sustentabilidade integral -...

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Sustentabilidade Integral 1. INTRODUÇÃO Nas últimas décadas, a humanidade tem se confrontado com desafios sem precedentes em termos de impacto e complexidade, derivados principalmente do aumento de complexidade de sua própria organização em sociedades interconectadas globalmente, com todos os choques civilizatórios que isso envolve, além do acesso a tecnologias que maximizam a capacidade humana de modificar os ambientes originais e os processos naturais essenciais. Os grandes problemas do século XXI do terrorismo ao declínio dos ecossistemas, das pandemias à indústria cultural massificadora, da orgia consumista de uns poucos à miserabilidade degradante de muitos, das mudanças climáticas à profunda falta de sentido de nossa época , todos eles são planetários, intrincados, orgânicos, multidimensionais. Apesar disso, as tentativas de solução costumam apoiar-se em um modelo mental antigo, compartimentalizador, hiperespecilizado e reducionista e que, evidentemente, não capta a essência de tais problemas, ou seja, sua complexidade e seu caráter de profundo interrelacionamento. Tais desafios evidenciam a crise de todo um paradigma que vem dominando o pensamento ocidental desde, pelo menos, a Revolução Industrial. Está evidente que, como disse Einstein, é necessário um novo tipo de pensamento, uma nova forma de olhar para o mundo e se relacionar com ele. Não faltam propositores de um “novo paradigma” que guiará a humanidade por um caminho de regeneração, o que pode parecer uma boa notícia. Entretanto, “O mundo não vai superar sua crise atual usando o mesmo pensamento que criou essa situação.” Albert Einstein

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Sustentabilidade Integral

1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a humanidade tem se confrontado com desafios

sem precedentes em termos de impacto e complexidade, derivados

principalmente do aumento de complexidade de sua própria organização em

sociedades interconectadas globalmente, com todos os choques civilizatórios

que isso envolve, além do acesso a tecnologias que maximizam a capacidade

humana de modificar os ambientes originais e os processos naturais

essenciais. Os grandes problemas do século XXI – do terrorismo ao declínio

dos ecossistemas, das pandemias à indústria cultural massificadora, da orgia

consumista de uns poucos à miserabilidade degradante de muitos, das

mudanças climáticas à profunda falta de sentido de nossa época –, todos eles

são planetários, intrincados, orgânicos, multidimensionais. Apesar disso, as

tentativas de solução costumam apoiar-se em um modelo mental antigo,

compartimentalizador, hiperespecilizado e reducionista e que, evidentemente,

não capta a essência de tais problemas, ou seja, sua complexidade e seu

caráter de profundo interrelacionamento. Tais desafios evidenciam a crise de

todo um paradigma que vem dominando o pensamento ocidental desde, pelo

menos, a Revolução Industrial.

Está evidente que, como disse Einstein, é necessário um novo tipo de

pensamento, uma nova forma de olhar para o mundo e se relacionar com ele.

Não faltam propositores de um “novo paradigma” que guiará a humanidade por

um caminho de regeneração, o que pode parecer uma boa notícia. Entretanto,

“O mundo não vai superar sua crise atual usando

o mesmo pensamento que criou essa situação.”

Albert Einstein

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é desconcertante notar que há uma pluralidade de visões que, primeiramente,

criam diagnósticos diferenciados dessa grande crise e, assim, acabam por

apontar diferentes soluções para o problema. Qual o significado disto? Terá a

fragmentação de nosso tempo sabotado até mesmo os seus maiores críticos?

Esta parece ser uma hipótese razoável, que leva a outra pergunta: haverá

alguma alternativa real a esta fragmentação epidêmica? Ou, dizendo de outra

maneira, haverá alguma abordagem abrangente e sistemática capaz de

efetivamente transcender a fragmentação e, ainda assim, manter a riqueza de

perspectivas plurais, respeitando-as e integrando-as em um todo que faça

sentido? É temerário afirmar que exista tal proposta. Entretanto, há algumas

boas iniciativas que chamam atenção. Analisaremos uma delas: a Abordagem

Integral.

