teoria da historia i aula 4

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UNIDADE IV A crítica ao historicismo e ao cientificismo metódico OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM Conhecer as críticas postas ao historicismo enquanto forma de abordagem do processo histórico. Dialogar com a produção filosófica e historiográfica crítica ao Historicismo Alemão nos séculos XIX e XX Ver as diferentes críticas que se efetuam em relação aos fundamentos e à prática da Escola Metódica pela historiografia européia. ROTEIRO DE ESTUDOS SEÇÃO 1 - Concepções Críticas sobre o Historicismo SEÇÃO 2 - A Crítica ao Historicismo Alemão SEÇÃO 3 - A Crítica à Escola Metódica

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aula de história sobre fundamentos da história

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  • UN

    IDA

    DE IVA crtica ao historicismo e

    ao cientificismo metdico

    OBJETIVOS DE APRENDIZAGEMConhecer as crticas postas ao historicismo enquanto forma de abordagem do

    processo histrico.

    Dialogar com a produo filosfica e historiogrfica crtica ao Historicismo Alemo

    nos sculos XIX e XX

    Ver as diferentes crticas que se efetuam em relao aos fundamentos e

    prtica da Escola Metdica pela historiografia europia.

    ROTEIRO DE ESTUDOSSEO 1 - Concepes Crticas sobre o Historicismo

    SEO 2 - A Crtica ao Historicismo Alemo

    SEO 3 - A Crtica Escola Metdica

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    46UNIDADE 4

    PARA INCIO DE CONVERSA

    Depois de voc ter percorrido o longo caminho na construo de uma

    perspectiva consistente sobre o historicismo e a historiografia metdica

    na Europa do sculo XIX, hora de saber que houve, j no prprio sculo

    XIX e tambm no sculo XX, um conjunto de crticas muito duras e

    consistentes contra o historicismo e contra a viso metdico-cientificista

    de Histria.

    Na Seo 1, voc conhecer as crticas postas ao historicismo

    enquanto forma de abordagem do processo histrico, feitas por diferentes

    pensadores europeus.

    J na Seo 2, dialogar com a produo filosfica e historiogrfica

    crtica ao historicismo alemo nos sculos XIX e XX.

    Finalmente, na Seo 3, voc ver as diferentes crticas que se

    efetuam em relao aos fundamentos e prtica da Escola Metdica pela

    historiografia europia.

    um percurso mais complexo, mas de fundamental importncia

    para que voc compreenda as bases da escrita da Histria na

    contemporaneidade, no apenas na Europa, mas tambm aqui no Brasil.

    SEO 1CONCEPES CRTICAS SOBRE O HISTORICISMO

    Nesta Seo 1, da Unidade IV, voc tomar conhecimento do

    embate entre diversas concepes historicistas e crticas ao historicismo

    e constatar que, embora o debate sobre a questo do historicismo seja

    posterior ao perodo estudado nesta disciplina, o sculo XIX, sua anlise

    neste momento fundamental para que se perceba a dimenso do

    pensamento histrico da Escola Alem, dentre outros.

    O historicismo tem suas origens no termo historicismo, que surge

    pela primeira vez possivelmente em 1881, em um trabalho de Karl Werner

    sobre o pensador italiano Giambattista Vico, significando o conjunto de

    posies que, no sculo XVIII, valorizavam o conhecimento histrico, em

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    contraposio ao racionalismo a-histrico cartesiano (WEHLING, 1994,

    p. 13), nomeando um fenmeno j com mais de um sculo de existncia.

    Mais tarde, Ernest Troeltsch associou estreitamente o historicismo

    com o relativismo e o ceticismo, em dois livros da dcada de 1920. Pairava,

    porm, uma grande confuso e um intenso debate sobre o conceito, o que

    leva Heussi, em 1932, a dizer que a confuso tanta que ningum deveria

    utilizar o termo sem antes precisar o que entende por ele (WEHLING,

    1994, p. 15).

    O primeiro livro a abordar a formao do historismo foi o de Friedrich

    Meinecke, Die Entstehung der Historismus (As origens do historismo), de

    1936.

    O tema tambm foi abordado na crtica que os marxistas ocidentais

    e integrantes da escola de Frankfurt fizeram radicalizao introduzida

    no pensamento marxista nas dcadas de 1920 e 1930 pela Segunda e

    Terceira Internacional e pelo marxismo da URSS, que o considerava uma

    cincia universal da histria e da natureza.

    Outro momento de destaque na construo e no debate do conceito

    a apreenso que dele faz Raymond Aron, principalmente em sua

    Introduo filosofia da histria, de 1938, obra que tem como subttulo

    Ensaio sobre os limites da objetividade histrica.

    $ REUD GH 0HLQHFNH SURFXUD PRVWUDU TXH R KLVWRULVPR YROWRXVH HVVHQFLDOPHQWHcontra o jusnaturalismo e todas as formas de racionalismo que procuravam eliminar a GLIHUHQoDHDVLQJXODULGDGHQDKLVWyULDRTXHLPSOLFDYDHPUHFXVDUOHLVH[SOLFDWLYDVSDUDRSURFHVVRKLVWyULFR(OHSUySULRFRPRKLVWRULDGRUHQWHQGLDVHKLVWRULVWDSRUUHFXVDUWDQWRQRUPDVJHUDLVFRPFDUiWHUGHOHLVFLHQWtFDVFRPRDSUR[LPDo}HVWLSROyJLFDVjPDQHLUDGH:HEHU:(+/,1*S

    $ DSUR[LPDomR LPSOtFLWD HQWUH PDU[LVPR H SRVLWLYLVPR IRL FRPEDWLGD SHORV FKDPDGRVPDU[LVWDVRFLGHQWDLVSDUWLFXODUPHQWHQDVFUtWLFDVGH/XFiFNVH*UDVPFLD%XNKDULQ4XDQGR SURFXUDYDP UHFXSHUDU R FDUiWHU KLVWRULFLVWD DTXL VLQ{QLPR GH UHODWLYLVWD GRPDU[LVPRHPRSRVLomRDRTXHOKHVSDUHFLDDUHGXomRGHXPDWHRULDVRFLDOjFLrQFLDQDWXUDOFRPVXDFRQVHTHQWHVXEHVWLPDomRGDVXEMHWLYLGDGHHSRUH[WHQVmRGDFRQVFLrQFLDGHFODVVH1RPHVPRVHQWLGRDYDQoDUDPQRQDOGDGpFDGDGHRVDXWRUHVGDFKDPDGDHVFRODGH)UDQNIXUWSDUWLFXODUPHQWHjpSRFD0D[+RUNKHLPHULJXDOPHQWHUHIXWDQGRDLQWHUSUHWDomRGHWHUPLQLVWD:(+/,1*S

    6XD SURSRVWD HUD D GH ID]HU XPD ORVRD KLVWyULFD RSRVWD DR UDFLRQDOLVPR H DRSRVLWLYLVPR6HPSURFXUDUUHIXWDUH[SOLFLWDPHQWHRKLVWRULFLVPRSURSXQKDVHDDQXODUDOJXQVGHVHXVHIHLWRVFRPRRIDWDOLVPRRFHWLFLVPRHRUHODWLYLVPR>@5HEDWHQGRGHDQWHPmRHYHQWXDLVFUtWLFDVGHDQDUTXLDLQWHOHFWXDORXHFOHWLVPR$URQDUJXPHQWDYDTXHVHXSOXUDOLVPRFLHQWLFDPHQWHYiOLGRVyQmRVHULDDFHLWRSRUDTXHOHVSULVLRQHLURVGHXPDFRQFHSomRWHROyJLFDGDYHUGDGH:(+/,1*S

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    48UNIDADE 4

    Porm o ponto alto e mais radical da polmica sobre o historicismo

    se d com a publicao, em 1944, do livro de Karl Popper, A misria do

    historicismo (POPPER, [s.d.]), que

    Popper, em sua polmica com o historicismo alemo do sculo XIX,

    levanta as suas cinco teses anti-historicistas:

    A crtica de Popper se dirige, ento, Contra todas as posies

    tericas que admitem algum padro para o desenvolvimento histrico,

    isto , contra uma filosofia material da histria que retirasse dela prpria

    seu motor e sua explicao.

