scheeffer aconselhamento existencial

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O ACONSELHAMENTO EXISTENCIAL ORIGEM E DESENVOLVIMENTO A abordagem existencial em aconselhamento provavelmente é a que menos se adapta ao conceito geral de teoria. Segundo seus principais pro- ponentes, Rollo May e Van Kaam, expressa principalmente um posiciona- mento filosófico do qual emergem pressupostos e atitudes, implementadas no processo de aconselhamento. A sua origem encontra-se vinculada às contribuições de representan- tes de várias áreas-do pensamento humano. O existencialismo expressa uma corrente filosófica que se caracteriza pela preocupação de compreender e explicar a existência humana, afirmando a sua primazia sobre a essência. Nesse aspecto, rompeu com o pensamento tradicional intelectualista, pre- dominante até o século XIX, que postulava a dicotomia, essência e existên- cia, atribuindo prioridade à primeira e ressaltando princípios e verdades imutáveis, leis lógicas que se supunha estarem acima e além de qualquer existência determinada. O pensamento filosófico existencial, representado por Kierkegaard, Heidegger, e Buber, centralizava-se na convicção de que a realidade última é encontrada na existência individual, única e concreta, expressa através do compromisso de ser e no agir, no assumir a responsabilidade dessa existên- cia. A posição existencial desenvolveu-se paralelamente à fenomenologia, divulgada por Husserl como uma metodologia segundo a qual um objeto de 66 estudo pode manifestar-se de maneira mais precisa como elemento irredu- tível e originário imediatamente na consciência. Esse dado imediato é de- nominado fenómeno. Significa um esforço para conhecer os fenómenos na sua fonte original, como objeto da consciência, em sua inteira realidade. Nessa perspectiva, não é possível o conhecimento do objeto conhecido, separado do sujeito que o conhece - sujeito e objeto constituem uma relação íntima e indissolúvel. O pensamento existencial foi transportado para a psiquiatria por Binswanger, Minkowski, Straus, Frankl, que basearam a sua prática psico- terápica nos princípios filosóficos existenciais. Esses ressaltavam a neces- sidade da tomada de consciência da própria existência, da importância de uma direcionalidade existencial e do livre arbítrio, .da aceitação da respon- sabilidade pela própria existência. Observa-se a penetração do existencialismo na literatura, expressa nas obras de Sartre, de Camus e outros, algumas de cunho filosófico. A famosa afirmativa de Sartre (1947, p. 18): "O homem não é nada mais do que aquilo que ele faz de si próprio" converteu-se em um dos pressupostos básicos do existencialismo. A imprescindibilidade da escolha e decisão, como condição humana fundamenta], havia sido apontada por Kierke- gaard. A angústia, o medo, a culpa, o desespero humano vinculavam-se às opções das quais o homem não pode fugir por serem inerentes a sua própria natureza. Entre os psicólogos, certamente o primeiro representante da corrente existencial foi Williams James. Segundo May (1974), assim como Kierke- gaard, James também acreditava na importância da vontade, e na decisão e compromisso como condições prévias para a descoberta da vontade. James compartilhava com os existencialistas a concepção do imediatismo da ex- periência e a noção de que a verdade existe para o indivíduo à medida que ele a transforma em ação. Entre outros psicólogos que, em maior ou menor escala, adotam o posicionamento existencial, encontram-se Merleau-Ponti, Maslow, Allport e, sobretudo, Rollo May. Este último é, na atualidade, a figura mais representativa da psicologia existencial, pelo vulto e extensão de suas contribuições. As tentativas sistemáticas de interpretação do processo específico de aconselhamento, fundamentado no ponto de vista existencial, têm sido realizadas por Van Kaam (1966), Arbuckle (1967 e 1971), Bollnow (1971). O último autor tem estendido o posicionamento existencial ao campo pedagógico e à educação. Observa-se, ainda, nas ideias de Cari Rogers e de seus seguidores mais recentes, entre os quais Gendlin e Shlien (Hart e Tomlinson, 1970), uma 67 i

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O ACONSELHAMENTOEXISTENCIAL

ORIGEM E DESENVOLVIMENTO

A abordagem existencial em aconselhamento provavelmente é a quemenos se adapta ao conceito geral de teoria. Segundo seus principais pro-ponentes, Rollo May e Van Kaam, expressa principalmente um posiciona-mento filosófico do qual emergem pressupostos e atitudes, implementadasno processo de aconselhamento.

