer às leis, mesmo as leis injustas. O que caracterizaria uma lei como justa é o consentimento racional do povo à lei. Todas as leis possuem a sua origem na vontade de todos, relacionada à ideia de um contrato originário. Uma lei que não receba o consentimento racional do povo é uma lei injusta. Contudo, mesmo nessa situação, não há, em Kant, a prerrogativa da desobediência civil, de resistência, de revolução contra o soberano.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO POLÍTICO

Nos é permitido pensar de modo contrário às leis e expor publicamente ideias contrárias, de modo cuidadoso e bem examinado, expondo os argumentos contrários à lei em questão. De modo pragmático, no entanto, deve-se obedecer. Isso pode ser resumido na máxima kantiana exposta no texto O que é esclarecimento?: “raciocinais tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei!”. Esse é o posicionamento jurídico, no que concerne às leis. No que concerne à ética, no entanto, é ética somente a ação que tomamos obedecendo a nossa própria razão, de modo autônomo, para além das leis.

O fundamento da liberdade está na razão do próprio sujeito, para além de estar desobedecendo ou não uma lei de outros. Como vimos, a liberdade em Kant é uma ideia da razão desvinculada de leis jurídicas, desvinculada das inclinações, do instinto, das preferências privadas.

6.6 UMA FEDERAÇÃO DE NAÇÕES LIVRES É nítida a influência de Kant, em sua perspectiva cosmopolita ou, ainda,

em especial do ensaio À paz perpétua em iniciativas como a da Organização das Nações Unidas (ONU), ao menos em termos de ideia base ou ainda de inspiração inicial. Nesse ensaio, o pensador formaliza discussões que vinham sendo preparadas em outros textos anteriores, e como o leitor pode notar, parece um caminho natural nesse segmento para a visão de mundo de Kant. O contexto mais adequado para o desenvolvimento das disposições naturais dos seres humanos para Kant é a configuração que é também a inevitável, uma vez potencializando o uso livre e público da razão: a paz perpétua entre as nações. Para o filósofo, uma federação de nações livres poderia ser de grande ajuda no objetivo de eliminar as guerras entre as nações, a partir de iniciativas que desmontem os preparativos à guerra (exércitos, armas, etc.) e intervenham no sentido de manter a justiça para além das fronteiras de cada nação. Para além das fronteiras é também a concepção de pertencimento do ser humano, entendido aqui como cidadão do mundo, em uma perspectiva cosmopolita.

Nessa configuração de paz perpétua (não paz temporária, que seria apenas um armistício) entre as nações, com a vida, a liberdade e a propriedade asseguradas universalmente, os seres racionais estariam em melhores condições do progresso moral. Essa é, para Kant, a única configuração na qual a humanidade enquanto espécie consegue desenvolver plenamente todas as disposições que a natureza colocou em cada ser humano. Buscar essa paz perpétua é um dever dos seres racionais, e, também, é o caminho natural do uso da razão, razão essa dada pela natureza. Assim, pode-se partir do pressuposto de que esse caminho de paz perpétua é o caminho de acordo com a moral, bem como o caminho de acordo com a natureza. É viver de acordo com a natureza, de acordo com uma ideia que serve como fundamento à natureza.

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TÓPICO 3 | ILUMINISMO: MONTESQUIEU, DAVID HUME E IMMANUEL KANT

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como apresentado, a questão política em Kant está intimamente

relacionada com linhas gerais de sua abordagem de uma antropologia filosófica, da pedagogia, da filosofia da história, da ética, de seu sistema filosófico como um todo. Apesar da aposta kantiana na ideia do esclarecimento, do alcance da autonomia, no sujeito moral, salientamos, como epígrafe, um famoso excerto disponível no ensaio À Paz Perpétua, já mencionado, que sugere que para se ordenar uma multidão a conviver em um Estado não precisa pressupor que seja um povo de anjos, ou dito de outro modo, não precisamos pressupor, dos integrantes do Estado, que sejam moralmente bons. Pode ser um povo de demônios, ou, ainda, o povo pode ter disposições más e mesmo assim conviver em um Estado. Desde que sejam demônios racionais.

Nessa perspectiva, a constituição do Estado deve prever que, havendo entre os integrantes do Estado os que possuem disposições más, com interesses particulares, interesses contrários, no âmbito público tais disputas sejam anuladas entre si em meio a esses sujeitos. Tal seria possível em uma configuração republicana, tendendo à paz mesmo uma sociedade de demônios.

LEITURA COMPLEMENTAR

IDEIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL DE UM PONTODE VISTA COSMOPOLITA

Immanuel Kant

“O maior problema para a espécie humana, a cuja solução a natureza a obriga, é alcançar uma sociedade civil que administre universalmente o direito. Como somente em sociedade e a rigor naquela que permite a máxima liberdade e, consequentemente, um antagonismo geral de seus membros e, portanto, a mais precisa determinação e resguardo dos limites da liberdade – de modo a poder coexistir com a liberdade dos outros; como somente nela o mais alto propósito da natureza, ou seja, o desenvolvimento de todas as suas disposições, pode ser alcançado pela humanidade, a natureza quer que a humanidade proporcione a si mesma este propósito, como todos os outros fins de sua destinação: assim uma sociedade na qual a liberdade sob leis exteriores encontra-se ligada no mais alto grau a um poder irresistível, ou seja, uma constituição civil perfeitamente justa deve ser a mais elevada tarefa para a espécie humana, porque a natureza somente pode alcançar seus outros propósitos relativamente à nossa espécie por meio da solução e cumprimento daquela tarefa. É a necessidade que força o homem, normalmente tão afeito à liberdade sem vínculos, a entrar neste estado de coerção; e, em verdade, a maior de todas as necessidades, ou seja, aquela que os homens ocasionam uns aos outros e cujas inclinações fazem com que eles não possam viver juntos por muito tempo em liberdade selvagem. Apenas sob um tal cerco, como o é a união

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO POLÍTICO

UNI

“A constituição civil de todo Estado deve ser republicana. A constituição republicana é aquela estabelecida em conformidade com os princípios: 1) da liberdade dos membros de uma sociedade (enquanto homens), 2) da dependência de todos a uma única legislação comum (enquanto súditos) e 3) de conformidade com a lei da igualdade de todos os súditos (enquanto cidadãos): é a única que deriva da ideia do contrato originário e sobre a qual devem fundar-se todas as normas jurídicas de um povo. A constituição republicana é, pois, no que diz respeito ao direito, a que subjaz a todos os tipos de constituição civil. Seria interessante perguntar-se se é também a única que pode conduzir à paz perpétua. A constituição republicana, além de ter a pureza de sua origem, de ter nascido na pura fonte do conceito do Direito, tem a vista posta no resultado desejado, ou seja, na paz perpétua. Se é preciso o consentimento dos cidadãos (como não pode ser de outro modo nesta constituição) para decidir se deve haver guerra ou não, nada mais natural que se pense muito em começar um jogo tão maligno, já que eles também teriam que decidir para si mesmos todos os sofrimentos da guerra (combater, custear os gastos com seu próprio patrimônio, reconstruir penosamente a devastação que deixa a guerra e, por último e como mal pior, encarregar-se das dívidas que se transferem à paz mesma e que não desaparecerão nunca, por novas e próximas guerras): pelo contrário, em uma constituição na que o súdito não é cidadão, em uma constituição que não é, portanto, republicana, a guerra é a coisa mais simples do mundo, porque o chefe de Estado não é um membro do Estado, mas seu proprietário. A guerra não lhe faz perder os seus banquetes, a temporada de caça, os seus palácios de férias, as festas da corte etc., e pode, portanto, decidir a guerra como uma espécie de jogo, por causas insignificantes, e encomendar indiferentemente a justificativa para ela, por mor da seriedade, ao sempre disposto corpo diplomático”.

KANT, Immanuel. Para a paz perpétua. Trad. Bárbara Kristensen. Rianxo: Instituto Galego de Estudos de Segurança Internacional e da Paz, 2006, p. 67s.- Primeiro artigo definitivo para a paz perpétua. Disponível em: <http://www.ceap.br/material/MAT24022010143539.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2019.

civil, as mesmas inclinações produzem o melhor efeito: assim como as árvores num bosque, procurando roubar umas às outras o ar e o sol, impelem-se a busca-los acima de si, e desse modo obtêm um crescimento belo e aprumado, as que, ao contrário, isoladas e em liberdade, lançam os galhos a seu bel prazer, crescem mutiladas, sinuosas e encurvadas. Toda cultura e toda arte que ornamentam a humanidade, a mais bela ordem social são frutos da insociabilidade, que por si mesma é obrigada a se disciplinar e, assim, por meio de um artifício imposto desenvolver completamente os germes [disposições naturais] da natureza”.

FONTE: KANT, Immanuel.  Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. (Org.). Ricardo Terra. Trad. Rodrigo Naves e Ricardo Terra. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 10s – Quinta proposição).

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Montesquieu foi imortalizado por sua contribuição em relação à divisão dos poderes, ideia progressivamente adotada no Ocidente para a conformação da política moderna, isto é, do ordenamento do Estado.

• David Hume foi um extraordinário inspirador do iluminismo, no sentido de que este movimento histórico intelectual tenha primado pelo uso da razão como forma de compreender as coisas da política.

• Em relação às funções do Estado, a instituição da ordem política e a legitimidade dos seus governos se justifica, sobretudo, pelo compromisso institucional permanente com a garantia da liberdade dos indivíduos.

• Esse compromisso do Estado para com a liberdade é encarado por Immanuel Kant como o direito natural dos homens a ser garantido pelo Estado.

• A liberdade, para o filósofo alemão, significa justamente na autonomia dos homens em reconhecer nas leis a expressão das suas necessidades e obedecê-las justamente por isso.

• O dever moral consiste na obediência dos homens às leis. Essas leis devem, no geral, garantir a liberdade e a autonomia dos homens, incluindo o respeito às liberdades alheias.

• Por isso, a liberdade plena só é possível nessa medida legal. As leis devem ser formuladas de maneira absolutamente racional, para que os homens, dotados de razão e livre arbítrio, as possam reconhecer como legítima expressão das suas vontades e assim obedecê-las.

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1 Indique qual a mais destacada contribuição de Montesquieu para a teoria política moderna e para a concepção da ordem do Estado moderno. Nomeie sua principal obra, em que essa contribuição está explicitada, caracterize e explique tal contribuição.

2 Responda qual é o principal valor, compreendido como um direito natural, defendido pelo filósofo escocês David Hume e o filósofo alemão Immanuel Kant, como compromisso do Estado, a garantir a legitimidade do exercício do poder. Diga, por extensão, dessa identificação, o que esse valor, considerado como direito dos homens, é interpretado por David Hume na história da Inglaterra. E, por extensão, diga por que obedecer às leis significa para Kant a própria expressão desse direito.

AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 3

LIBERALISMO, SOCIALISMO E FEDERALISMO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• entender a perspectiva introdutória acerca do conservadorismo liberal e republicano, bem como a sua influência determinante para a ordem política do Ocidente;

• reconhecer a força do socialismo como pensamento revolucionário, de contundente crítica ao modo de produção capitalista e do impacto de suas ideias para a história política do Ocidente;

• conhecer as características básicas do federalismo e sua aplicação na Constituição dos Estados Unidos da América.

Esta unidade está dividida em três tópicos.No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – TEORIAS CONSERVADORAS: LIBERALISMO DE BURKE, TOCQUEVILLE E STUART MILL

TÓPICO 2 – CRÍTICA AO ESTADO E SOCIALISMO: KARL MARX E O MARXISMO

TÓPICO 3 – OS FEDERALISTAS: HAMILTON, JAY E MADISON

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TÓPICO 1

TEORIAS CONSERVADORAS:

LIBERALISMO DE BURKE, TOCQUEVILLE E

STUART MILL

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Neste tópico apresentaremos as teorias liberais conservadoras de três autores excepcionais. Sim, excepcionais, porque suas contribuições filosóficas fundamentaram o pensamento liberal-conservador de maneira a que nada restasse de essencial. Todas as contribuições anteriores estão, por assim dizer, sintetizadas nas reflexões destes autores e os que os sucederam, devem-lhes o esforço do caminho aberto e da base sedimentada.

Inicialmente, apresentamos o liberalismo paradoxalmente revolucionário

de Edmund Burke, com sua extraordinária aptidão em defesa da liberdade num contexto conservador em que autores inovadores como que pisavam em ovos. Em seguida, passando pelo liberalismo igualitário de Alexis de Tocqueville, temos a primazia de uma descrição sociológica e antropológica, para sermos mais específicos, sobre a experiência da democracia americana como uma grande novidade na política. A beleza do texto de Tocqueville faz dele uma das referências fundadoras da Sociologia que surgiu no fim do século XIX. E vamos até o liberalismo de ressalvas à democracia de Stuart Mill. Os dois autores precedentes também fazem advertências aos limites e perigos da democracia. Porém, John Stuart Mill é mais enfático e nos ajuda a compreender, sobretudo, que as democracias incorrem no perigo de se tornarem as ditaduras da maioria, o que é também bastante atual.

Nessa perspectiva dos autores, é importante acompanhar atentamente a apresentação do pensamento de cada um deles, uma vez que a compreensão de suas respectivas ideias e advertências encarna em grande medida o “espírito” da política moderna que permeia as linhas das cartas constitucionais das nações livres e comprometidas com a justiça e o desenvolvimento. Portanto, estejamos atentos às contribuições destes autores: elas são úteis e permanentes.

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UNIDADE 3 | LIBERALISMO, SOCIALISMO E FEDERALISMO

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UNI

Vamos conhecer aqui ideias fundamentais para a constituição do pensamento liberal do Ocidente. A leitura de Edmund Burke é imperdível. Preste atenção nas suas considerações e vê se não parece atual. Aliás, tão atual quanto pouco conhecido por aqueles que criticam o liberalismo sem ter, sequer, lido uma página de algum pensador liberal.

2 O LIBERALISMO CONTRARREVOLUCIONÁRIODE EDMUND BURKE

O filósofo político Edmund Burke nasceu em Dublin, capital da Irlanda (do Sul), a 12 de janeiro de 1729, filho de pai católico e mãe protestante. Concluiu seus estudos no Trinity College, de tradição protestante. Aos 21 anos foi para a Inglaterra, onde fez sua carreira política e intelectual. Filia-se ao Partido Whig e em 1765 elegeu-se pela primeira vez à Câmara do Povo, tendo exercido três mandatos ao todo. Depois disso, exerceu funções no executivo. Sua qualidade retórica na condição de orador e intelectual de ação política lhe rendeu admiração, mas também inimizades, algo comum aos homens dispostos na busca da verdade e de sua sustentação. Suas inclinações ao pensamento político e suas preocupações com a estética resultaram em uma obstinada originalidade, sendo responsável por inaugurar uma renovada interpretação sobre a ordem política de seu tempo e a vida em sociedade. A leitura de sua obra e a compreensão sobre suas principais ideias é parte necessária à formação de cientistas sociais em geral e faz bem à formação política de qualquer republicano.

Edmund Burke foi um liberal-conservador ao estilo britânico, defensor das liberdades individuais e coletivas. Não obstante, foi também um crítico severo da Revolução Francesa de 1789, um movimento em defesa dessas liberdades, mas que causou danos e vais e vens, que levaram ao questionamento sobre as vantagens e desvantagens históricas de movimentos de ruptura radical. Burke preferia as reformas contínuas, sem grandes rupturas, no que inspira o pensamento político moderado. Sua filosofia política permanece ligada a uma ordem providencial divina baseada no direito natural, isto é, na ideia de que os homens têm direitos naturais inalienáveis, pelos quais lutaram. Reconhecia o conseguimento dos homens por seus direitos como uma conquista política, embora atribuísse esse processo a uma tendência natural sob orientação divina, conduzindo os homens ao desenvolvimento. Ao Estado caberia, por consequência, assegurar esses direitos, dependendo do cumprimento dessa tarefa a sua própria legitimidade.

Ao estilo platônico, Edmund Burke foi literalmente um político filósofo, membro do Partido Whig inglês e autor de uma excelente obra intitulada “Reflexões sobre a revolução em França”, de 1790. O livro foi muito lido em toda a Europa e bem aceito entre os monarquistas franceses, razão pela qual Burke foi criticado pelos seus confrades dos Whigs. Afinal, os Whigs eram, por assim dizer,

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TÓPICO 1 | TEORIAS CONSERVADORAS: LIBERALISMO DE BURKE, TOCQUEVILLE E STUART MILL

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a “esquerda inglesa”, que tinha os revolucionários franceses como referência. Na perspectiva de Burke, contudo,a Revolução na França era um fenômeno de um tipo completamente novo, e por isso não podia ser associado à Revolução Inglesa de 1688. Esta havia provocado uma mudança dinástica e constitucional, ponderada e limitada — como alguns pensadores ingleses, sobretudo Whigs, vinham defendendo. Para Burke, a Revolução francesa baseava-se na teoria dos Direitos Humanos, com preposições simples, universais e dogmáticas. A teoria fazia apelo às leis da razão, claras e indiscutíveis, que se justificavam a si próprias. Seriam por demasiado utópicas, negligenciando tradições e costumes sociais de séculos, que não deveriam ser abandonados em nome de um racionalismo político que só vingaria às custas de uma paradoxal privação de liberdades.

Burke foi também jornalista político, tendo escrito sobre questões importantes do seu tempo, como a vida dos colonos americanos contra a metrópole inglesa e dos católicos irlandeses. Com o mesmo espírito crítico, contrapõe-se à Companhia das Índias Orientais em defesa dos direitos dos hindus. Igualmente, posiciona-se contra o tráfico de escravos e, em pleno século XVIII, sai em defesa dos pobres e de certas minorias sociais. Nessa perspectiva, faz a defesa dos homossexuais ingleses que, segundo o autor, deveriam ser tratados de forma menos repressiva pela autoridade legal.

FIGURA 1 - EDMUND BURKE

FONTE: <https://cdn.pensador.com/img/authors/ed/mu/edmund-burke-l.jpg>.Acesso em: 2 abr. 2019.

3 SUA IDEIA ACERCA DA ORDEM PROVIDENCIAL PELALEI HISTÓRICA NATURAL

Na concepção de Edmund Burke, o curso da história seguia a orientação da divina providência. A finalidade do processo histórico seria o próprio

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UNIDADE 3 | LIBERALISMO, SOCIALISMO E FEDERALISMO

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desenvolvimento dos seres humanos, como um desejo primordial de Deus.O método de desenvolvimento é uma transformação lenta das coisas e das pessoas através da experiência histórica. Aqui está a chave do conservadorismo de Burke: ele é favorável à mudança lenta e gradual, sem grandes interrupções, sem a destruição do que já foi conquistado. Reformas sim, revoluções jamais. A base do desenvolvimento estaria na herança,que determinaria a passagem daquilo que o ser humano é para aquilo que ele se tornará. Nossa herança estaria naquilo que, ao longo da história, no curso do desenvolvimento, foi construído em benefício da humanidade como um todo. Nessa perspectiva, o conservadorismo de Burke, como em geral qualquer conservadorismo, sugere que sejamos capazes de reconhecer o que de bom foi construído, e que serve para o bem de todos.

UNI

Edmund Burke era, no fundo, um otimista em relação às possibilidades de progresso do ser humano através da política. Sua impressão sobre o curso progressivo da história faz lembrar o evolucionismo social que viria um século depois com as interpretações sociológicas do darwinismo.

Exemplo disso seria o direito à propriedade privada, que deveria ser respeitada, inclusive pelos que não a tem. Acontece que o curso histórico do desenvolvimento humano acabaria tornando a propriedade uma condição universal. Assim uma lei que protege a propriedade privada deveria ser considerada uma herança a ser preservada e estendida à humanidade, ainda que isso levasse tempo. Portanto, a hereditariedade seria o princípio natural a possibilitar a transmissão da vida e da propriedade, condição que, para o autor, assegura a estabilidade da sociedade política em sua evolução: a hereditariedade, portanto, permitiria à nobreza a sucessão hereditária das liberdades, franquias e privilégios, concedidos pelos antepassados à Câmara dos Comuns e ao povo. Assim, a sucessão natural de um tipo de governo, por exemplo, o monárquico, seria o resultado normal de um certo desenvolvimento histórico.Isso ocorreria porque a natureza humana é complexa e seria absurdo confiar na razão individual para "descobrir" o sistema político ideal. Trata-se, claramente, de uma defesa do sistema monárquico.

Segundo Burke (2004), o ser humano é muito mais passional do que racional. As paixões dominam o homem na maior parte de sua vida e, embora este acredite agir logicamente de acordo com seus interesses, é, antes de tudo, inconscientemente dominado por seus sentimentos. Por decorrência disso, as relações entre os indivíduos seriam tão incertas, e essa incerteza seria ainda maior entre as relações sociais ampliadas, especialmente as políticas. É que o ser humano, além de sua subjetividade, exerce o papel ampliado de cidadão, dividido entre o que ele acredita ser de seu interesse pessoal a curto, médio e longo prazo, e o interesse dos grupos sociais aos quais pertence, dos mais restritos aos mais

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TÓPICO 1 | TEORIAS CONSERVADORAS: LIBERALISMO DE BURKE, TOCQUEVILLE E STUART MILL

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ampliados. Assim, o legislador seria confrontado com uma realidade tão complexa que escaparia às frágeis razões individuais dos homens. Somente a razão coletiva, geral e histórica é que nos permitiria determinar o que deve ser feito para ir na direção correta do desenvolvimento histórico realmente desejado por Deus.

Portanto,não é a razão de cada indivíduo que inspira os hábitos. É, sim, a razão coletiva que cria os hábitos sociais que são transmitidos e modificados de geração em geração. E serão esses hábitos sociais que levam os homens a atuar no bom sentido moral. Por extensão, os hábitos físicos saudáveis, recomendados pela sociedade,são os que condicionam o bom comportamento do corpo. Burke é obstinado na defesa da ideia de prevalência da sociedade e de suas tradições sobre os interesses individuais. Exemplo dessa posição firme em defesa da política e do interesse público está no discurso em agradecimento ao mandato que lhe fora confiado em 1774 pelos eleitores de Bristol. Ali, Edmund Burke sustenta a defesa da autonomia dos homens no legislativo, devendo seguir sempre o interesse público maior e nacional, acima dos interesses comezinhos e locais de seus eleitores. Sua postura republicana da política como o espaço moral e ético da plenitude do interesse coletivo fica ali explicitada, como se pode ver, na sequência:

O parlamento não é um congresso de embaixadores que defendem interesses distintos e hostis, interesses que cada um de seus membros deve sustentar, como agente e advogado, contra outros agentes e advogados, mas uma assembleia deliberativa de uma nação, com um interesse: o da totalidade, onde o que deve valer não são os interesses e preconceitos locais, mas o bem geral que resulta da razão geral do todo. Elegeis um deputado, mas quando o haveis escolhido, ele não é o deputado por Bristole sim um membro do parlamento. Se o eleitor local tiver um interesse ou formar uma opinião precipitada, o deputado, no assunto em pauta, deve se abster, como os demais, de qualquer gestão para levá-lo a cabo (Apud LATTMAN-WELTMAN, 2011, p. 187).

Nessa perspectiva republicana, como sugere Lattmman-Weltman (2011), o político-filósofo britânico é enfático na defesa do compromisso estritamente público do parlamentar. Tal postura pode parecer estranha aos nossos olhos contemporâneos, por conta do desvirtuamento da função parlamentar que presenciamos em nossa sociedade. Isso é resultado do próprio entendimento equivocado que nós eleitores temos das funções de um representante legislativo na Câmara dos Deputados. Dele cobramos fidelidade regional (que seria função de um senador), quando seu papel deveria ser o de representante dos interesses gerais. E, ainda que esse desvirtuamento se estenda aos partidos políticos atualmente, voltemos ao tempo e ao contexto histórico de Edmund Burke. Ali, devemos reconhecer em suas preocupações os fundamentos da boa política contemporânea. Isso passa, necessariamente, pela resposta que Burke oferece como a melhor alternativa para evitar o egoísmo e o localismo parlamentar: o partido político. Nessa perspectiva, segue um pequeno trecho de uma de suas obras:

Um partido é um grupo de homens unidos para fomentar, através de ações conjuntas, o interesse nacional, na base de algum princípio determinado sobre o qual todos estão de acordo. De minha parte, parece-me impossível conceber que alguém acredite em sua própria política ou acredite que esta possa ter algum peso se se nega a adotar os meios de colocá-la em

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prática. A tarefa do filósofo especulativo consiste em descobrir os fins correspondentes ao governo. A do político, que é o filósofo em ação, é a de encontrar meios adequados para alcançar tais fins e utiliza-los com eficácia (apud LATTMANN-WELTMANN, 2011, p. 189).

Nessa direção, Edmund Burke revela, ao menos, dois aspectos de seu pensamento. Primeiramente, demonstra uma postura científica, tipicamente moderna, segundo a qual cabe ao observador da cena política compreendê-la, isto é, “descobrir os fins correspondentes”. Apesar de ser um moralista, o autor não reduz sua função intelectual à tarefa de dizer como a política deve ser. Ele também propõe entendê-la como ela realmente funciona, no que reflete o pensamento moderno e, portanto, científico, já sugerido por Machiavel. Não obstante, revela também as raízes da formação de seu pensamento político. Quando sugere a combinação do político filósofo, isso nos remete à tradicional ideia de Platão, quando este filósofo grego da antiguidade defendia a ideia do rei filósofo, isto é, aquele governante sábio, que unia a teoria à prática. Ao largo disso, o autor demonstra seu engajamento republicano na defesa da sobreposição do coletivo sobre os interesses individuais. E, por extensão disso, aparece a defesa consequente dos partidos políticos como a melhor alternativa.