    A seguir, sua crtica volta-se contra a tradio iluminista da

    histria, com nfase da refutao s posies de Kant e Hegel, visando

    dois alvos:

    Finalmente, oportuno analisar as contribuies de Adam Schaff e G.

    H. Nadel para a polmica em questo.

    SCHAFF (1982) aborda a questo do historicismo sob o vis marxista,

    com eixo na questo da relatividade do conhecimento. Para ele,

    (QWHQGLD SRU KLVWRULFLVPR DV WHRULDV TXH DGPLWLDP D SUHYLVmR VRFLDO HP WRGDV DVFLrQFLDVVRFLDLVIXQGDPHQWDGDVQDH[LVWrQFLDGHOHLVFLHQWtFDVGHFDUiWHUQHZWRQLDQRLQGLIHUHQWHPHQWH GH SRVVXtUHP RX QmR IHLomR QDWXUDOLVWD 2 DXWRU FKHJD D ELSDUWLU DVFRUUHQWHVKLVWRULFLVWDVHPSUyRXDQWLQDWXUDOLVWDVFRQIRUPHDGPLWDPRXUHMHLWHPDUHGXomRGRVIHQ{PHQRVVRFLDLVDRVELROyJLFRV>@6XDFUtWLFDFRPRHOHPHVPRREVHUYDQmRVHUHIHUHDRFRQMXQWRGRKLVWRULFLVPRLVWRpDRVSUREOHPDVGRFRQKHFLPHQWRKLVWyULFRUHODWLYLVPRDQWLUDFLRQDOLVPRFHWLFLVPRHWFHPVXDVYiULDVDFHSo}HVRQWROyJLFDHSLVWHPROyJLFDPHWRGROyJLFDPDVWmRVRPHQWHDXPDIHLomRHVSHFtFDGHWHVHVVREUHSUHYLVLELOLGDGHKLVWyULFD:(+/,1*S

    2FXUVRGDKLVWyULDpIRUWHPHQWHLQIOXHQFLDGRSHORFUHVFLPHQWRGRFRQKHFLPHQWRhumano; 1mR p SRVVtYHO SUHGL]HU FRP R XVR GH PpWRGRV UDFLRQDLV RX FLHQWtILFRV DH[SDQVmRIXWXUDGRFRQKHFLPHQWRFLHQWtILFR(PFRQVHTrQFLDQmRpSRVVtYHOSUHYHURIXWXURFXUVRGDKLVWyULD(PFRQVHTrQFLDGHYHVH UHMHLWDUDSRVVLELOLGDGHGHXPD+LVWyULD WHRUpWLFDSRLV QmR SRGH H[LVWLU XPD WHRULD FLHQWtILFD GR GHVHQYROYLPHQWR KLVWyULFR SDUDEDVHDURIXWXURFXUVRGDKLVWyULDHVXDSUHGLomR2REMHWRIXQGDPHQWDOGRVPpWRGRVKLVWRULFLVWDVDSUHYLVmRHVWiPDOFRORFDGRHRKLVWRULFLVPRVHDQLTXLOD3233(5DSXG:(+/,1*S

    DPDFUR WHOHRORJLDKLVWyULFDFRPRDVXFHVVmRGHIDVHVKLVWyULFDVGHTXDOTXHUQDWXUH]D FRJQLWLYD QR SRVLWLYLVPR GH SURGXomR QR PDU[LVPR FXOWXUDO QRHYROXFLRQLVPR DQWURSROyJLFR H R SDSHO GHVDOLHQDQWH DWULEXtGR j KLVWyULD H DPDQLSXODomR SROtWLFD GR FRQKHFLPHQWR KLVWyULFR TXH R KLVWRULFLVPR KHJHOLDQRHQVHMRXDRQD]LVPRHDRHVWDOLQLVPR3233(5DSXG:(+/,1*S

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    2 KLVWRULFLVPR PDU[LVWD LPSOLFD DGPLWLU TXH HQWHQGHPRV R SUHVHQWH FRPRresultado das mutaes do passado e ponto de partida de mutaes para futuro; FRQVHTHQWHPHQWHDH[SOLFDomRJHQpWLFDpIDWDOHPKLVWyULDHDLGpLDGHPXWDomRGH YDORUHV QRUPDV HWF FRQGX] j QHJDomR GH SULQFtSLRV DEVROXWRV SRGHQGRDUUDVWDUDLQWHUSUHWDomRDRUHODWLYLVPRVXEMHWLYLVWD>@$VSULQFLSDLVFDUDFWHUtVWLFDVGRKLVWRULFLVPRPDU[LVWDVHULDPSDUD6FKDIIa) apreenso radicalmente historicista de toda a realidade natural e social KLVWRULFLGDGHHVVHQFLDOjSUySULD UHDOLGDGHHQmRDSHQDVjV UHSUHVHQWDo}HVGDUHDOLGDGHQRHVStULWRb) submisso de todos aos mesmos processos de mutaes sucessivas, o que WRUQDJHQpWLFDDH[SOLFDomRKLVWyULFDFGHVHQYROYLPHQWRQRSURFHVVRGHPXGDQoDVKLVWyULFDVGHIRUPDVLQIHULRUHVHPsuperiores;GIOXLUGLDOpWLFRjOX]GDIXQGDPHQWDomRRQWROyJLFDPDWHULDOLVWDGRSUySULRPXQGRe de sua representao;HFDUiWHUFRQFUHWRGDYHUGDGHFLHQWtILFDHSRUWDQWRKLVWyULFDHQWHQGLGDFRPRDconsiderao das condies de tempo e lugar ao contrrio da abstrao, que as GHQHJDULD:(+/,1*S

    J G. H. Nadel aborda uma questo crucial ao historicismo, ao

    ressaltar o fato de que a partir dele, os acontecimentos histricos deveriam

    ser estudados como fenmenos prprios e no mais, como antes, guisa

    de ilustrao moral e poltica.

    Esta descoberta de um territrio prprio histria se fundamenta

    em dois pressupostos bsicos, que definem o campo metodolgico e o

    espao do conhecimento histrico:

    DDH[LJrQFLDGHTXHRVIHQ{PHQRVKLVWyULFRVGHYHULDPVHUH[SOLFDGRVHPIXQomRdo momento em que ocorriam;b) o suposto de que este novo campo deveria ser estudado por uma cincia HVSHFtILFDFRPSURFHVVRVOyJLFRV:(+/,1*S

    A partir dessa construo, Nadel no apenas constitui um campo

    especfico para a histria, mas tambm constri um espao para alicerar

    a radicalizao do anti-racionalismo, isto , o historicismo.

    Dessa breve panormica da polmica sobre o historicismo, fica

    bastante clara a falta de unidade e preciso conceitual sobre o termo,

    assim como a sua apropriao diversa e especfica feita pelos diversos

    autores. Tal situao torna-se mais evidente na crtica ao historicismo

    alemo, que voc vai trabalhar agora na Seo 2.

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    SEO 2A CRTICA AO HISTORICISMO ALEMO

    No campo da crtica filosfica produo do conhecimento histrico,

    no historicismo alemo figuram como principais expoentes Dilthey e Max

    Weber.

    Dilthey tem como questo central a negao do cientificismo

    naturalista em Histria, e a constri pela distino entre as cincias naturais

    e as cincias sociais, estas ltimas chamadas de cincia do esprito.

    Seu primeiro critrio para essa distino o de que, na cincia do

    esprito, as cincias culturais e histricas, o sujeito e o objeto so idnticos,

    ou seja, nelas o homem estuda a si mesmo, de maneira diferente do que

    ocorre nas cincias naturais, onde o objeto natural, necessariamente

    exterior ao homem: os planetas, o oceano, a terra, os seres vivos, os elementos

    qumicos etc.

    Na cincia do esprito h identidade entre sujeito e objeto, o que

    pe o problema da objetividade em parmetros absolutamente diferentes

    dos postos s cincias naturais, que estudam objetos que so exteriores ao

    cientista. Assim, essa identidade entre sujeito e objeto coloca o problema

    da objetividade nas cincias sociais num patamar completamente novo em

    relao ao que havia at ento.