A sua origem encontra-se vinculada às contribuições de representan-tes de várias áreas-do pensamento humano. O existencialismo expressa umacorrente filosófica que se caracteriza pela preocupação de compreender eexplicar a existência humana, afirmando a sua primazia sobre a essência.Nesse aspecto, rompeu com o pensamento tradicional intelectualista, pre-dominante até o século XIX, que postulava a dicotomia, essência e existên-cia, atribuindo prioridade à primeira e ressaltando princípios e verdadesimutáveis, leis lógicas que se supunha estarem acima e além de qualquerexistência determinada.

O pensamento filosófico existencial, representado por Kierkegaard,Heidegger, e Buber, centralizava-se na convicção de que a realidade últimaé encontrada na existência individual, única e concreta, expressa através docompromisso de ser e no agir, no assumir a responsabilidade dessa existên-cia.

A posição existencial desenvolveu-se paralelamente à fenomenologia,divulgada por Husserl como uma metodologia segundo a qual um objeto de

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estudo pode manifestar-se de maneira mais precisa como elemento irredu-tível e originário imediatamente na consciência. Esse dado imediato é de-nominado fenómeno. Significa um esforço para conhecer os fenómenos nasua fonte original, como objeto da consciência, em sua inteira realidade.Nessa perspectiva, não é possível o conhecimento do objeto conhecido,separado do sujeito que o conhece - sujeito e objeto constituem umarelação íntima e indissolúvel.

O pensamento existencial foi transportado para a psiquiatria porBinswanger, Minkowski, Straus, Frankl, que basearam a sua prática psico-terápica nos princípios filosóficos existenciais. Esses ressaltavam a neces-sidade da tomada de consciência da própria existência, da importância deuma direcionalidade existencial e do livre arbítrio, .da aceitação da respon-sabilidade pela própria existência.

Observa-se a penetração do existencialismo na literatura, expressanas obras de Sartre, de Camus e outros, algumas de cunho filosófico. Afamosa afirmativa de Sartre (1947, p. 18): "O homem não é nada mais doque aquilo que ele faz de si próprio" converteu-se em um dos pressupostosbásicos do existencialismo. A imprescindibilidade da escolha e decisão,como condição humana fundamenta], já havia sido apontada por Kierke-gaard. A angústia, o medo, a culpa, o desespero humano vinculavam-se àsopções das quais o homem não pode fugir por serem inerentes a suaprópria natureza.

Entre os psicólogos, certamente o primeiro representante da correnteexistencial foi Williams James. Segundo May (1974), assim como Kierke-gaard, James também acreditava na importância da vontade, e na decisão ecompromisso como condições prévias para a descoberta da vontade. Jamescompartilhava com os existencialistas a concepção do imediatismo da ex-periência e a noção de que a verdade existe para o indivíduo à medida queele a transforma em ação. Entre outros psicólogos que, em maior ou menorescala, adotam o posicionamento existencial, encontram-se Merleau-Ponti,Maslow, Allport e, sobretudo, Rollo May. Este último é, na atualidade, afigura mais representativa da psicologia existencial, pelo vulto e extensãode suas contribuições.

As tentativas sistemáticas de interpretação do processo específico deaconselhamento, fundamentado no ponto de vista existencial, têm sidorealizadas por Van Kaam (1966), Arbuckle (1967 e 1971), Bollnow(1971). O último autor tem estendido o posicionamento existencial aocampo pedagógico e à educação.