4 COMENTÁRIOS ACERCA DA REVOLUÇÃO FRANCESA

Observadas tais características, isso nos autoriza ir à feição mais geral e conhecida da obra de Edmund Burke, qual seja, seu posicionamento liberal-conservador expresso nas observações críticas à Revolução Francesa. Quando esse acontecimento eclodiu, em 1789, foi inicialmente percebido com grande entusiasmo na Inglaterra. Edmund Burke foi cauteloso em relação ao evento, procurando observar suas consequências imediatas e refletindo acerca de seus efeitos possíveis. Depois de certo tempo, começou a disparar suas críticas em relação a essa reação tão favorável. Nessa perspectiva, sentiu-se provocado a escrever suas Reflexões sobre a Revolução na França (1790). Sua notável hostilidade com a subversão à tradição tornou-se amplamente conhecida e provocou reações correspondentes. Entre as mais conhecidas, está The right of man, de Thomas Paine (1791-92). A partir daí, nasce um importante e criativo debate intelectual no pensamento político moderno, entre o conservadorismo e a defesa dos direitos humanos.

Burke introduz suas Reflexões sobre a Revolução Francesa examinando as personalidades, as causas e as ações políticas das lideranças desse movimento. Analisou as principais ideias que justificaram o movimento e, concentrando-se nos conceitos revolucionários de “direitos do homem” e soberania popular, apontou os riscos dos meros ideais democráticos diante da crueza complexa da realidade. Criticou a defesa da vontade da maioria, muitas vezes desordenada e manipulável, contrapondo-a à sabedoria e à liderança responsável das aristocracias hereditárias. Além de menosprezar o idealismo revolucionário, também criticou o racionalismo político do movimento. A ideia do racionalismo, aliás, muito presente em toda a trajetória política do Ocidente até os dias atuais, baseia-se na presunção geral de que haveria um caminho racional e único para o estabelecimento da vontade geral, baseada na justiça, no progresso e na liberdade.

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NOTA

A crítica à Revolução Francesa é sua marca mais conhecida como pensador e, até hoje, lhe custa o ônus da antipatia de uns e o bônus da admiração de outros.

Essa crença continua alimentando as esperanças de políticos e intelectuais até hoje, contra a qual se opõe a tradição liberal, que prefere apostar na liberdade e admitir as imperfeições da Sociedade, do que nos grandes planos estratégicos dos operadores do Estado. E não seria apenas a velha e boa ordem social que estava sendo derrubada por essa crença “equivocada”. Também estaria em curso a “nefasta” desvalorização da tradição e dos valores herdados e uma destruição impensada dos recursos materiais e espirituais dolorosamente adquiridos pela sociedade. Aos devaneios da Revolução, contrapõe o exemplo das virtudes da Constituição inglesa. Em sua referência, destaca a preocupação com a continuidade e o crescimento gradual e organizado, o respeito pela sabedoria tradicional e pelo uso dos direitos prescritivos e não abstratos. Além disso, enaltece sua aceitação à hierarquia baseada no respeito à propriedade, na consagração religiosa da autoridade secular e no reconhecimento da imperfeição humana. Desse modo, o autor expressa sua perspectiva antropológica, contrária àquela que reconhecemos em Rousseau, sobre a suposta natureza boa dos homens.

Edmund Burke permaneceu um crítico à Revolução Francesa até o fim, o que lhe rendeu notável e profícua influência entre o pensamento conservador europeu. Perseverou, defendendo-se de seus críticos, opondo-se irreconciliavelmente ao reconhecimento do governo revolucionário francês. Não obstante, seus escritos revelam importantes princípios morais que ultrapassam sua indisposição em relação ao moralismo revolucionário. Esses princípios são, em essência, uma exploração do conceito de “natureza” ou “lei natural”. Burke concebe a vida emocional e espiritual do homem como uma harmonia dentro da ordem maior do universo. O autocontrole e a autocrítica seriam inerentes à natureza humana. Por decorrência, a vida moral e espiritual seria uma extensão dessa natureza, gerada a partir dela e com ela harmoniosa. Segue-se que as sinergias entre a Sociedade e o Estado tornariam possível a plena realização da potencialidade humana, produzindo o bem comum e permitindo um acordo tácito ou explícito sobre normas e finalidades. Assim, por um processo educacional através da política, a harmonia social seria uma tarefa cotidianamente realizável. Desnecessárias seriam as grandes alterações, apenas mudanças contínuas no curso do progresso e do desenvolvimento humano.

E, é principalmente esta ideia sobre o curso evolutivo da história a marca mais conhecida de Edmund Burke. Sua perspectiva sociológica está contida na sugestão de que a humanidade progride a passos lentos, em sociedade e que não se joga fora o aprendizado adquirido. Essa é sua contribuição mais notável e pelo que é

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mais claramente lembrado na teoria política moderna. Nada seria mais importante para esse filósofo político irlandês do que preservar as conquistas sociais que acontecem ao longo da história. Tais conquistas acontecem, segundo Burke, em sociedade e preservando as liberdades dos indivíduos, desde que compatíveis com o interesse público. Não há, na perspectiva do autor, a ideia de uma sociedade eternamente injusta, marcada pelo conflito entre a aristocracia e o povo.

Nessa perspectiva, Edmund Burke não diferencia os homens fundamentalmente pela condição social e econômica, ao contrário, assemelha-os pela própria condição humana. Não existe uma concepção conflituosa entre o bem e o mal, como em outros filósofos, a exemplo de Rousseau, que vê bondade no povo e maldade nos proprietários da riqueza. E, na perspectiva da sabedoria divina, crê que o ser humano é um ser naturalmente predisposto à evolução cognitiva e moral, independente da condição de classe. Isso exime a interpretação de que o mal reside no poder e é operado por quem o detém. Significa admitir que o mundo é injusto porque os homens são falhos, mas também corrigíveis. Isso inclui as elites que, apesar de errarem, também são capazes de corrigir e se redimir, pela simples condição humana evolutiva, fruto da vontade divina. E, com todas as contribuições anteriores e posteriores, pode-se afirmar que essa é a essência do pensamento liberal conservador na teoria política moderna.

Esse fundamento do conservadorismo liberal implica a rejeição ao idealismo revolucionário e a busca de uma verdade única, redentora política da sociedade. De forma absolutamente oposta, Edmund Burke aposta no exercício diário, portanto, contínuo da política. Seria no dia a dia, por meio da participação republicana, dos diálogos e das ações, entre erros e acertos que os homens em sociedade encontrariam as soluções para os problemas coletivos. Naturalmente, Burke não está pensando em homens e mulheres como anjos na política. Ao contrário, reconhece suas fragilidades morais e afetivas, não obstante aposta no livre curso das práticas coletivas. Desse modo, sugere que, respeitada institucionalmente a condição da liberdade, os seres humanos são dotados de condições para as soluções de seus problemas. Não há fórmula, nem grande plano, tampouco um líder ou grupo de homens especiais e acima das condições humanas normais para isso. E tudo que foi politicamente conquistado deve ser somado à trajetória histórica, geradora de novas orientações, leis e práticas ao desenvolvimento.

DICAS

O jornalista e escritor cubano Carlos Alberto Montaner concede interessante entrevista ao Sítio do Instituto Millenium sobre o liberalismo. Vale conferir. Disponível em: <https://www.institutomillenium.org.br/etiqueta/carlos-alberto-montaner/>.

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5 O LIBERALISMO IGUALITÁRIO DE ALEXIS DE TOCQUEVILLE

O filósofo francês Alexis de Tocqueville nasceu em Paris, a 29 de julho de 1805 e viveu até aos 55 anos. Seus escritos têm grande repercussão na história e na teoria política modernas, além de importância basilar na formação do pensamento sociológico, cuja contribuição foi demonstrada por Raymond Aron em Etapas do pensamento sociológico. Ligado à aristocracia, seu ingresso na carreira pública foi facilitado com o auxílio do pai monarquista. Nesse estágio da vida, observou atento o desenrolar do embate constitucional entre liberais e conservadores na França, orientando-se pelas análises feitas pelo historiador e político François Guizot (1787-1874), que o inspirou. Guizot sustentava que a decadência da aristocracia francesa e europeia nada mais era do que uma questão de tempo. Compreendendo a perspectiva analítica desse historiador francês, Tocqueville percebeu a importância de estudar a história política da Inglaterra, percebendo na ordem política e jurídica daquele país uma referência de evolução e materialização de aspirações políticas de primeira grandeza.

Quando Tocqueville nasceu, seus compatriotas celebravam o 16º ano da Revolução Francesa e o destino quis que ele vivesse um tempo tão notável quanto a sua sensibilidade sociológica de perceber o contexto histórico em que viveu. Aos seus 25 anos, Tocqueville presencia a ascensão da burguesia com a Revolução de julho de 1830, que empossa Luís Felipe de Orleans, o denominado “Rei cidadão”. O governo de Luís Felipe, que irá até o ano de 1848 com o apoio da classe burguesa, terá sido o responsável pela expansão colonial e a conquista da Argélia, além de uma aproximação política com o Reino Unido. Tocqueville está convicto de que seu país passava rapidamente de uma nação aristocrática para uma democracia baseada na igualdade social. As comparações que fez entre a política francesa e a monarquia constitucional inglesa lhe ensinaram muito. Não obstante, seu entusiasmo com o futuro e o ímpeto liberal-democrata o levaram à curiosidade sobre o que acontecia nos EUA, para onde conseguiu permissão de viajar com a justificativa de acompanhar as reformas do sistema penitenciário.

IMPORTANTE

As observações sobre os costumes do povo estadunidense foram inspiradoras ao surgimento da sociologia ao longo das décadas seguintes do século XIX. Isso se nota, sobretudo, em relação às abordagens culturalistas, que relacionam os costumes às instituições políticas e econômicas, como se pode observar na obra de Max Weber, de um século depois da publicação de Democracia na América.

Essa fantástica expedição é a fonte de inspiração para a formulação sociológica do autor, ou poderíamos ainda denominar de sua antropologia política. Tocqueville viaja acompanhado de Beaumont, seu grande amigo da

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juventude e de outras viagens expedicionárias financiadas pelo governo francês. Embora a justificativa fosse conhecer o sistema penitenciário americano a fim de que isso ajudasse a repensar o sistema francês, os dois queriam mesmo era conhecer a experiência de uma ordem política que estava se formando sem um poder monárquico constituído. Os Estados Unidos da América eram uma grande nação em formação. Portanto, sua experiência, do ponto de vista social, político, econômico e cultural prenunciava as possibilidades de um novo futuro à humanidade, através da materialização dos ideais políticos liberais originados na Europa. Os conhecimentos adquiridos nessa expedição, leia-se, as lições que a sociedade estadunidense lhes oferecia, seriam bastante adequados para ajudar a direcionar o futuro político da França.

Os dois intelectuais expedicionários passam meses viajando pelo interior dos Estados Unidos, entre 1831 e 1832. O primeiro resultado literário dessa estada é um livro em coautoria intitulado Sobre o Sistema Penitenciário nos Estados Unidos e Sua Aplicação na França(1833); Beaumont publica Marie: ou a escravidão nos Estados Unidos, dois anos depois. No mesmo ano de 1835, Tocqueville publica a primeira parte de seu fenomenal livro, intitulado Democracia na América. A segunda parte desta obra seria publicada em 1840. Ali, o filósofo francês enfrenta a desafiadora tarefa intelectual de compreender os fundamentos culturais da sociedade americana, destacando a igualdade como condição de ponto de partida entre os homens naquela sociedade, apesar da escravidão. Tocqueville procurou compreender os fundamentos de uma experiência social inédita, leia-se, a construção de uma vigorosa democracia liberal. Procurou identificar falhas e potencialidades, pronunciando que os Estados Unidos se tornariam a grande potência do século seguinte, pela força de seus costumes baseados na liberdade e na igualdade. O entusiasmo por esses fatores é visível em sua obra, como se pode ler em trecho reproduzido por Ferreira, a seguir:

Dentre as coisas novas que me atraíram a atenção durante a permanência nos Estados Unidos, nada me surpreendeu com mais força do que a igualdade geral de condição entre o povo. Prontamente percebi a influência prodigiosa que este fato fundamental exerce no curso inteiro da sociedade. Dá uma direção à opinião pública e um teor particular às leis; leva a novas máximas as autoridades governantes e a hábitos peculiares os governados. Logo senti que a influência deste fato se estende muito além do caráter político e das leis do país, e que seu poder é tão grande sobre a sociedade civil quanto sobre o governo; cria opiniões, dá azo a novos sentimentos, funda costumes novos e modifica seja o que for que não produza. Quanto mais avancei no estudo da sociedade americana, mais percebi que esta igualdade de condição é o fato fundamental de que todos os outros parecem ser derivados, e o ponto central onde todas as minhas observações constantemente terminavam. Voltei então meu pensamento para nosso próprio hemisfério e pensei que lá discernia algo análogo ao espetáculo que o Novo Mundo me apresentava. Observei que a igualdade de condição, embora lá não tenha atingido o limite extremo que parece ter alcançado nos Estados Unidos, constantemente dele se aproxima; e que a democracia governadora das comunidades americanas parece estar subindo, rapidamente, ao poder na Europa. Por isso concebi a ideia do livro que agora está diante do leitor (Apud FERREIRA, 2011, p. 256).

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Aquele membro da aristocracia francesa estava realmente encantado com a experiência política, cultural e econômica sem precedentes no mundo moderno. Não obstante, os Estados Unidos pareciam a própria síntese de todo o esforço da filosofia política europeia ali materializado, incorporado e tornado real por uma sociedade concreta, de carne, osso e vontade humana. Aliado a essa realização prática dos ideais da filosofia política estavam os ensinamentos cristãos igualmente corporificados por indivíduos que pareciam querer levar ao pé da letra os ensinamentos bíblicos. Estes só poderiam ser realmente constituídos na salutar ausência de um poder aristocrático e usurpador. Ali, naquele terreno do Novo Mundo, a utopia democrática tornava-se um fato, expressão concreta da vontade divina e da potência humana através do livre arbítrio. Tocqueville estava diante da fantástica constatação de que a constituição de uma sociedade livre e igual era realmente possível e de que a América diante dos seus olhos prenunciava o futuro da civilização. Nessa perspectiva, Tocqueville observava com entusiasmo que:

A característica notável da condição social dos anglo-americanos é a sua essencial democracia [...]. A condição social dos americanos é eminentemente democrática; era esse o seu caráter na fundação das colônias e está mais fortemente acentuado hoje em dia [...]. Na América, o elemento aristocrático sempre foi fraco desde a nascença; e se nos nossos dias não está realmente destruído, está seja como for, tão incapacitado que mal lhe podemos atribuir qualquer grau de influência no curso dos negócios. O princípio democrático, ao contrário, ganhou tanta força com o tempo, os eventos e a legislação, que se tornou não só predominante, mas todo-poderoso. Não há autoridade familiar ou corporativa, e é raro ver até a influência de caráter individual gozar de qualquer durabilidade. A América exibe, portanto, em seu estado social, um fenômeno extraordinário. Lá se veem os homens com a maior igualdade em ponto de fortuna e intelecto ou, por outras palavras, mais iguais em sua força, do que em qualquer outro país do mundo, ou em qualquer idade da qual a história tenha preservado a lembrança (Apud FERREIRA, 2011, p. 257).

NOTA

Diálogo, participação e liberdade: componentes essenciais da democracia e do desenvolvimento de uma nação, traduzindo o espírito republicano.

É importante insistir: Democracia na América é, entre tudo, um manifesto de crença sobre a capacidade humana de construir, de fato, uma democracia, em condições de liberdade de ação e coletivamente. Contudo, não o é somente como resultado daquilo que o idealismo filosófico tanto aspirou, mas também a realização da própria providência divina. Para o filósofo Alexis de Tocqueville e para muitos dos pensadores liberais de sua época, a realização efetiva de uma sociedade democrática significava a própria materialização das escrituras

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sagradas. As características da democracia estavam pronunciadas pelo próprio cristianismo. E, numa perspectiva moderna, assimilada pelo próprio protestantismo que era dominante entre as colônias norte-americanas, tratava-se da edificação do paraíso na terra. Vale lembrar que a ética pressupunha, como o faz até hoje, que a forma de demonstrar o amor a Deus estaria na realização de obras seculares, isto é, realizadas no cotidiano da vida dos homens e mulheres, seguindo estritamente as orientações prescritas na Bíblia. Assim, nas palavras de Tocqueville:

O desenvolvimento gradual do princípio da igualdade é, portanto, um fato da Providência. Tem todas as características principais de tal fato; é universal, durável, [...] e todos os eventos como todos os homens contribuem para o seu progresso. Seria, então, sensato imaginar que um movimento social cujas causas são tão remotas poderia ser detido pelos esforços de uma geração? Pode acreditar-se que a democracia, que derrubou o sistema feudal e baniu os reis, retrocederá diante dos negociantes e capitalistas? Parará agora, que se tornou tão forte, e seus adversários tão fracos? Para onde, então, estamos tendendo? Ninguém pode dizer, porque nos falham já os termos de comparação. As condições do homem são mais iguais, presentemente, nos países cristãos, do que o foram em qualquer época passada, ou em qualquer parte do mundo; por isso, a grandeza do que já foi feito não nos deixará prever o que falta conseguir. Na sua totalidade, o livro que aqui se oferece ao público foi escrito sob a impressão de uma espécie de terror religioso produzido no espirito do autor pela visão dessa revolução irresistível que avançou durante séculos, a despeito de todos os obstáculos, e que continua avançando no meio das ruínas que causou. Não é necessário que o próprio Deus fale para podermos descobrir os sinais indiscutíveis de sua vontade. É suficiente constatar o curso habitual da natureza e a tendência constante dos eventos. [...]. Se o homem de nossos dias se convencesse, por observação atenta e reflexão sincera, de que o desenvolvimento gradual e progressivo da igualdade social é ao mesmo tempo o passado e o futuro de sua história, esta descoberta, por si só, conferiria o caráter de decreto divino à mudança. Tentar deter a democracia seria, neste caso resistir à vontade de Deus (Apud FERREIRA, 2011, p. 258).

Nessa perspectiva, Tocqueville complementa seu proselitismo de feição político-teológico, insistindo que governantes e legisladores, assim como os homens de negócio, se convençam, o quanto antes, da inevitabilidade do providencial destino manifesto à humanidade. Aos líderes, em cada nação, portanto, caberia assumir e antecipar essa tarefa civilizatória e divina, qual seja, a de construírem a democracia, desde a educação do povo até a consolidação das leis. Nessa perspectiva, assevera Tocqueville:

O primeiro dever que se impõe aos que dirigem nossos negócios é educar a democracia; renovar, se possível, sua convicção religiosa; purificar sua moral; regular seus movimentos; substituir, gradativamente, sua experiência pelo conhecimento dos negócios, e seus instintos cegos pela familiaridade com seus verdadeiros interesses e faze-la conformar-se com as ocorrências e com o homem da época. É necessária uma nova ciência política para um novo mundo (Apud FERREIRA, 2011, p. 258).

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Quando Alexis de Tocqueville decide solicitar ao governo francês que o permita empreender tal viagem de estudos, ele já está esperançoso de que vá confirmar suas expectativas. Tem em mente, como profere anteriormente, promover uma contribuição exponencial ao pensamento político moderno. Falava já em “uma nova ciência política” e pretende contribuir efetivamente com a emergência de um conhecimento científico sobre a organização de uma sociedade. Está pensando no método empírico, que caracterizaria e legitimaria todo o campo das ciências sociais, a exemplo das ciências naturais, e traria a confiabilidade que ainda faltava acerca da teoria política. Noutras palavras, seu empenho em defesa da democracia não podia ser apenas proselitista, discursivo, de desejo por um mundo melhor. Tocqueville está determinado a demonstrar que os pressupostos da democracia, em convergência com os valores cristãos, eram não apenas desejáveis, mas exequíveis, e a América era a prova disso.É quando confessa que:

Não foi, portanto, para satisfazer minha mera curiosidade que examinei e estudei a América; meu desejo foi encontrar ali instrução com a qual possamos lucrar. [...].Reconheci essa revolução como um fato já consumado, ou em vésperas de consumação, e selecionei a nação, entre as que já a sofreram, na qual seu desenvolvimento tem sido mais pacífico e completo, a fim de discernir suas consequências naturais e apurar, se possível, quais os meios de a tornar mais proveitosa à humanidade (Apud FERREIRA, 2011, p. 258.).

Tocqueville tinha apenas uma ressalva à democracia americana, o que ele entendia como uma tendência universal das democracias e contra a qual era preciso precaver-se. Trata-se, ao mesmo tempo, todo problema da tirania da maioria contra as minorias e a arbitrariedade despótica do Estado, respaldada pela própria tirania da maioria. O fundamento da democracia está na soberania da vontade geral. No entanto, a vontade da maioria, respaldada pelo Estado, tende a gerar o individualismo, levando os indivíduos a se fecharem no seu pequeno mundo familiar e abandonando o espaço público, isto é, a política. Nada mais perigoso, segundo o autor, do que permitir que o Estado, em nome da vontade geral, cuide de todos os aspectos das nossas vidas. Nada mais temerário do que a acomodação dos homens e mulheres no conforto da igualdade e do provimento das necessidades básicas por um ente intermediador das relações sociais e da ordem pública. Sem uma fórmula para evitar essa tendência, Tocqueville adverte que:

democracia se justifica pelo fato de que favorece o bem-estar do maior número, mas este bem-estar não tem brilho ou grandeza, e não deixa de apresentar perigos políticos e morais. Com efeito, toda democracia tende à centralização e, em consequência, tende a uma espécie de despotismo (TOCQUEVILLE, 2005 apud FERREIRA, 2011, p. 258).

Tocqueville acreditava que a democracia seria o destino da Europa e do mundo civilizado, motivo pelo qual era preciso observar-lhe as virtudes e atentar aos seus vícios. As sociedades deveriam estar constantemente voltadas à preservação das virtudes. Para o autor, “a atividade política que permeia os Estados Unidos precisa ser vista para ser compreendida. Mal se põe o pé no solo americano, já se fica abismado por uma espécie de tumulto; [...] e mil vozes exigem, simultaneamente, a satisfação de suas necessidades pessoais” (TOCQUEVILLE,

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2005 apud FERREIRA, 2011, p. 258).E continua observando que o funcionamento das assembleias legislativas que tanto impressiona os estrangeiros, nada mais é do que o “movimento que tem origem nas classes mais baixas e se estende a todas as categorias da sociedade”. Em seguida conclui: “É impossível despender mais esforço na procura da felicidade. Os cuidados da política ocupam um lugar preeminente nas ocupações dos cidadãos dos Estados unidos, e quase que o único prazer que os americanos conhecem é o de tomar parte no governo e discutir suas medidas” (TOCQUEVILLE, 2005 apud FERREIRA, 2011, p. 263).

Imediatamente após a publicação da primeira parte desse livro notável, seu autor passou a ser reconhecido como um proeminente pensador da teoria política ocidental. Foi nomeado para a Legião de Honra, que é a Academia Francesa de Ciências Morais e Políticas, e para a Academia Francesa (correspondente às letras). O livro fez muito sucesso e, em alguns anos, estava publicado em países como Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Espanha, Dinamarca, Hungria e Suécia, além, é claro, de França e Estados Unidos. A segunda parte seria publicada cinco anos depois, como já dissemos, consagrando o autor como um clássico do pensamento político nos Estados Unidos. Sua capacidade de interpretar a antropologia cultural da nação norte-americana foi amplamente reconhecida e, do ponto de vista da teoria política, Democracia na América ajudou a compreender as importantes relações entre os costumes e as instituições políticas, como também as econômicas. Do ponto de vista propriamente sociológico, essa mesma observação e relação causal ajudou a semear o terreno da sociologia e, ainda, do ponto de vista da ciência política, mas também do direito, ajudou a inaugurar a corrente teórica do institucionalismo.

A notabilidade do gênio intelectual de Tocqueville foi mais amplamente alcançada após a sua morte, em 1859. Na década seguinte, várias eram as nações europeias que já tinham seus sistemas eleitorais. O que podemos afirmar acerca desse fato é que a descrição de Tocqueville sobre a cultura democrática estadunidense e seus efeitos vantajosos ao equilíbrio da ordem social muito contribuíram para esse processo histórico. Por conseguinte, Tocqueville decantou as vantagens de uma ordem política descentralizada, cujo Estado se edificou de baixo para cima. O autor observou muito bem o processo de construção republicano que formou as leis, baseado na participação dos indivíduos nos processos decisórios. Essa participação política iniciava nas comunidades locais, passando por instâncias intermediárias, até chegar ao Estado central unificado, constituindo literalmente os Estados Unidos da América. Sua observância aos efeitos da igualdade e da liberdade influenciou os debates republicanos na Europa, derivando em conclusões e ideias que interferiram nos processos constitucionais ao longo das décadas seguintes.

