teoria e historia - jose carlos reis

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversosparceiros, com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas eestudos acadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ouquaisquer uso comercial do presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico epropriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que oconhecimento e a educao devem ser acessveis e livres a toda e qualquerpessoa. Voc pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.link ou emqualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no maislutando por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a

    um novo nvel."

  • Jos Carlos Reis

    TEORIA &HISTRIA

    Tempo histrico, histria dopensamento histrico ocidental

    e pensamento brasileiro

  • Copyright 2012 Jos Carlos Reis

    1a edio 2012

    Impresso no Brasil | Printed in Brazil

    Todos os direitos reservados EDITORA FGV. A reproduo no autorizada desta publicao, no todo ou em parte, constituiviolao do copyright (Lei no 9.610/98).

    Os conceitos emitidos neste livro so de inteira responsabilidade do autor.

    Preparao de originais: Ronald PolitoReviso: Fatima Caroni, Marco Antnio CorreaDiagramao e projeto grfico: FA EditoraoCapa: Andr CastroConverso para e-Book: Freitas Bastos

    Ficha catalogrfica elaborada pelaBiblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

    Reis, Jos Carlos

    Teoria & histria : tempo histrico, histria do pensamento histrico ocidental e pensamento brasileiro / Jos Carlos Reis. Rio de Janeiro : Editora FGV, 2012.

    270 p.

    Inclui bibliografia.ISBN: 978-85-225-1270-6.

    1. Historiografia. 2. Histria Filosofia. I. Fundao Getulio Vargas. II. Ttulo.

    CDD 907.2

    Editora FGVRua Jornalista Orlando Dantas, 37

    22231-010 | Rio de Janeiro, RJ | BrasilTels.: 0800-021-7777 | 21-3799-4427

    Fax: [email protected] | [email protected]

    www.fgv.br/editora

  • Sumrio

    CapaFolha de RostoCrditosPrefcioApresentao1 Parte - Tempo histrico

    1 - O tempo histrico como representaoO que o tempo?O passado o local da experincia: sido, acontecido, vivido

    O presente o local da sens/aoO futuro o local da expectativa, que exige esforo e ateno

    O tempo histrico como representao intelectualA histria seria o estudo dos fatos humanos do passado?O tempo-calendrio o nmero das mudanas das sociedades humanasAs categorias meta-histricas que revelam o tempo histrico: campo da

    experincia e horizonte de expectativaO tempo histrico como representao cultural

    O regime de historicidade das sociedades arcaicas: o ponto-instanteO regime de historicidade grego: o crculoO regime de historicidade judaico-cristo: a linha escatolgicaO regime de historicidade moderno: a linha utpicaO regime de historicidade do mundo ps-1989: o presentismo

    ConclusoReferncias

    2 Parte - Histria do pensamento histrico ocidental (XXI-XIX) e pensamento brasileiro1 - A historiografia ps-1989: ps-modernismo, representaes e micronarrativas

    O mundo ps-1989: a vitria do capitalismo ocidental sobre o SorexComo avaliar a revoluo de 1989?As repercusses da revoluo de 1989 na historiografia

    A ps-modernidade e a crise dos valores de esquerda: a historiografiaemptica com o vencedor

  • O pensamento histrico crtico da ps-modernidadeA filosofia da histria ps-moderna: Elias, Foucault, Bourdieu e ThompsonA historiografia brasileira sob o regime de historicidade presentistaConclusoReferncias

    2 - Tempo, histria e compreenso narrativa em Paul Ricoeur (1983-1985)A histria-problema e estrutural dos Annales: a ruptura entre tempo e narrativa

    histricaA reconciliao entre tempo e narrativa histrica em RicoeurO crculo hermenuticoO retorno da histria-narrativaReferncias

    3 - Histria da histria (1950/1960): histria e estruturalismo Braudel versus Lvi-Strauss

    O confronto institucional-espistemolgico-poltico entre a histria e a etnologiaem Lvi-Strauss

    A rplica dos historiadores: Braudel e a defesa da histria estruturalReferncias

    4 - Histria da histria (1900-1930): Henri Berr e a nova histria dos AnnalesErudio, filosofia da histria e snteseA sntese erudita

    IIReferncias

    5 - Sobre a compreenso em histria: Dilthey (1833-1911) versus (e vice-versa)Weber (1864-1920)

    O histori(ci)smo: uma teoria da histria alemA compreenso emptica (verstehen) em Wilhelm DiltheyWeber versus Dilthey: a sociologia compreensiva cria conceitos e tipos

    lgicosDilthey versus Weber: a cincia-arte da histria cria tipos poticosReferncias

    6 - Os conceitos de liberdade e necessidade em Marx (1848-1890)IntroduoOs conceitos de liberdade em Espinosa e EngelsO conceito de liberdade em MarxReferncias

    7 - Comentrio final: por um pensamento brasileiroPode-se falar de uma identidade nacional brasileira? E por que falar?

    desejvel que se fale?Formulando o problema da identidade nacional brasileiraSobre a identidade nacional: posies

  • Trs fortes reaes teoria herderiana do carter nacionalA nao um mal!A nao um bem!Nunca houve nao, mas Estado-naoNosso ponto de vista sobre a identidade nacional brasileira: Pensar a

    vida, eis a tarefa!... (Hegel)Eis nossa tarefaExemplo ilustrativo: um ps-doc no ISP/Blgica

    RefernciasSobre o Autor

  • Prefcio

    Neste novo livro, Jos Carlos Reis, num texto fluente e didtico, lana mais uma vez oleitor na instigante tarefa de refletir sobre as imbricaes entre teoria e histria, temaindispensvel ao ofcio do historiador, mas que, frequentemente mergulhado na pesquisaemprica, o evita discutir. Seu texto tem a virtude de dissecar as principais correnteshistoriogrficas mais recentes e as discusses metodolgicas que norteiam o trabalho dohistoriador, revelando que, ainda que muitas vezes estes no enfrentem estas questes nostrabalhos que publicam, ou as releguem a algumas poucas linhas na introduo, elas soinerentes pesquisa histrica. Mesmo no explicitada de forma clara na hora da escrita finaldo trabalho historiogrfico, o autor deixa claro que a metodologia escolhida norteia todos ospassos do historiador em sua pesquisa: desde a escolha do tema e da temporalidadeinvestigada, seleo e inquirio das fontes, problemtica levantada, ao recorte do objetoinvestigado e forma como se procede escrita final do trabalho. A partir desse pressuposto,o livro pretende discutir algumas questes da metodologia histrica, analisar as principaiscorrentes tericas e os debates historiogrficos vigentes a partir dos anos 1980, tentandocompreender de que forma influenciaram e impactaram a escrita da histria no Brasil nolimiar do sculo XXI.

    A primeira parte do livro, constituda de um nico captulo, dedicada discusso dotempo histrico. Como nos alerta o autor, o historiador que nunca meditou sobre atemporalidade est incapacitado para abordar as suas preciosas fontes, impossibilitado parapropor uma periodizao para o seu objeto. De forma acertada, Jos Carlos Reis nos lembraque o tempo a essncia da histria e que o historiador se defronta sempre com duastemporalidades a sua e a do seu objeto de pesquisa , que s existem enquantorepresentao.

    A segunda parte se subdivide em sete captulos e brincando com a temporalidade, numpercurso que comea nos anos 1980 recua at o sculo XIX, para finalmente retornar ao agorae ao devir, aborda algumas discusses tericas fundamentais histria. Comea com umadiscusso historiogrfica, apresentando as correntes ps-modernas dos anos 1980, inquirindode que forma as principais questes que caracterizaram essa dcada nortearam o pensamentode alguns autores, como Norbert Elias, Michel Foucault, Pierre Bourdieu e EdwardThompson, para, em seguida, discutir de que forma tambm impactaram a historiografiabrasileira. Esse perodo assistiu derrota e ao abandono da teoria marxista por parte doshistoriadores e vitria macia da histria cultural. Jos Carlos Reis se ressente dessa

  • historiografia mais atual, a quem acusa de praticar o relativismo, o anacronismo, o modismo,a perda de densidade crtica e, conclamando a um passado perdido, denuncia que o queocorreu na realidade foi o desaparecimento da histria crtica. Segundo ele, a escrita dahistria sucumbiu vitria do capital. Se reconhece que essa historiografia tem a virtude deno estimular a autovitimizao dos oprimidos, valorizar a resistncia daqueles que dizemsim vida procurando integrar-se ordem estabelecida, o que ressalta da anlise da obrados historiadores que ele elenca, bem como da historiografia brasileira a ela afeita (para issodestaca duas obras: Campos da violncia [1998], de Silvia Lara, e Chica da Silva [2003], deminha autoria), so suas caractersticas negativas: o abandono de sua fora crtica,sucumbindo a uma viso amorfa e conformista da sociedade. No posso deixar de concordarcom o autor que a histria fruto de seu tempo e que as questes com que os historiadores sedeparam no seu viver so o ponto de partida para inquirirem o passado, e que o mundo dosanos 1980 impactou seriamente a escrita da histria. Mas no compartilho de seu sentimentopela perda de um passado historiogrfico ideal, pois acredito que o que resulta do novo olharsobre o passado praticado por essa historiografia contempornea , de um lado, uma maiorcomplexificao do entendimento do objeto histrico e, de outro, a busca no da verdadehistrica, como ele enfatiza, mas da verossimilhana histrica.

    Nos captulos que se seguem, numa temporalidade reversa, Jos Carlos Reis abordaimportantes debates afeitos historiografia contempornea. Inicia com a anlise de algunsaspectos da obra de Paul Ricoeur, com o intuito de aprofundar a discusso da emergncia danarrativa na escrita da histria; em seguida, aborda o debate entre histria e antropologiacultural, a partir da polmica encetada entre Lvi-Strauss e Fernand Braudel; depois analisa ainfluncia do filsofo Henri Berr na Escola dos Annales, temtica de sua especialidade; logodepois, procura ver as aproximaes das teorias de Dilthey e Weber acerca da noo decompreenso emptica; para finalmente desembocar nos conceitos de liberdade enecessidade em Marx, num texto escrito em sua juventude, o que lhe permite flexionar suatemporalidade, retomando o fio do primeiro captulo, buscando ainda compreender oabandono da teoria marxista por parte dos historiadores contemporneos. O livro finalizadopor uma pequena discusso acerca da existncia e, mais que tudo, da necessidade, ou no, deum carter nacional brasileiro.

    Jnia Ferreira FurtadoDepartamento de Histria/UFMG

  • Apresentao

    com alegria que lhe ofereo, caro(a) colega, caro(a) estudante de histria, a outrametade do livro Histria & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade,publicado em 2003, que, graas ao grande interesse pelas questes epistemolgicas dahistria, encontra-se j na quinta reimpresso. Este Teoria & histria: tempo histrico,histria do pensamento histrico ocidental e pensamento brasileiro sua outra metadeporque est para ele assim como a cara est para a coroa, o verso para o anverso, o gmeopara o irmo gmeo, a mo esquerda para a direita, uma face para outra. Estas metforasquerem dizer que os dois livros mantm um esprito de continuidade na diferena, dereconhecimento na alteridade, de complementaridade na distino. As duas metades formamuma s imagem e corpo, embora sejam completamente distintas. Elas tm a mesma origem, secompletam, se entrelaam, se articulam, se ajustam, sem se fundir. So ao mesmo tempo partesde um todo e totalidades singulares, uma simetria assimtrica. Se ponho lado a lado os ttulosdestes livros Histria & teoria e Teoria & histria, fica claro o sentido das metforasmencionadas. Eles no so metades como se fossem um casal, porque no so como doisgneros ou pessoas diferentes que se uniram. Eu prefiro a ideia de um livro janicfalo, quetem a vantagem de ter duas faces e um nico crebro.