Observa-se, ainda, nas ideias de Cari Rogers e de seus seguidores maisrecentes, entre os quais Gendlin e Shlien (Hart e Tomlinson, 1970), uma

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tendência cada vez mais pronunciada para uma aproximação da filosofiaexistencial. A semelhança entre as duas correntes de pensamento é eviden-ciada pela metodologia fenomenológica que permeia a teoria rogeriana. Noentanto, as duas correntes diferenciam-se em outros aspectos tais como ateoria do "self' e os procedimentos utilizados no processo de aconselha-mento.

CONCEPÇÃO DA NATUREZA HUMANA

O homem é essencialmente livre no sentido de ser capaz de realizaropções e de tomar decisões das quais resultam o significado de sua existên-cia.

Aquilo que o indivíduo realmente é — a sua identidade pessoal -resulta das opções por ele realizadas (May, 1974). Admite-se, porém, queas escolhas estão sujeitas à limitação do mundo individual. Arbuckle(1971) salienta que o homem livre vive dentro das leis de sua cultura, se elevive numa cultura relativamente livre. Mas não é subjugado por essa cultu-ra. As forças culturais são ultrapassadas pelo homem em busca de suaprópria verdade pessoal que, em última analise, representa a sua liberdade.

Mas, ao mesmo tempo, o senso de liberdade implica na aceitação deum compromisso perante a vida. O conceito de responsabilidade desempe-nha papel destacado dentro da concepção existencial, pois representa acapacidade de enfrentar a realidade diretámente e de responder a ela demaneira positiva. À medida que uma pessoa é capaz de aceitar a responsa-bilidade pela sua própria vida ela se torna também moralmente livre.

O existencialismo compreende o homem como um processo do qualemergem a suaTautenticidade e a sua verdade interior, que integram o seusenso de identidade único e original. Mas esse é um processo descontínuoe, nessa descontinuidade que marca principalmente a passagem de etapasvitais, ocorrem situações de crise interior. A crise significa tomada dedecisões, definição de valores, ou escolha -de uma posição face à existência.Embora represente uma situação de abalo interior, a crise integra o próprioprocesso de desenvolvimento e de maturação do ser humano. As situaçõescríticas precedem e determinam a liberação de distorções que impedem,momentaneamente, a busca dos objetivos vitais genuínos.

Bollnow (1971) refere-se à crise de forma nitidamente positiva comoVivência de transformação e libertação" (p. 46). Discorda da concepção

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de Kierkegaard (1944), segundo a qual a existência humana se constitui, nasua essência, em uma crise. As crises ocorrem somente de tempos emtempos, em determinados momentos, como que "pontilhados" no decor-rer da existência, caracterizando os períodos de descontinuidade do desen-volvimento das potencialidades humanas. Segundo Bollnow (1971), as cri-ses sobrevêm, de preferência, nas transições de fases condicionadas biologi-camente, e vinculam-se à instabilidade e à insegurança relacionadas a essastransições para novas situações de vida (p. 40).

A força motivadora da vida humana é a busca que o homem em-preende para dar um sentido à sua existência. Para esse fim, utiliza acapacidade que lhe é inerente de autoconsciência e de ser o que ele é nomundo. Essa característica, que Heidegger (1962) se referia como"Dasein" (ser-aí), permite ao ser humano ter acesso aos fenómenos de suaconsciência e aos eventos que os influenciam e a tomar uma posição face aesses conhecimentos, em termos de passado, presente e futuro, como um"continuum". Isso torna possível as escolhas autênticas e assumir-se aresponsabilidade livre e consciente pela iirecionalidade da existência. Éprimordial para o homem, dentro dessa direcionalidade existencial, a defi-nição dos valores que, uma vez estruturados, transcendem a sua própriaexistência.

