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PONTA GROSSA - PARANÁ 2009 LICENCIATURA EM MARCO AURÉLIO MONTEIRO PEREIRA JANAÍNA DE PAULA DO ESPÍRITO SANTO RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOS EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA História História TEORIA DA HISTÓRIA 1

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TEORIA DA HISTORIAI

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  • pONTA gROSSA - pARAN2009

    LiceNciATuRA em

    MARCO AURLIO MONTEIRO PEREIRAJANANA DE PAULA DO ESPRITO SANTO

    RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOS

    eDucAO A DiSTNciA

    HistriaHistriaTEORIA DA HISTRIA 1

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSANcleo de Tecnologia e Educao Aberta e a Distncia - NUTEAD

    Av. Gal. Carlos Cavalcanti, 4748 - CEP 84030-900 - Ponta Grossa - PRTel.: (42) 3220 3163www.nutead.uepg.br

    2009

    Todos os direitos reservados ao NUTEAD - Ncleo de Tecnologia e Educao Aberta e a Distncia - Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, Paran, Brasil.

    Pr-Reitoria de Assuntos AdministrativosAriangelo Hauer Dias Pr-Reitor

    Pr-Reitoria de GraduaoGraciete Tozetto Ges Pr-Reitor

    Diviso de Programas EspeciaisMaria Etelvina Madalozzo Ramos Chefe

    Ncleo de Tecnologia e Educao Aberta e a DistnciaLeide Mara Schmidt Coordenadora Geral

    Cleide Aparecida Faria Rodrigues Coordenadora Pedaggica

    Sistema Universidade Aberta do BrasilHermnia Regina Bugeste Marinho Coordenadora Geral

    Cleide Aparecida Faria Rodrigues Coordenadora Adjunta

    Curso de Histria Modalidade a DistnciaMyriam Janet Sacchelli Coordenador

    Colaborador FinanceiroLuiz Antonio Martins Wosiak

    Colaborador de PlanejamentoSilviane Buss Tupich

    Colaboradores em InformticaCarlos Alberto VolpiCarmen Silvia Simo CarneiroAdilson de Oliveira Pimenta JniorJuscelino Izidoro de Oliveira JniorOsvaldo Reis JniorKin Henrique KurekThiago Luiz DimbarreThiago Nobuaki Sugahara

    Colaboradores em EADDnia Falco de BittencourtJucimara Roesler

    Colaboradores de PublicaoAnselmo Rodrigues de Andrade Jnior DiagramaoDenise Galdino de Oliveira RevisoJanete Aparecida Luft Reviso

    Colaboradores OperacionaisEdson Luis MarchinskiJoanice de Jesus Kster de AzevedoJoo Mrcio Duran InglzMaria Clareth SiqueiraMarin Holzmann Ribas

    cRDiTOSUniversidade Estadual de Ponta Grossa

    Joo Carlos GomesReitor

    Carlos Luciano Santana VargasVice-Reitor

    Ficha catalogrfica elaborada pelo Setor de Processos Tcnicos BICEN/UEPG.

  • ApReSeNTAO iNSTiTuciONAL

    Prezado estudante

    Inicialmente queremos dar-lhe as boas-vindas nossa instituio e ao curso que escolheu.

    Agora, voc um acadmico da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), uma renomada instituio de ensino superior que tem mais de cinqenta anos de histria no Estado do Paran, e participa de um amplo sistema de formao superior criado pelo Ministrio da Educao (MEC) em 2005, denominado Universidade Aberta do Brasil (UAB).

    O Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB) no prope a criao de uma nova instituio de ensino superior, mas sim, a articulao das instituies pblicas j existentes, possibilitando levar ensino superior pblico de qualidade aos municpios brasileiros que no possuem cursos de formao superior ou cujos cursos ofertados no so suficientes para atender a todos os cidados.

    Sensvel necessidade de democratizar, com qualidade, os cursos superiores em nosso pas, a Universidade Estadual de Ponta Grossa participou do Edital de Seleo UAB n 01/2006-SEED/MEC/2006/2007 e foi contempladas para desenvolver seis cursos de graduao e quatro cursos de ps-graduao na modalidade a distncia.

    Isso se tornou possvel graas parceria estabelecida entre o MEC, a CAPES e as universidades brasileiras, bem como porque a UEPG, ao longo de sua trajetria, vem acumulando uma rica tradio de ensino, pesquisa e extenso e se destacando tambm na educao a distncia,

    A UEPG credenciada pelo MEC, conforme Portaria n 652, de 16 de maro de 2004, para ministrar cursos superiores (de graduao, seqenciais, extenso e ps-graduao lato sensu) na modalidade a distncia.

    Os nossos programas e cursos de EaD, apresentam elevado padro de qualidade e tm contribudo, efetivamente, para a democratizao do saber universitrio, destacando-se o trabalho que desenvolvemos na formao inicial e continuada de professores. Este curso no ser diferente dos demais, pois a qualidade um compromisso da Instituio em todas as suas iniciativas.

    Os cursos que ofertamos, no Sistema UAB, utilizam metodologias, materiais e mdias prprios da educao a distncia que, alm de facilitarem o aprendizado, permitiro constante interao entre alunos, tutores, professores e coordenao.

    Este curso foi elaborado pensando na formao de um professor competente, no seu saber, no seu saber fazer e no seu fazer saber. Tambm foram contemplados aspectos ticos e polticos essenciais formao dos profissionais da educao.

    Esperamos que voc aproveite todos os recursos que oferecemos para facilitar o seu processo de aprendizagem e que tenha muito sucesso na trajetria que ora inicia.

    Mas, lembre-se: voc no est sozinho nessa jornada, pois far parte de uma ampla rede colaborativa e poder interagir conosco sempre que desejar, acessando nossa Plataforma Virtual de Aprendizagem (MOODLE) ou utilizando as demais mdias disponveis para nossos alunos e professores.

    Nossa equipe ter o maior prazer em atend-lo, pois a sua aprendizagem o nosso principal objetivo.

    EQUIPE DA UAB/ UEPG

  • SumRiOPALAVRAS DO PROFESSO R 9

    OBJETIVOS & EMENTA 9

    O cONceiTO De HiSTRiA 11SEO 1- HISTRIA 12SEO 2 - HISTORICIDADE 14SEO 3 - HISTORIOGRAfIA 17

    A HiSTORiOgRAfiA NOS pRimRDiOS e NA ANTiguiDADe ORieNTAL 21

    SEO 1- AS SOCIEDADES SEM ESCRITA: UM DILOGO CRTICO 22SEO 2 - MITOS DE ORIGEM E CRNICAS REAIS 27SEO 3 - O ExTREMO ORIENTE: O CASO DA CHINA 30

    A HiSTORiOgRAfiA NA ANTiguiDADe cLSSicA 37SEO 1 - A HISTORIOGRAfIA NA GRCIA ANTIGA 39SEO 2 - A HISTORIOGRAfIA EM ROMA 47SEO 3 - A HISTORIOGRAfIA CRIST ANTIGA 52

    A HiSTORiOgRAfiA meDievAL e ReNASceNTiSTA 65SEO 1 - POSSIBILIDADE DE CONSCINCIA HISTRICA NA IDADE MDIA 66SEO 2 - A HISTORIOGRAfIA CRIST MEDIEVAL 68SEO 3 - A HISTORIOGRAfIA LAICA 72SEO 4 - A HISTORIOGRAfIA RENASCENTISTA 77

    A HiSTORiA eNTRe A fiLOSOfiA e A ciNciA 87SEO 1 - A CRISE DA HISTRIA NO SCULO xVII 88SEO 2 - HISTRIA E ERUDIO 91SEO 3 - HISTRIA E fILOSOfIA 95

    PALAVRAS FINAI S 101REFERNCIAS 103NOTAS SOBRE OS AUTORE S 105

  • pALAvRAS DO pROfeSSOR

    A disciplina que voc iniciar agora, Teoria da Histria I, faz parte dos componentes terico-historiogrficos do nosso curso de Licenciatura em Histria. Ela a primeira parte de um ncleo que formado pelas disciplinas de Teoria da Histria I, II, III, e IV, onde so tratados temas pertinentes s concepes histricas e escrita da Histria desde os primrdios at a contemporaneidade.

    Este conjunto de disciplinas se prope a um olhar sobre a histria da histria, ou, melhor dizendo a histria da produo histrica nas diversas culturas humanas, com nfase para as componentes da tradio judaico-crist ocidental.

    Nesta primeira disciplina, Teoria da Histria I, voc vai analisar um longo percurso das concepes histricas e da escrita da Histria. Esse percurso se inicia com apanhado semntico-conceitual dos termos histria, historicidade e historiografia.

    Em seguida, voc ver a anlise e a crtica das posturas tradicionais sobre as concepes histricas das sociedades sem escrita presentes na historiografia contempornea.

    A seguir, ir para as primeiras formas de concepo da escrita da histria nos povos antigos, com destaque para a primeira construo de identidade histrica, com o estudo de caso do antigo povo de Israel. Depois, ter uma breve passagem pela historiografia do Antigo Extremo Oriente, especificamente da China, para analisar os seus rudimentos.

    O percurso de anlise historiogrfica ir lev-lo, depois, para os fundamentos da historiografia ocidental, com a anlise das concepes historiogrficas na cultura grega, helenstica, beros das concepes histricas e historiogrficas do Ocidente.

    Partindo da Grcia e da expanso helenstica, voc passar a analisar a influncia helenstica sobre a historiografia da Roma Antiga e as caractersticas originais do pensamento historiogrfico romano.

    O advento do cristianismo, com sua origem nas matrizes judaica, helenstica e romana e sua concepo finalista de Histria, ser analisado a seguir, em sua constituio e formas de expresso historiogrfica na Antigidade Tardia. A consolidao da hegemonia e o incio da crise da historiografia crist na Idade Mdia e no Renascimento sero abordados na seqncia.

    O curso conclui-se com a anlise da crise da Histria no sculo xVII, com o advento do racionalismo cientificista cartesiano e o processo de redirecionamento da escrita da Histria para uma vertente filosfica e outra metdico-cientfica.

    A proposta de abordagem do contedo do curso no factualizante, mas centrada nas possibilidades de compreenso crtica das concepes histricas e da escrita da histria nas diferentes culturas e sociedades estudadas.

    um curso que se funda em concepes de histria e de historiografia centradas em sua dimenso cultural e social, expresso de projetos identitrios tanto externa quanto internamente a cada sociedade analisada.

  • OBJeTivOS & emeNTA

    A presente disciplina tem por objetivo construir o campo conceitual-se-

    mntico da histria para compreender suas formas de escrita e funcionalida-

    des sociais nas sociedades antigas, medieval, renascentista e moderna, como

    subsdio para a compreenso das diferentes dimenses do conhecimento his-

    trico na contemporaneidade.

    ObjetivOsConstruir, a partir da anlise dos termos histria, historicidade e historiografia,

    o campo conceitual da histria enquanto prtica social.

