historia moderna i

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Histria Moderna I

Andreza Santos Cruz Maynard Dilton Cndido Santos Maynard

So Cristvo/SE 2009

Histria Moderna IElaborao de Contedo Andreza Santos Cruz Maynard Dilton Cndido Santos Maynard

Projeto Grco e Capa Hermeson Alves de Menezes Diagramao Neverton Correia da Silva

Copyright 2009, Universidade Federal de Sergipe / CESAD. Nenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada por qualquer meio eletrnico, mecnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao por escrito da UFS.

FICHA CATALOGRFICA PRODUZIDA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPEMaynard, Andreza Santos Cruz. Histria Moderna I / Andreza Santos Cruz Maynard, Dilton Cndido Santos Maynard -- So Cristvo: Universidade Federal de Sergipe, CESAD, 2009.

M471h

1. Histria. I. Maynard, Dilton Cndido Santos. II. Ttulo. CDU 94

Presidente da Repblica Luiz Incio Lula da Silva Ministro da Educao Fernando Haddad Secretrio de Educao a Distncia Carlos Eduardo Bielschowsky Reitor Josu Modesto dos Passos Subrinho Vice-Reitor Angelo Roberto Antoniolli

Chefe de Gabinete Ednalva Freire Caetano Coordenador Geral da UAB/UFS Diretor do CESAD Antnio Ponciano Bezerra Vice-coordenador da UAB/UFS Vice-diretor do CESAD Fbio Alves dos Santos Coordenador do Curso de Licenciatura em Histria Lourival Santana Santos

Diretoria Pedaggica Clotildes Farias (Diretora) Rosemeire Marcedo Costa Amanda Mara Steinbach Ana Patrcia Melo de Almeida Souza Daniela Sousa Santos Hrica dos Santos Mota Janaina de Oliveira Freitas Diretoria Administrativa e Financeira Edlzio Alves Costa Jnior (Diretor) Sylvia Helena de Almeida Soares Valter Siqueira Alves Ncleo de Tutoria Janaina Couvo Priscilla da Silva Goes (Coordenadora de Tutores do curso de Histria)

Ncleo de Avaliao Guilhermina Ramos Elizabete Santos Ncleo de Servios Grcos e Audiovisuais Giselda Barros Ncleo de Tecnologia da Informao Fbio Alves (Coordenador) Joo Eduardo Batista de Deus Anselmo Marcel da Conceio Souza Michele Magalhes de Menezes Assessoria de Comunicao Guilherme Borba Gouy Pedro Ivo Pinto Nabuco Faro

NCLEO DE MATERIAL DIDTICOHermeson Menezes (Coordenador) Jean Fbio B. Cerqueira (Coordenador) Baruch Blumberg Carvalho de Matos Christianne de Menezes Gally Edvar Freire Caetano Gerri Sherlock Arajo Isabela Pinheiro Ewerton Jssica Gonalves de Andrade Luclio do Nascimento Freitas Neverton Correia da Silva Nycolas Menezes Melo Pricles Morais de Andrade Jnior

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE Cidade Universitria Prof. Jos Alosio de Campos Av. Marechal Rondon, s/n - Jardim Rosa Elze CEP 49100-000 - So Cristvo - SE Fone(79) 2105 - 6600 - Fax(79) 2105- 6474

SumrioAULA 1 Essa tal Idade Moderna: transio para novos tempos, novos mundos....................................................................................07 AULA 2 Guerras, peste e fome: a formao do sistema econmico comercial ........................................................................................... 15 AULA 3 Navegar preciso: a expanso ultramarina europeia e a edenizao do Novo Mundo .............................................................. 25 AULA 4 O Renascimento ................................................................................ 35 AULA 5 A Igreja em transformao: a Reforma Protestante .......................... 47 AULA 6 A Contra-Reforma.............................................................................. 57 AULA 7 Cultos populares, Sabs e perseguies .......................................... 67 AULA 8 O Absolutismo ................................................................................... 75 AULA 9 As Revolues Inglesas: a Revoluo Gloriosa e o m do absolutismo ingls ............................................................................. 85 AULA 10 O Iluminismo...................................................................................... 93

AulaESSA TAL IDADE MODERNA:TRANSIO PARA NOVOS TEMPOS, NOVOS MUNDOS

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METAApresentar aspectos da disciplina Histria Moderna 1, ressaltando os principais problemas a serem abordados por ela.

OBJETIVOSAo nal desta aula, o aluno dever: identicar os principais traos que caracterizam o perodo entre os sculos XV e XVIII denominado como Idade Moderna; apreender a importncia desse momento da vida Ocidental, considerando os valores e propostas surgidas no perodo; reconhecer a Idade Moderna como um perodo de transio.

PR-REQUISITOSLeituras sobre a crise do Medievo. Noes de Histria Econmica.

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Os marcos histricos eleitos para demarcar o incio da Idade Moderna variam. A gura 1 representa Maom II, sulto do Imprio Otomano, entrando em Constantinopla com seu exrcito, em 1453; a imagem 2 mostra um exemplar da Bblia de Guttemberg, o primeiro livro impresso por Johannes Gutenberg. O processo de impresso dessa bblia se iniciou por volta de 1450, terminando em 1455, e marcou o incio da produo em massa de livros no Ocidente; a gura 3 representa a partida da frota comandada por Cristvo Colombo do porto de Palos, na Espanha, em 3 de agosto de 1492. Essa viagem culminou com o descobrimento da Amrica, em 12 de outubro de 1492. (Fonte: 1, 2 e 3 - http://upload.wikimedia.org)

Histria Moderna I

INTRODUOTransio. Parece ser esta a melhor palavra a ser utilizada quando queremos caracterizar a Idade Moderna. De certo modo, como a pintura de um quadro ou mesmo de uma casa. Para atingir determinada tonalidade, o pintor utiliza combinaes de cores, coloca um tom sobre o outro, at chegar ao que idealizou. Pois bem. Neste livro, falaremos de um tempo em que no se enxerga mais o antigo, mas ainda no se vislumbrou nitidamente o novo. Comeamos, portanto, armando que a Idade Moderna foi um perodo de transies. No intervalo que se estende entre os sculos XV e XVIII, mudanas varreram o mundo. Na regio hoje conhecida como Europa, os homens experimentaram inovaes que iam do jeito de navegar composio dos cardpios, e aos modos mesa. A partir destes novos tempos insistia-se, por exemplo, para que, durantes as refeies, as pessoas no cassem a balanar sobre as cadeiras, pois tal atitude sugere o trejeito de que est para liberar gases do tubo digestivo ou, pelo menos se esfora para tanto, ensina Erasmo de Rotterdam (ROTTERDAM, s/d, p.140). Mudou tambm o jeito de governar e as formas de lidar com o sobrenatural. Indubitavelmente um mundo novo se abriu. Se o medievo foi um tempo para muitos marcado por uma quase imobilidade, no correto dizer o mesmo do mundo a partir do sculo XV. Da em diante a Terra tornou-se maior e, paradoxalmente, menor. Expandiu-se, pois os mapas tiveram que ser redesenhados para abrigar um novo continente, um novo oceano. Ao mesmo tempo, as distncias encurtaram. Novos tipos de embarcaes transformaram vidas, circundaram a frica, facilitaram compromissos, guerras, festas e negcios. Alimentos desconhecidos chegavam s mesas de italianos, espanhis e franceses ao mesmo tempo em que nativos americanos experimentavam doenas e uma mortandade inditas. Claro, as enfermidades no caram restritas a um s grupo. Os europeus no transportaram apenas ouro e prata do Novo Mundo. Levaram daqui tambm alguns males. Mas como caracterizar a Idade Moderna? Eis uma das maiores diculdades para quem se dedica ao estudo do perodo. No se trata apenas de periodizar. Para alguns autores, o tal mundo moderno o perodo que vai da crise da sociedade feudal europeia no sculo XIV at as revolues democrtico-burguesas, no sculo XVIII pode ser visto como algo que se reveste de uma srie de especicidades que podem, em linhas gerais, ser analisadas, tomando-se como referncia a percepo que alguns tiveram de que estavam vivendo um novo tempo (FALCON, 2000, p.9). Determinemos, ainda que provisoriamente, duas coordenadas fundamentais para o ofcio do historiador. O tempo e o espao. O primeiro, no caso aqui estudado, abrange o sculo XV e se alarga at aproximadamente o alvorecer do sculo XVIII. O espao, sem dvida, a Europa Ocidental.

Desidrio Erasmo nasceu em Rotterdam, nos Pases Baixos, em 1467, e faleceu na Basilia, na Sua, em 1536. Estudou teologia em Paris e foi um inuente pensador humanista. Suas crticas postura da Igreja so vistas como uma antecipao da Reforma Protestante. Sua obra mais conhecida O Elogio da Loucura (1509).

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Essa tal Idade Moderna: transio para novos tempos, novos mundos

Aula

Anal de contas, o perodo acima delimitado corresponde ao tempo em que os europeus avanaram sobre os mares, descobriram as belezas e agruras do Atlntico e, em pouco tempo, tornaram-se senhores de parte considervel do mundo. Nesta poca, a Europa espalha sua inuncia, v crescer seu poder. Se voc pretende ter uma ideia de como homens e mulheres vivenciaram este perodo, talvez a melhor opo fosse dar ateno s vozes da poca. Claro, no espere que os relatos e imagens obtidas sejam dedignos. Anal de contas, a realidade no algo assim to fcil de xar nas pginas dos livros ou reter nas tintas e pincis. Todavia, no incorreto dizer que, em textos, mapas e pinturas do perodo, possvel perceber traos do cotidiano, da economia, da religio, da poltica. As fontes histricas, se corretamente questionadas, sempre tm algo a nos dizer.

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Mapa do mundo em 1722. Mundi de http://ceneviva.ricardowerneck.googlepages.com/

UMA PERIODIZAO QUE VARIAA Idade Moderna foi, sim, um perodo de transio. Como explica Francisco Jos Calazans Falcon , so mudanas ocorridas, em ritmos e intensidades diversos, conforme a sociedade, que formam o ncleo bsico dessa transio (FALCON, 2000, p.12). Trata-se de um tempo com novas vises de mundo, formas de pensamento inovadoras. E as opes para demarcar este perodo, se consultarmos a bibliograa sobre o tema, so diversas. O marco mais comum a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453. Mas possvel considerar outros acontecimentos, como a inveno da imprensa atravs de caracteres mveis por Johann Gutenberg, talvez por

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Histria Moderna I

Nicolau Coprnico nasceu em Torn, Polnia, em 1473, e faleceu em Frauenburgo, no mesmo pas, em 1543. Defendeu a teoria do heliocentrismo e, com ela, fundou a astronomia moderna.

