tabarÉ #26

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porto alegre nov/dez. 2013 #26 Loucura Incenso Dique Sementes Sinos saiu pra comprar cigarros

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Edição 26 do Jornal Tabaré Ocupação Saraí Vila Dique Sementes Criolas

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Page 1: TABARÉ #26

porto alegrenov/dez. 2013#26

Loucura • Incenso • Dique • Sementes • Sinos

saiu pra comprar cigarros

Page 2: TABARÉ #26

A r i e l E n g s t e r , C h i c o G u a z z e l l i , F r e d e r i c o S t u m p f , G a b r i e l J a c o b s e n , J o n a s L u n a r d o n , J e s s i c a D a c h s , L e a n d r o H e i n R o d r i g u e s ,

L u í s a S a n t o s , L u n a M e n d e s , M a r c e l H a r t m a n n , M a r c u s P e r e i r a , M a r t i n o P i c c i n i n i , N a t a s c h a C a s t r o , P e p e M a r t i n i , R o d r i g o I s o p p o & Y a m i n i B e n i t e s . P r o j e t o G r á f i c o : M a r t i n o P i c c i n i n i D i a g r a m a ç ã o : F r e d S t u m p f

C a p a : M a r t i n o P i c c i n i n i C o l a b o r a d o r e s : C r i s C a s t r o , S a m u e l G e r b e r T i r a g e m : 3 m i l e x e m p l a r e s

C o n t a t o s : c o m e r c i a l @ t a b a r e . n e t t a b a r e @ t a b a r e . n e t f a c e b o o k . c o m / j t a b a r e D i s t r i b u i ç ã o : F a b i c o � F a m e c o s � I n s t i t u t o d e A r t e s U F R G S

C a s a d e C u l t u r a M a r i o Q u i n t a n a � O c i d e n t e � P a l a v r a r i a � D C E U F R G S S t u d i o C l i o � C o m i t ê L a t i n o - a m e r i c a n o � N o v a O l a r i a | N o v e m b r o / D e z e m b r o 2 0 1 3

Eventualmente recorre-se à história, ora para legitimar um fato ora pra evitar que algo se repita. No entanto, antes de depositar cega ve-

racidade em qualquer documento, deve-se notar que ele está carregado de um dis-curso ideológico interpretativo. Afinal, se a história não é assinada por bilhões de mãos, perguntas haverão de ser feitas: por quem e para quem foi escrita? Passada em branco e naturalizada a falsa neutralidade deste campo vasto de resquícios passados, corre-se o risco de um eterno retorno dos fatos (literal, não Nietzschiano) e uma re-produção quase fiel e alienada dos mes-mos processos.Superado isso, retornemos à alta Idade Média. Lá pelos seus meados, documentos na Europa registravam um indicativo de um grave problema social: a disseminação da lepra. Só nas superfícies periféricas da França, há registros de 2000 leprosários recenseados durante o reino de Luís VIII, o que dirá no resto do continente. O que acontece é que, ao final da Idade Média, a peste some do mundo ocidental e estas enormes estruturas isoladas, úmidas, escu-ras e mortíferas ficam sem habitués. Para reorganizar essa imensa fortuna que rep-resentavam os bens fundiários dos lepro-sários, sem desperdiçá-los, eles tornaram-se hospitais. O filósofo Michel Foucault, em sua obra intitulada “A História da Lou-cura” ousa dizer que, sem dúvida, algo vai permanecer por muito mais tempo que a lepra, e esse algo são os valores e as imagens que tinham aderido à personagem do leproso. Nesse sentido, outros “seres” víti-mas de uma exclusão social haveriam de substituir os leprosos: os loucos e in-curáveis.Já na Renascença, a lou-cura era resolvida ao entregar os insanos à peregrinação eterna ao mar, à incerteza da sorte, confiados a seu próprio destino. Prisioneiros da mais aberta das estradas. Vagando errantes nas águas para não vagar errantes no meio da cidade, uma postura

relação aos direitos humanos. Situações traumáticas podem ser amenizadas quando acolhidas pelo ambiente e a comunidade à qual os sujeitos pertencem, mas não são abandonados em más condições nos lep-rosários contemporâneos - sem contar os abusos e sinais de torturas verificados pelo Conselho Federal de Psicologia em mais de 60 comunidades terapêuticas - sendo que em mais de 90% dos casos a internação compulsória não dá retornos positivos.Não queremos defender aqui a anulação dessa política mas questionar as alternati-vas para combatê-lo. Por menores recursos que se tenha, existem possibilidades já es-truturadas para o trato destas situações tais como: serviços e programas de abordagem de rua, consultórios de e na rua, atenção básica em saúde (postos de saúde, unidades básicas de saúde, estratégias de saúde da família), Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad), redução de da-nos, entre outros. Claro que não são respos-tas, e mesmo essas ações também podem ser questionadas, contudo são alternativas contramaré das práticas hegemônicas da área.Caso ocorra a aprovação do projeto de lei das internações compulsórias, ele vulnera-bilizará ainda mais uma população que já não tem muitos dos seus direitos garanti-dos pelo Estado e reproduzirá ainda mais aquele antigo modelo de exclusão e aban-dono. A maioria das pessoas em situação de rua usam drogas? A maioria das pessoas em situação de sensibilidade são senis? O

crack é um sintoma social de uma con-dição de violência, como a loucura e

seus eletrochoques foram em um passado não tão remoto. Se os an-

tigos padrões continuarem vi-gorando e o protagonismo de sua crítica restar silenciado, o usuário de crack de hoje continuará sendo o louco de ontem que por sua vez é o leproso medieval de out-ros tempos: todos condu-zidos pelas vassouras do poder em direção àquele simbólico mar errante de duras estruturas e longe, bem longe da sociedade, dos veículos de comuni-cação e dos seus próprios direitos enquanto seres humanos.

higienizadora de quem detinha seu controle.Não precisamos navegar tantas milhas tem-porais pra testemunhar que a exclusão e a higienização social são elementos de caráter recorrente nas sociedades ocidentais. As ins-tâncias de poder insistem em resolver a res-socialização por meio do isolamento. Em nos-so país, na véspera de grandes eventos que servirão de vitrine aos nossos colonizadores, tapar sol com peneira é tapar favelas com outdoor, tapar pobre com prisão e - mais re-centemente – tapar craqueiro com internação compulsória.A internação compulsória, em si, já está pre-vista em lei desde 2001. Lei esta que possi-bilita a detenção sob suporte de uma equipe técnica que avalia se não existe qualquer out-ra medida a ser tomada. A atual proposta de lei mantém as atuais possibilidades de inter-nação e acrescenta uma terceira: a interven-ção do Estado antes mesmo de se esgotarem outras medidas possíveis. Ou seja, os entu-siastas desse novo projeto entendem que o único modo de tratar e de cuidar das pessoas que fazem uso “problemático” de drogas é a internação, ou pelo menos nos casos consi-derados mais graves. Tudo em nome da vida, desde que essa vida esteja afastada dos olhos medrosos e inseguros daqueles que veem o riso da morte quando se deparam com a diferença. Tal medida se mostra ineficaz no que tange a saúde (mental ou biológica) e perversa em

Colagens: Jessica Dachs

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Aos caros amigos do jornal Tabaré,Que maravilhosa entrevista da Elke Mara-vilha! Juro que tinha uma visão extrema-mente caricaturada, e quiçá preconceitu-osa, desta mulher antes de ler a entrevista de vocês. Obrigada por trazer al paper esta artista fantástica. Parabéns pelo trabalho.Regina Brackmann, LeitoraQuerida Regina, realmente a Elke é ótima e nossas repórteres também. Gracias pelo cariño e leitura.