    Analisar as diferentes formas de expresso e de funo social da escrita da

    histria nas sociedades antigas, medieval, renascentista e moderna.

    Construir conceitualmente a concepo de histria como produto social, cultural

    e ideolgico, com formas e sentidos diversos nas diferentes sociedades, culturas

    e relaes de poder.

    Fornecer subsdios para a compreenso das formas de expresso e funes

    sociais da histria na contemporaneidade pela anlise das expresses da

    historiografia em outras sociedades, ao longo do tempo.

    ementaConceitos de histria, historiografia e historicidade. A historiografia nas

    sociedades sem escrita. Mitos de origem e crnicas reais. A historiografia grega

    antiga. A historiografia em Roma. A historiografia crist antiga. Historiografia

    medieval. Historiografia no Renascimento. A ruptura cartesiana e o nascimento

    da erudio.

  • O conceito de Histria

    ObjetivOs De aPRenDiZaGemCompreender o significado semntico e historiogrfico dos termos

    fundamentais para a Teoria da Histria: Histria, Historicidade e Historiografia.

    Entender e analisar a aplicao correta das diversas dimenses do termo

    Histria.

    Construir as dimenses distintas de emprego do termo Historicidade e sua

    aplicao na escrita da Histria.

    Compreender o conceito de Historiografia e dominar a distino entre esse

    conceito e os de Histria e Historicidade.

    Elaborar, a partir do estudo da Unidade, definies de Histria e da prtica

    da escrita da Histria.

    ROteiRO De estUDOsSEO 1 Histria

    SEO 2 Historicidade

    SEO 3 Historiografia

    UN

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    DE I

    MARCO AURLIO MONTEIRO PEREIRAJANANA DE PAULA DO ESPRITO SANTO

    RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOS

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    12UNIDADE 1

    pARA iNciO De cONveRSA

    Ol!!! Bem-vindo(a) ao curso de Teoria da Histria I. Aqui voc ter

    um apanhado conceitual e historiogrfico sobre a escrita da Histria ao

    longo de vrios sculos em diversas culturas e sociedades.

    Tratar as dimenses conceituais que dizem respeito histria

    sempre um desafio. Esse desafio respondido por mais de uma

    disciplina deste curso. Aqui, em Teoria da Histria I, ns vamos discutir as

    possibilidades de uma definio dos termos centrais do campo histrico a

    partir de uma anlise dos prprios termos.

    As palavras carregam significados, no apenas em relao quilo

    que designam, mas em si prprias. A tentativa de compreenso destes

    significados intrnsecos ajuda muito a compreender aquilo que as palavras

    pretendem significar.

    Compreender a formao etimolgica e semntica dos termos

    principais do campo do conhecimento histrico um timo ponto de

    partida para a anlise das formas de concepo e escrita da histria nas

    diversas culturas e sociedades humanas ao longo do tempo.

    Assim, vamos iniciar nossa jornada tentando construir propostas de definies,

    no para os campos, mas para as palavras que significam os principais campos do

    conhecimento histrico e que sintetizam as concepes e fazeres histricos: histria, historicidade e historiografia.

    SeO 1HiSTRiA

    Nesta seo, voc tomar contato com as diferentes significaes

    e acepes da palavra Histria, e tambm conhecer uma proposta de

    conceituao de Histria a partir de suas dimenses semnticas.O conceito

    de Histria uma coisa bastante complexa e difcil de ser trabalhada.

    Complexa porque o termo Histria polissmico, isto , tem mais que

    um significado. A palavra Histria tem, pelo menos, trs significados

    principais:

    Histria como o processo de vida dos homens em sociedade no

    tempo. o que poderamos chamar de Histria vivida.

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    13UNIDADE 1

    Histria como as representaes do processo de vida dos homens

    em sociedade no tempo. o que poderamos chamar de Histria

    representada. o campo da Histria como produto de uma elaborao

    cientfica.

    Histria como a designao de uma narrao ordenada qualquer.

    o espao, quer de uma narrao baseada na realidade histrica,

    quer dos contos de fadas, dos romances histricos. Seu carter

    essencialmente narrativo, e a questo da verdade acontecimental no se

    coloca a como fundamental.

    E para complicar um pouco mais a coisa, estes trs significados

    se misturam, se interpenetram numa relao de amlgama que torna

    bastante difcil sua separao em definies especficas e estanques.

    Alguns idiomas tentam escapar desta ambigidade. O ingls, com

    History e Story; o italiano, que usa a palavra storigrafia para designar

    a cincia histrica e sua produo; e o alemo, que designa a cincia

    histrica como Geschichtwissenschaft e a atividade cientfica em geral

    como Geschichtschreibung.

    Mas, de toda forma, sempre h uma zona de sombra, um espao

    ambguo e indefinvel que constitui a prpria essncia da histria. Como

    diz Jacques Le Goff: falar de Histria no fcil, mas estas dificuldades

    de linguagem introduzem-nos no prprio mago das ambigidades da

    histria (LE GOff, 1985, p. 158).

    Mas, enfim, o que significa a palavra Histria?Uma das sadas possveis para uma proposta de conceituao,

    mesmo que aproximada, um panorama etimolgico e semntico da

    palavra Histria.

    A palavra histria vem do grego jnico historie. Esta forma, por sua

    vez, se origina da raiz indo-europia wid - weid, que se refere a ver.

    Desta raiz se originam o snscrito vettas testemunha e o grego histor,

    tambm significando testemunha, no sentido de aquele que v. Esta

    concepo da viso como fonte essencial do conhecimento leva-nos

    idia que histor aquele que v tambm aquele que sabe; historien

    em grego antigo procurar saber, informar-se. Historie significa pois

    procurar. E este o sentido da palavra histria em suas origens na

    tradio ocidental. Para Herdoto, suas Histrias so investigaes,

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    procuras (LE GOff, 1985, p.158).

    Histria pode se definir, assim, como o espao do conhecimento

    no apenas visto e elaborado, mas tambm transmitido, testemunhado. O

    testemunho um ato de f, uma ao social. Ver, saber e testemunhar se

    configuram, assim, na essncia conceitual da palavra Histria.

    Isto nos coloca diante da segunda assertiva do incio do texto. Por

    ser ambgua, a conceituao de Histria difcil. E fica ainda mais difcil

    porque a ambigidade do termo no apenas semntica, tambm

    de carter epistemolgico. Como viso, testemunho e conhecimento, a

    Histria assume formas diferentes em sociedades diversas e mesmo em

    espaos sociais distintos numa mesma sociedade.

    Estas formas respondem a uma questo fundamental comum a todas

    as expresses do campo: como definir o que e o que no histrico? A

    resposta para isto est no conceito de historicidade, que voc ir estudar

    a seguir.

    SeO 2HiSTORiciDADe

    O fato de a palavra Histria ser polissmica deve lev-lo a refletir

    sobre o que histrico e o que no . Esta reflexo ser auxiliada pelo

    estudo de um segundo termo fundamental para o seu estudo, o conceito

    de historicidade. Grosso modo, pode-se dizer que historicidade o atributo

    daquilo que histrico. Porm esta definio simples no satisfaz, pois

    no especifica os parmetros de definio daquilo que histrico e

    aquilo que no .Le Goff, ao discutir a questo em seu artigo Histria na

    Enciclopdia Einaudi, coloca dois momentos de constituio do conceito

    de historicidade.

    O termo historicidade surge no francs em 1872 (LE GOff, 1985, p.

    159). Num primeiro momento, durante o sculo xIx, historicidade vista

    como uma funo, ou melhor, uma categoria do real. Na definio de

    Charles Moraz:Devemos procurar para alm da geopoltica, do comrcio, das artes e da prpria cincia, aquilo que justifica a atitude de obscura certeza dos homens que se unem, arrastados pelo enorme fluxo do progresso que os especifica, opondo-os. Sente-se que esta solidariedade est ligada

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    existncia implcita que cada um experimenta em si, duma certa funo comum a todos. Chamamos a esta funo historicidade (MORAZ, 1967, p. 59, apud LE GOff, 1985, p. 159).

    O segundo momento ocorre mais tarde, contemporaneamente, na

    segunda metade do sculo xx, onde o conceito de historicidade desliga-

    se de suas origens do sculo xIx e passa a assumir um papel de ponta

    na escrita da histria como produo cultural e social intrinsecamente

    ligada prtica do historiador.

    Ela obriga a inserir a prpria histria numa perspectiva histrica: H uma historicidade da histria que implica o movimento que liga uma prtica interpretativa a uma prxis social [CERTEAU 1970, p. 484].(...) Paul Veyne tira uma dupla lio do fundamento do conceito de historicidade. A historicidade permite a incluso no campo da cincia histrica de novos objetos da histria: o non-vnementiel; trata-se de acontecimentos ainda no reconhecidos como tais: histria rural, das mentalidades, da loucura ou da procura de segurana atravs das pocas. Chamaremos non-vnementiel historicidade de que no temos conscincia enquanto tal. Por outro lado, a historicidade exclui a idealizao da histria, a existncia da Histria com H maisculo: Tudo histrico, logo a histria no existe (LE GOFF, 1985, p. 159).

    - Mas como a historicidade define limites para o trabalho do historiador?

    A partir do conceito de historicidade como definidor de limites para a

    prtica do historiador, as ambigidades da histria encontram um espao

    onde se constituem num discurso coerente e rigoroso, embora centrado

    na narrativa e que contm uma carga indissocivel de componentes

    scioculturais e ideolgicos.

    Para Paul Veyne, a histria um conhecimento mutilado,

    imperfeito: A histria no comporta o limite de conhecimento nem

    o mnimo de inteligibilidade e nada do que foi, desde que o foi,

    inadmissvel. A histria no , portanto, uma cincia; ela no tem por isso

    menos rigor, mas esse rigor coloca-se ao nvel da crtica. (VEYNE, 1983,

    p. 25)

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    16UNIDADE 1

    Le Goff, neste contexto, aborda a histria a partir de uma definio

    dura e pessimista de Paul Ricoeur:

    A histria s histria na medida em que no consente nem no discurso absoluto, nem na singularidade absoluta, na medida em que o seu sentido se mantm confuso, misturado (...) A histria essencialmente equvoca, no sentido que virtualmente vnementielle e virtualmente estrutural. A histria na verdade o reino do inexacto. Esta descoberta no intil; justifica o historiador. Justifica todas suas incertezas. O mtodo histrico s pode ser um mtodo inexacto... A histria quer ser objectiva e no pode s-lo. Quer fazer reviver e s pode reconstruir. Ela quer tornar as coisas contemporneas, mas ao mesmo tempo tem de reconstituir a distncia e a profundidade da lonjura histrica. finalmente, esta reflexo procura justificar todas as aporias do ofcio de historiador, as que Marc Bloch tinha assinalado na sua apologia da histria e do ofcio de historiador. Estas dificuldades no so vcios do mtodo, so equvocos bem fundamentados. (RICOEUR 1961, p.226, apud LE GOff, 1985, p. 161)

    Assim, a atribuio de historicidade possui, inicialmente, uma

    dimenso ideolgica nacionalista que se ressignifica, at pelo prprio

    triunfo do Estado Nacional no Ocidente, em uma dimenso de delimitao

    de objetos de estudo e,em ltima anlise, de campo de conhecimento.