    O primeiro livro teve uma repercusso muito positiva entre os historiadores, quepassaram a hostilizar menos o campo da discusso epistemolgica. Ali, eu disse que oshistoriadores mais empiristas desconfiam da teoria da histria porque acham que ela pertencea outra rea do saber, a filosofia, e um historiador digno deste nome no deveria seenvolver nos temas de outra rea to complexa. E, de fato, por um lado, tm razo: ohistoriador analisa e interpreta documentos de arquivos, museus, stios arqueolgicos,monumentos, edifcios e paisagens tombados pelo patrimnio histrico, l e interpreta textos,obras literrias, filosficas, historiogrficas, cientficas, do passado, e deve continuar a fazerseu trabalho de forma cada vez mais aprofundada. Contudo, para ser competente na anlisedas fontes primrias e secundrias, ele precisa ter uma formao interna, lgico-terica,epistemolgica, axiolgica, tico-poltica, e precisa conhecer profundamente a histria dahistoriografia. Onde j se viu uma cincia/saber sem discusso terica? Que tipo de formaoser oferecida ao principiante? E se a teoria fica acantonada na introduo da tese, o que tersido feito na tese? Estes dois livros se dirigem ao sujeito da pesquisa histrica, ao historiador,quele que formula os problemas, seleciona as fontes, as elabora e constri os resultados, como objetivo de cultivar a sua subjetividade, tornando-o mais hbil, mais eficiente, menos

  • ingnuo, mais arguto em sua sofisticada atividade. verdade que a teoria da histria dialoga intensamente com a filosofia da histria,

    porque no pode ser reduzida a uma simples metodologia e nem a uma mera epistemologia. Ateoria da histria envolve questes ontolgicas, ticas, polticas, estticas, teolgicas e nopode evitar o dilogo com os filsofos. A teoria da histria se distingue da filosofia dahistria porque os historiadores, claro, no querem, no podem e no devem se deixartutelar por outra comunidade intelectual. Um historiador no pode fazer filosofia da histria,porque precisa diferenciar e demarcar sua identidade e seu territrio de historiador. Ele fazteoria da histria, assim como os socilogos fazem teoria sociolgica e os antroplogosfazem teoria antropolgica. Mas, os trs dependem fortemente dos filsofos. Quando oassunto pensamento, no h como evitar os clssicos da filosofia e o dilogo das teoriasdas cincias humanas com a filosofia intenso. imensa a influncia das filosofias da histriakantiana, hegeliana, nietzschiana, marxiana, benjaminiana, foucaultiana, ricoeuriana sobre asteorias da histria dos ltimos trs sculos. E esta influncia se estendeu s teoriassociolgica e antropolgica: Weber, Durkheim, Elias, Bourdieu, Lvi-Strauss so, de certaforma, filsofos sociais. E nem os economistas e psicanalistas escapam da influncia dafilosofia. Adam Smith era um economista-filsofo e Freud foi um mdico-filsofo. Portanto, adistino entre as duas formas de tratar o pensamento histrico necessria, para que fiquebem demarcada a diferena dos sujeitos da pesquisa: o filsofo e o historiador. O historiadorse apropria das ideias filosficas, transformando-as e adaptando-as a seus objetos. Por isso,elevar um muro entre uma e outra, afirmar que uma no precisa dialogar com a outra ou, pior,que uma melhor do que a outra , no mnimo, uma ingratido, ou melhor, um equvocoterico.

    Este livro est dividido em duas partes: 1a) Tempo histrico e 2a) Histria do pensamentohistrico ocidental (XXI-XIX) e pensamento brasileiro.

    A primeira parte contm apenas um captulo, O tempo histrico como representao,que pretende oferecer uma reflexo ao mesmo tempo inteligvel e densa sobre o tempohistrico, que o ncleo duro, a questo central da atividade historiadora. O sujeito dapesquisa histrica que nunca meditou sobre a temporalidade est incapacitado para abordarsuas preciosas fontes, impossibilitado para propor uma periodizao para seu objeto. Essecaptulo, que apenas levanta algumas questes e explora algumas hipteses, trata do tempohistrico como representao cognitiva e representao cultural e conclui com um esforode especulao ontolgica sobre a temporalidade. Ele foi escrito para atender encomenda deMrcia Chuva, organizadora do nmero 34 da Revista do Patrimnio Histrico Nacional.Sua solicitao foi oportuna, providencial, porque, alm de me render alguns reais (com osquais adquiri algumas roupas esportivas e fui lutar contra o 2o princpio da termodinmica emuma academia), deu-me a oportunidade de retornar ao tema de minha tese de doutorado, que,alis, acaba de ser reeditada pela Editora da Universidade Estadual de Londrina (UEL PR), com o ttulo Histria, a cincia dos homens no tempo, que pode ser til queles quequiserem se aprofundar no tema, aps a leitura desse captulo.

    A segunda parte um conjunto de estudos de teoria e histria da historiografia, feitos em

  • momentos diferentes. Alguns foram publicados em revistas de histria e em coletneascoordenadas por colegas. Ela se organiza de forma regressiva, da historiografia atual aosculo XIX, seguindo a melhor proposta feita pelos Annales, a do mtodoregressivo/retrospectivo. Penso que a historiografia sempre est a servio da Vida, dependedas injunes do presente, e, por isso, a nossa anlise historiogrfica partir do presente. Estapresena do presente na pesquisa histrica veio se radicalizando desde o sculo XIX, a partirdas provocaes de filsofos como Marx e Nietzsche, que insistiram sobre a necessidade doconhecimento histrico servir prxis e vida. A histria no podia continuar a ser umconhecimento do passado pelo passado, um congelamento do presente. Com os Annales, estaperspectiva presentista se radicalizou na histria-problema e no mtodoregressivo/retrospectivo. Para Bloch, a histria a cincia dos homens no tempo e no dopassado pelo passado, um dilogo dos homens do presente com os homens do passado comos quais tm afinidade. O historiador precisa olhar em torno de si, perceber as necessidadesdo presente e formul-las, transform-las em uma investigao histrica, que tragainformaes aos homens do presente. o homem vivo que se interessa pela histria, a eleque o historiador se dirige, devendo tratar de temas do seu interesse. Na verdade, ahistoriografia sempre foi do presente, mesmo aquelas que o excluram de seu ponto de vista.Por um lado, assim que deve ser, mas, por outro, h riscos que devem ser controlados: oanacronismo, o relativismo, o modismo, a trivialidade temtica, certo empobrecimento eperda de densidade da historiografia, que tratar somente do que pode ver e tocar, incapaz dealar voos mais altos de abstrao histrica.

    Portanto, partindo do presente, o primeiro captulo, o nico totalmente indito destacoletnea, intitulado A historiografia ps-1989: ps-modernismo, representaes emicronarrativas, procura fazer uma avaliao crtica da dita histria cultural, ahistoriografia do mundo ps-1989, o mundo da sociedade-mercado livre, da vitria dofetichismo da mercadoria, da hegemonia do valor de troca. O mundo ps-1989 o da vitriado mercado, a Bolsa de Valores se imps em Moscou e em todas as capitais do Leste. O brutalpoder do dinheiro e da especulao financeira tornou-se absoluto! A relao de compra evenda tornou-se universal mesmo para as atividades sem nenhuma relao com o mercado,como a sade e a educao. Agora, no h valores superiores, acima dessa relao comercial.Nem a historiografia! preciso vender livros, teses, dissertaes, cursos, diplomas, fonteshistricas, entradas a museus para que o negcio da historiografia se autossustente. pensvel e aceitvel a historiografia como business? Pode ser possvel a historiografia comoatrao e entretenimento? O cinema est ocupando seu lugar por oferecer a cultura misturadaaos prazeres do consumo. Eis o nosso desafio neste momento histrico e a histria culturaltem sido de uma importncia crucial, ia dizer capital. Nas ltimas dcadas, a historiografiadecaiu em mercadoria, em produto a ser oferecido no supermercado, ao lado de chicletes ejujubas. A histria cultural representa a sobrevivncia de nosso ofcio aps a acachapantevitria do capital. Apesar de seu perigoso abandono da crtica, no se pode menosprez-la,mas compreend-la em sua historicidade.

    Se concordamos que a historiografia sempre foi do presente, inclusive aquelas que

  • recusaram a sua relao com o presente, a histria cultural pertence a este mundo ps-Guerra Fria, ps-queda do muro de Berlim. A historiografia marxista, antes, tematizava nopassado o que interessava sua prxis revolucionria no presente: revolues, greves, lutassindicais, congressos de classe, biografia das lideranas partidrias, escravos rebeldes,ataques de escravos contra senhores, quilombos. O presente ps-1989 no tem nada a ver comesta abordagem da luta de classes e a histria cultural trata no passado de escravos queconseguiram ascender, obter alforria, acumular patrimnio, dentro de um sistema escravistaincontestvel e at consensual. Ela descreve as estratgias, as negociaes feitas porindivduos e grupos de escravos para sobreviverem naquela ordem adversa sugerindo queos escravos do presente faam o mesmo. Se o presente este, a historiografia, que umsaber do tempo, poderia ser diferente? Os historiadores culturais esto apenas repercutindo amudana e assumindo, como camalees, as cores do novo tempo. A sensibilidade historiadora camalenica: sente a mudana e torna-a visvel. Por outro lado, h os efeitos colateraisperigosos mencionados acima: o relativismo, o anacronismo, o modismo, a perda dedensidade crtica.

    Vivemos um novo tempo aps a queda do muro de Berlim. O paradigma dos Annales oevento estruturado era adequado quela poca de combate instabilidade revolucionria eno se imps somente historiografia brasileira, mas historiografia ocidental. A longadurao era contra toda iniciativa de mudana radical e esvaziou a experincia histrica dasubjetividade. A histria cultural representa o retorno da subjetividade historiografia, umasubjetividade excntrica, que resiste norma, sem poder para mud-la inteiramente, emboraseja capaz de transform-la. Foram sobretudo os italianos que insistiram no indivduo/grupodiferente, anormal, excntrico, que no se submete a sries quantitativasprobabilsticas, que faz um uso inventivo da norma. um mundo que exige um olharmltiplo tanto dos que o esto vivendo quanto dos que o analisam, os historiadores e cientistassociais. A historiografia mais adequada a este momento a da variao das escalas, em quea subjetividade estruturante e estruturada e sua anlise exige um jogo de escalas. Hoje,aps a derrota do projeto socialista, so consideradas fato histrico as aes microlocaisde indivduos excntricos, a capacidade de resistncia e integrao de indivduos e grupos ordem que os exclui. Sua prxis visa a emergncia social atravs de sua integrao em redesde sociabilidade, por sua capacidade de resistir inovando, transformando suas relaeslocais. Exemplos: negros, mulheres e homossexuais que conseguem ascender presidncia deum pas, homens de origem baixa que conseguem tornar-se empresrios, profissionais liberaisde prestgio e ricos, escravos que conseguiram acumular patrimnio, que conquistaram aalforria, indivduos que alteraram o prprio corpo e a identidade herdada,construindo/criando uma nova imagem/representao de si mesmos que os catapultam para oalto da hierarquia social. O texto histrico se aproxima da linguagem literria, da iconografia,da fotografia, da publicidade, do cinema, da novela e at da revista em quadrinhos!