O Vagamundo acabou por quê? As pessoas deixaram de viajar ou de escrever?Adriana Varela, MundanaCara Adriana, dizem que está em voga o novo verso “viajar é preciso, escrever não é preciso”. Em alguns casos é bom, outros não. Nossas páginas sempre aguardam o relato-leitor, se tiveres algo na gaveta manda pra gente. Existem outros saudosos que nem tu. Te conto que esses dias recebi carta do Pero Vaz de Caminha pedindo pela volta da seção, tu vê...

Nos anúncios das cartas li mais de uma vez que poderíamos pedir conselhos, cri-ticar, mandar beijo pra mãe, etc – e –tal. Então vim. Acontece que estou sofrendo, Tabaré. Coração prensado, coração pe-sado (do tipo que não passaria pelo teste de mumificação egípcio, sabe?). Gosto de um cara, sempre soube que ele era um pouco complicado, mas visando que eu também não sou flor que se cheire, topei dançar esse tango. Aí vejo que ele é genial, carinhoso, amável e talentoso. Tudo que eu queria. Mas acontece que somos seres dramáticos, então qualquer pormenor se transforma numa ópera do Wagner. O que eu faço? Qual é a solução pra gente ser feliz?Joana Damaceno, RomânticaPô, Jane! Vão se fuder (mentira, eu sei como é e até quase chorei lendo a carta). O que posso recomendar é que vocês tentem transformar os pormenores em Schubert, que é um pouquinho mais animado. Beijos (tâmo junto).

Ô jornaleco... Vocês que são a favor das drogas, tenho uma nova pra contar. Es-ses dias subi lá no morro e me disseram que tá rolando um troço com mesmo efeito da cocaína, que é muito mais forte e aditiva. Perguntei o nome, ninguém respondia. Botavam cara de medo. Achei estranho, normalmente o pessoal não tem tabu em fazer propaganda. Quanto mais aumentava minha curiosidade, maior era a tensão. Deve ser pesada mesmo. Aí pintou um irmão, e de canto me disse: é amor velho... Num é esse que a gurizada propaga por aí “hippie way of life”, amor de esquina ou televi-são, amor de domingo ou amor trocado. O bagulho é heavy mesmo, a la jovem Werther. Não entendi quem era esse tal de Werther, algum traficante famoso talvez, mas deu pra ver que a coisa era perigosa. Então, antes de provar, queria vê se não era possível vocês fazerem uma materiazinha sobre o assunto. Vai que eu me perco por aí... Melhor saber no que tô me metendo antes. Abraço.André Rodrigues, AlquimistaMatéria sobre amor a la jovem Werther? Máfia brava, negão. Sei não.. Pra mim isso cheira à jornalismo kamikaze.

Que fim dar aos jornais?Já tentei de tudo e nada me satisfaz.Já foi forro de gaiola do meu coelho,Já foi usado pra limpar vidro e espelho.

Já serviu de agasalho de mendigo,E emprestado pra leitura de amigo.Mas fica o aperto no coração,Sempre que tenho de diminuir a coleção.

Pilha de Tabaré tão grande que entortaQue tal usar como peso de porta?

Mando esta carta buscando uma solução plena,Atenciosamente,Morena.Morena Chagas, BombrilAi, flor.. Era só o que faltava, Tabaré sendo musa de poeta? (Gênia, tô esperando pra ver que que tu vai mandar na próxima edição, muak)

Dezembro tem mais coisas que a chegada do bom velhinho.

Vem com o Tabaré relembrar acontecimentos de alguns dos duzentos dezembros passados.

As respostas tu confere no nosso site:

www.tabare.net

1. Casa de detenção paulista implodida em dezembro de 2003.

2. Fundação Nacional do Índio, existente desde dezembro de 67.

3. Ícone centenário da arquitetura, falecido em 2012.

4. Cargo público que Arnon de Mello (pai do Collor) ocupava em dezembro de 63quando atirou e matou um colega. Em horário de trabalho.

5. Direito civil conquistado e instituído no Brasil em 77.

6. Tarefa do DIP no Estado Novo em 39.

7. Outro direito, esse dos trabalhadores, previsto em lei desde 86.

8. Cidade onde John Lennon foi assassinado por um fã em 80.

9. Sobrenome dos irmãos inventores do cinematógrafo, que hoje, evoluído, conhecemos por cinema.

10. Apelido da mãe de Caê e Bethânia, que nos deixou em 2012.

11. País que o Fidel presidiu por não menos que 49 aninhos.

12. O inimigo número um da ditadura militar brasileira.

13. Onda de levantes, revoltas e insurreições iniciada em 2010 que ainda perdura, no Oriente Médio e norte da África.

Ilust

raçã

o: Cris

Castro

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tabare.net

Na verdade, eu acho que ninguém veio aqui com a ideia de ficar. Eu acho que o povo veio com uma, como eu vou dizer... com uma manei-ra que não tinha outro lugar, que não acharam

outro lugar onde poder morar (Roda de Memória I, 2011,

Projeto Memórias da Vila Dique)

É sábado, 8:30 da manhã. Dentro de um D-72 no qual entrei no Mercado Público, atravesso parte da Freeway. Após meia-hora, desço às margens de uma avenida metade de asfalto, metade de terra. Mais cinco minutos de caminhada e chego ao Conjunto Habitacional Porto Novo, no bairro Rubem Berta. Aqui vivem 922 famílias, ou 3.500 pessoas, que começaram em dezembro de 2009 a serem reassentadas pela Prefeitura dentro do projeto de remoção da Vila Dique, orçado em R$ 70 milhões e motivado pela ampliação da pista do Aeroporto Salgado Filho por exigência da Fifa. É uma zona da capital esquecida, parte de uma Porto Alegre que pouco pertence aos diqueiros. Estes, vos apresento.

Eu vinha em busca de alguma coisa, como a andorinha

“Eu tô na minha casa aqui, mas meu coração ficou lá”, diz em tom inflamado Rosemara Rodrigues dos Santos, moradora há 31 anos da Dique. “Aqui onde a gente tá não tem barro, mas e os que ficaram para trás?”, indaga com revolta. O aqui de que ela fala é o Conjunto Habitacional Porto Novo, onde está acomodada. O lá é a antiga Vila Dique, localizada às margens do Aeroporto Salgado Filho e onde restam ainda quase 1.100 pessoas. A área começou a ser ocupada em uma região irregular na década de 50 por imigrantes do Interior do Estado – sobretudo de Iraí, Passo Fundo e Taquari. Os primeiros desbravadores ocuparam terrenos grandíssimos, do tamanho de chácaras. Abriram o mato com facões e até pescaram no Rio Gravataí, na época ainda limpo. Durante o dia, a luz vinha do céu. À noite, apenas de velas de cera ou de lanterna de querosene. Para se manter, viviam do lixo dos outros. Encontravam joias, dinheiro e doutros objetos de grandioso

valor. Juntando os achados, espalhavam pelo boca a boca a maré de boa sorte na Dique. “Eles diziam para os familiares do Interior: ‘Vem para cá, a gente tá ficando rico com o lixo!’”, explica a doutora em Educação e professora de História da UFRGS Carmem Zeli de Vargas Gil. A docente é encarregada pelo projeto de extensão Memórias da Vila Dique, iniciativa com o objetivo de promover rodas de conversa com os moradores a fim registrar a história da Dique, além de fortalecer os laços da comunidade.

O barulho dos aviões não espantava os esperançosos de melhorar de vida, e as casas começavam a ocupar o lugar das árvores. Aos poucos, a Dique tomava forma, unida pelo o suor dos interioranos. Por conta disso, muitos negam ter invadido o território. “Invadir, não! Ocupar! Invadir é quando já é de alguém, enquanto que ocupar é onde tá vazio!”, disse um morador em uma roda de memória em 2011. Assim, casas eram construídas e, posteriormente, vendidas. Por isso, muitos diqueiros se sentem lesados pela remoção para o Porto Novo, visto que deixam para trás casas adquiridas com dinheiro contado.