Dentro da concepção existencial, a ênfase à unicidade do ser humanoe à liberdade pessoal não leva o indivíduo ao isolamento social. O ser deveser definido como um padrão singular de potencialidades. Mas suas poten-cialidades necessitam ser compartilhadas com outros indivíduos. O termo"existir" indica que o homem não é uma simples "coisa" no meio deoutras coisas, nem uma interioridade fechada dentro de si mesma. O ho-mem não se valoriza se não sair de si mesmo para "estar com as coisas ecom o outro". Pela sua própria origem semântica, "existir" significa estar--no-mundo-com-o-outro integralmente.

Entre os proponentes do existencialismo, Martin Buber (1958) atri-buiu especial relevo ao encontro humano, a relação "eu-tu" autêntica co-mo componente existencial. A vida pode desenvolver-se na comunidadesomente na interação com o "tu". O homem anseia pela genuína comuni-cação com os outros e pela possibilidade de relacionamento significativocom o outro ser. Toda vida real é um encontro.

O homem sabe também que um dia virá em que ele não mais "será"ou existirá. "Ser" implica no fato de "não-ser". O significado da existênciaenvolve o reconhecimento e a aceitação da não-existência, já que a mente éuma realidade e um fato absoluto da vida.

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A existência só pode ser autenticamente assumida quando, face àmorte, damos sentido à vida, numa visão de aceitação. A escolha da vidaou da morte é uma opção que o homem é livre para realizar.

A ameaça do "não-ser" é a fonte da angústia normal que caracterizao ser humano. É a angustia existencial que Kierkegaard descreveu como aluta do ser vivente contra o "não-ser", algo semelhante a um poder alheioque se apodera do indivíduo e do qual ele não pode liberar-se. A angústiarepresenta, ainda, o confronto entre a necessidade de realização das poten-cialidades e o perigo de não ser capaz de realizá-las.

A angústia e o medo têm a mesma raiz ontológica, mas não sãoidênticos. O medo, quando comparado com a angústia, tem objeto defini-do que pode ser enfrentado, analisado, atacado.

A angustia ontológica ou existencial diferencia-se da patológica. Estasobrevêm quando o indivíduo torna-se incapaz de superar as suas crisesvitais normais. É desproporcional ao perigo existente e resultante de con-flito interior. A angústia neurótica é, por assim dizer, um meio usado pelanatureza para indicar que é preciso resolver um problema.

A culpa é outra característica ontológica que se vincula à consciênciada nao-realizaçâo integral das potencial!dades, da necessidade imperativade efetuar certas opções, em detrimento de outras. O sentimento de culpanão está ligado às proibições ou tabus culturais, mas à consciência de quese é capaz de escolher e de falhar nessa escolha. Difere da culpa neurótica,porque é vista como uma força construtiva que conduz à humildade, àsensibilidade nas relações interpessoais e ao reconhecimento da necessidadede auto-aperfeiçoamento.

O inconsciente não deve ser encarado como um reservatório de im-pulsos, pensamentos e desejos socialmente inaceitáveis. "Define-se, antes,como aquelas potencialidades de conhecer e experimentar que o indivíduonão pode ou não quer realizar." (May, 1974, p. 22.) Em última análise, osmecanismos inconscientes de repressão surgem inevitavelmente vinculadosà questão da Uberdade do ser humano e as suas próprias potencialidades.Sob esse prisma, a exploração do inconsciente não significa a fuga daresponsabilidade, mas o reconhecimento e a aceitação da mesma.

PRESSUPOSTOS

O aconselhamento existencial é a expressão de uma posição filosófi-ca. A fundamentação da atuação do aconselhador em esquemas teóricos

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definitivos, quer sejam da personalidade, de aprendizagem ou do desenvol-vimento, é considerada de pouca utilidade, pois o enfoque existencial cen-traliza-se especificamente na compreensão do homem como ser único, livree vivente, em busca de um sentido existencial. A adoção de posições teóri-cas rígidas oferece o perigo de destorcer essa compreensão, enquadrando-adentro de técnicas determinadas e conduzindo a uma abordagem do serhumano como objeto a ser examinado, analisado e manipulado.