No século seguinte à existência de Tocqueville, a sucumbência das instituições liberais às experiências totalitárias fez com que a obra do pensador liberal e defensor da democracia fosse temporariamente desprezada. Mas foi também a reação ao totalitarismo do século XX que fez com que sua obra ressurgisse com força. Todo o seu esforço empírico e reflexivo foi utilizado para

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demonstrar que a preservação da liberdade na polis era a forma sustentável de promover o desenvolvimento. Para ele, a chave do desenvolvimento estava nos costumes que, por sua vez, refletiam na organização das sociedades, suas leis e seu cumprimento. É uma tremenda “sacada” sociológica e é essa a razão pela qual é reconhecido como um dos fundadores da sociologia e da ciência política. Embora Montesquieu tenha sugerido isso, o fez ainda de modo especulativo. Por sua vez, Tocqueville o demonstrou de modo meticuloso e convincente, ajudando a inaugurar mais tarde o método culturalista, tanto na sociologia quanto na ciência política.

Nessa perspectiva, o grande clássico da sociologia, de Max Weber, é frequentemente vinculado ao pensamento de Tocqueville. No início do século XX, Weber teve a grande percepção sobre como determinados aspectos valorativos interferiram no desenvolvimento econômico. Em A ética protestante e o espírito do capitalismo, o sociólogo alemão explica o desenvolvimento do capitalismo a partir da ética e dos costumes religiosos de protestantes na Europa, mas também nos Estados Unidos. Quase um século antes, nessa mesma perspectiva metodológica, o filósofo francês fazia a relação dos costumes e da ética religiosa do povo norte-americano ao desenvolvimento de suas instituições políticas. E, tão confiante na eficiência metodológica do seu empirismo, profetiza com grande acerto ao afirmar, no século XIX, que os Estados unidos, pela força dos seus costumes democráticos, se tornariam a grande potência do século seguinte. Nessa perspectiva, o filósofo francês continua a ser atual. Seu desprezo pelas sociedades de cultura autoritária e de pouco dinamismo continua servindo de inspiração teórica a todos os que advogam pelas liberdades. E não estamos nos referindo simplesmente às liberdades individuais, mas sobretudo, ao senso comunitário ou, se quisermos, republicano, como condição para o desenvolvimento das sociedades e dos indivíduos.

Portanto, a obra de Alexis de Tocqueville representa uma referência indispensável à formação do pensamento ocidental moderno. Mais que isso, a interpretação sociológica que esse filósofo francês fez e ofereceu sobre as possibilidades e os limites da democracia, tornam a leitura de seus textos uma obrigação contemporânea. Notadamente, cientistas políticos, sociólogos, mas também antropólogos, economistas, juristas e homens de Estado precisam ter, ao menos, a noção básica de seus ensinamentos. Como já afirmamos, tais lições dizem respeito às vantagens inequívocas da democracia sobre as formas autoritárias, centralizadoras e aristocráticas da organização social. Nessa perspectiva, a constituição de leis e regras capazes de garantir a vontade pública são a condição imprescindível ao equilíbrio e à prosperidade das nações. Não obstante, Tocqueville demonstra, sobretudo em Democracia na América, que a participação cívica dos indivíduos-cidadãos na constituição e na fiscalização das leis e regras é a condição ideal ao bom funcionamento dos governos, da ordem social e do desenvolvimento.

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A análise de Tocqueville foi retomada com entusiasmo pelos autores que escrevem sobre o conceito sociológico de capital social, relacionando esse fator com o desenvolvimento de cidades, regiões e nações. Aqui vão duas referências sobre o tema: Birkner (2006) e Putnam (1996).

Desde a década de noventa do século XX, os debates e os estudos sobre o tema do desenvolvimento, sobretudo no âmbito regional e local, tem ajudado a manter algum vigor às ciências sociais. Em geral, pesquisas, artigos científicos e livros, como também textos de jornais, tem inspirado políticas públicas na promoção do desenvolvimento, entre tudo, em resposta aos desafios da globalização. Nessa direção, uma das novidades terminológicas e conceituais surgidas foi o termo capital social. Não o capital social na sua terminação empresarial e contábil. O capital social no sentido sociológico, como acúmulo e estoque de valores e costumes morais. Em síntese, trata-se da ideia de que as sociedades mais desenvolvidas em termos políticos, econômicos, educacionais e tecnológicos, são aquelas que apresentam capacidade associativa, dialógica, cooperativa, cívica e de confiança interpessoal. Essas sociedades constituiriam governos mais sólidos, menos centralizados e mais submetidos à vontade republicana.

Em outras palavras, as sociedades mais desenvolvidas, mais dinâmicas e garantidoras de direitos seriam também as mais politizadas e participativas. E é também na politização e na participação que se revelam as duas principais características das nações desenvolvidas: a liberdade de pensar e agir, somada à igualdade de condições entre os indivíduos. E não se trata, simplesmente, da igualdade como um objetivo final a ser alcançado, como isso se expressa nas utopias socialistas. Trata-se de uma igualdade como ponto de partida, uma igualdade inicial de condições entre os indivíduos, a partir da qual cada um faz o seu caminho. Nessa perspectiva, do ponto de vista analítico, a compreensão sobre os aspectos do desenvolvimento e seus obstáculos estaria, em boa medida, nos estudos sobre os valores e costumes dos povos.E aquelas sociedades em que a liberdade e a igualdade entre as pessoas estivessem entre os valores mais enraizados, seriam as mais propensas a se tornarem grandes nações. Ali estariam os maiores estoques de capital social para a promoção do desenvolvimento. O cientista político estadunidense Robert Putnam está entre os autores que levantaram essa tese, como muitos outros. Todos, sem exceção, reconhecem Alexis de Tocqueville como grande inspirador do tema.

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6 O LIBERALISMO DE JOHN STUART MILL CONTRA ATIRANIA DA MAIORIA

John Stuart Mill nasceu em 20 de maio de 1806, em Londres e faleceu no mês em que completaria 66 anos, em 1873. Era filho do historiador e filósofo escocês James Mill, alto funcionário da Cia. das Índias Orientais, que integrava a corrente filosófica do radicalismo filosófico, mais conhecida como o utilitarismo inglês. Entre outras premissas, o utilitarismo inglês advogava pelo cientificismo na Filosofia, isto é, pela transposição do caráter especulativo e dedutivo para o método indutivo que passaria a caracterizar as ciências sociais no final do século XIX. Stuart Mill foi educado pelo pai no sentido de livra-lo do sentimentalismo e assumir uma postura absolutamente racional diante do mundo. Aos cinco anos, John Stuart já sabia grego e aos oito já compreendia latim e álgebra. Segundo a história, no entanto, sua formação intelectual teria sido notavelmente afetada a partir da leitura das Memórias do escritor e dramaturgo francês Jean François Marmotel, em que o autor relata a morte do pai. Ali, Stuart Mill teria tido uma grande comoção e chorado copiosamente, percebendo pela primeira vez seus sentimentos (ABRANCHES, 2011apud FERREIRA, 2011).

A partir disso, Stuart Mill passou a questionar o rigor metodológico do racionalismo e do utilitarismo inglês, que tinha em Jeremy Bentham (1748-1832) seu mais conhecido expoente. O utilitarismo compreendia a defesa radical do racionalismo contra qualquer crença ou mesmo formulações meramente dedutivas, sem a comprovação empírica e compreensão lógica acerca dos fatos. Nessa seara racionalista, por exemplo, não cabiam os pressupostos do jus naturalismo defendidos pelos contratualistas, que asseveravam por certos direitos inatos aos seres humanos. Da perspectiva utilitarista, Mill mantém a ideia central segundo a qual a felicidade seria o principal interesse dos homens. Entretanto, a partir de um repensar sobre as bases radicais do antissentimentalismo racionalista, o autor passa a admitir que esse objetivo primordial possa ser obtido por outros meios que não somente o cálculo racional entre perdas e ganhos, dores e prazeres que então pressupunha o utilitarismo.

Dos seus 14 aos 15 anos, Mill morou na França e residiu na casa de Sir Samuel Bentham, irmão do proeminente filósofo e economista utilitarista Jeremy. Na casa dos Bentham, Stuart encontrou ambiente igualmente propício aos estudos, como já tinha em casa de seu pai. Ali estudou matemática, química e botânica, mas também passou a estudar os costumes, os valores, a geografia e a história da Inglaterra. Não obstante, aprendeu a língua francesa, estudou psicologia e direito romano. Aos dezessete anos, por influência do pai, ingressa a trabalhar no gabinete do examinador da Índia. Depois de um breve período probatório, ele foi promovido em 1828 para assistente do examinador. Após a morte do pai, em 1836, Mill passou a ser o responsável pelas relações entre a Companhia Britânica das Índias Orientais e os estados indianos, tornando-se o chefe do gabinete do examinador em 1856.

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FIGURA 2 - JOHN STUART MILL

FONTE: <https://144ood1pir281165p42ayw0t-wpengine.netdna-ssl.com/mill/files/2012/12/JSMillDrawingofPhoto.jpg>. Acesso em: 2 abr. 2019.

7 SUA VIDA POLÍTICA E SEU TRABALHO INTELECTUAL

Em autobiografia póstuma, publicada em 1873, consta a declaração de J. S. Mill de que foi na Sociedade Cooperativa de Londres que teve a oportunidade de participar de uma contenda calorosa na qual teria se saído bem. Em 1825, debateu com o filósofo, economista e político reformista irlandês William Thompson sobre as vantagens do cooperativismo contra a livre competição. A disputa intelectual girou em torno da tradição histórica de cooperação da classe trabalhadora inglesa. Nessa ocasião foram contrapostas as doutrinas utilitaristas de Jeremy Bentham e a socialista de Robert Owen. O assunto era quente e o debate não podia ter sido em outra temperatura. Thompson defendia os benefícios da distribuição de renda e denunciava os efeitos morais negativos da livre concorrência. Enquanto isso, John Stuart Mill contrapunha, às teses cooperativistas, a importância das liberdades individuais para a saúde da economia. Defensor do laissez faire, afirmava que tudo que limita a concorrência é um mal, enquanto tudo o que a amplia, é decididamente um bem. Naquele debate, Mill foi considerado um intelectual precoce pelo público e pela imprensa.

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Stuart Mill foi um defensor intransigente das liberdades individuais. Isso não o impediu de reconhecer os benefícios de uma sociedade cooperativa e dialógica.

Mais tarde, o amadurecimento intelectual permitiu que Mill reconhecesse as qualidades da cooperação. Ante a frieza calculista do racionalismo utilitarista que herdou do pai, foi percebendo a importância dos sentimentos

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na formação intelectual e nas posições políticas. As reflexões ao longo da vida e as participações frequentes nos próprios debates que travou na Sociedade de Cooperação, permitiram a ampliação da sua concepção liberal. Sentiu-se progressivamente impulsionado a abandonar o radicalismo utilitarista, ainda que diante da decepção do pai. O resultado foi uma percepção mais aproximada do catolicismo, de felicidade e pacifismo diante das disputas. Não obstante, opôs-se frontalmente ao sectarismo, pregando a tolerância e a moderação, sem condenar, contudo, as ambições materiais, que reconhecia importantes para o desenvolvimento econômico das nações. Compreendeu, por conseguinte, que um sistema filosófico devia ser algo mais abrangente, portanto, menos reducionista do que o utilitarismo. Assim, dedicou-se a ampliar o espectro de seu pensamento liberal e encontrou ressonância entre os seus pares.

Mill entrou em breve período de reclusão, após abandonar os debates da Sociedade de Cooperação em 1829. Mas voltou à cena no fim do ano seguinte, a partir de uma visita a Paris, onde conheceu liberais que o indagaram sobre as cartas que havia publicado em The Examiner, um jornal londrino. Nos anos que se seguiram, retomou intensamente sua atividade intelectual, partindo de uma série de artigos que denominou O Espírito da Era. Em 1835, sob o financiamento de Sir William Molesworth, ajudou a fundar The London Review, onde foi editor. A revista foi depois fundida com The Westminster, passando a denominar-se The London and Westminster Review, da qual se tornou proprietário.Muitos ensaios vieram depois, organizados em livros que se tornaram importantes referências bibliográficas. Entre as obras estão clássicos como Sistema de lógica dedutiva (1843), Princípios de política econômica (1848), A liberdade (1859), Utilitarismo (1861) e Três ensaios sobre religião (1874), entre vários outros, compondo uma obra vasta e de indispensável leitura sobre o pensamento liberal.

Tamanho foi seu humanitarismo que se desafiou a formular um método científico às ciências morais e sociais. Nessa perspectiva, a influência de Augusto Comte, considerado o fundador da Sociologia, exerceu influência sobre Stuart Mill. Não obstante, foi a física de Isaac Newton que o fascinou e lhe serviu como método de exposição, exemplo também seguido por filósofos como os empiristas John Locke e David Hume, mas também dos utilitaristas Jeremy Bentham e James Mill, seu pai. Foram anos de reflexão e de debates com os filósofos escoceses que contestavam sua lógica dedutiva, até que em 1837, tomando conhecimento da Filosofia das ciências indutivas, de William Whewell, e retomando o Discurso preliminar sobre o estudo da filosofia natural de John Herschel, que Mill encontrou finalmente o modo de elaborar seu método de análise indutivo-dedutivo.

No mencionado Sistema de Lógica sua contribuição ao surgimento das ciências sociais é inegável no sentido das explicações causais dos fenômenos humanos em sociedade. Para o autor, a compreensão dos fenômenos morais implicaria o uso do mesmo método aplicado pelas ciências naturais. Não bastava todo o conhecimento especulativo acumulado sobre as coisas, como se fazia na filosofia convencional. Com muita frequência, seria preciso aproximarmo-nos daquilo que falamos, conhecendo de perto. Portanto, diante dos fenômenos

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morais (e podemos dizer sociais) que queremos compreender, seu método pressupõe: 1) a verificação empírica do fenômeno; 2) a compreensão inicialmente isolada do fenômeno; 3) a comparação do fenômeno com outros semelhantes; e, somente na constatação de elementos em comum entre eles; 4) a generalização sobre os vários fenômenos comparados, identificando aquilo que possam ter em comum. Somente então se poderia tipificar um fenômeno, colocando-o na mesma categoria de outros. Estavam ali as bases das ciências sociais contemporâneas, incluindo, evidentemente, a ciência política.

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A defesa de uma reforma agrária estava nos discursos de Stuart Mill, que acreditava que a liberdade deveria ser precedida de condições básicas. Sobretudo, isso estava relacionado ao direito à propriedade da terra, numa perspectiva liberal idêntica à de John Locke.

Na condição de economista político, Stuart Mill dissertou sobre o tema do desenvolvimento das nações. Em Princípios de economia política, o autor se manifesta favorável à criação de propriedades camponesas como um remédio para as dificuldades e desordens em Irlanda. Na sequência, promove uma análise cuidadosa dos pensadores socialistas, convencido de que o problema social era muito importante e requeria ações políticas. Posicionou-se contra o caráter sagrado da propriedade privada que, para John Locke, por exemplo, era a condição básica à garantia da paz e da prosperidade. Negou o caráter pretensamente inquestionável do desenvolvimento histórico da propriedade privada em todos os seus estágios. Levou em conta a usurpação injusta e a necessidade da distribuição justa da terra para o equilíbrio social e o desenvolvimento econômico. Nessa perspectiva, lhe era evidente a necessidade de intervenção política que promovesse aquilo que, contemporaneamente, denominamos de reforma agrária.

Veja-se que isso nada tem a ver com as acusações contemporâneas infantis que reduzem o pensamento liberal à ausência do Estado na vida dos indivíduos e na organização da economia. Antecipando as reflexões sociológicas que viriam com força entre o fim do século XIX e o início do século XX, procurou distinguir as questões relacionadas à produção e à distribuição dos recursos e da riqueza. Se de um lado admirava-se da capacidade produtiva da sociedade capitalista emergente, de outro, demonstrava insatisfação com a má distribuição que condenava os trabalhadores britânicos à miséria. Conquanto não tenha proposto uma alternativa socialista aos problemas da sociedade de mercado, John Stuart Mill questionou com honestidade os fundamentos da sociedade que defendia e na qual acreditava, mas à qual atribuía a responsabilidade por desequilíbrios cujas correções seriam inevitáveis à promoção do desenvolvimento.

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8 SOBRE A LIBERDADE

Seu brilhante livro sobre A liberdade traz uma preocupação obstinada sobre a necessidade de uma reforma parlamentar a ampliar os direitos à liberdade. Como sugere a cientista política Aparecida Maria Abranches (2011, p. 294), trata-se de “um libelo contra a interferência ilegítima da Sociedade e do Estado na liberdade individual”. Em suas considerações sobre o governo representativo, Mill apresenta concomitantemente seu entusiasmo pela democracia e sua preocupação quanto aos possíveis efeitos despóticos desta. A primeira característica do pensamento do autor é a defesa intransigente da liberdade individual. Ela não é incondicional, que fique claro, pois não deve interferir na liberdade alheia, nem mesmo deve ser alheia ao sofrimento de outrem. Portanto, há um posicionamento moral que, em primeiro lugar,adverte para essa regra de ouro, segundo a qual “minha liberdade termina onde começa a tua”. Tal posicionamento moral fica expresso no conhecido aforisma, segundo o qual:

Se toda a humanidade menos um fosse da mesma opinião, e apenas um indivíduo fosse de opinião contrária, a humanidade não teria maior direito de silenciar essa pessoa do que esta pessoa o teria, se pudesse, de silenciar toda a humanidade. [...] O único objetivo a favor do qual se possa exercer legitimamente pressão sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a vontade dele, consiste em prevenir danos a terceiros. Não basta que se leve em conta o próprio bem, físico ou moral da pessoa. Não se tem o direito de obriga-lo a fazer ou deixar de fazer por ser melhor para ele, ou porque lhe promova a felicidade, ou ainda porque, na opinião de terceiros, fazê-lo seria mais prudente ou mais acertado (MILL, 1963 apud ABRANCHES, 2011, p. 295).

Em segundo lugar, é relevante lembrar mais uma vez, Mill demonstra preocupação com a solidariedade, sugerindo que não há liberdade saudável, nem democracia, onde a solidariedade esteja ausente. Nessa perspectiva, o autor de A liberdade é um defensor da liberdade coletiva, da associação, do diálogo e da representação política. Não obstante, e aí vem a terceira observação, demonstra uma preocupação ainda maior com o abafamento da maioria sobre as minorias. Trata-se, afinal, da mesma preocupação externada por Tocqueville, em Democracia na América. Apesar de elogiar a igualdade e o poder em mãos do povo, o pensador francês alertava para os riscos da tirania democrática. Tocqueville temia que a força da maioria ameaçasse as liberdades individuais, os diferentes e a diversidade. O mesmo alerta é feito agora por Stuart Mill, se, de um lado, admite a interferência do Estado na correção de injustiças e vê com legitimidade os governos da maioria, adverte para que as democracias não se tornem tiranias que ameacem os direitos individuais. Assim, assevera que:

A par de outras tiranias, a da maioria encarava-se com receio, a princípio, e ainda hoje vulgarmente se encara, quando exercida através de atos das autoridades públicas. Contudo, as pessoas que refletem, perceberam que quando a própria sociedade fez o papel de tirano – a sociedade coletivamente sobre os indivíduos separados que a compõe – os meios de exercer a tirania não se limitam aos atos que pode levar a efeito pelas mãos dos funcionários políticos. A sociedade pode executar

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e executa seus próprios mandatos; e se expede mandatos errados ou mandatos quaisquer em assuntos nos quais não se deve intrometer, pratica tirania social mais temível do que muitos tipos de opressão política, porquanto muito embora não venha apoiada por penalidades extremas, não permite que se lhe escape facilmente, penetrando muito mais profundamente nos detalhes da vida, escravizando a própria alma. Não é suficiente, portanto, a proteção contra a tirania do magistrado; necessária também a proteção contra a tirania da opinião e do sentimento predominantes, contra a tendência da sociedade para impor, por meios outros que não penalidades civis, as próprias ideias e práticas, como regras de conduta para aqueles que discordem delas (MILL, 1963 apud ABRANCHES, 2011, p. 294).

Nessa direção, temos o importante posicionamento do filósofo britânico em favor das minorias. Para Abranches (2011), Stuart Mill fez da defesa das minorias uma “profissão de fé”. Dessa maneira, a tolerância e, mais que isso, o respeito aos comportamentos e posições dos grupos minoritários em sociedade deve prevalecer, sendo legítimos na medida em que não promovam o mal alheio. Como um pensador vanguardista, Mill entende que as minorias “de hoje” estão com frequência avante o seu tempo e a expressão de suas posições tende ao desenvolvimento e à evolução da humanidade. Nesse sentido, sugere que o excesso de conservadorismo nada mais revela que a infância de uma sociedade e que “conservadores não são necessariamente pessoas estúpidas, mas a maioria das pessoas estúpidas é conservadora”. Portanto, a opinião pública não deveria interferir nos comportamentos que reprova, por ignorância, uma vez que “quando interfere, é mais provável que o faça erradamente e em lugar impróprio” (MILL, 1963 apud ABRANCHES, 2011, p. 298).

Imprescindível às garantias das liberdades individuais e ao respeito às minorias ante a tirania da maioria é a institucionalização do Estado liberal em defesa da democracia. Lembremos que para Mill, assim como para Tocqueville e outros pensadores liberais, a democracia tem a ver com as liberdades coletivas, desde que respeitadas as individuais, além de uma capacidade de a sociedade submeter o Estado às suas aspirações legítimas. Em Considerações sobre o governo representativo (1861), está expresso que a democracia é a melhor forma, garantidas as liberdades individuais. Em outros termos, seria preciso encontrar, ao longo das reformas políticas, o conjunto de leis que garantissem as melhores condições de igualdade e liberdade possíveis, em comunhão com o interesse público. Entretanto, não acredita nas formas de participação direta, sugerindo que a única garantia para o bom funcionamento da democracia seria o sistema representativo. Seria, na concepção do autor, o único antídoto à tirania da maioria.

Essa vontade despótica da maioria poderia muito bem engrandecer desproporcionalmente o poder dos governos (leia-se, o executivo) e sua interferência na vida dos indivíduos, em nome de uma massa eventualmente estúpida. A resposta parcial a esse problema, Mill a oferece sugerindo a institucionalização da liberdade de opinião e de circulação de ideias, educação cívica, acesso à informação e formas de participação dos indivíduos mais interessados pela coisa pública. Naturalmente, Stuart Mill assim como outros

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tantos pensadores liberais de seu tempo e predecessores, está a sugerir tudo isso no plano ideal, procurando, como sempre fizeram os filósofos políticos, convencer as classes dirigentes. No final, a decisão é sempre de quem está no poder, que pode se sentir mais ou menos pressionado pelo povo, por sua vez constituído de indivíduos mais ou menos esclarecidos. Em geral, o que esses pensadores têm em mente é de que seus argumentos não sejam entendidos somente do ponto de vista moral. Presumem que seus ensinamentos sejam absorvidos a fim de possibilitar o desenvolvimento das nações, o que, por fim, é o melhor antídoto à decadência e à submissão a outras nações.

Procurando incessantemente uma saída, Stuart Mill (1963) admite que se a melhor forma de governo não é pela via autoritária, também não outorga às massas a sabedoria política suficiente para produzir as melhores escolhas e decisões. Para tanto, isso requer desejavelmente um povo o mais educado possível. Mas isso ainda depende de uma aristocracia republicana, o que o leva à defesa de uma aristocracia funcional, isto é, de uma burocracia de homens preparados para o exercício governamental. Ele reconhece o valor dessa classe para a grandeza de uma nação. Todavia, alerta ao fato de que burocracias são outra razão para o engrandecimento governamental. Suas preocupações são absolutamente atuais no sentido de alertar para os vícios da burocracia, que inicia com o mais nobre propósito republicano da eficiência governamental e torna-se, ao longo do tempo, uma classe poderosa com fins corporativos, como alertaria Max Weber meio século depois. E, por extensão, Stuart Mill adverte que o crescimento burocrático é proporcional à indesejável alienação política do povo:

Em países de civilização mais adiantada e de espirito mais insubordinado, o público acostumado a esperar tudo faça o Estado por ele, ou pelo menos nada faça por si mesmo não só sem pedir licença ao Estado para fazer, mas até mesmo como deve ser feito, consideram naturalmente o Estado responsável por todo mal que lhes acontece, e, se o mal ultrapassa a paciência de que dispõe, levantam-se contra o governo, fazendo o que chama de revolução (MILL, 1963 apud ABRANCHES, 2011, p. 309).

Note-se a atualidade de suas preocupações nesses dois aspectos. Primeiramente, observemos que Stuart Mill percebe no século XIX, antes mesmo de Max Weber, o quanto a burocracia se tornaria uma classe social poderosa, com finalidades corporativas nem sempre compatíveis com o interesse público. Atualmente, os desvios de finalidade pública dos governos e suas burocracias é cada vez mais tema de debate nos períodos eleitorais e para além deles. Em segundo lugar, observe-se que a grandiosidade do Estado, através do crescimento da burocracia, é mais uma razão para o aprofundamento da nociva relação de dependência da Sociedade para com o Estado. Na condição de um pensador e político liberal, a interferência do Estado e a acomodação dos indivíduos era algo execrável. Significava, para Mill, o empobrecimento da política e o maior obstáculo ao desenvolvimento das nações. Assim, não deveria haver grandes esperanças por parte de um povo na sabedoria de sábios líderes e especialistas que dispensassem a fiscalização dos indivíduos. Muito menos, planos salvadores devemos esperar dos governos.