Aos poucos, formava-se uma comunidade que reivindicaria escola, igreja, galpão de reciclagem e posto de saúde. A Prefeitura, no entanto, não atendia às exigências, devido à ocupação irregular do território. Casas viviam com fiações de luz expostas e irregulares, sem água encanada e com lixo e esgoto ao ar livre. A cada eleição, algum político visitava a vila e prometia melhorias, sem que isso se efetivasse. “A tensão entre o ficar e o sair tem acompanhado os moradores, que se constituíram vivendo o transitório e almejando o permanente”, analisa Carmem no livro Da Vile Dique ao Porto Novo, publicado pela UFRGS.

Por conta da ausência do poder público, os diqueiros se movimentaram. O primeiro grande passo foi o Clube de Mães Margarida Alves, associação de mulheres que lutava por conquistas para a comunidade. Da força dessas mães, nasceu uma creche na qual deixavam os filhos durante o expediente no galpão de reciclagem, para evitar que usassem o lixo como brinquedo. Dona Maria Nazário Pereira, moradora da Dique há 24 anos e

uma das fundadoras da creche, conta que o clube nasceu no porão da Igreja Santíssima Trindade. A capela era lugar de alfabetização, reza, velório e até mesmo de entrega de leite. O que mais chamava a atenção, no entanto, eram os tradicionais galetos, preparados pelo clube para juntar dinheiro a fim de trazer melhorias à vila. “Na Dique, as pessoas comiam e era quase uma festa”, conta Maria Nazário. A agente de saúde comunitária do Grupo Hospitalar Conceição (GHC) Almerinda Gambin, chamada de Miranda por todos, relata o esforço: “O prédio foi a gente mesmo que construiu, [porque] a Prefeitura alegou que era área irregular”, afirma. “Nós lutando, lutando, lutando para que viesse verba para pagar algum funcionário. Até que a gente conseguiu, porque acho que o prefeito se encheu de nós, de tanto que a gente ia no gabinete dele todo o dia”, afirma entre risadas. Relembrar para Miranda parece fazer bem, deixa ela com um sorriso no rosto.

Colégio também faltava. Os jovens da Dique

estudavam nas escolas mais próximas da região, apesar das dificuldades. “Pra estudar, chegavam lá e as professoras não deixavam nem entrar na sala. Chamavam de sujinhos, piolhentos, de tudo. Aí, as crianças vinham para casa revoltadas, não queriam ir para o colégio de jeito nenhum”, afirma Miranda. Para motivar a piazada, eram feitos torneios de bola. Quem quisesse participar, precisava ir no colégio. Quem matasse aula, não poderia jogar. Depois de muita luta, nasceu a Escola Migrantes, primeira instituição da Prefeitura a oferecer turno integral. Os jovens entravam de manhã e saíam apenas às 17h, já com cinco refeições na barriga. Atualmente, é a única instituição pública presente na Dique, na qual estão matriculados os jovens que ainda não foram removidos. Outra vitória do Clube de Mães foi a Padaria Chico Pão, que oferecia cursos de padeiro aos jovens da comunidade. O pão feito nas aulas se comia na hora, e o resto era levado para casa a fim de alimentar a família. Por último, a aguarada conquista de um posto de saúde, filial do GHC. As lembranças dos esforços conjuntos parecem unir a comunidade. Mas é apenas na memória que tais espaços perduram: devido às remoções, somente a Escola Migrantes ainda resta de pé na Dique.

por Marcel Hartmann

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catadores ou recicladores. O formal do Porto Novo assusta eles”, afirma. Por conta disso, cerca de 200 famílias já negociaram com outras pessoas o cadastro de moradia na Dique junto à Prefeitura, o que equivale a dizer que venderam a futura propriedade no Porto Novo antes mesmo de terem as chaves na mão. Em relação às cores das casas, ela justifica que a decisão é tomada para poupar gastos. Cada casa teve até agora o custo de 20 a 25 mil reais. A partir de agora, o valor subirá para 50 mil graças ao financiamento oferecido pelo programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal.

Maria Horácia explica que batalhou junto aos

engenheiros da construtora Dan Herbert, responsável pelas obras, pela adoção de gramados nas casas a fim de evitar o cinza artificial de um pátio de azulejo. E sobre a distância em relação ao Centro da capital, ela rebate: “Foi onde conseguimos achar uma área suficiente para construir tudo”. Para ela, é natural que haja uma não aceitação por parte da comunidade. “A resistência inicial é natural. O novo assusta esses moradores. Eles passam por um processo de luto, e nós do Demhab não temos um trabalho voltado para ele. Não é da competência do Demhab lidar com o psicossocial, apesar de eu achar isso necessário”, explica. Ela acrescenta que o departamento se foca nos eixos da organização comunitária (ensinar a comunidade reassentada a lidar com a nova casa e as novas relações de vizinhança) e de educação ambiental. Sobre remover a população aos poucos em vez de simultaneamente, ela diz que o problema foi o atraso na entrega das casas por parte da construtora. Por isso, um número maior de pessoas já deveria ter sido removido, o que impactaria menos nas relações de vizinhança.

Quem caminha nessa corda-bamba e busca se equilibrar são os diqueiros - da antiga e da nova Vila Dique. Separados por 7,5 km de distância, os 4.600 moradores seguem o curso da vida. Há aqueles como Rosemara, que se inquieta pelos que ainda não vieram, assim como aqueles parecidos com Dona Enedina, que se tranquiliza por deixar a Dique no passado. Apesar da divergência de opiniões, toda a comunidade partilha do mesmo sentimento: o futuro há de ser diferente.

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O Porto Novo pertence a nósDona Enedina Durão Espindola e sua filha, Gisele

Durão Espindola, me recebem em sua casa em outro sábado de manhã, duas semanas após meu primeiro D-72 me largar no Porto Novo. Enquanto me conta sua história, Enedina amamenta o filho pequeno, ainda bebê. Ela começou a trabalhar aos 10 anos arrancando mato e dobrando milho. É fundadora da Associação de Amigos e Moradores da Vila Dique, trabalhou no reassentamento e sabe na ponta da língua a data em que veio para o Porto Novo: 24 de fevereiro de 2010. “Eu não via a hora de sair da Dique”, afirma aliviada, depois de viver mais de 30 anos vizinha ao aeroporto. “A situação da nossa comunidade era muito grave por conta da moradia. Valas abertas e as crianças normalmente brincando naquelas águas sujas. Os problemas de saúde foram aumentando. Assim, ou o governo resolvia isso, regularizando nossa situação, ou nos reassentava”, explica. Apesar de deixar para trás um terreno de 130m2 em prol de uma casa de 38m2, ela tem razão em se sentir melhor no Porto Novo: na Dique, perdeu o pai por atropelamento e uma filha de 15 dias por bronquiolite devido a problemas de infiltração na casa. A falta de estrutura era crônica. “Tínhamos que tomar banho a partir da meia-noite, porque só assim tinha água para todo mundo. Também tinha problema de estourar o transformador e a gente ficar até 48h sem luz. A CEEE não tinha boa vontade em vir porque era tudo gato”, conta. Gisele, a filha, explica que a remoção impactou até na busca de trabalho. “Antes a gente era tratado como vileiro e não recebia emprego. Agora é diferente”, conta.

No entanto, apesar do relato das duas, nem tudo parece ser o paraíso. “No Porto Novo, acabaram com as festas que a gente fazia”, conta Maria Nazário. “E essa parte de convivência e integração é importante”. Além disso, a população alega que o projeto de reassentamento por ela pensado não foi levado em conta, visto que a intenção era de que todos fossem removidos ao mesmo tempo. Detalhes pequenos, com o passar do tempo, tornam-se grandes. O endereço das novas casas, ainda não legalizado, impossibilita que as contas cheguem por correio. Como consequência, os moradores se veem no risco de virarem devedores. “Há que se pensar também

nos pertencimentos que são reconfigurados: relações de vizinhança são desfeitas, animais e objetos são descartados e grandes famílias divididas”, argumenta Carmem em Da Vila Dique ao Porto Novo.