    Contudo, possvel ao mesmo tempo sentir/repercutir o presente e manter com ele umarelao crtica. A histria cultural pode ser vista de duas formas: positiva, porque noestimula a autovitimizao dos oprimidos, valoriza a resistncia daqueles que dizem sim

  • vida procurando integrar-se ordem estabelecida; negativa, porque abandonou a fora prpriada historiografia que de ser crtica do sistema, do poder, da dominao e opresso e pode-sequestionar contundentemente o seu compromisso com a tica. E ser este segundo ponto devista que desenvolveremos neste captulo. Para avaliar o impacto desse regime dehistoricidade presentista (Hartog) na historiografia brasileira, destaquei e analisei duas obrasimportantes: Campos da violncia (1988), de Silvia Lara, e Chica da Silva (2003), de JniaFurtado. Elas falam de uma escravido consensual, das estratgias de acomodao eadaptao ordem escravista dos escravos, que uma projeo no passado da prxis possvelno mundo ps-1989. As historiografias ocidental e brasileira no poderiam continuar a mesmapr-1989, como se o projeto do Leste ainda estivesse em vigor. Elas tinham de mudar, paraacompanhar o processo histrico.

    No segundo captulo, Tempo, histria e compreenso narrativa em Paul Ricoeur (1983-1985), ainda estamos no presente e abordamos a obra monumental de Paul Ricoeur Tempo enarrativa, uma das obras mais importantes da teoria da histria recente. Paul Ricoeur,filsofo, , sem dvida, o autor contemporneo que mais interessa comunidade doshistoriadores, pois a temporalidade, a historicidade e a escrita da histria foram, diretaou indiretamente, temas permanentes e centrais em sua vasta obra. Sua hermenutica crticaest entre as principais correntes terico-metodolgicas que marcaram a historiografia dosculo XX. Nesse captulo, a nossa inteno reflexiva e crtica geral se aprofunda no esforode reconstruir, comentar e avaliar a posio ricoeuriana sobre o problema das relaes entrehistoricidade e narratividade. Esse captulo j foi publicado duas vezes: na revista Lcus(2007), do Departamento de Histria da Universidade Federal de Juiz de Fora, e na coletneade histria da cincia organizada por Mauro Cond, Cincia, histria e teoria (2005).

    A partir do terceiro captulo, Histria da histria (1950-1960): histria e estruturalismo:Braudel versus Lvi-Strauss, comeamos a nos distanciar da historiografia atual e a penetrarno passado recente, no ontem historiogrfico, ao abordarmos a clebre querela dos anos 1950-1960 entre Lvi-Strauss e Fernand Braudel sobre as relaes entre conhecimento histrico eantropolgico. Ns procuramos reconstruir no somente os argumentos dos dois importantesintelectuais franceses como tambm o tom alto e crispado das vozes, a virulncia econtundncia de sua discordncia. Este captulo foi escrito para atender ao convite dosprofessores Renarde Nobre e Rubens Caixeta, do Departamento de Sociologia daUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), para participar do congresso queorganizavam sobre Lvi-Strauss. Depois, eles publicaram as palestras em livro, mas noincluram minha participao, talvez, por no a acharem digna de sua coletnea ou, e o queme parece mais provvel, porque os antroplogos no se interessam e no conhecem estapolmica entre Lvi-Strauss e Braudel, que ns, historiadores, sempre lembramos, orgulhosos,como uma vitria da histria sobre a antropologia estrutural. Esse captulo foi publicado noprimeiro nmero da revista eletrnica do Ncleo de Teoria e Histria da Historiografia(2008), do Departamento de Histria da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).

    No quarto captulo, Histria da histria (1900-1930): Henri Berr e a nova histria dosAnnales, descemos um pouco mais no poo do tempo e atingimos a primeira metade do

  • sculo XX, chegando ao debate/combate criador da historiografia da Escola dos Annales.Aqui, buscamos resgatar a forte presena do filsofo Henri Berr naquele momento toinovador da histria da historiografia. Procuramos mostrar que os fundadores dos Annalesdevem muito a Berr e, por isso, indiretamente, a todos os historiadores ocidentais do sculoXX. Anexamos ao captulo a traduo de um pequeno extrato de sua obra A sntese emhistria (1911). Escrevi esse captulo para atender solicitao de Jurandir Malerba, queest organizando uma seleta de teoria e historiografia. Foi ele quem solicitou que me ocupassede Henri Berr e aprovou o artigo.

    No quinto captulo, Sobre a compreenso em histria: Dilthey (1833-1911) versus (evice-versa) Weber (1864-1920), j estamos na transio do sculo XIX ao XX, no incio doanteontem da historiografia. Naquele perodo, o tema preferido dos tericos da histriaalemes era o da compreenso emptica (verstehen) e, aqui, mostramos as posies deDilthey e Weber. Quem teria razo? Nossa hiptese a de que ambos deram contribuiesimportantes para a descrio e avaliao desta operao historiogrfica e que o erro seria sefixar em um ponto de vista contra o outro. Pode-se at optar por um ou por outro, mas no sepodem ignorar os argumentos de sua divergncia. Esse captulo foi escrito para ser umacomunicao em mesa-redonda no Seminrio de Teoria e Histria da Historiografia,organizado pelo Departamento de Histria da Ufop, e foi publicado na coletnea de Srgio daMatta, Valdei Lopes e Helena Mollo, A dinmica do historicismo (2008).

    No sexto captulo, Os conceitos de liberdade e necessidade em Marx (1848-1890),desembarcamos em pleno sculo XIX e chegamos ao outro lado do nosso presente ps-1989,quando se formou a utopia que se tornou a obsesso mundial do sculo XX, as revoluessocialista e comunista, e que, agora, no fazem mais sentido e at do medo. Ns chegamos aoterico da histria, hoje, mais esquecido, menos citado, mais evitado, menos tratado: KarlMarx. Mas, uma ausncia estranha, pois, para quem tem uma viso crtica do mundo ps-1989, uma presena forte e viva, uma presena parda, um olhar silencioso, estupefato,perplexo, mas ainda firmemente esperanoso na realizao de sua utopia. Ao chegarmos a esteanteontem historiogrfico, a sensao de termos nos aproximado de outra forma e maisprofundamente do presente ps-1989. como se tivssemos entrado no espelho e nosolhssemos l de dentro, com uma expresso de inquieta incredulidade. Alm dessaimportncia terica, para mim, esse captulo significa muito, pois uma descida em minhaprpria biografia intelectual: um captulo de minha dissertao de mestrado, orientada peloprofessor Ivan Domingues, um texto de juventude. Foi minha primeira publicao, naprestigiosa revista Kriterion, do Departamento de Filosofia da UFMG, em 1987.

    E chegamos ao Comentrio final: por um pensamento brasileiro, que um retorno aopresente e realidade brasileira. No vou me estender em sua apresentao, pois ele curto epolmico. Eu os convido ao debate da tese que est ali sobre o pensamento brasileiro.Apresentei esta comunicao no colquio organizado pelo grupo de estudos Fibra,coordenado pelo professor do departamento de Filosofia da UFMG, Paulo Margutti Pinto, eno sei se ele o publicou, seja de forma impressa ou eletrnica.

    Enfim, gostaria de prestar alguns esclarecimentos a alguns colegas, geralmente francfilos

  • e germanfilos, que me censuraram por tornar to fceis e at banais alguns temas tocomplexos da teoria da histria. Eu disse a eles, e repito aqui, que prefiro no escrever nalngua que os franceses denominam langue de bois e procuro no produzir o que osamericanos chamam de bolshits! No sei como os alemes, especialistas em criptografia,designam estas algaravias. No Brasil, elas so chamadas de barroquismo, bacharelismo,conversa para boi dormir, que enganam apenas aos j enganados. Para mim, um autorescreve textos inacessveis por quatro razes: 1) porque no domina a prpria lngua, e inculto; 2) porque no domina o tema que est tratando, e incompetente; 3) porque quermanter uma relao de poder com seu leitor, oprimi-lo com seu ar de orculo, dizendo-lhe otempo todo que ele no tem condies de l-lo, e desleal, charlato, um tremendo babaca(e h leitores que preferem esta relao!); 4) quando um genial criador de conceitos, deideias, de valores, de cultura. S esta ltima razo autoriza um autor a utilizar uma linguagemespecial, hermtica, de difcil acesso. Mas, os seus comentadores e intrpretes tm ocompromisso com o leitor de torn-los acessveis, inteligveis, discutveis. Os cientistasnaturais no escrevem por meio de frmulas e teoremas para ficar ininteligveis, pelocontrrio, para permitir o controle do que esto enunciando, para que suas ideiaspermaneam racionalmente discutveis. O historiador Evaldo Cabral de Mello descreveu estafacilidade dos meus livros de forma muito positiva, como desenvoltura intelectual. Eleafirma, na orelha do livro da Eduel mencionado acima, referindo-se ao Histria & teoria:impressionou-me a desenvoltura com que trafega pela rica e densa bibliografia que, h maisde 100 anos, acumula-se nos centros universitrios da Europa e dos Estados Unidos, mas que,aqui no Brasil, pouco conhecida.

    Finalmente, as palavras de agradecimento, que no so mera formalidade. Reitero osmeus agradecimentos s pessoas e instituies mencionadas no primeiro livro, e, neste,gostaria de agradecer imensamente Capes pela bolsa de ps-doutorado, editora da FGVpela excelente produo e divulgao de meus livros, que circulam h mais de 10 anos, aMarieta de Moraes Ferreira pelas palavras gentis, a meus alunos e orientandos, que meestimulam a estudar e a pensar, a vocs, caros(as) leitores(as), por me induzirem a produzirtantos livros. Se no fosse sua generosidade de l-los e repercuti-los, por que os escreveria?Entrego-lhes, portanto, estes gmeos: j que voc contemplou a sua cara comum, vire a moedae reavalie seu valor, j que estava lendo a folha, vire-a, e continue a ler o verso, j que vocconhece a fisionomia do primeiro, reconhea-a no gmeo, sem se iludir com sua semelhana.Iguais e diferentes, simtricos-assimtricos, como se estes livros se dirigissem,amigavelmente, juntos e singulares, a seus leitores, cumprimentando-os, estendendo-lhesambas as mos e oferecendo-lhes ambas as faces: se voc j pegou em uma mo, tome a outra,e se j afagou uma face, porque no beijar a outra? com este esprito de fidelidade,cumplicidade e companhia, por compartilharmos um mesmo interesse intelectual, que esperoque vocs recebam estes novos captulos de teoria da histria. Irnico, voc poderiaperguntar: e o que voc diria, agora, s tais pedras no meio do caminho? Pensei tambm nissoe perguntei ao meu virtual Voltaire, que, srio, mas com leve sorriso nos olhos, aconselhou-mea dizer a elas: cresam, evoluam, progridam, e tornem-se montanhas, cordilheiras, Everests

  • de obstipao!. Mas, dessa vez, acho que ele exagerou... Estou repetindo apenas porque ri nahora. Agora, falando srio e pensando bem: Histria & teoria, Teoria & histria noparece uma bela melancia?