    O segundo critrio depende claramente do primeiro. Ao contrrio das

    cincias naturais, em que os juzos de fato so obtidos pela aplicao, de

    forma neutra, ausente de juzo de valor, de um mtodo cientfico a um

    objeto natural, na cincia do esprito os juzos de fato e os juzos de valor

    so inseparveis. Isso porque o sujeito cultural tem seu prprio conjunto de

    valores, que inevitavelmente estar presente em sua anlise da histria, da

    cultura e da sociedade.

    J o terceiro critrio que Dilthey utiliza para caracterizar as cincias

    sociais o de que esta cincia do esprito possui a necessidade intrnseca

    de, alm de caracteriz-los, compreender os fatos sociais e histricos que

    constituem o seu objeto. Para ele, enquanto a cincia natural se limita a dar

    uma caracterizao explicativa exterior aos fenmenos, o cientista social e o

    historiador tm que compreender o fenmeno, isto , chegar descoberta e

    atribuio de seu significado.

    A partir da, Dilthey conclui que os conhecimentos produzidos pela

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    cincia do esprito so verdades e conhecimentos necessariamente

    relativos.

    Ele se d conta da profunda contradio que perpassa a cincia

    do esprito, a qual, se por um lado, pretende construir um conhecimento

    objetivo, vlido e universal, por outro lado cada obra produzida por ela

    est intrinsecamente ligada viso de mundo de quem a produziu. A obra

    produzida se expressa, assim, de uma maneira limitada, parcial, unilateral

    de conhecer a realidade social e histrica, determinada pelos horizontes do

    pesquisador, que impe limites ao conhecimento.

    Dilthey no se prope a resolver essa questo pela maneira mais fcil

    o ecletismo -, isto , aquela que afirma que, se todo mundo tem uma parcela

    de verdade em sua leitura da histria e da sociedade, bastaria agregar as

    diferentes leituras para se chegar verdade completa. Ele nega enfaticamente

    essa soluo, considerando-a como fraca, vulgar e medocre, preferindo

    afirmar o relativismo de maneira muito coerente, mesmo com os impasses

    que este carrega em relao plena objetividade da cincia do esprito.

    Mas isso no quer dizer que Dilthey no percebeu os perigos postos

    em um relativismo total que, para ele, conduziria ao ceticismo, ou seja,

    descrena na possibilidade de qualquer conhecimento objetivo na cincia

    do esprito, desaguando na postura que prega a inexistncia de uma

    verdade objetiva. Considera, assim, que cada um tem a sua verdade e

    que no existe a possibilidade de conhecimento da realidade em si. Esse

    ceticismo seria a anulao da prtica cientfica, ao fazer com que todas as

    coisas, histrica e socialmente, tenham o mesmo valor. importante destacar

    que Dilthey recusa o ceticismo, porm no prope uma soluo vivel para

    o enfrentamento de tal problema.

    No campo especfico da Histria, Dilthey nega os fundamentos da

    prtica historiogrfica hegemnica em seu tempo e afirma a possibilidade

    de produo de conhecimento histrico, mesmo dentro do relativismo.

    'LOWKH\FRPHoRXSRUFULWLFDURVFRQFHLWRVIXQGDPHQWDLVGRKLVWRULFLVPRGH+XPEROGWH5DQNHDOPDSRSXODU9RONVVHHOHHVStULWRGRSRYR9RONVJHLVWQDomRRUJDQLVPRVRFLDO VmR SDUD HOH FRQFHLWRV PtVWLFRV LQ~WHLV SDUD D KLVWyULD 'HSRLV SHQVRXTXH HUD SRVVtYHO R FRQKHFLPHQWR QDV FLrQFLDV GR HVStULWR QHODV FRPSUHHQGHQGRDKLVWyULDSRUTXHDYLGDVHREMHFWLYDHPLQVWLWXLo}HVFRPRDIDPtOLDDVRFLHGDGHFLYLOR(VWDGRRGLUHLWRDDUWHDUHOLJLmRDORVRD1RPGDYLGDSHQVDYDDWLQJLURPGHVXDLQYHVWLJDomRSDUDID]HUXPDFUtWLFDGDUD]mRKLVWyULFD$FUHGLWDYDTXHDYLVmRKLVWyULFDGRPXQGRJHVFKLFKWOLFKH:HOWDQVFKDDXQJHUDDOLEHUWDGRUDGRHVStULWRKXPDQRDTXHPWLUDYDDV~OWLPDVFDGHLDVTXHDVFLrQFLDVGDQDWXUH]DHDORVRDQmRWLQKDPWLUDGR/(*2))S

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    52UNIDADE 4

    Embora tenha um sido um crtico de Von Ranke e do historicismo, a

    postura de Dilthey em relao a ele acaba sendo ambgua. Ou seja, no se

    trata de negar o historicismo rankeano, mas de ultrapass-lo.

    Outra figura de destaque no campo da crtica filosfica ao otimismo

    historicista alemo foi Max Weber. Ele considerado um dos grandes

    intelectuais alemes da contemporaneidade. Foi, alm de socilogo, tambm

    filsofo e historiador. Sua teoria pode ser sintetizada, no dizer de Raymond

    ARON (1964, p. 256, apud LE GOFF, 1985, p. 209), da seguinte forma:

    Weber constri, assim, uma crtica radical do historicismo alemo

    do sculo XIX em suas duas grandes vertentes historiogrficas: a do

    idealismo e a do positivismo em histria.

    Outra postura crtica ao historicismo alemo a do relativismo

    histrico mais recente, de Ernst Troeltsch e Friederich Meinecke.

    Troeltsch e Meinecke foram os introdutores do termo historicismo (ainda

    como historismo) na anlise do movimento historiogrfico que tem em

    Von Ranke seu maior expoente.

    De acordo com LE Goff (1985, p. 209), Troeltsch, autor de O triunfo

    do historismo, de 1924,

    J Meinecke, autor de As origens do historismo, de 1936, possui

    uma viso diferente da de Troeltsch no campo do dualismo historicista:

    7RGDVDVSROpPLFDVGH:HEHUWrPFRPRREMHWLYRGHPRQVWUDUDVXDWHRULDDIDVWDQGRWRGDVDVFRQFHSo}HVTXHDSXGHVVHPDPHDoDU$KLVWyULDpXPDFLrQFLDSRVLWLYDHVWDSURSRVLomR p SRVWD HPG~YLGD D SHORVPHWDItVLFRV FRQVFLHQWHV RX LQFRQVFLHQWHVassumidos ou envergonhados, que usam um conceito transcendente (liberdade) QD OyJLFDGDKLVWyULD ERVHVWHWDVHRXRVSRVLWLYLVWDVTXHSDUWHPGRSUHVVXSRVWRTXH Vy Ki FLrQFLD H FRQFHLWRV GR JHUDO VHQGR R LQGLYtGXR DSHQDV VXVFHSWtYHO GHVHU DSUHHQGLGR LQWXLWLYDPHQWH $ KLVWyULD p VHPSUH SDUFLDO SRUTXH R UHDO p QLWRSRUTXHDLQYHVWLJDomRKLVWyULFDPXGDFRPDSUySULDKLVWyULD3}HPHPSHULJRHVVDVSURSRVLo}HV D RV QDWXUDOLVWDV TXH SURFODPDP D OHL FRPR ~QLFR P GD FLrQFLDRX SHQVDP HVJRWDU R FRQWH~GR GD UHDOLGDGH SRUPHLR GH XP VLVWHPD GH UHODo}HVabstractas; b) os historiadores ingnuos que, inconscientes dos seus valores, imaginam GHVFREULUQRSUySULRPXQGRKLVWyULFRDVHOHFomRGRLPSRUWDQWHHGRDFLGHQWDOFWRGRVRVPHWDItVLFRVTXHMXOJDPWHUDSUHHQGLGRGHPRGRSRVLWLYRDHVVrQFLDGRVIHQ{PHQRVas foras profundas, as leis do todo que comandaria o devir, acima dos homens que SHQVDPHMXOJDPDJLU

    3HQVDYDFRP5DQNHTXHQmRKiXPDKLVWyULDPDVKLVWyULDVHTXLVVXSHUDURGXDOLVPREiVLFRGRKLVWRULFLVPRRFRQLWRHQWUHQDWXUH]DHHVStULWRDFomRVRER LPSXOVRGDIRUoDNUiWRVHDFomRVHJXQGRD MXVWLFDomRPRUDOpWRVFRQVFLrQFLDKLVWRULFLVWDHQHFHVVLGDGHGHYDORUHVDEVROXWRV

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    0HLQHFNHDFHLWDHVWHGXDOLVPR&RQVLGHUDRKLVWRULFLVPRRPDLVDOWRJUDXDWLQJLGRQDFRPSUHHQVmRGDVFRLVDVKXPDQDV6HPG~YLGDTXHSiUDFRPRQRWRX&DUOR$QWRQLDQWHVGDGLVVROXomRGDUD]mRHGDIpQRSHQVDPHQWRSULQFtSLRGHXQLGDGHGDQDWXUH]DKXPDQDGHYLGRDRKXPDQLVPRPDQWLGRSRU5DQNH/(*2))S

    Le Goff v em Troeltsch e Meinecke tmulos glria do

    historicismo.