Ao vivo, no nono andar do prédio da Faculdade de Educação da UFRGS, a docente segue defendendo a mesma ideia. “Quem olha de longe percebe a remoção apenas como positiva. ‘Por que estão reclamando? Antes tinha lixo!’. Mas quando tu entra na casa das pessoas, tu vê que houve uma reconfiguração de laços”, afirma Carmem, que acompanha o processo de remoção desde 2011. Ela critica as ações da Prefeitura. “É um discurso muito pautado pelo progresso e pela higienização, que coloca os moradores em um lugar muito inferior. É uma politica que considera que, por serem pobres, as pessoas não podem discutir as novas casas”, defende. Segundo ela, destinar uma casa no Porto Novo com um pátio pequeno para um morador que vive como catador de lixo é inviável, visto que essa foi a atividade que ele desempenhou durante toda a vida. Para ela, proibir o armazenamento de carroças e cavalos na área limitaria as atividades do novo habitante. “Remoção é direito à moradia, mas também à cidade, à educação, à saúde, entre outras coisas. Não é só ficar nas rebarbas da cidade”. Além disso, ela desaprova a entrega de casas na mesma cor. “Por que fazer as casas todas iguais e do mesmo tamanho? Parece que pobre é tudo igual!”.

Outro obstáculo apontado se refere à atividade econômica que deverá ser empreendida pelos novos moradores. Quem era catador deverá trabalhar na triagem de lixo, ganhando menos do que antes e tendo que arcar com os novos custos de uma moradia regularizada. “Muitas pessoas não conseguiram se inserir no mercado de trabalho para manter esta estrutura que dá uma nova qualidade de vida. E as contas a pagar?”, indaga Carmem. Aos moradores, a Prefeitura ofereceu diversos cursos, como de informática, cobrador de ônibus, manicure, cozinheiro, entre outros. Maria Horácia Ribeiro, psicóloga superintendente de Ação Social e Cooperativismo do Departamento Municipal de Habitação reconhece que a iniciativa não deu certo, mas responde às outras criticas. “Os moradores que querem voltar para a Dique é por conta das atividades que sempre desempenharam, como de

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O segundo capítulo da Constituição brasileira versa sobre os Direitos Sociais do cidadão.

Ali, no artigo sexto, está: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação,

o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência so-cial, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Ou seja: a moradia equivale à saúde, à educação e

a tantos outros enquanto direitos sociais garantidos ao ci-dadão. É obrigação do Estado, portanto, prover condições de moradia a brasileiras e brasileiros, não importa de onde vêm ou onde vivem.

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Do muito movimentado centro de Porto Alegre, grande parte das pessoas que circulam não sabe que em uma das suas esquinas esquecidas - abandonadas, é melhor dizer - está um prédio vazio - abandonado, é melhor dizer - que pela quarta vez é ocupado por famílias integrantes do Movimento Nacional de Luta e Moradia, o MNLM. Talvez estas pessoas lembrem de um prédio aleatório que, pela situação de abandono, até mesmo o PCC, maior grupo de crime organizado do país, fez dali sede para uma fracassada tentativa de roubo a banco. Este prédio amarelo de paredes pichadas está em frente ao Cais do Porto, tem entrada pela Rua Caldas Júnior na esquina com a Avenida Mauá e presenteia, aos poucos que já subiram suas escadas, uma das belas vistas do Guaíba que possui a cidade.

Quando chegamos, o estrondo das correntes

batendo com força na porta de metal da entrada e a grossura dos cadeados que a trancam fazem clara a necessidade constante de vigilância dos novos moradores. Afinal, em meados do último setembro, a polícia militar invadiu o prédio e agrediu ocupantes. O próprio Comandante da Brigada Militar admitiu a agressão e declarou que a operação foi ilegal e não teve ordens do comando central. Os primeiros contatos de nossa reportagem seguem os tons de cautela. É com as conversas, as demonstrações claras de nossas intenções, um início de convivência que a cautela dá lugar à abertura. Um afeto mais do que suficiente para dar suavidade à dureza dos metais e calor ao frio de uma construção de espaços semi destruídos. Um lugar que, num primeiro momento, precisa de força de imaginação para que muitos de nós o consideremos algo perto de uma casa. Mas que se faz perceber, depois destas impressões iniciais, o potencial que têm as pessoas para transformá-lo em lar.

Quem nos recebe neste primeiro encontro é Paula Soares e Ceriniani Vargas, a Ni, duas integrantes de anos do MNLM, experientes na luta pelo direito à moradia no país. Ni, graduanda em Ciências Sociais na UFRGS, é uma das coordenadoras do movimento no Rio Grande do Sul e descreve muito das questões de formação e de ideais que compõem o coletivo:

- Os movimentos pela moradia começam lá

pelo final da década de 80, onde se tem um grande movimento das pessoas saindo da área rural e indo para as cidades, e onde existe uma maior abertura para que se possa formar esse tipo de iniciativa. Nessa época, o MNLM trata muito dessa questão das ocupações irregulares, de pessoas que vinham tentar a vida na cidade e descobriam que aqui não era tudo o que diziam, que era muito difícil de sobreviver. Em 1990, houve um grande encontro desses movimentos locais e surgiu o Movimento Nacional de Luta pela Moradia.

Antes focado na regularização e resistência desses

que ocuparam morros, arroios, terrenos baldios, construções abandonadas, hoje o movimento é atuante em diversas instâncias pela garantia do direito à moradia. É integrante do Conselho das Cidades, criado pelo governo federal e orquestrado pelo Ministério das Cidades, e tem na questão da reforma urbana - uma reforma que garanta uma moradia digna e legal à população sem-teto - a sua maior bandeira. Mais do que isso, uma reforma que garanta às populações carentes habitações nas regiões efetivamente centrais das cidades, acabando com o estigma de programas governamentais que, insistentemente, acabam conduzindo famílias para

as periferias das metrópoles, longe de seus locais de trabalho e de serviços de necessidade básica muitas vezes inexistentes nessas regiões afastadas.

Paula é uma das coordenadoras da atual ocupação,

tem 50 anos, grande parte deles integrando movimentos negros e pelo direito à moradia. É uma negra de belos cabelos trançados e leva o jeito de falar da sua militância como quem descreve uma paixão. Se entende o caráter apaixonante a que ela adjetiva suas ações quando afirma que “se não fosse por essa luta, muitos de nós não teríamos onde morar, como sobreviver”. É uma paixão que se confunde com o instinto de sobrevivência quando fala que não estremece quando vê, sem poder reagir, agentes da lei botando abaixo lugares humildes que por certo tempo foram sua morada.

A entrada do prédio é tomada por várias faixas que identificam a ocupação e deixam claro o porquê de estarem ali. Segundo os moradores, é um reconhecimento necessário para demonstrar que são indivíduos e famílias na busca por habitação, e que não necessitam ficar às sombras. Isso dá mais abertura com a vizinhança, por sinal, uma das políticas dos moradores: tentar relacionar-se bem com os vizinhos. O primeiro andar é da portaria, onde os visitantes necessariamente têm de se identificar. Após o primeiro lance de escadas, está a área de convivência, onde ocorrem as atividades culturais e os encontros promovidos pela Ocupação. A Ciranda, área das crianças, a cozinha coletiva e os banheiros, também compartilhados, estão aqui. O terceiro andar é o dos quartos, atualmente delimitados por lonas e barracas - o acesso é restrito. As paredes por toda a ocupação, ora destruídas, agora ganham vida com pinturas e frases de efeito: “se morar é um privilégio, ocupar é um direito” é uma que se lê com frequencia. A área da Ciranda, por exemplo, ganhou a decoração de dezenas de palmas de mãos de crianças gravadas com tinta rosa. Muitas destas crianças hoje são praticamente adultas, já que as palmas estão registradas ali faz 7 anos. Assim como outras pinturas, resistem desde as primeiras ocupações. Hoje, a ocupação abriga em torno de 30 pessoas, de crianças a senhoras de 70 anos.

