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Sustentabilidade Integral
1. INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a humanidade tem se confrontado com desafios
sem precedentes em termos de impacto e complexidade, derivados
principalmente do aumento de complexidade de sua própria organização em
sociedades interconectadas globalmente, com todos os choques civilizatórios
que isso envolve, além do acesso a tecnologias que maximizam a capacidade
humana de modificar os ambientes originais e os processos naturais
essenciais. Os grandes problemas do século XXI – do terrorismo ao declínio
dos ecossistemas, das pandemias à indústria cultural massificadora, da orgia
consumista de uns poucos à miserabilidade degradante de muitos, das
mudanças climáticas à profunda falta de sentido de nossa época –, todos eles
são planetários, intrincados, orgânicos, multidimensionais. Apesar disso, as
tentativas de solução costumam apoiar-se em um modelo mental antigo,
compartimentalizador, hiperespecilizado e reducionista e que, evidentemente,
não capta a essência de tais problemas, ou seja, sua complexidade e seu
caráter de profundo interrelacionamento. Tais desafios evidenciam a crise de
todo um paradigma que vem dominando o pensamento ocidental desde, pelo
menos, a Revolução Industrial.
Está evidente que, como disse Einstein, é necessário um novo tipo de
pensamento, uma nova forma de olhar para o mundo e se relacionar com ele.
Não faltam propositores de um “novo paradigma” que guiará a humanidade por
um caminho de regeneração, o que pode parecer uma boa notícia. Entretanto,
“O mundo não vai superar sua crise atual usando
o mesmo pensamento que criou essa situação.”
Albert Einstein
é desconcertante notar que há uma pluralidade de visões que, primeiramente,
criam diagnósticos diferenciados dessa grande crise e, assim, acabam por
apontar diferentes soluções para o problema. Qual o significado disto? Terá a
fragmentação de nosso tempo sabotado até mesmo os seus maiores críticos?
Esta parece ser uma hipótese razoável, que leva a outra pergunta: haverá
alguma alternativa real a esta fragmentação epidêmica? Ou, dizendo de outra
maneira, haverá alguma abordagem abrangente e sistemática capaz de
efetivamente transcender a fragmentação e, ainda assim, manter a riqueza de
perspectivas plurais, respeitando-as e integrando-as em um todo que faça
sentido? É temerário afirmar que exista tal proposta. Entretanto, há algumas
boas iniciativas que chamam atenção. Analisaremos uma delas: a Abordagem
Integral.
“Integrar” significa juntar, unir, ligar, relacionar, articular, incluir. “Integral”
dá a idéia de completude, totalidade, inteireza. Tais termos terão ainda
qualquer sentido no contexto pós-moderno, esta “ressaca da modernidade”? O
fato é que hoje estas palavras são heréticas e uma proposta integrativa, que
busque incluir diferentes visões em um todo que faça sentido, é vista,
especialmente na academia, com uma desconfiança sínica e, às vezes, hostil.
A fragmentação, o divisionismo e a cômoda hiperespecilização baniram os
grandes quadros1. Apesar disso, apenas uma lógica de redes, um
multiperspectivismo inclusivo e sistemático, uma pós-modernidade construtiva,
um complexus moriniano de interação todo-parte – isto é, apenas uma visão
integral pode sanar as dificuldades características de nossa época.
A Abordagem Integral, embora tenha raízes bastante antigas, foi
modernamente proposta pelo pensador norte-americano Ken Wilber e tem
encontrado apoio entre milhares de pesquisadores independentes que buscam
aplicar seus insights aos diferentes campos do conhecimento humano. Apesar
de pouco conhecido no Brasil, Wilber parece ser o autor acadêmico vivo mais
traduzido dos Estados Unidos, com cerca de 25 obras traduzidas para mais de
25 idiomas. Uma das áreas mais profícuas em aplicação da visão integral é a
sustentabilidade. O presente trabalho tem por objetivo apresentar as idéias
gerais de uma Sustentabilidade Integral e, como ela é uma das aplicações da
Abordagem Integral de forma geral, será necessário antes explorar a estrutura
conceitual desta abordagem.