    Finalmente, outro pensador contemporneo que abordou a questo

    do historicismo foi Karl Manheim, socilogo do conhecimento hngaro

    bastante influenciado pelo filsofo marxista George Lukcs. Para Manheim,

    toda forma de conhecimento ou de pensamento est ligada ou dependente

    de uma posio social determinada, ou de um determinado ser social.

    Embora essa tese j tenha sido enunciada por Dilthey e Troeltsch, em

    Manheim tal postura fortemente influenciada pelo pensamento de Karl

    Marx, especificamente por relacionar os conhecimentos, as ideologias

    e as utopias sociais e histricas com lugares sociais determinados, as

    classes sociais, de maneira particular.

    A seguir, na Seo 3, voc ver o conjunto de crticas mais importantes

    que se colocam em relao ao desdobramento do historicismo na Escola

    Metdica francesa, com sua postura racionalista e cientificista.

    SEO 3A CRTICA ESCOLA METDICA

    Uma das questes mais polmicas no que se refere anlise da

    Escola Metdica diz respeito ao carter de cincia da escrita da Histria.

    Essa questo deriva da pretenso cientificidade do mtodo histrico

    de Langlois e Seignobos e da prtica e pressupostos cientificistas dos

    historiadores metdicos da Frana no sculo XIX.

    Uma primeira coisa a ser esclarecida que a alcunha de positivista,

    dada como sinnimo de metdico no campo corrente da historiografia, se

    refere mais proposta de Leopold Von Ranke sobre a Histria como uma

    cincia positiva, do que ao Positivismo, conforme proposto pelo socilogo

    francs Augusto Comte (BOURD & MARTIN, 1990, p. 112-117 passim).

    Se h uma Histria positivista, ela no a de Monod, Langlois

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    e Seignobos e os demais historiadores metdicos da Frana. Poderia

    ser localizada, talvez, no pensamento do historiador Louis Bourdeau,

    expresso em A Histria e os Historiadores: ensaio crtico sobre a Histria

    considerada como cincia positiva, de 1888.

    Bourdeau, discpulo de Augusto Comte, coloca suas idias num plano

    filosfico, vendo a histria como o desenvolvimento da razo humana,

    que tem como objeto a universalidade dos fatos que a razo humana

    dirige ou de que sofre a influncia. Ele adota o modelo sociolgico de

    Comte e elege os movimentos populacionais, as formas do espao social,

    as maneiras de alimentao, enfim, as atividades humanas em todas as

    suas manifestaes como objetos de estudo pela Histria.

    Por outro lado, suas concepes desprezam o acontecimento

    singular, o fato, e os personagens ilustres: preciso que os aristocratas

    da glria se apaguem cada vez mais perante a importncia das multides.

    Ocupemo-nos das massas (BOURD & MARTIN, 1990, p. 113).

    Ainda por influncia de Comte, Bourdeau v na Histria cientfica o

    objetivo de investigar o conjunto de leis que determinam o desenvolvimento

    da espcie humana. Essas leis so classificadas em trs grupos:

    Ora, essa viso diametralmente oposta quela proposta pelos

    historiadores metdicos franceses da segunda metade do sculo XIX. Se,

    como contraponto, for analisado o Manifesto, que abre a Revista Histrica,

    em 1876, veremos que ali Gabriel Monod tambm emprega o termo cincia

    positiva, mas numa acepo completamente diferente daquela expressa por

    Bourdeau.

    Monod enuncia as linhas da Revista Histrica, que so tambm as linhas

    da Escola Metdica, em relao cientificidade, da seguinte maneira: A nossa

    Revista ser uma recolha de cincia positiva e de livre discusso; todavia, no

    abandonar o domnio dos factos e permanecer fechada s teorias polticas e

    filosficas (MONOD, in BOURD & MARTIN, 1990, p. 113).

    $V Leis de OrdemTXHUHYHODPDVHPHOKDQoDGDVFRLVDV$V Leis de Relao, que enunciam que as mesmas causas geram os mesmos HIHLWRV$Lei SupremaTXHUHJXODRFXUVRGD+LVWyULDe HYLGHQWH TXH LVVR VH FRQVWLWXL QXPD ORVRD GD KLVWyULD IRUWHPHQWH GHWHUPLQLVWDTXHSUHWHQGHDRPHVPRWHPSRUHFRQVWLWXLURSDVVDGRHSUHYHURIXWXUR%285'e0$57,1S

    ____________________________________________________________________________________________ Os trechos principais do Manifesto esto no ANEXO II.

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    Quando toma contato com as idias histricas de Bourdeau, Monod

    diz a seu respeito, num primeiro momento, na edio 13, de 1888, da

    Revista Histrica: A histria nunca ser seno uma cincia descritiva que

    opera sobre elementos sempre fugitivos, em mutao e em devis perptuos.

    Quando muito poder-se-ia compar-lo meteorologia. (apud BOURD &

    MARTIN, 1990, p. 113).

    Mais tarde, porm, tentando aproximar a Histria das demais cincias

    sociais, Monod refaz sua apreciao sobre Bourdeau, afirmando que sua

    obra no teria toda a fama que merecia, principalmente por sua articulao

    com a Sociologia.

    Os adeptos da Escola Metdica retiram o termo cincia positiva,

    como j foi dito, das idias de Leopold Von Ranke (Veja a Unidade III,

    Seo 1, p. 21-23), cuja influncia assumida e explcita. Depois da

    Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871, vrios jovens historiadores do

    grupo que mais tarde formaria a Escola Metdica, como Monod, Lavisse,

    Seignobos e outros, foram estudar na Alemanha. Ali tomaram contato

    e receberam influncias do historicismo de Mommsem, Von Sybel e

    outros. Mas a grande influncia, sem dvida nenhuma, veio das teses de

    Leopold Von Ranke. Ora, o corolrio das teses de Von Ranke o de que,

    como cincia positiva, a Histria pode chegar objetividade cientfica

    e conhecer a verdade histrica de um passado com existncia objetiva.

    Porm essa pretensa objetividade cientfica sofre um abalo

    consistente quando posta em confronto com a prtica dos historiadores

    metdicos e da Revista Histrica no campo poltico. Republicana e laica, a

    Revista toma partido de governos oportunistas na Frana; abre polmicas

    com monarquistas e com a Igreja Catlica ultramontana. Lavisse, em

    sua Histria da Frana, arquiteta e expressa a mitologia do Estado-

    Nao burgus, que teria sido originado nos gauleses e merovngios,

    teria sua consolidao na dinastia dos Capetos e teria seu apogeu na

    Repblica democrtica e nacional (veja a semelhana com a construo

    mtica do Estado-Nao brasileiro, com suas origens em Cabral, sua

    sistematizao no Imprio rleans e Bragana e sua consolidao na

    Repblica de Deodoro e Peixoto). O uso dos manuais escolares, como

    j foi visto, criava o esprito patritico e o orgulho nacional contra os

    inimigos da Ptria, os brbaros germnicos da Alemanha.

    Com essas prticas, quase nada das propostas de imparcialidade

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    56UNIDADE 4

    cientfica subsiste, e o que resta um discurso ideolgico burgus e

    republicano, de justificativa do Estado e do nacionalismo chauvinista.