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Para os filósofos da política, desde os pensadores gregos como Platão e Aristóteles, a felicidade dos seres humanos está na política, isto é, na preocupação e na ação, direta ou indireta, com o espaço público, a polis, onde compartilhamos nossos interesses, informações, valores, ideias e ações.

ATENCAO

Portanto, não há garantias, nem deve haver ilusões quanto à grandeza dos homens em política ou a sabedoria popular. A política é o que é, em realidade, diferente dos ideais decantados por séculos e séculos de vontade humana e de concepções estéticas sobre como os homens deveriam se comportar. Tanto quanto,o idealismo filosófico também ofereceu fórmulas de como a política deveria funcionar, em oposição às vontades humanas imperfeitas, muitas vezes consideradas ignóbeis, desde A caverna de Platão. O bem-estar dos indivíduos tende a ser o ponto de partida moral de toda a filosofia. Não obstante, é com frequência a condição coletiva que está em jogo e não simplesmente as felicidades individuais sem preocupação com os outros. Essa também é a preocupação do filósofo britânico, não obstante a sua insistência de que essa felicidade coletiva não poderia reprimir as vontades e escolhas individuais. Se Mill é a favor da democracia, não esqueçamos que seu maior receio era a tirania da maioria sobre a liberdade individual.

Mas não há fórmula perfeita e Stuart Mill nos ajuda a compreender isso, à revelia de toda a discordância acerca de seu realismo liberal. Em sua perspectiva, há apenas e tão somente uma imperiosa condição aberta aos seres humanos, e ela nunca estará ausente dos riscos: é a liberdade dos indivíduos em comunidade, como já sugeria John Locke há mais de um século antes de Stuart Mill. O mundo perfeito pertence ao reino dos céus e o que nos resta é uma aposta na liberdade e na inteligência humanas e sua capacidade de evoluir, não a passos retos, mas no aprendizado dos erros. Ao Estado cabe o compromisso de garantir essa condição de liberdade. Em meio a suas disputas políticas, governantes e legisladores precisam ser pressionados a estar comprometidos com a construção de uma nação forte, na liberdade dos indivíduos e na obediência à lei. Não há garantias de que quem esteja no poder com isso se comprometa. Todavia, os governos e legisladores compreendem que seus próprios interesses dependem de assegurar as condições para uma nação forte. E, conforme a concepção evolucionista de Stuart Mill, é na liberdade dos indivíduos e na obediência às leis que uma nação garantirá a sustentabilidade de suas forças e será menos vulnerável à submissão a outras nações.

Contra o dogmatismo e o obscurantismo, John Stuart Mil denuncia as falácias salvacionistas e condena todo o tipo de perseguição contra indivíduos e minorias. É um defensor intransigente da diversidade e da liberdade de pensamento, portanto, contrário à interferência do Estado, que considera ilegítima

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sempre que cria obstáculos à criação humana. Permitida a livre circulação das ideias e o confronto entre os dissensos e os divergentes, isso geraria os novos conhecimentos e permitiria a evolução das sociedades. E, no contexto paradoxal de crescimento da riqueza e aparecimento da miséria inevitavelmente provocado pela Revolução industrial, o filósofo liberal prenuncia que crescerá a demanda dos trabalhadores pelo sufrágio universal. Não apenas a prenuncia, mas vai em sua defesa. E, se reconhece na Revolução industrial um sinal dos tempos, também afirma que o direito ao voto acompanha a trajetória histórica da evolução humana. É nessas circunstâncias e posições heroicas que se reconhecem os grandes intelectuais.

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Neste tópico você aprendeu que:

• As características do conservadorismo e sua familiaridade com o liberalismo fazem parte da evolução institucional das democracias.

• Tais características geraram aperfeiçoamentos nas constituições nacionais, muito embora ainda sirvam de inspiração a muitas reformas políticas que o mundo moderno ainda deverá presenciar.

• Quando precisamos refletir sobre nossos processos eleitorais, nossos partidos políticos, nossos governos e suas propostas de desenvolvimento, o conhecimento dessas ideias tornam-se imprescindíveis para que possamos avaliar os significados e as direções dos movimentos políticos de nosso tempo.

• Para Edmund Burke a razão individual tem pouca importância, porque se sobrepõe às paixões. O que interessa é a longa e progressiva razão coletiva, que é política, porque se constrói no cotidiano da polis, com avanços e recuos, mas numa direção evolutiva, orientada pela própria vontade divina, portanto: confiança nos filhos de Deus e nada de grandes saltos, revoluções e outras soluções de continuidade. É devagar e sempre, sem jogar fora as conquistas políticas.

• Para Alexis de Tocqueville, a conjunção entre liberdade e igualdade era uma realidade.

• Descrevendo a democracia que se formava nos Estados Unidos, Tocqueville viu que ali se materializavam aspirações por liberdade e igualdade que as instituições monárquicas na Europa não permitiam.

• A concretização das aspirações filosóficas e das proposições bíblicas estariam em pleno desenvolvimento. Seu único receio era o de que a democracia acomodasse demais os indivíduos e que os estímulos às liberdades individuais fossem sufocados pelo senso comum das maiorias.

• Para John Stuart Mill, era exatamente esse o maior temor. Mill era um defensor intransigente da liberdade individual. Opunha-se à opressão da Sociedade contra as minorias, assim como era contrário à interferência do Estado na vida das pessoas, seja em relação às suas opiniões, suas ações políticas, seja em relação às suas atividades econômicas.

RESUMO DO TÓPICO 1

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• Stuart Mill também defendia a presença do Estado para garantir a justiça social, criticando, por exemplo, as desigualdades oriundas da falta de terras aos camponeses.

• De todo modo, temia o crescimento exagerado das funções dos governos, do aumento da burocracia e de como isso tornaria os cidadãos dependentes do Estado e ameaçava a vitalidade política e econômica da Sociedade, tornando o Estado um fim em si mesmo.

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1 Qual é a posição política e moral de Edmund Burke em relação à dicotomia revolução política versus reformas contínuas?

2 Para Tocqueville, assim como para Stuart Mill, a democracia carregava um vício. Indique o principal receio mútuo, ponto em comum, entre o pensamento de Alexis de Tocqueville e o de John Stuart Mill.

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

CRÍTICA AO ESTADO E SOCIALISMO:

KARL MARX E O MARXISMO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Neste tópico, você estudará as contribuições de Marx na elaboração do diagnóstico das contradições da sociedade capitalista do século XIX. A intensidade deste diagnóstico elaborado em parceria com Friedrich Engels, seu parceiro intelectual ao longo de toda vida alcançou significativa importância no século XIX, ao longo do século XX e alcança o século XXI no qual estamos inseridos.

Analisando a partir do método do materialismo histórico dialético as contradições entre capital e trabalho, Marx e Engels afirmam que a infraestrutura (a economia), é determinante na constituição da superestrutura (instituições políticas, jurídicas e culturais) e na forma como os indivíduos se situam no mundo. Por meio da base material a partir da qual as mais diferentes sociedades se organizaram politicamente ao longo dos tempos é possível compreender as estruturas de exploração, expropriação que incidiram sobre as formas de organização social. Para Marx e Engels compreender este fio condutor que move a forma de organização dos seres humanos em sociedade é de fundamental para se pensar e agir na constituição uma sociedade socialista de transição rumo ao comunismo, que se caracteriza, sobretudo pela igualdade entre os seres humanos e pela afirmação da justiça social.

Na sequência você estudará os marxistas revisionistas. Situados na passagem do século XIX para o século XX estes pensadores constaram a necessidade de repensar os pressupostos do marxismo a luz das transformações em curso naquele contexto. Ao manterem a proposta metodológica de Marx e Engels situada no âmbito do materialismo histórico dialético, promovem mudanças de interpretação na medida em que consideraram os limites de método e de compreensão das categorias gestadas por Marx. Os revisionistas nos mostram a necessidade e o desafio que cada ser humano enfrenta, e pensar o mundo por conta própria. Ou seja, reconhecer as contribuições dos pensadores que nos antecederam é fundamental, mas é preciso oferecer nossa contribuição como forma de fazer o pensamento avançar.

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UNIDADE 3 | LIBERALISMO, SOCIALISMO E FEDERALISMO

NOTA

A força interpretativa do pensamento do filósofo alemão Karl Marx está expressa no pensamento revolucionário contemporâneo.

2 A CONCEPÇÃO MARXISTA DE ESTADO

Iniciemos este texto com dois questionamentos: como teria sido o século XX e os dias atuais se Karl Marx não tivesse existido? Ou, se Marx tivesse seguido seu projeto de vida original que era ser poeta? Estes questionamentos apontam para o fato de que Marx foi e é um dos pensadores mais influentes da contemporaneidade. Ao ouvirmos falar de socialismo e de comunismo é corriqueiro associarmos tais conceitos a Marx. Porém, considerando que tais conceitos não são originariamente criações exclusivas de Marx, é fato incontestável as contribuições do mesmo à compreensão do capitalismo como modo de produção que determina a organização das sociedades modernas e contemporâneas a partir da lógica conflitiva entre capital e trabalho e, por extensão em classes sociais. Ademais, Marx demonstra que a existência das classes sociais é a expressão tácita da contradição entre capital e trabalho fundada na expropriação e na exploração do capital sobre o trabalho. O reconhecimento desta contradição inerente ao modo de produção capitalista na extração da mais valia relativa e absoluta sobre o trabalho conduz ao desenvolvimento da consciência de classe. Esta, por sua vez, estimula a organização da classe trabalhadora, intensifica a luta de classes em torno das instituições da sociedade burguesa a partir das quais se legaliza e justificam as relações de exploração e expropriação das classes detentoras do capital sobre as classes detentoras apenas da mão de obra.

Esta compreensão e descrição do sistema capitalista realizada por Marx e colaboradores não apenas influenciou, mas esteve no epicentro dos conflitos das primeiras décadas do século XX, bem como no fenômeno da guerra fria após o término da segunda guerra mundial até fins da década de 80 do século XX. Ao descrever o modo de funcionamento do capitalismo, Marx procurou demonstrar que o fator determinante na forma da organização das mais diversas sociedades era a base material a partir da qual os seres humanos se organizam para produzir bens necessários à manutenção da vida. Marx denominou o conjunto de relações constitutivas da base material que organiza e determina a relação entre capital e trabalho de infraestrutura. Ainda nesta direção, Marx sugeriu que a infraestrutura é determinante da superestrutura conformando a visão de mundo necessária a reprodução do modo capitalista de produção.

3 ASPECTOS BIOGRÁFICOS

Karl Marx, nasceu em 5 de maio de 1818. Era natural da cidade de Tréveris, na Alemanha. A família, de classe média, era judia e professava o judaísmo.

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Porém, em detrimento dos limites impostos aos judeus no funcionalismo público da época, converteu-se ao protestantismo. Estudante de Direito da Universidade de Berlim e noivo da jovem Jenny von Westphalen, Marx não costumava ser organizado, tampouco dedicado aos estudos da área. Além de não ser frequentador assíduo das aulas de Direito, dava preferência a matérias de caráter filosófico ou histórico. Inclusive engajou-se no movimento “Jovens Hegelianos”. Naquele contexto Hegel (1770-1831) era um dos filósofos mais prestigiados da Alemanha. Ainda em vida seu pensamento era objeto de estudos e intensos debates, bem como da conformação de diversas correntes de pensamento que classificavam seus intérpretes como hegelianos de direito, ou hegelianos de esquerda. Evidentemente que neste cenário também se apresentavam os críticos de Hegel e até o anti-hegelianos.

Concluiu o doutorado em 1841, tendo como tema da tese: Diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro. Interessou-se pela carreira acadêmica, não investindo nesta por reconhecer as dificuldades a que estavam submetidos os docentes de esquerda naquele momento. Assim, tornou-se redator do jornal Gazeta Renana. Por suas críticas aos governos absolutistas em alta na Europa do século XIX, logo foi destituído, por pura pressão externa. O medo da perseguição o fez mudar para Paris e mais tarde Bruxelas, onde conheceu o jovem Friedrich Engels (1820-1895), que se tornou seu parceiro intelectual ao longo de toda a vida. Em Paris, em parceria com Arnold Ruge, fundou os Anais franco-alemães—publicam apenas o 1º volume. Neste período Marx publica duas obras: Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel e a questão judaica. Nesta obra Marx faz a crítica à religião. Afirma que não faz sentido apresentar questões humanas a partir de pressupostos teológicos, bem como é preciso ver a religião como fantasias que os seres humanos alimentam em relação a si mesmos e as quais estão submetidos.

Também neste período iniciou estudos de economia clássica que lhe permitiram escrever os Manuscritos econômico-filosóficos, publicados postumamente em 1932. Em 1845, expulso da França vai para Bruxelas onde, em colaboração com Engels, escreve A Ideologia Alemã, em que apresenta os pressupostos de seu pensamento. Neste contexto rompe o anarquista Joseph Proudhon, que em 1846 escrevera A Filosofia da Miséria. Marx crítica à filosofia da miséria e o fato de que Proudhon recusa aceitar o princípio da luta de classes. Em 1847, Marx e Engels redigem O Manifesto do Partido Comunista, publicado em novembro de 1848, em que apresenta sua tese política fundamental, propondo a construção de uma nova sociedade, a partir da derrubada da burguesia do poder através da luta contra a propriedade privada.

Em 1849, mudou-se – ou fugiu – para a Inglaterra. Lá se deparou com a miséria a que os operários ingleses estavam submetidos e iniciou suas reflexões e escritos políticos, sociais e econômicos. A situação da família, que já não era das melhores, se tornou precária. Dos sete filhos do casal Marx, apenas três sobreviveram às más condições de habitação e, não obstante, pertences da família chegavam a ser penhorados por conta de dívidas. Em 1859 escreve: Para a crítica da econômica política. Em 1867 publica o primeiro volume de O capital. Os outros dois

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volumes publicados postumamente foram organizados por Engels. Entre 1939 a 1941 foram publicados Esboços fundamentais à crítica da Economia política, escritos entre 1857 e 1858. Em Londres, Marx escreveu artigos para revistas americanas e dirigiu a organização do movimento operário. A obra de Marx engloba política, economia e filosofia. Autor, junto de Engels, das concepções de Materialismo Histórico e Dialético.

Marx morreu em 14 de março de 1883 vítima de bronquite e pleurite. Foi enterrado em Londres, onde a lápide permanece até os dias atuais. Em 1954 o Partido Comunista Britânico elaborou uma lápide que contém o busto de Marx e os seguintes escritos vindos do Manifesto Comunista: ‘’Proletários de todos os países, uni-vos!’’

O Marxismo foi disseminado mundialmente após a adoção da filosofia marxista pela União Soviética a partir de 1917 com a Revolução Russa, com adendo da concepção leninista, se tornando o chamado marxismo-leninismo, presente em Países como China, Itália e França. Após alguns anos, notou-se o surgimento dos marxistas-revisionistas, os quais desenvolveram novas formas de interpretar o marxismo.

IMPORTANTE

Marx inverteu o ponto de partida da análise da realidade social. Ao invés de partir da premissa de que as ideias constroem o mundo, com o seu método materialista ele sugeriu o contrário, isto é: que a economia, que ele chama de base material da sociedade, é que explica a constituição das ideias.

4 MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO

Para a compreensão do conjunto de mudanças sociais, políticas, econômicas e históricas, Marx introduziu o conceito de materialismo histórico dialético. Através deste conceito Marx se opôs à concepção idealista da filosofia, a qual sugere que o conjunto de transformações e formas sociais se dá por meio de vontades e ideias que transcendem a ação material e as relações cotidianas que se estabelecem entre os seres humanos. A base subjetiva que o Idealismo utiliza é descartada por Marx, que procura na natureza, no mundo real, o motor das transformações sociais. Ou seja, trata-se de evitar buscar refúgio no conceito criado de algo independente ao humano, ou ao tempo da ação humana e, atribuir, a estas condições, ideias a responsabilidade das mudanças. Agora, se trata de buscar a compreensão das contradições sociais, políticas e econômicas na própria ação humana e em sua história, nas coisas reais e existentes, na origem dos movimentos e acontecimentos a que a sociedade é submetida.

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A dinâmica de uma sociedade se dá, para Marx, por meio das relações de produção material características de cada época e contexto histórico. Nesta direção, também, as ideias, a cosmovisão, ou a forma como os seres humanos interpretam o mundo em que se encontram inseridos, é modificado de acordo com a base material em curso. Aqui Marx apresenta sua forma de interpretar, analisar e compreender a condições históricas em que circunscrevem as contradições e os paradoxos de uma época, por meio dos conceitos de superestrutura e infraestrutura, caracterizando o nível de complexidade das relações materiais. De tal forma que a economia e o modo de produção são a infraestrutura e influenciam diretamente na superestrutura, caracterizada pelo Estado, pela ordem jurídica vigente, pela religião, pela cultura e educação formal. A história é modificada, portanto, de acordo com a mudança material do modo de produção que permeia também relações econômicas. Marx exprime tal ideia no prefácio de Para a crítica da economia política:

As relações sociais são intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam o seu modo de produção, e mudando o modo de produção, o modo de ganhar a vida, mudam todas as relações sociais. O moinho à mão vos dará a sociedade com o feudatário; o moinho à vapor, a sociedade com o capitalista industrial. Estes mesmos homens que estabelecem as relações sociais em conformidade com a sua produtividade material, produzem também os princípios, as ideias e as categorias em conformidade com as suas relações sociais. Segue-se disso que estas ideias, estas categorias são tão pouco eternas quanto as relações que elas exprimem. Elas são produtos históricos e transitórios(MONDIN, 1981, p. 99).

Como expresso, as dinâmicas sociais não são eternas, dado que os meios de produção se modificam, o desenvolvimento intelectual sofre modificações e as relações na infraestrutura e superestrutura acompanham o contexto, as contradições e os paradoxos sociais vigentes. Desta forma, o papel que o ser humano ocupa na sociedade, as relações produtivas nas quais se encontra inserido determinam sua consciência social. O materialismo histórico dialético também pode ser entendido por meio da seguinte afirmação:

[...] na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, em relações de produção, que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, isto é, a base real sobre a qual se eleva uma estrutura jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas da consciência social. O modo de produção da vida material condiciona, em geral, o processo social, político e espiritual da vida. Não é a vida dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência (MARX, 1972 apud MONDIN, 1981, p.100).

No dicionário de filosofia Nicola Abbagnano encontramos a seguinte definição sobre o Materialismo histórico. ‘’A tese do M. histórico é de que as formas assumidas pela sociedade ao longo de sua história dependem das relações econômicas predominantes em certas fases dela’’ (ABBAGNANO, 2007, p.750) e, para além das relações econômicas, o materialismo histórico dialético pressupõe que tais formas

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assumidas pela sociedade não dependem apenas das relações econômicas, mas também das dinâmicas no modo de produção. De tal forma que estrutura econômica e modo de produção são modificáveis, segundo Mondin (1981, p. 103):

A lei que regula a transformação da estrutura econômica da sociedade tem caráter dialético; ela se funda na oposição imanente entre a evolução da estrutura e a conservação da superestrutura. Enquanto a superestrutura, que beneficia as classes dominantes, tende a conservar-se e resiste ao estímulo da evolução econômica, a estrutura, isto é, as relações dos meios de produção, tende sempre a mudar com a evolução natural dos meios de produção.

Sob tais pressupostos, com o conceito de Materialismo Histórico Dialético, Marx desenvolve uma filosofia da história procurando demonstrar que há uma racionalidade, um fio condutor na trajetória dos seres humanos e das mais diversas sociedades que atravessa todos os tempos. Compreender as contradições, os paradoxos, as lutas de classe, ao longo dos tempos, requerem que se analise a base material a partir da qual cada uma destas sociedades se organizará na luta pela sobrevivência. Ou seja, na trajetória histórica das sociedades humanas uma das primeiras formas de organização material e econômica foi o modo de produção comunitário-primitivo. Este modo de produção se caracterizava pelo esforço da comunidade por meio da caça e da coleta garantir sua sobrevivência. O esforço era coletivo e da mesma forma o compartilhamento dos recursos materiais alcançados. Com o salto tecnológico que permitiu aos seres humanos desenvolverem a agricultura, o que lhes permitiu o sedentarismo, a formação das cidades, as formas monárquicas de governo, constata-se a passagem para o modo de produção escravista. No contexto das sociedades antigas o trabalho escravo se tornou a base produtiva para a manutenção da polis ateniense, da civitas romana.

Com o declínio do mundo antigo e o modo de produção escravista a ocidentalidade constitui o modo de produção feudal. Ou seja, com o declínio das cidades antigas no mundo medieval a base material se constituirá eminentemente agrária. As relações entre capital e trabalho se constituíram a partir da servidão. Já não se tratava mais de trabalho escravo, mas da entrega de parte substancial da produção por parte dos servos aos senhores feudais detentores do meio de produção por excelência, naquele contexto que era a terra. Em função do aumento demográfico, do desenvolvimento de novas técnicas de produção agrícola, da revitalização das cidades, bem como o aumento do comércio, o modo de produção feudal entra em declínio. Constitui-se o modo de produção capitalista. O capitalismo assenta suas bases na propriedade privada, na liberdade de iniciativa dos indivíduos, no livre comércio na liberdade de mercado. As relações de produção não se apresentam na forma comunitária primitiva, na forma escravista, ou servil, mas na relação entre os detentores do capital (terras, bancos, fábricas) e os detentores da força de trabalho. Os indivíduos destituídos de capital vendem sua força de trabalho ao capital como forma de sobrevivência.

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IMPORTANTE

Para Marx, o que explica a Sociedade é o conflito de classes, quais sejam: a classe dominante, proprietária dos meios de produção e a classe trabalhadora, que vende sua força de trabalho em troca de um salário que não condiz com suas necessidades, tampouco corresponde aos seus esforços.

A relação entre capital e trabalho se estabelece a partir da lógica da exploração e da expropriação, o que permite ao capital a constituição da “mais valia” (lucro), ampliando assim seu lastro de influência e controle sobre o trabalho. Porém, a principal contribuição apresentada pelo materialismo histórico dialético desenvolvido por Marx e Engels constitui-se na percepção de que o modo de produção constitutivo de um determinado contexto político, social, econômico e cultural contém sua própria contradição. Ou seja, na medida do avanço nos desenvolvimentos técnicos, científicos, produtivos, bem como das tensões sociais, dos avanços políticos o modo de produção vigente entra em crise, abrindo possibilidades de organização produtiva, econômica e política que ensejarão um novo modo de produção.

Neste ponto é discutida também a luta de classes e a derrocada do capitalismo, visto que tal sistema tem como pressuposto a exploração do trabalhador por meio dos detentores do capital. O capitalista, que visa o lucro e o obtém por meio da mais-valia, tende a ver seu negócio estagnar ou ruir por conta da concorrência imposta por outro(s) capitalista(s). Estabelece-se, portanto, uma relação de causa e consequência: se o capitalista (aquele que detém o capital) não encontra em seus processos produtivos e produtos formas de obtenção e maximização do lucro, torna-se necessário em sua visão a precarização salarial, a retirada de direitos, de benefício e em última instância a demissão de trabalhadores. O operário que se vê sem emprego e, desta forma, sem meio de subsistência, toma conhecimento de sua situação de explorado e se junta a outros trabalhadores para que juntos se empenhem na derrubada do sistema capitalista.

Para Marx tal situação seria quase inevitável dado o caráter dialético das mudanças sociais. Marx ainda apresenta o conceito de alienação do trabalho, que auxilia na compreensão das revoltas proletárias. Segundo ele, o trabalho é externo ao ser do homem, ele trabalha para sua subsistência e não porque sente prazer em trabalhar, da mesma forma que sente quando está em sua casa. O operário, desta forma, é apenas um objeto para o modo de produção capitalista. Um objeto usado para obtenção de lucro. Nesta direção, Abbagnano (2007, p. 27) esclarece:

Esse conceito puramente especulativo foi retomado por Marx nos seus textos juvenis para descrever a situação do operário no regime capitalista. Segundo Marx, Hegel cometeu o erro de confundir objetivação, que é o processo pelo qual o homem se coisifica, isto é,

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exprime-se ou exterioriza-se na natureza através do trabalho, com A, que é o processo pelo qual o homem se torna estranho para si mesmo, a ponto de não se reconhecer. Enquanto a objetivação não é um mal ou uma condenação, por ser o único caminho pelo qual o homem pode realizar a sua unidade com a natureza, a (alienação) é o dano ou a condenação maior da sociedade capitalista.

Em confronto com a filosofia idealista hegeliana, Marx afirma que a consciência é adquirida a partir da relação do homem com o mundo, não, como afirma Hegel, que a consciência é que faz com que as coisas existam. Marx aderiu às influências hegelianas durante parte de seus estudos. Marx inclusive fez parte dos Jovens hegelianos ou hegelianos de esquerda. E, mais tarde, utiliza-se da concepção hegeliana de Estado para também criticá-la. Entre 1843 e 1844 escreve uma crítica à concepção de estado hegeliana, presente na obra Crítica da filosofia do direito de Hegel. Para Marx o Estado ético de Hegel é o resultado de uma miragem filosófica idealistas. Ou dito de outra forma, é o resultado de pressupostos metafísicos sem amparo na realidade social, política e econômica que encobre a compreensão da sociedade civil como fundamento do Estado. Assim, o que se apresenta na crítica de Marx à Hegel não são as premissas liberais de Hegel, mas seu idealismo constitutivo de sua concepção de Estado.