“Integrar” significa juntar, unir, ligar, relacionar, articular, incluir. “Integral”

dá a idéia de completude, totalidade, inteireza. Tais termos terão ainda

qualquer sentido no contexto pós-moderno, esta “ressaca da modernidade”? O

fato é que hoje estas palavras são heréticas e uma proposta integrativa, que

busque incluir diferentes visões em um todo que faça sentido, é vista,

especialmente na academia, com uma desconfiança sínica e, às vezes, hostil.

A fragmentação, o divisionismo e a cômoda hiperespecilização baniram os

grandes quadros1. Apesar disso, apenas uma lógica de redes, um

multiperspectivismo inclusivo e sistemático, uma pós-modernidade construtiva,

um complexus moriniano de interação todo-parte – isto é, apenas uma visão

integral pode sanar as dificuldades características de nossa época.

A Abordagem Integral, embora tenha raízes bastante antigas, foi

modernamente proposta pelo pensador norte-americano Ken Wilber e tem

encontrado apoio entre milhares de pesquisadores independentes que buscam

aplicar seus insights aos diferentes campos do conhecimento humano. Apesar

de pouco conhecido no Brasil, Wilber parece ser o autor acadêmico vivo mais

traduzido dos Estados Unidos, com cerca de 25 obras traduzidas para mais de

25 idiomas. Uma das áreas mais profícuas em aplicação da visão integral é a

sustentabilidade. O presente trabalho tem por objetivo apresentar as idéias

gerais de uma Sustentabilidade Integral e, como ela é uma das aplicações da

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Abordagem Integral de forma geral, será necessário antes explorar a estrutura

conceitual desta abordagem.

2. A ABORDAGEM INTEGRAL

A Abordagem Integral é uma tentativa de gerar uma síntese dinâmica e

uma integração do conhecimento humano, interligando o melhor do

pensamento pré-moderno, do moderno e do pós-moderno; e unindo o Ocidente

e o Oriente. Tenta ser, portanto, a primeira tentativa de uma verdadeira filosofia

mundial. Cria um contraponto com a atuação situação de fragmentação do

conhecimento e da vida humana. Em seu cerne está a idéia de que muitas

visões tidas como antagônicas e inconciliáveis são apenas perspectivas

diferentes do mundo, podendo ser integradas em uma esfera de significado

mais ampla e geral2. Deste modo, a tentativa de estabelecer um grande diálogo

não-alienante entre as grandes áreas de conhecimento humano, até agora

quase que completamente cindidas em suas fronteiras artificiais, é um dos

mais claros objetivos de uma abordagem integral. Neste breve trabalho não

haverá espaço para discutir os detalhes desta integração, tampouco o longo

caminho, de décadas de pesquisa e debate, que levou ao modelo integral

hodierno. Apresentar-se-ão os resultados e aplicações do modelo proposto por

Wilber3.

2.1. Quadrantes: as quatro perspectivas básicas

Um dos conceitos fundantes da visão integral é o de quadrantes. Eles

são uma divisão didática de padrões de perspectivas adotadas para a

descrição de fenômenos. Sua formulação tem, portanto, uma base

epistemológica.

Os quadrantes são quatro perspectivas básicas adotadas em qualquer

tentativa de contato com o mundo ou em qualquer busca de compreendê-lo. Há

perspectivas interiores e exteriores; individuais e coletivas. Do cruzamento

destas, chega-se às quatro perspectivas básicas: interior do indivíduo (p. ex.,

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consciência), exterior do indivíduo (p. ex., organismo e comportamentos),

interior do coletivo (p. ex., cultura) e exterior do coletivo (p. ex., sistemas

sociais, econômicos, ecológicos, etc).

Figura 1. Os quatro quadrantes são perspectivas básicas.

