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1 SEMINÁRIO INTERNACIONAL O ACESSO À JUSTIÇA CONSTITUCIONAL 1.º PAINEL Professor Doutor J.J. Gomes Canotilho – Universidade de Coimbra, Portugal O prelector iniciou a sua intervenção elegendo o tópico da legitimação do Tribunal Constitucional em Angola. Considerava a criação de um Tribunal Constitucional em Angola uma proposta arriscada no contexto de forte conflitualidade política, com o perigo de se converterem em questões jurídico-constitucionais todos os confrontos políticos emergentes na jovem República angolana. A criação de um Tribunal Constitucional não é uma fatalidade do constitucionalismo. Como demonstra a longa história do controlo da constitucionalidade das leis a justiça constitucional poderá ser exercida pelos Tribunais Supremos. Mas a história mostra que foi possível a estruturação de um Estado Constitucional de Direito sem forçar a domesticação da luta política traduzida na observância das regras e princípios constitucionalmente vinculantes. 1. O direito de acesso à justiça constitucional Com efeito, quando se fala de acesso à justiça constitucional pretende-se, em geral, individualizar as vias para se chegar ao Tribunal Constitucional ou aos Tribunais com competência de fiscalização da constitucionalidade. Assim, podemos considerar que o acesso aos Tribunais para controlo de normas pode ser feito através do incidente de inconstitucionalidade, nos Tribunais ordinários, através de acções constitucionais de defesa, através de fiscalização

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SEMINÁRIO INTERNACIONAL

O ACESSO À JUSTIÇA CONSTITUCIONAL

1.º PAINEL

Professor Doutor J.J. Gomes Canotilho – Universidade de Coimbra, Portugal

O prelector iniciou a sua intervenção elegendo o tópico da legitimação do Tribunal Constitucional em Angola.

Considerava a criação de um Tribunal Constitucional em Angola uma proposta arriscada no contexto de forte conflitualidade política, com o perigo de se converterem em questões jurídico-constitucionais todos os confrontos políticos emergentes na jovem República angolana.

A criação de um Tribunal Constitucional não é uma fatalidade do constitucionalismo. Como demonstra a longa história do controlo da constitucionalidade das leis a justiça constitucional poderá ser exercida pelos Tribunais Supremos.

Mas a história mostra que foi possível a estruturação de um Estado Constitucional de Direito sem forçar a domesticação da luta política traduzida na observância das regras e princípios constitucionalmente vinculantes.

1. O direito de acesso à justiça constitucional

Com efeito, quando se fala de acesso à justiça constitucional pretende-se, em geral, individualizar as vias para se chegar ao Tribunal Constitucional ou aos Tribunais com competência de fiscalização da constitucionalidade.

Assim, podemos considerar que o acesso aos Tribunais para controlo de normas pode ser feito através do incidente de inconstitucionalidade, nos Tribunais ordinários, através de acções constitucionais de defesa, através de fiscalização

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abstracta, sucessivas ou preventivas através de litígios federativos como acontece nos Estados federais.

Para o efeito, estabeleceu a diferença entre a justiça constitucional e o direito de acesso à justiça constitucional. Um Presidente da República, um grupo de partidos ou de deputados, o governo, o representante de um Estado no contexto de um Estado Federal, têm a faculdade de acesso à jurisdição constitucional porque as constituições dos respectivos Estados lhes conferem expressamente a competência, ou se se preferir, o poder de levar questões constitucionais – diríamos, em termos amplos “questões da vida constitucional” - às jurisdições constitucionais respectivas.

Será correcto e rigoroso designar estas competências constitucionais por direito de acesso?

O direito de acesso à justiça constitucional não deverá recortar-se como um direito fundamental de acesso ao direito e aos Tribunais?

A estar correcta a sugestão que acaba de fazer-se, o direito de acesso à justiça constitucional será um direito dinamizado pelos titulares dos direitos fundamentais (pessoas individuais ou pessoas colectivas) através de:

a) Suscitação do incidente de inconstitucionalidade;

b) Acções constitucionais de defesa ou de amparo dirigidas contra medidas dos poderes públicos (legislativas, administrativas, judiciais) violadoras de direitos fundamentais;

c) Acções contra actos omissivos dos poderes públicos também lesivos de direitos fundamentais.

Discutir o direito de acesso à justiça constitucional significa aprofundar a justiça constitucional como meio de protecção de direitos fundamentais. Significa, de igual modo, que se discutem não apenas as questões de legitimidade activa ou passiva ou problemas de direito processual constitucional, mas sim questões directamente relacionadas com o direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais.

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A crescente subjectivação deste acesso à justiça constitucional e a outros Tribunais internacionais de defesa dos direitos humanos coloca, hoje, com acuidade, o sentido e limite deste direito, que começam logo pelo texto de cada Constituição, pelo modo de entendimento da sua aplicabilidade e pela própria interpretação das normas constitucionais.

As constituições procuram ter força normativa de forma auto-afirmarem-se como direito imediatamente aplicável.

Se queremos que as Leis Constitucionais valham como lei superior e contenham direitos imediatamente aplicáveis de forma a vincularem todos os poderes do Estado, então devem ser retidos dois pontos básicos:

a) A prevalência ou superioridade da Constituição relativamente a todos os poderes eleva-a a medida de toda a acção estatal que, por sua vez, apela à existência de uma justiça constitucional intencionalmente dirigida ao controlo da observância desta “medida constitucional”;

b) Ao valer como lei e ao produzir os efeitos da lei ela pode e deve ser convocada para a solução de casos concretos submetidos a decisão judicial, quer se trate de casos impregnados de alta sensibilidade política (fiscalização abstracta da inconstitucionalidade das leis, solução de “litígios orgânicos” ou “litígios federativos” quer se trate de casos presos às ritmias e arritmias do incidente de inconstitucionalidade, acções de amparo ou acções constitucionais de defesa).