  • 1A PARTE

    Tempo histrico

  • 1O tempo histrico como representao

    O que o tempo?Do ser do tempo, pode-se falar? Para tentar falar sobre o tempo, pretendemos tocar

    levemente nas seguintes questes: o tempo objetivo e est na natureza ou subjetivo e estna conscincia? Ele qualitativo ou quantitativo? Como se define o presente? E o passado e ofuturo, como podem ser definidos? Quais as relaes entre tempo e espao? Quais as relaesentre tempo, finitude e eternidade? O tempo irreversvel ou reversvel, isto , como serelacionam suas trs dimenses, o passado, o presente e o futuro? Ele singular ou plural,universal ou mltiplo? Quais as relaes entre tempo, histria e cultura? Haveria algumarelao entre tempo e paternidade? O que pensam os historiadores sobre a dimensohistrica do tempo?

    O tempo aparece sob o signo do paradoxo: ser e no ser, nascer e morrer, aparecer edesaparecer, criao e destruio, fixidez e mobilidade, estabilidade e mudana, devir eeternidade. Sob o signo da contradio, do ser e do nada, o tempo parece inapreensvel. Ele descrito de modo contraditrio: a pior e a melhor das coisas, fonte da criao, da verdade eda vida e portador da destruio, do esquecimento e da morte. Ele engendra e inova e fazperecer e arruna. Ele pai e destruidor de todas as coisas, origem e fim, a sua passagem aflitiva (isto no vai acabar nunca?) e consoladora (vai passar!). Ele no apreensvel,pois invisvel, intocvel, impalpvel, mas pode ser percebido. Pode-se perceb-lo nanatureza, nos movimentos da esfera celeste, das estrelas, planetas e satlites em torno delesmesmos e em torno uns dos outros, no retorno das estaes, na diferena entre dia e noite. ParaPomian, pode-se perceb-lo fortemente no corpo humano, que um relgio vivo, os estadossomticos, temperatura, hormnios, sangue, variam com uma periodicidade circadiana deorigem endgena. Uma cronobiologia mostra que o homem no precisa da cultura paraperceber o tempo, pois suas funes vitais so temporais, com suas desregulagens prprias,que so doenas temporais: ansiedade, depresso, esquizofrenia, angstia, distrbios do sono,da sexualidade, distrbios ligados ao esforo repetido, ao estresse (Pomian, 1993).

    Nestes tempos naturais e vivos, predominam a regularidade, o retorno, a repetio, umaordem estvel, que inspirou a criao do relgio mecnico, que se tornou uma medida dotempo artificial, abstrata, alheia quilo que mede. O relgio mecnico surgiu entre 1300 e1650 e trouxe mudanas importantes na percepo social e cultural do tempo na Europa

  • ocidental. O tempo do relgio ao mesmo tempo se inspirava na regularidade da natureza e asubstituiu na organizao da sociedade. O canto do galo no despertava mais para a aurora dajornada de trabalho e o movimento do sol no disciplinava mais as atividades do dia. Antes, orelgio dirio era o da rotina das tarefas do pastoreio e da agricultura: reunir as vacas eovelhas, ordenh-las, solt-las no pasto, capinar, plantar, colher, caar, pescar. Cada tarefatinha seu momento e sua durao previstos e orientava a vida cotidiana. Havia tambm umtempo religioso de rezas, teros, missas, festas, procisses, sermes. Para Le Goff, este temporeligioso ritmado pelo repicar dos sinos organizava toda a vida social: nascimentos,batizados, crismas, casamentos, mortes. O surgimento das cidades reguladas pelo tempomecnico do relgio ps fim exclusividade dessa vida camponesa e religiosa. O usurriops o tempo venda e emprestava dinheiro contando os meses, dias e horas, os comerciantesestabeleciam seus preos considerando o tempo necessrio produo das mercadorias ou asduraes dos trajetos de longa distncia. O tempo do trabalho passou a ser disciplinado,racionalizado, com vistas a se evitar o desperdcio de tempo e a se ganhar dinheiro com otempo. A ociosidade foi proibida e as relaes sociais se automatizaram (Thompson, 1998; LeGoff, 1960).

    O tempo pode ser percebido tambm na vida psicolgica individual, onde predominamduraes irregulares e heterogneas, um tempo qualitativo, desigual, afetivo, plural,irreversvel, instvel, avesso regularidade natural e abstrao do relgio. Ele pode serpercebido ainda nas mudanas histricas: no homem rico e poderoso que se tornou pequeno epobre, na mulher bela que no mais, que era amada e tornou-se ex-mulher, no homem jovem,vigoroso, que envelheceu e decaiu, no burgus que virou proletrio e foi submetido ao relgiode ponto, no grupo derrotado que conseguiu vencer, no escravo que se tornou livre, na naoque era soberana e foi conquistada. Ele visvel nas oscilaes de sorte e azar, sucesso efracasso, altos e baixos, ascenso e crise, derrota e conquista, escravido e liberdade. Comopuro devir, o tempo percebido como uma sequncia de momentos que se excluem, umasucesso de termos que aparecem e desaparecem, que introduz uma existncia nova e negauma existncia dada. O tempo seria a constante reduo do ser ao nada, pela descontinuao esucesso do ser. Para represent-lo, geralmente, se recorre a metforas: como a msica, umasucesso de sons que duram, oscilam em ritmos mltiplos e harmoniosos e desaparecem,deixando apenas a lembrana, ou como o rio, que desce ora mais rpido, ora mais lento, quenunca retorna, mas que o pensamento pode percorrer a jusante e a montante (Lavelle, 1945;Alqui, 1990; Reis, 2009).

    Para Lavelle, a melhor definio do tempo seria alteridade, isto , a negao constantedo atual. Como devir, o tempo vivido como o terrorismo do tornar-se: ele promete, d,ilude e, depois, toma, no cumpre, desilude, porque no dura. O que leva o homem a sonharcom a evaso do tempo: a eternidade. O problema da eternidade aparece porque a finitude apior opresso e o homem sente o desejo de salvao. Posto na finitude e entre coisas finitas,no devir, o homem possui a ideia do infinito que, por definio, no pode ser atualizado comopresena real, pois no seria mais infinito, mas um ser determinado. Para Gadamer, a naturezado tempo um dos mistrios mais insondveis: a dificuldade que pe o tempo que nosso

  • esprito capaz de conceber o infinito e se v rodeado pela finitude. a que reside omistrio do tempo tudo o que encontramos na realidade limitado, mas nosso esprito noconhece limites. A filosofia tende a se render diante desse seu objeto de reflexo, aconsider-lo misterioso, inapreensvel, o que significa, de alguma forma, uma derrota para opensamento. A reflexo sobre o tempo essencialmente aportica, complexa, mltipla e poucoconcludente. Para Kojve, a reflexo filosfica sobre o tempo pobre, porque nos falapouca coisa sobre o que seria o tempo enquanto tal e a maior parte dos filsofos ps emdvida o fato de que o tempo seja. Mas, para Kojve, uma noo s pode ter sentido se ela serelaciona a alguma coisa e se a noo de tempo existe, logo, ela deve ser relativa a algumacoisa que no ela mesma e que no o nada. O tempo deve ser alguma coisa, pois a noode tempo existe e s se pode falar de algo que e do qual se fala. Se se fala que impossvelfalar do que se fala contradizer-se (Lavelle, 1945; Alqui, 1990; Gadamer, 1978; Kojve,1990).

    Portanto, possvel falar do tempo e fala-se. A busca ontolgica do tempo enquanto talexclui a relao do tempo com o discurso que fala dele. O tempo existiria, ento, enquantotal, ou seja, independente do fato de que se fala dele. Mas, no possvel uma ontologia dotempo, uma apreenso do tempo em si, mas somente representaes, discursos sobre ele.Mas, mesmo como objeto de discurso, Aristteles j se perguntara: pode-se falar de um serque e no ? Deve-se pr o tempo entre os seres ou entre os no seres? Qual seria a suanatureza? Por um lado, ele parece no existir de forma alguma; por outro, ele teria s umaexistncia imperfeita e obscura. Por um lado, ele foi e no mais; por outro, vai ser e no ainda. Seu ser constitudo por no seres: no mais, no ainda! Mas, prossegueAristteles: se o tempo composto, divisvel e, se divisvel, ento, alguma de suas partesou todas existem e ele existe. Portanto, o tempo se d fala, representvel, e pode-se, ento,relativizar aquela afirmao de Kojve sobre certa pobreza da reflexo filosfica sobre otempo, pois h uma riqueza de discursos sobre ele desde Parmnides, Aristteles, SantoAgostinho, Plotino, Newton, Kant, Hegel, Marx, at Husserl, Heidegger, Bergson, Bachelard,Ricoeur, Elias, para citarmos somente os discursos mais clssicos (Kojve, 1990; Aristteles,1926; Reis, 2009).

    Enfim, a linguagem que faz aparecer o tempo. O que mais nos permite perceb-lo soas palavras que usamos para falar dele: transcurso, devir, mudana, transio, sucesso,irreversibilidade, ausncia, presena, continuidade, ruptura, entre outras. Estas palavras odescrevem como trnsito do ser ao no ser e do no ser ao ser. Vamos procurar apreender edefinir as partes que o constituem, o passado, o presente e o futuro. As relaes entre essaspartes so complexas: qual delas predominante? So separveis? So lineares? Soirreversveis? Quando termina o passado e quando comea o presente? Vamos tentar definir oque seriam estas partes constitutivas do tempo e as suas possveis relaes, sem nenhumapretenso conclusiva, porque tudo depende do modo como se fala. O tempo o que se faladele e a melhor forma de abord-lo fazendo a histria do tempo, isto , dos discursos erepresentaes que as sociedades e culturas fizeram dele (Ricoeur, 1978).