Esta não é uma divisão nova, nem exclusiva da Abordagem Integral. Ela

apenas foi explicitada e pesquisada com mais detalhes à luz do pensamento

atual, com resultados surpreendentes. A própria idéia dos Três Grandes, de

Platão, é muito semelhante: o Bom, ligado à questão ética, em que as pessoas

chegam a um entendimento intersubjetivo, dialogal, do que é justo; o Belo,

ligado à estética, em que a percepção da beleza é captada pela dimensão

interior de cada um; e o Verdadeiro, ligado ao conhecimento do mundo,

olhando-o como um objeto de estudo (na Integral se diferenciam sistemas

objetivos individuais e coletivos). Estas perspectivas são tão fundamentais que

elas transparecem em praticamente todas as línguas conhecidas, nas três

pessoas do discurso. A primeira pessoa (Eu) relacionada à dimensão interior

de quem fala; a segunda pessoa (Nós)4, relacionada à dimensão interior

compartilhada entre as pessoas que dialogam; e a terceira pessoa

(Ele/Eles/Isto/“Istos”5), a dimensão exterior de quem se fala6.

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Não há dúvidas de que essas quatro dimensões são muito distintas

entre si. Portanto, para realizar um diálogo integrativo e não-alienante entre as

diferentes áreas de conhecimento é preciso, antes de tudo, reconhecer que

muitas das celeumas acadêmicas aparentemente inconciliáveis não um

problema epistemológico. Em outras palavras, falta um reconhecimento claro,

por parte de muitos pesquisadores, de que existem inúmeras perspectivas

diferentes que podem ser adotadas para o estudo dos fenômenos, e não

apenas uma. A questão, portanto, não é descobrir qual perspectiva é a correta,

mas, sim, qual delas é mais adequada em determinado momento e que quadro

geral pode-se formar pela união das descobertas de diferentes perspectivas.

Exemplificando de forma bem geral, pode-se imaginar que, no estudo de

um determinado fenômeno, haja uma discordância fundamental entre um

psicólogo (que olha para os aspectos interiores do indivíduo, suas motivações,

intenções, valores, etc), um médico ou biólogo (que olharão para o indivíduo

em uma perspectiva objetiva, tentando explicar seu comportamento pela

existência de determinados processos orgânicos, hormonais, neuronais,

metabólicos ou de vantagem adaptativa), um antropólogo (que procurará

demonstrar que determinado fenômeno é resultado não de uma vontade

individual, mas que ela é produto de uma ampla malha intersubjetiva de

significados compartilhados e todas as verdades são culturalmente

determinadas) e um sociólogo marxista (que atentaria para a influência dos

sistemas objetivos, como os meios de produção, interpretando-os como as

causas mais fundamentais de certas dinâmicas da sociedade e de

comportamentos dos indivíduos)7. A integração, neste caso, só pode ocorrer

pelo reconhecimento da importância parcial de cada uma das perspectivas.

O objetivo da Abordagem Integral, como diz Wilber, é mostrar que existe

muito mais espaço no cosmo do que geralmente se está disposto a admitir e

que as diversas perspectivas podem coexistir e ainda serem integradas em um

todo explicativo coerente e sistemático. Como será discutido, isso tem uma

relação direta com a sustentabilidade, pois uma sustentabilidade integral

procura reconhecer todas as dimensões envolvidas no processo de construção

de um novo modelo de vida para a humanidade. Antes disso, porém, é preciso

conhecer mais uma dimensão da Abordagem Integral.

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2.2. Níveis: um universo criativo

Habitamos um universo criativo. Longe de ser uma afirmação metafísica,

este é um fato largamente comprovado. Ilya Prigogine ganhou um prêmio

Nobel demonstrando que o universo cria novas formas de ordem a partir do

caos. E este não é um padrão apenas da matéria (ou seja, dos quadrantes do

lado direito), mas também da consciência. A psicologia do desenvolvimento já

provou que a consciência humana evolui, ao longo da vida, através de estágios

bem conhecidos, que se sucedem em uma hierarquia de complexidade

crescente.

As totalidades organizadas criadas nesse processo são chamadas

“hólons”. Hólon significa, etimologicamente, um todo que é parte de um todo

maior. Átomos são um todo, mas podem ser parte de uma molécula, que pode

ser parte de uma célula, que pode ser parte de um organismo pluricelular, etc.