2. A ABORDAGEM INTEGRAL
A Abordagem Integral é uma tentativa de gerar uma síntese dinâmica e
uma integração do conhecimento humano, interligando o melhor do
pensamento pré-moderno, do moderno e do pós-moderno; e unindo o Ocidente
e o Oriente. Tenta ser, portanto, a primeira tentativa de uma verdadeira filosofia
mundial. Cria um contraponto com a atuação situação de fragmentação do
conhecimento e da vida humana. Em seu cerne está a idéia de que muitas
visões tidas como antagônicas e inconciliáveis são apenas perspectivas
diferentes do mundo, podendo ser integradas em uma esfera de significado
mais ampla e geral2. Deste modo, a tentativa de estabelecer um grande diálogo
não-alienante entre as grandes áreas de conhecimento humano, até agora
quase que completamente cindidas em suas fronteiras artificiais, é um dos
mais claros objetivos de uma abordagem integral. Neste breve trabalho não
haverá espaço para discutir os detalhes desta integração, tampouco o longo
caminho, de décadas de pesquisa e debate, que levou ao modelo integral
hodierno. Apresentar-se-ão os resultados e aplicações do modelo proposto por
Wilber3.
2.1. Quadrantes: as quatro perspectivas básicas
Um dos conceitos fundantes da visão integral é o de quadrantes. Eles
são uma divisão didática de padrões de perspectivas adotadas para a
descrição de fenômenos. Sua formulação tem, portanto, uma base
epistemológica.
Os quadrantes são quatro perspectivas básicas adotadas em qualquer
tentativa de contato com o mundo ou em qualquer busca de compreendê-lo. Há
perspectivas interiores e exteriores; individuais e coletivas. Do cruzamento
destas, chega-se às quatro perspectivas básicas: interior do indivíduo (p. ex.,
consciência), exterior do indivíduo (p. ex., organismo e comportamentos),
interior do coletivo (p. ex., cultura) e exterior do coletivo (p. ex., sistemas
sociais, econômicos, ecológicos, etc).
Figura 1. Os quatro quadrantes são perspectivas básicas.
Esta não é uma divisão nova, nem exclusiva da Abordagem Integral. Ela
apenas foi explicitada e pesquisada com mais detalhes à luz do pensamento
atual, com resultados surpreendentes. A própria idéia dos Três Grandes, de
Platão, é muito semelhante: o Bom, ligado à questão ética, em que as pessoas
chegam a um entendimento intersubjetivo, dialogal, do que é justo; o Belo,
ligado à estética, em que a percepção da beleza é captada pela dimensão
interior de cada um; e o Verdadeiro, ligado ao conhecimento do mundo,
olhando-o como um objeto de estudo (na Integral se diferenciam sistemas
objetivos individuais e coletivos). Estas perspectivas são tão fundamentais que
elas transparecem em praticamente todas as línguas conhecidas, nas três
pessoas do discurso. A primeira pessoa (Eu) relacionada à dimensão interior
de quem fala; a segunda pessoa (Nós)4, relacionada à dimensão interior
compartilhada entre as pessoas que dialogam; e a terceira pessoa
(Ele/Eles/Isto/“Istos”5), a dimensão exterior de quem se fala6.
Não há dúvidas de que essas quatro dimensões são muito distintas
entre si. Portanto, para realizar um diálogo integrativo e não-alienante entre as
diferentes áreas de conhecimento é preciso, antes de tudo, reconhecer que
muitas das celeumas acadêmicas aparentemente inconciliáveis não um
problema epistemológico. Em outras palavras, falta um reconhecimento claro,
por parte de muitos pesquisadores, de que existem inúmeras perspectivas
diferentes que podem ser adotadas para o estudo dos fenômenos, e não
apenas uma. A questão, portanto, não é descobrir qual perspectiva é a correta,
mas, sim, qual delas é mais adequada em determinado momento e que quadro
geral pode-se formar pela união das descobertas de diferentes perspectivas.
Exemplificando de forma bem geral, pode-se imaginar que, no estudo de
um determinado fenômeno, haja uma discordância fundamental entre um
psicólogo (que olha para os aspectos interiores do indivíduo, suas motivações,
intenções, valores, etc), um médico ou biólogo (que olharão para o indivíduo
em uma perspectiva objetiva, tentando explicar seu comportamento pela
existência de determinados processos orgânicos, hormonais, neuronais,
metabólicos ou de vantagem adaptativa), um antropólogo (que procurará
demonstrar que determinado fenômeno é resultado não de uma vontade
individual, mas que ela é produto de uma ampla malha intersubjetiva de
significados compartilhados e todas as verdades são culturalmente
determinadas) e um sociólogo marxista (que atentaria para a influência dos
sistemas objetivos, como os meios de produção, interpretando-os como as
causas mais fundamentais de certas dinâmicas da sociedade e de
comportamentos dos indivíduos)7. A integração, neste caso, só pode ocorrer
pelo reconhecimento da importância parcial de cada uma das perspectivas.