  • O passado o local da experincia: sido,acontecido, vivido

    Pode-se v-lo de trs modos, pelo menos.

    a) ele o que no mais, o que deixou de ser e, nesta perspectiva, no localizvel, no estem lugar algum, no observvel e, portanto, no existe. Se a compreenso do passado sereduzisse a este modo de defini-lo, o conhecimento histrico seria impossvel, pois noteria objeto;

    b) ele existe e pode ser percebido como uma espiritualizao do ser, como lembrana econhecimento retrospectivo, no presente. O passado o conhecimento de si do presente, desua trajetria, que tem a forma da recapitulao, da retrospeco, da anamnese. Contudo, amemria-presente pode recuperar fielmente o passado? Como conhecimento, o passadopode ser considerado tambm um no ser: iluso, fico, impossibilidade de reconstituioda experincia vivida. Mas, a memria-presente produz uma iluso intelectual, pois oreal acontecido disciplina a fantasia. A representao do passado liga-se a uma situaopresente e nessa situao que ela ilumina a ao. Portanto, nesta perspectiva, o passadono existe em si e se confunde com a reconstituio que se faz dele. Ele a possibilidademesma do pensamento, j que toda reflexo retrospectiva. O ser do passado suarepresentao, que est situada no presente, que gera alguns sentimentos especficos: pesar,lembrana, reconhecimento, remorso, saudade, lamento. Como conhecimento, ele se dcomo retrospeco, um conhecimento a posteriori, que no permite nenhuma interveno.Sobre o passado no se age mais, o retorno apaixonado ao passado ineficaz. A vivnciado passado como paixo uma recusa do tempo, pois ao passado no se retorna e, tomadocomo conhecimento, o passado no obriga e determina, mas informa a iniciativa presentetendente ao futuro.

    c) o passado o que h de mais slido na estrutura do tempo. Deste, o passado a nicadimenso que pode ser objeto de conhecimento. Ele no mais a negao da existncia,mas afirmao do ser. Ele penetra o presente e o futuro, a parte mais dura do ser dotempo, a que vence o devir. S como tendo-sido a experincia se d ao conhecimento. Ele durao realizada, consolidao do tempo, o que j e ainda . O presente de certa formao corpo do passado, a sua presena concreta em vestgios, documentos, comportamentos,linguagens, valores, rituais. O passado visvel no presente como se fosse seu solo e podeoprimi-lo ou ser a base de seu lanamento para a liberdade.

    A descrio do passado aportica: o que no mais e o que de fato, conhecimentoverdadeiro e iluso, priso e liberdade, inquietude e repouso. Por um lado, o pensamento dopassado tranquilizante: dado, estvel, conhecvel, descritvel, ausncia de risco, certeza erepouso; por outro, inquietante, pois representa antecipadamente a morte, a finitude, oirrecupervel e inacessvel ser.

    O presente o local da sens/ao

  • a terceira parte do tempo, porque mediador, faz a transio do passado ao futuro,momento em que o futuro emerge e o passado afunda ou em que o passado se torna mais longoe o futuro mais curto, qualquer que seja a lonjura presumida de um e de outro. Ele o ponto departida de toda representao do tempo, o que divide o tempo em passado e futuro. semprede um ponto de vista presente que se representa o passado e o futuro. Ele a ponte queassegura a continuidade do passado no futuro e o limite que os separa. a experincia maisfcil do tempo, pois percepo, e a mais difcil, pois transcurso. Como percepo, o presente um estado real de durao, a parte mais slida, mais estvel, mais substancial do tempo. Ele triplo: momento original, lembrana do passado e tendncia ao futuro. O presente presena, ao, iniciativa. Ele o lugar do enunciador do tempo, do sujeito, do agir de umenunciador. O presente o que est diante de mim, iminente, urgente, sem atraso como ocorpo do atleta pendido para a frente no momento da largada. O presente e o passado recentese pertencem, pois o presente o retm e alarga-se; o presente e o futuro imediato tambm sepertencem e, assim, o presente assegura a continuidade do tempo. Mas, a diferena entrepresente, passado e futuro clara: o passado no mais e o futuro no ainda e estoexcludos do presente, que o que est acontecendo.

    A descrio do presente tambm contraditria: a parte mais impegvel do tempo, poistransitrio, e a mais slida, porque percepo e local da iniciativa do enunciador do tempo.Como tempo do enunciador, o presente o tempo vivido, que organiza todas as perspectivassobre o tempo. O presente-instante pode ser visto de trs modos: como ponto abstrato, quedivide o tempo em antes e depois, fim do antes e incio do depois, corte abstrato, no vivido,que permite descer e subir para o passado e o futuro; como lugar determinado, vivido,singular, uma experincia vivida concreta, localizada no tempo-calendrio, que ocorre aqui-agora; como instante eterno, viver no instante viver na eternidade, que seria a presena daconscincia a si mesma, quando ela consegue se ampliar e vencer seu transcurso. O instante a unio da conscincia consigo mesma, que perderia seus aspectos futuro e passado, para serplenamente presente a si. Zeno de Eleia explica a imutabilidade do tempo com o exemplo daflecha lanada: por um lado, ela est em movimento acelerado; por outro, ela sempre est emum instante e, portanto, parada. Um homem circula em diversos lugares-tempos, idades, mas sempre ele mesmo e est sempre em si mesmo. Logo, o seu movimento ilusrio, porque estsempre no instante (Lloyd, 1978; Honderich, 1984).

    O futuro o local da expectativa, que exigeesforo e ateno

    a segunda parte do tempo, pois posterior ao passado, que primeiro e anterior. Ele portador tanto da inquietude, da instabilidade, do medo da finitude, quanto da esperana deser. A aceitao do futuro a aceitao do risco-morte, porque limite ao meu poder, umaameaa contnua ao ser. Mas, se incerteza e risco, tambm promessa de ser. O futurocompleta, termina, aperfeioa o ser. O que no tempo incompleto e precisa do futuro para secompletar. Realizar aes dirigir-se ao futuro, engajar-se no tempo. no futuro que se

  • constri um mundo. Aceitar o futuro vencer o medo que o tempo inspira: a finitude. Um sersem necessidade do futuro o ser eterno, o Uno, que sempre . A descrio do futurotambm aportica: o futuro tendncia ao ser e ao no ser, certeza e incerteza, alegria daconquista e angstia do fracasso, vitria do desejo de viver e medo da morte, expectativa deser e medo de desaparecer antes.

    Portanto, toda a ambiguidade do tempo como ser/no ser aparece na descrio de suaspartes. No entanto, ao fazerem descries to imprecisas e contraditrias do tempo, os autoresque estamos seguindo, Lavelle (1945), Guitton (1941), Alqui (1943), Pucelle (1962), Kojve(1990), nos do uma ideia mais clara dele. Ele uma relao dialtica entre ser e nada, entrealegria de viver e medo de morrer, entre sofrimento da finitude e desejo de eternidade. Adescrio das partes vale pela descrio do todo.

    Esta complexidade torna-se maior quando se pensa nas relaes que as partes mantmentre elas. Dependendo da parte que predomina, tem-se um tipo de representao daorientao/direo/sentido do tempo: a) linear: o passado precede o presente, que precede ofuturo. O presente ponte entre passado e futuro e h uma relao necessria, causal, que gerauma continuidade inexorvel, determinista, do passado ao futuro; b) teleolgica: o futuro primeiro e organiza o passado e o presente, pois nele que estes tm seu fim. Passado epresente so ordenados por uma causa final; c) presentista: o presente predomina na atitudedo carpe diem ou no desejo espiritual de ascenso eternidade no instante. O monge vive noinstante mstico, quieto, retendo o passado e antecipando o futuro. no presente que h alembrana e a espera e Santo Agostinho props um triplo presente: presente-do-passado(lembrana), presente-do-presente (viso), presente-do-futuro (esperana); d) ramificada:cada presente abre o futuro como possibilidades diversas, oferecendo ao sujeito a liberdadede escolha da ruptura ou redirecionamento do passado; e) concntrica: para Heidegger, noh assimetria entre passado e futuro, mas unidade articulada do futuro/passado no presente:um futuro que torna presente o processo de ter sido. Heidegger pe o futuro comopredominante, como local da finitude. O ser-a (dasein) deve partir dessa determinao para ointerior da conscincia viva, que o passado e o presente. Ele pe primeiro o futuro-nada,para adentrar no ser, que a articulao de passado/presente/futuro, antes do nada. Aorientao do tempo do dasein no bem o futuro, posterior ao passado e ao presente, mas ocentro de si, reunindo a disperso desses tempos em uma relao autntica consigo mesmo,isto , do dasein posto diante da sua finitude. Pode-se pensar ainda em outros modos dearticular as partes do tempo: espiral, arqueolgica, fractal, estrutural etc. (Ricoeur, 1978,1983-1985; Santo Agostinho, 1982; Barreau, 1985).

    O tempo histrico como representao intelectualO que seria a dimenso histrica do tempo? Se o passado o que no mais e no

    observvel, o conhecimento histrico seria possvel? O historiador deve se contentar com umailuso intelectual como resultado de seu trabalho? Vamos nos deter na especialidade dohistoriador: a sensibilidade dimenso histrica do tempo. Contudo, embora seja central

  • para a histria, a categoria tempo histrico foi pouco tematizada pelos historiadores. ParaMichel de Certeau, o tempo o impensado de uma disciplina que no para de utiliz-lo comoinstrumento taxonmico. O tempo to necessrio ao historiador que ele o naturalizou einstrumentalizou. Ele o impensado no porque impensvel, mas porque no pensado. Ohistoriador no separa a reflexo terica sobre o tempo da pesquisa concreta das experinciashumanas: sua teoria prtica, sua noo do tempo permanece implcita sua reconstruo dovivido. Todo trabalho de histria uma organizao temporal: recortes, ritmos, periodizaes,interrupes, sequncias, surpresas, imbricaes, entrelaamentos. Os casos que o historiadorpesquisa j so em si mesmos temporalidades vividas, que ele tenta reencontrar ereconstituir atravs da documentao e, por isso, talvez ingenuamente, evite teorizar sobre atemporalidade. ingnuo porque narrar uma histria no (re)viv-la, uma operaocognitiva, que exige a teorizao. Para Prost, fazendo a teoria da histria, o que distingue aquesto do historiador em relao s questes de outros cientistas sociais a dimensodiacrnica, e mesmo quando trata de estruturas e sincronias, o que o historiador percebe eenfatiza a mudana. O sentido de sua investigao acompanhar os homens em suasmudanas, produzindo sua descrio, anlise e avaliao (De Certeau, 1974, 1987; Prost,1996).

    Para Philipe Aris, a dimenso diacrnica do tempo percebida quando se constata adiferena entre o ontem e o hoje e o objetivo da pesquisa histrica a explicao dessadiferena. A pesquisa histrica se apresenta como uma resposta a uma surpresa, a um espantocom as diferenas entre o hoje e o ontem. O passado s apreensvel pela comparao com opresente, a nica durao que o historiador pode conhecer concretamente. Febvre sustenta quea funo da histria explicar o mundo ao mundo, organizar o passado em funo dopresente, o que significa que o historiador se dirige ao presente, a seus contemporneos. Otempo da histria-problema seria um tempo de dilogo, de aproximao e comunicao, quepressupe a diferena entre o presente e o passado. Nesta comunicao, Febvre considera queo maior erro seja o anacronismo, que leva ao desentendimento, incomunicabilidade entreo presente e o passado, que teriam um do outro informaes equivocadas. No anacronismo, aqualidade da sensibilidade historiadora dimenso diacrnica se deteriora e a narrao dasoscilaes temporais se desequilibra: o historiador no compreende mais o passado, poisperdeu a empatia, o vnculo com o passado. Entretanto, Dumoulin e Loraux chamam aateno para um aspecto positivo do anacronismo positivo no sentido de que poderiaenriquecer e aprofundar esta comunicao. O anacronismo, que a intruso de uma poca emoutra, que seria o erro histrico por excelncia, pode ter um valor heurstico: a proposio dequestes ou tcnicas de anlise de hoje no passado pode lanar luzes sobre ele. Assim, em vezde fim da comunicao entre passado e presente, ele traria, paradoxalmente, o avano nestacomunicao. Como fonte de conhecimento, o anacronismo tomaria o tempo com efeito edeixaria de ser o pecado mortal para tornar-se uma estratgia preciosa de conhecimento.Dumoulin e Loraux tm razo, mas o risco, agora, a transformao retrica do defeito emefeito (Aris, 1986; Febvre, 1965; Dumoulin, 1986; Loraux, 1992).