Quanto a interpretação das normas constitucionais é oportuno dizer que o alcance e sentido da justiça constitucional é condicionado pelos métodos da interpretação das normas constitucionais, dependendo da auto-concentração politica e jurídica que o Tribunal se impõe na extrinsecação de normas interpretativamente moduladas.

A centralidade da garantia do acesso ao direito da tutela jurisdicional efectiva tem razões que merecem ser explicitadas:

a) Pressupõe um catálogo de direitos fundamentais;

b) Só uma protecção jurisdicional efectiva realiza a dimensão de juridicidade do poder, no seu sentido básico de proibição da autodefesa e de afirmação do monopólio estatal da coerção;

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c) O recorte do direito de acesso ao direito e à tutela juridiconal como direito autónomo e específico permite fazer funcionar uma tutela dos direitos a vários níveis.

d) O direito de acesso ao direito e à justiça como direito complexo marcado por normas.

e) O direito de acesso ao direito e à justiça é um direito complexo “marcado por normas”, pois nele se precipitam várias dimensões constitutivas a que correspondem outros tantos níveis de garantia.

f) A dimensão democrática do acesso ao direito e à justiça.

O sentido ideológico do processo torna-se na posição do Estado perante o indivíduo e do indivíduo perante o Estado”. Sendo o processo “poder” ele seja um elemento de legitimação externa contribuindo para a aceitação democrática da justiça do Estado. O direito de acesso à justiça constitucional será, neste contexto, pedra de toque sobre a juridicidade e jusfundamentalidade informadoras do exercício do poder.

2. Porquê direito de acesso à justiça constitucional?

O que é que a justiça constitucional pode fazer que as outras instâncias judiciais não podem?

O que é que a justiça constitucional acrescenta ao direito de acesso ao direito e aos tribunais?

Razões de ser das questões colocadas:

a) Os direitos fundamentais, não são bens inseridos em qualquer reserva de Tribunal Constitucional;

b) O direito de acesso à justiça constitucional é condicionado pelo princípio da subsidiariedade relativamente às vias de acesso ao direito e aos tribunais constitucionalmente estabelecidos ;

c) O Tribunal Constitucional está vinculado, no exercício das suas funções, ao respeito das tarefas constitucionalmente atribuídas aos outros poderes.

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A questão continua a colocar-se: o que é que o acesso à justiça constitucional pode resolver?

Perante crescente constitucionalização e jusfundamentalização, dir-se-á que a justiça constitucional é exigida quando ela preencha algumas lacunas de protecção jurídica dos cidadãos. É o caso, desde logo, da defesa de direitos fundamentais lesados directamente por actos judiciais.

É sabido que do mérito ou demérito dos Tribunais recorre-se para outros Tribunais.

Da boa ou má aplicação do direito ordinário curam as instâncias previstas na ordem jurídico-constitucional. Justifica-se, porém, o direito de acesso à justiça constitucional contra actos do poder público lesivos de direitos fundamentais, a começar pelos próprios Tribunais.

Os Tribunais defendem os direitos mas também é possível que cometam, através dos seus actos atentativos, jusfundamentalmente relevantes. Justifica-se, assim, a criação de acções constitucionais de defesa ou acções de amparo por violação de direitos fundamentais resultantes de actos do poder judicial. Um segundo filão de acesso à justiça constitucional relaciona-se com actos do poder legislativo.

3. A “última fronteira” do acesso à justiça constitucional: a colisão de racionalidades correctivas.

No futuro, os Tribunais Constitucionais ou os Tribunais encarregados da justiça Constitucional não serão chamados a pronunciar-se sobre aquilo que hoje se chama colisões de racionalidades normativas?

Alguns exemplos poderão tornar mais inteligível o discurso sobre racionalidades normativas.

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Exemplo I – a “dívida soberana”

O Tribunal Constitucional Alemão tem, há um ano, o repto de uma acção constitucional de defesa interposta por alguns cidadãos contra aos financiamentos da União Europeia à Grécia. Na calha está também outra acção constitucional de defesa contra os financiamentos a Portugal. Quais são as racionalidades em colisão?

A racionalidade do “ projecto europeu” e a racionalidade da “estatalidade alemã”.

Exemplo II – a inclusividade e reconhecimento do outro

Muitas questões são hoje levantadas a propósito do confronto de racionalidades normativas no âmbito da pluriculturalidade. De um lado, estruturas e conhecimentos tradicionais, do outro lado as conquistas da modernidade.

A colisão pode passar pelas dimensões religiosas a acabar em dimensões económicas (ex: saúde pública e práticas tradicionais).

Exemplo III – patenteabilidade e conhecimentos tradicionais

Quem estiver atento aos recentes desenvolvimentos da Organização Mundial do Comércio e das instâncias envolvidas na Convenção sobre a biodiversidade verificará que é, hoje, incontornável a colisão de racionalidades normativas entre o regime de patentes (TRIPS), pautado pela liberdade e segredo de investigação e o regime de acesso aos recursos genéticos informado pelo princípio da soberania estatal e do consentimento informado.