Do ponto de vista existencial, o aconselhamento é uma atitude pe-rante o ser humano, no sentido de entendê-lo nas suas experiências indivi-duais, particularmente aquelas de natureza não-intelectuais, no seu envolvi-mento total com a situação no mundo em que vive. (Patterson, 1966.)Concebe a experiçncia do homem como a verdadeira fonte de todos osseus significados. O homem como sujeito não pode jamais ser separado doobjeto por ele observado, donde se conclui que o significado do fatoobjetivo depende da sua relação com o sujeito. O aconselhamento existen-cial centraliza-se, pois, nas experiências subjetivas do indivíduo que repre-sentam a fonte de todos os seus significados.

O ser humano, na condição de ser emergente e em constante evolu-ção, está sujeito a períodos de descontinuidade que o conduzem a situa-ções de crises existenciais. A crise separa e de novo liga dois estados daexistência, caracterizados, cada qual, por determinada ordem de vida.(Bollnow, 1971.) O aconselhamento oferece ao indivíduo urna ajuda parase reestruturar e se reencontrar ou para desenvolver novos valores e, emúltima análise, para encontrar o sentido da sua existência, problemas essesque se tomam mais agudos nos períodos de crise. A crise precede as opçõesvitais através das quais o homem se revela e define a sua identidade.

Embora nem sempre seja necessária, a presença empática do aconse-lhador oferece uma maior facilitação para que a crise seja superada demaneira menos penosa e mais realista.

O aconselhamento representa uma iniciação total, um encontro hu-mano autêntico, no qual o aconselhador se esforça para penetrar e com-preender o mundo vivencial do aconselhando. O encontro humano é umconceito-chave na concepção existencial. Não é suficiente que o aconselha-dor procure ver o mundo pelo mesmo ângulo do aconselhando, mas queprocure vê-lo com os olhos do próprio aconselhando. (Van Kaam, 1967.)

O aconselhando não deve ser percebido como um "sujeito", mascomo um companheiro existencial, que necessita ser ajudado a sentir arealidade da sua existência. A descoberta do significado dessa existênciapermitirá ao aconselhando estruturar e atribuir uma direcionalidade a seusvalores e realizar as opções vitais correspondentes.

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A busca de compreensão existencial é concomitante à busca da própriaidentidade e da sua verdade interior. Almeja-se que resulte daí uma maiorcapacidade de ser autêntico e livre, e de realização como ser humano.

Caracteriza-se o aconselhamento existencial por uma reflexão emprofundidade, compartilhada com o aconselhador que abandona o seupróprio mundo para estar com o aconselhando, na comunhão mais comple-ta possível de sentimentos e interesses. Dessa experiência resultam maiorespossibilidades para o aconselhando desenvolver outros relacionamentos hu-manos significativos. O aconselhamento não se limita a assistir o aconse-lhando na sua individualidade, mas visa ao melhoramento das suas relaçõesinterpessoais, em termos de autenticidade, embora mantendo sempre o seusenso de liberdade pessoal que decorre da compreensão de sua identidade edo sentido que atribui à sua existência.

O aconselhamento só ocorre verdadeiramente quando há francacooperação do aconselhando. Van Kaam (1966) o concebe como um apelode uma pessoa total respondido por outra pessoa total. Mas essa resposta édada ao aconselhando encarandq-o como uma pessoa livre, responsável eque tem em si a fonte dos seus próprios significados e valores.

Não obstante a ênfase na liberdade, o aconselhamento existenciJreconhece a necessidade de ajudar o aconselhando a se colocar frente àssuas limitações, em termos dos graus de liberdade e de perfeição de que écapaz, admitindo-as e aceitando-as como parte de sua própria identidade eexistência. A condição humana autêntica significa caminhar sempre emdireção da perfeição limitada que cada um é capaz de alcançar. (VanKaam, 1966.)