William Shakespeare Ingls, (15541616) considerado por muitos o maior dramaturgo que j existiu. Entre as suas obras mais conhecidas esto: Hamlet, Macbeth, Otelo e Romeu e Julieta.

volta de 1442, ou a chegada de Cristovo Colombo Amrica (1492). Independentemente deste ponto inicial, o importante reconhecer que entre os sculos XV e XVI ocorreram transformaes cruciais que atingiram praticamente todos os nveis da existncia social dos povos europeus em geral e, em especial, os habitantes das regies centro-ocidentais da Europa (FALCON, 2000, p.23). Alm disto, poderamos olhar para os cus e escolher mais outro ponto de partida. Ao publicar Sobre a revoluo das esferas celestes, em 1543, o astrnomo polons Nicolau Coprnico (1473-1543), ajudou a transformar a concepo do universo. um tempo marcado ainda pela passagem da transcendncia imanncia, no qual se promove o surgimento de uma nova concepo no estabelecimento da verdade, dona de linguagem prpria e leis, e no mais apenas a verso revelada e eclesistica. Nesta inquieta mar de mudanas, ganha fora a secularizao. Em diversos campos do saber, observa-se a diminuio das sombras da Metafsica e da Teologia, campos dominantes e centralizadores at ento. Lentamente, em certos casos de modo bastante discreto, avana uma nova concepo terrena e humana de mundo. A verdade, agora, pode e deve ser atingida principalmente atravs do uso da razo. Como dir um personagem de William Shakespeare (1554-1616), a causa escrava de memria, violenta ao nascer e provisria (SHAKESPEARE, 2000, p.98). Ou seja, os motivos, os sinais, as comparaes, as novas rotas comerciais, os novos modos de se portar socialmente... Tudo isto se desenha na ampla tela em que se pinta a Idade Moderna. Mas tudo pode ser tambm provisrio, alterado pelas metamorfoses contnuas que os novos tempos trazem. E tais mudanas arquitetam uma espcie de bifurcao ideolgica. De um lado, a religio; do outro, as luzes (pensemos no pice que ser o sculo XVIII). Aqui, neste imenso terreno do tempo que abarca a transio feudalismo/capitalismo, a verdade estar ao alcance do homem, e no mais ser algo reservado a uns poucos clrigos. Mas vamos com calma. O sentimento religioso, o misticismo, o irracional no desaparecem. Alis, convivemos com tudo isto hoje em dia. Homens, mulheres e crianas ainda morrem por intolerncia religiosa mundo afora. A diferena, possvel de se perceber j no nascer desta tal Idade Moderna, est no fato de que nela a religio no mais a nica instncia de explicaes. Outros campos, como a economia e a poltica, apresentam transformaes graduais, mas signicativas. Reforcemos: as coisas ocorrem de maneira lenta. E assim, aos poucos, nas sociedades ocidentais, foi havendo uma tomada de conscincia quanto modernidade nascente, em cujo seio j se vislumbra, indecisa, a teoria do progresso (FALCON, 2000, p.11). O resultado deste conjunto de transformaes a formao de uma sociedade moderna e distinta daquelas que lhe haviam precedido.

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Essa tal Idade Moderna: transio para novos tempos, novos mundos

Aula

Talvez uma coisa valiosa a ser dita inicialmente que modernidade e Idade Moderna no so a mesma coisa. da viso desta nova sensibilidade, desta conscientizao, deste novo esprito chamado modernidade, que se desprende a concepo da Histria Moderna como uma poca dessemelhante. Hugh R. TrevorNesta obra falaremos, como se pode perceber, basicamente da Europa Roper Ocidental. ali que as mudanas cruciais acontecem. H.R. Trevor-Roper, H i s t o r i a d o r ao proceder uma caracterizao da Europa Moderna, nos apresenta a ideia britnico (1914de modernidade como uma continuidade com cortes. Conforme Trevor- 2003) que se dedicou a estudar a Roper, o perodo 1500-1800 marcado pelo progresso. Tempo iniciado Idade Moderna na pelo Renascimento e encerrado pelo Iluminismo, sendo este uma derivao Inglaterra e o nado primeiro. Os dois processos possuem, portanto, vnculos essenciais. zismo alemo. Mas trata-se de um progresso irregular, muito pouco suave: h perodos de acentuada regresso, e quando o progresso geral recomea aps essa regresso, no se retoma necessariamente nas mesmas reas (Trevor-Roper Apud BERUTTI, FARIA, MARQUES, 2003, p.10). Segundo arma Colin McEvedy, certamente cada sculo teve suas recesses e colapsos, e algumas vezes numa dada rea a Itlia e a Espanha so exemplos disso pode ter retrocedido durante longo perodo. Entretanto, se consideramos a Europa como um todo ou o norte da Europa em particular, a prosperidade, a instruo e o conhecimento aumentaram sculo aps sculo no nosso perodo (McEVEDY, 2007, p.8). Ora, a Idade Moderna experimenta diversas fases. O mundo europeu sado das crises que atingem pases como Inglaterra, Frana no nal do sculo XV tambm a Europa Ocidental que v nascer o sculo XVI experimentou um progresso quase geral, poca de uma expanso quase universal. Porm, j no sculo XVII observa-se uma crise profunda, um problema que atinge de maneiras diferentes a maior parte da Europa. Podemos dizer que entre 1500 e 1620, aproximadamente, o continente europeu vivenciou a Idade da Renascena. Nestes tempos, a liderana econmica provinha do Sul da Itlia e Espanha. Uma liderana tambm intelectual. O italiano era um idioma a ser aprendido e as cidades italianas eram referncias fundamentais nos negcios do mundo conhecido. Alis, a Idade Orbis Universalis, de 1512. Mapa do veneziano Jernimo Marini. Moderna marcada por cidades que se Provavelmente esta a primeira carta geogrca a localizar o Brasil (antes Vera Cruz, Santa Cruz, dos papagaios ou mesmo alternam como centrais: Gnova, Veneza, del brazille). Inuenciado pelos rabes, o autor o construiu com Florena, Roma, Lisboa, Madrid, Londres orientao para o Sul. http://www.novomilenio.inf.br/santos/ e Paris ditam economia, produzem novos mapa83.htm acesso em 23 out.2009.11

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Histria Moderna I

saberes, estabelecem doutrinas religiosas, disputam o status de do mundo . Por sua vez, o perodo que vai de 1620 a 1660 envolveu revolues. Principalmente na Inglaterra, ocorrem transformaes cruciais. A monarquia controlada, enquanto o Parlamento e a burguesia ampliam seus poderes. Finalmente, entre 1660 e 1800, o Velho Mundo conheceu os tempos do Iluminismo. Graas a isto, a liderana intelectual passa Frana, Inglaterra e Holanda. Regies mediterrneas se viram para o norte em busca de ideias. Transio para novos mundos, novos tempos. Entre os sculo XV e XVIII, a Europa mudou. Aos poucos, os muitos espaos dominados por senhores feudais deram lugar a territrios organizados sob o controle de um Estado, de um corpo de leis e de um exrcito feitos para servir a um rei. Algumas das diversas mudanas ocorridas nestes dias sero estudadas mais adiante.

CONCLUSOO curso de Histria Moderna I, razo do conjunto de aulas que ser apresentado neste livro, tem como alvo reexes sobre as transformaes experimentadas pela Europa entre meados do sculo XIV e o sculo XVIII. O objetivo apresentar de maneira sumria as alteraes na viso de mundo, na geograa, na poltica e na economia, de forma a ressaltar este perodo como um momento de transio acentuada, marcado pela emergncia de Estados organizados, pela diminuio do poder da Igreja e pela ascenso do individualismo e da razo como aspectos centrais da vida em sociedade.

RESUMOA Idade Moderna compreende um perodo de mudanas ocorridas entre os sculos XV e XVIII. As transformaes ocorrem, por exemplo, na geograa, com a descoberta de novas terras e mares, na poltica, com o fortalecimento do poder real, na religio, com a Reforma Protestante, assim como nas artes, com o Renascimento. Tais mudanas, por suas particularidades, estabelecem esta mesma poca como um tempo de transies, pois as concepes tpicas do medievo ainda no esto plenamente superadas, mas tambm no so mais hegemnicas. Trata-se de um momento de ascenso da Europa e de seus Estados como os mais poderosos do globo terrestre. A partir da Europa, uma srie de mudanas ocorrer em diferentes esferas das sociedades.

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Essa tal Idade Moderna: transio para novos tempos, novos mundos

Aula

ATIVIDADEA partir do que foi visto nesta aula, escreva por quais motivos podemos armar que a Idade Moderna envolve um tempo de transies.

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COMENTRIOS SOBRE A ATIVIDADEA Idade Moderna foi um perodo de transies por todas as alteraes nela vivenciadas. Ele possui uma periodizao varivel (os manuais de Histria indicam momentos diferentes para o seu incio e o seu trmino), mas percebe-se que o cerne das suas transformaes est entre os sculos XV e XVIII.

AUTOAVALIAOEsta atividade exigir do aluno algo bsico para um historiador: a capacidade de sntese. O texto desta aula inicial oferece informaes diferenciadas. Ao se esforar para condensar aquilo que foi dito na aula em poucas linhas, o aluno exercita a capacidade de criticar e estabelecer um sentido ao que foi lido. Por isto, importante que haja bastante ateno na confeco desta atividade. Ela, inclusive, ser fundamental quando for necessrio realizar uma reviso ou preparar um texto sobre o assunto.

REFERNCIASBERUTTI, Flvio, FARIA, Ricardo, MARQUES, Adhemar. Conceito de modernidade. In: Histria Moderna atravs de textos. 10 ed. So Paulo: Contexto, 2003 (Coleo textos e documentos, 3), p. 9-21. FALCON, Francisco Jos Calazans, RODRIGUES, Antnio Edmilson M. Rodrigues. Tempos Modernos: ensaios de histria cultural. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000. HARMAN, P.M. A Revoluo Cientca. Trad. Srgio Bath. So Paulo: tica, 1995. (Srie Princpios). McEVEDY, Colin. Atlas de Histria Moderna (at 1815). Trad. Bernardo Jofly. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. REZENDE, Cyro. Sistema econmico comercial. In: Histria Econmica Geral. 3 ed. So Paulo: Contexto, 1997, p. 67-86. ROTTERDAM, Erasmo. De Pueris (Dos Meninos)/A Civilidade Pueril. So Paulo: Escala, S/D. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Adriana J. Buarque. So Paulo: Universo Livros, 2007.13

Histria Moderna I

FILMOGRAFIA RECOMENDADABESSON, Luc. Joana DArc. Frana, 1999. 124 min. Sinopse: Em meio Guerra dos Cem Anos nasce Joana DArc (Milla Jovovich). Muito religiosa, ao crescer ela acredita ter a misso de libertar seu pas da dominao inglesa. Assim, com 19 anos, Joana liderar o exrcito francs contra os inimigos. Suas vitrias como guerreira, entretanto, no a livraro de um destino cruel. Observaes: O lme enfoca acontecimentos importantes na histria da Guerra dos Cem Anos. Joana DArc (1412-1430), iletrada, mstica e apaixonada por sua terra, representada como uma mulher que beira a loucura. O lme pode despertar debates sobre o poder da f e da religiosidade na formao de um povo. A retomada de Reims por Joana, a fragilidade da gura real e as manipulaes em torno desta personagem tambm podem ser exploradas atravs desta pelcula.

Capa do DVD do lme Joana DArc. Fonte: http://www.sebodomessias.com.br.

KAPUR, Shekhar. Elizabeth. Inglaterra, 1998. EUA, 125min. Sinopse: Com a morte de Maria, Elizabeth coroada rainha da Inglaterra. Seu pas encontra-se com diculdades nanceiras, seus inimigos no acreditam na capacidade da nova soberana em realizar as mudanas necessrias no reino dividido entre a f catlica e a protestante. Elizabeth enfrentar intrigas palacianas, as inquietaes e os problemas ligados ao campo religioso. Observaes: O lme enfatiza o desempenho dos espanhis no sentido de estabelecer uma ligao poltica entre as coroas espanhola e inglesa. Pode ser utilizado para abordarmos as prticas que caracterizam o Estado absolutista. As representaes existentes no lme buscam evidenciar a ritualstica da corte.Capa do DVD do lme Elizabeth. Fonte: http://movieobserver.les.wordpress.com.

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AulaGUERRAS, PESTE E FOME:A FORMAO DO SISTEMA ECONMICO COMERCIAL

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METAApresentar a conjuntura de crises produzidas no sculo XIV e suas relaes com o surgimento de um novo comportamento diante da poltica, economia e religio.