    Para Bloch, a histria a cincia dos homens no tempo e o tempo o plasma em que

  • se banham os fenmenos, lugar de sua inteligibilidade. A histria a cincia das formas dasexperincias vividas, que se determinam espao-temporalmente. Para o historiador, no hhomem em geral, vago, universal, especulativo, mas vidas determinadas, ou seja, plasmadastemporalmente. O tempo histrico no algo exterior, que envolveria os fenmenos, um sersubstancial, uma intuio divina, como acreditou Newton, mas a prpria forma dos eventoshumanos, que lhes d identidade e inteligibilidade. O tempo histrico esculpe as formas daexperincia vivida. Ele no um tempo fsico ou psicolgico ou dos astros ou do relgio,divisvel e quantificvel, e tambm no uma infinidade de fatos sucessivos como a linha uma infinidade de pontos. O tempo histrico o das coletividades pblicas, das sociedades,civilizaes, um tempo comum, que serve de referncia aos membros de um grupo. Por umlado, o tempo histrico possui uma objetividade social, independente da vontade dosindivduos; por outro, os indivduos tambm o criam e tecem, interferem e o transformam, suasbiografias modificam a sociedade, mas no podem ignorar o tempo social que se impe a eles(Bloch, 1974).

    A seguir, vamos apresentar algumas elaboraes do tempo histrico feitas porhistoriadores e no historiadores, para pensar o impensado. H alguns conceitos e ideiassobre o tempo que so essenciais operao historiogrfica e, se fossem usadosconscientemente, tornariam a abordagem do passado mais eficaz. Vamos retomar trsconcepes do tempo histrico como representao intelectual: o debate entre os Annales ea histria tradicional, o tempo-calendrio, de Paul Ricoeur, e as categorias meta-histricas decampo da experincia e horizonte de expectativa, de Reinhart Koselleck. So construesdiferentes que, por serem diferentes, permitem uma fecunda viso polidrica da dimensohistrica do tempo. J abordamos estes temas e autores em outros livros e o sentido da suaretomada, aqui, (re)organiz-los e torn-los mais acessveis aos jovens historiadores, que,depois, podero exercer melhor sua sensibilidade historiadora. Alm disso, retomar reconhecer, recapitulando, ressignificando, reatribuindo sentido, repetindo reflexivamente.

    A histria seria o estudo dos fatos humanosdo passado?

    H uma concepo mais tradicional do tempo histrico que, se no for pensada demaneira muito tradicional, mantm sua consistncia. Nessa perspectiva, o tempo histrico seconfunde com a dimenso do passado das sociedades humanas e a histria o estudo dosfatos humanos do passado. Nessa historiografia, o passado pode ser posto em relao maisforte ou mais fraca com o presente, mas sua relao com o futuro praticamente inexistente.Para os historiadores mais tradicionais, o futuro no existe como dimenso da histriaconcreta e s pode ser includo no raciocnio do historiador como uma varivel desconhecida,isto , sem valor determinante. Estes historiadores tendem a fazer coincidir o tempo histricocom a dimenso do passado em si, sem qualquer relao ao presente e ao futuro. Esse passadoest inscrito no tempo-calendrio e constitudo pela sucesso precisamente datada neste doseventos singulares e irrepetveis. A singularidade do evento consiste em estar em um momento

  • preciso desta escala homognea e linear e o historiador, manipulando os documentos, tambmprecisamente datados e verificados, reconstitui emprica e exatamente o que se passou alinaquele momento preciso do calendrio. Nessa perspectiva, h certa obsesso pelareconstituio emprica, precisa e exata do passado, o que leva a seu isolamento dopresente, que seria uma fonte de imprecises, e sua reificao. O passado como objeto dessahistria objetivado, posto como exterior ao presente e apreensvel com preciso e exatido,baseado em fontes seguras. Esse passado concebido como a sucesso de eventos bemreconstitudos e precisamente datados. Eis o que pensa do tempo histrico o historiadortradicional dito positivista (Furet, 1982; Carbonnel, 1978; Reis, 2006).

    Os historiadores mais heterodoxos, ao contrrio, tendem a fazer coincidir o tempohistrico com a relao presente-passado, mas sempre cautelosos em relao a umareflexo histrica sobre o futuro. Como objeto de cincia, o tempo histrico confundir-se-iacom o passado dado e o presente que o recebe criticamente. Os Annales combateram ahistoriografia tradicional sustentando que o passado e o presente se relacionam determinando-se reciprocamente. Enquanto os historiadores tradicionais interditavam o presente comoobjeto do historiador, pois no seria abordvel serena e refletidamente, porque espao daexperincia e no da reflexo, Bloch props o mtodo regressivo: o historiador deve partirdo presente ao passado e retornar do passado ao presente. Talvez fosse melhor definir seumtodo como retrospectivo, para se evitar o risco da regresso infinita em busca dasorigens. Para ele, por um lado, o passado explica o presente, pois o presente no umamudana radical, uma ruptura rpida e total. Os mecanismos sociais tendem inrcia, soprises de longa durao: cdigo civil, mentalidade, estruturas sociais. Ignorar este passadocomprometeria a ao no presente. O presente explicvel tanto pelo passado imediatoquanto por um passado mais remoto, por possuir razes longas. O presente est enraizado nopassado, mas conhecer essa sua raiz no esgota seu conhecimento, porque tambm umconjunto de tendncias para o futuro e o momento de uma iniciativa original. Ele exige umestudo dele prprio, pois um momento original, que combina origens passadas, tendnciasfuturas e ao atual.

    Portanto, para Bloch, as relaes entre passado e presente so mais complexas erecprocas. Por seu mtodo retrospectivo, o passado s compreensvel se o historiador forat ele com uma problematizao suscitada pela experincia presente e bem formuladaracionalmente. O historiador no pode ignorar o presente que o cerca, precisa olhar em torno,ter a sensibilidade histrica de seu presente para, a partir dele, interrogar e explicar opassado. Ele faz o caminho do mais conhecido, o presente, ao menos conhecido, o passado.Ele sabe mais dos tempos mais prximos e parte deles para descobrir os tempos maislongnquos e retornar ao presente, a quem ele se dirige. Esta estratgia retrospectiva doconhecimento histrico, um conhecimento a contrapelo: do presente ao passado, do passadoao presente. O historiador segue o tempo montante, penosamente, at certo ponto, pararetornar jusante, agora, pela segunda vez, tomando conhecimento e reconhecendo a primeiradescida, que fora feita s cegas. como se ele voltasse ao topo do tobog, ao alto da pista deesqui, como se levasse o rolim at o pico da rua, para (re)descer, sem medo, de olhos

  • abertos, vendo tudo, avaliando tudo, prazerosamente, desembarcando no presente uma segundavez. O conhecimento histrico reflexivo, um retorno s condies iniciais do presente, queno esto em um passado remoto e inatingvel, que o presente sabe e quer rever.

    O presente tem um interesse vivo pelo passado, perguntas que ele se faz para secompreender melhor enquanto continuidade e diferena. A histria como conhecimento doshomens no tempo, ento, no se restringe ao passado. Bloch no admite que a histria sejaapenas o estudo dos fatos humanos do passado e muito menos o estudo dos mortos,porque ela une o estudo dos vivos (presente) ao dos vivos ainda (passado). O objeto dahistria a vida presente-passada, que estava na parte superior da ampulheta, e no os homenspulverizados pelo tempo, indiferenciados e amontoados na parte inferior, que soincognoscveis. Com o mtodo retrospectivo evita-se a vinda mecnica do atrs para a frente eevita-se tambm a busca das origens, que levaria a uma regresso infinita, que excluidefinitivamente o presente da perspectiva do historiador. Este mtodo o sustentculo dahistria-problema, que se apresenta como uma histria cientificamente conduzida. Temtica,essa histria elege os temas que interessam ao presente, problematiza-os e trata-os nopassado, trazendo informaes que o esclarecem sobre sua prpria experincia vivida.

    O tempo-calendrio o nmero das mudanasdas sociedades humanas

    Para Ricoeur, o tempo histrico coletivo, das sociedades, de suas mudanas coletivas,organizadas e dirigidas pelo tempo-calendrio. Para ele, o tempo-calendrio seria umterceiro tempo por fazer a conexo entre o tempo vivido da conscincia e o tempo csmico.O tempo-calendrio indispensvel vida dos indivduos e das sociedades e essencial aohistoriador. Diversos, os calendrios tm uma estrutura comum: sempre h um eventofundador, que abre uma nova poca, ponto zero a partir do qual se cortam e se datam oseventos. Desse ponto zero pode-se percorrer o tempo em duas direes: do presente aopassado, do passado ao presente. O futuro est excludo. Enfim, fixam-se as unidades demedida: dia, ms, ano. O tempo-calendrio simultaneamente astronmico e da conscincia.Do tempo fsico, ele mantm as caractersticas de continuidade, uniformidade, linearidadeinfinita, segmentvel vontade, a partir de instantes quaisquer; no tem presente, reversvel,mensurvel e numervel. a astronomia que sustenta esta numerao e medida. Mas, o tempo-calendrio no s astronmico, porque o ponto zero um evento, um presente vivido,determinado e singular, que teria rompido com uma poca e aberto outra. O tempo-calendrio um tempo original: o momento axial no astronmico, mas um evento que foi capaz dedar curso novo histria dos homens. Esse momento axial d posio a todos os outroseventos. Assim, os eventos, sem qualquer relao entre si, so organizados a partir dessemomento axial como simultneos, anteriores e posteriores e nossa prpria vida individualrecebe sua localizao em relao aos eventos datados pelo calendrio. No Ocidente, esteevento divisor de pocas foi a vinda de Cristo e todos os eventos so datados, inseridos notempo-calendrio, acompanhados da informao a.C. ou d.C. H vrios calendrios, mas a

  • estrutura do tempo dos diversos calendrios a mesma: a insero da vida dispersa dassociedades em quadros permanentes, definidos por mudanas religiosas, polticas emovimentos naturais regulares. O ano uma unidade de tempo natural, litrgica e cvica. Otempo-calendrio inscreve a disperso e multiplicidade da vida individual e coletiva nauniformidade, continuidade e homogeneidade de quadros naturais e sociais permanentes(Ricoeur, 1983-1985).