PROCESSO DE ACONSELHAMENTO

O processo de aconselhamento é essencialmente um relacionamentohumano no qual o aconselhador proporciona, pela sua atitude de elevadograu de empatia e calor humano, assitênciá ao aconselhando na luta queempreende para se liberar de sua inauíenticidade e encontrar um sentidopara sua existência. Para isso, o aconselhador faz do mundo pessoal doaconselhando o centro de sua atenção, de sua simpatia, de sua bondosacompreensão. (Van Kaam, 1966.)

O aconselhamento existencial não se fundamenta em técnicas. Con-sisíc. realmente, no desenvolvimento de uma atitude de compreensão afe-

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tuosa e de real preocupação com o aconselhando. Segundo May (1958), astécnicas são indesejáveis e, até certo ponto, prejudiciais. A sua'supervalori-zação é considerada uma das causas da tendência de se enfocar o serhumano como objeto que pode ser mensurado e manipulado, bloqueando,assim, a compreensão almejada no aconselhamento existencial. Admite-seque as técnicas podem ser subsequentes à compreensão, mas nunca a prece-dem. Não são predeterminadas, porém flexíveis e versáteis. Variam nãosomente de acordo com o aconselhando, mas de acordo com as várias fasesdo aconselhamento. O aspecto primordial de aconselhamento é que repre-senta sempre um encontro humano autêntico, no qual o compartilhar devivências seja o mais completo possível.

Sucintamente, distinguem-se no aconselhamento existencial três fa-ses distintas. A liberação das maneiras inautênticas de se manifestar écaracterística da fase inicial. A descoberta de maneiras de ser ocultas ereprimidas e a descoberta de novas maneiras de ser autênticas prevalecemna segunda fase do aconselhamento. A integração das novas formas de seremergentes às maneiras autênticas já existentes no passado, representandoum novo estilo de vida, parece caracterizar a fase final.

Como resultado do processo, ocorrem no aconselhando as seguintesmodificações (Van Kaam, 1966):

Abertura à culpa autêntica. O aconselhando necessita encontrar assuas próprias respostas existenciais, explorando e incorporando, como par-te do seu "eu", a culpa autêntica, a responsabilidade e o compromisso quesurgem de suas experiências pessoais. O reconhecimento da culpa autêntica,como inerente à existência humana, é parte do processo de auto-aceitação.

Reconhecimento da existência como um processo contínuo e dinâ-mico. A liberação de uma concepção existencial limitada e unilateral per-mite ao aconselhando reconhecer que a vida é um contínuo "vir a ser" eque o desenvolvimento da personalidade jamais é considerado como termi-nado, pois a vida representa uma abertura constante para novos horizontes.A plenitude existencial, em termos absolutos, não é passível de ser atingi-da, embora a existência deva ser encarada como uma contínua tentativapara a maior aproximação dessa plenitude. O aconselhamento visa habilitaro aconselhando a compreender e a aceitar as suas reais possibilidades sem-pre em emergência e qup representam novos aspectos do que ele possui empotencial.

Liberação da imagem pública. A sociedade, através dos seus meios decomunicação crescentemente mais poderosos, determina o desenvolvimen-to de estereótipos comportamentais desejáveis e socialmente valorizados. Aconformidade com tais expectativas sociais, no sentido de promoção de

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uma imagem pública atraente, impede o indivíduo de ser ele próprio, depermitir que venha à tona sua autenticidade, de ser uma pessoa real, nosentido de expressar as suas verdadeiras características. Como consequência,ocorre um empobrecimento vital e até uma perda do sentido da própriaexistência. A liberação dessa imagem pública é, às vezes, um processo lentoe penoso, mas que representa, sem dúvida, uma faceta importante doprocesso de amadurecimento objetivado no aconselhamento.