O que caracteriza um novo hólon é que ele transcende os hólons anteriores

(uma molécula de água transcende os átomos de hidrogênio e oxigênio,

fazendo emergir características inteiramente novas) e os inclui em sua própria

constituição. O mesmo ocorre nos domínios subjetivos. As pesquisas em

psicologia do desenvolvimento demonstram que a consciência humana evolui

em direção a uma complexidade crescente, que inclui as etapas anteriores

como partes integrantes de um processo mais complexo8.

Ken Wilber é reconhecido na comunidade internacional por ter sido o

primeiro teórico a perceber que essas dinâmicas evolucionárias poderiam ser

integradas em um modelo explicativo único. A chave para isso foi perceber que

cada modelo evolutivo adotava uma perspectiva diferente, ou seja, cada um

estava descrevendo a evolução de um determinado quadrante. O resultado

final desta integração foi exposto no livro Sex, Ecology, Spirituality, sua obra

máxima. Estas conclusões são expostas esquematicamente na Figura 2.

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Figura 2. Evolução nos quatro quadrantes.

Aqui vemos os níveis, cada qual contribuindo com novas capacidades

emergentes. Os níveis estão numerados. Cada nível apresenta diferentes

manifestações em cada quadrante. Analisemos o nível 12 desta escala: é um

nível exclusivamente humano. No quadrante superior esquerdo (interior do

indivíduo) ele se manifesta como uma consciência operacional formal

(“formop”, na abreviatura em inglês), que significa a capacidade altamente

complexa de pensamento racional abstrato. É a capacidade que permite a um

indivíduo resolver uma equação de segundo grau ou entender o significado da

raiz quadrada de um número negativo, atividades que exigem um alto grau de

abstração e sofisticação mental. Mas tal capacidade só existe, até onde

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sabemos, em seres humanos, que tem uma tal constituição neurológica capaz

de criar este tipo de fenômeno. Este é o aspecto do quadrante superior da

direita (exterior e individual). No quadrante inferior esquerdo (interior e coletivo)

vê-se que um conjunto de pessoas neste nível de abstração formal pode criar

uma cultura racional que embase, por exemplo, um Estado democrático de

direito (que exige, para sua manutenção uma cognição formal). Esta cultura

racional também pode gerar um sistema produtivo industrial com, por exemplo,

linhas de produção em massa9.

O nível 12 desta escala depende, para sua existência, de todos os onze

níveis precedentes. Certamente não é possível ter uma sociedade industrial

sem átomos (nível 1), tampouco sem seres vivos (iniciando no nível 3), ou sem

seres humanos (a partir do nível 9). Os níveis de complexidade aqui são

ordenados pela lógica das propriedades emergentes, que transcendem mas

incluem as propriedades dos níveis anteriores. Não se trata de uma mera

questão de tamanho. O planeta é “maior” do que o sistema de Gaia (biosfera),

mas a biosfera transcende e inclui o planeta sem vida, pois surgiu um novo

fenômeno (a vida) que transcende o que existia antes (matéria inanimada) e a

inclui (a vida “se apóia” em um ambiente abiótico). A vida surge com algo novo,

mas sem negar ou anular o que havia antes.

A evolução humana é uma pequena parte desta evolução cósmica. Há

diversos modelos que estudam a evolução humana (WILBER, 1995, 2000a,

2000b; BECK & COWAN, 1996; LOEVINGER, 1977; KOHLBERG, 1981;

BIAGGIO, 2002). Todos relatam um padrão semelhante: a consciência se

amplia a cada novo nível, com novas capacidades emergentes e com a

manutenção básica das características que existiam antes. Para a visão

integral, quando se fala da necessidade de criar um novo paradigma

civilizatório, que seja sustentável, isso significa criar um novo nível de

complexidade, consciência e organização que ainda não existiu em larga

escala10. Este é justamente o ponto de uma sustentabilidade integral.