    Porm, fica claro, a partir da anlise dos termos histria e

    historicidade, o carter definidor da prtica concreta do historiador,

    daquele que escreve a histria, para o campo do conhecimento histrico.

    No entanto, esta prtica de escrita da histria no nem individual nem

    difusa. construda cultural e socialmente e tem objetivos, propsitos de

    diversos matizes (polticos, ideolgicos, religiosos, econmicos, etc.), que

    no so excludentes, mas se articulam no fazer a si mesmas das culturas

    e sociedades.

    este conjunto de concepes e prticas que especificam as formas

    pelas quais as diferentes sociedades concebem e praticam a escrita da

    histria que voc ver a seguir na anlise do termo historiografia.

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    17UNIDADE 1

    SeO 3HiSTORiOgRAfiA

    Os conceitos de Histria e Historiografia que voc trabalhou at

    aqui devem, naturalmente, encaminh-lo para uma terceira dimenso

    conceitual no campo da Histria. o estudo do termo Historiografia, que

    voc ver a seguir.

    no espao do equvoco bem fundamentado posto anteriormente

    por Paul Veyne, que se desenrola a prtica do historiador, enquanto

    construtor e narrador de fatos, aes, pensamentos, conjunturas e

    estruturas dos homens no tempo e no seu tempo.

    nesse momento que deve ser considerado, ao lado dos termos

    Histria e Historicidade, o terceiro elemento da trade bsica do

    conhecimento histrico: o conceito de Historiografia.

    Pode-se conceituar historiografia utilizando a definio do Dicionrio

    Aurlio, onde historiografia o estudo histrico e crtico acerca da histria

    ou dos historiadores (fERREIRA, s/d, verbete Historiografia, p. 729).

    O conhecimento histrico se produz social e historicamente. Mas

    as sociedades possuem idias e concepes diversas sobre a natureza e

    a dimenso da produo desse conhecimento. A recuperao e a anlise

    das diferentes formas de concepo e escrita da histria, nas diferentes

    sociedades, definem o mbito da historiografia.

    Ela uma produo cultural, um processo social e ideolgico

    dotado de intencionalidades e objetivos explcitos e tambm implcitos

    em suas formulaes e prticas. Historiografia no conceito universal,

    nomottico, isto , que relativo a lei ou a legislao. E aqui diz

    respeito a um conhecimento que se formula explicitando leis de validade

    universal. , sim, um conjunto de concepes histricas e prticas de

    escrita da histria que atende s demandas de seu espao e tempo cultural

    e social.

    Ela , por definio, plural e multiforme, posto que fundamental

    para a construo de identidades sociais fundadas na especificao e

    diferenciao de uma cultura, sociedade, nao ou Estado dos demais.

    Assim, a partir da constatao dessa pluralidade caracterstica e

    intrnseca historiografia, que voc vai, ao longo de nosso curso, fazer

    um estudo crtico, percorrendo as matrizes relevantes para a compreenso

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    18UNIDADE 1

    de nossa contemporaneidade, dos processos de construo, representao

    e finalidades das concepes de histria e prticas de escrita da histria

    em seus diversos espaos, geogrficos e sociais, e tempos, cronolgicos e

    culturais, que especificam as diferentes culturas e sociedades.

    Neste estudo crtico vai ser adotada uma perspectiva histrica,

    na descrio das relaes que diversas culturas e sociedades mantiveram

    com seu passado e o lugar nelas ocupado pela histria. usada uma

    perspectiva cronolgica, evidentemente descartada a idia de progresso,

    e privilegiada, at por conta da bibliografia disponvel, a tradio

    ocidental.

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    19UNIDADE 1

    Construa trs narrativas curtas, cada uma delas a partir de uma das dimenses do termo 1. Histria.Quais so os limites dos objetos que podem ser tratados pela Histria? Construa sua reflexo a 2. partir da citao de Paul Veyne feita por Jacques Le Goff.Se 3. Historiografia , conforme voc j viu, o estudo histrico e crtico acerca da histria ou dos historiadores, com qual dimenso da palavra Histria ela se relaciona?O texto nos fala de um passado construdo culturalmente e de forma diversa pela Historiografia. 4. Reflita e construa um texto, com sua opinio sobre a questo da verdade na escrita da Histria.Elabore, a partir dos conceitos de 5. Histria, Historicidade e Historiografia, uma definio pessoal, sua, sobre o que aquilo que Marc Bloch chama de ofcio de Historiador.

    Um texto fundamental para a compreenso das nuances conceituais envolvidas no fazer histrico pode ser encontrado em:LE GOFF, Jacques. Histria. In. LE GOFF, Jacques (coord.).Memria-Histria. Enciclopdia Einaudi, vol.1. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. uma leitura imprescindvel para que voc domine de forma segura o campo conceitual da Histria.

    Nesta Unidade I: O Conceito de Histria, voc conheceu as definies dos trs termos fundamentais para o campo do conhecimento histrico e para a prtica do historiador.Na Seo 1 Histria, voc pde perceber que a conceituao do termo Histria complexa e difcil, pela polissemia da palavra histria e porque os seus trs significados principais so usados de forma livre. Aprendeu, tambm, a genealogia da palavra Histria, desde suas origens remotas no snscrito at sua concepo grega, que se traduzem na trade ver, saber, testemunhar.Na seo seguinte, que trata da historicidade, voc viu que a palavra diz respeito definio daquilo que histrico e aquilo que no . Viu tambm as complexidades e ambigidades presentes no fazer histrico.J a Seo 3 Historiografia, apresentou-lhe as possibilidades de vises diferenciadas na escrita da Histria, e anunciou o rumo de seu estudo daqui pra frente.Siga em frente, sempre pensando na Histria como o espao do passado vivido e construdo, presenciado e representado, mas, principalmente, vivo para voc e para aqueles que o cercam.Bom estudo!!!

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    21UNIDADE 2

    A Historiografia nos primrdios e na antiguidade oriental

    ObjetivOs De aPRenDiZaGemApreender as dimenses essenciais da historiografia dos povos sem

    escrita e as leituras etnocntricas de que so objeto pela historiografia

    europia tradicional.

    Conhecer as dimenses de uma incipiente historiografia postas nos

    mitos de origem e nas crnicas reais do Antigo Oriente Prximo.

    Tomar contato com as dimenses da histria na cultura chinesa

    antiga, com suas especificidades e idiossincrasias que a distinguem das

    concepes historiogrficas ocidentais.

    ROteiRO De estUDOsSEO 1 - As Sociedades sem Escrita: um Dilogo Crtico

    SEO 2 - Mitos de Origem e Crnicas Reais

    SEO 3 - O Extremo Oriente: o Caso da China

    UN

    IDA

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    MARCO AURLIO MONTEIRO PEREIRAJANANA DE PAULA DO ESPRITO SANTO

    RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOS

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    22UNIDADE 2

    pARA iNciO De cONveRSA

    Ol!!! Bem-vindo segunda unidade do curso de Teoria da Histria

    I. Nesta unidade, voc ir tratar das primeiras formas de expresso de

    concepes histricas e das origens remotas da historiografia. um

    percurso que o levar interpretao das concepes histricas dos povos

    sem escrita e sua possibilidade, num dilogo crtico com um dos maiores

    expoentes da anlise historiogrfica do sculo xx, Charles-Olivier

    Carbonell. Este dilogo se estabelece principalmente com as assertivas

    de Carbonell no seu livro Historiografia, no captulo I: Pr-Histria, a

    memria antes da escrita (CARBONELL, 1987, p. 9-13).

    Em seguida, voc analisar as primeiras manifestaes escritas

    de concepes e relatos histricos nos anais e crnicas reais do Antigo

    Oriente Prximo, com a anlise de um caso clssico de construo de

    identidade tnica, cultural e social fundada na histria: o Israel Antigo.

    Outro estudo de caso, at para a percepo da extrema variedade de

    concepes histricas e prticas historiogrficas vir do Antigo Extremo

    Oriente: a China, com suas dimenses ideolgicas, moralizantes e

    augurais da escrita da histria.

    SeO 1AS SOcieDADeS Sem eScRiTA: um DiLOgO cRTicO

    Nesta seo voc ir tomar contato com as formas de expresso

    histrica das sociedades sem escrita, a leitura de cunho etnocntrico que

    feita destas expresses por uma historiografia europia tradicional,

    alm da crtica a estas leituras.

    As primeiras manifestaes de algo similar a uma conscincia

    histrica e da elaborao de concepes e prticas de narrativa histrica

    esto nas genealogias preservadas pela tradio oral, recorrentes nas

    sociedades tribais africanas e da Oceania.

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    23UNIDADE 2

    Mas como isso representado na produo dos historiadores?

    So manifestaes sem a sofisticao metodolgica e conceitual das

    sociedades mais complexas, consideradas por expressivos contingentes

    dos historigrafos modernos como a pr-histria da historiografia,

    fundados numa concepo de historiografia definida pela presena da

    escrita.

    o caso de Charles-Olivier Carbonell, que define como pr-histria

    da historiografia as sociedades que fundam suas prticas historiogrficas

    na tradio oral. Apesar disso, o autor reconhece nessas sociedades a

    busca do conhecimento de seu passado, de sua memria coletiva.

    foram muito numerosas [...] as sociedades sem historiografia. Mas no se conhece nenhuma, por mais rude que sejam a sua linguagem, a sua organizao, as suas tcnicas e os seus modos de pensar, que no possua um conhecimento do seu passado. Nenhum grupo amnsico. Para qualquer grupo, recordar-se existir; perder a memria desaparecer. (CARBONELL, 1987, p. 9)

    Porm, esta preservao da memria coletiva no configura para

    Carbonell uma atitude historiogrfica concreta, por ser essa forma de

    preservao da memria pobre, confusa e frgil:

    - Pobre, porque depende unicamente das capacidades do crebro e, qual depsito sagrado, est confiada a um grupo restrito: quimbandas da frica ocidental, biru do Ruanda, har-po da Polinsia... Pobre, principalmente, porque h pouco a conservar nas sociedades cristalizadas, muitas vezes isoladas, em que as tcnicas estagnam e os gneros de vida se perpetuam. O tempo cclico do eterno retorno das estaes e o tempo imutvel de um mundo em equilbrio decretam o vazio da histria.[...]- Confusa porque a memria veicula o que est fora do tempo. Ela no diz a evoluo do grupo, mas as suas origens. No ensina o que foi vivido, mas a fbula; no revela uma direo , mas uma mensagem ontolgica: De onde vem o homem? O que morrer? Que laos se podem urdir com Deus? No essencial, a memria mobiliza-se para a transmisso impecvel dos mitos fundadores.