Marx e Hegel concordam – ou melhor, Marx concorda com Hegel, visto que o jovem Karl tinha 13 anos quando Hegel morreu – ao definir sociedade civil e sociedade política como diferentes e com interesses distintos perante o Estado. Enquanto a sociedade civil é representada pelos interesses e anseios individuais, geralmente particulares aos homens ou famílias, a sociedade política expressa o conjunto de interesses e questões públicas, coletivas. Portanto, há distinção entre esfera pública e privada.

O ponto de confronto se dá na crítica que Marx faz – e Hegel não – à estrutura do Estado composto por sociedade política e civil. Enquanto Hegel afirma que o Estado contempla a totalidade da sociedade civil, Marx afirma que não há tal totalidade e unidade na comunidade dos homens. Ele vê o Estado, portanto, como alienação. Se o Estado representa a sociedade civil, não pode expressá-la por meio de uma unidade, pois ela é composta por individualidades e diferentes aspectos e ignorá-los em detrimento de uma equiparação entre indivíduos pelo Estado é a causa da alienação política do homem. O Estado cria, desta forma, a falsa ilusão de igualdade entre indivíduos civis, quando considera iguais os indivíduos políticos.

Assim, perante à sociedade política, ao Estado, existe coletividade. Entretanto, na sociedade civil o homem é condicionado a agir por seus interesses e sua própria subsistência. Isto implica, também, aceitar ser explorado, ou explorar o trabalho alheio. Visto que as relações civis são marcadas pela não coletividade, Marx direciona a problemática do Estado para uma compreensão socioeconômica, não apenas política do Estado. Segundo Silvio Costa (1998, p. 2):

Marx compreende que, por mais que se tente apresentar o Estado como expressão harmônica e genérica do conjunto da sociedade, ele é, na realidade, o locus dos antagonismos sociais baseados na contradição entre o interesse geral e o particular, entre o público e social e a vida privada.

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Além da representação de classes antagônicas, Marx também critica o Estado por representar a vontade da classe dominante. No Manifesto Comunista ele expressa:

A burguesia, afinal, com o estabelecimento da indústria moderna e do mercado mundial, conquistou, para si própria, no Estado representativo moderno, autoridade política exclusiva. O poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda burguesia (MARX; ENGELS, 1996, p. 12).

Assim se fez na França de 1871, como Marx relata no texto O 18 brumário de Luís Bonaparte. A obra analisa o Estado Burguês vigente na França com o chamado Bonapartismo, uma determinação que destaca a origem francesa da república que se tornou império após o golpe de Estado de Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão Bonaparte.

Ao analisar o episódio do 18 de Brumário e o contexto de revolta em que a França estava inserida, Marx reflete sobre a suposta derrubada do Estado Burguês e surgimento de um Estado do proletariado. Apoiado na luta de classes existente em parte da Europa, ele nota que em determinado momento, a burguesia conta com o apoio do proletariado para derrubar os regimes absolutistas e a nobreza. Quando o objetivo é atingido, a burguesia se volta contra o proletariado para agora ser ela a classe dominante. Assim, o Estado, mais uma vez, possui uma classe dominante e uma classe dominada.

A ascensão da burguesia – e apenas da burguesia – ao poder, causa descontentamento ao proletariado. Este, por sua vez, deveria tomar então o Estado das mãos burguesas em detrimento de um Estado do proletariado. Segundo Saes 1987 apud Costa (1998, p. 5):

Na luta contra a antiga classe dominante, a burguesia não propõe a instauração de uma igualdade política formal – direitos políticos para todos –, e sim a instauração de uma nova desigualdade política formal, desta vez favorecendo o conjunto das classes proprietárias (e não mais apenas a nobreza feudal) e desfavorecendo o conjunto das classes trabalhadoras.

A classe dominante burguesa, agora, poderia, para favorecer a si mesma, utilizar a super e a infraestrutura, com destaque para a burocracia.

Assim, burocracia não é um corpo administrativo neutro, mas sim um instrumento para o domínio da aristocracia e da burguesia sobre a sociedade, com a função fortalecer o Poder Executivo, a centralização, o autoritarismo. Para tal, é necessário que todo interesse comum [seja] imediatamente cortado da sociedade, contraposto a ela como um interesse superior, geral, retirado da atividade dos próprios membros da sociedade e transformado em objeto da atividade do governo, desde a ponte, o edifício da escola e a propriedade comunal de uma aldeia, até as estradas de ferro, a riqueza nacional e as universidades da França. Finalmente, em sua luta contra a Revolução, a república viu-se forçada a consolidar, juntamente com as medidas repressivas,

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os recursos e a centralização do poder governamental. Todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina ao invés de destroçá-la (SAES 1987 apud COSTA, 1998, p. 7).

A superestrutura exerce, além do papel burocrático de controle, o papel de controle religioso. O governo napoleônico apoiou-se nas idées napoléoniennes. Destaca-se aqui a quarta, que segundo Costa (1998, p. 9):

A quarta idée napoléonienne é o domínio ideológico através da religiosidade e dos padres como instrumento de governo. A burguesia francesa, marcadamente voltairiana, esgotada a capacidade de dominação ideológica do liberalismo e temerosa frente ao proletariado socialista e comunista, recompõe-se com a Igreja, com o Vaticano, com o objetivo de reforçar seu domínio — material e espiritual — sobre as classes trabalhadoras, principalmente utilizando-se da forte influência dos curas sobre o campesinato.

O Bonapartismo negociou com o proletariado questões pouco significantes, mas que ajudassem o governo a parecer popular, entretanto, é inegável que Bonaparte foi mais próximo da classe dominante. Segundo Costa (1998, p. 8),“[...] na realidade, conforme o demonstrado por todas as suas ações, ele se vincula e se coloca a serviço dos interesses e objetivos de uma determinada classe ou facções de classe, afinal, na sociedade de classes, não é possível fazer concessões e dar a uma classe sem antes retirar de outra”. Assim, dada a condição de domínio que a burguesia tomou no Bonapartismo — inclusive sobre a superestrutura — pode-se dizer que este foi um governo burguês.

DICAS

FONTE: <https://www.brasildefato.com.br/2018/05/07/10-filmes-inspirados-pelo-marxismo/>. Acesso em: 3 abr. 2019.

Clássico do cinema, Tempos modernos (EUA, 1936) é um filme de Charles Chaplin, que demonstra a submissão do homem ao trabalho no modo de produção capitalista, numa clara perspectiva do conflito entre os interesses dos seres humanos submetidos aos interesses da classe dominante.

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O Bonapartismo chegou ao fim após 1870, quando Luís Bonaparte renunciou ao cargo devido à derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana. Ainda que o Bonapartismo fosse popular entre parte da população que os mantinha na disputa pelo trono com os Bragança e Bourbon, o candidato Bonaparte ao trono, filho de Luís, foi morto. De todo modo, o Bonapartismo, para além de concepções políticas, serviu de inspiração a diversas reflexões marxistas.

Marx, de fato, entendia o Estado como objeto usado pela burguesia para controle e opressão do proletariado. A necessidade da máquina pública se dava à medida em que a classe dominante queria proteger suas propriedades e defender seus interesses, não como sociedade política — igualitária —, mas como sociedade civil,interesses individuais acima da coletividade, que, aliás, se fazia presente apenas na esfera política. O surgimento das classes sociais, portanto, criou a necessidade de um órgão de controle dos menos favorecidos, o Estado. Assim, com as classes sociais extintas, também o Estado não seria mais necessário.

Segundo Engels, foi o desenvolvimento econômico – que em certo ponto passou a implicar na divisão de classes – que criou a necessidade do Estado. Para ele, no estágio de desenvolvimento que a sociedade capitalista havia alcançado, a existência de classes poderia ser, até mesmo, um empecilho à produção e, mas por outro lado a eliminação das classes também poderia representar a eliminação do próprio Estado. Hegel assim se expressa:

O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tão pouco é ‘a realidade da ideia moral’, ou ‘a imagem e realidade da razão’, como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que esta sociedade se enredou numa irremediável contradição consigo mesma e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, torna-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade (ENGELS 1984 apud COSTA, 1998, p. 11).

Para Marx, a desigualdade a que o Estado burguês submete as classes se dá também no âmbito da produção, em que há apropriação – por parte do capitalista – do que é produzido pelo trabalhador, fazendo com que este seja apenas objeto para obtenção de lucro. Para perpetuar as relações de opressão, a burguesia se vê quase obrigada a negociar e ceder certos direitos ao proletariado, visto que depende da sua força de trabalho na produção. Tais concessões podem fazer o Estado autoritário parecer zelar pela igualdade e bem-estar dos que, na verdade, são explorados pela classe dominante, que também domina o Estado. Ademais, tornar uma classe juridicamente igual a outra é uma tentativa do Estado de implantar a consciência de serem, tanto patrão quanto operário, membros de um único Estado, uma única cultura, cada qual com seu papel. Isso reforça a suposta importância do Estado e camufla o jogo de interesses das classes sociais. Segundo Spindel (1985, p. 26):

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A classe mais forte está sempre interessada em refrear o conflito, pois caso isto não seja feito, e mesmo sendo ela a classe dominante, esta luta acabaria entrando num crescendo de violência que poderia colocar em risco ambas as classes e, eventualmente, destruir o organismo social como um todo. O Estado é o instrumento que cumpre esta função. A classe economicamente mais poderosa utiliza o Estado para impor uma ‘’ordem’’ social, preservar uma situação que lhe é favorável e, principalmente, para transformar-se na classe politicamente dominante, obtendo assim novos meios de oprimir e explorar a classe mais fraca.

NOTA

As teses de Karl Marx e seu amigo Friedrich Engels são a principal fonte de inspiração para os movimentos revolucionários e as ideologias anticapitalistas.

5 O COMUNISMO

O comunismo, em termos gerais, não foi pensado em primeiro por Marx. Sociedades primitivas viviam em uma espécie de comunismo. À medida em que a humanidade avançou política e tecnologicamente – tecnologia, aqui, remete ao aprimoramento de técnicas de plantio, cultivo, produção, comercio etc. –, o Estado tornou-se necessário para o controle de parte da população.

O comunismo, como é estudado atualmente, partiu da concepção de Marx e Engels, exposta em O manifesto comunista. No panfleto, a dupla reflete a relação das classes sociais com base na história europeia. Tecem críticas à burguesia – classe dominante que explora o proletariado –, mas que, no passado, foi responsável pela queda da aristocracia – classe que também baseava seu poder na exploração de outras classes. Ainda, Marx e Engels refletem sobre o modo capitalista de produção e, como este, é baseado na exploração do proletariado. Ao fim, é proposta a revolução comunista por meio da união dos trabalhadores de todo o mundo: “Que a classe dominante trema frente à revolução Comunista. Os proletários nada têm a perder fora suas correntes. Têm o mundo a ganhar” (MARX; ENGELS, 1996, p. 67).

No comunismo, a exploração da burguesia sobre o proletariado seria extinta e, sem a necessidade de um órgão controlador da classe dominada, o Estado desapareceria. Isto porque o comunismo propõe a extinção da propriedade privada, bem como o fim dos meios de produção pertencentes às classes dominantes. Em verdade, ‘’comunismo’’ tem origem no latim, communis, comum.

Para Marx, a sociedade comunista não seria alcançada de repente. Isto porque, aderir ao comunismo implica uma série de mudanças políticas,

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econômicas e culturais. O primeiro estágio para o comunismo é a instauração do Socialismo, ou seja, a derrubada do Estado burguês e levante do Estado proletário, pois este sim representaria a classe interessada na revolução e agora no poder: o proletariado. Este novo Estado poderia ser também chamado de ‘’ditadura do proletariado’’. Ele elimina os traços burgueses da sociedade.

Com os meios de produção e propriedades, antes privadas, pertencentes agora ao Estado, os homens poderiam produzir o que conseguissem e receber pelo que precisassem. Com oferta e demanda supridas, sem resquícios da sociedade burguesa, o Estado socialista poderia tornar-se comunista com a abolição do Estado e cada homem com noções de direitos e deveres perante a comunidade.

Vladimir Ilyich Ulyanov, conhecido como Lênin, foi um dos estudiosos e adeptos do comunismo. Sendo um nome importante na Revolução Russa de 1917, as reflexões de Lênin criaram o que se chama de marxismo-leninismo, que, durante o governo stalinista na URSS, foi a ideologia oficial dos revolucionários. Na China, Mao Tse-Tung difundiu o marxismo-leninismo, com algumas alterações na estrutura do modelo marxista-leninista.

Em contraponto ao marxismo ortodoxo – criado por Marx – acompanha-se o surgimento dos chamados ‘’marxistas revisionistas’’. O principal marco diferencial entre os dois é a concepção de dialética. Os revisionistas a relacionam, não com a natureza de forma geral, mas com o humano em si. Os revisionistas também encaram a religião de forma positiva, como apoio aos que se sentem oprimidos.

NOTA

Pelas relações que Marx fez entre economia, política e Sociedade, é considerado um dos clássicos fundadores da Sociologia, juntamente com Emile Durkheim e Max Weber.

Diante do exposto é preciso considerar que Marx encontra-se entre os pensadores que alcançaram significativa projeção no contexto das sociedades contemporâneas em função da influência exercida cultural e institucionalmente sobre a vida de milhões de seres humanos. A intensidade de seus diagnósticos relativos às sociedades capitalistas gerou intensos debates, controvérsias intelectuais, políticas e práticas. Entre fins do século XIX e meados do século XX inúmeras sociedades aderiram as doutrinas de Marx por meio de revoluções transformando-se em estados socialistas. Os motivos da extensão do pensamento de Marx devem ser considerados em função da intensidade das análises e respostas que apresentou aos problemas de seu tempo. Segundo Humberto Cerroni, 1972 (apud MONDINI, 1981, p. 106),

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a razão deve ser buscada num sólido feixe de ensinamentos que parecem poder oferecer uma resposta adequada a questões capitais do nosso tempo. tais ensinamentos são os seguintes: a) Marx inseriu a cultura diretamente na prática de nossa existência; b) deu uma explicação desta existência que parte dela mesma; c) viu na existência humana uma articulação histórica da existência organizada dos homens; d) viu na existência organizada dos homens um resultado da organização produtiva dos homens; e) explicou definitivamente o mundo moderno a partir de suas condições materiais, sem contudo, reduzi-lo a estas condições; f) ofereceu, em particular, o primeiro e até agora o único diagnóstico aprofundado da sociedade moderna como sociedade baseada na produção e na apropriação privada da riqueza socialmente produzida como sociedade que, em contradição com o seu crescente caráter social-objetivo, cinde a comunidade dos sujeitos em classes sociais: capitalistas e operários; g) e, por fim, previu a radical crise histórica deste tipo de sociedade e a possibilidade de construir outra, fundada não em um abstrato programa renovador, mas na supressão das contradições hoje existentes.

Marx é filho de seu tempo, mais especificamente do século XIX. Ao se propor a elevar seu tempo em pensamento, ou ao plano do conceito seu pensamento se apresenta circunstanciado as questões candentes presentes no século XIX. Tal condição significa que muitas das questões apresentadas por Marx não se adequaram de forma suficiente ao longo do século XX e, sobretudo, neste início de século XXI. Nesta perspectiva,

A crítica de Marx é válida para um bom número de morais e metafísicas existentes [...]. Mas, no fundo, o problema permanece aberto: é possível construir uma reflexão sobre o ser e fundar uma moral filosófica que não sejam subjetivas e dependentes das condições sociais e econômicas, mas objetivamente válidas para todos os homens, isto é, universais? (MONDIN, 1981, p. 107).

Ainda nesta direção, é preciso ter presente que o comunismo hoje não é vigente em país algum que se tenha conhecimento. Alguns países, como Cuba e Coreia do Norte, vivem governos socialistas. Nestes países, os meios de produção não são comuns, mas estatais. As reflexões de Marx influenciaram o pensamento político, econômico e social de toda uma época e seus escritos servem também como memória do passado europeu em plena Revolução Industrial, e apoio à busca dos trabalhadores por seus direitos. A doutrina marxista foi e é a base de partidos e organizações ao redor do mundo, além de ser um dos vários espectros no caleidoscópio de análises da sociedade humana e do Estado.

6 OS MARXISTAS REVISIONISTAS: GRAMSCI E GARAUDI

O pensamento de Marx alcançou profunda expansão no século XX. Um dos motivos desta difusão se deu em função do fato de que em 1917 com a Revolução Russa, a Rússia adotou o marxismo como doutrina de Estado. Em 1949 foi a vez da China adotar o marxismo em sua concepção de Estado. Porém, a despeito desta expansão o marxismo não se apresenta como uma doutrina de

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pensamento unitária. É possível desde os primórdios constatar cisões entre os seguidores de Marx. Os pensadores que estavam diretamente vinculados aos regimes comunistas mantiveram o rigor das concepções marxistas. Porém, outros pensadores de países da Europa ocidental, mas especificamente da França, da Itália e da Alemanha desenvolveram interpretações específicas, alterando aspectos da interpretação clássica do marxismo. Nesta perspectiva, desenvolveram-se variáveis do pensamento marxista, consideradas ortodoxas vinculadas aos países comunistas e interpretações heterodoxas vinculadas aos círculos de intelectuais dos demais países citados.

A distinção fundamental entre ortodoxos e revisionistas (heterodoxos) é a compreensão da dialética. Para os marxistas ortodoxos a dialética é constituída por leis universais e necessárias possibilitando a compreensão dos eventos naturais como dos eventos históricos, sociais, políticos e econômicos. Por seu turno, para os revisionistas a dialética não tem leis, ela diz respeito única e exclusivamente aos sujeitos em suas relações históricas. Ou seja, o sujeito em suas relações com a história é também um produto dela, porém, tal condição não se apresenta como um determinismo historicista na medida em por meio de sua ação o sujeito pode agir na história confrontando-se com a alienação. Assim, a dialética se apresenta como o posicionamento de cada sujeito que compreende sua ação no mundo, atuando contra as forças objetivas presentes na história na forma da alienação, coisificação dos indivíduos e mercadorização das relações subjetivas. Esta condição se apresenta em todos os tempos e em todas as sociedades em que a exploração e a expropriação intensificam a desumanização, porém, assumem caráter singular nas sociedades capitalistas, mas também se apresentam nas sociedades comunistas.

Marx criticava a religião por considerá-la um obstáculo à compreensão da realidade material como realmente era, criando apenas a ilusão que entorpecia a compreensão sobre o mundo real.

ATENCAO

Outro aspecto que diferencia os marxistas revisionistas dos marxistas ortodoxos é o posicionamento diante da religião. Para Marx a religião era o ópio da classe trabalhadora, do povo. Para os marxistas revisionistas a religião assume uma condição propositiva, na medida que seu mote fundamental é a defesa da vida, da dignidade da vida humana aspirando a um mundo melhor. Assim, os ideais religiosos corroboram no confronto com as situações de opressão, de violência, de controle a que estão submetidos os sujeitos e a humanidade.

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7 ANTÔNIO GRAMSCI

Antônio Gramsci nasceu na comuna de Ales (Itália), na Sardenha, em 22 de janeiro de 1891 e faleceu em Roma, em abril de 1937. Filósofo, literato e político italiano possui obras sobre teoria política, antropologia, linguística e sociologia. Entre suas atividades políticas, foi um dos fundadores do Partido Comunista italiano, do qual foi também secretário geral. Também foi deputado pelo distrito de Vêneto. Foi preso e encarcerado pelo regime fascista de Benito Mussolini.

O filósofo italiano pode ser considerado um dos principais pensadores do marxismo, bem como um dos principais revisionistas. A questão fundamental que Gramsci reflete é a relação entre o pensamento e o ser. Procura superar o dilema entre o idealismo e o materialismo mecanicista. Ou seja, para o pensador italiano trata-se de evitar o idealismo na medida em que parte do pressuposto de que conhecer é uma atividade do indivíduo que cria e projeta o mundo externo. Em relação ao materialismo mecanicista é preciso evitá-lo na medida em que não reconhece o caráter criativo do ato do conhecimento, atribuindo o mesmo apenas como reflexo do mundo exterior.

Desta forma, para além do idealismo e do materialismo mecanicista Gramsci aponta para o caráter histórico e prático do conhecimento, derivado da vontade da ação prática e política. Tal postura leva Gramsci a considerar que o conhecimento não é algo objetivo, que exista em si mesmo e por si, mas de constatar que o conhecimento é resultante de qualidades que o homem tem em si. Ou seja, nós conhecemos nas coisas projeções de nós mesmos. Objetivo é aquilo que afirmamos ser objetivo. A realidade objetiva é aquilo que homem diz ser objetivo e que é aceita por todos os seres humanos, independente de pontos de vistas particulares, ou de grupos específicos.

Este posicionamento de Gramsci se contrapõe ao marxismo ingênuo e vulgar valorizando o conceito de criatividade do conhecimento contra o conceito de conhecimento como atividade resultante da reflexão de indivíduos que captam idealmente a realidade.

Outro aspecto no qual Gramsci se distingue dos marxistas ortodoxos é o conceito de dialética. O filósofo italiano rejeita a compreensão necessária, fatalista e mecanicista considerando-a como atividade educativa que estabelece o pensamento intelectual e o pensamento advindo da cotidianidade em sua simplicidade.

A concepção de Estado de Gramsci se apresenta como uma contextualização da teoria marxista aos desafios da realidade vivenciada em fins do século XIX e início do século XX no âmbito das sociedades capitalistas ocidentais desenvolvidas. Considerando tais perspectivas, o filósofo italiano pensa o Estado mantendo a coerência com os pressupostos teórico-metodológico marxista, especificamente a dialética e o historicismo. Ou seja, para Gramsci as relações materiais de produção são determinantes das relações sociais. Mas, é

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preciso ter presente que em Gramsci o econômico não se apresenta como um imperativo determinista.

Contudo, essa determinação não é direta, como chega a aparecer em A ideologia alemã, por exemplo, mas dialética, na exata medida em uma das missivas que Engels endereça a Konrad Schmidt, em 1890. Nela Engels evidencia que o processo que se estabelece entre os fatos econômicos, de um lado, e as noções ideológicas, as ideias políticas e jurídicas, as concepções religiosas e as ações desencadeadas a partir delas, de outro, caracteriza-se pela interatuação que determina o curso da história. De outra forma, é possível dizer que a relação existente entre a base material e a superestrutura jurídico-política e ideológica não é a de um simples reflexo do elemento econômico sobre o social, moral, político, religioso, psicológico, cultural, estético e ético, mas de uma síntese com múltiplas determinações. É com essa concepção de mundo que Gramsci constrói seu conceito de “Estado ampliado”, seguindo a trilha deixada por Marx no âmbito da teoria social (MARTINS, 2007, p. 6).

Compreender a função do Estado em Gramsci requer se tenha presente que o referido pensador reconheceu a complexidade organizacional das sociedades ocidentais articuladas pela sociedade civil e pela sociedade política.

Pela nova acepção que conferiu ao termo “sociedade civil” – diferentes dos contratualistas, de Hegel e de Marx –, esta era, para Gramsci, o conjunto de aparelhos, estruturas sociais, que buscam dar direção intelectual e moral a sociedade, o que determina a hegemonia cultural e política de uma das classes sobre o conjunto da sociedade; e a sociedade política como uma extensão da sedimentação ideológica promovida pela sociedade civil, que se expressa através dos aparelhos e atividades coercitivas do Estado, visando a adequar as massas à ideologia e à economia dominantes (MARTINS, 2007, p. 6).

Sob os pressupostos analíticos de Gramsci, o capitalismo para se constituir como um sistema de vida hegemônico articula um “bloco histórico” que afirma as garantias da classe dominante econômica de exercício do poder sob prerrogativas éticas, políticas, jurídicas e ideológicas. Assim, o capitalismo se constitui como um sistema de convencimento da sociedade civil, bem como dispõe de aparelhos de coerção caso as estratégias de convencimento não se apresentarem suficientes. A administração deste aparelho repressivo é uma das funções do Estado.

O Estado não contribui para a construção da hegemonia, até mesmo porque o Estado na visão gramsciana, não é um ator nem um sujeito. Ele é a expressão de uma correlação de forças, um espaço institucional e ético-político que costuma ser conquistado e “usado” pelos sujeitos em seus movimentos para avançar rumo à supremacia, à dominação política.

Deste ponto de vista o Estado é uma referência fundamental. Sem ele, teríamos somente “lutas de interesses”, estado de natureza e guerra de todos contra todos, como diria Hobbes. Fazer política sem levar em conta este valor do Estado é algo que se afasta radicalmente das concepções de Gramsci. A própria sociedade civil, que Gramsci elevou a conceito essencial da teoria política, só faz sentido se for pensada desta perspectiva, ou seja, como um elemento articulado com o Estado (NOGUEIRA, 2007, p. 14).

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Nestas circunstâncias para Gramsci trata-se de desenvolver estratégias sociais:

que contestem e superem as estruturas e superestruturas que consolidam o status quo típico das sociedades — de classe — capitalistas. Somente dessa forma é que, para Gramsci, se consegue promover uma verdadeira “reforma moral e intelectual”, já que o poder não se encontra mais centralizado em uma instituição como, por exemplo, o Estado e seus aparelhos coercitivos, mas disperso em vários ambientes e processos sociais (MARTINS, 2007, p. 6).