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3. SUSTENTABILIDADE INTEGRAL

A sustentabilidade integral, reconhecendo a importância de todos os

quadrantes, procura integrar diversas contribuições e ampliar o esboço de

discussão da sustentabilidade. Em geral, as abordagens de sustentabilidade

privilegiam o quadrante inferior da direita, de sistemas coletivos e objetivos:

ecossistemas, sistemas produtivos, modos de organização social,

concentração de renda, etc. Estas visões trazem, implícita ou explicitamente, a

idéia de que a sustentabilidade é apenas uma questão de adequação

sistêmica: sistemas produtivos menos impactantes e um sistema econômico

menos desigual. A importância desses pontos não pode ser negada, mas não

esgotam a questão.

Ken Wilber (1995), resumindo a idéia de uma sustentabilidade integral,

diz que o principal problema sócio-ambiental do planeta não é o aquecimento

global, não é o declínio dos ecossistemas, não é a desigualdade de renda

brutal, não é o consumismo, não é o modo de produção industrial... O principal

problema sócio-ambiental do planeta é que existem muito poucos seres

humanos capazes de pensar sobre a complexidade desses problemas e de

manter uma ética de vida com uma perspectiva de bem-estar global. Em outras

palavras, o problema é do nível consciência!

Isso pode confundir algumas pessoas. Para deixar mais claro, é preciso

retornar aos conceitos de evolução em todos os quadrantes. Evolução é

caracterizada pela dinâmica de emergência de novas características que

transcendem e incluem as anteriores. A vida (biosfera) emergiu a partir da

matéria inanimada neste planeta (fisiosfera). A biosfera transcende e inclui a

fisiosfera. Como a fisiosfera é, neste sentido, uma parte integrante da biosfera,

se ela for eliminada, a biosfera também perecerá. Da mesma maneira, a

consciência simbólica e abstrata característica dos seres humanos (Noosfera)

emergiu a partir da vida (biosfera). A lógica de transcendência e inclusão

permanece: um ser humano, que tem uma mente (em conjunto, noosfera), é

também um ser vivo (em conjunto, biosfera), e também é constituído por

átomos e moléculas da Terra (em conjunto, fiosfera). Assim como a vida é

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impossível sem a matéria inanimada, também a vida humana (noosfera) é

impossível sem da comunidade de vida do planeta (biosfera).

A questão é que a noosfera humana (os níveis 9 e seguintes da figura 2

e, especialmente o nível 12, racional-industrial) é a grande responsável pela

crise em todos esses níveis anteriores. Para harmonizar todos esses sistemas

organizados em um quadro multidimensional é preciso atuar em todos os níveis

de organização, lembrando que a consciência humana é um fator chave do

processo. A consciência precisa ser incluída na equação da sustentabilidade.

Habermas (1979, 1983, 1984), principal representante da segunda

geração da Escola de Frankfurt, tem sido uma voz acadêmica influente na

defesa da evolução da consciência individual e coletiva como condição básica

para a mudança para uma sociedade justa, democrática, livre e sustentável.

Apoiando-se na pesquisa exemplar de Lawrence Kohlberg (1981, 1984),

eminente psicólogo da Universidade de Harvard, sobre o desenvolvimento

moral, Habermas propõe a emergência de uma sociedade pós-convencional.

O modelo de Kohlberg sobre o desenvolvimento moral constitui-se de

seis níveis, agrupados em três grandes estágios. O primeiro nível é o pré-

convencional ou egocêntrico, em que o indivíduo (geralmente na infância,

embora possa aparecer na vida adulta também) não é capaz de reconhecer as

regras (convenções) sociais. Por isso, tende a agir de forma a garantir seus

próprios interesses em detrimento dos outros. O segundo nível é o

convencional, a partir do qual o indivíduo absorve as regras e passa a respeitar

as autoridades instituídas socialmente. As regras sociais são absorvidas de

forma bastante automática e irrefletida, simplesmente porque não há, ainda, na

mente da pessoa outros sistemas de regras ou outros modos de vida

igualmente legítimos. A pessoa neste nível tende a ser conformista e

etnocêntrica. Não é capaz de refletir criticamente sobre as convenções de sua

sociedade. Seu pensamento moral tem uma orientação “nós contra eles”

(etnocêntrico), em que este “nós” pode ser os compatriotas, pessoas da

mesma classe social, do mesmo partido político ou da mesma filiação religiosa,

dependendo da situação. Segundo Wilber (2000a), se uma pessoa neste nível

viver em uma sociedade escravocrata, então a escravidão parecerá legítima,

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simplesmente porque “as coisas foram sempre assim”. Se viver em uma

sociedade de consumo como a nossa, captará todos os valores convencionais

de forma irrefletida – um grande alvo da indústria cultural (HABERMAS, 1979).