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    [...]- frgil a memria histrica, sem dvida ainda mais do que a mtica. As vicissitudes polticas comandam por vezes prudentes amnsias primeira forma do revisionismo histrico! ou acrobticas fuses de listas. A falha pode tambm ser involuntria. Tomam-se certamente precaues para preservar a pureza das tradies : as recitaes so pblicas e solenes, os depositrios podem formar uma espcie de colgio (quatro biru em Ruanda, o conjunto dos prncipes do reino dos Mossi, por exemplo). Apesar disso, o fio pode quebrar-se e a litania salmodiada interromper-se [...].(CARBONELL, 1987, p. 10-12)

    A esta tripla dimenso de pobreza, confuso e fragilidade, Carbonell

    acrescenta a ausncia de concepes temporais definidas e organizadas

    em padres contemporneos de linearidade e universalidade.

    A memria gasta-se. Por isso, quando se trata de acontecimentos humanos, a profundidade do olhar raramente atinge trs sculos. o caso das tradies merina escolhidas por volta de 1870 pelo P.e Callet. Mas quando Ibn Batuta, o viajante do Islo, visita em 1352 as grandes cidades do Mali, no consegue aprender l nada que seja anterior ao ano de 1150 de nossa era. Quanto aos fang do Gabo, se alguma de suas genealogias tm a riqueza de uma dezena de geraes, porque chegam at Deus! (CARBONELL, 1987, p. 12-13)

    Veja agora como essa questo pode ser vista com um olhar diferente.

    Essa demonstrao de Carbonell, da aparente fragilidade e

    inconsistncia das formas de preservao da memria coletiva e

    concepes temporais das sociedades fundadas na tradio oral, merece

    uma anlise mais detida, por representar o senso comum da viso, de

    cunho etnocntrico, europia em relao s formas de concepo de

    histria, memria e tempo das sociedades no inseridas na tradio

    ocidental.

    fica evidente a influncia de uma herana de mentalidade

    colonialista e etnocntrica na anlise do historiador francs, numa postura

    inspirada de forma clara pela historiografia metdica do sculo xIx na

    frana, onde o cientfico, e portanto verdadeiro, em Histria apenas o

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    25UNIDADE 2

    que provado documentalmente.

    O modelo da escola metdica reduz pobreza, confuso e fragilidade,

    isto , barbrie e selvageria, as concepes e fazeres histricos das

    sociedades no europias, notadamente as de cunho tribal.

    As objees de pobreza, confuso e fragilidade apenas se

    sustentam a partir de um enfoque definido pelas concepes europias

    de histria e historiografia como nomotticas e universalizantes.

    Considerar pobre uma tradio histrica oral, por ser a oralidade

    dependente das capacidades do crebro, denota no considerao pelas

    formas no escritas de construo da memria coletiva.

    O fato de sua difuso ser monopolizada por um grupo restrito

    de indivduos no grupo, mostra de forma clara a resistncia contra a

    incluso, por exemplo, dos acima citados biru de Ruanda na tradicional

    e acadmica tribo dos historiadores europeus, expresso cunhada por

    franois Simiand, colaborador da Rvue de Synthse no incio do sculo

    xx.

    A afirmao da imobilidade social nestas sociedades cristalizadas,

    como se isso fosse possvel, revela a no aceitao das dinmicas sociais

    diferentes da velocidade capitalista da sociedade europia.

    Enfim, a afirmao de que a adoo pelas sociedades menos

    complexas do tempo cclico da natureza gera um mundo em equilbrio

    e decreta o vazio da histria, reflete de forma atroz a dificuldade que

    possui uma moderna linhagem dos historiadores europeus de perceber

    dinmicas sociais diversas da velocidade factual poltica de suas anlises

    da histria e a conseqente condenao das sociedades regidas pela

    dinmica natural dos ciclos naturais ao vazio da histria.

    Em relao alegada confuso da tradio oral, Carbonell a acusa de

    ser causada por sua atemporalidade e sua nfase nas origens do grupo.

    Mas por que deveriam estes grupos, cuja identidade se constri

    pela certeza de uma mesma origem e no pela mudana das dinmicas

    polticas, agir de forma diferente?

    Por que deveria ser o mito de origem do outro desclassificado a

    fbula, enquanto que os anlogos da tradio europia so vistos como

    fruto da revelao divina?

    Por que a preocupao com a origem, o destino e as relaes do

    homem com Deus so confusas enquanto praticadas pelos har-po da

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    26UNIDADE 2

    Polinsia, mas se constituem na respeitadssima Escola Providencialista

    de historiografia europia quando elaboradas dentro da tradio crist

    dogmtica por Agostinho de Hipona?

    E o que faz a historiografia tradicional europia alm de constituir

    e transmitir mitos e mitologias polticas fundadoras das sociedades

    ocidentais modernas, tais como os de Nao, Estado, Bem Comum,

    Trabalho, Justia e outros?

    finalmente, no tocante alegada fragilidade da memria

    histrica, creio que nem necessrio discutir o fato de que a prtica de

    suprimir, selecionar, adicionar, criar ou fundir tradies em um relato

    politicamente conveniente no apangio das sociedades primevas, mas

    elemento constitutivo da prpria natureza do conhecimento histrico

    ocidental, desde a Doao de Constantino at a supresso da figura de

    Trotsky da iconografia da Revoluo Russa promovida por Stlin, ou da

    desqualificao dos indgenas como agentes histricos promovida pela

    quase totalidade da historiografia brasileira, principalmente nos livros

    didticos, bem exemplificados nas consideraes de Marc ferro em A

    manipulao da Histria no ensino e nos meios de comunicao (fERRO,

    1983)e em A Histria vigiada (fERRO, [s.d.]).

    A partir dessa viso, como possvel ver as formas de expresso

    histrica nos povos sem escrita?

    Uma abordagem temporalmente definida das manifestaes

    historiogrficas, mesmo que delimitada tradio ocidental na sua maior

    parte, deve considerar as manifestaes historiogrficas das diversas

    sociedades analisadas dentro de seu esprito, mais que pela sua forma.

    Desse modo, necessrio evitar o simplismo de atribuir a Herdoto

    a paternidade da Histria, hegemnica entre ns desde o sculo xIx. Da

    mesma forma, embora a Histria surja como gnero especfico de escrita

    entre os gregos, seu nascimento no deve ser considerado como sendo na

    Grcia Antiga.

    necessrio considerar o surgimento da historiografia nas primeiras

    manifestaes intencionais de preservao da identidade cultural das

    sociedades mais antigas, mesmo que estas manifestaes no sejam

    frutos da construo metdica e cientificista da escrita da Histria.

    Mas a complexizao das sociedades humanas levou gradativa

    complexizao da produo histrica, resultando numa historiografia que

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    27UNIDADE 2

    refletia as novas relaes sociais dos grupos sedentrios e j organizados

    em sociedades-estado de natureza centralizada e hierarquizada.

    Na prxima seo voc ir conhecer um caso tipo dessa historiografia

    de crnicas reais e mitos de origem muito importante para a tradio

    ocidental: o Antigo Israel.

    SeO 2miTOS De ORigem e cRNicAS ReAiS

    As consolidaes das tradies orais das sociedades primevas

    manifestam de forma clara a inteno de preservao de uma dada

    construo da memria coletiva que dota aquelas sociedades de uma

    identidade prpria e nica. Estas construes, na Antigidade, se

    efetivaram principalmente atravs das genealogias preservadas pela

    tradio oral, dos mitos de origem, e das crnicas e anais reais e

    dinsticos.

    Assim, para uma rpida abordagem dos mitos de origem e das

    crnicas e anais reais, exemplar ater-se a um dos mitos e tradies mais

    conhecidos da tradio ocidental: o mito de origem e as crnicas judaicas,

    integrantes fundamentais da tradio judaico-crist.

    Butterfield, citado em Le Goff, analisa o caso hebraico:

    Nenhuma nao nem mesmo a Inglaterra com a Magna Carta esteve alguma vez to obsecada (sic!) pela histria, e no estranho que os Antigos Judeus tenham revelado poderosos dotes narrativos e tenham sido os primeiros a produzir uma espcie de histria nacional, os primeiros a fazer um esboo da histria da humanidade desde a Criao. Atingiram uma grande qualidade na construo da pura narrativa, especialmente na de acontecimentos recentes, como no caso da morte de David e da sucesso ao seu trono. Depois do Exlio concentraram-se mais no Direito que na histria e voltaram a ateno para a especulao sobre o futuro, em especial sobre o fim da ordem terrestre. Em certo sentido, perderam contacto com a terra. (BUTTERfIELD, 1973, p. 466, apud LE GOff, 1985, p. 186)

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    28UNIDADE 2

    Essa obsesso dos antigos hebreus pela histria os torna ideais para

    a anlise dos mitos de origem e crnicas reais.

    Os hebreus fundam sua identidade social e cultural numa

    perspectiva introvertida, de legitimao do ordenamento teocrtico da

    sociedade por meio de um mito de origem centrado na revelao e na

    escolha do povo como eleito de Deus. (OBS: No se usam aqui os termos

    nao e nacional para a anlise dos tempos primitivos das sociedades

    antigas, para no provocar confuso entre as sociedades antigas e os

    modernos estados nacionais, que to pouco tm em comum.)

    Mas onde tudo isso est registrado?

    Este mito de origem se funda numa cosmogonia que identifica

    a criao do Universo como o primeiro passo no processo da eleio

    dos hebreus a povo escolhido de Deus. fruto de uma consolidao

    escrita posterior das tradies orais elosta e javista, alm das fontes

    deuteronmica e sacerdotal, mais recentes, a cosmogonia hebraica se

    encontra no Pentateuco, conjunto dos primeiros cinco livros da Bblia:

    Gnesis, xodo, Levtico, Nmeros e Deuteronmio.

    Nesse processo, cada um dos livros contm uma faceta especfica no

    processo de constituio da identidade hebraica. No Gnesis, se constri

    a criao do universo e do homem; a vida paradisaca dos primrdios e a

    posterior queda do gnero humano; a escolha por Deus do cl de Abrao

    para ser tronco e linhagem do povo eleito para religar os laos rompidos

    quando da queda do Paraso: os hebreus.

    No livro do xodo, se elabora a criao da identidade cultural deste

    povo eleito, quando das provaes no Egito e no xodo propriamente

    dito, perodo em que se d toda a ordenao social, moral e tica da

    sociedade hebraica em meio migrao pelo deserto do Sinai rumo

    Terra Prometida.

    O livro do Levtico estrutura a dimenso religiosa e teocrtica da

    sociedade hebraica, consagrando ao mesmo tempo a especificidade

    hebraica e as relaes de dominao teocrtica dentro da sociedade dos

    hebreus, com a hegemonia sacerdotal e poltica da tribo de Levi.

    O livro de Nmeros traz a explicitao demogrfica da eleio

    divina dos hebreus atravs da descrio de linhagens genealgicas

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    29UNIDADE 2

    remontando a Ado, primeiro homem e fundador do povo eleito e a fase

    final da jornada do povo pelo deserto at a chegada terra prometida na

    Palestina.