Abertura para o conflito autêntico. O objetivo do aconselhamentonão é a solução de todos os conflitos e problemas do aconselhando, masajudá-lo a desvendar as camadas recônditas de sua personalidade, permitin-do-lhe conhecer os seus aspectos contraditórios e tendências antagónicas.O reconhecimento de que é parte da existência humana o conflito entreforças opostas da sua personalidade permite que o aconselhando aprenda aenfrentar tais conflitos autenticamente, restaurando o equilíbrio mas, aomesmo tempo, tomando consciência de que o conflito autêntico é fatorimportante no processo de atualização das potencialidades.

Honestidade existencial. Implica na aceitação de sua própria identida-de e em assumir um compromisso perante a sua própria existência, em conso-nância com esse senso de identidade. Consiste em aceitar os riscos ineren-tes à implementação dessa liberdade de viver de acordo com o seu verda-deiro "eu". A consecução desse compromisso existencial poderá ser inicial-mente penosa e angustiante, pois dela depende se o aconselhando se torna-rá finalmente apto para liberar as suas potencialidades ou se bloqueará oseu crescimento por inibições, distorções e perseveranças. Esse compromis-so existencial provavelmente terá que ser renovado outras vezes pelo acon-selhando fora do processo de aconselhamento, pressionando por situaçõescapazes de torná-lo inseguro e defensivo. Assim, pois, no aconselhamento,o objetivo é tornar o aconselhando consciente da importância do com-promisso para com ele próprio, em face de sua existência, e desenvolvernele a atitude de prontidão para a restauração desse compromisso sempreque necessário, em situações de abalo futuro.

Aceitação do "eu". Consiste também num compromisso que o acon-selhando assume de ser independente na sua vida interior. Significa que oaconselhando necessita aprender a seguir em frente quando seria mais fácil,talvez, retrair-se, pressionado por modéstia defensiva, ansiedade ou falsahumildade egocêntrica. Muitas vezes, significa também que ele necessitaaceitar consciente e livremente realidades passadas dolorosas. Consiste emaprender a se auto-respeitar, com suas limitações e privilégios. Como resul-tado disso, a autocompaixão e as lamentações serão substituídas por cui-dados e preocupações saudáveis com o seu "eu" e com a sua existência.

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ATUAÇÃO DO ACONSELHADOR

O relacionamento é o principal meio que o aconselhador existencialutiliza para proporcionar o verdadeiro encontro humano, que é o núcleodo aconselhamento. Segundo Van Kaam (1966), o aconselhador necessitaabandonar o seu mundo autocentrado e estar verdadeira e integralmentecom o aconselhando, procurando conhecê-lo, experimentá-lo e compreen-dê-lo na sua unicidade. A qualidade da relação oferecida pelo aconselhadorvai determinar o grau de expressão e de revelação do mundo interior doaconselhando, através de uma comunicação mais completa e genuína pos-sível.

Embora a situação de aconselhamento não possa ser confundida comuma situação social, o aconselhador deve ser sentido pelo cliente como umamigo, profundamente interessado e compreensivo, cujo desejo principal éajudá-lo. Às vezes, é difícil para o aconselhador estabelecer tal relação e, aomesmo tempo, manter-se liberto de envolvimentos emocionais com o acon-selhando. Para isso, é necessária muita cautela e sensibilidade, a fim de queesse relacionamento não se confunda com uma maneira de preenchimentodas necessidades pessoais do aconselhador. Torna-se, pois, importante aconstante auto-exploração por parte do aconselhador.

As atitudes do aconselhadbr visam à exploração do mundo pessoaldo aconselhando. Nesses termos, o aconselhadpr encontra-se emocional-mente envolvido, mas apenas à medida que é necessário ajudar o aconse-lhando a tornar-se ativo na exploração do seu próprio mundo. Todavia,esse interesse do aconselhador deve ser dosado e dimensionado, a fim depermitir a aceitação de todas as experiências expressas pelo aconselhando,sem reações favoráveis ou desfavoráveis. O aconselhador deve participar domundo do aconselhando na qualidade de um observador respeitoso e com-preensivo.