8 ROGER GARAUDY

Filósofo francês nascido em 1913 em Marselha, falecido em Paris em 2012. Membro do Partido Comunista Francês desde a juventude. Participou da resistência a invasão da França pelos nazistas. Ao longo da vida alternou a atividade política e sindical com o ensino e o estudo da filosofia. Foi deputado e senador. Em função de seu posicionamento crítico diante da invasão da Tcheco-Eslováquia pelas Forças Aliadas, no episódio conhecido como “Operação Danúbio”, articulado por tropas militares da República Democrática Alemã, da República Popular da Polônia, República Popular da Hungria e República Popular da Bulgária e, lideradas pela União Soviética (URSS) entre agosto a setembro de 1968, Garaudy foi expulso do partido comunista francês.

O conceito fundamental que move o revisionismo marxista de Garaudy é o conceito de transcendência, destituído de seu caráter religioso, e de sua conotação sobrenatural. Assim, para o filósofo francês transcendência é consciência alcançada pelo homem de sua incompletude e dos limites de sua existência. Em Garaudy, a transcendência apresenta-se como um humanismo prometeico ou fáustico, que valoriza a ação e a criação contínua do homem pelo homem. Ou seja, para Garaudy o ser humano não é somente aquilo que é, ele também é tudo aquilo que não é, bem como tudo aquilo que falta.

Sob tais pressupostos, esta transcendência se realiza plenamente no envolvimento e organização política e social. E, somente o comunismo tem a capacidade de tornar realidade os anseios de transcendência constitutivos do humano por meio da edificação de uma sociedade destituída de toda e qualquer forma de alienação, conformando um mundo que valoriza a dignidade humana. Ainda nesta direção, para o filósofo francês a tarefa dos comunistas é permeada pelo comprometimento em viabilizar os sonhos e as aspirações dos seres humanos em torno de uma sociedade justa. A constituição de uma sociedade justa e que promove a dignidade humana é tarefa cotidiana de efetiva construção humana e social. Definitivamente não é obra que possa se apresentar como acabada, mas que requer o contínuo investimento e comprometimento com a transcendência

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das situações que podem desestabilizar a efetiva concretização de uma sociedade justa e fraterna.

Após a queda do socialismo soviético cujo marco temporal é a queda do muro de Berlim em 1989, Garaudy se compromete com a revisão crítica do socialismo com o intuito de conferir a ele as condições de recuperação de sua credibilidade, na forma de uma democracia direta, não representativa e alienada que caracterizam as sociedades democráticas capitalistas. Ou seja, neste movimento crítico Garaudy propõem a urgência de libertar o socialismo da proposta socialista soviética, propondo um socialismo baseado na autogestão e no autogoverno. Este socialismo seria o resultado da constituição de um bloco histórico que uniria novamente a classe trabalhadora em seus diversos segmentos: intelectuais, estudantis, de trabalhadores dos mais diversos segmentos, bem como os marginalizados pelo sistema capitalista.

Ainda nesta direção, Garaudy propõe o diálogo com o cristianismo para que o socialismo, salvaguardadas suas diferenças e temporalidades reencontre sua plenitude. Ou seja, para o filósofo é preciso recuperar a confiança na transcendência afirmando que a vida e a história possuem um sentido, condições fundamentais para a transformação do mundo. E esta condição profética presente no cristianismo que o marxismo precisa considerar para reposicionar seu impulso inicial evitando cair no dogmatismo pseudocientífico que parte do pressuposto de que alterar o sistema de propriedade seria condição suficiente de surgimento do homem novo. O diálogo com o cristianismo é crucial para que o socialismo tenha presente a insuficiência de todas as realizações históricas, evitando sua burocratização e concepção do humano como um ser em transcendência.

9 O REVISIONISMO MARXISTA DA ESCOLA DE FRANKFURT: MARCUSE, BLOCH, HORKHEIMER E ADORNO

A Escola de Frankfurt é o resultado da aproximação de um conjunto de pensadores em 1923 (século XX) na cidade que lhe deu o nome na Alemanha. Os pensadores que se reuniram naquele contexto foram Max Horkheimer; Theodor W. Adorno; Herbert Marcuse; Walter Benjamin; Leo Lowenthal; Frans Neumann; Erich Fromm; Otto Kirchkeimer; Friedrick Pollock; Karl Wittfogel. A proposta daquele grupo de pesquisadores era desenvolver uma análise critica da modernidade. Na virada do século XIX para o século XX disseminava-se de forma cada vez mais intensa certo mal-estar dos indivíduos e, por decorrência se o mesmo sentimento se espraiava pelas sociedades ocidentais causado pela desilusão advinda das transformações que se apresentavam no mundo contemporâneo.

As grandes utopias da modernidade, entre as quais as apostas na racionalidade científica e tecnológica, os projetos políticos societários, liberalismo político e econômico, socialismo e comunismo apresentavam-se cada vez mais como expressão da racionalidade instrumental. A instrumentalidade da

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razão se apresentava como o reverso da razão emancipadora prometida pela modernidade. A razão instrumental apresenta-se dominadora, senão totalitária exigindo das massas e dos pensadores a crença em seus dogmas de reforma, ou de transformação da sociedade. Ou dito de outra forma, a contemporaneidade se dá conta de que o progresso resultante das apostas na razão vem carregado de efeitos colaterais, de violência política, econômica, social eclodindo em guerras extensivas e consumidoras vorazes de vidas humanas.

Diante ascensão dos discursos anti-semitas, da intolerância religiosa, política e econômica em curso e, que anunciavam a emergência de propostas totalitárias que se materializaram no nazismo, no fascismo e no stalinismo, os pensadores da Escola de Frankfurt expressam seu ceticismo em relação as promessas da modernidade, bem como desejam exercitar a autonomia de pensamento e compreensão do tempo presente em que estão inseridos. Sob tais pressupostos a Escola de Frankfurt pode ser considerada como o exercício da potência do pensamento na crítica à razão como exigência fundamental para a devida construção de uma sociedade racional.

9.1 HERBERT MARCUSE

Marcuse nasceu em Berlin em 1898 e faleceu em Starnberg, em 29 de julho de 1979. Foi aluno e orientando de Heidegger no doutoramento desenvolvendo estudos de tese em torno da historicidade em Hegel. Também foi influenciado por Wilhelm Reich (1897-1957), discípulo de Freud e que ao longo de sua trajetória intelectual procurava conciliar o pensamento de Freud com o de Marx. Em 1933 com intuito de evitar a perseguição nazista em função de sua condição judia se refugiou nos Estados Unidos. Pertenceu a Escola de Frankfurt. A perspectiva filosófica de Marcuse alinha-se a partir das perspectivas de Freud, Hobbes e Marx. Ao longo de sua carreira Marcuse publicou inúmeras obras, entre elas se destacaram: Eros e Civilização; O homem unidimensional; Razão e revolução; O fim da utopia.

Da psicanálise freudiana Marcuse enfatiza a tese de que o fundamento do humano reside no instinto de prazer. A motivação para toda e qualquer atividade humana reside no alcance do prazer. O ser humano é feliz na medida do prazer que consegue alcançar. Da filosofia política de Hobbes o pensador alemão enfatiza duas dimensões da vida humana, o estado de natureza e o estado social. No estado de natureza a tendência é pela otimização do princípio do prazer, que é limitado pelo estado social com a finalidade de situar os limites do princípio do prazer. Nesta perspectiva, para Marcuse, a civilização inicia quando alcança à renúncia de forma eficiente e eficaz da busca desenfreada do prazer. Ou seja, no âmbito do estado social os seres humanos são levados a renúncia do prazer momentâneo, efêmero e inseguro, substituindo-o por um prazer circunscrito aos interesses sociais estratégicos e, portanto, seguro.

Ainda na perspectiva, freudiana Marcuse adverte para o fato de que a história do homem é a história de sua repressão, o que significa ter presente que

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só é possível o progresso ao custo de muita resiliência e repressão. Assim, se a efetivação da socialidade humana exige a repressão dos instintos fundamentais em função do alcance de um prazer consentido socialmente e seguro, o homem também é submetido a repressões adicionais em função das relações de poder que perpassam o tecido social e os interesses estratégicos daqueles que exercem o poder.

Em relação a Marx, o filósofo berlinense considera a perspectiva analítica e reflexiva advinda do materialismo histórico dialético e, a interpretação derivada de que as lutas sociais são derivadas eminentemente de razões econômicas. Esta vinculação a Marx faz com que Marcuse mantenha a concepção de que a realidade se constitui sobre a materialidade em constante devir histórico vinculado a dialética dos conflitos entre homem e natureza e, entre as diversas classes sociais. Marcuse coerente com os pressupostos de Marx compreende que o devir histórico ao qual está submetida à sociedade necessariamente a conduzirá ao alcance de uma existência pacificada entre homem e natureza. Ou, dito de outra forma, a pacificação entre homem e natureza será consequência da superação dos desejos, das necessidades e aspirações em contínuo conflito decorrentes da escassez dos bens necessários a sobrevivência. Na medida em que a produção das condições materiais necessárias à sobrevivência atingirem uma condição suficiente aos seres humanos o interesse comum prevalecerá sobre os interesses individuais e particularizados. Tal condição poderá ser alcançada com a gestão e produção planificada dos recursos, contemplando as necessidades humanas de sobrevivência com a redução das extenuantes jornadas de trabalho, com a diminuição da exploração e expropriação do tempo de vida empenhado pelo ser humano no trabalho. O alcance deste estágio produtivo permitirá aos seres humanos o acesso e fruição do tempo livre que se caracterizará, sobretudo, pelo cuidado do humano consigo mesmo e das relações com os demais seres humanos.

Ainda na esteira dos pressupostos analíticos de Marx, Marcuse afirma que os imperativos da exploração e expropriação do capital sobre o trabalho e, sobre a natureza não se apresentam como uma exclusividade das sociedades capitalistas ocidentais, mas também se encontra em suas singularidades presentes nas sociedades marxistas. Em ambas as propostas políticas circunscritas em seus ideais de constituição de sociedades livres e iguais o homem foi submetido aos grilhões escravagistas destas sociedades. Ou seja, com sua forma devida conformada sob os ideais da sociedade industrial de plena produção e pleno consumo ininterrupto o homem foi conduzido a um elevado grau de prazer e ao mesmo tempo encontra-se privado de incentivos para o cultivo de necessidades superiores.

A sociedade industrializada conduz os seres humanos a um paradoxo crucial ao sugerir que são livres em suas escolhas. Porém, a liberdade de escolha se circunscreve as opções padronizadas no processo de produção e ofertadas à escolha dos consumidores. Assim, a falácia da liberdade de escolha é na verdade um convite irrecusável, intransferível a renúncia do exercício do pensar necessário

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ao alcance dos objetivos dos centros de poder que conduzem e determinam os processos de produção de bens, serviços, oportunidades e modos de vida.

Em suas análises Marcuse procura demonstrar a potencialidade criativa da sociedade industrial em inventar, desenvolver e incentivar falaciosas necessidades vitais, que ao invés de proporcionar o exercício da liberdade, reprimem a capacidade de pensamento crítico e criativo humano. Ao desenvolver a compulsão pela produção e pelo consumo supérfluo de bens e produtos a sociedade industrial submete o ser humano a intensos e extensos processos de trabalho, cujo resultado último é o embrutecimento do humano pela incapacidade de pensar, senão apenas de executar e consumir.

O referido pensador demonstra que a sociedade industrial se apossou da ciência e da tecnologia passando a disseminar uma racionalidade instrumentalizada que demarca a forma das relação do homem consigo mesmo, do homem com a sociedade na qual circunscreve sua existência, bem como com a natureza. Esta sociedade produz o “homem unidimensional” incapacitado de pensar, de exercitar sua liberdade pela imposição de um modo de vida organizado de forma binária entre a plena produção e o pleno consumo. Neste cenário aprofunda-se a redução do exercício da linguagem em profundidade, atribuindo-se preferência as formas rasas de uso da linguagem e, por extensão dos conceitos, dos símbolos necessários ao exercício da potência do pensamento.

Sob tais pressupostos, para Marcuse, o primeiro passo para a saída dos imperativos da sociedade industrial é a tomada de consciência da situação de escravidão imposta aos seres humanos. A libertação de toda e qualquer dinâmica de aprisionamento, inicia com a tomada de consciência da escravidão a que se está submetido. Porém, o filósofo se apresenta cético em relação ao fato de que o ser humano da sociedade da plena produção e do pleno consumo dispor-se ao esforço de tomada de consciência e de libertação de sua condição de escravidão. O ser humano está confortavelmente situado nas comodidades e nas facilidades instrumentais na qual se encontra envolvido.

Neste contexto, para Marcuse a única possibilidade de libertação encontra-se circunstanciada nos rejeitados, nos marginalizados da condição de plena produção e pleno consumo. Também reside nos rejeitados, nos refugos humanos, nos refugiados e toda sorte de seres humanos marginalizados que transitam mundo afora na luta pela sobrevivência. Estes seres humanos permanecem fora das promessas das sociedades democráticas. Constrangem e explicitam os discursos falaciosos de liberdade e igualdade, bem como denunciam com sua condição as contradições institucionalizadas desta forma de organização social. Radicalizam a necessidade de transformação deste estado de miserabilidade humana. Sua condição é revolucionária em si mesma na medida em que afetam profundamente as estruturas da sociedade industrial.

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10 ERNEST BLOCH

Nascido na cidade alemã de Ludwigshafen, no ano de 1885. Em 1905 foi para a cidade de Munique a fim de dedicar-se aos estudos, concluindo-os mesmos na cidade de Wuzburgo. Em sua juventude foi leitor atento de escritos de pensadores ateus e materialistas. Ao longo da primeira guerra mundial refugiou-se na Suíça onde redigiu a obra Espírito da Utopia, que mais tarde se constitui em suas variáveis conceituais na obra O Princípio Esperança. Terminada a Primeira Guerra retorna a Alemanha, mas com a chegada dos nazistas ao poder, e temendo a perseguição, volta a refugiar-se em vários países europeus, culminando em 1938 com seu estabelecimento nos Estados Unidos. Permaneceu em solo americano até 1949, quando retorna novamente a Alemanha conferindo continuidade a sua carreira acadêmica e a publicação de suas obras.

Considerado um dos principais revisionistas do marxismo, a obra de Bloch se assenta em dois pressupostos:

1) No abandono da dialética como explicação para a totalidade das contradições constitutivas entre natureza e homem, indivíduo e sociedade. O filósofo substitui o princípio da dialética pelo princípio da possibilidade.

2) Concebe a história a partir de uma nova concepção de homem centrada no princípio esperança. Assim, Bloch se afasta da concepção antropológica de Marx assentada nas condições materiais que circunscrevem as relações e estruturas de produção que constituem a sociedade capitalista.

A antropologia de Bloch parte do pressuposto da esperança na medida em que a vida humana é uma continua projeção do futuro. Aqui temos uma significativa influência da concepção de tempo presente em Santo Agostinho em que o futuro é apenas uma projeção. O presente é o continuo devir e o passado reside na memória, prestando sentido e finalidade a vida que se movimenta no presente, sem conseguir captá-lo em sua totalidade, remetendo o homem em direção ao futuro. Assim, para Bloch, o passado alcança o ser humano somente a posteriori e, o presente é um continuo não chegar. Na perspectiva da contínua projeção do futuro, o sentimento que prevalece em relação a todas as demais instâncias e expectativas de vida é a esperança. A esperança motiva o ser humano a desvendar o futuro, impele-o a agir, a conhecer, a pensar, refletir, analisar e compreender os fenômenos sociais, políticos, econômicos e culturais, nos quais se encontra inserido.

A antropologia revisionista de Bloch assume significativa importância no contexto marxista, na medida que seu objetivo primeiro e fundamental é a transformação do mundo, da sociedade e, como tal, voltada sempre para o futuro das sociedade humanas. Portanto, desdobra-se do princípio esperança como fundamento da antropologia de Bloch outra exigência que se circunscreve no âmbito epistemológico, a condição de que somente o saber articulado entre práxis e teoria consciente encontra amparo e relação com o devir e com as condições de possibilidade daquilo que pode ser decidido.

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O filósofo do princípio da esperança parte do pressuposto marxista de que o homem se encontra alienado. Porém, diferentemente de Marx que atribuía aos aspectos econômicos os motivos da alienação, Bloch vincula a alienação a fundamentos ontológicos. Ou seja, a alienação do homem apresenta-se a partir condição integrada ao universo, que se apresenta incompleto e tende para completude. Assim, o humano expressa em sua condição microcósmica a tendência para o possível. Ou seja, o fundamento último de todas as coisas e do humano é sua tendência para o possível, para o “ainda não”, para o incompleto, para toda condição universal e particular, que tende para o possível que lhe está adiante.

É diante do possível que se articula e se desenvolve toda a realidade em duas dimensões, subjetiva e objetiva. A dimensão subjetiva é a potência que, em sua potencialidade, se apresenta inacabada. É a capacidade de dinamizar e fazer as coisas progredirem. A dimensão objetiva implica o reconhecimento de que todas as formas e seres presentes no cosmos, no mundo tendem a mutabilidade, a evolução de sua condição, sob as prerrogativas das leis universais que circunscrevem o universo no qual a condição humana se encontra inserida. As dimensões subjetivas e objetivas se encontram integradas, em recíproca relação dialética conformando o devir humano e cosmológico. A alienação assume condição singular e prejudicial ao humano e a efetivação do princípio esperança na realização da existência em sua totalidade, na medida em que isola a dimensão subjetiva e a dimensão objetiva.

Bloch observa que a potência subjetiva não se realiza em sua totalidade somente com aquilo que se manifesta, ou se transforma no mundo material, mas, sobretudo com aquilo que se realiza na história. Da mesma forma, a potência objetiva não se vincula somente com o mutável no plano natural, mas também com tudo aquilo que se realiza na história humana, afinal, o mundo em todas as suas dimensões é também resultante da mediação com o homem. Ou seja, o homem na condição de ser realizante articula e conduz à convergência a potência central para a potência potencialidade da matéria vinculada à ação potencial presente no humano.

Para Bloch o homem é possibilidade de tudo o que ele se tornou em sua história e, sobretudo, daquilo que ele circunscrito no ilimitado progresso, pode ainda vir a ser. O homem na condição de possibilidade não esgotou e não esgota as possibilidades das suas condições internas e externas e os aspectos determinantes constitutivos de tais condições. Assim, o possível que contém em si o ainda não do ser em sua subjetividade e objetividades é a condição da esperança e da utopia. Em sua subjetividade se apresenta a disposição da consecução do fim e, em sua objetividade se estabelecem as condições para ação concreta de transformação.

Esta condição do homem como possibilidade revela por um lado o abismo que se circunscreve entre o ser do homem como possibilidade e o mundo em sua realidade possível. Ambas as condições se movem a partir da pressão exercida pelo futuro sobre o presente. Assim, a perspectiva do futuro conduz o homem para o permanente esforço de superar as condições presentes e, mesmo

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em relação a superação dos resultados alcançados até o momento presente, como maneira de afirmar os conteúdos de esperança que anunciam uma pátria futura, que justificam tudo aquilo pelo qual se luta, se procura e almeja alcançar. As possibilidades do futuro se constituem na razão fundamental do existir humano. Alimentam a esperança de vida nova, de instantes de manifestação da potencialidade humana.

Para Ernest Bloch a religião tem importante função na realização das possibilidades humanas na constituição de suas utopias. O referido filósofo, diferentemente de Feuerbach e Marx, considera que a religião não se apresenta somente como expressão da alienação do homem, mas também de protesto diante da natureza e da existência em sua forma fragmentária e incompleta. Por meio da religião o ser humano, em sua incompletude, em sua potência do possível, projeta sua ânsia por perenidade, numa existência reconciliada com o mundo em sua totalidade. Nesta direção, Bloch afirma que a questão fundamental na religião é a projeção do homem no futuro.

Sob tais pressupostos, Bloch valoriza as religiões em geral e, sobretudo o fenômeno religioso, na medida em que não são simplesmente formas de alienação dos povos, mas o protesto diante da vida em sua instantaneidade e efemeridade, diante das injustiças que impedem a constituição de uma vida feliz. Assim, a religião se apresenta como uma via para se alcançar a libertação, que impulsiona o protesto contra o presente em nome do Reino futuro da Utopia.

11 MAX HORKHEIMER E THEODOR ADORNO

Filósofo e sociólogo alemão Horkheimer nasceu em Estugarda na Alemanha em 1895. Em 1930 foi convidado para dirigir o Instituto de Pesquisas Sociais, que fora fundado em 1925 pelo marxista austríaco Karl Grünberg. Com Horkheimer o Instituto se tornou espaço de convergência de pesquisadores, de debates e novas ideias sobre o marxismo, conhecido como Escola de Frankfurt. Inicialmente participaram deste grupo de pesquisadores autores, tais como: Horkheimer, Adorno, Marcuse e Erch Fromm.

Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno, nasceu na Prússia em 1903. Faleceu em 1969 na Suíça. Amigo e parceiro intelectual de Horkheimer, pensaram e escreverem inúmeros textos e obras. A parceria foi de tal intensidade que fica difícil estabelecer com precisão quem é o autor do escrito. Adorno e Horkheimer também foram os principais coordenadores da Escola de Frankfurt. Nas diversas obras elaboradas com Horkheimer, Adorno analisou problemas estruturais da sociedade, da natureza do progresso, ao valor da ciência.

Em 1934 com a ascensão do nazismo o Instituto de Pesquisas Sociais foi fechado. Seus membros emigraram para os Estados Unidos, conferindo continuidade as atividades do Instituto. Em 1950, Horkheimer retorna à Alemanha reabrindo o Instituto e atualizando seu programa de pesquisas à luz

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das transformações ocorridas no pós-guerra. Assim, a Escola de Frankfurt passa a se dedicar ao estudo de teoria crítica da sociedade, cujo objetivo primordial era a compreensão dos homens na condição de produtores da totalidade de suas forças históricas de vida. Em outros termos, a Escola de Frankfurt se propõe a constituir uma compreensão global da sociedade a partir da contribuição de filósofos, sociólogos, historiadores, economistas e psicólogos. Assim, o programa de estudos e pesquisas da escola de Frankfurt se propõe a promover o progresso da sociedade e do pensamento, a emancipação do homem em relação as contradições sociais que o submetem a escravidão.

Sob tais pressupostos do pensamento e da obra, Adorno e Horkheimer vinculam-se explicitamente ao pensamento marxista, conferindo prioridade à práxis, à sociedade em relação ao indivíduo. Para os referidos pensadores, o indivíduo é resultante das condições sociais nas quais ele se encontra inserido. Ou seja, o indivíduo é determinado em seus mais diversos aspectos pela dinâmica organizacional da sociedade em curso. Suas habilidades, suas capacidades de trabalho, de pensamento, reflexão e ação são o resultado do modo de organização econômica, política e jurídica constitutivos da sociedade em determinado tempo e espaço. As prerrogativas históricas e sociais em curso conformam os indivíduos. A forma da organização social determina o desenvolvimento dos indivíduos.

Nesta direção, os referidos pensadores também se mantêm vinculados ao pensamento de Marx ao negar concepções e interpretações metafísicas das condições sociais em curso. A dinâmica social em determinado momento necessita ser analisada cientificamente a partir do âmbito do desenvolvimento material e histórico das sociedades. É a partir da análise histórica e da base material sobre a qual se constitui e se organiza a sociedade que se podem compreender os processos de subjetivação que constituem os indivíduos em suas relações consigo mesmo, com os outros, com a natureza e, com o mundo em sua totalidade.

Porém, Horkheimer e Adorno se afastam do pensamento marxista em certos aspectos, entre eles da interpretação oficial, ou ortodoxa do marxismo, bem como das concepções e práticas políticas do partido comunista criticando-o como entrave para o alcance dos ideais de liberdade e justiça social. Ainda, nesta direção, concebem a dialética de forma ampliada para além da infraestrutura material que condiciona a superestrutura. Para Adorno e Horkheimer a dialética necessita ser concebida também nos domínios culturais e nas formas de produção de saber.

Em sua teoria critica Adorno e Horkheimer pretendem oferecer um diagnóstico da sociedade moderna e contemporânea, denunciando paradoxos, contradições, injustiças, opressões que lhe são constitutivas. Neste sentido, os filósofos também criticam as interpretações sociológicas de cunho empirista e naturalista advindos de Augusto Comte e de seus seguidores idealistas e espiritualistas. Assim, a crítica filosófica desenvolvida pelos dois pensadores decompõe interpretações sociológicas consideradas como descrições naturalizadas das contradições e paradoxos sociais a luz do “dever ser” de matriz

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teórica desprovidas de amparo na realidade efetiva dos fatos. Na esteira deste primeiro movimento crítico se apresenta a crítica de uma razão excessivamente abstrata que desconsidera os condicionantes do pensamento filosófico. Ou seja, para Adorno e Horkheimer filosofar, exercitar a potência do pensamento requer situá-la no contexto da realidade história em curso como tomada de consciência das contradições e, por decorrência, como exigência de constituição de um projeto de libertação.

DICAS

FONTE: <https://www.brasildefato.com.br/2018/05/07/10-filmes-inspirados-pelo-marxismo/>. Acesso em: 3 abr. 2019.

Em A classe operária vai ao paraíso, de Elio Petri (Itália, 1971), um trabalhador dedicado e bem quisto por seus chefes, é detestado pelos demais operários. Ele acaba envolvido numa greve organizada pelo sindicato, levando à paralização da fábrica.