O objetivo da Abordagem Integral, como diz Wilber, é mostrar que existe
muito mais espaço no cosmo do que geralmente se está disposto a admitir e
que as diversas perspectivas podem coexistir e ainda serem integradas em um
todo explicativo coerente e sistemático. Como será discutido, isso tem uma
relação direta com a sustentabilidade, pois uma sustentabilidade integral
procura reconhecer todas as dimensões envolvidas no processo de construção
de um novo modelo de vida para a humanidade. Antes disso, porém, é preciso
conhecer mais uma dimensão da Abordagem Integral.
2.2. Níveis: um universo criativo
Habitamos um universo criativo. Longe de ser uma afirmação metafísica,
este é um fato largamente comprovado. Ilya Prigogine ganhou um prêmio
Nobel demonstrando que o universo cria novas formas de ordem a partir do
caos. E este não é um padrão apenas da matéria (ou seja, dos quadrantes do
lado direito), mas também da consciência. A psicologia do desenvolvimento já
provou que a consciência humana evolui, ao longo da vida, através de estágios
bem conhecidos, que se sucedem em uma hierarquia de complexidade
crescente.
As totalidades organizadas criadas nesse processo são chamadas
“hólons”. Hólon significa, etimologicamente, um todo que é parte de um todo
maior. Átomos são um todo, mas podem ser parte de uma molécula, que pode
ser parte de uma célula, que pode ser parte de um organismo pluricelular, etc.
O que caracteriza um novo hólon é que ele transcende os hólons anteriores
(uma molécula de água transcende os átomos de hidrogênio e oxigênio,
fazendo emergir características inteiramente novas) e os inclui em sua própria
constituição. O mesmo ocorre nos domínios subjetivos. As pesquisas em
psicologia do desenvolvimento demonstram que a consciência humana evolui
em direção a uma complexidade crescente, que inclui as etapas anteriores
como partes integrantes de um processo mais complexo8.
Ken Wilber é reconhecido na comunidade internacional por ter sido o
primeiro teórico a perceber que essas dinâmicas evolucionárias poderiam ser
integradas em um modelo explicativo único. A chave para isso foi perceber que
cada modelo evolutivo adotava uma perspectiva diferente, ou seja, cada um
estava descrevendo a evolução de um determinado quadrante. O resultado
final desta integração foi exposto no livro Sex, Ecology, Spirituality, sua obra
máxima. Estas conclusões são expostas esquematicamente na Figura 2.
Figura 2. Evolução nos quatro quadrantes.
Aqui vemos os níveis, cada qual contribuindo com novas capacidades
emergentes. Os níveis estão numerados. Cada nível apresenta diferentes
manifestações em cada quadrante. Analisemos o nível 12 desta escala: é um
nível exclusivamente humano. No quadrante superior esquerdo (interior do
indivíduo) ele se manifesta como uma consciência operacional formal
(“formop”, na abreviatura em inglês), que significa a capacidade altamente
complexa de pensamento racional abstrato. É a capacidade que permite a um
indivíduo resolver uma equação de segundo grau ou entender o significado da
raiz quadrada de um número negativo, atividades que exigem um alto grau de
abstração e sofisticação mental. Mas tal capacidade só existe, até onde
sabemos, em seres humanos, que tem uma tal constituição neurológica capaz
de criar este tipo de fenômeno. Este é o aspecto do quadrante superior da
direita (exterior e individual). No quadrante inferior esquerdo (interior e coletivo)
vê-se que um conjunto de pessoas neste nível de abstração formal pode criar
uma cultura racional que embase, por exemplo, um Estado democrático de
direito (que exige, para sua manutenção uma cognição formal). Esta cultura
racional também pode gerar um sistema produtivo industrial com, por exemplo,
linhas de produção em massa9.