    No Deuteronmio, se faz a reelaborao consolidada do processo

    descrito nos quatro primeiros livros do Pentateuco, j sob o olhar da

    consolidao das hegemonias internas na sociedade hebraica posterior.

    Habilmente inserida numa dinmica historicamente definida, essa

    tradio, fundada numa mtica de criao e eleio, se prolonga com a

    ocupao da terra prometida, narrada nos livros de Josu, Juzes, Rute, I

    e II Samuel.

    Os livros de I e II Reis narram a consolidao da estrutura

    monrquica e a crise do modelo teocrtico em Israel. So livros que

    marcam a transio da tradio mtica cosmognica para a legitimao

    dessa tradio nas camadas superiores da sociedade judaica atravs da

    enumerao das linhagens monrquicas e crnicas reais, com um olhar

    claro do Reino de Israel.

    Os livros de I e II Crnicas, retomam a narrao de I e II Reis

    numa perspectiva de restaurao religiosa, mas sob o olhar do ncleo

    sacerdotal do Templo de Jerusalm, no Reino de Jud. Os livros de II Reis

    e II Crnicas terminam na mesma conjuntura: a deportao de Israel e

    Jud para a Babilnia.

    Os livros de Esdras e Neemias tratam do retorno da Babilnia e da

    restaurao do Templo. Os livros de I e II Macabeus, deuterocannicos,

    narram as lutas dos judeus contra os helenistas selucidas.

    nessa perspectiva histrica que se funda a identidade cultural

    hebraica e, mais tarde, a identidade poltica judaica, num processo de

    transio do tribal ao poltico exemplar da tradio da escrita da histria

    na Antigidade Oriental.

    Mas ser que foi s no Israel antigo que as coisas aconteciam assim?

    Outras sociedades podem ser vistas no Oriente a partir do IV milnio

    antes de Cristo, na mesma perspectiva. Le Goff enuncia que

    No Mdio Oriente, esta preocupao com acontecimentos datados parece sobretudo ligada s estruturas polticas: existncia dum estado e, mais especificamente, de um estado monrquico.

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    30UNIDADE 2

    Inscries que descrevem as campanhas militares e as vitrias dos soberanos, lista real sumria (cerca de 2000 a.C.), anais dos reis assrios, gestas dos reis do Iro antigo que se reencontram nas lendas reais da tradio medo-persa antiga, arquivos reais de Mari (sculo xIx a.C.), de Ugarit e de Rs Samra, de Hattusa a Bogarkzy (sculo xV a xIII a.C). (LE GOff, 1985, p. 185)

    Todas essas formas de escrita da histria no Antigo Oriente Prximo

    so voltadas para dentro da sociedade, introvertidas, com funo principal

    de legitimao interna do poder poltico ou teocrtico-poltico. uma

    forma de historiografia voltada para o interior da sociedade, constituinte

    de identidades sociais atravs dos mitos de origem e da insero das

    linhagens e/ou dinastias governantes como expresso da continuidade

    desses mitos.

    Porm, a diversidade de concepes histricas no Antigo Oriente

    Prximo vai muito alm da lgica da eleio presente no Antigo Israel e

    dos povos da Mesopotmia. No Extremo Oriente voc ver agora o caso

    da cultura chinesa clssica, onde a funo da escrita da histria era algo

    completamente distinto do que foi visto at aqui e tambm de praticamente

    tudo o que voc conhece como funo do conhecimento histrico.

    SeO 3O extremo Oriente: o caso da china

    No Antigo Extremo Oriente, a funo da escrita da Histria era

    radicalmente diferente daquelas existentes na tradio ocidental.

    Para exemplificar essa questo voc vai tomar contato agora com a as

    concepes de histria em uma das sociedades exemplares do Antigo

    Extremo Oriente: A China Clssica.

    Os primrdios da historiografia chinesa se prendem, como os demais

    incios historiogrficos, ao duplo de mitos de origem e anais e/ou crnicas

    reais. A tradio faz de Confcio o pai da histria da China, quando lhe

    atribui a autoria dos cinco Clssicos (Whu King), que so a base da cultura

    chinesa. Dentre estes, destacam-se o Livro dos Documentos (Chu King),

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    31UNIDADE 2

    que abarca os tempos primitivos e lendrios da China (2357 a 1122

    a.C., pela cronologia ocidental crist) e a Crnica das Primaveras e dos

    Outonos (Tchchuen Tsieu), que narra os fatos notveis do reino de Lu,

    ptria de Confcio, de 722 a 481 a.C. Embora a crtica moderna ponha

    em questo a autoria confuciana destas obras, elas so importantes como

    expresses das formas de escrita da histria na China arcaica.

    E como essa viso mtica e moralista se transforma?

    A partir do sculo VIII a.C., a historiografia chinesa abandona,

    paulatinamente, os mitos como relato dos nascimentos maravilhosos de

    soberanos imaginrios, exaltao da idade de ouro original, fbula das

    grandes invenes e canto das proezas sobre-humanas (CARBONELL,

    1987, p. 44). Ela se torna documental e rigorosamente analtica.

    O encargo da escrita da histria passa a ser atribudo aos ugures,

    homens encarregados de dizer o futuro, de o ordenar nos seus calendrios

    benficos, distinguindo-lhe os dias fastos dos nefastos. (CARBONELL,

    1987, p. 45). So eles que do China a sua primeira memria fiel,

    anotando os acontecimentos que testemunhavam e que serviam de

    matria-prima para a confeco de anais que continham trechos extrados

    das chancelarias reais e indicaes augurais. Desta forma, surgiram, do

    sculo V ao III a.C. os Anais do pas de Tsin, do pas de Wei e do pas de

    Lu (CARBONELL, 1987, p. 45).

    Com a unificao da China em 221 a.C. e a destruio da ordem

    feudal pelos imperadores Han, a histria muda de estatuto, sendo-lhe

    atribuda, na classificao bibliogrfica elaborada por Tcheng Mo no

    sculo III a.C., uma das quatro maiores categorias, junto com os clssicos,

    as obras literrias e os escritos filosficos.

    Neste processo, porm, consolida seu carter augural e burocrtico.

    Sob os Han,

    foi criado o cargo de arquivista da corte; seguiu-se o de historigrafo. No tardou a surgir um ofcio dos historigrafos e foram criadas comisses historiogrficas para compor biografias imperiais e histrias dinsticas. foi assim que os historiadores entraram na burocracia celeste. (CARBONELL, 1987, p. 46)

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    32UNIDADE 2

    Mas como que fica o historiador chins nesse perodo?

    A figura do historiador passa a ser a de um funcionrio do tempo,

    em todas as suas dimenses. Isto se exemplifica de forma clara na natureza

    da condio dos autores das primeiras Memrias histricas (Che-Ki) da

    China, Sseu-Ma Tna, que foi Grande Astrlogo da Corte, e seu filho

    Sseu-Ma Tsien, que depois de ser governador da Provncia de Se-Chuan,

    foi incumbido da reforma do calendrio chins.

    O historiador chins sob os Han era um funcionrio, um burocrata

    com funes definidas:

    Medidor da durao que percorre em todos os sentidos, pode, se o imperador o exige, ser ao mesmo tempo, ou consecutivamente, aquele que conhece a sucesso dos eventos passados (cronologista), aquele que consigna o presente (cronista), aquele que interroga o futuro (ugure, astrlogo). Aquele que o torna propcio (fazedor de calendrio) e, por via de conseqncia, aquele que auxilia na aco poltica (administrador, conselheiro). (CARBONELL, 1987, p. 46-47)

    Como conseqncia disso a histria escrita na China nesse

    perodo hbrida e enciclopdica. Nela se misturam histrias oficiais,

    anais, biografias imperiais, genealogias, tabelas cronolgicas, listas de

    dignitrios, notcias augurais, astronmicas e relativas ao calendrio e

    aos pressgios. Para Carbonell, como

    Cincia do tempo reencontrado e do tempo adivinhado, a histria mandarnica tambm cincia da administrao. As histrias oficiais enriquecem-se assim de outras monografias, consagradas s estradas, hidrografia, s insgnias e uniformes, justia, s leis, msica, aos ritos, etc. Semienciclopdia, semivade-mcum do letrado funcionrio, a obra histrica reflete, pela sua prpria diversidade, a extenso dos poderes duma burocracia que detm o monoplio do saber e cuja cultura, por mais aberta que fosse, nem por isso deixa de ser essencialmente passadista. (CARBONELL, 1987, p. 47)

    Essa concepo funcional e burocrtica da histria como instrumento

    de ao governamental coloca na compilao documental sua principal

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    ao metdica. Compilao seletiva e fragmentada, sem critrio ou

    indicao das fontes. A histria chinesa um mosaico de documentos.

    [...] S h histria, no sentido chins da palavra, daquilo que est escrito

    (GERNET, 1959, apud LE GOff, 1985, p. 187).

    E o que motiva a rigorosa compilao documental na China?

    Porm, esta funo de recolha documental no movida por rigor

    metdico, mas por uma concepo mgica, ritual e sagrada da abordagem

    do passado. Os documentos que consignam o passado so um meio de

    comunicao com as divindades.

    So anotados para que os deuses os observem e assim se tornem eficazes num eterno presente. O documento no feito para servir de prova, mas para ser um objeto mgico, um talism. No produzido para ser dedicado aos homens, mas aos deuses. A data tem apenas como finalidade indicar o carter fasto ou nefasto do tempo em que foi produzido o documento: No assinala um momento, mas um aspecto do tempo. Os anais no so documentos histricos mas escritos rituais que, ao contrrio de implicarem a noo de um devir humano, assinalam correspondncias vlidas para sempre [ibid.]. O Grande Escriba que as conserva no um arquivista, mas um padre do tempo simblico, que est tambm encarregado do calendrio. Na poca dos Han, o historiador da corte um mgico, um astrlogo, que estabelece com preciso o calendrio. (LE GOff, 1985, p. 187)

    O historiador e o cenrio social so ausentes da obra histrica

    mandarnica. O calendrio tem uma concepo diversa da continuidade

    linear ocidental. Os chineses

    Ignoraram a cronologia contnua em que, a partir duma data originria, se podem medir as duraes nos dois sentidos. Utilizaram uma cronologia compartimentada em pequenos receptculos cada vez menores: perodo dinstico, reinado, nien hao (quatro anos e meio), ano, estao, etc. Com efeito, os Chineses tiveram do tempo, como do espao, uma viso concreta e analtica, filha duma escrita rebelde abstrao. (CARBONELL, 1987, p.51)

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    Enfim, embora haja uma rica cultura histrica, pelos padres

    ocidentais a China mandarnica, civilizao da durao, da tradio, da

    memria , de todas as culturas que alastraram pelo mundo, uma das

    menos historiogrficas (CARBONELL, 1987, p.51).