Em conclusão, o palestrante abordou as imbricações decorrentes do direito de acesso à justiça constitucional como instrumento de mobilização cidadã: tutela colectiva e “status” procuratoris.

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Os direitos procuratórios (jus procuratoris) garantem aos respectivos titulares a defesa de interesses públicos, independentemente da protecção de um interesses individuais.

A constituição (e as leis) reconhece ao particular o direito de “mobilizar” e de pôr em andamento a ordem jurídica de forma a promover a defesa de interesses públicos (saúde, qualidade de vida, preservação do ambiente, património cultural, domínio público).

A “mobilização cidadã” introduz-se no processo decisório transformando-o num processo transparente e contínuo de comunicação com os cidadãos (“utentes”, “particulares”, “interessados” e possibilitando um exercício de tarefas públicas materialmente mais adequado e justo.

2.º PAINEL

Dr. Schnutz Rudolf Dürr – Chefe da Divisão de Justiça Constitucional da Comissão de Veneza do Conselho da Europa

O prelector fez uma breve apresentação da Comissão de Veneza e da possibilidade de cooperação desta instituição com a Conferência dos Tribunais Constitucionais dos Países Lusófonos e os seus Tribunais Membros.

Sobre a Comissão de Veneza, o ilustre apresentador, salientou que o nome real da Comissão de Veneza é “Comissão Europeia para a Democracia pelo Direito”, o que revela o seu real objectivo, que é o de promover a verdadeira democracia com base no direito constitucional.

A Comissão de Veneza foi criada em 1990, e tem como escopo principal, ajudar os diversos países a adoptar Constituições de acordo com as normas democráticas e também cooperar com os Tribunais Constitucionais e órgãos equivalentes a fim de auxiliar na implementação da Constituição.

A sobredita Comissão, coopera desde 1996 com países da Europa e outras regiões do mundo, nomeadamente, países francófonos, África austral, Ásia, países ibero-americanos, Árabes, etc.

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Actualmente, almeja concluir um acordo de cooperação com a Conferência das Jurisdições Constitucionais dos Países de Língua Portuguesa.

De igual modo, o prelector manifestou o ensejo de que os Tribunais Constitucionais presentes neste Seminário estejam entre os primeiros a aderir a Conferencia Mundial da Comissão sobre Justiça Constitucional, cujo estatuto foi aprovado a 23 de Maio de 2011, sendo certo que a língua portuguesa é uma das línguas oficiais da Conferência Mundial.

Em relação à parte substancial do tema, o prelector enfatizou o seguinte:

1. O respeito pelos direitos humanos é uma parte essencial de qualquer sociedade democrática. Para a sua implementação são essenciais mecanismos constitucionais, que permitem que os acedam directa ou indirectamente;

2. O número de acções que chegarão ao Tribunal Constitucional, é tão elevado que serão necessárias medidas organizacionais que funcionem como filtros ( por exemplo prazos, possíveis emolumentos de Tribunais, exigência de representação legal ou o esgotamento prévio dos recursos);

3. Entre os princípios processuais aplicáveis à revisão constitucional,

realça-se o da celeridade, evitando-se a excessiva duração dos processos.

Como conclusão, o Dr. Hermenegildo Gamito, Juiz Conselheiro Presidente do Conselho Constitucional de Moçambique, na qualidade de Presidente da Conferência dos Tribunais Constitucionais dos Países Lusófonos declarou a aceitação da proposta de cooperação trazida pelo representante da Comissão de Veneza e que aguardará pela formalização do convite aludido.

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3.º PAINEL

Apresentação de Angola

Dr. Onofre dos Santos – Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional

A apresentação teve como objecto principal a demonstração da consagração do direito de acesso à justiça constitucional em Angola.

O orador iniciou a sua abordagem pela apreciação das disposições constitucionais consagradoras do direito de acesso à justiça constitucional, tendo feito particular referência aos artigos 29.º e 126.º da CRA.

Em seguida, realizou uma incursão mais aprofundada sobre as quatro vias através das quais se pode realizar o acesso dos particulares à justiça constitucional, quais sejam:

a) O da norma em abstracto; b) O da norma em concreto; c) O da interpretação da norma em concreto; d) O do acto judicial ou administrativo quando contrariem ou ofendam a

Constituição.

a) A Fiscalização abstracta sucessiva

Uma primeira via que pode ser trilhada pelos particulares, visando a fiscalização abstracta de uma norma, não depende apenas da sua vontade.

Esta via só lhes está aberta mediante a sub-rogação em alguma das entidades com legitimidade para requerer a declaração da inconstitucionalidade abstracta e sucessiva, nomeadamente a Provedoria de Justiça e a Ordem dos Advogados, as duas instituições de entre as previstas no n.º 2 do artigo 230.º da Constituição que se podem considerar as mais próximas dos cidadãos.

Referiu que a Ordem dos Advogados de Angola já fez utilização desta sua capacidade constitucional requerendo a declaração de inconstitucionalidade de uma norma tendo-o feito, precisamente em paralelo e em reforço de um pedido

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de fiscalização concreta a requerimento dos particulares interessados no afastamento da mesma norma.

Não obstante o aludido anteriormente, a Constituição reconhece aos cidadãos, nos seus artigos 73.º e 74.º o direito de petição, denúncia, reclamação e queixa, bem como o direito de acção popular atribuído a qualquer cidadão, individualmente ou através de associações de interesses específicos.

O primeiro direito podendo ser exercido junto de qualquer órgão de soberania e o segundo a ser exercido nos tribunais para defesa de certos direitos fundamentais, para reposição da legalidade dos actos administrativos e para salvaguarda de demais interesses colectivos.