OBJETIVOSAo nal desta aula, o aluno dever: identicar as crises experimentadas pelos europeus no sculo XIV; destacar a importncia da desagregao do sistema econmico funcional, pautado nas incumbncias sociais de clrigos, dos senhores de terras e dos servos;

PR-REQUISITOSNoes de Histria Econmica. Leituras da aula anterior. Conhecimentos gerais sobre a crise do medievo. Noes sobre a geograa da Europa. 1

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1- Cerco de Orlans (Jules Eugne Lenepveu, 1886-1890), pintura romntica representando Joana DArc na Batalha de Orleans. O Cerco de Orleans (de 12 de outubro de 1428 a 08 de maio de 1429) marcou a primeira grande vitria de Joana DArc na Guerra dos cem anos e o incio do declnio ingls nos outros estgios da guerra; 2- Ilustrao na Bblia de Toggenburg (1411), em que um sacerdote reza por dois doentes com peste negra. (Fontes: 1 e 2 - http://pt.wikipedia.org)

Histria Moderna I

INTRODUOJ ao nal do sculo XIII a Europa estava em crise. A depresso experimentada resultava de um crescimento fomentado pela adoo de inovaes tcnicas. Lembremos: o arado representava uma ferramenta com ampla diferena nos resultados das colheitas da Europa. Mas o salto na produo de alimentos, cada vez maior e de melhor qualidade, exigiu um alargamento constante de zonas agricultveis. Portanto, a contnua expanso de reas de cultivo era a nica forma vivel de manter a economia funcionando bem. Nesta segunda aula estudaremos como, neste momento de crise, podemos observar mudanas que promovero novos arranjos sociais, estabelecero novos modos de organizar os negcios e lanaro as bases para as aventuras alm-mar, assim como facilitaro a concentrao do poder nas mos dos reis europeus. O organograma seguinte ilustra as relaes de dependncia entre os trs principais segmentos do medievo. A funcionalidade de cada grupo social acabou duramente abalada. Cabia aos servos produzir, aos cavaleiros defender dos males desta vida, e aos clrigos garantir a proteo contra as foras do alm. Porm, durante as crises, os cavaleiros pouco puderam fazer. O mesmo pode ser dito dos clrigos. A produo esteve longe do esperado. O conjunto de problemas apresentados a seguir ser fundamental para fraturar um modo de manter a economia. Ao mesmo tempo, estas crises abrem as portas para prticas comerciais inditas e, juntamente com elas, para a chegada de novos personagens sociais.

Lavrar, cuidar da terra, garantir o po. Eram estas as atribuies fundamentais dos servos. Elas garantiam aos cavaleiros a tranqilidade necessria para cumprir as suas: proteger os seus senhores e aliados em guerras, evitar os saques, vencer torneios, honrar suas famlias. Por fim, aos clrigos estava reservada a tarefa de proteger a sociedade no universo sobrenatural. Orar era a sua principal incumbncia. Assim, orando, os clrigos asseguravam a proteo divina ao povo. A partir das crises ocorridas na Baixa Idade Mdia, esta sociedade de funes tripartidas entrou em declnio.

UMA EUROPA MENOR...No sculo XIV a Europa diminuiu. Ainda assim, a populao do continente continuou a crescer at cerca de 1310. Apenas com o advento de fomes violentas e generalizadas, resultando em uma desorganizao das atividades agrrias, o crescimento populacional paralisou. Uma primeira coisa a ser observada que o Velho Continente experimentou mudanas climticas, aliadas a desastres naturais, conitos armados frequentes e a uma consequente reduo populacional. Neste mesmo perodo, dois outros problemas aigem os europeus: por

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Guerras, peste e fome: a formao do sistema econmico comercial

Aula

um lado, havia a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Este conito envolveu trs importantes regies econmicas: Inglaterra, Frana e Flandres; por outro, a traumtica experincia da Peste Negra (1347-1350), trazendo a morte por um mal desconhecido. E o que era difcil, cou pior graas aos problemas provocados pelas crises demogrfica e monetria. A partir de tantos problemas, um novo panorama econmico ndou estabelecido. A crise Agrria

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Os problemas climticos (nevascas, chuvas torrenciais ou secas prolongadas) A Guerra dos Cem Anos (1337-1453) foi na verdade um conjunto foram essenciais para abalar gravemente de confrontos blicos entre Frana e Inglaterra. Os ingleses, embora militar, tiveram nos a produo agrcola europeia em ns dos apresentassem maior poderresistncia. Os confranceses adversrios com grande capacidade de itos foram, em parte, quatrocentos. Porm, no bastasse a fora motivados por disputas por regies de relevncia econmica, como da natureza, sempre difcil de ser controla- a regio de Flandres. Esta longa srie de batalhas conheceu perodos de interrupo dos combates e mesmo paz. da e prevista em suas aes, ainda possvel Fonte: http://www.guerras.brasilescola.com observar as contribuies humanas para a construo de uma crise talvez sem precedentes nos campos da Europa. Entre os aspectos ligados a governos e comerciantes, esto as guerras constantes envolvendo regies como Frana, Pennsula Ibrica, Esccia, Irlanda, Itlia, Alemanha, a zona do Bltico. Tudo isto provocou grandes destruies nos campos. Um dos resultados de tanta devastao foi a tendncia de baixas no preo do trigo a partir de 1350. Claro, houve excees (1361-1362 e 1374-1375, por exemplo). Porm, entre 1350 e 1450, as baixas no cereal chegam a 35% na ustria, 63% na Inglaterra e 73% na Rennia. O trigo era (na verdade, ainda ) um alimento fundamental na vida do europeu. Por conta disto, a crise agrria fomentou uma srie de graves problemas. Como os de um nico novelo, as diculdades apareceram: as ms colheitas provocaram surtos de fomes. Tamanha penria, incerteza e desespero levaram populaes ao abate generalizado de animais domsticos. Fragilizados, subnutridos, homens e mulheres sucumbiram s epidemias. A Crise Demogrca O grande problema para a demograa em meados do sculo XIV foi a Peste Negra. Entre 1348 e 1350, o mundo experimentou uma pandemia (epidemia em grandes propores) de uma doena que cruzou mares e montanhas, vinda da sia, atingindo a Europa impiedosamente. Era a Peste Negra. Mortfera na maior parte dos casos, a doena exerceu papel crucial no rumo da vida econmica do sculo XIV.

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Histria Moderna I

Giovanni Boccaccio Escritor humanista italiano. Admirador de Dante Aligheri, publicou biograas de mulheres ilustres, poemas, mas ganhou notoriedade com Decamero, um divertido conjunto de cem novelas, elaborado entre 1348 e 1353. As novelas inlfuenciam, ainda hoje, muitos escritores. O texto revela forte crtica s instituies medievais e centraliza os valores humanos.

A Peste Negra foi um problema menor em regies de baixa densidade populacional. Por isto mesmo a doena atingiu mais aos pobres que aos ricos, pois estes puderam fugir dos locais contaminados. Por se propagar mais facilmente em lugares com maior concentrao de pessoas, a peste fez-se mais presente em ncleos urbanos do que nos campos. Cidades como Florena e Provena, por exemplo, enfrentaram grandes diculdades com a doena. E como se desaasse a fora da Igreja, a enfermidade arrastou-se at mosteiros e abadias. As comunidades religiosas, repletas de membros, foram alvos fceis da doena. Vamos a outro exemplo. Um livro produzido sob os impactos da peste pode ajudar a entender os efeitos produzidos pela doena sobre os corpos e o imaginrio dos europeus. Vejamos o que nos deixou Giovanni Boccaccio (1313-1375) em sua obra Decamero. verdade, a citao longa. Mas no reclame, pois ela vale a pena:...tnhamos atingido j o ano bem farto da Encarnao do Filho

DECAMERO. Atravs da literatura, podemos observar evidncias dos problemas da Baixa Idade Mdia e das rupturas que se anunciavam.

de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florena, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itlia, sobreveio a mortfera pestilncia. Por iniciativa dos corpos superiores, ou em razo de nossas iniqidades, a peste, atirada sobre os homens por justa clera divina e para nossa exemplicao, tivera incio nas regies orientais, h alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansvel, fra de um lugar para outro; e estendera-se de forma miservel, para o Ocidente. Na cidade de Provena, nenhuma preveno foi vlida, nem valeu a pena qualquer providncia dos homens. A praga, a despeito de tudo, comeou a mostrar, quase ao principiar a primavera do ano referido, de modo horripilante e de maneira milagrosa, os seus efeitos. A cidade

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Guerras, peste e fome: a formao do sistema econmico comercial

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cou puricada de muita sujeira, graas a funcionrios que foram admitidos para esses trabalhos. A entrada nela de qualquer enfermo foi proibida. Muitos conselhos foram divulgados para a manuteno do bom estado sanitrio. Pouco adiantaram as splicas humildes, feitas em nmero muito elevado, s vezes por pessoas devotas isoladas, s vezes por procisses de pessoas, alinhadas, e s vezes por outros modos dirigidas a Deus. (...) A peste, em Florena, no teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saa pelo nariz fosse quem fosse, era sinal evidente de morte inevitvel . Em Florena, apareciam no comeo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchaes. Algumas destas cresciam como mas; outras, como um ovo; cresciam umas mais outras menos; chamava-as o populacho de bubes. (...) ...tiveram os meus olhos (como h pouco se armou) certo dia, entre outras vezes, a seguinte experincia: as vestes rtas de um pobre sujeito, morto por essa doena, foram jogadas rua. Dois porcos, de incio, segundo costumam fazer, sacudiram-nas com o focinho, depois as seguraram com os dentes, cada um deles esfregando-as na prpria cara. Apenas uma hora depois, aps uma convulses, como se tivessem ingerido veneno, os dois porcos caram mortos por terra, sobre trapos em to m hora jogados rua. (BOCCACIO, 1971, p.13--15).

2As faces da peste negra: 1. Bubnica aparecimento de inchao (bubes), principalmente nas axilas e virilhas, sendo mortfera em 70% dos casos; 2. Septicmica o bacilo Pasteurella pestis passa diretamente para a corrente sangunea, letal em 100% dos casos; 3. Pulmonar uma espcie de pneumonia (preferencialmente em estaes frias), mortfera em quase 100% dos casos. Depois dessa pandemia, houve vrias epidemias da mesma doena: cinco no sculo XIV; dez no sculo XV (Cf. REZENDE, 1997)

EFEITOS DA PESTE NEGRAOs lamentos de Boccaccio no so toa. Anal de contas, a pandemia matou entre 25% e 35% da populao europeia. Seus efeitos foram desiguais. Se, por exemplo, na Alemanha as mortes no foram to acentuadas, na Frana quase 70% da populao morreu. Num triste efeito domin, uma queda demogrca to abrupta e de ampla abrangncia simplesmente aprofundou a crise agrria e desarticulou governos e negcios. Ocorre um completo desequilbrio entre oferta e demanda, e entre preos e salrios (REZENDE, 1997, p. 71). Ou seja, a crise demogrca alimentou um colapso no campo. Os prejuzos provocados por ambas foram acompanhados de perto por mais outro grande problema: a crise monetria. E assim problemas se acumularam. A baixa na mo-de-obra, provocada pela perda de trabalhadores para a peste e para as guerras, forou o aumento dos salrios. O Velho Mundo comeou a experimentar o alargamento do mercado consumidor e a difuso da mo-de-obra assalariada. Com o tempo, um novo cenrio de crescimento comeou a se desenhar. Tudo isto pressionava por meios de pagamentos. Porm, a Europa carecia de metais amoedveis. A depresso chegou.