    O historiador opera com o tempo-calendrio e busca datar e periodizar as experinciasvividas que estuda. O historiador cria sua periodizao orientado por sua interpretao oudeve oferecer uma periodizao nica? A periodizao realista ou interpretativa? Talvezpossamos dizer que o realismo da datao no impede a interpretao da periodizao. Porum lado, as datas no podem deixar de ser sempre as mesmas para qualquer historiador: 1792,1789, 1822, 1922, 1968, 1989 definem os mesmos eventos para todos. Neste sentido, adatao em histria realista e consensual. No se pode colocar a Revoluo Francesa emoutra data, a II Guerra Mundial no ocorreu no sculo XIX. O controle do antes e do depoisdos eventos deve ser o mais preciso possvel. O primeiro esforo do historiador produziruma sucesso rigorosa dos eventos, ou seja, datar com rigor. A partir desta base de dados, eleconstri sua interpretao. A pesquisa histrica tem, por um lado, uma dimensoreconstituidora dos fatos e, por outro, uma dimenso problematizadora e avaliadora, que afetae modifica a reconstituio, sem compromet-la e enriquecendo-a. Quando se pe ainterpretar, o historiador cria fases, pocas, idades, eras, etapas de declnio, ascenso, crise,estagnao, apogeu, incio, fim, continuidade, ruptura, ritmos. O historiador coordena as datase lhes atribui um sentido. Por exemplo: em 1492, Cristvo Colombo chegou Amrica. Isto um dado e uma data consensual. Definida a data, o historiador perguntar: o que esta datasignifica? (Pomian, 1984). Para Bosi (1992),

    narrar enumerar, contar o que aconteceu exige que se diga o ano, o dia, a hora. As datasso pontas de iceberg, balizas que orientam a navegao no tempo, evitando o choque e onaufrgio. As datas so sinais inequvocos, nmeros, sempre iguais a si mesmas. As datasso numes, pontos de luz na escurido do tempo.

    O conhecimento das datas supe a compreenso de sucesses, sincronismos,convergncias, intervalos, sequncias. A data sinal e no toma o lugar do fato que elarepresenta. Todo corte em histria uma representao, uma atribuio de sentido. Nadacomea e termina absolutamente, porque no se corta o tempo. Para datar, o historiadorrecorre aos vestgios deixados pelo passado, que tm um lado material: couro, metal, madeira,barro, argila, cermica, pedra, papel, tinta, impresses diversas, e um contedo interno, umamensagem deixada pelos homens do passado. O lado material do vestgio importante porquedeixa a mensagem durar e porque j uma mensagem sobre os meios materiais de expressodaquela poca. No presente, o historiador examina um vestgio para interpretar aquelamensagem do efmero: os homens passam, mas suas obras permanecem. O vestgio indica oaqui-agora da passagem dos vivos. Ele orienta a pesquisa dos vivos sobre os outros enquantoeram vivos. Ele assegura que houve a passagem anterior de outros homens vivos. A histria

  • o conhecimento por meio de vestgios: ela procura o significado de um passado acabado quepermanece em seus vestgios. O vestgio coisa e sinal. Ele se insere no tempo-calendrio,carrega em si sua data. Ele revela bem o lado paradoxal do tempo: faz aparecer o passadosem torn-lo presente. Nele, o passado um ausente que afirma sua presena. Para Ricoeur, ovestgio um dos instrumentos mais enigmticos pelos quais a narrativa histrica refigura otempo e os historiadores fariam bem em no somente us-lo, mas em se perguntar sobre o queele significa (Ricoeur, 1983-1985).

    O tempo-calendrio organiza a vida humana dentro de quadros permanentes,conta/enumera a vida humana, que no quantificvel como pura vida humana. Ela adquireforma: incios e fins, expresso, relevncia, ritmos, recomeos, sentido e direo. O tempo-calendrio data os feitos, as obras, nascimentos e mortes, surpresas e descontinuidades. Otempo-calendrio o nmero das mudanas das sociedades humanas, visa a numerao doinumervel, ou seja, dos ritmos mais rpidos e mais lentos da vida humana. Contudo, o tempo-calendrio permitiria, de fato, ao historiador conhecer efetivamente a experincia vivida,transitria, finita, mortal? Se ele no permite um conhecimento exaustivo, definitivo e absolutodas mudanas perptuas das sociedades humanas, pelo menos, as datas e vestgios, comodiria Ricoeur, como os smbolos, do o que pensar (Ricoeur, 1960).

    As categorias meta-histricas que revelamo tempo histrico: campo da experincia

    e horizonte de expectativaPara Koselleck, o tempo-calendrio no resolve o problema posto pelo tempo histrico,

    que continua sendo a questo mais difcil para o conhecimento histrico. Ele insiste naimportncia em se datar corretamente os fatos, mas isto seria apenas as condies prvias eno define o que se poderia chamar de tempo da histria. Para Koselleck, a cronologiaoferece calendrios e medidas relacionadas a um tempo comum, o do sistema planetrio,calculado segundo as leis da fsica e da astronomia. Mas, para ele, quando algum se interessapelas relaes entre histria e tempo, no no calendrio que pensa, mas nas rugas no rostodo velho, nos meios de comunicao modernos convivendo com os passados, na sucesso degeraes. Um tempo mensurvel da natureza no se refere a um conceito de tempo histrico.O tempo histrico se liga s aes sociais e polticas, a seres humanos concretos, agentes esofredores, s instituies e organizaes que dependem deles. Cada uma delas tem seu ritmoprprio de realizao. A interpretao destas experincias nos obriga a ultrapassar asdeterminaes naturais do tempo (Koselleck, 1990).

    Para ele, a questo maior posta pelo tempo histrico : como, em cada presente, asdimenses temporais do passado e do futuro foram postas em relao?. Sua hiptese:determinando a diferena entre passado e futuro, entre campo da experincia e horizonte deexpectativa, em um presente, possvel apreender alguma coisa que seria chamada de tempohistrico. Passado e futuro necessariamente remetem-se um a outro e essa relao que dsentido ideia de temporalizao. Na experincia individual, por exemplo, o envelhecimento

  • modifica a relao entre experincia e expectativa, quando se mais jovem ou se maisvelho, o passado e o futuro significam diferentemente e sua relao se altera. Portanto, otempo histrico, para Koselleck, pensvel por duas categorias principais: campo daexperincia e horizonte de expectativa. Essas categorias no so ligadas linguagem dasfontes, no so realidades histricas, mas categorias formais de conhecimento suscetveis deajudar a fundar a possibilidade de uma histria. A histria sempre de experincias vividas ede esperas dos homens que agem e sofrem. Os conceitos de experincia e expectativa referem-se um a outro, no se pode ter um termo sem outro. Sem essas categorias, para ele, a histriaseria mesmo impensvel. Elas estruturam tanto a histria-realidade, como experincias-expectativas determinadas, quanto a histria-conhecimento, como conceitos formais quepermitem abordar aquelas:

    experincia e espera so duas categorias que, entrecruzando passado e futuro, soperfeitamente aptas a tematizar o tempo histrico. Tanto a histria concreta se realiza nocruzamento de certas experincias e certas esperas, como oferece ao conhecimentohistrico as definies formais que permitem decriptar aquela realizao. Elas remetem temporalidade do homem e de alguma forma meta-histrica temporalidade da histria. Otempo histrico no ento somente uma expresso vazia de contedo, mas um valoradequado histria e cuja transformao pode-se deduzir da coordenao varivel entreexperincia e espera... (Koselleck, 1990).

    A experincia o passado atual, cujos eventos foram integrados e podem serrememorados por uma elaborao racional, e tambm comportamentos inconscientes,estranhos a ela mesma. A expectativa o passado atualizado no presente. So conceitosassimtricos: a espera no se deixa deduzir da experincia, passado e futuro no se recobrem.A presena do passado outra que a do futuro. O passado constitui um espao, pois aglomerao de experincias em um todo que se d ao mesmo tempo; o futuro um horizonte,pois uma linha atrs da qual se abre um novo campo da experincia possvel cujoconhecimento inantecipvel. So conceitos assimtricos e de sua diferena pode-se deduziralgo que seria o tempo histrico. Um no se deixa transpor no outro sem que haja ruptura. Otempo histrico esta tenso entre experincia e expectativa, uma relao esttica no concebvel. Eles constituem uma diferena temporal em nosso presente, na medida em que seimbricam de forma desigual. A diferena revelada por essas categorias nos remete a umacaracterstica estrutural da histria: o futuro da histria no o resultado simples do passado,embora este traga conselhos. A relao entre eles tem a estrutura do prognstico: o possveldeduzido dos dados do passado. Essas diferenas entre experincia e expectativa so plurais,isto , o tempo histrico no um, mas mltiplo e os tempos se superpem. Cada pocamantm relaes diferentes com seu passado e futuro, cada presente constri ritmos histricosdiferenciados, mesmo se um deles predomina. Estas categorias, por serem formais, sotransistricas e permitem o conhecimento de tempos histricos mltiplos.

    Portanto, em Koselleck, o tempo histrico, sem ignorar as medidas do tempo-calendrio,no se confunde jamais com este. A reflexo sobre o tempo histrico feita atravs dos

  • conceitos que analisam e interpretam as aes e intenes de sujeitos coletivos e singulares. Otempo histrico perde a continuidade, homogeneidade e linearidade conferidas pelo tempo-calendrio, pois sua referncia no mais apenas o nmero dos movimentos objetivos, mas asrelaes de dependncia, reciprocidade e descontinuidade das mudanas polticas e sociais.Ele se torna intrnseco experincia vivida das sociedades particulares, ou seja, sua relaoparticular a seu passado e a seu futuro antecipado. Assim, no se pode falar de um tempohistrico nico, mas de tempos histricos plurais, como so plurais as sociedades. Pode-sefalar de tempos histricos heterogneos, com mudanas e direes no lineares. Associedades se relacionam diferentemente, em cada poca, com seu prprio passado e com seufuturo. Isto : uma sociedade pode mudar de perspectiva em relao a si mesma, pode resgatarpassados esquecidos, esquecer passados sempre presentes, abandonar projetos, propor outrasesperas. A histria se torna plenamente uma cincia dos homens no tempo porque passa aincluir tambm o futuro em sua perspectiva. Alis, o objetivo das sociedades construir aao que as levar ao futuro, que ir realizar suas metas. Elas no podem atingi-las apenas dopresente para o futuro e precisam fazer um recuo estratgico ao passado. Uma metfora quepode iluminar a relao entre a sociedade e o tempo a do cobrador de um pnalti ou de umafalta no futebol: chegar s redes a meta, o goal (futuro), mas o cobrador no pode chutarapenas da marca do pnalti (presente) para o objetivo (futuro), pois no teria impulso, eprecisa, ento, criar este impulso fazendo um recuo estratgico (passado): um traadoescolhido, curto ou longo, reto ou curvo, para a direita ou para a esquerda...

    O tempo histrico , portanto, em primeiro lugar, uma representao intelectual, porqueno uma reconstituio dos fatos tal como se passaram. No h coincidncia entre anarrativa histrica e a experincia passada que narra. Uma obra de histria uma sofisticadaconstruo intelectual do historiador. O tempo histrico como representao intelectual umconceito complexo que engloba todas as formas de apreenso do tempo: intelectual,psicolgica, biolgica, social... O controle do tempo histrico pe em ao operaesmentais: identificao, associao, memria, juzo, comparao, medida; operaespsicolgicas: percepo da durao, retrospeco, transposio, projeo, expressesafetivas, atitudes em relao a valores culturais. O controle desse conceito supe odesenvolvimento integral da pessoa: capacidade de abstrao do presente, de recuo, derepresentar simbolicamente um sculo, um milnio, de situar um evento, um personagem, umprocesso, cronologicamente, antes e depois na sucesso; capacidade de evocao, de ver oque s aparece por vestgios e documentos, de imaginar uma poca, de avaliar a mudana, deperceber velocidades histricas: mudanas rpidas, lentas, ritmos no uniformes,heterogneos, descontnuos. Enfim, ter sentido histrico ter a sensibilidade tenso dadimenso diacrnico-sincrnica do tempo, perceber que os homens mudam, as instituiesmudam, ser capaz de perceber as duraes: continuidade e mudana, mudana econtinuidade, as rupturas e a solidariedade entre as pocas (Prost, 1996; Pomian, 1984, 1993).