O nível 12 desta escala depende, para sua existência, de todos os onze
níveis precedentes. Certamente não é possível ter uma sociedade industrial
sem átomos (nível 1), tampouco sem seres vivos (iniciando no nível 3), ou sem
seres humanos (a partir do nível 9). Os níveis de complexidade aqui são
ordenados pela lógica das propriedades emergentes, que transcendem mas
incluem as propriedades dos níveis anteriores. Não se trata de uma mera
questão de tamanho. O planeta é “maior” do que o sistema de Gaia (biosfera),
mas a biosfera transcende e inclui o planeta sem vida, pois surgiu um novo
fenômeno (a vida) que transcende o que existia antes (matéria inanimada) e a
inclui (a vida “se apóia” em um ambiente abiótico). A vida surge com algo novo,
mas sem negar ou anular o que havia antes.
A evolução humana é uma pequena parte desta evolução cósmica. Há
diversos modelos que estudam a evolução humana (WILBER, 1995, 2000a,
2000b; BECK & COWAN, 1996; LOEVINGER, 1977; KOHLBERG, 1981;
BIAGGIO, 2002). Todos relatam um padrão semelhante: a consciência se
amplia a cada novo nível, com novas capacidades emergentes e com a
manutenção básica das características que existiam antes. Para a visão
integral, quando se fala da necessidade de criar um novo paradigma
civilizatório, que seja sustentável, isso significa criar um novo nível de
complexidade, consciência e organização que ainda não existiu em larga
escala10. Este é justamente o ponto de uma sustentabilidade integral.
3. SUSTENTABILIDADE INTEGRAL
A sustentabilidade integral, reconhecendo a importância de todos os
quadrantes, procura integrar diversas contribuições e ampliar o esboço de
discussão da sustentabilidade. Em geral, as abordagens de sustentabilidade
privilegiam o quadrante inferior da direita, de sistemas coletivos e objetivos:
ecossistemas, sistemas produtivos, modos de organização social,
concentração de renda, etc. Estas visões trazem, implícita ou explicitamente, a
idéia de que a sustentabilidade é apenas uma questão de adequação
sistêmica: sistemas produtivos menos impactantes e um sistema econômico
menos desigual. A importância desses pontos não pode ser negada, mas não
esgotam a questão.
Ken Wilber (1995), resumindo a idéia de uma sustentabilidade integral,
diz que o principal problema sócio-ambiental do planeta não é o aquecimento
global, não é o declínio dos ecossistemas, não é a desigualdade de renda
brutal, não é o consumismo, não é o modo de produção industrial... O principal
problema sócio-ambiental do planeta é que existem muito poucos seres
humanos capazes de pensar sobre a complexidade desses problemas e de
manter uma ética de vida com uma perspectiva de bem-estar global. Em outras
palavras, o problema é do nível consciência!
Isso pode confundir algumas pessoas. Para deixar mais claro, é preciso
retornar aos conceitos de evolução em todos os quadrantes. Evolução é
caracterizada pela dinâmica de emergência de novas características que
transcendem e incluem as anteriores. A vida (biosfera) emergiu a partir da
matéria inanimada neste planeta (fisiosfera). A biosfera transcende e inclui a
fisiosfera. Como a fisiosfera é, neste sentido, uma parte integrante da biosfera,
se ela for eliminada, a biosfera também perecerá. Da mesma maneira, a
consciência simbólica e abstrata característica dos seres humanos (Noosfera)
emergiu a partir da vida (biosfera). A lógica de transcendência e inclusão
permanece: um ser humano, que tem uma mente (em conjunto, noosfera), é
também um ser vivo (em conjunto, biosfera), e também é constituído por
átomos e moléculas da Terra (em conjunto, fiosfera). Assim como a vida é
impossível sem a matéria inanimada, também a vida humana (noosfera) é
impossível sem da comunidade de vida do planeta (biosfera).
A questão é que a noosfera humana (os níveis 9 e seguintes da figura 2
e, especialmente o nível 12, racional-industrial) é a grande responsável pela
crise em todos esses níveis anteriores. Para harmonizar todos esses sistemas
organizados em um quadro multidimensional é preciso atuar em todos os níveis
de organização, lembrando que a consciência humana é um fator chave do
processo. A consciência precisa ser incluída na equação da sustentabilidade.
Habermas (1979, 1983, 1984), principal representante da segunda
geração da Escola de Frankfurt, tem sido uma voz acadêmica influente na
defesa da evolução da consciência individual e coletiva como condição básica
para a mudança para uma sociedade justa, democrática, livre e sustentável.