    Sintetize a postura de Carbonell em relao possibilidade de existncia de uma dimenso 1. historiogrfica nas sociedades sem escrita.Posicione-se em relao possibilidade de existncia de dimenses histricas significativas no 2. pensamento dos povos sem escrita, justificando.Elabore um breve texto sobre os pressupostos da eleio divina na sociedade israelita antiga e 3. suas relaes com a histria.Quais eram as funes da histria no antigo Israel?4. Como voc v as similaridades e diferenas da escrita da histria na China Antiga e a historiografia 5. ocidental contempornea?

    Parabns!! Voc chegou ao final da Unidade II - A Historiografia nos Primrdios e na Antigidade Oriental. Aqui voc pde fazer um longo e extico passeio por concepes de Histria e prticas historiogrficas bastante distantes daquilo com o que voc habitualmente estudou em sala de aula no Ensino Bsico, no pde?Percorreu um caminho que foi desde as primeiras possibilidades de conscincia histrica, em povos tribais, sem o conhecimento de escrita. Viu tambm como essas possibilidades foram desqualificadas por setores da historiografia moderna como pobres, confusas e frgeis e as influncias etnocntricas dessa desqualificao.Foi, depois, para o antigo Israel, cujo povo fundou sua identidade social e cultural na eleio divina, manifesta na ao de Deus em sua histria e para quem a histria, por ser a histria da aliana com Deus, era fundamental e ocupava parte substancial de seus escritos sagrados.De Israel, seu caminho o levou China, onde a Histria, que comea moralizante com Confcio, passa a ser documental e augural, usada para prever o futuro, na China Mandarnica.Agora, na prxima unidade, voc vai dar um outro salto espacial e ir da China para a Grcia Antiga, bero da maneira ocidental de fazer Histria. Continue animado nesse percurso e com certeza voc o terminar com muito mais clareza sobre as suas prprias concepes de histria como ser humano do mundo contemporneo. Afinal, para que serve o passado, se no for para nos fazer compreender o presente?

    Bom estudo!!!

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    ObjetivOs De aPRenDiZaGem

    ROteiRO De estUDOsU

    NID

    AD

    E II

    I

    Conhecer a natureza da escrita da histria na Antiga Grcia.

    Ter contato com as formas de concepes e representaes da

    escrita da Histria na Roma Antiga.

    Estudar as dimenses especficas da Histria e da Historiografia no

    cristianismo antigo.

    SEO 1 - A Historiografia na Grcia Antiga

    SEO 2 - A Historiografia em Roma

    SEO 3 - A Historiografia Crist Antiga

    A Historiografia na antiguidade clssica

    MARCO AURLIO MONTEIRO PEREIRAJANANA DE PAULA DO ESPRITO SANTO

    RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOS

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    38UNIDADE 3

    pARA iNciO De cONveRSA

    Ol!!! Nesta unidade voc ir analisar o surgimento das primeiras

    matrizes fundantes da historiografia ocidental: a historiografia clssica

    grega, romana e crist antiga.

    Ver inicialmente, na Seo 1, a natureza da escrita da Histria na

    Grcia Antiga em sua dimenso antropocntrica e autoral e, a seguir,

    far um estudo das concepes de Histria em Herdoto e Tucdides,

    concluindo com uma apreciao da historiografia helenstica.

    Na Seo 2 voc estudar as dimenses pertinentes s concepes

    de Histria e formas de expresso da historiografia na cultura latina,

    da Roma Antiga. um caminho que iniciar com o estudo das origens

    da historiografia de Roma, com a fortssima influncia das concepes

    e formas de escrever Histria helensticas. Ver, a seguir, que Roma

    consolida uma nfase muito forte na Histria como gnero literrio, com

    todas as questes envolvidas nisso, como, por exemplo, a maior liberdade

    dos autores em relao exatido da narrativa. Voc conhecer, tambm,

    o contedo moralizante e retrico da historiografia romana, que lhe

    confere um carter menos descritivo e mais propositivo moralmente.

    Na Seo 3 - A Historiografia Crist Antiga, voc ir estudar as

    diferentes dimenses e vertentes motivadoras e as formas de expresso

    da historiografia crist da Antigidade, no perodo patrstico.

    Aqui, voc estudar as dimenses especficas da Histria como

    campo da revelao de Deus e espao constituinte da identidade crist.

    Conhecer as influncias judaicas presentes na concepo de Histria

    dos primeiros cristos e os fatores que os levam a priorizar a Histria

    como forma de expresso identitria.

    Adiante, voc estudar as necessidades que levaram os cristos a

    escrever Histria e conhecer os principais gneros, autores e obras da

    historiografia crist antiga.

    E, finalmente, conhecer o pensamento de Agostinho de Hipona,

    considerado o principal elaborador da historiografia crist. Ter contanto

    com sua obra, que articula Devoo, Teologia, filosofia e Histria num

    sistema de pensamento histrico totalizante, conhecido posteriormente

    como Escola Providencialista, e que influenciou, por mais de um milnio

    a produo histrica europia.

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    39UNIDADE 3

    SeO 1A HiSTORiOgRAfiA NA gRciA ANTigA

    A Grcia Antiga considerada pela maioria dos historigrafos como

    o bero da forma ocidental de fazer histria. A escrita da histria, para os

    gregos, est subordinada a duas motivaes principais:

    Uma, de ordem tnica, que consiste em distinguir os Gregos dos brbaros. concepo de histria est ligada a idia de civilizao. Herdoto considera os Lbios, os Egpcios e principalmente os Citas e os Persas. Lana sobre eles um olhar de etnlogo.[...]O outro estmulo a poltica ligada s estruturas sociais. finley nota que no h histria na Grcia antes do sculo V a.C. Nem anais comparveis aos reis da Assria, nem interesse por parte dos poetas e filsofos, nem arquivos. a poca dos mitos fora do tempo, transmitidos oralmente. No sculo V a memria nasce do interesse das famlias nobres (e reais), e de padres como os de Delfos, Eleusis ou Delos. (LE GOff, 1985, p. 188)

    Dessa forma a escrita da histria entre os gregos afirma,

    externamente, a supremacia da cultura e civilizao helnicas, ao mesmo

    tempo em que internamente possui uma funo de legitimar as classes

    dominantes poltica e religiosamente.

    H uma vertente que v o nascimento da histria em Atenas originado

    no meio rfico, como reao democrtica contra a velha dominao

    aristocrtica: A historiografia nasce no interior de uma seita religiosa,

    em Atenas, e no entre os livre pensadores da Jnia (MOMIGLIANO,

    1969, p. 63, apud LE GOff, 1985, p. 188).

    O orfismo tinha [...] exaltado, atravs da figura de filos, o ghnos por excelncia contrrio aos Alcmenidas: o ghnos donde nasceu Temstocles, o homem da armada ateniense. [...] A revoluo ateniense contra a parte conservadora da velha aristocracia terratenente, teve certamente origem, j em 630 a.C., nas novas exigncias do mundo comercial e martimo que dominava a cidade. [...] A profecia do passado era a principal arma

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    dessa poltica (MAZZARINO, 1966, p. 32-33, apud LE GOff, 1985, p. 188-189).

    Essa dimenso poltica da escrita da histria acaba sendo a

    determinante entre os gregos, visto que a oposio da civilizao grega

    aos brbaros uma forma de exaltao da polis. A esta exaltao da cidade

    se agrega a idia do progresso tcnico:

    O orfismo, que tinha dado o primeiro impulso ao pensamento histrico, tinha tambm descoberto a prpria idia do progresso tcnico, do modo que os Gregos a conceberam. Dos Anes do Ida, descobridores da metalurgia ou arte (tchne) de Efesto, tinha j falado a poesia pica de esprito mais ou menos rfico, (la foronide) (MAZZARINO, 1966, p. 32-33, apud LE GOff, 1985, p. 188-189).

    A histria como exaltao da cidade e da democracia de Atenas!

    O homem fez-se historiador porque se tornou cidado (CHTELET, in

    CARBONELL, 1987, p. 21).

    Para Le Goff, cidadania e historicidade esto indissociadas para os

    gregos:Por isso, quando desapareceu a idia de cidade, desapareceu a conscincia da historicidade. Os sofistas, mantendo a idia de progresso tcnico, rejeitam toda noo de progresso moral, reduzem o devir histrico violncia individual, desfazem-no numa coleco de anedotas escabrosas (LE GOff, 1985, p. 189).

    Para Carbonell, no entanto, no a dimenso poltica da historiografia

    a hegemnica entre os gregos, mas sim, a cultural. Em sua viso, a partir

    das figuras de Herdoto e Tucdides, a escrita da histria motivada

    pela conscincia mais geral de uma cultura helnica, essencialmente

    antropomrfica.Poderia sustentar-se, ao invs, que a curiosidade e a inteligncia retrospectiva de um e outro desabrocharam porque eles tinham ambos ultrapassado o particularismo da cidade, o egosmo do cidado, e que se sentiam membros duma comunidade sem corpo poltico, a Hlade, ameaada do exterior (Guerras Mdicas) e, depois, do interior (Guerra do Peloponeso) (CARBONELL, 1987, p. 22).

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    Mas qual era, para os gregos, o lugar da Histria?

    O lugar da histria era o espao cultural helnico. Espao dentro

    do qual se moviam e se balizavam identidades e concepes temporais e

    culturais sobre o outro, o no pertencente Hlade.

    O espao oferece as imagens de um tempo desigualmente

    desenrolado, por menor que seja a conscincia daquele que o percorre

    de ser o civilizado, transcrevendo em termos de antes e depois o que

    encarado respectivamente como inferior e superior (CARBONELL,

    1987, p. 22).

    A emergncia da histria posta por Carbonell como favorecida

    pela caracterstica antropomrfica da cultura grega:

    Coisa impossvel em outras civilizaes em que os deuses souberam guardar as suas distncias, construiu-se uma espcie de histria imprecisa, lanada como uma ponte entre o presente de homens e o passado dos deuses. Que o homem se torne a medida de todas as coisas, e as histrias converter-se-o em histria (CARBONELL, 1987, p. 22-23).

    Voc pde ver como a formao da historiografia grega foi finalista,

    visando preservar e afirmar a superioridade cultural dos gregos sobre

    as outras culturas com as quais mantinham contato. No perodo clssico

    da historiografia da Antiga Grcia, isso vai ficar cada vez mais evidente,

    como voc ir aferir no estudo que ser feito em seguida das concepes

    e da obra de Herdoto, considerado o pai da Histria.

    - E quando comea a historiografia clssica na Grcia Antiga?

    Ao contrrio das tradies mticas e dos anais e crnicas reais, a

    historiografia na Grcia obra de autores. Seu precursor, e definidor do

    gnero, Herdoto (485-425 a.C.), natural de Halicarnasso, cidade

    costeira da sia Menor, de populao grega e cria. Expulso de sua

    cidade natal por motivos polticos, Herdoto viaja pela Mesopotmia,

    Egito, Sria, Atenas e Delfos, instalando-se, finalmente, em Thourioi,

    colnia ateniense na Itlia do Sul.