O prédio tem uma história atribulada. Construído

com recursos públicos pelo Banco Nacional de Habitação, ele era destinado, justamente, à moradia social, onde abrigaria entre 40 e 50 famílias. Isso nunca aconteceu. Repassado à Caixa Econômica Federal, serviu de escritório até que foi esvaziado, há mais de 20 anos. A Caixa então decidiu vendê-lo, e a construção deixou de ser federal para se tornar propriedade particular: no início dos anos 2000, foi vendido por 600 mil reais para a família De Conto, controladora da Risa Empreendimentos Imobiliários LTDA. Até hoje, o prédio continua abandonado, o que demonstra claramente, segundo o MNLM, que os novos proprietários se interessam no imóvel somente pela possibilidade de lucro a partir de especulação. Foi nesse meio tempo de total abandono que a polícia descobriu que o PCC cavava um gigantesco túnel no interior do prédio, que seria utilizado para um assalto a banco na capital gaúcha. A Risa havia revendido o prédio por 1 milhão e 200 mil reais, o dobro do valor que havia pago, para um laranja da organização. Isso em 2006. Depois de grande imbróglio, o prédio voltou para o controle da empresa, apesar de a matrícula do imóvel nunca ter sido oficialmente transferida pela Caixa Econômica. Ainda assim, o prédio continuava vazio.

300 contra 30 O prédio é símbolo da luta nacional pela

moradia, diz Ni. Essa é a quarta vez que ele é ocupado. Duas delas foram ações de denúncia pela situação do prédio, com duração de um ou dois dias. A ocupação de moradia que mais durou teve 4 meses, de 20 de novembro de 2006 a 23 de março de 2007. A maneira como foram removidos também é simbólica, mas da repressão. Paula e Ceriniani contam juntas uma história ouvida muitas vezes, por muitas vozes, nos encontros na Saraí:

“Era seis da manhã e nós acordamos com o

barulhos das sirenes, da marcha e dos cassetetes batendo nos escudos. A Avenida Mauá estava toda fechada e mais de 300 policiais nos cercavam. O batalhão de operações especiais descia a fachada do prédio vizinho de rapel. E aqui dentro estavam umas 30 pessoas, inclusive as crianças. Nós sabíamos que, mais do que garantir a nossa expulsão, eles queriam deixar claro como iam agir nessas situações. Era uma questão de demonstração de força, uma agressão psicológica.”

Na época, a ocupação se chamava 20 de

Novembro. Daí, surge a cooperativa de mesmo nome, que hoje é um dos principais núcleos do MNLM no estado, servindo de artifício para lidar com questões legais e também de fonte de renda: a cooperativa tem, além de outras atividades, produções de artesanato, serigrafia e panificações.

Após a remoção, o prédio foi ocupado novamente

em 2011, uma ocupação-simbólica de 40 horas na qual a intenção era a denúncia. Até que, em 28 de agosto deste ano, em uma ação que integrou a Jornada Nacional de Luta pela Moradia, o prédio foi ocupado uma vez mais. Decidiram, agora, que a ocupação se chamaria Saraí. Integrante do movimento, Saraí foi a primeira vereadora negra de Porto Alegre e faleceu em março. Desta vez, a intenção é conseguir fazer com que o prédio seja de fato revertido para a moradia social.

Função social da propriedade A primeira tentativa do Movimento para a

situação é obter na Justiça a desapropriação por abandono do imóvel. O principal argumento dos ocupantes é fundamentado por algo chamado função social da propriedade.

“Fruto da luta dos movimentos pela moradia,

foi aprovado o Estatudo da Cidade, que transforma em lei a questão da função social da propriedade. Ou seja, o proprietário não tem o direito sobre uma propriedade privada só porque ele pagou por ela. Também tem obrigações, seja de terrenos, de casas, prédios, outras construções. Não é porque aquilo é propriedade privada que pode ficar abandonado por décadas se outras tantas pessoas podem fazer daquilo moradia. Mesmo com a lei federal aprovada, nenhum estado a cumpre justamente porque as construtoras e os empresários utilizam esses imóveis para a especulação e, hoje, é a vontade deles que vale”, explica Ni.

Ela conta que, na última reunião na Comissão

de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS, precisou deixar claro ao procurador de Justiça presente que ela “também entendia de leis” ao se posicionar contra a reintegração de posse concedida pela Justiça

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aos proprietários atuais. O argumento serviu e a Comissão acertou um prazo de 60 dias de negociação antes que a reintegração de posse seja cumprida. O deputado estadual Jeferson Fernandes, PT, presidente da Comissão, explica que o prazo também foi concedido para garantir segurança aos ocupantes depois da violência policial mais recente, além de uma remoção, se necessária, o menos agressiva possível. Aliás, a ordem de reintegração de posse do prédio foi expedida 4 dias (contando aí um final de semana) após a ação de ocupação. O deputado também ressalta que procedimentos legais foram deixados de lado na aprovação do despejo e que isso pesou para que os moradores obtivessem um prazo para negociação. Dada às tratativas nesta Comissão, a ordem não foi cumprida. Enquanto isso, as famílias dali têm até o dia 24 de dezembro para negociarem, discutirem, resistirem e pressionarem os governos para garantir que não sejam uma vez mais removidas.

No dia 12 de novembro se realizou uma Audiência

Pública na Câmara de Vereadores para debater a questão da Saraí. Estavam presentes, além de vereadores, um representante da Caixa Econômica Federal, a defensora pública Adriana Schefer, que trabalha com movimentos sociais para a habitação, uma procuradora do município de Porto Alegre, o secretário de Habitação do estado, uma representane do Departamento Municipal de Habitação, além, é claro, de vários ocupantes da Saraí. Na Audiência, a Procuradora Andrea Vizzotto esclareceu que, apesar de ser na teoria a melhor ferramenta legal a ser buscada para a conquista do prédio, entrar com um processo para a desapropriação do imóvel baseado na questão da função social da propriedade é inviável. O tempo da burocracia é imenso, o processo como um todo duraria mais de 3 anos, no mínimo. É um artifício legal que fica inutilizado por sua própria regulamentação: uma burocracia que não cabe às urgências das populações. Mesmo com diversas indefinições levantadas na Audiência, como o atraso no pagamento do IPTU pelo proprietário, a questão do financiamento ainda não esclarecida pela Caixa e outros entraves que servem de argumento para a transformação do prédio em moradia social, a desapropriação parece não ser uma opção viável.

Dessa maneira, a alternativa no horizonte

da Ocupação é uma que causa estranhamento à população em geral quando se fala em movimentos de luta por moradia ou de pessoas sem-teto: a possibilidade de compra do imóvel. É claro que para tanto seriam necessários recursos e financiamentos governamentais, além de interferências como a

declaração do imóvel como sendo de interesse social, mas essa alternativa vem sendo utilizada cada vez mais por movimentos pela moradia social. O programa federal Minha Casa, Minha Vida tem uma regulamentação específica que trata do financiamento dos recursos geridos por entidades cadastradas junto ao governo. A cooperativa 20 de Novembro é cadastrada sendo, assim, capacitada para gerenciar recursos tanto da compra quanto das reformas necessárias ao prédio. E tal opção não seria inédita: a própria cooperativa é a entidade gestora de quase 5 milhões de reais destinados à obra de um prédio na Rua Barros Cassal, também na região central de Porto Alegre, que foi conquistado pelo movimento para servir de moradia social. Diversas famílias já estão no processo de fazer daquele prédio sua residência legal.