    E nessa contradio entre positividade cientfica e uma

    prtica ideolgica engajada que est centrada a maioria das crticas

    Escola Metdica. BOURD & MARTIN (1990, p. 115-116) elencam um

    conjunto de posies crticas historiografia metdica francesa. A mais

    contundente delas vem da Escola dos Annales, de Marc Bloch e Lucien

    Febvre, e se subdivide em quatro pontos principais:

    1. A Escola Metdica s privilegia os documentos escritos (decretos,

    cartas, relatrios, tratados etc.) em detrimento dos documentos no

    escritos (vestgios arqueolgicos, sries estatsticas etc.), que igualmente

    informam sobre a vida em sociedade dos homens no passado.

    2. A Escola Metdica pe toda nfase no fato, no acontecimento

    singular, ocorrido na curta durao temporal (por exemplo, a tomada da

    Bastilha); ao passo que mais importante conhecer a vida estrutural das

    sociedades, que se revela por fatos comuns, repetitivos e mensurveis,

    que se desenrolam num tempo estrutural de longa durao (por exemplo,

    a cultura do trigo).

    3. A Escola Metdica privilegia os fatos polticos, militares e

    diplomticos (p. ex., o assassinato de Henrique IV, a Batalha de Austerlitz

    e a Paz da Westflia) e despreza os fatos sociais, culturais e econmicos

    (como os direitos senhoriais, a religiosidade jansenista e a inovao do

    moinho de vento).

    4. A Escola Metdica tem uma prudncia vacilante, arisca ao

    debate, renuncia interpretao e sntese.

    Entretanto, apesar de toda sua contundncia, a crtica dos Annales

    no toca no ponto central da objetividade cientfica na Histria, expressa

    na contradio entre a neutralidade cientfica do historiador e os

    preconceitos polticos dos historiadores metdicos.

    O pensamento relativista, ou presentista, frequente na

    historiografia britnica e norte-americana nas dcadas de 1930 e 1940,

    faz uma crtica da historiografia metdica de contedo mais radical, ao

    refutar os pressupostos tericos de Leopold Von Ranke.

    Charles Bard enuncia em The American History Rewiew, vol.

    LXIII, n3, de 1937, com todas as letras, que a pretenso cientificizante

    se traduz fundamentalmente numa opo de carter ideolgico: Que

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    feito desse historicismo que permitia ao historiador imaginar que

    se pode conhecer a histria tal como se desenrolou realmente? Essa

    filosofia porque essa corrente uma filosofia, mesmo se negava a

    filosofia sofreu um fracasso.

    J o materialismo histrico centra suas crticas na impossibilidade

    da neutralidade do historiador. Para Marx essa neutralidade

    impossvel, embora pretextada no discurso filosfico. Na Ideologia

    Alem, MARX e ENGELS (1987, p. 36-37), ao pensarem sobre o processo

    do conhecimento, constatam que a conscincia humana , por um lado,

    socialmente determinada: So os homens que so os produtores de

    suas representaes, das suas idias (...) mas os homens reais, atuantes,

    tal como so condicionados por um desenvolvimento determinado das

    suas foras produtivas e das relaes que se lhes correspondem.

    Nas Teses contra Feuerbach, por outro lado, Marx defende que

    a produo do conhecimento uma atividade no abstrata, mas

    concreta e ligada a uma prxis: O principal defeito at aqui de todos

    os filsofos (...) que, para eles, a realidade e o mundo sensvel s

    so compreendidos sob a forma de objeto ou de intuio, mas no

    enquanto atividade humana concreta, no enquanto prtica (MARX,

    in GIANOTTI, 1978, p. 51).

    Assim, nesta perspectiva, no haveria como o historiador, o ser

    que conhece e produz conhecimento, ser imparcial, posto que pertence

    a um grupo profissional, uma classe social, uma comunidade nacional,

    e pode, consciente ou inconscientemente, vir a defender seus valores

    e interesses, enfim a sua ideologia. Isso explicaria por que as posies

    ideolgicas dos historiadores metdicos defendem os interesses

    burgueses, republicanos e liberais.

    Todavia, apesar de seus evidentes limites e claras dimenses

    poltico-ideolgicas, a escola metdica conseguiu, no incio do sculo

    XX, ser hegemnica em Frana e nos pases sob sua influncia

    cientfico-cultural (inclusive o Brasil), como uma viso cientfica e

    neutra da escrita da histria. Tal hegemonia s foi posta em questo

    com a escola de Annales, na Frana, e com a internacionalizao do

    materialismo histrico. Mesmo assim, os seus pressupostos ainda

    esto muito arraigados na produo historiogrfica contempornea,

    principalmente naquela voltada para a escola bsica.

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    61PALAVRAS FINAIS

    PALAVRAS FINAIS

    Parabns!!! Voc concluiu o estudo da disciplina Teoria da Histria

    II. Foi uma longa caminhada, nos tempos e nos espaos das concepes

    e formas de escrita da Histria no Europa do final do sculo XVIII e no

    sculo XIX.

    Voc percorreu um longo trajeto, que lhe permitiu conhecer desde as

    concepes histricas de Jules Michelet, que, de certa forma, o precursor

    da historiografia contempornea, passando pela complexa e difusa

    conceituao de historicismo e o debate terico sobre esta questo. Viu

    o desenvolvimento do historicismo alemo da primeira metade do sculo

    XIX em Von Humboldt, Von Ranke e na Escola Prussiana. Teve noes,

    tambm, do pensamento histrico de Hegel, marcado por sua lgica de

    cunho dialtico e seu idealismo filosfico articulados historicamente.

    Alm disso, analisou a historiografia metdica francesa, com sua postura

    cientificista, nacionalista e colonialista.

    Mas tambm viu que os pressupostos nacionalistas e cientificistas

    do historicismo e da Escola Metdica foram objeto de crtica contundente

    tanto pela Filosofia quanto pela Historiografia posterior, principalmente

    em relao sua instrumentao ideolgica. Constatou, tambm, que essas

    crticas foram enunciadas em lugares historiogrficos bastante diversos,

    como o presentismo americano, a Escola de Annales e o materialismo

    histrico de Marx e seus seguidores.

    No total de sua caminhada nesta disciplina, voc deve ter percebido

    que a escrita da Histria um produto social, determinado no apenas pelo

    passado, mas pelo uso do passado como legitimador de posturas culturais,

    sociais, polticas e religiosas. Deve ter sentido o alerta implcito ao longo

    do curso da necessidade de reconhecer os componentes ideolgicos

    presentes em toda escrita da Histria e da ainda maior necessidade de

    no se deixar instrumentalizar pelos usos ideolgicos do conhecimento

    histrico em sua prtica docente.

    Mas o que se espera, mesmo, que voc possa ter alargado seus

    horizontes e construdo um olhar crtico sobre a escrita da Histria como

    produo instrumental e dotada de intencionalidade, visto que isso no

    totalmente negativo. Humaniza a Histria, coloca-a como saber humano,

    feita e escrita por seres humanos para outros seres humanos, nessa luta

  • constante que o construir cotidiano de identidades pessoais, culturais,

    polticas, religiosas ou nacionais.

    Histrico, sim, mas humano, irredutivelmente humano.

    No prximo semestre voc ter um novo encontro com a Teoria da

    Histria, no curso de Teoria da Histria III. Voc ver ali as reaes ao

    historicismo cientificista na historiografia do sculo XIX e do incio do

    sculo XX, com o estudo do materialismo histrico e dialtico de Karl

    Marx e seus seguidores, e da Escola de Annales francesa, de Marc Bloch

    e Lucien Febvre.

    At l e continue perseverando nesse caminho, s vezes rduo, s

    vezes cansativo, s vezes desanimador, mas que ao seu final certamente

    lhe trar a recompensa de um aperfeioamento profissional e, o que

    muito mais importante, um crescimento pessoal qualitativamente superior

    em sua maneira de ver, produzir e ensinar Histria.

    Deus o (a) abenoe!!!

  • Teo

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    63REFERNCIAS

    REFERNCIAS

    APPLEBY, Janet; HUNT, Lynn; JACOB, Margaret. La verdad sobre la historia.

    Barcelona: Editorial Andres Bello Espaola, 1994.

    BARTHES, Roland. Michelet. So Paulo: Cia. das Letras, 1991.