Sob tais pressupostos, a teoria crítica de Adorno e Horkheimer afirma os limites da sociologia positivista de tradições sociológicas assemelhadas, bem como dos limites do método empírico alicerçado nas ciências naturais em sua pretensão de compreender a realidade em sua totalidade. Estes limites condicionam sua capacidade de projetar uma sociedade justa e livre. A sociedade não é um evento natural, mas é resultante de condições históricas e, nesta condição, propensa a transformações que escapam aos métodos empíricos de objetivação dos fatos e acontecimentos. As condições históricas que ensejaram a conformação de determinadas realidades sociais estão submetidas ao próprio devir histórico, implicando em movimentos ao passado como forma de compreender os fins que se colocaram em movimento em determinado momento e que determinam o presente.

O empenho de Horkheimer, corroborado por seu parceiro de pesquisa Theodor Adorno, era a compreensão das bases teóricas, conceituais e práticas constitutivas da sociedade contemporânea. Para os referidos autores, os fundamentos da sociedade contemporânea se encontram no “Iluminismo”. Kant (1724-1804) concebe o iluminismo como a saída do homem da menoridade, do

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qual ele mesmo é o responsável. A menoridade caracteriza-se pela incapacidade de o indivíduo servir-se da própria capacidade entendimento e tomada de decisões, dependendo de outrem para tal fim. Assim, o iluminismo é a aposta na razão, na capacidade do homem alcançar a maturidade que se caracteriza pela capacidade de servir-se do próprio intelecto em âmbito privado e público.

Sob tais pressupostos, as forças contrárias ao iluminismo se caracterizam pela produção de narrativas míticas que mantém aprisionado na menoridade a autonomia do indivíduo no uso de sua capacidade racional pública e privada. Assim, a tarefa primeira do iluminismo é combater todas as formas míticas que reproduzem explicações obscuras de compreensão dos paradoxos e contradições constitutivos da sociedade moderna e contemporânea. O esforço do iluminismo é a supressão dos mitos e sua substituição pela ciência, ou pelo discurso científico.

Porém, ao combater o mito também o iluminismo entra em contradição ao estabelecer novos mitos, entre eles o mito da racionalidade científica, entre outras formas míticas constituídas a partir das prerrogativas iluministas. Adorno e Horkheimer demonstram que o saber científico passa a ser investido de poder com conotações míticas, entre elas: a pretensão de decompor e explicar a realidade em sua totalidade e, como decorrência de tal condição, desenvolve o preconceito em relação a outras formas de conhecimento sobre a realidade, sobre o mundo. Ou seja, elevando-se como a possibilidade de alcance do conhecimento verdadeiro, o iluminismo assume a forma das hierarquias dos deuses olímpicos.

Esta condição assumida pelo iluminismo conduziu o pensamento, a racionalidade científica a separação em relação ao mundo. Assim, o mundo pode ser considerado matéria para a manipulação da razão que se manifesta de forma intempestiva no pensamento classificador e calculador da técnica. Ou dito de outra forma, a partir da aposta iluminista na razão o ser humano, a sociedade e o mundo passam ser concebidos a partir do aspecto da manipulação da intervenção administrativa. Tudo se torna processo cujas partes constituem o sistema em sua continua repetição e, substituição na medida das necessidades instrumentais em curso.

Para Adorno e Horkheimer, a opressão, a exploração e manipulação constitutivas das sociedades contemporâneas são o resultado das perspectivas iluministas constitutivas de uma razão científica e tecnológica caracterizada pela instrumentalidade de um saber produtivo característica de uma sociedade de pleno consumo e de descartabilidade de objetos e de relações humanas. Ou seja, a razão instrumental não assume compromissos com os fins de sua ação que conferem significado à vida humana. Apresenta-se como uma razão vinculada ao império dos meios que transforma tudo a sua volta em instrumentos de cálculo de custo e benefício. A razão instrumental calcula o mundo, a vida e as relações transformando tudo em meios adequados a efetivação de outros meios, ou seja, calcula um meio para o alcance de outros meios. A instrumentalidade radicalizada da razão transforma o mundo humano em algo intermediário relativizando todos os valores e relações sociais.

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A crítica social de Adorno e Horkheimer procura se apresentar como uma alternativa a instrumentalidade da razão. Trata-se de valorização específica do razão iluminista que se compromete com o humano como fim na busca da liberdade e da felicidade. Assim, o ideal da aposta iluminista dos referidos autores se circunscreve na proposta de conformação de uma sociedade que se comprometida com a efetivação da felicidade de todos. O alcance deste escopo pode ser alcançado pela adequação da dinâmica social às necessidades dos membros da sociedade em sua totalidade. A forma social proposta pelos referidos pensadores pressupõe que os seres humanos no uso de suas capacidades racionais possam organizar suficiente o trabalho de acordo com os interesses e os fins dos indivíduos. A vida humana dos indivíduos e da sociedade tem uma finalidade, tem um sentido pleno que necessita ser considerado no tempo no espaço que se circunscrevem suas vidas. É a realização desta finalidade que necessita ser reafirmada na condição do ser humano não se apresentar com puro meio à mercê de cálculos de custo e benefício, mas apresenta como um fim em si mesmo, pleno de potencialidades em curso de realização.

Sob tais pressupostos, a teoria crítica da sociedade elaborada por Horkheimer, por Adorno e pelos demais membros da Escola de Frankfurt, foi recepcionada com significativo interesse em função de seu diagnóstico da ascensão e supremacia de uma racionalidade instrumental a partir da qual se desencadeia a opressão, a exploração, a manipulação de indivíduos e de sociedades. Pode-se afirmar que estas concepções estiveram na base das revoltas estudantis de maio de 1968 na França. Por outro lado, seus críticos denunciam que os pressupostos historicistas, imanentistas e materialistas não oferecem um fundamento consistente à crítica radical às sociedades contemporâneas. Ou seja, o desprezo por um fundamento consistente lança a tarefa da razão crítica numa condição precária, na medida em que valores como justiça, liberdade, igualdade são históricos, também são relativos e passam a ser condicionados pela estrutura econômica da sociedade em fundo último a razão que se apresenta crítica tende a se transformar novamente em razão instrumental.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A importância das ideias e propostas de Marx tiveram impacto significativo em seu tempo e, sobretudo no século XX, especialmente a partir da Revolução Russa em 1917 em que inúmeros Estados adotam uma visão socialista, senão comunista de Estado.

• O mérito de Marx e de seu amigo Friedrich Engels foi terem elaborado um preciso diagnóstico da sociedade capitalista de seu tempo, demonstrando que a exploração e a expropriação do capital sobre o trabalho produzem profundas desigualdades sociais, fome e miséria sobre a classe trabalhadora.

• Mas, os referidos pensadores aprofundam o diagnóstico demonstrando que o capital é resultante do trabalho socialmente realizado e como tal deveria ser distribuído igualitariamente.

• Ainda nesta direção, Marx e Engels demonstraram de que a história das mais diferentes sociedades pode ser lida a partir do modo como se organização as forças de produção que garantem os bens necessários à sobrevivência e perpetuação da sociedade.

• Assim, o fundamento primeiro da organização social é a forma que a organização econômica assume (infraestrutura), determinando os valores, as instituições, a cultura, a cosmovisão (superestrutura) que garantem a funcionalidade do modo de organização econômica.

• Nos seus estudos você também teve a oportunidade de constatar a intensidade e a importância que o diagnóstico de Marx e Engels assumiram no seu tempo em ao longo de todo século XX, até os dias atuais em pleno século XXI.

• Porém, esta condição não é isenta de críticas e questionamentos e, este foi o mote dos marxistas revisionistas. O filósofo italiano Antônio Gramsci constatou a necessidade de rever aspectos da teoria de Marx, a luz das transformações e exigências das primeiras décadas do século XX.

• Estas exigências fizeram com que o pensador operasse uma ampliação das categorias de análise do marxismo por meio de conceitos como “sociedade civil”, “sociedade política”, “bloco histórico” e o próprio papel do Estado.

RESUMO DO TÓPICO 2

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• Por sua vez os revisionistas do marxismo vinculados à Escola de Frankfurt, entre eles: Marcusse, Ernest Bloch, Horkheimer e Adorno, procuraram repensar o marxismo a partir de uma teoria crítica da sociedade que perscrutasse seus fundamentos na modernidade, sobretudo a partir do movimento iluminista.

• A contribuição da escola de Frankfurt, entre outras variáveis foi desenvolver uma leitura do marxismo a partir da contribuição da psicanálise, da sociologia, da antropologia, entre outras ciências humanas, demonstrando os limites do diagnóstico marxista situada na leitura das contradições entre infraestrutura e superestrutura.

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AUTOATIVIDADE

1 Como compreender a dinâmica de uma sociedade em seus paradoxos e contradições para Marx?

2 Quais as contribuições da crítica social de Horkheimer e Adorno para a compreensão das contradições sociais? O que significa para os referidos autores a razão instrumental?

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TÓPICO 3

O FEDERALISTA: HAMILTON, JAY E

MADISON

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

No tópico que segue, apresentamos uma abordagem sobre as 85 teses, ou artigos, apresentadas pelos três pensadores federalistas que foram as principais referências para a única revisão da Constituição dos Estados Unidos da América. Pode-se dizer que os Estados Unidos da América viveram ali um momento histórico de primeira grandeza na sua constituição nacional.

Mais que isso, pode-se afirmar, foi um momento inédito na história do Ocidente, pela simples razão de que, pela primeira vez, desde os gregos, indivíduos da Sociedade estavam discutindo e participando livremente da Constituição de sua nação. Hamilton, Jay e Madison eram a representação da liberdade de participação política. Como cidadãos comuns, estavam influenciando o processo decisório sem a necessidade de pertencerem a qualquer oligarquia.

Não obstante, o empenho destes três autores federalistas expressava o que estava acontecendo na América do século XVIII. Nos “subterrâneos da política forma”, no mundo real do dia a dia, pessoas comuns discutiam suas reais necessidades e as reverberavam, em reuniões comunitárias. Nessa perspectiva, as teses constitucionalistas dos autores que aqui apresentamos, não são apenas o resultado de suas próprias ilustrações, mas refletem os anseios federativos do povo.

IMPORTANTE

A democracia estadunidense é marcada por uma Constituição elaborada e aprovada com a intensa discussão e participação da Sociedade.

2 O FEDERALISTA: UM LIVRO, UMA CONSTITUIÇÃO

O federalista é o nome de um importante livro, compêndio de 85 artigos em prol do federalismo estadunidense, a fim de sugerir os rumos da Constituição de 1776, que sofreria sua primeira e única revisão 13 anos depois. Os textos foram escritos originalmente na Filadélfia entre os anos de 1787 e seguinte, por

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Alexander Hamilton, John Jay e James Madison, sugerindo a melhor forma do governo republicano. Enviados para publicação em jornais de New York, a intenção era persuadir os eleitores daquele estado a apoiar a proposta de reforma constitucional. Inicialmente, tratava-se de 77 ensaios que foram reimpressos e publicados na maioria dos outros estados. Posteriormente, esses textos foram reunidos e organizados de modo a compor a primeira edição do livro The Federalist, em maio de 1788. No mesmo ano, mais oito artigos foram publicados nos jornais de New York, incorporados nas edições seguintes. O teor desses artigos aponta insuficiências da primeira Constituição, sugerindo alterações que fortaleceriam as liberdades individuais e a autonomia das unidades federativas.

FIGURA 3 - O FEDERALISTA

FONTE: <https://www.google.com/search?q=quantas+edi%C3%A7oes+de+The+federalist&tbm=isch&source=iu&ictx=1&fir=rP8jodnmImt10M%253A%252CabTZoW546PY3mM%252C_&usg=AI4_-kTas7RGTTwlJgOuOvKcD9-SvCTrGg&sa=X&ved=2ahUKEwj4g93us8jgAhU1IrkGHRT-BawQ

9QEwBXoECAUQCA#imgrc=rP8jodnmImt10M:>. Acesso em: 3 abr. 2019.

Os 85 ensaios federalistas compõem um tratado geral sobre o governo republicano, e representam uma cuidadosa análise das formas pelas quais os direitos individuais, o bem-estar social, a igualdade e a justiça poderiam ser materializados e garantidos na forma da lei. Trata-se, sem exageros, de um conjunto muito valioso de ensaios, não somente pelo conteúdo, mas pela influência que exerceram, orientando os rumos da grande nação norte-americana. Do ponto de vista da antropologia política, a visão sobre o homem é pretensa e acertadamente realista, diferente de muitas idealizações filosóficas inerentes nas constituições democráticas. Os federalistas Hamilton, Madison e Jay partiram do pressuposto de que os seres humanos agem por interesse próprio. Seja, nas relações sociais em geral, seja na economia, como na política, seres humanos são egoístas, individual ou coletivamente. Agem de maneira racional, porém movidos por impulsos de ordem egoística e passional.

Nessa perspectiva, a constituição legal de um modo de governo republicano não seria, por si só, suficiente para impedir que essas características

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essencialmente humanas se manifestassem o tempo todo. No ambiente governamental, seja no executivo, no legislativo ou no judiciário, as possibilidades de que os representantes da vontade geral do povo traíssem essa confiança seriam frequentes. Na seara dos conflitos sociais, grupos mais poderosos se sobreporiam aos mais frágeis sempre que alguma oportunidade o suscitasse. Assim, tanto a sociedade em geral quanto os representantes de certos segmentos tendiam a subverter a ordem republicana em benefício de seus interesses. Desse modo, argumentavam os federalistas, um bom governo dependeria de boas instituições políticas — entenda-se leis — que compensassem os desequilíbrios oriundos dessa natureza egoísta, por assim dizer, hobbesiana, que os homens manifestam no convívio com os outros.

Essa visão sobre a natureza egoísta dos seres humanos em sociedade foi bastante influente, para não dizer predominante, durante o final do século XVIII nos Estados Unidos. Não se trata da disseminação de um pessimismo antirrousseauniano sobre a essência dos homens. Tampouco significa uma descrença nas possibilidades de criar um sistema republicano que respondesse aos anseios democráticos da sociedade americana. Ao contrário, o que os federalistas tinham em mente, e que fora compartilhado por muitos estadunidenses, era justamente estabelecer uma ordem política em bases legais realistas, sem maiores ilusões. Era necessário materializar as necessidades reais dos indivíduos, permitindo um convívio social que equilibrasse o mais possível as condições de liberdade e igualdade. E, de maneira geral, os estadunidenses foram bem-sucedidos, criando um sistema de freios e contrapesos que estampa a Constituição norte-americana e parece explicar sua vida longa, sem revisões ou reformas posteriores. Não foi em vão que, menos de duas décadas depois, Tocqueville expressasse sua admiração pela democracia americana.

A Constituição dos Estados Unidos passou por uma única e duradoura revisão, garantindo ao mesmo tempo um sistema federativo que reconhece a necessidade do poder central e a tradição descentralizada da república norte-americana.

ATENCAO

3 AS INOVAÇÕES DOS FEDERALISTAS

Como já se disse, o objetivo dos federalistas era apresentar um norte ao sistema político federal. Nessa perspectiva, era necessário convencer as antigas colônias, agora estados, a aprovarem o novo texto constitucional de 1787, resultado da revisão da Carta Magna. Esse trabalho de revisão exigiu um esforço intelectual considerável de seus autores. Afinal, estava em jogo o desenho constitucional através do qual se pretendia orientar os rumos de uma

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nação democrática que encontrasse o equilíbrio entre as liberdades individuais, coletivas, as autonomias federativas e a unidade nacional. Nessa perspectiva, a primeira grande preocupação estava em corrigir os excessos descentralizadores da ordem política estadunidense, garantindo o pacto federativo. A cultura descentralizadora é inerente à própria conformação nacional dos Estados Unidos. Desde o processo colonizador, as13 colônias iniciais conseguiram resguardar boa dose de autonomia. Mas a unidade nacional precisava ser igualmente resguardada, sem o que o país não poderia se transformar na grande nação que almejava ser.

Desse modo, Madison, Jay e Hamilton insistiram na necessidade de certos graus de centralização da autoridade política sobre a confederação nacional. A primeira versão da Constituição lhes parecia excessivamente descentralizada, o que fragilizava a condição da grande nação. Os autores temiam que os interesses comerciais nacionais fossem prejudicados pelos conflitos econômicos entre as unidades federativas e que isso interferisse nos esforços diplomáticos americanos no exterior. Em linhas gerais, eles argumentaram que a impotência do governo central sob os Artigos da Confederação obstruía o surgimento dos Estados Unidos como uma potência econômica. O governo central americano não tinha, até ali, autoridade para firmar negócios comerciais com outras nações. Estava desprovido legalmente de representar as unidades federativas nas relações comerciais externas. Nessa direção, a principal reclamação vinha dos estados industrializados do Norte, que tinham grande vocação comercial exportadora, mas dependiam do bom humor dos estados do sul. Nessa perspectiva, Hamilton assim se pronuncia:

A inexistência de um poder para regular o comércio é reconhecida unanimemente como sendo um deles (dos problemas) [...]. É na verdade evidente, mesmo ante um exame superficial, que não outro problema, dizendo respeito aos interesses do comércio ou das finanças, exija com mais vigor uma supervisão federal. Sua ausência já representou um obstáculo à lavratura de vantajosos tratados com potências estrangeiras e deu margem a insatisfações entre os estados-membros. Nenhuma nação familiarizada com natureza da nossa associação política seria bastante insensata para negociar acordos com os Estados Unidos, envolvendo privilégios de alguma importância que ela devesse conceder, enquanto estivesse ciente de que os compromissos de parte da União poderiam, a qualquer momento, ser violados por seus membros (HAMILTON; MADISON; JAY, 1788, 22 apud ISMAEL, 2011, p. 235).

Na mesma perspectiva, os federalistas criticam o poder das legislaturas estaduais sob os Artigos da Confederação, e não pouparam o caráter das pessoas que constituem essas assembleias estaduais. Na opinião dos autores, os fazendeiros e artesãos que ascenderam ao poder após a Revolução Americana foram obrigados a restringir os interesses econômicos e regionais para servir ao bem público mais amplo. Particularmente preocupante para os autores foi a aprovação, pelas legislaturas estaduais, de legislação favorável aos devedores, contra os direitos de propriedade dos credores. Ao contrário da maioria dos americanos do período, que tipicamente se preocupavam com as conspirações da

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elite contra as liberdades do povo, os autores estavam preocupados com as maiorias legislativas tirânicas que ameaçavam os direitos das minorias proprietárias. Na opinião dos autores, os estatutos da Confederação não ofereciam garantias contra os desvios morais das pessoas, e o entusiasmo da Revolução Americana pela liberdade teria desestimulado a população a reconhecer a necessidade da autoridade governamental e das preocupações com a ordem.

A preocupação com a unidade territorial da grande nação era o principal ponto constitucional a ser garantido e estaria sob ameaça. De certo, os Estados Unidos da América viviam um momento muito delicado e decisivo ao seu destino e as preocupações dos autores transpareciam isso com força argumentativa. Os apelos à integração política das unidades federativas está expresso na redação do Artigo 2º, de John Jay. Ali, a advertência é que sem a forte presença de um governo federal centralizado e regido por uma carta constitucional clara nessa direção, a nação corre sérios riscos. Os perigos estariam na ameaça da fragmentação de seu território e de lutas fraticidas e separatistas de seus entes federativos. E não deveria ser surpresa que interesses estrangeiros pudessem estar por trás de movimentos centrífugos. Desse modo, era necessário superar as divergências entre os estados, em prol do interesse de todos, pois que:

[...] qualquer que seja nossa situação — solidamente unidos sob um governo nacional ou repartidos em certo número de confederações — o certo é que todos os países estrangeiros estarão bem a par do que está acontecendo e agirão de acordo com suas conveniências [...]. Se, porém, nos encontrarem privados de um governo atuante (cada estado-membro agindo certo ou errado, conforme seus dirigentes julgarem conveniente) ou repartindo em três ou quatro repúblicas ou confederações independentes e provavelmente discordantes, uma favorável a Grã-Bretanha, outra à França, uma terceira à Espanha, e talvez jogadas umas contra as outras por esses três países — que pobre e lamentável figura a América representará! (Ibid., art. 48, p. 235).

Vale reforçar a insistência de Alexander Hamilton na defesa da centralização constitucional de um ente soberano que se sobrepusesse aos estados federados. Mais do que para resolver problemas de circulação econômica interna ou de separatismo, Hamilton estava preocupado com ameaças externas. Nessa perspectiva, afirmava, em 1787, que “o modelo inglês era o único bom neste aspecto. O interesse hereditário do rei estava de tal forma ligado ao interesse da nação e os seus emolumentos pessoais eram tão significativos que ele estava numa posição que o poupava do risco de ser corrompido por nações estrangeiras” (HAMILTON; MADISON; JAY, 1788 apud LARSON; WINSHIP, 2005, p. 137).

No entanto, o aumento do poder do governo nacional teria que ser baseado em princípios republicanos e manter uma distribuição federal de poder, sem retorno ao governo monárquico ou à consolidação da autoridade central. É preciso compreender que os federalistas estão preocupados com a unidade nacional de uma poderosa união de estados bastante autônomos. Todavia, autônomos demais para a consolidação do “destino manifesto” dessa grande nação. Não há uma recusa à cultura descentralizadora que, afinal, é parte da própria cultura

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estadunidense, já exaltada por Tocqueville. Essa pujança local revela o próprio capital social existente nas antigas colônias. Foi a partir da mobilização de seus indivíduos em comunidade que a Constituição foi erigida na sua primeira versão, em 1776. Não obstante, o reconhecimento desse capital social, ou capital cívico, se quisermos, seria muito mais poderoso se resguardadas as condições imperiosas da unidade nacional. Afinal, tratava-se de uma extensão territorial absolutamente favorável à consolidação de uma potência mundial. Para isso, era necessário que os estados estivessem realmente unidos, formando não apenas uma confederação, mas uma federação imbatível.

Nessa direção, a preocupação continha também o ponto de vista econômico. Evidentemente, uma nação poderosa, constituída de estados econômica e politicamente dinâmicos, precisava de garantias constitucionais. Isto implicava em condições legais e, portanto, policiais que assegurassem a submissão das unidades federativas às condições gerais de integração nacional. Qualquer resquício de insurreição futura deveria ser impedido. Ainda neste segundo artigo do livro O Federalista, John Jay relaciona o sucesso da economia à preservação da unidade nacional, o que somente seria possível através da Carta Magna revisada e comprometida nessa direção. É importante compreender que se havia esse engajamento por parte de Jay, Madison e Hamilton, eles não eram os únicos. Mais do que isso, esse engajamento era tão vigoroso quanto as resistências locais de interesses contrariados e eventualmente insurretos. Normal que fosse assim lá, como em qualquer nação. O importante era garantir que os interesses locais não impedissem o projeto nacional histórico de garantir as bases legais de uma grande potência emergente. Assim, assevera Jay, que:

Até recentemente tem sido opinião geral e não contraditada que a prosperidade do povo na América depende de ele continuar firmemente unido: os desejos, as preces e os esforços de nossos melhores e mais prudentes cidadãos têm sido constantemente orientados nesse sentido. Todavia, agora aparecem políticos que insistem em qualificar esta posição como errônea e que, em vez de buscar a segurança e felicidade na União, devemos procurá-la em uma divisão dos estados membros em distintas confederações e soberanias. Por mais extraordinária que essa doutrina possa parecer, ela tem seus adeptos; certas personalidades, que até há pouco a combatiam, estão agora entre estes. Quaisquer que possam ser os argumentos e convicções que revistam tal mudança, certamente não seria aconselhável que o povo em geral adotasse novas doutrinas politicas sem estar plenamente convencido de que elas são baseadas na verdade e em sadia orientação (HAMILTON; MADISON; JAY, 1788 apud ISMAEL, 2011, p. 236).

4 A UNIDADE NACIONAL NA AUTONOMIA FEDERATIVA

Acompanhando a argumentação de Jay, Madison e Hamilton desenvolvem notável retórica em favor da unidade. Rejeitam, inclusive, o argumento de Montesquieu, segundo o qual governos republicanos só funcionariam em estados pequenos. Madison entende que justiça, liberdade e estabilidade seriam ainda

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mais viáveis em um grande território com população volumosa e diversificada. Ainda que interpretado como um ataque à tirania da maioria, o artigo é uma defesa do pluralismo econômico e cultural e de uma maioria composta por compromisso e conciliação. Essa distinção entre uma maioria unida e uma maioria dividida representava o sentido prioritário dos artigos federalistas. É importante compreender que a centralização e a unidade legal não significavam um fim em si mesmo. Não se tratava de uma escolha ideológica de ordem reacionária, monarquista ou antiliberal. Aqui manifesta-se o pragmatismo estadunidense em favor do propósito maior, qual seja, o estabelecimento de instituições republicanas que garantissem a igualdade e a liberdade no longo prazo. No artigo 10, se lê que:

Quando Montesquieu recomenda uma pequena extensão territorial às repúblicas, os exemplos que ele tinha em vista apresentavam áreas bem menores que a de qualquer de nossos estados-membros, com poucas exceções. Virgínia, Massachusetts, Pensilvânia, new York, Carolina do Norte ou Geórgia – nenhum deles pode ser comparado com os modelos sobre os quais ele raciocinava e que traduziam os dados em que se apoiava. [...]. Tão distantes estavam as sugestões de Montesquieu de refletirem uma oposição à União dos estados-membros, que ele explicitamente cita uma República Confederada como solução para ampliar a esfera do governo popular e reconciliar as vantagens da monarquia com as do republicanismo (Ibid., p. 236.)