Uma das necessidades do movimento é de conseguir fazer com que a sociedade entenda que não só os mais carentes são afetados pela especulação imobiliária, mas todos os cidadãos. O jogo das construtoras e dos especuladores, segundo o MNLM, afeta a todos ao elevar o preço dos imóveis artificialmente visando tão somente o lucro. É o caso clássico de formação de uma bolha, já que toda essa valorização nada mais é do que, como diz o termo, especulativa. Além, é claro, de toda a função social que deveria ser cumprida. Só em Porto Alegre, dados do IBGE de 2010* confirmam que existem mais de 46 mil imóveis vazios, sem uso, que poderiam servir de moradia. O MNLM aponta que 70 mil famílias estão em situação de desabrigo na região metropolitana da capital.

Essa questão dos vazios urbanos é muito presente

entre os que discutem a reforma urbana nacional e internacionalmente. Sobretudo os grandes vazios urbanos nas áreas centrais das grandes metrópoles. Em 2010, havia cerca de 6,07 milhões de habitações vagas no Brasil. O número necessário para suprir as carências de moradias familiares era de 5,8 milhões de domicílios*. Havia em torno de 200 mil imóveis vagos a mais do que o necessário para suprir o déficit existente. Países como Inglaterra, Holanda e Alemanha têm legislações específicas sobre o tema, proibindo os imóveis centrais de ficarem vazios sem justificativa por determinado tempo, geralmente em torno de seis meses. Após esse período, a propriedade pode ser ocupada e, inclusive, demandada judicialmente pelos ocupantes. Os movimentos sociais por moradia, em muitos países europeus,

foram fundamentais para o reconhecimento de direitos básicos e o estabelecimento dos Estados de Bem-Estar Social. Um dos desafios dos estudiosos e militantes em solo brasileiro é elevar a discussão a esse ponto. Ni afirma que é preciso fazer com que essa idéia de reforma urbana esteja atrelada às reformas necessárias ao desenvolvimento do país. “Pela luta dos movimentos do campo, hoje muitos entendem a importância da reforma agrária para o país. Podemos comparar os latifúndios improdutivos com os grandes vazios urbanos das cidades”, diz ela. “É uma improdutividade que afeta toda a sociedade”.

Máquinas de estragar casas Os ocupantes contam que a situação das crianças

que vivem nas ocupações não é tão somente casualidade. É, além disso, ideologia. Num dos encontros na Ocupação, Ezequiel Morais, outro coordenador do MNLM explica que “para nós, o melhor lugar para a criança é junto com a família. O movimento é um movimento família na essência”. Paula concorda descrevendo como o primeiro lugar a ser organizado nas ocupações em que participou sempre foi a área infantil, chamada de Ciranda, onde as crianças convivem. Mas se as situações pelas quais passam são capazes de traumatizar adultos que há muito lidam com estas questões, fica claro que as crianças necessitam de um olhar ainda mais cuidadoso.

Na ocupação Saraí, assim como naquelas que

a antecederam no mesmo prédio, vivem jovens e suas respectivas famílias. São organizadas atividades de educação e de diversão em conjunto, e também desde sempre esses pequenos e pequenas aprendem não só como é importante lutar para garantir seus direitos, mas também uma outra forma de vivência - compartilhada, coletiva, diferente do que comumente se propaga porta afora do prédio ex-abandonado onde hoje moram.

A escolha pela vivência nessas lutas também é

uma escolha de encarar a dura realidade com aqueles que se elegeram para viver junto: amores, parentes, amizades. Para as mães e pais, é uma escolha de não fazer da ilusão uma marca da infância.

Quando da demolição das casas da última

ocupação onde morava, Ni conta: “Até hoje, se minha filhinha vê uma

retroescavadeira na rua ela aponta e diz: olha, mãe, uma máquina de estragar casas”.

(foto por Jonas Lunardon)

*Informações do Censo IBGE/Pnad 2010. No cálculo

de imóveis vazios não são considerados imóveis de veraneio

e de ocupação ocasional, nem aqueles em que os moradores se encontravam ausentes (por

exemplo, em viagem) durante a realização da pesquisa.

Vazios Urbanos

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nov/dez. 2013 #26 9

“Eu sempre carrego sementes crioulas no bolso. Desde criança.”

Pedro Kuntel tem 57 anos e vive em Panambi, no noroeste do Rio Grande do Sul. Já foi frei mas largou a batina. Filho de agricultores, aprendeu com o pai a levar as sementes para todo lugar que vai. Assim, Kuntel cumpre uma das missões dos guardiões das sementes crioulas: levá-las a outras terras, outros produtores.

Kuntel fala com carinho das sementes. Demonstra uma característica dos guardiões: ver na terra mais do que um instrumento; ver nos grãos mais do que um produto. As sementes crioulas são grãos mantidos por agricultores há muitas gerações, bem adaptadas aos locais onde são cultivadas e importantes para a agricultura de subsistência. Diferente das sementes convencionais, são produzidas e reproduzidas pelos próprios produtores, os chamados guardiões, que as plantam e as protegem para que não desapareçam. “É uma questão de vida”, resume Kuntel. Baseados na agricultura familiar, os guardiões apareceram assim que as espécies silvestres foram domesticadas. Eles garantem: desde que existe agricultura, há guardiões; onde houver terra plantada, há guardiões.

Na contramão da agricultura majoritariamente praticada por estas bandas, que adapta o meio ambiente aos seus interesses, esses pequenos agricultores são parceiros da natureza – trabalham juntos e juntos desenvolvem as sementes, cooperando no melhoramento dos grãos. As sementes crioulas não são intocadas, sem nenhuma modificação. Pelo contrário, estão em ininterrupto desenvolvimento. No entanto, diferentemente de sementes transgênicas ou híbridas, esse processo é natural. O pequeno agricultor faz sua

parte selecionando as melhores sementes, e a natureza complementa adaptando-as ao ambiente, tornando-as mais resistentes aos respectivos climas e doenças e aumentando a qualidade dos grãos. “Ela não se mantém original porque o ambiente é variável. É um processo coevolutivo”, garante Irajá Ferreira Antunes, pesquisador da Embrapa Clima Temperado, de Pelotas, que há mais de 10 anos estuda as sementes crioulas.

Mantidas por famílias camponesas por um longo tempo, as sementes crioulas passam de geração a geração, criando assim uma forte ligação dos grãos com o lugar onde são cultivados. Mais do que isso, a ligação se estende às próprias comunidades. “Cada cultivar tem uma história associada a ela, uma questão cultural”, afirma Antunes. Por isso, diferentes etnias lidam de diferentes formas com as sementes crioulas. Quilombolas, açorianos, italianos, alemães, cada uma tem seus cultivos específicos. Para os índios, por sua vez, a relação com as sementes é mais especial – para eles, os grãos não são só fonte de alimentos, mas fazem parte de sua cosmologia.

Agroecologia e independência Entender as particularidades nas relações das

diferentes etnias com as sementes crioulas é um dos pontos principais da pesquisa de Antunes. Além disso, ele busca descobrir quais são as cultivares (formas específicas das plantas, com características próprias de produção) plantadas em cada região, já que elas variam de lugar para lugar. Enquanto algumas espécies, principalmente feijão e milho, estão presentes em quase todas as lavouras, outras aparecem mais em determinadas localidades – no litoral, por exemplo, a cebola é cultivada em todas as propriedades. Daí pra frente, é grande a

variedade de sementes: abóbora, melão, feijão miúdo, mandioca. Cada propriedade pode ter centenas de espécies. No caso de Kuntel, são mais de cem. Em Panambi, o agricultor trabalha numa chácara que um amigo ecologista disponibiliza para a reprodução e multiplicação dos grãos. Kuntel também colabora numa propriedade do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) em Santa Cruz do Sul.