    BLOCH, Marc. Introduo Histria. 4 ed. Lisboa: Publicaes Europa-

    Amrica, s/d.

    BOURD, G. & MARTIN, H. As Escolas Histricas. Lisboa: Europa-Amrica,

    1990.

    BOURGUIRE, Andr (org.). Dicionrio das cincias histricas. Rio de

    Janeiro: Imago, 1993.

    BOUTIER, Jean & JULIA, Dominique. Passados recompostos: campos e

    canteiros da Histria. Rio de Janeiro: Ed. da FGV; Ed. da UFRJ, 1998.

    BURKE, Peter. (org.). A escrita da histria: novas perspectivas. 2 ed. So

    Paulo: Ed. da Unesp, 1982.

    CARBONELL, Charles-Olivier. Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987.

    CARDOSO, Ciro F. Uma introduo histria. 2 ed. So Paulo: Brasiliense,

    1982. Col. Primeiros Vos, 2.

    CARDOSO, Ciro F.; BRIGNOLI, Hctor P. Os mtodos da histria. 3 ed. Rio

    de Janeiro: Graal, 1983.

    CARR, Edward Hallet. Que histria? 3 ed. 7 reimpresso. Rio de Janeiro:

    Paz e Terra, 1996.

    CHARTIER, Roger. beira da falsia; a Histria entre certezas e inquietude.

    Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002.

    CHAUNU, Pierre. A Histria como cincia social: a durao, o espao e o

    homem na poca moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

    COLLINGWOOD, R. G. A idia de histria. Lisboa: Presena, 1981.

    FONTANA, Josep. Histria: anlise do passado e projeto social. Bauru:

    EDUSC, 1998.

    FONTANA, Josep. A histria dos homens. Bauru: EDUSC, 2004.

    GARDINER, Patrick. Teorias da histria. 3 ed. Lisboa, Fundao Calouste

    Gulbenkian, 1984.

    GAY, Peter. O estilo na histria. So Paulo: Cia das Letras, 1990.

    GIANNOTTI, J. A. (org.) Karl Marx. Manuscritos econmico-filosficos e

    outros textos escolhidos. 2 ed. So Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleo Os

    Pensadores.

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    64REFERNCIAS

    HOBSBAWN, Eric J. Sobre histria. So Paulo: Cia. das Letras, 1998.

    HUNT, Lynn (org.). A nova histria cultural. So Paulo: Martins Fontes,

    1992.

    LANGLOIS, C.-V. & SEIGNOBOS, C. Introduo aos estudos histricos.

    So Paulo: Renascena, 1946.

    LEFORT, Claude. As formas da histria. 2 ed. So Paulo: Brasiliense, 1990.

    LE GOFF, Jacques (coord.). Enciclopdia Einaudi, vol.1. Memria-Histria.

    Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.

    LE GOFF, Jacques. (dir.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 1990.

    LE GOFF, Jacques; NORA, P. (comp.). Histria: novas abordagens. Rio de

    Janeiro: Francisco Alves, 1976.

    LE GOFF, Jacques; NORA, P. (comp.). Histria: novos problemas. Rio de

    Janeiro: Francisco Alves, 1976.

    LE GOFF, Jacques; NORA, P. (comp.). Histria: novos objetos. 2 ed. Rio de

    Janeiro: Francisco Alves, 1979.

    MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alem. 6 ed. So Paulo: Hucitec, 1987.

    MICHELET, Jules. A Bblia da Humanidade. So Paulo: Ediouro, 2001.

    SCHAFF, Adam. Histria e verdade. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1982.

    SILVA, Rogrio Forastieri da. Histria da Historiografia. Bauru: Edusc,

    2001.

    SOUZA, Daniel de. Teoria da Histria e conhecimento histrico. Lisboa:

    Livros Horizonte, 1982.

    TTART, Philippe. Pequena histria dos historiadores. Bauru: Edusc, 2000.

    VEYNE, Paul. Historie, in Encyclopaedia Universalis, vol. VIII. Paris:

    Encyclopaedia Universalis France, 1968.

    VEYNE, Paul. Como se escreve a histria. Lisboa: Edies 70, 1983.

    VEYNE, Paul. O inventrio das diferenas. Lisboa: GRADIVA, 1989.

    WHITE Hayden. Meta-histria. So Paulo: Edusp, 1992.

    WHITE Hayden. Trpicos do discurso: ensaios sobre a crtica da cultura.

    So Paulo: EDUSP, 2001.

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    NOTAS SOBRE OS AUTORES

    JANANA DE PAULA DO ESPRITO SANTOA Janana formada em Histria pela Universidade Estadual de

    Ponta Grossa, com mestrado em Educao pela Universidade Federal

    do Paran. Apaixonada por livros e leitura desde pequena, filha de um

    pai jornalista e de uma me professora, sempre gostou de estudar, com

    uma aproximao especial as questes tericas. Professora de Ensino

    Mdio e Fundamental, trabalha com Teoria de Histria e Metodologia

    do Ensino de Histria na Universidade Estadual de Ponta Grossa.

    MARCO AURLIO MONTEIRO PEREIRAMeu nome Marco Aurlio Monteiro Pereira, casado com Melissa,

    pai do Neil Neto e av do Davi e do Pedro. Sou professor da Universidade

    Estadual de Ponta Grossa desde 1989, onde leciono Teoria da Histria

    e Histria da Arte. Sou Bacharel e Licenciado em Histria e Mestre em

    Histria do Brasil pela UFPR, de Curitiba. Meu trabalho acadmico de

    pesquisa se concentra, atualmente, depois de uma passagem pelas reas de

    Histria e Ensino e Histria da Alimentao, na Histria do Protestantismo,

    com nfase no estudo sobre os primrdios do Presbiterianismo no Brasil,

    no sculo XIX. Alm da formao em Histria, sou Bacharel em Teologia

    pela Faculdade Teolgica Sulbrasileira, em Curitiba, e Pastor da Igreja

    Presbiteriana do Brasil. Para contatos, meu e-mail [email protected].

  • RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOSSou graduado em Licenciatura em Histria pela Universidade

    Estadual de Ponta Grossa e aluno regular do programa de mestrado

    em Cincias Sociais Aplicadas, da mesma instituio. Sou professor

    colaborador do Departamento de Histria da Universidade Estadual

    de Ponta Grossa desde 2004, com trs anos de atuao em cursos de

    graduao como Bacharelado em Histria, Licenciatura em Histria,

    Jornalismo, Servio Social e Cincias Econmicas. Estou em fase de

    concluso do mestrado, desenvolvendo pesquisa nas temticas de

    Identidade e Religiosidade. Alm de lecionar, atuei como assessor

    tcnico de planejamento estratgico nos anos de 2000 a 2003, na

    Prefeitura Municipal de Ponta Grossa, participando da elaborao

    e execuo de projetos tcnicos em gesto pblica. Tenho particular

    interesse pelas reas de Teoria da Histria, Histria Medieval, Histria

    Contempornea, Identidades, Poltica e Religiosidade. Possuo artigos

    publicados em peridicos, anais de eventos e revistas cientficas, nas

    temticas de movimentos sociais, identidade, religiosidade, poltica e

    democracia.

  • ANEXOS

  • ANEXO 1J. MICHELET - PREFCIO HISTRIA DA FRANA, DE 1869

  • Teo

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    69UNIDADE 5

    69ANEXOS

    Prefcio Histria de Frana, 1869.

    Jules MICHELET

    Esta obra laboriosa de cerca de quarenta anos foi concebida num

    momento, no relmpago de Julho. Nesses dias memorveis, fez-se uma

    grande luz e vi a Frana.

    Tinha anais e no uma histria. Homens eminentes tinham-na

    estudado sobretudo sob o ponto de vista poltico. Ningum penetra

    no infinito detalhe dos desenvolvimentos diversos de sua actividade

    (religiosa, econmica, artstica, etc.). Ningum a tinha abrangido com

    o olhar na unidade viva dos elementos naturais e geogrficos que a

    constituram. Fui o primeiro a v-la como uma alma e uma pessoa.

    O ilustre Sismondi, esse perseverante trabalhador, honesto e

    judicioso, nos seus anais polticos, ergue-se raramente aos pontos de vista

    de conjunto. E, por outro lado, no entra nas investigaes eruditas. Ele

    mesmo confessa lealmente que ao escrever em Genebra no tinha mo

    nem as actas nem os manuscritos.