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DEPOIS DA DEPRESSOComo se pode perceber, as trs crises (demogrca, agrria e monetria) em conjunto provocaram um abalo geral sobre um sistema que se expandia h trs sculos. Podemos dizer que foi uma crise de crescimento. Desestabilizada por tantos problemas a economia senhorial, baseada no critrio de funcionalidade, no se sustentava mais. Em meio aos tormentos, os clrigos pareciam no mais proteger. Alis, como escreveu o j citado Boccaccio, eles sequer se protegiam. E os senhores de terra, cavaleiros em suas armaduras reluzentes, o que dizer deles? Suas funes de defesa tambm no eram mais plenamente cumpridas. Por m, os servos, formadores do ltimo elo da cadeia, encontraram espao para ganhar autonomia. A crise generalizada abriu brechas para que parte dos excedentes dos senhores acabasse chegando aos servos, com salrios inesperadamente altos, e promovessem um acmulo de riquezas. Portanto, a partir das crises do sculo XIV, podemos considerar alguns aspectos como fundamentais para a constituio do cenrio dos sculos XV e XVI. So eles: 1) falncia da funcionalidade dos senhores laicos e da Igreja. Isto, sem dvida, contribuiu para a centralizao administrativa lanada pelos monarcas dos Estados Nacionais. A Igreja perdeu espao. 2) crescente intromisso dos Estados na vida econmica. A interveno estatal na economia comea a se tornar uma prtica comum, expediente que no experimentar grandes retrocessos desde ento. Observemos, por exemplo, as interferncias estatais nos nveis de preos e salrios (na Frana, em 1349 ou na Inglaterra, em 1351). 3) apogeu das sociedades comerciais privadas, que assumiram um carter tipicamente capitalista. A necessidade de desenvolver as atividades comerciais esbarra nas diculdades com os meios de pagamento. Temos, assim, uma crescente procura de metais nobres e a reativao do comrcio de artigos de luxo do Oriente. Quais as consequencias de tudo isto? Uma indita aliana, fruto das necessidades dos monarcas e da astcia de comerciantes e nobres acaba delineando-se. Burgueses e Estados aproximam-se e estabelecem ajudas mtuas. Os reis necessitavam de nanas para bancar uma burocracia civil e militar visando taxar adequadamente suas populaes. Como contrapartida, os negociantes recebem apoio dos Estados e formam as sociedades comerciais privadas, grandes companhias de comrcio. Mas ateno: isto no deve levar concluso apressada de que se montou um Estado a servio da burguesia nascente. Trata-se antes de uma relao tensa, na qual os dois lados procuram tirar o melhor proveito disto.

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CONCLUSOTudo isto foi acompanhado por um processo fundamental, algo que modicou o jeito de lidar com a terra na Europa. A partir de um redimensionamento visando maior produtividade, as atividades agrcolas foram regionalmente especializadas e promoveram o surgimento de reas de monoculturas. A policultura europeia dava lugar a um uso mais racional dos solos. Com isto nascem reas exclusivamente dedicadas cultura de cereais, outras onde predomina a vinha, reas dedicas s plantas txteis e tintoriais, e outras onde a pecuria se faz absoluta (REZENDE, 1997, p. 78,). Deste modo, com as regies especializadas em determinadas culturas, alterou-se tambm a concepo que se tinha sobre o trabalho campons. Agora, preciso considerar a qualidade deste servio, no apenas a quantidade dele. A construo de um cenrio de terrenos especializados, a mudana de policulturas para monoculturas teve resultados importantes. Anal, elas contriburam para que os eixos econmicos tradicionais perdessem seu lugar. O Mediterrneo e o Bltico no mais alimentavam a Europa. Assistese decadncia dos Eixos econmicos tradicionais. A frica e a sia se tornam destinos imprescindveis e a obteno de novas rotas, necessidade inevitvel. Assim, a Europa Centro-Atlntica surge para comandar a economia continental.

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RESUMOO incio da Idade Moderna apresenta srios problemas herdados do Medievo. A inecincia dos mtodos de cultivo no campo, aliada s sucessivas guerras e doenas do perodo contriburam para a diminuio populacional na Europa. Com isso havia menos braos para cuidar da lavoura. Tal problema alimentou diculdades econmicas no Continente. Nesse sentido, a peste negra merece destaque, tendo sido responsvel pela morte de 1/3 da populao europeia. Um resultado crucial deste conjunto de crises que assolou o Velho Continente ao m do sculo XIV foi a fratura no tradicional critrio de funcionalidade entre servos, senhores e clrigos.

ATIVIDADE1. A obra de arte pode ser uma interessante fonte para a Histria. Como tudo que o homem tocou, a arte pode ajudar a analisar o passado. Claro, no a v-lo como numa fotograa, mas para ajudar a entender o que as pessoas faziam, como agiam, sentiam e interpretavam os problemas e acontecimentos do seu tempo. Sabendo disto, procure informaes sobre manifestaes artsticas do perodo aqui analisado e, aps isto, escreva sobre os possveis sinais de crise que voc conseguiu identicar nelas.

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COMENTRIOS SOBRE A ATIVIDADEEntre as obras enfocando o perodo, percebemos uma diversidade de possibilidades de abordagem. Porm, merece destaque a frequncia de imagens ligadas ao universo sobrenatural. A morte se faz presente na arte, numa ntida inuncia dos tempos da peste negra.

AUTOAVALIAOA atividade de pesquisa exigir do aluno capacidade de observao e reexo sobre o contedo da aula. Ser preciso ter ateno para interpretar as imagens e proceder a consideraes sobre como os artistas representavam as mudanas trazidas nos momentos nais do medievo.

REFERNCIASREZENDE, Cyro. Sistema econmico comercial. In: Histria Econmica Geral. 3 ed. So Paulo: Contexto, 1997. p. 67-86 McEVEDY, Colin. Atlas de Histria Moderna (at 1815). Trad. Bernardo Jofly. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. BOCCACIO, Giovanni. Decamero. 2ed. Trad. T.Guimares. So Paulo: Abril Cultural, 1971. BERUTTI, Flvio, FARIA, Ricardo, MARQUES, Adhemar. A crise do feudalismo. In: Histria Moderna atravs de textos. 10 ed. So Paulo: Contexto, 2003 (Coleo textos e documentos, 3).p.22-37. Filmograa recomendada: MONICELLI, Mario. O Incrvel Exrcito de Brancaleone . Itlia/Espanha/ Frana, 1966. 120 min. Sinopse: Brancaleone de Norcia (Vittorio Gassman), um atrapalhado cavaleiro, contratado como lder de um pequeno e diversicado bando: inicialmente so trs saqueadores, mas depois se juntam ao grupo um negociante judeu, um nobre de poucas posses. Os contratantes de Brancaleone esto com um pergaminho (na verdade roubado de um cavaleiro ferido) que lhes dava a posse do reino de Aurocastro. Contudo, a aventura at o tal feudo muito mais complicada do que parece. Observaes: Esta comdia italiana apresenta representaes bastante interessantes sobre os problemas da Baixa Idade Mdia. A peste negra, as guerras, a fome, assim como a decadncia da cavalaria so abordados na pelcula. O poder da Igreja e os problemas em torno da f tambm so explorados pelo diretor. A narrativa inspirada em D.Quixote (1605), de Miguel de Cervantes.22

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Capa do DVD do lme O Incrvel exrcito de Brancaleone. Fonte: http://blog3.opovo.com.br

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AulaNAVEGAR PRECISO: A EXPANSO ULTRAMARINA EUROPEIA E A EDENIZAO DO NOVO MUNDO

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METAApresentar os fatores fundamentais que contriburam para as Grandes Navegaes do sculo XVI.

OBJETIVOSAo nal desta aula, o aluno dever: identicar os principais fatores contribuintes para as Grandes Navegaes do sculo XVI; reconhecer a importncia de um ideal de propagao da f e da crena em um Paraso terreal entre os europeus nas Grandes Navegaes; perceber os desdobramentos das Grandes Navegaes para o mundo do sculo XVI, considerando as transformaes econmicas, tecnolgicas e culturais nelas envolvidas.

PR-REQUISITOSLeituras sobre a crise do Medievo. Noes de Histria Econmica.

Mapa representando a Rota da Seda conjunto de caminhos que liga a costa do mar Mediterrneo China, atravessando 7 mil km entre os territrios dos atuais Iraque, Ir, Turcomenisto, Uzbequisto, Afeganisto e Paquisto, e por onde eram transportadas mercadorias do Extremo Oriente para a Europa e o mundo rabe. A tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos (1453) inviabilizou o comrcio europeu pela rota, aumentando a necessidade da expanso martima. (Fonte: http://pt.wikipedia.org)

Painel representando Bartolomeu Dias e seus marinheiros em meio a uma tormenta, antes de chegar ao Cabo da Boa Esperana. Dias foi o primeiro europeu a navegar para alm do extremo sul da frica, dobrando, em 1488, o Cabo das Tormentas (futuro Cabo da Boa Esperana) e chegando ao Oceano ndico a partir do Atlntico. Antes, para se chegar ndia era preciso cruzar o Mar Mediterrneo, passando por Gnova e Veneza. A viagem de Bartolomeu Dias, continuada posteriormente por Vasco da Gama, abriu o caminho maritimo para a ndia. (Fonte: http://pt.wikipedia.org)

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INTRODUOEu vi um cu novo, e uma terra nova. Porque o primeiro cu e a primeira terra se foram, E o mar j no . E eu Joo, vi a cidade santa, A Jerusalm nova, que da parte de Deus descia do cu, Adornada como uma esposa ataviada para seu esposo. (Apocalipse, XXI, 1 e 2) Navegar preciso, viver no preciso. quase impossvel no lembrar dos versos de Fernando Pessoa (1888-1935), quando falamos das Grandes Navegaes. Sim, pois o sculo XVI foi o sculo do transporte martimo. As diculdades das viagens por terra, a necessidade de novos terrenos, de especiarias e ouro, impunham aos homens dos seiscentos a urgncia em lanar-se ao mar. Navegar era preciso. Viver, nem tanto. So vrias as razes para navegar no sculo XVI. A primeira delas encontra-se na busca por alimentos. Anal de contas, a Europa passara por crises terrveis. Naqueles tempos, a fome e as crises de subsistncia atormentavam soberanos e comerciantes. Portugal, pioneiro nas aventuras, passou por aproximadamente 21 crises de subsistncia entre os sculos XIV e XV. Primeiro, foram os rios que tomaram viajantes das rotas terrestres: Sena, Meno, Reno, Danbio, Loire, Saona, Rodano, P. Depois, o afastamento das costas se torna uma exigncia daqueles que buscavam novas terras agricultveis, metais preciosos, especiarias e uma melhor sorte em suas vidas. O salto destes marujos rumo ao desconhecido, ao mar temido, ao tenebroso inimigo de suas mulheres, compreende um empreendimento comercial, sem dvida alguma. Negociantes da Itlia e de outros pases se envolvem diretamente no nanciamento das viagens dos reinos ibricos. Porm, preciso considerar outras motivaes. Entre elas, a concepo das novas terras como espaos do sagrado, a crena em um novo den merece ser considerada. O perodo denominado pelos historiadores de descobrimento compreende desdobramentos das signicativas mudanas ocorridas nas estruturas da sociedade europeia. A efervescncia do Mercantilismo, a gestao e o fortalecimento dos Estados Caravelas portuguesas.Fonte: http://www.novomilenio.inf.br

A frase, inspirada na afirmao em latim Navigare necesse; vivere non est necesse, na verdade de outro autor . A frase de Pompeu, (10648 a.C ) general romano. Segundo Eduardo Martins, foi o general romano Pompeu, que precisava levar trigo de uma provncia para Roma e exortou os marinheiros a zarparem, num dia de tempestade e vento muito forte. Ou seja, navegar, para cumprir a misso, era mais importante que viver. MARTINS, Eduardo. O que eles no disseram. Histria Viva. Ano I, n.5, mar.2004.p.17 Fernando Antnio Nogueira Pessoa foi um poeta e escritor lusitano. N a s c e u e m o rreu em Lisboa. considerado, juntamente com Lus Vaz de Cames (1524-1580), um dos principais expoentes da lngua portuguesa.