    Em segundo lugar, o tempo histrico uma representao cultural, porque o historiadorno realiza sua operao historiogrfica fora de uma sociedade e poca e toda sociedade epoca se orientam por uma representao cultural da temporalidade. Aqui, estamos

  • apresentando esta representao cultural em segundo lugar, mas ela talvez ocupe o primeirolugar na operao historiogrfica. A construo intelectual do historiador est impregnada daviso do mundo de sua sociedade e poca, por mais que tente se destacar e se apresentar comoneutra, assptica, objetiva, o que s revela a ingenuidade do historiador. Para Gourevitch(1978),

    as representaes do tempo so componentes essenciais da conscincia social. A estruturada conscincia social reflete os ritmos e cadncias que marcam a evoluo da cultura. Omodo de percepo e de apercepo do tempo revela as tendncias fundamentais dasociedade, de seus grupos, classes, indivduos. O tempo uma categoria central nomodelo do mundo de uma cultura e a representao cultural do tempo domina aexperincia vivida e todas as suas expresses sejam elas as mais abstratas e formais.

    Inclusive, a escrita da histria.

    O tempo histrico como representao culturalPor que o homem est a? Qual seria o sentido da presena humana no mundo? Que

    direo dar s aes, s escolhas e decises, vida? Como seria o melhor modo de secomportar e se conduzir, o que festejar e comemorar, o que preservar ou esquecer? O queesperar? Quem sou eu e o que posso ou devo fazer? So questes que todo homem se colocaquando se descobre a, no espao-tempo, vivo, histrico, aspirando e querendo agir,venerando e preservando o passado ou querendo destru-lo pela crtica radical. Contudo,embora as formule, os homens raramente se inquietam com estas questes, que os tocamapenas de leve, porque tm todas as respostas j oferecidas por sua sociedade e poca. Naverdade, estas questes podem at parecer ridculas a quem j se sente integrado plenamente aseu mundo social e ao cosmos. A sociedade constri representaes de sua presena nomundo e as inculca nos indivduos, tornando-se neles um habitus, estruturando sua viso de simesmos, dos outros e da histria. Toda sociedade governada por um regime dehistoricidade, por um discurso sobre o tempo que d sentido e localizao a seus membros.Estas ordens do tempo so criaes, narrativas de si de uma sociedade, mas, depois decriadas, tornam-se o prprio real, a verdade absoluta, e os indivduos se sentem enjauladosnestas grades temporais. Um regime de historicidade se impe imperiosamente aosindivduos sem que eles se deem conta, conferindo forma, plasmando, esculpindo seu corpo,seu cotidiano, enfim, sua vida.

    Franois Hartog, dialogando com Koselleck e com o antroplogo Sahlins, criou esteconceito de regime de historicidade para se referir ao modo como uma sociedade trata seupassado, ao modo de conscincia de si de uma comunidade humana. Esta noo pode ser uminstrumento para comparar tempos histricos diferentes, lanar luz sobre formas singulares deexperincia do tempo. Hartog esclarece que este conceito no uma cronosofia, no umametafsica universal, quer somente exprimir uma ordem histrica dominante do tempo, umaforma de ordenar e traduzir as experincias do tempo, articulando e dando sentido, tranando

  • as dimenses do passado/presente/futuro. Um regime de historicidade se instala lentamentee dura muito tempo. A historicidade a condio de ser histrico, em que o homem se sentepresente a si mesmo enquanto histrico. Mas, este sentir-se presente a si historicamente um regime de historicidade, uma ordem do tempo, alis, ordens, regimes, que variamsegundo lugares e tempos. So ordens imperiosas, os indivduos se dobram a elas sem se darconta. Elas se impem por si mesmas e, se queremos contradiz-las, ns nos chocamos comelas. As relaes que uma sociedade mantm com o tempo parecem incontestveis e,geralmente, os indivduos tm pouca margem para negociao. Talvez, este conceito seja umaatualizao do conceito de mentalidades coletivas dos fundadores dos Annales, em que ahistoricidade tambm era uma ordem cultural imperiosa, que se impunha aos indivduos(Hartog, 2003; Pomian, 1984).

    Um regime de historicidade, e fica clara a influncia de Koselleck, uma articulao,em um presente, entre um campo da experincia e um horizonte de expectativa, aconscincia histrica e de si deste presente, do que ele se lembra e o que ele espera. Comestas categorias formais de Koselleck, que se determinam em regimes de historicidadeconcretos, pode-se dar uma olhada rpida sobre milnios da histria da cultura ocidental. ParaHartog, os regimes de historicidade so de longa durao e mesmo quando passamcontinuam convivendo e assombrando o novo. Vamos aplicar estas categorias de Koselleck eHartog e ver como elas se preencheram de contedo nos ltimos trs milnios da histriaocidental.

    O regime de historicidade das sociedades arcaicas:o ponto-instante

    A obra de Mircea Eliade trata de forma instigante da experincia da temporalidade dassociedades arcaicas. Segundo Eliade, o homem arcaico criou uma representao do mundoem que a historicidade recusada. O homem arcaico tem horror mudana, novidade, aoevento, que lhe parece desconhecido e ameaador. Ele se desvia do tempo e da histriaprocurando repetir os gestos paradigmticos dos deuses ao criarem um mundo perfeito. Paraeles, o mundo j perfeito e o homem no tem de acrescentar nada mais. Alis, a culturaprobe gestos, atitudes e comportamentos diferentes e impe a repetio do modo de vida dosancestrais, que j repetiam os gestos fundadores dos deuses. Todo o seu vivido sacralizadoporque ritualizado: ele repete a cada instante o ato csmico da Criao. A cada gesto profano,cotidiano, ele procura a inspirao do ato criador divino. O seu cotidiano uma revivnciaininterrupta do comeo, da origem. Todos as atividades profanas caa, pesca, agricultura,jogos, conflitos, sexualidade possuem seus arqutipos. Todos os atos importantes da vidaforam revelados, na origem, por deuses e heris e os homens devem apenas repetir essesgestos paradigmticos e exemplares. Essa repetio e participao em um arqutipo so o queconfere vida cotidiana realidade e sentido e o que no tem exemplo sem sentido erealidade (Eliade, 1969; Reis, 2009).

    O homem arcaico se reconhece como real na medida em que no ele mesmo, mas

  • quando repete e imita os gestos do outro. Ele no tem o direito de criar, inventar, inovar,comear, inaugurar um tempo. Ele abole o tempo, o transcurso do passado ao futuro,procurando manter o seu agora coincidindo com o tempo da origem. A mentalidade arcaicaquer permanecer no eterno presente da criao e suspende a durao, abole a historicidade.Ele vive em um tempo mtico, sagrado, estvel, eterno. Pelo ritual, ele regenera o tempoprofano, que experincia da finitude, da corruptibilidade, da mudana. Cada festa de ano-novo abole o ano anterior e reinaugura uma nova era: renascimento, purificao, zerotemporal, eterno retorno ao ser original. O homem primitivo livra-se do tempo e da histria,preenchendo sua vida com rituais de regenerao do tempo, que elimina os males, anula otempo escoado, abole a histria, por um contnuo retorno origem.

    A representao da historicidade arcaica anti-histrica: desvaloriza a experinciatemporal, recusa a sua irreversibilidade, procura viver em um eterno sagrado presente. Otempo abolido e a histria como cincia das mudanas das sociedades humanas umaimpossibilidade. A memria arcaica no se lembra de eventos particulares e de personagensautnticos. Ela pe categorias no lugar dos eventos, arqutipos no lugar de personagenshistricos. O personagem assimilado a seu modelo mtico e o evento integrado nacategoria das aes mticas. A lembrana de eventos e personagens exemplar: as aes soimpessoais, modelos, os personagens so tipos. A lembrana potica: o artista cria oexemplo e o modelo das aes e personagens. A mentalidade primitiva quer o Ser, a Presena,e se defende como pode contra o novo e a irreversibilidade temporal. Durante milnios, ahumanidade se ops dessa forma mtica experincia vivida, sucesso dos eventos. Estava, claro, mergulhada na temporalidade, em sua historicidade, mas, como afirma Lvi-Strauss,isso a repugnava e ela preferia ignor-la. Ela procurava se libertar do evento tentando manter-se na origem, no antes do tempo, criando a eternidade no instante do ritual. O ritual repete acriao do mundo, reatualiza a criao do mundo naquele instante. A realidade histrica profana, irreal, nada, e os arcaicos recusavam a sucesso irreversvel dos eventos e queriamno perder o contato com o Ser, com a origem sagrada.

    Esta uma representao do mundo, um discurso mitolgico que d sentido experincia vivida, mas que se confunde com a prpria experincia. Em seu vivido, os homensviviam dominados pelo campo da experincia, o passado se impunha sobre o presente e ohorizonte de expectativa era repetir o campo da experincia. Este um regime dehistoricidade em que o tempo no valorizado como mudana, mas como continuidade domesmo: o passado no apenas preservado, mas reatualizado, revivido no presente e nofuturo. O futuro ser igual ao passado e a diferena temporal minimizada, oferecendo oconforto da estabilidade social, do reconhecimento quase absoluto entre todos os membros dasociedade, mas oprimindo com violncia o inovador, o diferente, a alteridade, que era tratadocomo iconoclasta, destruidor da ordem sagrada do tempo. Estes tentavam dizer a seuscontemporneos que aquela forma de organizar o tempo era somente uma forma possvel e noo nico caminho, a verdade da vida. Mas, aquele regime de historicidade era um discursoimperioso, incontestvel, sobre a historicidade naquela poca e cultura (Eliade, 1969; Hartog,2003).

  • O regime de historicidade grego: o crculoEntre os gregos, essa sede de realidade era menos mtica e religiosa e mais terica.

    Apesar de terem criado a cincia dos homens no tempo, os gregos possuam tambm umpensamento extremamente anti-histrico. Sua teoria concebia tambm apenas o conhecimentodo eterno, do permanente, do supralunar. O pensamento grego contemplava um mundo emmovimento circular, com as categorias da unidade, continuidade e eternidade. Para eles,somente o movimento circular pode ser eterno; o movimento retilneo, no, porque no podeser infinito. O movimento circular, para Aristteles, infinitamente contnuo, vai de um termoa esse mesmo termo, no se vai a parte alguma, no se ganha e no se perde nada, nada nasce,nada morre, nada falta. O movimento circular estril, isto , perfeito, pois no acrescenta serao que j : o movimento circular no revela o tempo, mas a eternidade. Nele no h mudana,transio, novidade, evento, alteridade. O ser cognoscvel, como a esfera celeste, s pode serem movimento circular. A teoria estava voltada para a eternidade, para o ser enquanto ser.No era religio, mas episteme. Aristteles desprezava a cincia do