O MPA, aliás, tem um papel importante na preservação e difusão das sementes crioulas. Além de organizar os pequenos agricultores, disponibiliza uma equipe de 12 técnicos que auxilia os produtores e distribui sementes – em 2013, foram mais de 100 toneladas entregues no Rio Grande do Sul. Outra frente levantada pelo MPA, na qual Kuntel contribui, é incentivar mais produtores a plantarem sementes crioulas. Segundo Kuntel, a aceitação costuma ser grande, principalmente nas regiões Norte e Missões e nas comunidades indígenas. A Embrapa tem catalogado os guardiões e já localizou entre 130 e 140 no Rio Grande do Sul.

Conquistar novos produtores para as sementes crioulas não é uma tarefa fácil, no entanto. A concorrência com os transgênicos é grande, além de ser muito menos trabalhoso produzir com agrotóxico. O cultivo das sementes crioulas, por sua vez, está associado à agroecologia e não utiliza venenos. Algumas variedades ainda agem como melhoradoras do solo, como o centeio e o feijão-miúdo. Para Antunes, cuidar das sementes é também cuidar da própria saúde. “É um patrimônio da humanidade. Na medida em que preservamos, de forma indireta estamos promovendo a segurança alimentar”.

Há uma forte preocupação com a contaminação dos genes pelos transgênicos. As lavouras de sementes crioulas muitas vezes são vizinhas de plantações transgênicas, hoje predominantes na

por Ariel Engster

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agricultura brasileira, e o vento pode carregar sementes de um lado a outro, misturando as variedades. Além disso, a produção orgânica pode ser afetada pelo uso de agrotóxicos nos campos de transgênicos, igualmente pulverizados pelo vento, além de contaminar solo e água.

O plantio de sementes crioulas também representa independência para os agricultores. Eles são os donos das sementes que plantam, diferentemente do que acontece com as transgênicas. Nas palavras do técnico agrícola da Emater/RS-Ascar, Giovane Vielmo, “não tem intermediários, não tem nenhuma transnacional por trás disso. Não cria nenhuma dependência. O próprio agricultor manda nas suas sementes”. As sementes crioulas não são comercializadas por empresas, os fornecedores são os próprios agricultores. As sementes são retiradas da própria produção para serem plantadas novamente, não precisam ser compradas a cada safra - a não ser que se busque uma nova variedade, vinda de outras bandas, outras gentes.

Os agricultores têm dois pontos fortes para atrair o consumidor: além da produção ser crioula, é orgânica. O preço acaba sendo maior do que o dos outros alimentos, mas isso não costuma diminuir a procura; pelo contrário, aumenta os rendimentos do agricultor pois se paga mais por um produto melhor. A maior parte da produção, porém, ainda é para subsistência. Além disso, alguns agricultores mantêm a produção unicamente pela tradição.

Em Ibarama, surge uma associação O pequeno município de Ibarama fica nas

proximidades de Santa Cruz do Sul e tem pouco mais de 4 mil habitantes. Colonizado principalmente por italianos, conta também com

uma expressiva população de descendentes de alemães. A maior parte dos moradores vive da agricultura, base da economia do município. Nas pequenas propriedades, plantam feijão, milho, fumo, frutas e hortigranjeiros, sobretudo para consumo próprio, mas vendendo os excedentes.

Em 1998, técnicos da Emater identificaram em Ibarama vários agricultores que já cultivavam sementes crioulas em suas terras e que começaram a organizar uma associação. Os técnicos cadastraram os produtores, fizeram reuniões e formaram um grupo informal de agricultores que faziam o trabalho de multiplicar as sementes. Dez anos depois, em 2008, o grupo tornou-se a Associação dos Guardiões das Sementes Crioulas de Ibarama, com 32 participantes – hoje já são 70. Alguns membros da Associação chegam a cultivar mais de 150 variedades. O principal cultivo é o milho crioulo, sendo plantado em 3,5 mil hectares em mais de mil propriedades.

Antes da Associação, 90% da produção era de milho híbrido, ou seja, um cruzamento entre duas variedades. As sementes híbridas não carregam as características das plantas que as geraram e, por isso, precisam ser compradas sementes novas a cada safra. As híbridas são mais homogêneas, o que facilita o manejo e a colheita, mas precisam de muito fertilizante e agrotóxico. Atualmente, o percentual de uso de híbridas baixou para menos de 50%. Com as crioulas, os produtores tiveram gastos reduzidos, deixaram de usar venenos e puderam aumentar seus rendimentos com as trocas e vendas para outros agricultores.

A organização dos agricultores permite a circulação das sementes, diversificando a produção e fortificando as variedades. As sementes escolhidas são multiplicadas e depois distribuídas entre os

agricultores. Uma semente que chega a uma nova região, onde não é conhecida, pode se tornar uma nova fonte de renda para os moradores do lugar. A Associação busca também assegurar que o trabalho dos guardiões não se acabe. Grande parte dos guardiões são idosos sem herdeiros – os filhos, se os tiveram, já abandonaram a lavoura para tentar a vida na cidade. Por isso, há uma grande preocupação em conquistar os jovens para seguir esse caminho. Com alunos e filhos de produtores, a Associação criou um grupo de Guardiões Mirins, buscando aproximá-los das sementes, transmitindo o carinho e os conhecimentos para incentivá-los a assumir o papel dos pais ou avós.

Além do risco de redução do número de guardiões, a produção de sementes crioulas enfrenta o problema da falta de registro. A produção era quase ilegal, pois, pela própria variabilidade, as sementes não preenchiam os requisitos exigidos pelo governo. A Embrapa tem pesquisado as sementes para caracterizá-las, analisando seus aspectos agronômicos, nutricionais e, principalmente, culturais para resolver esse empecilho. O registro permitiria que os agricultores comercializassem as cultivares como sementes e também que os produtores tivessem acesso a benefícios como crédito e seguro rural.

Para o pesquisador da Embrapa, Irajá Antunes, o papel do guardião vai muito além de cuidar das sementes crioulas, mas busca uma nova sociedade. “Nós acreditamos que essa possa ser uma forma de mudar um pouco o mundo. Nós queremos que se construa uma sociedade agroecológica”. Nas mãos de famílias de pequenos agricultores, as sementes crioulas resistem.

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nov/dez. 2013 #26 11

Encontrei-a ao acaso na rua mais antiga da cidade, ainda hoje dita “da Praia”, entre as mesas de bar que

povoam uma das calçadas mais vivas e simpáticas de um porto que se pretende alegre. Abordada incovenientemente enquanto exercia aquele que é seu

ofício há quase vinte anos, vendedora ambulante de incensos, Iolanda Rodrigues, também conhecida como Roxa ou Violeta, desatou sem pudor uma enxurrada

de palavras sobre seu passado e presente, sobre suas inquietações, longe de serem poucas.

Do alto de seus 61 anos, Iolanda vive sozinha em um apartamento do Centro, bairro do qual diz ser “Patrimônio Cultural”, por figurar com outras 43 pessoas em uma cartografia universitária que destaca figuras típicas da região. Zé da Folha, por exemplo, é um dos personagens que a acompanham na lista. Em plena “Calçada da Lama”, como diz Iolanda, essa jovem de seis décadas fala de política e memória, conta da sua vida em Livramento, cidade que admite como seu berço, após responder que vem de Júpiter. Além disso, relata a

vida de empregada doméstica na casa de parentes, atividade que exerceu dos oito aos 18 anos e cujas lembranças não parecem carregar nenhum trauma.

Roxa, com sua “profunda vontade de estar com os seres humanos”, não gosta da palavra liberdade nem de opinar sobre os governos da era petista no Governo Federal. No entanto, mostra posições políticas bem marcadas e um aguçado senso de solidariedade. Talvez por esse motivo, seja fácil encontrá-la em atos políticos, ocupações urbanas e outros espaços de resistência. Define-se politicamente como militante popular e descreve com certo orgulho como soube da morte de Che Guevara, durante a adolescência ainda fronteiriça, quando a família teria “ficado sem pão” graças ao desnorteamento que a notícia a causou.