    De resto, at 1830 (at mesmo 1836), nenhum dos historiadores

    notveis dessa poca sentiu ainda a necessidade de procurar os factos

    fora dos livros impressos, nas fontes primitivas, a maioria inditas ento,

    nos manuscritos das nossas bibliotecas, nos documentos dos nossos

    arquivos.

    Esta nobre pliade histrica que, de 1820 a 1830, lana um to

    grande brilho, os srs. de Barante, Guizot, Mignet, Thiers, Augustin

    Thierry, encarou a histria por pontos de vista especiais e diversos. Fulano

    preocupou-se com o elemento de raa, sicrano pelas instituies, etc., sem

    verem talvez suficientemente como estas coisas se isolam dificilmente,

    como cada uma delas reage sobre as outras. A raa, por exemplo, continua

    ser idntica sem sofrer a influncia dos costumes mutantes? Podem as

    instituies estudar-se suficientemente sem ter em conta a histria das

    idias, de mil circunstncias sociais de que surgem? Estas especialidades

    sempre tm algo de um pouco artificial, que pretende esclarecer, e todavia

    pode dar falsos perfis, enganar-nos sobre o conjunto, tirar-lhe a harmonia

    superior.

    A vida tem uma condio soberana e muito exigente. S

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    verdadeiramente a vida quando est completa. Os seus rgos so todos

    solidrios e s actuam em conjunto. As nossas funes ligam-se, supem-

    se uma outra. Falte apenas uma e nada vive mais. Outrora julgava-se

    poder pelo escalpe isolar, seguir parte cada um dos nossos sistemas;

    isso no possvel porque tudo influi sobre tudo.

    Assim, ou tudo ou nada. Para encontrar a vida histrica seria preciso

    segui-la pacientemente em todas as suas vias, todas as suas formas, todos

    os seus elementos. Mas tambm seria preciso, com uma paixo ainda

    maior refazer e restabelecer os jogos de tudo isto, a aco recprocas

    destas porcas diversas num poderoso movimento que se tornaria a prpria

    vida.

    Um gnio de quem tive, no o gnio sem dvida, mas a violenta

    Vontade, Gricault, ao entrar no Louvre (no Louvre de ento onde

    toda a arte da Europa estava reunida), no pareceu perturbado. Disse:

    Muito bem! Vou refaz-lo. Em rpidos esboos que nunca assinou, ia

    compreendendo e apoderando-se de tudo. E, sem 1815, teria cumprido a

    palavra. So assim as paixes, as frias da bela idade.

    Mais complicado ainda, mais terrvel era o meu problema histrico

    colocado como ressurreio da vida integral, no nas suas superfcies,

    mas nos seus organismos interiores e profundos. Nenhum homem sensato

    teria pensado nisso. Por sorte, no o era.

    Na brilhante manh de Julho, a sua vasta esperana, a sua poderosa

    electricidade, essa iniciativa sobre-humana no intimidou um jovem

    corao. Nenhum obstculo em determinadas horas. Tudo se simplifica

    pela chama. Mil coisas baralhadas resolvem-se a, encontram a as suas

    verdadeiras relaes, e (harmonizando-se) iluminam-se. Muitas molas,

    inertes e pesadas se jazem parte, rolam por si s se forem recolocadas

    no conjunto.

    Foi esta a minha f pelo menos, e este acto de f seja qual for a

    minha fraqueza, age. Este movimento imenso abalou-se sob os meus

    olhos. Estas foras variadas, tanto de natureza como de arte, procuraram-

    se, arranjaram-se, ao princpio desajeitadamente. Os membros do grande

    corpo, povos, raas, regies, ordenaram-se do mar ao Reno, ao Rdano,

    aos Alpes, e os sculos marcharam da Glia para a Frana.

    Todos, amigos, inimigos, disseram que era vivo. Mais quais so

    os verdadeiros sinais bem certos da vida? Por certa destreza obtm-se

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    animao, uma espcie de calor. Por vezes o galvanismo parece ultrapassar

    a prpria vida pelos seus saltos, esforos, contrastes opostos, surpresas,

    pequenos milagres. A verdadeira vida tem um sinal muito diferente, a

    sua continuidade. Nascida de um jacto, dura, e cresce placidamente,

    lentamente uno tenore. A sua unidade no a de uma pequena pea

    de cinco actos, mas (num desenvolvimento muitas vezes imenso) a

    harmoniosa identidade da alma.

    A mais severa crtica, se julgar o conjunto do meu livro, no

    desconhecer a essas altas condies de vida. No foi de modo algum

    precipitado, forado; teve, pelo menos, o mrito da lentido. Do primeiro

    ao ltimo volume, o mtodo o mesmo; este numa palavra na minha

    Geografia, no meu Luis XV, e na minha Revoluo. O que no menos

    raro num trabalho de tantos anos, que a forma e a cor apiam-se a. As

    mesmas qualidades, os mesmos defeitos. Se estes tivessem desaparecido,

    a obra seria mais heterognea, sem cor, teria perdido a sua personalidade.

    Tal como , mais vale que continue harmoniosa e um todo vivo.

    Quando comecei, existia um livro de gnio, o de Thierry. Sagaz

    e penetrante, delicado intrprete, grande escultor, admirvel operrio,

    mas demasiado sujeito a um mestre. Este mestre, este tirano, o ponto

    de vida exclusivo, sistemtico, da perpetuidade das raas. O que faz, no

    total, a beleza desse grande livro, que com este sistema, que se julgaria

    fatalista, por todo o lado se sente respirar em baixo um corao comovido

    contra a fora fatal, a invaso, tudo cheio da alma nacional e do direito

    da liberdade.

    Amei-o muito e admirei-o. Contudo, di-lo-ei? Nem o material nem

    o espiritual me bastava no seu livro.

    O material, a raa, o povo que a continua, pareciam-me precisar

    que se colocasse por baixo uma boa base, a terra que os sustentava e

    os alimentava. Sem uma base geogrfica, o povo, actor histrico, parece

    andar no ar como nas pinturas chinesas em que falta o solo. E notem que

    este solo no apenas o teatro da aco. Pelo alimento, o clima, etc., influi

    a de cem maneiras. Filho de peixe saber nadar. Tal ptria, tal homem.

    A raa, elemento forte e dominante nos tempos brbaros, antes do

    grande trabalho das naes, menos sensvel, fraca, quase apagada,

    medida que cada uma se elabora, se personifica. O ilustre Sr. Mill diz

    muito bem: Para se dispensar do estudo das influncias morais e sociais,

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    seria um meio demasiado fcil atribuir as diferenas de carcter, de

    comportamento, a diferenas naturais indestrutveis.

    Contra aqueles que perseguem este elemento de raa e o exageram

    nos tempos modernos, separei da prpria histria um facto moral enorme

    e demasiadamente pouco notado. o poderoso trabalho de si sobre si

    em que a Frana, pelo seu progresso prprio, vai transformando todos

    os seus elementos brutos. Do elemento romano municipal, das tribos

    alems, do cl cltico, anulados, desaparecidos, tiramos com o tempo

    resultados diferentes e at mesmo contrrios, em grande parte, a tudo o

    que os precedeu.

    A vida tem sobre ela mesma uma aco de pessoal criador, que, de

    materiais pr-existentes, nos cria coisas absolutamente novas. Do po,

    frutos, que comi, fiz sangue vermelho e salgado que em nada lembra

    esses alimentos de onde os tiro. Vai assim a vida histrica, vai assim cada

    povo que se faz, se engendra, misturando, amalgamando elementos, que

    a ficam sem dvida no estado obscuro e confuso, mas so muito pouca

    relativamente ao que o longo trabalho da grande alma fez.

    A Frana fez a Frana, e o elemento fatal de raa parece-me

    secundrio. filha da sua liberdade. No progresso humano, a parte

    essencial da fora viva, a que se chama homem. O homem o seu

    prprio Prometeu.

    Em resumo, a histria tal como a via nesses homens eminentes (e

    vrios admirveis) que a representavam parecia-me fraca nos seus dois

    mtodos:

    Demasiado pouco material, tendo em conta as raas, no o solo, o

    clima, os alimentos, tantas circunstncias fsicas e fisiolgicas.