    Sua principal obra, Histrias (HERDOTO, [s.d.]), composta

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    de nove livros, que podem ser divididos em dois grandes blocos: os

    quatro primeiros, que tratam dos Ldios, dos Persas, dos Babilnios, dos

    Massagetas, dos Egpcios, dos Citas e dos Lbios; e os cinco restantes,

    que tratam, dentre outros assuntos, das guerras dos Medos, indo desde

    a revolta da Jnia contra os Persas at o recuo dos persas para a sia e o

    processo de libertao das cidades gregas.

    Escritas para serem recitadas em lugares pblicos como forma de

    sustento do autor, as Histrias de Herdoto se constituem ainda com

    resqucios de uma formulao fundada na oralidade, e tm mais afinidades

    com a etnologia do que com a moderna concepo de histria.

    Seu mtodo hierarquizado:

    O percurso das Histrias baseia-se em quatro processos, na interseco dos quais se desenha a figura do narrador: ver e ouvir, dizer e escrever. Ver: trata-se da autpsia (ver com os seus prprios olhos) cuja superioridade sobre os outros processos de inqurito indiscutvel; na falta deste processo, temos ento o ouvir (akouein) e h vrios tipos de audio; dizer (lgein): o que eu, fulano ou cicrano (sic!), uns e outros viram ou ouviram; escrever (grphein) o que eu vi ou ouvi ou o que algum disse ter visto ou ouvido... A estes elementos fundamentais de uma retrica da persuaso, h que acrescentar muitos outros e, nomeadamente, a exigncia da agrimensura. Se rapsdia, Herdoto tambm agrimensor: rapsdia e agrimensor do oikoumen; dizer o espao, mas tambm medi-lo, fixar-lhe os limites e dizer que o estdio a medida comum a todo o espao; neste ponto se articulam sem dvida o saber e o poder do viajante (HARTOG f. Herdoto, in LE GOff, CHARTIER & REVEL, 1990, p. 251-252).

    O que os outros historiadores achavam de Herdoto?

    Herdoto considerado desde o romano Ccero como o Pai da

    Histria. A crtica a Herdoto, porm, anterior Roma Antiga. Tucdides

    o qualifica de contador de histrias (logogrphos). Alm dele, Herdoto

    criticado tambm por Aristteles e Plutarco, dentre outros, que nele

    vem, segundo as palavras de Aulo Glio, um homo fabulator. Esta

    figura de mentiroso persistiu para alm da Antigidade, at o sculo

    xVI (HARTOG, f. Herdoto, in LE GOff, CHARTIER & REVEL, 1990,

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    p. 250).

    Embora Herdoto fosse o inaugurador de um gnero muito

    prximo do que hoje se poderia chamar de histrico, sua narrativa

    ainda etnogrfica, descritiva e etnocntrica, sem rigor documental e

    impressionista.

    Essas limitaes seriam, em boa parte, sanadas na escrita histrica

    do outro grande expoente da historiografia grega clssica, Tucdides, que

    voc ir conhecer a seguir.

    Para Carbonell, com a Histria da Guerra do Peloponeso, de

    Tucdides (aprox. 460-395), nascem simultaneamente o mtodo e a

    inteligncia do historiador (CARBONELL, 1987, p. 17).

    Tucdides natural de Atenas, parente do tronco aristocrtico de

    Milcades. Viveu na poca de Pricles e era proprietrio de minas de ouro

    na Trcia. foi eleito estratego em 424 a.C. exercendo o comando na costa

    trcia. Sua derrota para os espartanos em Anfpolis causou seu exlio para

    a Trcia, de onde empreendeu uma srie de viagens.

    Tucdides est separado de Herdoto por pouco mais de uma gerao,

    mas rompe de forma enftica com os pressupostos de seu predecessor:

    Nunca retomou o conceito jnio de histori (pesquisa) e liquidou a maneira herodotiana de escrever a histria como coisa de loggrafos, de pessoas que transcrevem logoi (relatos) e que acreditam demonstrar seu saber pelo nmero de verses que conhecem do mesmo acontecimento. Mas, na realidade, o discurso deles, procurando agradar o auditrio, cedendo inelutavelmente ao prazer da orelha, fundamentalmente viciado: ele pertence a uma categoria que Tucdides denomina, pejorativamente, muthdes, algo que nem , francamente, muthos, como o fazem os poetas, nem, obviamente, outra coisa (HARTOG, f. Tucdides, in BOURGUIRE, 1993, p. 757).

    Para Tucdides, Herdoto estava muito perto de ser um mentiroso,

    um contador de histria no sentido fabular do termo.

    Tucdides v na histria um atributo especfico e inelutvel: a

    verdade.

    Para ele, a histria deve ser simplesmente verdadeira: ela a procura da verdade, a um tempo busca e investigao judiciria. Pela

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    primeira vez ela foi colocada como discurso da verdade, tendo como razo de ser a exigncia de dizer o verdadeiro dos rerum gestarum. Dos dois meios de conhecimento histrico, o olho (opsis) e a orelha (ako), s o primeiro pode levar (desde que dele se faa bom uso) a um conhecimento claro e distinto. Quanto orelha, nunca segura. Saber de modo histrico consiste em ver com clareza. Por conseguinte, s h histria cientfica do tempo atual: Tucdides ps-se ao trabalho ao mesmo tempo que a guerra comeava.Recusando os prazeres da orelha, a histria, que apenas quer ser til, se apresenta como uma aquisio para sempre. Porque a natureza humana sendo o que , tal relato verdico permitiria no predizer, mas sim ver claro quando, no futuro, se produzissem outras crises semelhantes (HARTOG, f. Tucdides, in BOURGUIRE, 1993, p. 757).

    Sua obra fundamental a Histria da Guerra do Peloponeso

    (TUCDIDES, [s.d.]). Comeada ao incio da guerra, a obra ficou

    inacabada, sendo interrompida em 411 a.C. Mais tarde, foi dividida em

    oito livros.Depois de ter esboado uma histria dos primeiros tempos da Grcia, exposto seu mtodo e indicado as origens da guerra, tem incio o relato propriamente dito, escondido pelos anos da guerra ao ritmo dos bons e maus tempos. O relato dos acontecimentos cortado por discursos (no verdadeiros, mas verossmeis): as relaes dos discursos entre si (principalmente no modo da antilogia) e sobretudo entre os discursos (logoi) e os acontecimentos (erga) constituem a prpria armao dessa obra difcil e composta com exatido (HARTOG, f. Tucdides, in BOURGUIRE, 1993, p. 757).

    Tucdides antecipa o modelo do historiador metdico do sculo xIx,

    um homem de cincia, da escola de Hipcrates. foi, grosso modo, esse

    Tucdides racionalista e positivista que conservamos na memria.

    E como fica a historiografia na cultura grega aps Herdoto e Tucdides?

    A racionalidade e objetividade de Tucdides se esvaem com a

    vulgarizao da cultura grega no perodo helenstico. A erudio e a

    base documental gradativamente so relegadas a um segundo plano

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    45UNIDADE 3

    e a historiografia passa a ser formada principalmente por recolhas e

    compilaes.

    Durante o perodo helenstico, pouca coisa restou da produo

    historiogrfica grega. A maior parte das obras se perdeu, o que permaneceu

    est disperso em citaes fragmentadas e compilaes posteriores. No

    sculo IV a.C., os principais historiadores foram meros copiadores dos

    estilos de Herdoto e Tucdides.

    o caso de xenofonte (aprox. 426-355) cujas Helnicas pretendem prosseguir a histria de Tucdides at 362; tambm o caso de Teopompo (aprox. 378-315), que, depois de ter condensado as Inquiries de Herdoto, comps, sob o mesmo ttulo de Helnicas, uma outra continuao da Guerra do Peloponeso.A aventura oriental continua a ser fonte de inspirao dos cronistas. xenofonte relata a Anbase dos Dez Mil (...). Calstenes (aprox. 370-327) acompanhou Alexandre nas suas campanhas e foi encarregado pelo conquistador macednio de escrever um relato da expedio, a que deu os ttulos de Helnica e Prsica (CARBONELL, 1987, p. 24).

    Alm destes relatos mais arcaicos, vrias obras histricas tentam

    recuperar o passado de diversas regies do vasto mundo helenizado:

    Primeiro em Atenas, onde, imitao de Helanikos, o primeiro dos atidgrafos, Kleidemos, Androtion e Phanademos escrevem cada um uma Atthis Histria da tica; em seguida na Siclia, onde Antoco de Siracusa, Philistros e Timeu se interessam pela histria da sua ilha ou pela Grande Grcia; nos reinos helensticos, por fim, onde, na articulao dos sculos IV e III, o caldeu Beroso compe em grego as suas Babyloniaca e um sacerdote de Helipolis, Manton, uma histria do Egito aquele Egito de que o primeiro rei macednio, Ptolomeu I, redigiu, coligindo suas memrias, uma Histria de Alexandre (CARBONELL, 1987, p. 24-25).

    Mas, efetivamente, quais so os fatores especficos da historiografia helenstica?So de trs ordens distintas os fatores que afastam a historiografia

    helenstica da viso metdica posta por Tucdides.

    O primeiro vis a influncia da retrica. A histria, principalmente

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    por influncia dos sofistas, tende a se confundir com a oratria.

    O segundo vis o da adaptao poltica da histria. Os

    atidgrafos fornecem, em provas contraditrias, os cls que se enfrentam

    na gora; xenofonte idealiza o jovem Ciro na sua Ciropdia; Teopompo

    exalta felipe em sua Histria Filpica; Calstenes canta o gnio de

    Alexandre... (CARBONELL, 1987, p. 25).

    O terceiro fator diz respeito transformao tica do discurso

    histrico. A histria torna-se uma coletnea de ditos morais e discursos

    exemplares proferidos por personagens ilustres, em lies de uma

    pequena tica cotidiana.

    A partir do sculo IV, a histria passa por um processo de

    transformao que, se por um lado regride em relao ao rigor crtico de

    Tucdides, por outro amplia seus horizontes e objetos. Isto pode ser visto

    nas obras de foro e Polbio.

    Discpulo de Iscrates, autor de uma compilao de factos maravilhosos, foro de Cime (363-300) daqueles historiadores para quem a preocupao do belo e do bem dito prevalece sobre a do verdadeiro e do bem compreendido. Todavia, a ele devemos a primeira histria universal trinta livros de Histrias que iam da conquista do Peloponeso pelos Drios at 340.Polbio (208?-122?) estuda a expanso romana de 221 a 146 num quadro alargado s dimenses mundiais da conquista. (...) A sua Histria a ltima obra da inteligncia historiogrfica grega e a primeira da historiografia romana que se compraz em narrar tanto as conquistas como as virtudes (CARBONELL, 1987, p. 26-27).