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Nacionais, a construo de novos tipos de embarcaes as caravelas mais rpidas e seguras, a aquisio de novas tcnicas e instrumentos o astrolbio, o quadrante, a bssola -, assim como a criao da Escola de Sagres (localizada em Cabo So Vicente, Portugal) alteraram denitivamente a arte de navegar. Pioneiro nas Grandes Navegaes, Portugal, de frente para o oceano, o lugar ideal para se controlar a economia-mundo como escreveu Fernand Braudel (1996, p. 22). Em 1415, Ceuta atingida Astrolbio. e inaugura o avano europeu na Fonte: http://www.educ.fc.ul.pt caa de novos territrios. Nesta em preitada, Portugal teve na Espanha seu grande rival durante os primeiros tempos do processo de descoberta. Ainda em 1942, o genovs Cristvo Colombo, apropriando-se da tecnologia de Sagres, nanciado pela coroa espanhola, antecipou-se aos lusitanos e atingiu o novo continente na altura da Amrica Central. Anos depois, em 1500, Cabral pisou terras americanas mais ao sul. Dentro desse perodo, muitos Quadrante. portugueses e espanhis possuram Fonte: http://www.astro.mat.uc.pt uma viso edenizada do novo mundo. Observem-se os relatos dos viajantes, diversas obras literrias ou mesmo certas ilustraes da poca. perceptvel, em considervel parte destes, a imagem da Amrica como a de um paraso terreal. Cristos e especiarias, teria respondido Vasco da Gama quando questionado sobre aquilo que buscava na ndia, em 1519. Ora, embrenhando-se pelos mares do Oeste, os portugueses acreditavam Bssola. Fonte: http://blig.ig.com.br que encontrariam tanto soberanos

3As caravelas foram inventadas entre os sculos XV e XVI. Durantes as Grandes Navegaes, portugueses e espanhis utilizaramnas. Eram barcos de cerca de 30 metros (tamanho mximo), com capacidade de transporte para 50 toneladas. Eram de fcil navegao, possuam 3 mastros e utilizavam velas latinas, maiores do que aquelas utilizadas nas tradicionais naus. Este tipo de vela permitia navegar contra o vento e, deste modo, evitar contratempos em regies desconhecidas pelos exploradores. A embarcao poderia tambm carregar artilharia.

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Cristvo Colombo foi um navegador italiano, provavelmente nascido em Gnova. H divergncias quanto ao seu ano de nascimento (1437 ou 1448) e mesmo sobre o seu nome. Sob o patrocnio de Fernando II de Arago e Isabel I de Castela, chamados Reis Catlicos da Espanha, Colombo liderou a expedio que atingiu o continente americano em 12 outubro de 1492. O Objetivo inicial da sua viagem era chegar s ndias. Chegou a receber os ttulos de Grande Almirante do Mar Oceano, Vice-Rei e Governador Perptuo das ndias, e Cavalheiro da Corte dos Reis de Espanha. Faleceu em 1509.

quanto povos de f crist. Porm, para desencanto dos exploradores, a predominncia era de mulumanos. Ao chegar ndia, Vasco da Gama percebeu que navegava em mare islamicum. O Oceano ndico era um terreno do Isl e o que ele, Vasco, encontrou? Tutti i mori della Mecca, ou seja, todos moradores de Meca (BRAUDEL, 1996, p.22). Percebe-se que o poderio comercial mulumano ameaava Portugal. O controle por eles exercido sobre o comrcio de especiarias (canela, nozmoscada, gengibre, pimenta, aafro etc.), assim como em entrepostos que serviam de escala na viagem destes produtos rumo Europa, alimentara a fria dos exploradores europeus. Em momentos como estes, caiu o vu de encantamento com as descobertas que pareciam envolver as navegaes. Em seu lugar, apareceu o massacre. Foi assim, por exemplo, entre 1502 e 1505. Acompanhado de pesada armada, Vasco da Gama ataca, cobra tributos, dispara os seus canhes vorazmente. Mutila. Vence os seus inimigos. A violncia passa a ser um expediente recorrente nas aes dos exploradores. Uma tripulao inteira queimada em meio aos avanos de Vasco e suas embarcaes. O paraso estava distante daquela terra de pagos. Tantas atrocidades evidenciam o empenho portugus em deter o avano mulumano, em desarticular as suas rotas comerciais. E pouco a pouco Lisboa avana: Quloa, Sofala, Moambique, Socotor, Somo Quso... O mar percorrido, demarcado e controlado pelos lusitanos.

Orbis universallis, de 1552. Autor: Sebastian MUNSTER (1589 1552). Biblioteca Nacional. Disponvel em http://objdigital.bn.br

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A crena do europeu na existncia de um paraso terreal, at ento oculto, foi fundamental nas transformaes ocorridas a partir do sculo XV. Instrumento iniA fora dos signos do maravilhoso, herdada da mentalidade medieval, cialmente utilizado atravessou os mares e, num primeiro instante, sacralizou o novo continente. para determinar a Seria possvel, falar em um mundo fascinado pelo maravilhoso, pelo posio dos astros sobrenatural? Poderamos falar em homens abismados, extasiados com no cu. Foi utilizaaquilo que foi visto na selva brasileira, por exemplo? Cabe, em meio ao do para a navegao racionalismo dos nossos dias, falar em medo ou angstia nas histrias do martima a partir identificao das descobrimento e colonizao? Talvez no. Mas se deixarmos nossos olhos posies das estreatentos aos escritos de alguns personagens daqueles tempos, algo a mais las. O astrolbio do assunto venha tona. Poderemos encontrar sinais de uma idealizao era composto por um disco de lato das novas terras. Tal edenizao manifesta-se em textos diferenciados. A Amrica graduado na borda, apresenta-se, inicialmente, como uma anttese do continente europeu. um anel de suspenso e num ponteiro Aqui, at os criminosos tornavam-se virtuosos. Um mercador orentino chamado medicescreveu que aqueles mesmo que na Espanha foram conhecidos como ho- lina. Poderia ser mens de m vida, ao chegarem s ndias mudaram totalmente de condio, utilizado em emtornaram-se virtuosos e procuraram viver civilizadamente. A concluso barcaes e mesmo do negociante italiano no poderia ser outra: mudando o cu, mudam de carregado para terra natureza (GERBI, 1996, p.433). Distantes dos problemas do solo ibrico, firme. Depois, foi substitudo por um o europeu deslumbra-se com as belezas tropicais. A Europa doente e fria instrumento semelcontrastava com a Amrica, saudvel e de clima ameno. hante denominado Vamos aos exemplos. Entre os historiadores do perodo colonial, a Sextante. escrita caracterstica para o Novo Mundo , salvo raras excees, marcadamente elogiosa. Os trabalhos reetem basicamente duas coisas: 1- a inteno dos autores em construir uma imagem paradisaca da Amrica e mesmo do Brasil; 2- Evidencia-se a a esperana ou a crena na existncia de um paraso terreal num ponto at ento desconhecido. Segundo o padre Antnio Vieira, (1608-1697) depois da primeira criao, Deus no criou, nem cria substncia alguma material ou corprea; porque somente cria de novo as almas, que so espirituais: logo que terra nova, e que cus novos so estes, que Deus tanto tempo antes prometeu que havia de criar?. O prprio Vieira respondeu ao escrever: digo esta nova terra e estes novos cus, so a terra e Padre Antnio Vieira Religioso portugus, nascido os cus do mundo novo descoberto pelos portugueses. Por m o em Lisboa, que se destacou clrigo arremata: esta a terra nova e o cu novo, que Deus tinha como escritor e orador jesuta. Tornou-se gura inuente na prometido por Isaas (VIEIRA, 2001, p.597). Antes do sacerdote, poltica do sculo XVII. o j citado Cristvo Colombo apresentou argumento semelhantes autor de uma obra respeitvel. aos reis espanhis: ao levar adiante a empreitada dos ndios, nem a Alguns dos seus textos mais conhecidos esto em Serrazo, nem a matemtica, nem os mapas me tiveram qualquer utilidade: mes (1679), publicados em cumpriram-se apenas as profecias de Isaas (VEJA, 1991, p.76). So- vrios tomos. Faleceu na Bahia, em 18 de julho de 1697. bre a existncia do paraso terreal, conhecida a promessa divina ao personagem bblico: porque eis aqui estou em que crio uns cus novos,

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e uma terra nova: e no persistiro na memria as primeiras calamidades, nem subiro sobre o corao (ISAAS, LXV, 17). A partir da crena neste possvel paraso, a Amrica parecia ser o local que Deus assegurou construir. Observe-se tambm que Colombo assinava no formato greco-latino Xpo Ferens, identicando-se com Cristo, cuja abreviatura era X. Deste modo, ele insinuava que desde o batismo estava ligado a So Cristvo e, como este santo, nascera designado a grandes travessias. Sendo assim, a possibilidade de haver encontrado o jardim delicioso, a cidade santa, a Jerusalm nova (conforme GNESIS II, 8) no pareceu impossvel queles que primeiramente aportaram na Amrica. Conforme arma Srgio Buarque de Holanda: como nos primeiros dias da criao, tudo aqui era dom de Deus , no era obra do arador, do ceifador ou do moleiro. Na sua Histria da Amrica Portuguesa, de 1730, Rocha Pita (16601738) chegou a armar que enm o Brasil o paraso terreal descoberto. Descrevendo nossas terras, o ufanismo constante no autor baiano: o sol em nenhum outro hemisfrio tem raios to dourados e vastssima regio, felicssimo terreno em cuja superfcie tudo so frutos, em cujo centro tudo so tesouros (PITA, 1976, p.19) Com as primeiras exploraes da nova terra, alguns elementos simblicos reforaram a ideia de um jardim delicioso: a ausncia de invernos com nevascas e chuvas de granizo certamente contribua para a edenizao da Amrica. Como a ora, a fauna brasileira era tambm motivo de espanto a muitos colonos. No apenas o papagaio, pssaro que conforme Srgio Buarque de Holanda, era associado na ndia ao den e ali no faltava quem situasse, por sua vez, o den bblico, contribuiria naturalmente para sua incluso entre as aves paradisacas (HOLANDA, 1959, p.236), mas tambm o beija-or (que Ferno Cardim julgou ser uma borboleta que se convertia em pssaro formoso) e o louva-a-deus, para muitos colonos capaz de se converter em vegetal, alm de diversos outros animais e insetos, foram alvos de especulaes, servindo de argumento para a edenizao Novo Mundo. Isto, provvel, relaciona-se com o fato de que durante o Renascimento e ao longo do sculo XVIII, a tendncia para se procurarem em todas as coisas os signicados ocultos, longe de constituir uma especialidade hispnica e sobretudo castelhana, estava generalizada para todo o mundo ocidental (HOLANDA, 1959, p.248). Nem mesmo os choques entre os colonos e os nativos destruram, por completo, esta imagem. Ainda que para muitos a descoberta da Amrica acabasse reduzindo-se a uma troca de males (a gripe do Velho Continente pela slis do Novo) o evento cristalizou-se como o instante de contato do europeu com um mundo paradisaco. Para alguns, a antropofagia indgena, a sua permanncia na idade do ouro, eram o nico aspecto lamentvel no empreendimento das Grandes Navegaes (PETER e REVEL, 1976,

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p.141-159). Mesmo com todos os problemas, a Amrica era - um novo den de vastido desmesurada, um milagre com que o homem preso nos limites do espao pigmeu da Europa, mal pode sonhar, sentenciaria, no sculo XIX, o irlands Thomas Moore (GERBI, 1996, p.257). E se a descoberta de tal paraso por um lado motivou a vinda de tantos outros europeus, por outro auxiliou na arquitetura da imagem pecaminosa do nativo: diante de inmeras riquezas sem, contudo, saber aproveit-las. Conquistar o paraso tornava-se, portanto, ideologicamente justicvel. Dominar era preciso.