É provavelmente mais uma via de que os particulares se poderão socorrer para defesa de direitos pessoais reconhecidos pela Constituição.

O artigo 74.º da Constituição refere que a acção judicial popular intervirá “nos casos e termos estabelecidos por lei” mas, fica desde já, o reconhecimento deste direito, incluído entre as garantias dos direitos e liberdades fundamentais que contam com a força jurídica da sua aplicação imediata nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 28.º da Constituição.

b) A Fiscalização concreta em sentido estrito

Uma segunda, é a via em que assiste aos cidadãos a iniciativa de recorrer, num qualquer processo judicial, ou da recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou da aplicação de uma norma aplicável à causa cuja inconstitucionalidade tenha sido oportunamente suscitada. Este direito ao recurso ordinário de inconstitucionalidade está previsto na Constituição nas alíneas d) e e) do n.º 2 do artigo 180.º da Constituição e regulado nas alíneas d) e e) do artigo 16.º e n.º 1 a 3 do artigo 21.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional e artigo 36.º e ss da Lei do Processo Constitucional). Embora tal como na fiscalização abstracta sucessiva, o objecto deste recurso ordinário de inconstitucionalidade seja uma norma jurídica o regime destas duas figuras de fiscalização são assinaláveis:

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a) Enquanto na acção de fiscalização abstracta, quando julgada

procedente, a norma é destruída e erradicada do ordenamento jurídico, sendo expressamente dito que “a norma declarada inconstitucional em processo de fiscalização sucessiva abstracta é nula” (n.º 1 do artigo 30.º da Lei do Processo Constitucional);

b) Na fiscalização concreta, a norma nem é destruída nem suprimida do ordenamento jurídico. Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade na fiscalização concreta só produzem efeitos no processo, isto é, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade restringem-se e ficam confinados ao processo em que a questão foi suscitada. Nos termos da Lei do Processo Constitucional “A decisão do recurso pelo Tribunal Constitucional faz caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade suscitada e apenas no processo em que foi levantada” (artigo 47.º n.º 1 da Lei do Processo Constitucional).

Quer Isto dizer que a fiscalização concreta é promovida e levada a efeito pelos cidadãos, movidos naturalmente pelo seu interesse particular, enquanto na fiscalização abstracta a motivação é essencialmente objectiva e no interesse público.

Assim se compreende que seja livre a desistência nos recursos ordinários de inconstitucionalidade mas esteja expressamente vedada a desistência nos processos de fiscalização abstracta sucessiva.

É também interessante verificar que o nosso Tribunal Constitucional, que nesta altura comemora o seu III Aniversário, tem apenas um registo de acção desta natureza: o único recurso ordinário de inconstitucionalidade interposto foi o que há pouco se fez referência e que correu os seus termos em paralelo com o processo de fiscalização abstracta sucessiva requerido pela Ordem dos Advogados.

Isto terá algo a ver com o facto de ser ainda recente a instalação do Tribunal Constitucional, e com o ainda reduzido conhecimento dos cidadãos quanto às competências e funcionamento do Tribunal. Uma das formas de iluminar os caminhos de acesso ao Tribunal Constitucional e dar-lhes uma mais adequada visibilidade poderá vir a ser encontrada na institucionalização de audiências

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públicas (pelo menos uma vez por ano) na abertura das suas sessões ao público em alguns casos e na própria instituição dos amici curiae.

Estas poderão vir a constituir modalidades alternativas de acesso dos cidadãos à justiça constitucional que poderão vir a ser estabelecidas pelo próprio Tribunal Constitucional exercendo o seu poder inerente de auto-normação.

Também os juízes das jurisdições comuns, como juízes constitucionais que o são, no contexto do nosso sistema misto, deverão estar cada vez mais apetrechados para resolver questões incidentais sobre a constitucionalidade das normas, aprofundando a conexão entre estas e os direitos fundamentais, dando a sua melhor contribuição para o enriquecimento da jurisprudência constitucional.

c) A Fiscalização concreta da interpretação da norma conforme a

Constituição Uma terceira via, que formalmente não se distingue da anterior, consiste no recurso igualmente interposto num processo judicial, com fundamento não na inconstitucionalidade de uma norma aplicável à causa, mas na sua interpretação não conforme com a Constituição dessa norma. No direito angolano, o recurso ordinário contém, efectivamente, esta nuance em que o objecto do recurso ordinário não são apenas as normas, mas também as interpretações normativas que estão subjacentes à decisão do Juiz.

Quando o objecto do recurso não é a inconstitucionalidade da norma em causa, mas a interpretação que dela foi feita, o efeito não é a aplicação ou o afastamento da norma, mas a aplicação da norma com a interpretação determinada pelo Tribunal Constitucional.

É o que dispõe o n.º 3 do artigo 47.º da Lei do Processo Constitucional ao estabelecer que “no caso de o juízo de constitucionalidade sobre a norma que a decisão recorrida tiver aplicado ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em determinada interpretação da mesma norma, esta deve ser aplicada com tal interpretação, no processo em causa”.