Apoiando-se na pesquisa exemplar de Lawrence Kohlberg (1981, 1984),
eminente psicólogo da Universidade de Harvard, sobre o desenvolvimento
moral, Habermas propõe a emergência de uma sociedade pós-convencional.
O modelo de Kohlberg sobre o desenvolvimento moral constitui-se de
seis níveis, agrupados em três grandes estágios. O primeiro nível é o pré-
convencional ou egocêntrico, em que o indivíduo (geralmente na infância,
embora possa aparecer na vida adulta também) não é capaz de reconhecer as
regras (convenções) sociais. Por isso, tende a agir de forma a garantir seus
próprios interesses em detrimento dos outros. O segundo nível é o
convencional, a partir do qual o indivíduo absorve as regras e passa a respeitar
as autoridades instituídas socialmente. As regras sociais são absorvidas de
forma bastante automática e irrefletida, simplesmente porque não há, ainda, na
mente da pessoa outros sistemas de regras ou outros modos de vida
igualmente legítimos. A pessoa neste nível tende a ser conformista e
etnocêntrica. Não é capaz de refletir criticamente sobre as convenções de sua
sociedade. Seu pensamento moral tem uma orientação “nós contra eles”
(etnocêntrico), em que este “nós” pode ser os compatriotas, pessoas da
mesma classe social, do mesmo partido político ou da mesma filiação religiosa,
dependendo da situação. Segundo Wilber (2000a), se uma pessoa neste nível
viver em uma sociedade escravocrata, então a escravidão parecerá legítima,
simplesmente porque “as coisas foram sempre assim”. Se viver em uma
sociedade de consumo como a nossa, captará todos os valores convencionais
de forma irrefletida – um grande alvo da indústria cultural (HABERMAS, 1979).
Mas, no modelo kohlbergiano, há um terceiro estágio de complexidade
cognitiva e moral: o estágio pós-convencional. Neste nível, a pessoa é capaz
de pensar sobre o próprio pensamento, ou seja, é capaz de refletir
criticamente. Ela não deixa de seguir regras ou reconhecer autoridades (o nível
convencional é integrado), porém, sempre avalia as regras de acordo com os
princípios que as embasam, assim como também confia na autoridade apenas
na medida em que esta se mantenha coerente aos princípios. Kohlberg
menciona que os princípios característicos deste nível são os chamados
princípios universais, que procuram levar em conta o bem-estar de todos os
seres humanos (ou seja, transcende a limitação etnocêntrica do estágio
anterior).
Habermas (1983, 1984) utiliza-se deste panorama para propor a
emergência de uma sociedade pós-convencional, autorreflexiva e autocrítica.
Relembra as duas formas de ação social racional descritas por Max Weber:
uma com relação a fins e objetivos, evidenciando-se no pensamento técnico-
administrativo; e outra com relação a princípios e valores, que é outra forma de
se referir ao pensamento pós-convencional kohlbergiano. Habermas
argumenta, então, que a modernidade é caracterizada pela dominação do
Mundo da Vida pela lógica tecnicista do sistema (razão direcionada a fins e
objetivos), uma crítica já presente na primeira geração da Escola de Frankfurt.
No entanto, ele lembra de que isso não significa demonizar a razão. Pelo
contrário, afirma que nossa sociedade necessita de uma nova racionalidade,
voltada para os princípios e valores humanos, uma racionalista pós-
convencional, reflexiva e construída no diálogo democrático e livre – a ação
comunicativa (HABERMAS, 1984).
Ora, no modelo de Wilber, a racionalidade estrita é justamente o nível 12
da figura 2, o paradigma responsável pela criação e manutenção da sociedade
industrial. Propõe, assim como Habermas, uma nova consciência de respeito e
de consciência da condição una da humanidade. Uma consciência que seja
capaz de entender e agir eticamente sobre os grandes problemas de nossa
época. Ela será a base de uma sociedade realmente sustentável,
ambientalmente integrada, democrática e voltada para o desenvolvimento de
todos os seres humanos. Essa perspectiva fica evidenciada na Figura 3, em
que a sustentabilidade é indicada como o próximo passo evolutivo na
organização social humana.
Figura 3. Outra visão dos quatro quadrantes, com foco no domínio humano. Retirado
de VOROS, 2001.