    Demasiado pouco espiritual, falando das leis, dos actos polticos,

    no das idias, dos costumes, no do grande movimento progressivo,

    interior, da alma nacional.

    Sobretudo pouco curiosa do pequeno detalhe erudito, onde o melhor,

    talvez, continuava enterrado nas fontes inditas.

    A minha vida esteve neste livro, passou nele. Foi o meu nico

    acontecimento. Mas esta identidade do livro e do autor no tem um perigo?

    A obra no est colorida com os sentimentos, com o tempo daquele que

    a fez?

    o que se v sempre. Nenhum retrato to exacto, to conforme ao

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    modelo, que o artista no lhe ponha um pouco de si. Os nossos mestres

    em histria no se subtraram a esta lei. Tcito, no seu Tibrio, tambm

    se descreve como o aniquilamento do tempo, os quinze longos anos de

    silncio. Thierry, ao contar-nos Klodowig, Guilherme e a sua conquista,

    tem o sopro interior, a emoo da Frana invadida recentemente e a sua

    oposio ao reinado que se parecia o do estrangeiro.

    Se isto um defeito, devemos confessar que nos presta bons servios.

    O historiador que o no tem, que comea a apagar-se aos escrever, a no

    ser, a seguir por detrs da crnica contempornea (como Barante fez em

    relao a Froissart), no historiador. O velho cronista, muito encantador,

    absolutamente incapaz de dizer ao seu pobre criado que o segue, o que

    grande, o triste, o terrvel sculo XIV. Para o saber, so precisas todas as

    nossas foras de anlise e erudio. preciso um grande engenho que

    penetre nos mistrios, inacessveis a este contador. Qual engenho, que

    meio? A personalidade moderna, to poderosa e engrandecida.

    Ao penetrar cada vez mais no objecto, ama-se, e a partir da olha-

    se para ele com um interesse crescente. O corao comovido segunda

    vista, v mil coisas invisveis ao povo indiferente. A histria, o historiador

    misturam-se neste olhar. bem? mal? Aqui opera-se uma mudana que

    no se descreveu e que devemos revelar:

    que a histria, no progresso do tempo, faz o historiador muito

    mais do que feita por ele. Se saiu de mim em primeiro lugar, da minha

    tempestade (ainda perturbada) de juventude, deu-me muito mais em

    fora e em luz, mesmo em calor fecundo, em fora real de ressuscitar o

    passado. Se nos parecermos, est bem. Os traos que ele tem de mim so

    em grande parte aqueles que lhe devia, que tive dele.

    MICHELET, Jules. Prefcio para a Histria da Frana, para a edio

    de 1869. (Texto relatado por J. EHRARD e G. PALMADE, LHistoire,

    Armand Collin, 1965, p. 261-265).

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    ANEXO 2G. MONOD OS PRINCPIOS DA REVISTA HISTRICA

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    75ANEXOS

    Os princpios da Revista Histrica

    Gustave MONOD

    Pretendemos permanecer independentes de qualquer opinio

    poltica e religiosa, e a lista dos homens eminentes que quiseram conceder

    o seu patrocnio Revista prova que julgam este programa realizvel.

    Esto longe de professar todas as mesmas doutrinas em poltica e em

    religio, mas pensam connosco que a histria pode ser estudada em si

    mesma, e sem se preocupar com as concluses que podem ser tiradas

    a favor ou contra esta ou aquela crena. Sem dvida as opinies

    particulares influenciam sempre numa determinada medida a maneira

    como se estuda, como se v e como se julgam os factos ou os homens.

    Mas devemos esfora-nos por afastar essas causas de preveno e de erro

    para s julgarmos os acontecimentos e os personagens em si mesmos.

    Admitiremos alis opinies e apreciaes divergentes, com a condio de

    que sejam apoiadas em provas seriamente discutidas e em factos, e que

    no sejam simples afirmaes. A nossa Revista ser uma colectnea de

    cincia positiva e de livre discusso, mas encerrar-se- no domnio dos

    factos e permanecer fechada s teorias polticas ou filosficas.

    Portanto no teremos nenhuma bandeira; no professaremos nenhum

    credo dogmtico; no nos alistaremos sob as ordens de nenhum partido;

    o que no quer dizer que a nossa Revista seja uma Babel onde todas

    as opinies viro manifestar-se. O ponto de vista estritamente cientfico

    onde nos colocamos bastar para dar nossa colectnea a unidade de tom

    e de carcter. Todos aqueles que se colocam neste ponto de vista tm em

    relao ao passado um mesmo sentimento: uma simpatia respeitosa, mas

    independente. O historiador no pode com efeito compreender o passado

    sem uma certa simpatia, sem esquecer os seus prprios sentimentos, as

    suas prprias idias para se apropriar por um instante dos homens de

    outrora, sem se pr no seu lugar, sem julgar os factos no meio onde se

    produziram. Aborda ao mesmo tempo esse passado com um sentimento de

    respeito, porque sente melhor do que ningum os mil laos que nos ligam

    aos antepassados; sabe que a nossa vida formada pela sua, as nossas

    virtudes e os nossos vcios das suas boas e das suas ms aces, que

    somos solidrios de umas e das outras. H algo de filial no respeito com

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    que ele procura penetrar na sua alma; considera-se como o depositrio

    das tradies do seu povo e das da humanidade.

    Ao mesmo tempo, o historiador conserva todavia a perfeita

    independncia do seu esprito e em nada abandona os seus direitos de

    crtico e de juiz. As tradies antigas dos elementos mais diversos so o

    fruto de uma sucesso de perodos diferentes, mesmo de revolues, que,

    cada uma no seu tempo e por sua vez, tiveram todas a sua legitimidade

    e utilidade relativas. O historiador no o defensor de umas contra as

    outras; no pretende suprimir umas da memria dos homens para dar s

    outras um lugar imerecido. Esfora-se por discernir as suas causas, definir

    o seu carcter, determinar os seus resultados no desenvolvimento geral

    da histria. No pe um processo monarquia em nome da feudalidade,

    nem a 89 em nome da monarquia. Mostra os laos necessrios que ligam

    a Revoluo ao Antigo Regime, o Antigo Regime Idade Mdia, a Idade

    Mdia Antiguidade, notando sem dvida os erros cometidos e que

    bom conhecer para evitar o seu regresso, mas lembrando-se sempre de

    que o seu papel consiste antes de tudo em compreender e em explicar,

    no em louvar ou em condecorar (...).

    (...) A nossa poca, mais do que qualquer outra, prpria para este

    estudo imparcial e simptico do passado. As revolues que abalaram e

    perturbaram o mundo moderno fizeram dissipar-se nas almas os respeitos

    supersticiosos e as veneraes cegas, mas fizeram compreender ao mesmo

    tempo tudo o que um povo perde de fora e de vitalidade quando rompe

    violentamente com o passado. No que respeita especialmente Frana,

    os acontecimentos dolorosos que criaram na nossa Ptria partidos hostis

    ligando-se cada um a uma tradio histrica especial, e aqueles que mais

    recentemente mutilaram a unidade nacional lentamente criada pelos

    sculos, criam-nos o dever de despertar na alma da nao a conscincia

    de si mesma pelo conhecimento aprofundado da sua histria. E apenas

    por isso que todos podem compreender o lao lgico que liga todos

    os perodos do desenvolvimento do nosso pas e mesmo todas as suas

    revolues; por isso que todos se sentiro os rebentos do mesmo solo,

    os filhos da mesma raa, no renegando nenhuma parte da herana

    paterna, todos filhos da velha Frana, e ao mesmo tempo todos cidados

    pela mesma razo da Frana moderna.

    E assim que a histria, sem se propor outro fim e outro objectivo a

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    no ser o lucro que se tira da verdade, trabalha de uma maneira secreta e

    segura para a grandeza da Ptria ao mesmo tempo que para o progresso

    do gnero humano.

    A Revista Histrica, n. 258, Abril-Junho de 1976, pp. 322-324

    (extractos) (Retomada do texto original do Manifesto, de 1876: G.

    Monod, Do progresso dos estudos histricos em Frana)