Mas, no modelo kohlbergiano, há um terceiro estágio de complexidade

cognitiva e moral: o estágio pós-convencional. Neste nível, a pessoa é capaz

de pensar sobre o próprio pensamento, ou seja, é capaz de refletir

criticamente. Ela não deixa de seguir regras ou reconhecer autoridades (o nível

convencional é integrado), porém, sempre avalia as regras de acordo com os

princípios que as embasam, assim como também confia na autoridade apenas

na medida em que esta se mantenha coerente aos princípios. Kohlberg

menciona que os princípios característicos deste nível são os chamados

princípios universais, que procuram levar em conta o bem-estar de todos os

seres humanos (ou seja, transcende a limitação etnocêntrica do estágio

anterior).

Habermas (1983, 1984) utiliza-se deste panorama para propor a

emergência de uma sociedade pós-convencional, autorreflexiva e autocrítica.

Relembra as duas formas de ação social racional descritas por Max Weber:

uma com relação a fins e objetivos, evidenciando-se no pensamento técnico-

administrativo; e outra com relação a princípios e valores, que é outra forma de

se referir ao pensamento pós-convencional kohlbergiano. Habermas

argumenta, então, que a modernidade é caracterizada pela dominação do

Mundo da Vida pela lógica tecnicista do sistema (razão direcionada a fins e

objetivos), uma crítica já presente na primeira geração da Escola de Frankfurt.

No entanto, ele lembra de que isso não significa demonizar a razão. Pelo

contrário, afirma que nossa sociedade necessita de uma nova racionalidade,

voltada para os princípios e valores humanos, uma racionalista pós-

convencional, reflexiva e construída no diálogo democrático e livre – a ação

comunicativa (HABERMAS, 1984).

Ora, no modelo de Wilber, a racionalidade estrita é justamente o nível 12

da figura 2, o paradigma responsável pela criação e manutenção da sociedade

industrial. Propõe, assim como Habermas, uma nova consciência de respeito e

de consciência da condição una da humanidade. Uma consciência que seja

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capaz de entender e agir eticamente sobre os grandes problemas de nossa

época. Ela será a base de uma sociedade realmente sustentável,

ambientalmente integrada, democrática e voltada para o desenvolvimento de

todos os seres humanos. Essa perspectiva fica evidenciada na Figura 3, em

que a sustentabilidade é indicada como o próximo passo evolutivo na

organização social humana.

Figura 3. Outra visão dos quatro quadrantes, com foco no domínio humano. Retirado

de VOROS, 2001.

Essa nova consciência, tanto Habermas quanto Wilber argumentam,

precisa se disseminar pelas esferas de discurso público. A sustentabilidade

integral, como uma proposta de vida sustentável, não pode ser apenas uma

questão de adequação de sistemas, mas deve incluir uma dimensão de

reflexão crítica pós-convencional sobre o nosso atual modo de vida. Precisa

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levar em conta um aspecto de mudanças de consciência em direção a valores

humanos e princípios éticos universais, que busquem o bem-estar de todos os

seres humanos e da natureza.