Essa nova consciência, tanto Habermas quanto Wilber argumentam,
precisa se disseminar pelas esferas de discurso público. A sustentabilidade
integral, como uma proposta de vida sustentável, não pode ser apenas uma
questão de adequação de sistemas, mas deve incluir uma dimensão de
reflexão crítica pós-convencional sobre o nosso atual modo de vida. Precisa
levar em conta um aspecto de mudanças de consciência em direção a valores
humanos e princípios éticos universais, que busquem o bem-estar de todos os
seres humanos e da natureza.
NOTAS
1 A noção de “grandes quadros” está inscrita em uma discussão histórica da pós-modernidade
como um período em que o pensamento de desliga (ou passa a ter uma visão desconfiada)
dos grandes ideais totalizantes da modernidade, juntamente com a percepção dos limites da
racionalidade que teriam orientado as ideologias modernas. No entanto, neste texto, está se
aplicando um conceito mais amplo de “grandes quadros”, significando qualquer tipo de
abordagem que busque deliberadamente captar e compreender a maior quantidade de
dimensões da existência em uma grande visão da realidade. Tal proposta contrasta claramente
com a orientação pós-moderna para o relativismo pluralista de perspectivas, voltado para
aspectos “micro” da realidade, sem buscar gerar nenhum tipo de grande quadro. No entanto,
como adverte Ken Wilber: “Uma vez que os seres humanos estão condenados ao significado,
eles estão condenados a criar grandes quadros. Até mesmo o „anti-grande quadro‟ dos pós-
modernistas nos proporcionou um quadro muito grande a respeito da razão por que eles não
gostam de grandes quadros, uma contradição interna que lhes trouxe vários tipos de
aborrecimento, mas simplesmente comprovou, mais uma vez, que os seres humanos estão
condenados a criar grandes quadros” (WILBER, 2000, p. 16).
2 Isso não tem absolutamente nada a ver com ecletismo intelectual, como se pode erradamente
supor. Na verdade, como lembra Jack Crittenden (1997), a Integral é justamente o oposto de
ecletismo, por duas razões fundamentais: a) porque ela, desde o começo, pretende realizar
uma integração sistemática dos sistemas teóricos, mostrando de que forma eles podem se
articular para gerar uma visão mais ampla da realidade, não se resumindo a dizer,
romanticamente, que todos, de alguma forma estão certos, como faz a visão eclética; b) porque
a abordagem de Wilber inaugura uma nova teoria crítica, pois, após gerar um modelo
integrativo abrangente, volta-se sobre as áreas específicas criticando sua natureza parcial à luz
das conclusões produzidas pelo modelo total. Embora Crittenden não mencione isto, pode-se
notar que esta forma de teoria crítica tem relação direta com a dinâmica da recursividade todo-
parte proposta por Morin (1986), em que o todo é criado a partir da integração dinâmica das
partes, mas também as partes têm seu significado modificado pelo todo do qual fazem parte.
3 O atual modelo de Wilber tem cinco dimensões: quadrantes, níveis, linhas, estados e tipos.
Por uma questão de espaço, serão apresentadas apenas as duas primeiras dimensões.
Resumidamente, as linhas de desenvolvimento, ou simplesmente “linhas”, são as diferentes
capacidades que se desenvolvem ao longo de níveis de complexidade crescente. Por exemplo,
pesquisas demonstram que uma pessoa pode ter um desenvolvimento cognitivo mais elevado
que o desenvolvimento moral ou emocional. Há mais de trinta linhas de desenvolvimento
pesquisadas para a consciência humana, como: cognitiva, moral, interpessoal, intrapessoal, do
Ego, estética, das necessidades,
4 A rigor, o “Nós” é a primeira pessoa do plural, mas ele é formado pela junção da primeira
pessoa (Eu) e da segunda pessoa (Tu/você). O que se quer explicitar é a inclusão do outro (Tu,
segunda pessoa) em um diálogo intersubjetivo, daí o fato de se tratar o “Nós” como segunda
pessoa.
5 Do inglês, “it” e “its”.
6 Os críticos dividem a obra de Ken Wilber em cinco fases. O conceito de quadrantes é o fator
de mudança da fase três para a fase quatro, que é materilizada na publicação de Sex, Ecology,
Spirituality em 1995. Mais recentemente, Wilber aprofundou seu modelo de perspectivas,
aprofundando o caráter epistemológico da Abordagem Integral. Essa foi a transição para a fase
cinco do seu pensamento. Ressaltou que cada um dos quatro quadrantes pode ser visto a
partir de uma perspectiva “de dentro” e “de fora”, totalizando oito perspectivas fundamentais,
cada uma das quais fazendo emergir um método específico para validação de conhecimento.