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Nestes casos, porém, como logo se pressente, torna-se movediça a fronteira entre norma e acto, já que embora o objecto continue a ser a norma em causa, o que releva como questão constitucional é a identificação do único sentido conforme a Constituição de entre os possíveis sentidos atribuídos a essa norma.

d) A Fiscalização concreta extraordinária ou do recurso constitucional para protecção de direitos fundamentais

Em Angola os particulares têm ao seu dispor um outro mecanismo de recurso para o Tribunal Constitucional, designado de recurso extraordinário de inconstitucionalidade, que se tem mostrado o mais amigo dos cidadãos, a avaliar pelo número de processos que têm sido interpostos, estando registados 12 processos findos no período de 2009 a 2011, encontrando-se vários outros em curso.

Esta quarta via aberta aos cidadãos consiste no recurso de uma decisão judicial ou de um acto administrativo que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição. Não estando expressamente prevista na Constituição esta modalidade de recurso, a sua instituição tanto na Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), quanto na Lei do Processo Constitucional (LPC) é pacificamente entendida como uma concretização dos dispositivos constitucionais inscritos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 180.º da CRA. Por essa via conseguimos determinar, com efeito, a competência do Tribunal Constitucional para apreciar, por um lado, a constitucionalidade não apenas de quaisquer normas como dos demais actos do Estado e, por outro, para exercer jurisdição sobre as questões jurisdicionais nos termos da Constituição e da lei. Este recurso extraordinário de inconstitucionalidade está aliás, em exemplar consonância, com a extrema sensibilidade da nova Constituição angolana quanto ao primado da pessoa revelado em disposições como o artigo 26.º da CRA no qual, depois da previsão conhecida noutras leis fundamentais, de inclusão de direitos fundamentais não referidos na Constituição mas constantes de leis e regras aplicáveis de direito internacional e da estatuição sobre a interpretação dos preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais, orienta os tribunais angolanos a aplicar aqueles instrumentos “ainda que não sejam invocados pelas partes.” Há que reconhecer que poucos ordenamentos foram tão longe na protecção dos direitos fundamentais em juízo sendo, por conseguinte, o recurso específico para a sua prossecução, um mecanismo perfeitamente adequado.

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Em termos do seu estabelecimento legal, o recurso extraordinário de inconstitucionalidade encontra-se regulado lado a lado com o recurso ordinário, sob a comum qualificação de fiscalização concreta.

Apesar deste englobamento do recurso extraordinário no âmbito da fiscalização concreta, os dois recursos apresentam, para lá de alguns traços comuns, assinaláveis diferenças tanto quanto ao seu objecto, como quanto à sua tramitação, quer ainda quanto aos seus efeitos.

O traço comum mais saliente tem a ver com a natureza de recurso de ambos e a imposição legal de ambos só caberem de decisões judiciais finais e não de despachos interlocutórios, como por mero exemplo: um despacho de não abertura injustificada de uma instrução contraditória ou da prisão arbitrária de um arguido num processo crime.

Como se refere no n.º 3 do já citado artigo 36.º da Lei do Processo Constitucional, “só pode interpor-se o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade de sentença final proferida pelo Tribunal da causa.” Igualmente “podem ser objecto de recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o tribunal Constitucional as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição”.(alínea a) do artigo 49.º da Lei do Processo Constitucional).

Não se limita, todavia, o recurso extraordinário de inconstitucionalidade a estabelecer o recurso de sentenças judiciais mas também de “actos administrativos definitivos e executórios que contrariam princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição” (alínea b) do mesmo artigo 49.º).

Destas disposições se infere, desde logo, a primeira e mais importante distinção entre os dois tipos de fiscalização concreta:

a) Enquanto no recurso ordinário, a questão da inconstitucionalidade é sempre uma norma (ou a sua interpretação);

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b) no recurso extraordinário essa questão é sempre uma decisão, uma decisão judicial ou um acto administrativo, em qualquer caso uma decisão final e definitiva.

No recurso extraordinário de inconstitucionalidade o critério não é, pois, a inconstitucionalidade da norma mas a violação de um direito, liberdade, garantia ou princípio fundamental.

Um recurso tem a ver com normas, o outro tem a ver com decisões ou actos e com a violação em concreto de direitos fundamentais, uma actuação susceptível de produzir uma lesão (intervenção restritiva), ilícita em si mesma independentemente de ser inconstitucional. Por isso se pode dizer com alguma propriedade que enquanto o recurso ordinário de inconstitucionalidade tem a ver com a função fiscalizadora do Tribunal Constitucional, o recurso extraordinário tem muito mais a ver com a sua função reparadora e com a sua também desejável qualificação como Tribunal de Direitos Fundamentais. Uma outra distinção assinalável a estes dois recursos decorrente das recentes alterações introduzidas na Lei Orgânica do Tribunal Constitucional e na Lei do Processo Constitucional (Lei n.º 24 e 25/10, de 3 de Dezembro) tem a ver com a exigência da exaustão dos recursos para efeitos da interposição do recurso extraordinário:

a) Enquanto no recurso ordinário de inconstitucionalidade este só pode ser interposto de sentença final mas não se exige que tenham sido esgotadas as instâncias de recurso ordinário;

b) O recurso extraordinário de inconstitucionalidade “só pode ser interposto após prévio esgotamento nos tribunais comuns e demais tribunais, dos recursos legalmente previstos” (parágrafo único do artigo 49.º da Lei do Processo Eleitoral e alínea m) do artigo 16.º e n.º 5 do artigo 21.º, ambos da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).

Esta alteração, introduzida não por força da nova Constituição mas por opção do legislador de 2010, terá como efeito imediato não só uma diminuição drástica no fluxo dos processos de recurso extraordinário como a sua redução a uma feição minimalista na medida em que o recurso extraordinário de actos administrativos violadores de direitos fundamentais se tornará na prática inviável, remetido que fica para o prévio calvário processual da prévia impugnação hierárquica e contenciosa dos actos administrativos.