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CONCLUSOCertamente esta edenizao sofreu fortes abalos com a efetiva colonizao. As montagens dos aparatos burocrticos e militares de Portugal e Espanha no Novo Mundo zeram este trabalho. Tambm certo que esta sacralizao da Amrica no foi o nico motivo para a descoberta e colonizao do novo continente. Muito se deve s mudanas econmicas, polticas e tecnolgicas. Quo longe se iria sem as caravelas? Todavia, tal idealizao possui grande valor. A crena dos ibricos num mar tenebroso abriu as portas para a f num paraso terreal e nos movimentos para encontr-lo acabaram por domar as guas temidas e rebatiz-las de Atlntico.

RESUMOAs Grandes Navegaes foram um empreendimento de muitas motivaes. A necessidade de alimentos; a busca por terras agricultveis; a necessidade de ouro, prata e especiarias ajudam a explic-la. Contudo, precisamos levar em conta outras facetas desta aventura. Uma delas o carter de uma cruzada em favor da propagao da f levada adiante por muitos defensores das viagens. A armao da existncia de um Paraso em terra se adequou ao novo universo aberto aos europeus que chegaram primeiro Amrica. Porm, aconselhvel evitar buscar fatores explicativos isoladamente. A aventura das Grandes Navegaes requer uma explicao ampla, na qual todos os aspectos aqui citados sejam considerados.

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ATIVIDADE1. Como se fazia uma viagem no sculo XIV? Quanto tempo levava para viajar de um pas ao outro da Europa? E da Europa a qualquer outro continente conhecido? E no sculo XV? E no XXI? Faa uma pequena pesquisa sobre isto, levantando dados sobre as formas de transporte humanas no tempo. Depois, construa um quadro comparativo colocando ao lado das informaes a fonte em que cada uma delas foi obtida. Depois, reita: o que mudou? Quais as vantagens e desvantagens de cada tempo?

COMENTRIOS SOBRE A ATIVIDADEAs Grandes Navegaes marcam um avano fundamental na histria dos transportes. As inovaes reunidas para este empreendimento do sculo XVI propiciaram embarcaes mais rpidas e seguras. No sculo XXI, apesar de todos os avanos tecnolgicos, nem sempre confortvel viajar. Alm disto, a velocidade ou o modo como somos obrigados a viajar muitas vezes retiram de ns a possibilidade de apreciar paisagens, de comparar construes, de usar a viagem para reetir.

AUTOAVALIAOEsta atividade prope-se a colocar para o aluno a necessidade de comparar formas de transporte, sem necessariamente hierarquiz-las. Ela objetiva motivar no leitor o desejo de observar os provveis ganhos resultantes das transformaes tecnolgicas em diferentes tempos, mas tambm coloc-lo para reetir sobre os desdobramentos das viagens. Sugere ainda um procedimento bsico de pesquisa, com a coleta de informao e sua apresentao em forma escrita.

REFERNCIASBBLIA SAGRADA. EDELBRA: Erechim / RS, 1979. BRAUDEL, Fernand. Civilizao Material, Economia e Capitalismo: sculos XV e XVIII. So Paulo: Martins Fontes, 1996. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: histria de uma polmica (1750-1900). So Paulo: Companhia das Letras, 1996. HOLANDA, Srgio Buarque de. Viso do Paraso. So Paulo: Companhia Editora Nacional. 1977. O JULGAMENTO DE Colombo. Veja. 16 out. 1991. p. 68-88

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PETER, Jean Pierre e REVEL, Jaques. O Corpo: o homem doente e sua histria. In: LE GOFF, J. e NORA, P. (org.). Histria: novos Objetos. RJ Francisco Alves, 1976.p. 141-159. PITA, Sebastio da Rocha. Histria da Amrica portuguesa. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1976. VIEIRA, Pe. Antnio. Sermes. So Paulo: Hedra, 2001. v.I Filmograa indicada:

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SCOTT, Ridley. 1492: a conquista do Paraso. Frana/Espanha/Estados Unidos/Inglaterra, 1992. Sinopse: O lme narra a luta de Cristvo Colombo (Gerard Depardieu) para convencer a Coroa Espanhola a nanciar sua expedio com destino s ndias. Aps conseguir o apoio da Rainha Isabel de Castela (Sigourney Weaver), Colombo parte em busca de ouro e especiarias. Porm, acaba encontrando muito mais do que esperava. Os desaos do mar so apenas o comeo da aventura e tragdia em que se converteria a sua vida. Observaes: Obra de fotograa cuidadosa, com cenas impactantes. O lme de Ridley Scott focaliza muito mais Colombo, o homem, do que propriamente a complexa teia de fatores que possibilitaram as Grandes Navegaes. Na pelcula, Colombo, representado como um idealista, algum obstinado e tolerante. O lme pode ser visto como um confronto entre a imagem idealizada das novas terras e a sua posterior transformao em territrio maldito, Capa do DVD do lme 1492: a conquista permeado de mortes, traies e tristeza. Ele (Fonte: http://images.quebarato.com.br) do paraso. possui seqncias que podem ser analisadas separadamente em aulas e seminrios. preciso estar atento para a maneira estereotipada com que alguns indgenas so apresentados.

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AulaO RENASCIMENTO

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METAApresentar caractersticas fundamentais do Renascimento Artstico experimentado pela Europa, privilegiando as experincias na Itlia.

OBJETIVOSAo nal desta aula, o aluno dever: identicar os principais traos que caracterizam o chamado Renascimento; Reconhecer a relevncias das mudanas produzidas pelo Renascimento na vida europeia do sculo XVI; perceber a importncia da histria da arte como elemento articulador dos contedos na abordagem da Histria Moderna.

PR-REQUISITOSLeituras da aula anterior.

Vista do teto da Capela Sistina/Vaticano, afresco de Michelngelo, 1508-1512. (Fonte: http://www.territorioscuola.com)

Histria Moderna I

Ernst Hans Josef Gombrich (Viena,1909-Londres,2001). Historiador da arte. Escreveu A Histria da Arte, livro originalmente publicado em 1950, trabalho fundamental para quem se dedique crtica ou histria da arte. Com linguagem acessvel e elegante, o livro foi um sucesso, vendendo milhes de cpias e sendo traduzido em aproximadamente 30 idiomas. Entre os ttulos que recebeu em reconhecimento ao seu trabalho, foi nomeado Membro do Imprio Britnico, em 1966, e ordenado Cavaleiro em 1972.

INTRODUONo existe arte, existem apenas artistas. deste jeito que Sir Ernst Gombrich, conhecido historiador do assunto, dene a importncia das manifestaes artsticas como reexos da vida em sociedade (GOMBRHICH, 1999, p.16). Olhar atentamente para as manifestaes artsticas de um povo tambm estudar aspectos da sua vida cotidiana, dos movimentos da sua economia e religiosidade. Porm, atravs da arte no nos deparamos exatamente com um espelho da realidade, um desenho ntido e simtrico do passado. Encontramos sinais, traos, pistas deixadas pelo tempo. Por isto, importante o estudo do Renascimento Artstico ocorrido na Europa entre os sculos XV e XVI. Anal de contas, o Renascimento marca o processo de construo do homem moderno e da sociedade contempornea. So tempos em que se percebem sinais cada vez mais claros de individualismo, esboado em ns de Idade Mdia, do Racionalismo, e de uma ambio ilimitada, tpicos de comportamentos mais imperativos e representativos do nosso tempo, nos lembra Nicolau Sevcenko (SEVCENKO, 1985, p.5). O mesmo conjunto de mudanas eleva a razo abstrata como base para o Estado Moderno. Juntemos a tudo isto um inegvel desejo de liberdade e autonomia de esprito. Um desejo de investigao, de explorao do homem e de suas coisas...

O Leviat desenhado por Abraham Bosse para a obra de Thomas Hobbes. Foi no Renascimento que emergiu, ainda que embrionariamente, o Estado moderno pacicando as guerras feudais, unicando moedas, impostos, leis, fronteiras e aduanas, e instituindo uma moral prpria e uma razo diferente do resto da sociedade: a razo de Estado. Hobbes, juntamente com Nicolau Maquiavel e Jean Bodin, participa da trade fundadora do conceito de Estado moderno, em particular, e do pensamento poltico moderno em geral. (Fonte: http://projetophronesis. les.wordpress.com)

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ANTECEDENTESO lsofo pr-socrtico Herclito de feso (540 a.C.-470 a.C) defendia a ideia de que tudo ui. Assim, como exemplo, lembrava que um homem nunca entra mais de uma vez no mesmo rio, pois nunca ser o mesmo homem, tampouco o mesmo rio. Ora, se considerarmos este mesmo princpio de mudanas contnuas, opostas, mas ao mesmo tempo complementares, compreenderemos um pouco do impacto das idas e vindas dos europeus por suas prprias terras, mas tambm das suas imerses nas culturas do Oriente. Uma crescente procura de produtos obtidos em feitorias comerciais ncadas no Oriente ocorre paralelamente s turbulncias sociais e econmicas vividas pela Europa ao nal do medievo. As Cruzadas tambm provocaram um empreendimento comercial. Esta efervescncia dos negcios serviu como base para a gestao de um novo estilo de vida e de um novo tipo social. Ainda desajeitado, mas arrogante e exigente, nascia o burgus. Vejamos o que diz Sevcenko: A nova camada dos mercadores enriquecidos, a burguesia, procurava de todas as formas conquistar um poder poltico e um prestgio social correspondentes a sua opulncia material (SEVCENKO, 1985, p.5). Sem saber ao certo como sentar-se adequadamente mesa, sobre como portar-se em certas ocasies, esta personagem invade a vida social europeia. E, como toda invaso, a chegada da burguesia provocou rebulios. Em outras aulas, vimos que as mudanas vividas durante o incio do Renascimento encontram pelo menos trs fatores explicativos: a Peste Negra, a Guerra dos Cem Anos (1346-1450) e as revoltas populares (consulte a aula 2). Juntemos a isto a adoo do trabalho assalariado como prtica nas esferas produtivas. Subproduto deste avano o surgimento de uma concorrncia entre os indivduos, o fortalecimento do individualismo, a partir da ruptura de antigos laos de dependncia. Senhores e servos so lentamente eclipsados por patres e empregados.