NOTAS

1 A noção de “grandes quadros” está inscrita em uma discussão histórica da pós-modernidade

como um período em que o pensamento de desliga (ou passa a ter uma visão desconfiada)

dos grandes ideais totalizantes da modernidade, juntamente com a percepção dos limites da

racionalidade que teriam orientado as ideologias modernas. No entanto, neste texto, está se

aplicando um conceito mais amplo de “grandes quadros”, significando qualquer tipo de

abordagem que busque deliberadamente captar e compreender a maior quantidade de

dimensões da existência em uma grande visão da realidade. Tal proposta contrasta claramente

com a orientação pós-moderna para o relativismo pluralista de perspectivas, voltado para

aspectos “micro” da realidade, sem buscar gerar nenhum tipo de grande quadro. No entanto,

como adverte Ken Wilber: “Uma vez que os seres humanos estão condenados ao significado,

eles estão condenados a criar grandes quadros. Até mesmo o „anti-grande quadro‟ dos pós-

modernistas nos proporcionou um quadro muito grande a respeito da razão por que eles não

gostam de grandes quadros, uma contradição interna que lhes trouxe vários tipos de

aborrecimento, mas simplesmente comprovou, mais uma vez, que os seres humanos estão

condenados a criar grandes quadros” (WILBER, 2000, p. 16).

2 Isso não tem absolutamente nada a ver com ecletismo intelectual, como se pode erradamente

supor. Na verdade, como lembra Jack Crittenden (1997), a Integral é justamente o oposto de

ecletismo, por duas razões fundamentais: a) porque ela, desde o começo, pretende realizar

uma integração sistemática dos sistemas teóricos, mostrando de que forma eles podem se

articular para gerar uma visão mais ampla da realidade, não se resumindo a dizer,

romanticamente, que todos, de alguma forma estão certos, como faz a visão eclética; b) porque

a abordagem de Wilber inaugura uma nova teoria crítica, pois, após gerar um modelo

integrativo abrangente, volta-se sobre as áreas específicas criticando sua natureza parcial à luz

das conclusões produzidas pelo modelo total. Embora Crittenden não mencione isto, pode-se

notar que esta forma de teoria crítica tem relação direta com a dinâmica da recursividade todo-

parte proposta por Morin (1986), em que o todo é criado a partir da integração dinâmica das

partes, mas também as partes têm seu significado modificado pelo todo do qual fazem parte.

3 O atual modelo de Wilber tem cinco dimensões: quadrantes, níveis, linhas, estados e tipos.

Por uma questão de espaço, serão apresentadas apenas as duas primeiras dimensões.

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Resumidamente, as linhas de desenvolvimento, ou simplesmente “linhas”, são as diferentes

capacidades que se desenvolvem ao longo de níveis de complexidade crescente. Por exemplo,

pesquisas demonstram que uma pessoa pode ter um desenvolvimento cognitivo mais elevado

que o desenvolvimento moral ou emocional. Há mais de trinta linhas de desenvolvimento

pesquisadas para a consciência humana, como: cognitiva, moral, interpessoal, intrapessoal, do

Ego, estética, das necessidades,

4 A rigor, o “Nós” é a primeira pessoa do plural, mas ele é formado pela junção da primeira

pessoa (Eu) e da segunda pessoa (Tu/você). O que se quer explicitar é a inclusão do outro (Tu,

segunda pessoa) em um diálogo intersubjetivo, daí o fato de se tratar o “Nós” como segunda

pessoa.

5 Do inglês, “it” e “its”.

6 Os críticos dividem a obra de Ken Wilber em cinco fases. O conceito de quadrantes é o fator

de mudança da fase três para a fase quatro, que é materilizada na publicação de Sex, Ecology,

Spirituality em 1995. Mais recentemente, Wilber aprofundou seu modelo de perspectivas,

aprofundando o caráter epistemológico da Abordagem Integral. Essa foi a transição para a fase

cinco do seu pensamento. Ressaltou que cada um dos quatro quadrantes pode ser visto a

partir de uma perspectiva “de dentro” e “de fora”, totalizando oito perspectivas fundamentais,

cada uma das quais fazendo emergir um método específico para validação de conhecimento.

Por exemplo, no quadrante superior esquerdo (interior do indivíduo) pode-se ter uma

perspectiva “de dentro” ou “ de fora”. No primeiro caso, tem-se um método fenomenológico,

que procura perceber a própria experiência interior como ela surge para aquele que a

experiencia diretamente. No entanto, também pode-se olhar para os fenômenos interiores e

individuais de uma perspectiva “de fora”. Este é, por exemplo, o estruturalismo psicológica.