Iolanda se diz ex-colorada, ao afirmar decepcionada que o Inter “foi pro saco”, após a mercantilização sofrida pelo clube nos últimos anos. Entre o atual sistema político brasileiro e os anos da Ditadura Civil-Militar, nossa vendedora de incensos vê diferenças profundas, mas mostra decepção com o Estado que temos no presente. “Foi pra isso que a gente fez democracia, para o povo fazer crediário!?”.

por Pepe Martini

Uma sensação estranha enquanto estava no hospi-tal, esperando minha esposa. Um corte profundo de bisturi selando a cesárea. Outro corte em meu peito selando o fim de uma era. Um corte de tesoura desa-tando o cordão umbilical. Outro corte em meu peito desatando o supra-sumo de minha origem. O nasci-mento do fim da espera que não poderia ser evitada. Enfim nascia o último capítulo. Nascia a página que antecedia a capa forrada dura e preta, a mesma que dera origem a tudo: a contracapa de uma humanidade.

O livro da vida fora escrito pelo divino e entregue às mãos dos mortais. Um livro cuja função fora eter-nizar o mortal, uma contradição estapafúrdia que al-guém teria que pagar. E foi uma família, atravessando gerações, que teve que carregar esse peso quase in-concebível de manter o absurdo de uma imortalida-de material. Manter viva a espera que mantinha vi-va a humanidade obcecada em respostas nesse poço de mistérios que é o mundo. A espera que dá forma a esperança, ao mesmo tempo em que dá forma ao de-sespero. Essa família, secretamente imbuída na fun-ção de matar o inevitável. De matar constantemente a figura do retorno, mantendo a humanidade eterna-mente esperando, vivendo com propósitos e, por fim, mantendo a ordem. Gerações e gerações passaram e o segredo se manteve. A espera se manteve. A ordem se manteve. Apesar de alguns desvios de desespero, a humanidade conteve-se tranqüila ajoelhando-se, cur-vando-se, assim que alguma dificuldade atravessava seus curtos caminhos. Mal sabia ela que aquele nas-cimento, aquela mísera semente inserida em um vas-to planeta, convidaria o caos a entrar pela janela dos mortais. O machado estaria nas mãos do penúltimo da estirpe Sahduj pousado no pescoço do último.

A criança se desenvolveu evidentemente provo-cando estranhamento a todos que estavam em sua volta, umas se encantavam com tamanha particulari-dade, outros tinham medo, alguns o odiavam. O cer-to era que ninguém passava a ter indiferença a partir de conhecê-lo. Eu, que nunca o tratei com naturalida-de, evitava seu convívio social ao máximo, traumati-

zando o garoto ao ponto de não desenvolver capacida-de de socialização. Sua aparência tornara-se côncava, personalidade resguardada, dotado de tamanha timi-dez que o impedia de falar, dando espaço ao silêncio e a resignação. Passaram-se cerca de três décadas e meia, no trigésimo sétimo aniversário, que a revela-ção finalmente viria, não saberia dizer se da melhor maneira, mas urgiam fagulhas que impediam de se-guir adiante. Era pungente aos dois, a mim, guardião do segredo maior e ao meu filho inquieto com sonhos cada vez mais esclarecedores. Dias e noites observan-do seu sono, reparando nos primeiros raios solares que atravessavam aquele santo corpo. Dias e noites ruminando ansiedade e dúvida. Dias e noites esperan-do e, ao mesmo tempo matando a espera.

Meu filho, vem cá. Vou lhe contar o que deveria sa-ber há tantos anos e que eu, covarde, lhe escondi arras-tando essa desgraça a cada mudança de órbita de re-lógio. Falhei com a Providência, falhei contigo e agora ainda resta a chance de não falhar com a humanidade inteira, por isso lhe conto toda história que começa lá atrás no nascimento de um homem iluminado que deu sua vida em prol da salvação mundana. Jesus Cristo veio trazer a paz em um mundo que nunca quis paz. Um mundo incapaz de seguir possuindo as respostas em mãos do mistério absoluto e que optou pela eterna espera de respostas. Em vez das respostas, a resposta era a própria espera. E assim foi: o próprio povo matou seu messias, pois o fim de tudo e a paz eterna consti-tuíam o inicio do delírio e da desordem. Porém, um grupo de desviantes que não deixariam por menos te-ve que se reunir, corrigir estas fatalidades e redefinir uma nova doutrina voltada a um novo tipo de espera. A fragilidade que a aparição de Jesus deixara ao povo, ruinaria com todas as certezas que o livro da verdade havia deixado no coração dos fiéis. Foi no Concílio de Nicéia, no ano 325, em que todo esse processo amal-gamado de soluções para essa crise fora selado e insti-tuído. Um novo livro foi legitimado acompanhado do primeiro e uma série de cânones determinados a fim de justificar a existência deste messias antecipado. Só havia um desvio que colocaria tudo a perder no futu-ro: a possibilidade de retorno de um outro messias, ou o próprio retorno de Jesus Cristo, prometido inclusi-ve neste concílio. A profecia do retorno era uma ne-cessidade, pois garantia a espera eterna do povo no-

vamente e garantia o cumprimento das leis impostas enquanto não chegasse. Ele não podia chegar. Para is-to, o conselho criou o cânon XXI, secreto, que desig-nava nas mãos de uma família o compromisso de eli-minar qualquer tentativa de retorno, assim mantendo a doutrina e a esperança da humanidade. Essa famí-lia, batizada por Shaduj e abençoada pela vida eter-na, levou esse segredo consigo durante séculos pas-sando de pai pra filho tal responsabilidade: matar quem se levantasse e desmentir suas profecias. Mata-mos Moisés de Creta, Ishak ben Ya'kub da Pérsia, Se-rene da Síria, outros tantos no período das Cruzadas, David Alroy da Pérsia, Abraão Abulafia, Nissim Ben Abraham, muitos e muitos mais. Uma carnificina de rebeldes que se auto-intitulavam profetas ou daque-les que simplesmente causavam certa dúvida. De tan-to tempo imbuídos nesta caça, já é uma tradição fami-liar que adquirimos intuição genética que identifique estes comportamentos desviantes. Quando nasceste, meu filho, senti uma dor da qual nunca sentira. Sua origem nenhum especialista jamais ousou especular. E essa dor me acompanhou durante todo seu cresci-mento. Sua mãe nunca soube. Sua peculiaridade des-velava a razão de meu câncer invisível. Nunca dormi novamente. Tive alguns surtos. Temia a Deus e temia meu fracasso. Estava na minha mão o machado que salvaria a eternidade. Passa os anos e minha condena-ção urge, este peso não agüentaria para sempre. Sen-tia-me Atlas carregando os céus nos ombros e o me-do. Sempre o medo. O medo de falhar. O medo de pôr fim a tudo. Para onde iria caso falhasse na minha mis-são? Fomos abençoados de vida eterna, para onde mi-nha eternidade seria jogada? Filho, esse machado que carrego é sob medida ao seu pescoço. Se não o matar, a vida o fará de algum modo. O destino por vezes se abre com clarividência. É seu destino que morra. É meu destino que o mate. É o destino do mundo que se mantenha existindo em harmonia progressiva. Se Deus não vem ao meu encontro todo dia que rezo em desespero, virá ao seu entoando um novo dilúvio onde ninguém escapará ileso. Aceite este sacrifício. Sua vi-da é injustificável.

E assim, depois de Isaac, outro sacrifício se consa-gra, ao menos que Deus mande novamente um anjo que o impeça e outro sacro livro seja escrito para que saibamos.

Por quem os sinos se calam

(por Rodrigo Isoppo)

(foto por Yamini Benites)

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[Bernardo Jardim Ribeiro]

2011 Habana Vieja, La Habana - Cuba

TABARÉ