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O RENASCIMENTO EM DUAS CIDADES: FLORENA E VENEZANo sculo XVI, Florena era um centro do humanismo. Rica cidade, considerada o palco mais prodigioso da efervescncia renascentista, Florena vivenciou o amor dos artistas ao belo, a sua idealizao. Viu nascerem artistas como Michelangelo Buonarotti. Entre os orentinos logo se deniu uma das mais inuentes correntes do pensamento humanista: o platonismo, cheio de consequncias para toda a histria das idias e da arte do perodo (SEVCENKO, 1985, p.18). Para os platonistas, a beleza era a manifestao do divino. A busca pelo belo representava o maior exerccio

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de virtude, o mais puro e sincero ato de adorao a Deus. Mas no se deve achar que eles considerassem a arte simples imitao da natureza. Os artistas adeptos do platonismo pretendiam antes a superao da natureza pela perfeio absoluta. Diferentemente da perspectiva adotada em Florena, em Pdua, sob a inuncia de Veneza, um grupo de intelectuais se mostrou inspirado pelo aristotelismo. Desligaram-se das preocupaes teolgicas, interessados nos estudos dos fenmenos naturais. Os paduanos chegam a questionar os dogmas da Igreja - negaram a criao, a imortalidade da alma e os milagres, abraaram ardorosamente o naturalismo e defenderam a supremacia natural da razo. Todavia, o Renascimento no pode e no deve ser visto como uma ruptura abrupta ou como um movimento unicado e homogneo. Precisamos considerar um conjunto de alteraes ocorridas na Europa h certo tempo. Mudanas que, conjugadas, desembocam neste movimento sem antecedentes, diversicado em suas manifestaes, varivel de cidade para O H u m a n i s m o cidade. Contudo, o ncleo deste processo, sem dvida, pode ser apontado cristo Conforme no Humanismo. Mas o que foi o Humanismo?Nicolau Sevcenko, segundo essa corrente, o Cristianismo deveria centrar-se na leitura do evangelho (...), no exemplo da vida de Cristo, no amor desprendido, na simplicidade da f e na reexo interior. Era j o anseio da reforma da religio, do culto e da sensibilidade religiosa que se anunciava e que seria desfechada de forma radical, fracionando a cristandade, por outros humanistas, como Lutero, Calvino e Melanchton (SEVCENKO, 1985, p.20).

HUMANISTAS CONCEITUAO INICIALO Humanismo foi um movimento de renovao. De acordo com Sevcenko, o movimento representava a busca pela renovao dos estudos tradicionais e possua razes no sculo XIV, baseado no programa dos studios humanitatis (estudos humanos), que incluam a poesia, a losoa, a histria, a matemtica e a eloqncia, disciplina esta resultante da fuso entre a retrica e a losoa (SEVCENKO, 1985, p.13). Portanto, o Humanismo compreendeu um esforo em modicar a produo do saber, inclusive aquele oriundo das universidades medievais, fortemente inuenciadas pela preocupao em enfatizar trs campos: o Direito, a Medicina e a Teologia. Ao se voltarem para a crtica ao saber produzido com a inteno de renovar e atualizar o conhecimento, os humanistas ajudaram a modicar a posio do homem dentro dos debates do perodo. Atravs deste exerccio crtico, vemos emergir o antropocentrismo, ou seja, o homem e suas experincias passam a ser o centro das preocupaes. Os valores humanos passam a servir de coordenadas. diante destas referncias que Macbeth, personagem de William Shakespeare, pondera: Atrevo-me a fazer tudo o que prprio de um homem. Quem se atreve a mais, homem no o (SHAKESPEARE, 2003, p.164).

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O MECENAS SURGEA cultura burguesa, se quisesse se impor, tinha que combater a cultura medieval. Deste modo, na Itlia, Frana e Pases Baixos, a prtica se repete: muito mercador bem-sucedido queria legar sua imagem aos vindouros; muito burgus respeitvel que fora eleito vereador ou burgomestre desejava ser pintado com as insgnias do seu cargo (GOMBRICH, 1999, p.413). Os artistas serviam para isto. As prsperas famlias de burgueses enriquecidos com o comrcio, os novos prncipes, os grandes clrigos disponibilizam parte de seus recursos para as artes. Graas a isto, poemas foram escritos, afrescos inventados, palcios construdos, igrejas e catedrais erguidas, esttuas talhadas. As cidades se embelezaram. Para o historiador Michael Baxandall, o termo mecenas soa restritivo. Devemos entender o mecenas como um sujeito ativo deste processo, algum determinante e no necessariamente benevolente: podemos cham-lo o cliente. A melhor pintura produzida no sculo XV era realizada sob encomenda por um cliente que exigia sua execuo conforme suas especicaes. Entre os empreendimentos possveis, a pintura de quadros era o investimento relativamente mais baixo. Mas era algo que conferia visibilidade signicativa s aes dos clientes. Com o tempo, apurado pelas contnuas encomendas, pela concorrncia frente aos seus rivais nos crculos sociais, o cliente, o mecenas, ndou sendo um comprador de habilidades (BAXANDALL, 1991, p.11, 31). Entre os vendedores de habilidades, um dos mais importantes precursores do Renascimento italiano foi Giotto di Bondone (1266-1337). Ele nos ofereceu uma pioneira ruptura com padres medievais. Suas pinturas apresentam um esforo para estabelecer certa individualidade nas sionomias, nas vestes. Tomemos como exemplo o afresco A Lamentao (1303-1310), pintado na Capella degli Strovegni, em Pdua. H nela uma busca emocionada por expresses, por dotar a imagem no apenas de uma dimenso de volume, de espao, mas por impor pintura um carter dramtico. Embora no sejam imagens to sosticadas quanto veremos depois em artistas como Leonardo Da Vinci (1452-1519), Giotto fez algo extremamente difcil. Ele descobriu caminhos, preparou o terreno para as mudanas que a arte sofreria nos anos do Renascimento.A Lamentao. Fonte: http://naturalpigments.com

4Giotto nasceu em Colle Vespignano, nas cercanias de Florena,Itlia. Aluno do conhecido artista toscans Cimabue, foi, alm de pintor, arquiteto.

Leonardo di ser Piero da Vinci, nasceu em Vinci, na regio da Toscana, provncia de Florena. Foi discpulo de Verocchio, respeitado pintor orentino. Foi um renascentista de mltiplas ocupaes: engenheiro, arquiteto, botnico, msico, escultor, matemtico, pintor, poeta, cientista. Trabalhou a maior parte da vida em Milo, mas viveu ainda em Roma, Bolonha, Veneza e na Frana, pas onde faleceu. Eis apenas alguns dos seus trabalhos mais famosos: Mona Lisa (1503-1507), A ltima Ceia (1495-1498), A Adorao dos Magos (1481-1482), A Virgem dos Rochedos (1483-1486).

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ARTE DE PESQUISA E INTERAOA arte do Renascimento arte de pesquisa. arte feita de maneira meticulosa, cheia de inovaes, marcada por experincia, ousadia, progressos tcnicos. Uma destas inovaes o estabelecimento da perspectiva como primordial na construo das obras. Graas ao uso gradativamente mais frequente da perspectiva, ampliam-se os quadros em que a sensao obtida a de que se pode ir alm da pintura. Os pintores deliciam seus clientes com a iluso da profundidade. Claro, isto no foi feito de uma hora para outra. Foram muitas as experincias, as tentativas para chegar a um equilbrio. Os renascentistas se abrem para a investigao da natureza. Novas cores, novas tcnicas surgiram. Os artistas observam pssaros, cavalos. Ousam at a dissecar cadveres. E qual o resultado de tanto esforo? Na interpretao de Nicolau Sevcenko, o artista ascende no mais como arteso, mas como cientista. E, com isto, abre-se um enorme fosso entre a arte voltada para a elite e presa a todos esses procedimentos cientcos e a arte popular, a que se habituou chamar de primitiva (SEVCENKO, 1985, p.32). Porm, Peter Burke nos convida a olhar com um pouco mais de calma esta paisagem e perceber as relaes contnuas e frutferas entre os dois tipos de arte, a de elite e a popular. Conforme Burke, estudos recentes da cultura popular armaram, de maneira muito razovel, que mais proveitoso estudar as interaes entre a cultura erudita e a cultura popular do que tentar denir o que os separa. O historiador britnico observa que vrias barreiras excluram as pessoas do mundo da arte e da literatura renascentista. Destacam-se: 1) a lngua; 2) a alfabetizao; 3) Barreiras econmicas (BURKE, 2006, p.179-180). Por isto, ele considera que possvel observar um processo interativo de mo dupla: por um lado, h a propagao das ideias e formas da elite para o povo; do outro, artistas (pintores e escritores) foram buscar inspirao na herana popular. Ora, lembramos que muitos artistas no eram letrados e aqueles que sabiam ler, muitas vezes no dominavam idiomas como o latim e o grego. Isto faz uma diferena considervel, pois implica em leituras diferenciadas para a constituio das pinturas e esculturas. Portanto, ao falarmos da produo renascentista, devemos ir alm da apropriao realizada nesta interao, mas tambm considerar a capacidade dos artistas, mesmo sem o pleno domnio da escrita, em recepcionar e a assimilar ideias. E o mesmo deve valer para o seu pblico e clientes (BURKE, 2006, p.180).

Raffaello Santi (em italiano) nasceu em Urbino em 1483, mas ficou conhecido como integrante da chamada Escola de Florena. Foi discpulo de Perugino.sendo reconhecido como pintor e arquiteto. Trabalhou na corte dos papas Jlio II e Leo X. Suas obras so conhecidas pela delicadeza e busca da perfeio, da harmonia no traado e no uso das cores. Faleceu em Roma, em 1520. Destacam-se entre suas principais obras: Madona e o Menino entronados com Santos (1504-1505), O casamento da Virgem (1504), A bela jardineira (1508), A Escola de Atenas (150910), Transfigurao (1518-20).

A NOVA POSIO DO ARTISTAPodemos dizer ainda que com o Renascimento nasce o orgulho de ser artista. Ou pelo menos, h nele um reconhecimento indito desta person-

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agem. Anal de contas, pela primeira vez os pintores se atrevem a pintar a si mesmos, inserem-se em cenas clssicas, desfrutam desenvoltos de uma nova posio social. Reproduzidos em tinta, telas e paredes, os artistas so parte de um grupo seleto antes composto apenas por santos, nobres e pelos grandes senhores burgueses. assim em pinturas como A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio (1483-1520). L esto pintados Bramante (Euclides),

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A Escola de Atenas. Fonte: http://caminhodomeio.les.wordpress.com

Michelangelo (Herclito), Leonardo (pintado como Plato) e o prprio Rafael, como Apeles. O mesmo pode ser vislumbrado na pintura As bodas de Can, de Paolo Veronese (1528-1588). Baseada na narrativa bblica (Joo, Captulo 2, versculos 1 a 11), a pintura, feita entre 1562 e 1563, apresenta o cenrio da festa. Cristo est nela. Ao centro, uma orquestra anima a festa. Mas quem so os msicos? Os pintores Jacopo Bassano (1510-1592), tocando um corneto soprano, Ticiano Veccelli (1490-1576), no contrabaixo, Tintoretto (15181594) ao violino (ou lira da braccio) e o prprio Veronese, na viola tenor. Quanta ousadia! como As bodas de Can. Fonte: http://casoual.les.wordpress.com se Veronese seguisse de

Paolo Veronese nasceu em Verona, no nordeste da Itlia. Seu nome de batismo era Paolo Caliari, mas ele acabou incorporando o topnimo relativo ao seu lugar de origem. Entretanto, a produo artstica de Veronese se deu em Veneza. Chegou a ser convocado para dar esclarecimentos sobre suas pinturas Inquisio, mas no foi preso. conhecido pela propriedade e habilidade com que explora as cores, pela harmonia conferida s suas imagens. Alm de As bodas de Can, destacamos A ceia na casa de Levi (1573).