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Para além de criar mais uma disparidade processual entre as duas espécies de recurso – que não existia antes das alterações - a obrigatoriedade do esgotamento dos recursos no caso do recurso extraordinário que incida sobre sentenças judiciais tenderá a transformar esta via para o Tribunal Constitucional de via rápida que era em via suplementar que passará a ser, constituindo, na prática, o acesso ao Tribunal Constitucional em mais um grau de jurisdição comum, visto que nestes casos, a questão da constitucionalidade se confunde na realidade com o julgamento da questão principal debatida no processo.

Terá, porém, a vantagem, já experimentada noutras jurisdições constitucionais que admitem o recurso de amparo, de evitar um indesejável congestionamento do Tribunal Constitucional com estes recursos que, dizem alguns, não são o objecto principal da sua actividade.

Para além de se reconhecer que Angola adoptou um sistema de fiscalização concreta difusa, todos os demais Tribunais integram e participam, ao seu nível, da jurisdição constitucional.

Concluiu dizendo que o sistema do direito de acesso à justiça constitucional dispõe em Angola de um compreensivo leque de vias operacionais as quais, apesar das recentes restrições introduzidas, o situam ao nível dos mais abertos e generosos no tratamento das questões constitucionais, com especial realce para a protecção dos direitos fundamentais.

3.º PAINEL

Apresentação de Cabo-Verde

Dr. Arlindo Medina – Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

O orador procedeu à introdução da sua prelecção fazendo uma incursão sobre a história constitucional de Cabo-Verde.

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Assim, referiu que a primeira Constituição de Cabo-Verde de 19809 atribuía à Assembleia Nacional Popular a competência para decidir da constitucionalidade das leis e dos demais diplomas legislativos (art. 62.º). Estava, por essa via, vedado aos tribunais a possibilidade de realizar a fiscalização da constitucionalidade das leis.

Com a aprovação da Constituição em 1992, o quadro mencionado foi alterado, sendo que por força do disposto no seu art. 225.º, os tribunais não podem aplicar normas contrárias à Constituição ou aos princípios nela designados.

Em relação ao acesso à justiça constitucional, fez referência à algumas disposições da Constituição de Cabo-Verde, designadamente o art. 22.º n.º 1 sobre o acesso à justiça, o art. 211.º n.º 3 sobre a competência que todos os Tribunais possuem de realizar a fiscalização da constitucionalidade das leis.

Referiu-se também ao modelo de fiscalização da constitucionalidade, tendo feito uma incursão sobre a fiscalização preventiva, fiscalização abstracta e a fiscalização concreta.

O orador mencionou que uma das particularidades do sistema constitucional de Cabo-Verde é o Recurso de Amparo que foi introduzido pela Constituição de 1992 e está previsto no art. 20 n.º 1.

Por essa via, está garantido o acesso ao Tribunal Constitucional para a tutela dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.

Não se conhece jurisprudência Cabo-verdiana sobre o Recurso de Amparo, salvo um aresto (o Acórdão n.º 4/96, de 2 de Novembro de 1996), por via do qual o Tribunal Constitucional reconheceu a uma entidade pública – Município – a legitimidade para interpor um Recurso de Amparo.

Mencionou que hoje discute-se na comunidade jurídica de Cabo-Verde se o Recurso de Amparo visa apenas a tutela dos direitos, liberdades e garantias fundamentais ou, também, estão nela compreendidos os direitos análogos reconhecidos pela Constituição.

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Porém, o objecto do Recurso de Amparo foi restringido pelo art. 2.º n.º 2 da Lei n.º 109/IV/94, de 24 de Outubro – Lei Reguladora do Recurso de Amparo, ao determinar que “os actos jurídicos objecto do recurso de amparo não podem ser de natureza legislativa ou normativa.”

Realçou que, não obstante a sua consagração na Constituição e ter sido aprovada uma Lei que regule o exercício do Recurso de Amparo, esse mecanismo persiste um instrumento processual de efeito prático inexpressivo.

Em conclusão, salientou que não pretende pôr e causa as virtualidades do Recurso de Amparo. Pretende, pelo contrário, a necessidade de uma maior racionalização do sistema é incontornável, com vista por um lado, a garantir a eficiência na tutela dos direitos subjectivos dos cidadãos e, por outro, a assegurar um sistema de justiça coerente e eficiente.

4.º PAINEL

Prof. Doutor Luís Virgílio Afonso da Silva – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Brasil

Com a sua intervenção, o prelector pretendeu demonstrar que os problemas de acesso à justiça constitucional não se limitam ao momento que antecede o acesso ao Pode Judiciário.

Esses problemas estão também localizados no próprio processo decisório e no momento posterior à decisão. As variáveis que fomentam (ou obstaculizam) o acesso à justiça constitucional não operam em apenas um sentido. Há uma constante retro-alimentação nesse âmbito. Por essa razão, dividiu a sua análise em "o antes", "o durante" e "o depois".

a) O "antes"

Um dos principais problemas que antecedem e obstaculizam o acesso à justiça constitucional é a falta de informação a respeito.

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Muitas vezes, a justiça constitucional está de portas abertas, mas parte da população não sabe disso ou não sabe que há (se houver) uma instituição externa ao Judiciário (no caso brasileiro, a Defensoria Pública) para auxiliá-lo na busca judicial da implementação de seus direito constitucionais.