Vale também a menção a Alexis de Tocqueville que, como já dissemos, elogiava o funcionamento da ordem política em seu Democracia na América. E o autor não deixou de se pronunciar a respeito do modelo federalista, que entendia como vantajoso tanto a pequenas como a grandes nações. É verdade que o filósofo francês tinha ressalvas quanto à própria insuficiência do centralismo, por exemplo, no tocante à vulnerabilidade da nação a ameaças estrangeiras. Por outro lado, elogiava a descentralização administrativa do federalismo estadunidense, já que estimulava a participação dos cidadãos nos processos decisórios, o que era salutar à democracia e ajudava a aperfeiçoar o próprio sistema representativo. Não obstante, concordava com a centralização governamental. Isso se justificaria tanto pela força da unidade em relação a ameaças estrangeiras, quanto no tocante a regras e leis gerais que facilitavam a vida da nação pela conjunção dos interesses gerais contra particularidades locais nem sempre tão republicanas. Assim dizia Tocqueville (2005 apud ISMAEL, p. 237):

Foi para unir as diversas vantagens que resultam da grandeza e da pequenez das nações que se criou o sistema federativo. [...] A União é uma grande república quanto à extensão; mas, de certa forma, seria possível assimilá-la a uma pequena república, por causa do pouco número de objetos de que seu governo se ocupa. Seus atos são importantes, mas raros. Como a soberania da União é tolhida e incompleta, o uso da soberania não é perigoso para a liberdade. [...] A União é livre e feliz como uma pequena nação, gloriosa e forte como uma grande.

A estabilidade requerida no federalismo teria de ser tal que a Constituição pudesse operar como um mecanismo de impedimento às insurreições e aos separatismos, como também combater as facções de grupos existentes em cada

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unidade federativa. Os federalistas enaltecem os ganhos até então obtidos durante os primeiros anos desde a Constituição de 1776. Entre eles estão a distribuição equilibrada dos três poderes, a estabilidade do magistrado não sujeito a demissões em função dos resultados de suas decisões judiciais, as eleições diretas para a escolha dos representantes do povo no legislativo, entre outras vantagens elencadas por Hamilton em um de seus ensaios. Não obstante ao reconhecimento desses avanços, o mencionado autor assevera a necessidade de que tais avanços tenham alcance geral, promovendo a “ampliação da órbita na qual tais sistemas têm de girar, em atenção às dimensões de determinado estado ou às da consolidação de vários estados-membros pequenos em uma grande Confederação” (HAMILTON; MADISON; JAY, 1788 apud ISMAEL, 2011, p. 238).

IMPORTANTE

O grande mérito das teses federalistas está em terem sido compreendidas como o antídoto à fragmentação territorial e à garantia das autonomias federativas daquela que se tornou a nação mais poderosa do século XX.

Grande também era a preocupação dos federalistas para com o conjunto de interesses diversos e com frequências chocantes com os interesses gerais ou consensuais à paz da nação. Estamos nos referindo a todo o conjunto de interesses setoriais, locais, de classe, econômicos e ou políticos de ordem fragmentária. Legítimas ou não, essas demandas não poderiam se sobrepor aos interesses gerais da nação, mas também não poderiam ser ignorados. O realismo político republicano exigia serenidade na consideração de um universo de interesses que os mecanismos institucionais não poderiam ignorar. Aqui, revela-se novamente o pragmatismo político, a consideração de que homens não são anjos e ignorar isso seria cair na ilusão das boas intenções dos homens e da perfeição idealista das leis. Mais uma vez, a perspectiva antropológica do bom selvagem de Rousseau é confrontada com a do homem, lobo do homem de Hobbes.

Uma das principais preocupações de James Madison é encontrar os meios legais a combater os interesses das facções. Mas o que são, afinal, as facções? O autor apresenta uma definição no início do 10º artigo de The federalist, tratando-se de “um conjunto de cidadãos, representando quer a maioria, quer a minoria do conjunto, unido e agindo sob um impulso comum de sentimentos ou de interesses contrários aos direitos dos outros cidadãos ou aos interesses permanentes e coletivos da comunidade” (HAMILTON; MADISON; JAY, 1788 apud ISMAEL, 2011, p. 239). Madison reconhece o caráter indesejável das ações desses segmentos da sociedade, mas também entende que não é possível combate-las o tempo todo, muito menos livrar-se delas. Não só não é possível como também não seria legítimo, dada a sua perspectiva liberal. Isso implica admitir a convivência de

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interesses contrapostos e a necessidade de resolver democraticamente os dilemas republicanos na diversidade, seja pelo diálogo, seja pela lei. Não sendo necessário eliminá-las, é preciso controlar seus efeitos.

A melhor alternativa que os federalistas vislumbram para o controle dos males causados pelos interesses segmentados é o sistema representativo, isto é, o legislativo e o livre direito à organização civil e à associação, incluindo os partidos políticos. A democracia representativa seria, no final das contas, menos vulnerável aos interesses faccionais do que as formas de democracia direta. Na perspectiva dos federalistas, a existência de um legislativo nacional seria um antídoto aos interesses segmentados e, principalmente, aos menos republicanos. Madison aponta ao menos duas grandes razões para tanto. A primeira é que um Congresso Nacional permite a ampla participação das organizações partidárias e o recebimento das demandas por parte dos vários setores da sociedade organizada na discussão pública dos temas republicanos. A segunda é que o legislativo federal permite um importante distanciamento dos parlamentares de suas sedes eleitorais, onde estão mais sujeitos às pressões de demandas faccionais. Leia-se o que diz Madison a respeito:

A influência dos líderes facciosos pode provocar incêndios nos respectivos estados-membros, mas não será capaz de alastra-los entre os demais, uma seita religiosa pode degenerar em facção política em parte da Confederação, mas a variedade de seitas dispersas por todo o seu território será de molde a preservar os conselhos nacionais contra quaisquer perigos oriundos dessa fonte. Uma necessidade violenta de papel-moeda, de abolir dívidas, de divisão igual da propriedade ou qualquer outro projeto impróprio ou pernicioso terá menos probabilidade de ser aceito por todo o corpo da União do que por um de seus membros, do mesmo modo que uma praga poderá infeccionar determinados distritos ou regiões, sem atacar o Estado (HAMILTON; MADISON; JAY, 1788 apud ISMAEL, 2011, p. 239).

Para além das preocupações com os interesses faccionais e fragmentários, contudo, os federalistas nunca deixaram de reconhecer as vantagens e as qualidades da distribuição descentralizada do poder e da característica de baixo para cima no federalismo americano. O projeto da união dos estados em substituição à simples Confederação anterior indicava uma necessária centralidade do poder. Tratava-se de preencher uma lacuna que, bem no fim, será importante às unidades federativas abaixo do poder central. A centralização tinha muito mais um sentido protetor do que de destituição da autonomia; fazia parte do interesse maior da grande nação e, se era para o bem da nação, havia de ser aos estados. As instâncias subnacionais precisariam ter suas autonomias devidamente preservadas. Suas leis e sua jurisdição deveriam restringir-se aos assuntos de seu âmbito territorial e populacional, só não poderiam se confrontar com as leis de interesse nacional. Portanto, o objetivo da Constituição seria o de “assegurar a união dos 13 estados-membros iniciais” (HAMILTON; MADISON; JAY, 1788 apud ISMAEL, 2011, p. 241) e o cuidado para que não se ameaçasse “a porção de autoridade mantida nos diversos estados-membros” (HAMILTON; MADISON; JAY, 1788 apud ISMAEL, 2011, p. 241).

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Por fim, vale mencionar a preocupação adjacente que os federalistas demonstravam com a necessidade de equilíbrio entre os três poderes. Nesse aspecto, como lembram Ismael (2011) e Barbosa(2014), os federalistas Hamilton e Madison eram leitores de Montesquieu, mas também de Hobbes e Locke. Madison defendeu a adoção de um sistema de controles mútuos entre os poderes. Com essa sugestão, deixava implícita a sua desconfiança em relação à natureza dos homens. Que a ninguém se concedessem poderes ilimitados, já que os seres humanos são movidos por paixões e interesses egoísticos, e isso não seria diferente no universo das instituições políticas e seus operadores. Assim, o equilíbrio e o bom funcionamento dos poderes executivo, legislativo e judiciário, assim como o melhor relacionamento possível entre eles, dependia da vigilância permanente de cada um pelos outros. No realismo político dos federalistas, seria preferível a estratégia do “se não posso fazer, também não deixarei que outros façam”. Desse modo:

A grande segurança contra uma gradual concentração de vários poderes no mesmo ramo do governo consiste em dar aos que administram cada um deles os necessários meios constitucionais e motivações pessoais para que resistam às intromissões dos outros. As medidas para a defesa devem, neste como em todos os demais, ser compatíveis com as ameaças de ataque. A ambição será incentivada para enfrentar a ambição. Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais. Talvez seja um reflexo da natureza humana que tais expedientes tenham validade para o controle dos abusos do governo. Mas afinal, o que é o próprio governo senão o maior de todos os reflexos da natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governos. Se os homens fossem governados por anjos, dispensar-se-iam os controles internos e externos. Ao constituir-se um governo, integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens, a grande dificuldade está em que se deve, primeiro, habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obriga-lo a controlar-se a si mesmo (HAMILTON; MADISON; JAY, 1788 apud ISMAEL, 2011, p. 243).

Dessa maneira geral, os federalistas procuraram influir no processo decisório que, pouco mais de uma década após a primeira promulgação constitucional, passava por uma revisão. Era a primeira e seria a única, até os dias atuais. O principal intuito dos autores fora propor uma transição segura da Confederação dos Estados Unidos para uma República Federativa dos Estados Unidos. A diferença entre as duas formas de governo é a seguinte: uma confederação é a reunião de estados soberanos ou nacionais com algum interesse em comum, mas com autonomia e independência — exemplo atual disso é a União Europeia. Enquanto isso, uma federação é a reunião de estados com relativa autonomia política, porém submetidos a uma autoridade nacional maior. Tratava-se de definir as regras institucionais que garantissem a unidade federativa para a construção de uma grande nação, capaz de manter unidos o território e o povo, promovendo a paz social e o desenvolvimento econômico.

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DICAS

Na Biblioteca Digital do Senado brasileiro, há um artigo interessante do jurista Rogério de Araújo Lima, intitulado Os artigos federalistas : a contribuição de James Madison, Alexander Hamilton e John Jay para o surgimento do Federalismo no Brasil. Está disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242934>.

Diante do que estabelecera a primeira versão da Carta Magna, era necessário centralizar para garantir esse nobre propósito. Os autores dos ensaios federalistas argumentavam em favor do fortalecimento do governo federal, a fim de responder a essa necessidade, nem por todos reconhecida. Grupos poderosos locais, econômicos ou não, tinham resistências autônomas, o que até certo ponto sempre foi salutar. Em grande medida, afinal, a vitalidade de uma república está na força política das unidades subnacionais, no senso comunitário e na identidade local-regional. Quanto maior a autonomia local-regional, menor a danosa dependência do governo federal e maior o capital social. A unidade nacional em torno de algumas regras básicas era necessária e a história demonstrou que os federalistas estavam certos.

Todavia, o crescimento do poder central deveria estar assentado em princípios republicanos e na manutenção equilibrada do pacto federativo. Não poderia significar a edificação de um modelo monárquico, como o de seus colonizadores europeus, tampouco deveria levar a um centralismo autoritário. O que os autores federalistas propuseram foi uma verdadeira federação de estados unidos em torno do projeto de uma potência mundial. A fórmula era a maior igualdade e a maior liberdade possíveis, através do respeito ao dinamismo local e do compromisso com os grandes objetivos nacionais. Tratava-se de edificar esse projeto de potência com um sistema político de equilíbrio entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, a partir da premissa de que homens não são anjos. Como já havia sugerido Montesquieu: boas instituições políticas produzem bom homens.

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LEITURA COMPLEMENTAR

TEXTOS DE O FEDERALISTA

Hamilton e Jay1. Hamilton

AO POVO DO ESTADO DE NOVA IORQUE

Depois de uma demonstração inequívoca da ineficiência do atual governo federal, sois chamados a deliberar sobre uma nova Constituição para os Estados Unidos da América. O assunto, por si só, expressa sua importância: a de compreender nada menos que a existência da União em suas conseqüências, a segurança e o bem-estar das partes que a compõem e o destino de um império que é, sob vários aspectos, o de maior interesse do mundo. Freqüentemente se tem salientado que parece ter sido reservado ao povo deste país, por sua conduta e exemplo, decidir a importante questão: se as sociedades humanas são realmente capazes ou não de estabelecer um bom governo a partir da reflexão e do voto, ou se estão para sempre destinadas a depender do acaso e da força para as suas constituições políticas. Se há alguma verdade nesta observação, a crise à qual chegamos pode ser propriamente encarada como o momento no qual a decisão deve ser tomada; e uma escolha errada de nossa parte poderá ser considerada, a este respeito, como uma desgraça para a humanidade. [...] A julgar pela conduta dos partidos oponentes, seremos levados a concluir que eles desejam mutuamente evidenciar a justeza de suas opiniões e aumentar o número de seus prosélitos através do alarido de seus discursos e do azedume de suas invectivas. Qualquer demonstração mais vigorosa da energia e eficiência do governo será estigmatizada como fruto de uma tendência extremada ao poder despótico e como hostilidade aos princípios de liberdade. Um temor exagerado às ameaças aos direitos do povo — que mais comumente é culpa da cabeça que do coração – será apresentado como mero pretexto e artifício, a velha isca em busca da popularidade às expensas do bem público. Por um lado, será omitido que o ciúme é usualmente concomitante do amor violento e que o nobre entusiasmo da liberdade é demasiado suscetível de ser infectado por um espírito de suspeitas mesquinhas e iliberais. Por outro lado, será igualmente omitido que o vigor do governo é essencial à segurança e à liberdade; que, na expectativa de um julgamento justo e bem informado, esses interesses não podem nunca ser separados; e que uma perigosa ambição está mais frequentemente escondida por trás da máscara especiosa do zelo pelos direitos do povo do que sob a hipócrita aparência de entusiasmo pela firmeza e eficiência do governo. A história nos ensina que aquela ambição tem encontrado um caminho muito mais seguro para a introdução do despotismo do que este entusiasmo e que, dentre os homens que derrubaram as liberdades das repúblicas, a maior parte começou sua carreira bajulando o povo; começaram demagogos e acabaram tiranos. No decorrer das observações precedentes, tive em vista, meus caros concidadãos, colocar-vos em guarda contra todas as tentativas, de onde quer que venham, no sentido de influenciar vossa decisão em um assunto de extrema importância para o vosso bem-estar, através de quaisquer impressões que não

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sejam aquelas resultantes da evidência da verdade. Sem dúvida, tereis ao mesmo tempo concluído, a partir do escopo geral de tais observações, que elas procedem de uma fonte não inamistosa à nova Constituição. Sim, meus compatriotas, confesso que, depois de atenta consideração, estou plenamente convencido de que é de vosso interesse adotá-la e que este é o caminho mais seguro para vossa liberdade, dignidade e felicidade. Não simulo reservas que não sinto. Não vos distrairei aparentando deliberar quando na verdade já decidi. Transmito-vos com franqueza minhas convicções e vos apresento abertamente as razões sobre as quais estão fundadas. A consciência de boas intenções desdenha a ambigüidade. Contudo, não multiplicarei declarações a esse respeito. Meus motivos devem permanecer depositados em meu próprio coração. Meus argumentos serão franqueados a todos e por todos poderão ser julgados. Pelo menos serão expostos num espírito que não prejudique a causa da verdade. Proponho-me a discutir, numa série de artigos, os seguintes temas de grande interesse: A utilidade da União para a vossa prosperidade política – A insuficiência da atual Confederação para preservar esta União – A necessidade de um governo pelo menos com vigor similar ao do proposto para atingir tal objetivo – A conformidade da Constituição proposta com os verdadeiros princípios do governo republicano – Sua analogia com a Constituição de vosso próprio Estado – e finalmente – A segurança adicional que sua adoção propiciará à preservação desta forma de governo, à liberdade e à propriedade. No decorrer desta discussão, esforçar-me-ei em dar uma resposta satisfatória a todas as objeções que possam surgir e que pareçam ter despertado vossa atenção [...] (p. 33-36).

2. Jay

AO POVO DO ESTADO DE NOVA IORQUE

Quando o povo da América refletir que foi agora chamado a decidir sobre uma questão que, por suas conseqüências, deverá se mostrar como uma das mais importantes que já exigiram sua atenção, ficará evidente o quanto é indispensável que ele a encare com muita atenção e seriedade. Nada é mais certo do que a indispensável necessidade de um governo e é igualmente inegável que, quando e como quer que ele seja instituído, o povo deve ceder-lhe alguns de seus direitos naturais, a fim de investi-lo dos necessários poderes. Consequentemente, é também justo considerar se ele contribui mais para o se do povo da América ao integrar, para todos os propósitos gerais, uma nação sob um governo federal ou ao dividi-la em confederações separadas e conferir a cada uma a mesma espécie de poderes que é aconselhável atribuir a um governo nacional. Até recentemente, tem sido uma opinião aceita e não contrariada que a prosperidade do povo da América depende de ele continuar firmemente unido, e os desejos, preces e esforços de nossos melhores e mais prudentes cidadãos têm sido constantemente orientados nesse sentido. Todavia, surgem agora políticos que insistem em que esta opinião é errônea e que, ao invés de buscar a segurança e a felicidade da união, devemos procurá-la numa divisão dos Estados em distintas confederações ou soberanias. Por mais extraordinária que esta nova doutrina possa parecer, ela tem contudo seus adeptos e algumas personalidades, que a princípio a ela se opunham, agora estão entre eles. Quaisquer que sejam os argumentos

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ou motivos que tenham forjado esta mudança nos sentimentos e declarações desses cavalheiros, certamente não seria prudente para o povo em geral adotar essas novas doutrinas políticas sem estar plenamente convencido de que estão fundadas na verdade e em sadia orientação. [...] Este país e este povo parecem ter sido feitos um para o outro e se afigura como um desígnio da Providência que uma herança tão peculiar e adequada a um grupo de confrades, unidos pelos mais sólidos laços, jamais se repartisse entre numerosas soberanias insociais, invejosas e hostis. [...] Um forte sentido do valor e dos benefícios da União induziu o povo a desde logo instituir um governo federal para preservá-la e perpetuá-la. Este povo o constitui quase simultaneamente à aquisição de sua existência política; não ao tempo em que suas habitações estavam em chamas, quando muitos de seus cidadãos sangravam ou quando o incremento da hostilidade e da desolação deixava pouco espaço para aquelas indagações e reflexões calmas e amadurecidas que devem sempre preceder a formação de um governo judicioso e bem equilibrado para um povo livre. Não é de se admirar que um governo instituído em tempos tão desfavoráveis, ao ser posto à prova, se revele por demais deficiente e inadequado aos fins a que se propunha alcançar. Este povo inteligente percebeu e lamentou tais falhas. Continuando ainda não menos ligado à união do que enamorado da liberdade, ele se deu conta do perigo que ameaçava imediatamente a primeira e mais remotamente a segunda; e, estando persuadido de que uma completa segurança para ambas somente poderia ser obtida através de um governo nacional mais judiciosamente concebido, convocou, como uma voz geral, a última Convenção de Filadélfia para deliberar sobre este importante assunto. Esta convenção – integrada por homens que gozavam da confiança do povo, e muitos dos quais se distinguiram sobremaneira por seu patriotismo, probidade e sabedoria – empreendeu a difícil tarefa. Em tranqüilo ambiente de paz, sem quaisquer outras preocupações, passaram muitos meses em consultas diárias, calmas e ininterruptas e, sem terem sido atemorizados pelo poder nem influenciados por qualquer paixão, exceto o amor ao seu país, apresentaram e sugeriram ao povo o projeto que seus conselhos conjuntos elaboraram por unanimidade. [...] (p. 37-39)

9. Hamilton

AO POVO DO ESTADO DE NOVA IORQUE

Uma União sólida será da máxima importância à paz e à liberdade dos Estados, como uma barreira contra facções e insurreições internas. É impossível ler a história das pequenas repúblicas da Grécia e da Itália sem sentir horror ou aversão diante das confusões que continuamente as agitavam e da rápida sucessão de revoluções através das quais se mantinham num estado de constante oscilação entre os extremos da tirania e da anarquia. Quando ocorriam períodos ocasionais de tranqüilidade, apenas serviam como contrastes de curta duração das violentas tempestades que se sucediam. Ao vermos esses breves intervalos de paz, sentimos uma espécie de pesar derivado da reflexão de que o agradável panorama diante de nossos olhos será em breve engolfado pelas ondas tempestuosas da sedição e do ódio partidário. Se, dentre o nevoeiro, despontam momentâneos raios de esplendor, embora nos deslumbrem com um brilho transitório e fugidio, ao mesmo

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tempo nos advertem a lamentar que os vícios do governo tenham manchado sua atuação e deslustrado aqueles talentos evidentes e aqueles dons sublimes pelos quais têm sido tão justamente celebrados os solos férteis que os produziram. Das desordens que desfiguram os anais daquelas repúblicas, os adeptos do despotismo retiraram argumentos não somente contra as formas de governo republicano, mas contra os próprios princípios de liberdade civil. Acusaram todo governo livre como incompatível com a ordem da sociedade e entregaram-se a um júbilo malicioso diante de seus amigos e partidários. Felizmente, para a humanidade, as sólidas estruturas erguidas sobre a base da liberdade, e que têm florescido por tanto tempo, refutaram, com alguns brilhantes argumentos, seus nebulosos sofismas. E acredito que a América constituirá a grande e firme base para outros edifícios não menos magnificentes e que igualmente ficarão como mausoléus permanentes dos erros de seus detratores. Todavia, é inegável que os retratos que eles delinearam do governo republicano foram cópias precisas dos originais de que partiram. Se fosse considerado impraticável conceber modelos de uma estrutura mais perfeita, os esclarecidos amigos da liberdade teriam sido obrigados a abandonar a causa daquela espécie de governo como indefensável. A ciência da política, entretanto – como a maioria das demais ciências –, conheceu um grande progresso. A eficácia de vários princípios é agora bem compreendida, ao passo que era ou totalmente desconhecida ou imperfeitamente conhecida pelos antigos. A distribuição equilibrada dos poderes entre os diferentes departamentos, a adoção do sistema de controle legislativo, a instituição de tribunais integrados por juízes não sujeitos a demissões sem justa causa, a representação do povo no legislativo por deputados eleitos diretamente – tudo isso são invenções totalmente novas ou tiveram acentuado progresso rumo à perfeição nos tempos modernos. Constituem meios – e meios poderosos – pelos quais os méritos do governo republicano podem ser assegurados e as suas imperfeições reduzidas ou evitadas. A este elenco de particularidades que tendem à melhoria dos sistemas populares de governo civil, aventuro-me – ainda que possa parecer prematuro a alguns – a acrescentar mais uma, em relação a um princípio que se tornou o fundamento de uma objeção à nova Constituição; refiro-me à ampliação da órbita na qual tais sistemas devem girar, seja em atenção às dimensões de determinado Estado ou à consolidação de vários Estados pequenos em uma grande Confederação. E este último caso que diz respeito imediato ao assunto ora tratado. Entretanto, será útil examinar o princípio em sua aplicação a um único Estado, o que será feito posteriormente. [...] (p. 71-73)

FONTE: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4097578/mod_resource/content/1/Os%20Classicos%20da%20Politica%20-%20Cole%20-%20Francisco%20C.%20Weffort-195-216.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2019.

FONTE: HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John, 1788. O federalista. In: Weffort, Francisco. Clássicos da política, vol. 1. São Paulo: Ática, 2008.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• O federalista, de Alexander Hamilton, John Jay e James Madison é um compêndio de 85 ensaios jornalísticos escritos e publicados pelos autores em jornais de New York, posteriormente replicados a jornais de outros estados.

• O objetivo principal era tornar públicas algumas importantes sugestões sobre o uso que deveria tomar a revisão constitucional dos Estados Unidos.

• O livro tornou-se um clássico devido à clareza e pertinência das ideias, compondo o mosaico do pensamento político moderno.

• Uma das características dos artigos foi orientar a revisão constitucional de modo a encontrar o equilíbrio entre as liberdades individuais e coletivas.

• Outra importante orientação à revisão constitucional está na preservação das autonomias políticas e econômicas das unidades federativas.

• Conquanto a autonomia federativa tenha sido preservada, a revisão constitucional garantiu a unidade nacional.

RESUMO DO TÓPICO 3

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AUTOATIVIDADE

1 Os autores federalistas tinham uma crítica geral à Constituição americana de 1776. Segundo eles, havia uma fragilidade principal, que requeria correções, a fim de garantir a unidade nacional, com implicações econômicas que favoreceriam a consolidação da grande nação em curso. Escreva sobre o fato apresentado demonstrando seu entendimento.

2 Do ponto de vista do sistema de governo, os federalistas propunham uma mudança de um sistema para outro. Qual era essa mudança, qual a definição de cada um desses sistemas e qual a justificativa geral para tal mudança?

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