Piaget estudou o desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes de uma perspectiva

externa e foi capaz de reconhecer padrões de desenvolvimento estrutural bastante claros. No

entanto, essas estruturas só se tornam “visíveis” quando se adota uma perspectiva “de fora”,

pois a própria criança, em sua experiência direta, não sabe que está evoluindo de um

pensamento operacional-concreto para o operacional-formal. Fred também criou um modelo

estrutural. Ninguém experiencia diretamente seu “Superego”. O máximo que se faz é ter

experiência direta com um sentido, como culpa ou ansiedade, que, se analisados

objetivamente (“de fora”), podem ser interpretados como um reflexo da ação do Superego

frediano. O diagrama abaixo mostra os quatro quadrantes divididos em oito perspectivas e

suas respectivas metodologias mais conhecidas. As metodologias que estão dentro dos

círculos se referem à dimensão “de dentro” de cada quadrante.

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Figura. As oito perspectivas primordiais e suas respectivas metodologias

7 Estes foram exemplos profundamente esquemáticos e simplificados. Na verdade, é comum

que em cada área de conhecimento haja diferentes pesquisadores e linhas teóricas cobrindo

todos os quadrantes. A psicologia, por exemplo, não é formada apenas por perspectivas

interiores e individuais (como a psicanálise ou a psicologia existencial-humanista), mas

também por perspectivas exteriores e individuais, como é o caso do behaviorismo, que nega

toda interioridade e reduz tudo ao mero comportamento objetivo; já a psicologia social se

desloca para interpretações intersubjetivas, só para citar alguns exemplos. Outro ponto

importante a ser mencionado é que os quadrantes são apenas as perspectivas gerais adotadas

epistemologicamente para o conhecimento do mundo, e isso não significa que, ao se adotar a

mesma perspectiva geral chegar-se-á a conclusões semelhantes. Por exemplo, a sociologia

marxista e a economia neoclássica adotam a mesma perspectiva geral (exterior e coletiva),

mas chegam, evidentemente, a conclusões absolutamente distintas.

8 Citando Piaget, cujo modelo é bem conhecido, a cognição humana evolui de estruturas

sensório-motoras na primeira infância, para um pensamento pré-operatório, para o operacional-

concreto até o operacional-formal. O pensamento operacional-formal apóia-se, estruturalmente,

em todos os estágios anteriores para poder se expressar. Lawrence Kohlberg, pesquisando o

desenvolvimento moral, percebeu que ele passa por seis níveis, que podem ser resumidos em

Page 16: Sustentabilidade Integral - stoa.usp.brstoa.usp.br/wagnerk/files/-1/16705/trabalho+de+STPP+-+professor... · integral pode sanar as dificuldades características de nossa época

três estágios principais: egocêntrico, etnocêntrico e mundicêntrico, ou seja, uma moralidade

voltada para a satisfação das próprias necessidades, depois uma preocupação com um grupo

mais próximo e depois uma moralidade baseada em princípios humanos universais, que se

preocupa com o bem-estar de todos os seres humanos.

9 Ter uma sociedade capaz de desenvolver estruturas racionais, formais e industriais não

significa que todos os seus membros tenham alcançado esta complexidade de consciência.

10 Muitos argumentam que há houve sociedades sustentáveis e que, portanto, isso não seria

uma inovação criativa. Na perspectiva da integral, se já houve sociedades sustentáveis, elas

não o fizeram conscientemente. Simplesmente tinham um sistema de vida sem o poder

suficiente de causar o declínio dos ecossistemas globais ou de causar aquecimento global na

escada da sociedade industrial. Apenas agora a humanidade tem condições de tomar

consciência de sua condição de total interrelacionamento global, dos povos da Terra entre si, e

entre a própria humanidade como um todo e a biosfera. Isso é novo. Nunca existiu antes, a não

ser na mente de alguns gênios do passado, que não são representativos da consciência média

de sua sociedade.