Assim, duas importantes medidas são necessárias nesse âmbito: a criação ou o fortalecimento desse tipo de instituição (Defensoria Pública) e a promoção de uma educação para os direitos fundamentais, que informe os cidadãos não apenas de seus direitos, mas também das formas (inclusive judiciais) de realizá-los.

b) O "durante"

Muitas vezes, o procedimento judicial é extremamente moroso. Acesso a uma justiça morosa é, ao final do processo, sinónimo de acesso nenhum.

Por isso, o processo decisório tem necessariamente que ser célere, sem, com isso, prejudicar a qualidade das suas decisões. Formas de postergação ou interrupção de julgamentos devem ser evitadas ao máximo.

Além do problema da morosidade, parece fundamental que o Tribunal Constitucional (não importa que nome e estrutura tenha) seja uma instituição forte. A simbologia presente nesse aspecto não pode ser subestimada.

Nos países em que os cidadãos vêm no Tribunal Constitucional uma instituição forte, autónoma e coesa, a sua capacidade de fomentar o acesso à justiça estará presente. Para isso, é necessário que os juízes compreendam que uma instituição não é a mera soma de seus membros, mas algo que vai além disso.

Toda e qualquer forma de deliberação e decisão que fomente essa unidade institucional deve ser priorizada, e formas que incentive o individualismo dos juízes ou uma atmosfera adversarial devem ser rejeitadas.

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c) O "depois"

O mais importante elemento pós-decisório (que, na verdade, começa no próprio momento de decisão) a fomentar o acesso à justiça é a publicação de decisões que sejam transparentes do ponto de vista argumentativo e redacional.

Linguagem hermética afasta os cidadãos do Poder Judiciário. Muitos tribunais do Mundo redigem as suas decisões de tal forma que nem mesmo pessoas formadas em direito conseguem entender exactamente o que foi decidido.

Em conclusão, é possível, sem perda de precisão, recorrer a uma linguagem mais inteligível. E se isso é possível, deve ocorrer, porque esse é um factor que alimentará o acesso à justiça em momentos futuros.

5.º PAINEL

Apresentação da Guiné-Bissau

Dr. Mamadou Baldé – Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça

O acesso à justiça por ser uma inestimável garantia constitucional, derivado de um princípio constitucional, faz parte integrante da categoria dos direitos fundamentais.

O ordenamento jurídico-constitucional consagra a modalidade de fiscalização concreta e concentrada da constitucionalidade. Por essa razão é um sistema ainda em evolução que reclama uma necessidade de adequação às exigências do constitucionalismo moderno.

De acordo com o art. 126.º da Constituição, não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados.

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Em caso de fiscalização sucessiva, a legitimidade para a suscitar é muito restrita sendo atribuída oficiosamente ao Tribunal, ao Ministério Público ou a qualquer das partes.

Lamentou o orador, a ausência no ordenamento Guineense, tal como acontece em várias constituições modernas, nomeadamente: do Brasil, a figura da “queixa constitucional”, um regime mais elástico e abrangente o que permitiria aos cidadãos lesados nos seus direitos fundamentais apelarem directamente para o Tribunal Constitucional.

Concluiu referindo que na ordem jurídica interna do Estado da Guiné-Bissau a tarefa de protecção jurisdicional dos direitos fundamentais não está reservada à competência de um só órgão em regime de exclusividade.

Para além do Supremo Tribunal de Justiça que abarca a jurisdição constitucional, que abarca a jurisdição constitucional, por falta de criação do Tribunal Constitucional, assiste também aos demais tribunais a protecção dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.

5.º PAINEL

Apresentação de Moçambique

Dr. Hermenegildo Gamito – Juiz Conselheiro Presidente do Conselho Constitucional

O prelector iniciou a sua apresentação louvando a profunda capacidade de formação e entre ajuda existente na Conferência das Jurisdições Constitucionais dos Países de Língua Portuguesa.

A justiça não é um exclusivo do sistema judiciário, sendo que os poderes públicos têm a responsabilidade de todos eles concorrem para a aplicação da justiça.

Os Tribunais têm o escopo de garantir o respeito pelas leis e educar os cidadãos para que se estabeleça uma justa e harmoniosa convivência social;

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dizerem direito e serem compreendidos. Para que sejam compreendidos, os tribunais, maxime, os Tribunais Constitucionais, devem cuidar que a acessibilidade à sua linguagem não signifique um peso para os cidadãos.

A salvaguarda e protecção dos direitos fundamentais constituem a base da liberdade e da paz no mundo.

Concluiu dizendo que aos órgãos de soberania incumbe a criação de condições para que os cidadãos beneficiem dos seus serviços e cabe a estes impugnar as decisões e acções daqueles órgãos que violem os seus direitos.

5.º PAINEL

Apresentação de Portugal

Prof. Doutora Maria Lúcia Amaral – Juíza Conselheira do Tribunal Constitucional

De acordo com a prelectora, para que se fale do direito de acesso de particulares à jurisdição constitucional é necessário que se parta de um pressuposto, que deve ser explicitado porque não é, em si mesmo, evidente.

O pressuposto é o de que a jurisdição constitucional é de índole subjectiva, ou tem uma certa índole subjectiva. Dito de outro modo: o pressuposto é o de que a função específica de administrar a justiça em matérias jurídico-constitucionais existe para tutelar posições jurídico-subjectivas, e isto em tal medida que deve ser accionada pelo titular dessas mesmas posições.