Por exemplo, no quadrante superior esquerdo (interior do indivíduo) pode-se ter uma
perspectiva “de dentro” ou “ de fora”. No primeiro caso, tem-se um método fenomenológico,
que procura perceber a própria experiência interior como ela surge para aquele que a
experiencia diretamente. No entanto, também pode-se olhar para os fenômenos interiores e
individuais de uma perspectiva “de fora”. Este é, por exemplo, o estruturalismo psicológica.
Piaget estudou o desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes de uma perspectiva
externa e foi capaz de reconhecer padrões de desenvolvimento estrutural bastante claros. No
entanto, essas estruturas só se tornam “visíveis” quando se adota uma perspectiva “de fora”,
pois a própria criança, em sua experiência direta, não sabe que está evoluindo de um
pensamento operacional-concreto para o operacional-formal. Fred também criou um modelo
estrutural. Ninguém experiencia diretamente seu “Superego”. O máximo que se faz é ter
experiência direta com um sentido, como culpa ou ansiedade, que, se analisados
objetivamente (“de fora”), podem ser interpretados como um reflexo da ação do Superego
frediano. O diagrama abaixo mostra os quatro quadrantes divididos em oito perspectivas e
suas respectivas metodologias mais conhecidas. As metodologias que estão dentro dos
círculos se referem à dimensão “de dentro” de cada quadrante.
Figura. As oito perspectivas primordiais e suas respectivas metodologias
7 Estes foram exemplos profundamente esquemáticos e simplificados. Na verdade, é comum
que em cada área de conhecimento haja diferentes pesquisadores e linhas teóricas cobrindo
todos os quadrantes. A psicologia, por exemplo, não é formada apenas por perspectivas
interiores e individuais (como a psicanálise ou a psicologia existencial-humanista), mas
também por perspectivas exteriores e individuais, como é o caso do behaviorismo, que nega
toda interioridade e reduz tudo ao mero comportamento objetivo; já a psicologia social se
desloca para interpretações intersubjetivas, só para citar alguns exemplos. Outro ponto
importante a ser mencionado é que os quadrantes são apenas as perspectivas gerais adotadas
epistemologicamente para o conhecimento do mundo, e isso não significa que, ao se adotar a
mesma perspectiva geral chegar-se-á a conclusões semelhantes. Por exemplo, a sociologia
marxista e a economia neoclássica adotam a mesma perspectiva geral (exterior e coletiva),
mas chegam, evidentemente, a conclusões absolutamente distintas.
8 Citando Piaget, cujo modelo é bem conhecido, a cognição humana evolui de estruturas
sensório-motoras na primeira infância, para um pensamento pré-operatório, para o operacional-
concreto até o operacional-formal. O pensamento operacional-formal apóia-se, estruturalmente,
em todos os estágios anteriores para poder se expressar. Lawrence Kohlberg, pesquisando o
desenvolvimento moral, percebeu que ele passa por seis níveis, que podem ser resumidos em
três estágios principais: egocêntrico, etnocêntrico e mundicêntrico, ou seja, uma moralidade
voltada para a satisfação das próprias necessidades, depois uma preocupação com um grupo
mais próximo e depois uma moralidade baseada em princípios humanos universais, que se
preocupa com o bem-estar de todos os seres humanos.
9 Ter uma sociedade capaz de desenvolver estruturas racionais, formais e industriais não
significa que todos os seus membros tenham alcançado esta complexidade de consciência.
10 Muitos argumentam que há houve sociedades sustentáveis e que, portanto, isso não seria
uma inovação criativa. Na perspectiva da integral, se já houve sociedades sustentáveis, elas
não o fizeram conscientemente. Simplesmente tinham um sistema de vida sem o poder
suficiente de causar o declínio dos ecossistemas globais ou de causar aquecimento global na
escada da sociedade industrial. Apenas agora a humanidade tem condições de tomar
consciência de sua condição de total interrelacionamento global, dos povos da Terra entre si, e
entre a própria humanidade como um todo e a biosfera. Isso é novo. Nunca existiu antes, a não
ser na mente de alguns gênios do passado, que não são representativos da consciência média
de sua sociedade.