    A historiografia grega marca o incio da tradio ocidental de escrita

    da histria, quando fixa os

    Traos de uma historiografia clssica que vai permanecer, tomar a feio e o valor de modelo, com algumas fraquezas ou compromissos que as exigncias mais modernas tornaram sensveis:A insistncia e a amplificao retricas, acentuadas pelo gosto dos discursos fabricados e atribudos aos principais actores (onde podemos ver um processo, ingnuo, para analisar um carter, uma situao, uma deciso; ainda hoje existe este tipo de mtodo, menos abertamente artificial, mas de uma psicologia freqentemente to

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    47UNIDADE 3

    aproximativa;O pragmatismo, demasiado confiante nas virtudes educativas ou exemplares da histria, porque pressupe facilmente a possibilidade de repetio dos factos (donde, em Tucdides, este programa, cujo segundo artigo evidentemente mais frgil que o primeiro: ver claro nos acontecimentos passados e nos que, de futuro, em virtude de seu carter humano, apresentaro semelhanas e analogias);Uma viso demasiado estreita do campo da histria, assente numa seleco dos objectos de estudo segundo critrios de convenincia ou de dignidade, eles prprios inspirados pela escala dos valores dominantes (viso que ser ratificada, em 1694, pelo primeiro Dictionnaire da Academia francesa, que definia a histria como o relato das coisas dignas de memria; a questo saber quais) (PALMADE, G., in VEYNE, VILAR et al., 1988, p. 39).

    A influncia da historiografia grega sobre as tendncias e/ou

    escolas historiogrficas posteriores no Ocidente sensvel j nos sculos

    imediatamente seguintes, com a adoo, pelos primeiros historiadores de

    Roma a modelos e estilos da historiografia grega e helenstica, como voc

    ver na prxima seo

    SeO 2A HiSTORiOgRAfiA em ROmA

    A escrita da Histria se consolida tardiamente em Roma, sendo

    fortemente marcada pela influncia grega e derivada da poesia pica.

    Seus vestgios mais antigos remetem a citaes ou referncias em

    obras posteriores, remontando ao fim da Segunda Guerra Pnica. Apenas

    por volta de 200 a.C. que, com fabius Pictor e Cincius Alimentus e seus

    Anais, surgem as primeiras expresses historiogrficas consistentes em

    Roma. Carbonell explica este relativo atraso da emergncia historiogrfica

    em Roma por quatro fatores convergentes:

    - Carter durante muito tempo secreto dos nicos arquivos oficiais, os Comentrios dos Pontfices (Commentarii pontifici), em que os padres

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    48UNIDADE 3

    misturavam aos processos verbais das suas deliberaes as informaes augurais (eclipses, inundaes, aparecimento de monstros...) que lhes permitiam estabelecer o calendrio dos dias fastos e dos dias nefastos;- a pobreza dos ensinamentos que, a partir de 300 a.C., s os pontfices consentiram em afixar porta de sua residncia, a Regia, num painel de madeira coberto de greda, o album: nome dos cnsules, preo do trigo e pressgios;- um sentimento familiar persistente que, por um lado, retardou a emergncia de um patriotismo capaz de inspirar uma histria nacional, e, por outro, fornece aos futuros historiadores fontes contestveis as inscries encomisticas gravadas ao lado das imagines dos grandes antepassados e modelos perigosos: os elogios fnebres em que o desejo da bela retrica rivaliza com a preocupao de edificao moral;- a mediocridade da vida cultural numa sociedade mais guerreira do que especulativa, e a atraco, por um momento paralisante, da civilizao helnica, que fez ter em pouco apreo a lngua latina, justamente por aqueles que a falavam. (CARBONELL, 1987, p. 30-31)

    E a influncia grega a principal responsvel pelo surgimento e

    consolidao da historiografia romana.

    Polbio, o mestre grego que iniciou os romanos no pensamento da histria, v no imperialismo romano a dilatao do esprito da cidade e, perante os brbaros, os romanos exaltaro a civilizao encarnada por Roma que Salstio exalta perante Jugurta, o africano que aprendeu em Roma os meios de a combater, a mesma que Tito Lvio ilustra perante os selvagens de Itlia e os Cartagineses, esses estrangeiros que tentaram reduzir os romanos escravatura, como os Persas tinham tentando com os Gregos. (LE GOff, 1985, p. 189)

    Historiadores das colnias gregas, como Philistos e Timeu de

    Tauromenion ou da prpria Grcia continental como foro e Teopompo

    foram os primeiros a trabalhar Roma como objeto de escrita histrica.

    Callias quem levanta a hiptese da origem troiana de Roma, inserindo

    o mundo latino no caudal da mtica helnica.

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    49UNIDADE 3

    Mas quais foram as principais formas de expresso da historiografia romana?

    Por causa da influncia helenstica, e at da insero de Roma no

    contexto mtico grego, com a histria de Enias e a Guerra de Tria,

    compreensvel que a expresso privilegiada da primeira historiografia

    latina seja potica e pica.

    Ela encontra sua mais antiga expresso na epopia de Nvio (?-212

    a.C.), Bellum Punicum e na obra de nio, Annales, que pretendiam narrar

    a histria de Roma desde suas origens.

    Em Roma, a histria se afirma literria, sendo praticada pelos seus

    maiores escritores: Suetnio, Tito Lvio, Tcito, Salstio e Julio Csar.

    A diversidade de escritores, porm, nos pe diante de uma possvel

    diversidade de gnero.

    Roma no s fez Histria, mas tambm a escreveu. So latinos, no entanto, os primeiros a pr-nos de sobreaviso: Ccero e Quintiliano utilizaram tantas palavras para designar e classificar as obras que ns qualificamos de histricas antiquitas, rerum gestarum, monumenta, commentarii, historiae, vitae, annales, epitome... que nos permitido interrogarmo-nos sobre a prpria existncia de um gnero histrico em Roma. (CARBONELL, p. 35)

    Essa diversidade de gneros alarga, porm, o objeto da escrita da

    histria de forma bastante interessante.

    Jlio Csar (101-44 a.C.) desenvolve uma abordagem histrica de

    cronista monogrfico. Sua obra comumente dividida em dois blocos: o

    militar (De bello gallico) e o civil (De bello civili). Neles, Csar pretende

    uma exposio precisa (commentarius) de fatos vividos dignos de

    memria. So escritos em linguagem impessoal, tcnica, com a presena

    de poucos discursos e pouco apreo pela retrica.

    Salstio (87-35 a.C.) se define como escritor. Seu interesse por

    espaos e objetos delimitados (a Guerra de Jugurta e a Conjurao de

    Catilina, por exemplo). Sua ambio de reconhecimento literria e no

    poltica, de carter mais pessoal:

    O que ele pretende acima de tudo que no caia no esquecimento o seu nome, no tanto os

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    acontecimentos que relata. (...) Com Salstio, os seus discursos eloqentes, as suas descries pitorescas, os seus retratos cinzelados, a histria entra na literatura. (CARBONELL, p. 34-35)

    Outro gnero bastante difundido na historiografia romana foi o das

    biografias. So escritos de fundo moral, visando, mais que a recuperao

    e o conhecimento do passado, a edificao daqueles que as lem atravs

    dos exempla. Obras como o De virus illustribus, de Cornlio Nepos

    (100?-25? a.C.) e a Vida de Agricola, de Tcito.

    Essas obras, derivadas das laudationes fnebres no tm como

    objetivo narrar com exatido os acontecimentos e os personagens

    relatados, mas sim ressaltar seu carter moral.

    Talvez a nica exceo no campo das vitae romanas seja a obra de

    Suetnio, as Vidas dos Doze Csares. Ela exceo no apenas por seu

    carter essencialmente amoralista: Nunca o autor manifesta a inteno de

    extrair lies ticas ou filosficas, dos acontecimentos e comportamentos

    que relata (CARBONELL, p. 35), mas tambm pelo mtodo.

    Suetnio utiliza de maneira crtica fontes primrias: inscries, arquivos imperiais, Acta Senatus, Acta diurna o jornal de Roma -, recolhas de prodgios, documentos genealgicos privados, panfletos... (CARBONELL, p. 36)

    Mas, sem dvida, as grandes obras historiogrficas analticas de

    Roma foram os Ab urbe condita libri, em 142 livros, de Tito Lvio (64?-12?

    a.C.), que compreendiam a histria de Roma de 759 a 9 a.C., e os Annales

    e Histrias, de Tcito (55?-130?) que do seqncia obra de Tito Lvio

    desde o reinado de Tibrio at o de Vespasiano.

    Assim, a historiografia romana, mesmo pica e literria, ganha

    contornos particulares e especficos, distintos das maneiras gregas e

    helensticas de se escrever a Histria. Como crnicas em Jlio Csar,

    descrio impressionista em Salstio, biografias em Cornlio Nepos, e

    anais, como em Tito Lvio e Tcito, a historiografia de Roma teve uma

    nfase de contedo diferente de suas influncias gregas originais: a

    moral.

    A histria, para os romanos considerada um gnero literrio, um

    ramo menor da eloqncia:

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    51UNIDADE 3

    O historiador deve agradar, cativar e comover os seus leitores e ouvintes - eram freqentes as leituras pblicas. A histria usa, por conseguinte, um mtodo. No de modo algum um mtodo crtico. Quando se trata de distinguir o verdadeiro do falso, os Antigos confiam na probidade do historiador; trata-se de um mtodo retrico. Pintar quadros e episdios comoventes e pitorescos, assegurar a continuidade da narrativa - o que autoriza a inveno -, multiplicar os belos discursos - o que obriga a recompor os originais -, condensar para melhor dramatizar - o que exige certas liberdades com a cronologia -, assegurar o crescendo ou decrescendo rtmico dos perodos e das frases - eis algumas das regras, das receitas a que voluntariamente se submetem Tito Lvio, Tcito e seus continuadores. (CARBONELL, p. 36-37)

    Como a sociedade e a lngua se modificam no tempo, os gostos

    tambm mudam, e preciso um trabalho peridico de reelaborao do j

    dito e escrito. Sendo uma escrita, a histria tambm, por conseguinte,

    uma reescrita, sobretudo quando analtica (CARBONELL, p. 37).

    Como decorrncia de sua dimenso retrica, a histria, para os

    romanos, tambm uma obra de moral. Ccero reclama padres morais

    de conduta no Pro Archia; Tito Lvio exalta as qualidades dos costumes

    antigos; Tcito afirma que a principal tarefa do historiador no calar as

    virtudes e patentear a infmia.

    Este discurso moral se fundamenta numa viso pessimista sobre a

    decadncia dos costumes e impe um orgulhoso discurso retrospectivo

    sobre a grandeza do primeiro povo da terra (Tito Lvio), do povo rei

    (floro) (CARBONELL, p. 38).

    A historiografia romana identificava, de modo geral, a Histria com

    a Histria de Roma. A cidade era o referencial de sua escrita histrica. As

    sociedades no romanas apenas so objeto de estudo por causa de sua

    conquista por Roma. Com Csar, Salstio e Tcito, Clio descobre a Glia,

    a Numdia e a Germnia no rastro das legies em marcha (CARBONELL,