Chamou particular atenção para o instituto da queixa constitucional. Esse mecanismo de acesso à justiça constitucional apenas pode ser exercido mediante observância de requisitos cada vez mais exigentes (última reforma operada em 2007). Isto também constitui uma forma de conter a demanda do Tribunal e diminuir a sua sobrecarga.

A queixa constitucional é caracterizada por quatro elementos fundamentais:

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a) Objecto;

b) O seu fundamento;

c) A natureza da lesão que se invoca;

d) Meio processual subsidiário.

Entretanto, o acesso directo dos particulares ao juiz constitucional não se resume ao instituto acabado de escalpelizar. É muito mais amplo.

A via por excelência do acesso dos particulares à justiça constitucional é, de facto, a do recurso, para o Tribunal Constitucional, da norma a aplicar ao caso, arguição essa que o mesmo particular tenha feito durante o processo.

Em síntese, foram aqui descritas, duas vias de acesso à justiça constitucional, por via directa e por via indirecta.

6.º PAINEL

Apresentação de São Tomé e Príncipe

Dr. Silvestre da Fonseca Leite – Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

O Direito de acesso à justiça constitucional consiste no direito de recurso a um Tribunal e de obter dele uma decisão jurídica.

Este direito consiste, dentre outros, numa obrigação do Estado de criação de Tribunais suficientes e de os colocar perto dos cidadãos e, ainda, na obrigação dos Tribunais de conhecerem em tempo útil das questões que lhe sejam submetidas, bem como a necessidade de uma protecção sem lacunas.

A Constituição consagra um conjunto de direitos de carácter pessoal, de ordem económica, social, e cultural de que devem usufruir os cidadãos entre os quais o direito de acesso à justiça.

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O art. 120º da Constituição São Tomense consagra que “na administração da justiça incumbe aos Tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, dirimir os conflitos de interesse públicos e privados e reprimir a violação das leis.”

Sendo nos termos do artigo 20º o direito de todos os cidadãos recorrerem aos Tribunais contra actos que violem os seus direitos reconhecidos pela Constituição e pela lei, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos, tendo o cidadão ainda, dentre outros, o direito de petição, o direito de ser indemnizado por perdas e danos causados pelas acções ilegais e lesivas dos seus direitos e interesses legítimos, quer dos órgãos estatais, organizações sociais ou quer dos funcionários públicos.

Quanto a fiscalização das normas, no que concerne a fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas só podem requerer ao Tribunal Constitucional a sua apreciação o Presidente da República, o Primeiro Ministro ou 1/5 de Deputados em efectividade de funções.

Na fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade das normas só podem requerer ao Tribunal Constitucional, o Presidente da República, o Presidente da Assembleia Nacional, o Primeiro Ministro, o Procurador Geral da República, Um décimo dos Deputados à Assembleia Nacional e a Assembleia legislativa Regional e o Presidente do Governo Regional do Príncipe.

Na Fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade todos podem concorrer, art. 149º CRDSTP. Mas a competência para suscitar a inconstitucionalidade por omissão é restrita ao Presidente da República e ao Presidente da Assembleia legislativa, apenas quando estejam em causa os direitos da região autónoma do Príncipe. Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência da inconstitucionalidade da norma dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente.

O sistema de fiscalização da constitucionalidade é um sistema jurisdicional, é um sistema difuso e concentrado, é um sistema preventivo e sucessivo e é um sistema de fiscalização de constitucionalidade por acção e por omissão.

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6.º PAINEL

Apresentação de Timor-Leste

Dr.ª Natércia Gusmão – Juíza Conselheira do Conselho Constitucional

A restauração da independência em Timor-Leste que se deu há nove anos e que possibilitou a entrada em funcionamento dos órgãos jurisdicionais próprios coloca a justiça constitucional Timorense numa qualidade de justiça recente.

O modelo de fiscalização da constitucionalidade adoptado pela Constituição é o jurisdicional misto, nos termos do qual tanto o Tribunal Supremo de Justiça quanto os demais Tribunais podem fiscalizar a constitucionalidade de quaisquer actos, art. 120.º

Sobre a fiscalização da constitucionalidade, referiu-se à fiscalização abstracta (preventiva e sucessiva), à concreta e à fiscalização da inconstitucionalidade por omissão.

No que tange à prática constitucional, referiu que nos nove (9) anos de existência da Constituição, ainda não houve qualquer caso de recusa de aplicação de uma norma pelos Tribunais com fundamento na sua inconstitucionalidade.

Alegou que tal facto deve-se, sobretudo, à falta de preparação dos recursos humanos e da falta de consciencialização dos cidadãos Timorenses quanto ao exercício pleno dos seus direitos.

Em consequência, esse número reduzido de casos de fiscalização concreta é manifestamente insuficiente para se poder fazer uma reflexão aprofundada sobre o sentido da leitura que a jurisprudência constitucional tem feito sobre os princípios constitucionais.

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Em matéria de fiscalização abstracta da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional apenas foi chamado a pronunciar-se em onze (11) situações:

a) Seis (6) em sede de fiscalização preventiva a pedido do Presidente da República;

b) Cinco (5) em sede de fiscalização sucessiva solicitada pelos Deputados ao Parlamento Nacional.

Concluiu asseverando que a missão de consagrar o respeito e garantir a efectividade dos direitos fundamentais e a independência do poder judicial constituem o garante último da democracia.

Conferência das Jurisdições Constitucionais dos Países de Língua Portuguesa, em Luanda, aos 24 de Junho de 2011.