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Hamlet o personagem central da tragdia, de mesmo nome, de autoria de William Shakespeare. O texto provavelmente foi escrito entre 1599 e 1601. Situada na Dinamarca, a trama narra a tentativa de vingana de um jovem prncipe diante do assassinato do seu pai, planejado por sua prpria me e por seu tio. O texto de Shakespeare nos coloca diante dos problemas que envolvem a loucura, a corrupo, os itinerrios da vida diante da vingana, da solido, da moralidade e da ambio. a pea de Shakespeare mais encenada no mundo.

perto as ponderaes de Macbeth. Ele era homem e podia se atrever. O prestgio evidenciado pela presena dos artistas nas obras acima mencionadas ganhou reforo a partir de obras pioneiras como as de Lorenzo Ghiberti (1378-1455), que publicou a sua autobiograa, e Giorgio Vasari (1511-1574), autor de A Vida dos Artistas, primeira biograa coletiva sobre os renascentistas. Sobre Ticiano, o baixista de Veronese, contava-se que o Imperador Carlos V, em visita ao artista, teria se abaixado para apanhar o seu pincel. Embora no seja possvel comprovar, s o estabelecimento desta possibilidade indicia a valorizao do artista, capaz de ser envolvido em histrias deste tipo. Mas preciso pensar tambm que este reconhecimento teve consequncias para o prossional da arte. A diviso social do trabalho uma delas. Diversos artistas e aprendizes trabalham na composio de uma mesma obra. Nela, o artista mais famoso, aquele que de fato fora contratado para realiz-la, cuida muitas vezes do esboo, das partes mais visadas, da assinatura. Mas como ter tempo para qualquer contemplao em uma sociedade que, agora, regida por uma concorrncia brutal? Tintoretto e Michelangelo tornaram-se homens isolados. Michelangelo jamais escondeu a sensao de isolamento, de incompreenso. Nas palavras de Sevcenko, a solido irremedivel do artista moderno um passo para o seu encerramento na torre de marm de seu ofcio e seu mergulho na alienao completa (SEVCENKO, 1985, p.34).

CONCLUSOO Renascimento compreendeu um momento fundamental na Idade Moderna. Aps ele, realmente no havia mais como separar arte e cincia, ambas representavam a vanguarda da aventura burguesa da conquista de um mundo aberto e de riquezas innitas (SEVCENKO, 1985, p.32). Marcado pelo individualismo e pelo racionalismo, heranas do sculo XII, o Renascimento foi um movimento complexo, um conjunto de manifestaes que expressam a busca por uma explicao humanista da realidade. Observamos, abismados, no desencanto de guras como Michelangelo e Hamlet, as marcas e os dilemas do homem moderno. Os renascentistas trazem consigo as contradies dos novos tempos.

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RESUMOO Renascimento artstico, que teve como epicentro a Itlia, marca o processo de valorizao do homem moderno. Demarcado cronologicamente entre os sculos XV e XVI e agregando inquietaes de perodos anteriores, ele envolve um processo marcado pela ascenso individualismo, do antropocentrismo, do racionalismo e de uma ambio ilimitada. Transformados em guras fundamentais aos projetos de reis, papas e burgueses, os artistas aparecem como guras de destaque na sociedade. Os pintores, por exemplo, pintam auto-retratos, inserem-se em cenas clssicas, desfrutam desenvoltos de uma nova posio social.

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ATIVIDADE1. Nesta aula tratamos do Renascimento. A partir do que foi apresentado, elabore um quadro sintetizando as principais caractersticas do Renascimento.

COMENTRIO SOBRE A ATIVIDADEO Renascimento pode ser caracterizado como um movimento artstico iniciado na Itlia. Foi marcado por forte racionalismo e expressou a ascenso do individualismo. A gura do artista passa a ocupar posio de destaque social. Podemos indicar no mesmo movimento uma intensa rivalidade entre os artistas. As obras de arte produzidas no perodo so caracterizadas por inovaes tcnicas e, no caso das pinturas, pelo uso da geometria.

AUTOAVALIAOEsta atividade requer do aluno cuidado para a organizao das ideias contidas no texto. necessrio elencar os aspectos fundamentais do Renascimento, mas ao mesmo tempo preciso reetir sobre o que os torna centrais. Isto , em que medida tais caractersticas so mesmo do Renascimento e at que ponto elas so uma apropriao de outros momentos da histria europeia.

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REFERNCIASBAXANDALL, Michael. O Olhar Renascente: pintura e experincia na Itlia da Renascena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. BURKE, Peter. Cultura erudita e cultura popular na Itlia renascentista. In: Variedades de histria cultural. Trad. Alda Porto. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006. p.177-194 ELIAS, Nobert. A Civilizao como Transformao do Comportamento Humano. O processo civilizador: uma histria dos costumes. V. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994. p. 65-108. GOMBRICH, Ernst H. A Histria da Arte. 16ed. lvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 1999. SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. So Paulo: Atual, 1985. SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta/Macbeth/ Otelo, o mouro de Veneza. Trad. Beatriz Vigas-Faria. So Paulo: Nova Cultural, 2003. Filmograa indicada: REED, Carol. Agonia e xtase. EUA, 1965. 138 min. Sinopse: Aps ser acusado de escrever versos satricos sobre o Papa Jlio II (Rex Harison), Michelangelo Buonarotti (Charlton Heston) recebe uma inesperada incumbncia do Pontce. Jlio II encomenda a ele a pintura do teto da Capela Sistina. Armando no ser pintor, o artista recusa a tarefa, mas v-se obrigado a faz-la. A partir da se desenrola uma batalha entre duas vises de mundo e se narra a construo de uma das maiores obras de arte do mundo ocidental. Observaes: O lme antecedido por um documentrio de 12 minutos. uma tima ferramenta a ser utilizada em sala Capa do DVD do lme Agonia e xtase. Fonte: http://i.s8.com.br de aula. A atuao de Rex Harrison primorosa. O lme apresenta Michelangelo como um artista angustiado, um homem em busca de um ideal de beleza. Contudo, deve-se ter ateno a certas representaes da pelcula, como a insinuao de Bramante, arquiteto de Jlio II, como um vilo. O lme pode ajudar a promover debates tambm sobre as relaes entre o Renascimento e o desencadeamento da Reforma Protestante, pois nele h diversas representaes sobre as diculdades do Vaticano para promover as artes.

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RADFORD, Michael. O Mercador de Veneza. EUA, 138min. Sinopse: Veneza, sculo XVI. Para ajudar ao amigo Bassnio (Joseph Fienes), o mercador Antonio (Jeremy Irons) realiza um emprstimo de trs mil ducados com o judeu Shylock (Al Pacino), aceitando a condio de lhe entregar um pedao de sua prpria carne caso a dvida no seja paga dentro do prazo acertado. Observaes: O lme baseado no texto de Shakespeare. Contando com uma excelente atuao de Al Pacino, ele oferece representaes sobre os preconceitos vividos pelos negociantes judeus, sobre as relaes sociais na nascente Idade Moderna e sobre valores como o individualismo.

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Capa do DVD do lme Mercador de Veneza. Fonte: http://www.peninsulacinemas. com.au

BRANAGH, Kenneth. Hamlet. EUA/ ING., 1996. 242 min. Sinopse: Hamlet (Kenneth Branagh), Prncipe da Dinamarca, retorna ao Palcio de Elsinore e encontra seu tio Claudius (Derek Jacobi) casado com Gertrude (Julie Christie), sua me. Pouco depois, o rapaz v o fantasma de seu pai e dele ouve um pedido de vingana. O velho rei informa ao lho que fora morto por uma trama de sua esposa seu irmo. O prncipe jura vingana ao pai e quando o Claudius e Gertrude mandam vir amigos de Hamlet, para ver o que h de errado com o moo, o jovem prncipe nge estar louco. Observaes: Kenneth Branagh considerado um dos melhores diretores de adaptaes de Shakespeare para o cinema. Capa do DVD do lme Hamlet. Fonte: Ele atua tambm como diretor do lme e http://www.impawards.com no esconde a sua paixo pelo literato ingls. O lme uma boa adaptao, feita de maneira cuidadosa, embora seja longo. Merece ser visto. Pode ter algumas de suas sequncias utilizadas em aulas e seminrios.

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AulaA IGREJA EM TRANSFORMAO:A REFORMA PROTESTANTE

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METAApresentar os acontecimentos que desencadearam a Reforma Protestante na Europa durante o sculo XVI.

OBJETIVOSAo nal desta aula, o aluno dever: enumerar as razes que levaram Reforma Protestante; reconhecer os homens que estiveram envolvidos nas querelas que levaram ao rompimento com o poder papal; destacar os caminhos indicados para a salvao daqueles que se convertessem ao protestantismo.

PR-REQUISITOSLeituras das aulas anteriores. Conhecimentos gerais sobre a institucionalizao da Igreja Catlica no Medievo.

Cena do lme Lutero, de Eric Till, representando o momento em que Martinho Lutero axa suas 95 teses sobre a reforma religiosa na porta da Catedral de Wittemberg, em 1517. (Fonte: http://prayerfoundation.org)

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INTRODUOQuem se dispuser a vericar o sentido da palavra reformar em um dicionrio como o Aurlio, encontrar denies como formar de novo, reconstruir ou emendar e corrigir. Por sua vez, o popular Dicionrio Enciclopdico Ilustrado Larousse denir a palavra reforma como nova organizao, nova forma com a nalidade de aprimoramento (LAROUSSE, 2007, p.2217). Por que tais denies so importantes? Pelo fato de que, ao contrrio do que aparentemente pode parecer, a Reforma Protestante, tema desta nossa aula, no foi um movimento com objetivos de fracionamento. Muito mais voltado para o sentido radical da palavra, isto , corrigir, a Reforma buscava superar decincias de longa data vividas pela Igreja Catlica. Os desdobramentos deste processo, experimentado na primeira dcada do sculo XVI, levaram a uma separao inesperada entre clrigos e ao surgimento de um novo ramo cristo, os protestantes, divididos em trs grandes grupos luteranos, calvinistas e anglicanos. Vejamos como isto de deu. As diversas crises pelas quais a Europa passou desde a chamada Baixa Idade Mdia ajudaram a fragilizar o poder clerical. Guerras, fomes, destruio e diculdades diversas no foram sucientes para que a Igreja reorganizasse sua postura. H tempos padres, bispos e papas estavam afastados de ideais tipicamente cristos como a solidariedade, a simplicidade e a honestidade. Em lugar disto, o fausto parecia ser a marca da Igreja Catlica. E para manter o luxo, as estratgias eram as mais variadas possveis, desde a comercializao de cargos eclesisticos e relquias, at a venda de indulgncias. Atravs desta ltima prtica, uma parte ou at a totalidade dos pecados de um el poderia ser perdoada a partir de determinadas somas em dinheiro. Evidentemente, muitos is e clrigos demonstravam insatisfao com estas negociaes. Mas a Igreja tambm vivenciava problemas de ordem poltica. A formao das monarquias nacionais contribuiu para um incipiente sentimento de pertencimento a um Estado, territrio, lngua e governante, prximo e identicado com seu povo. Deste modo, o Papa era uma gura distante. Um lder que, da Itlia, enviava seus emissrios s terras por ele dominadas apenas para cobrar impostos, arrancar recursos, exaurir nanas, como armou Lucien Febvre (1992, p.87). Instigada por esta situao, a autoridade real entrou em atrito com as determinaes papais. Outro aspecto que alimentou uma reorganizao da Igreja foi a chegada da burguesia como nova e inuente frao social. Cada dia mais importante diante da lgica das monarquias nacionais, os burgueses no encontravam respaldo s suas atividades no discurso da Igreja Catlica que, tendo enriquecido dentro de uma lgica feudal, critica severamente a acumulao de dinheiro, os emprstimos a juros, a obteno de lucro. Tudo

Simonia: a venda de pedaos sagrados. Objetos que supostamente pertenceram aos santos como por exemplo dentes, mechas de cabelo e peas de vesturio eram considerados milagrosos. Isso suscita um lucrativo comrcio na Europa, principalmente porque a maioria das relquias era forjada.

Para se livrar do peso dos pecados, os cristos deveriam confessar e praticar bo