A base dessas atitudes do aconselhador, como já foi mencionado, é aaceitação genuína e incondicional do aconselhando, que dá origem aosentimento de que ele é realmente compreendido e de que o aconselhadorcompartilha do seu mundo interior. Esse sentimento possibilita a explora-ção progressiva desse mundo e a comunicação com mais espontaneidadedessa exploração.

A flexibilidade é uma característica do aconselhador existencial. Oaconselhamento não deve ser relegado a uma rígida observação de regrasaprendidas em livros e estruturadas pelo aconselhador, tendo por base asua atuação com outros aconselhandos. Cada aconselhando, com o seumundo de significados, é verdadeiramente único, exigindo, portanto, doaconselhador uma atuação criativa que surge de sua participação nessa

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unicidade existencial. As atitudes não são adotadas compulsivamente peloaconselhador nem ditadas por regras preestabelecidas. Q seu comportamen-to não é idêntico em situações diferentes. A criatividade do aconselhadorenvolve flexibilidade de atitudes e de sentimentos expressos em respostasautênticas à situação real apresentada por cada aconselhando.

O fato de o aconselhador compartilhar dos significados que as pes-soas e as coisas têm para o aconselhando não implica em concordânciapessoal e aprovação. Á "co-experiência" e a aceitação representam apenasuma atitude de não-julgamento. Poderá ser difícil manter essa atitude nodecorrer de certas interações com o aconselhando. Quando tal ocorre, éprovável que a resistência do aconselhador esteja relacionada a aspectosnão-aceitos de sua própria personalidade e indica a necessidade de constan-te auto-reflexão. A percepção da não-aceitação conduzirá o aconselhando àinibição de sua espontaneidade e autenticidade, dificultando, assim, osobjetivos do aconselhamento.

A gentileza e a bondade necessitam estar presentes na atuaçao doaconselhador e revelam-se através do respeito, da sensibilidade e da tole-rârícia pelo modo de ser do aconselhando. É difícil para ele expressar-setotalmente se essa atmosfera de bondade e consideração está ausente.

A adoção de uma atitude de sinceridade franca e honesta representauma outra característica da atuaçao do aconselhador existencial. Ele deveestar consciente de que na sua vida cotidiana é, muitas vezes, compelido alançar mão de "máscaras" ou "fachadas" sociais, a fim de se protegerperante determinadas situações. Não seria possível para o aconselhadorenvolver-se nos problemas de todos os que o cercam e, ao mesmo tempo,sobreviver como ser humano sadio. Porém, na situação de aconselhamento,é necessário que o aconselhador se despoje de sua "máscara social", mesmoque, às vezes, possa parecer-lhe útil, porque isso impediria uma verdadeiracomunicação intersubjetiva.

Embora Rollo May não se defina claramente sobre o assunto, VanKaam (1966) assinala os perigos do uso da interpretação quando esta re-presenta um mero "subjetivismo" — que deve ser diferenciado do subjeti-vo. O termo "subjetivismo" refere-se não à experiência real do aconselhando,mas a explanações baseadas em categorias teóricas aprendidas, tais comocomplexo de Edipo, de castração, arquétipos, transferência, resistência etc.Em lugar de explorar o âmago do significado da sua experiência, taisexplanações, quando aceitas pelo aconselhando como de cunho científico,simplesmente permitirão que ele permaneça na sua alienação do seu ver-dadeiro "eu", usando para esse fim maneiras ou mecanismos mais elabora-dos. Tais interpretações científicas, sobretudo quando prematuras, desviama atenção e a exploração da estrutura interna autêntica e da compreensão

do significado da experiência na situação vital única do aconselhando,muitas vezes distorcendo-as e empobrecendo-as.

No entanto, o aconselhador não deve fechar-se às possibilidades deuma aplicação correta de teorias existentes, desde que as mesmas sejaméapazes de iluminar e de não distorcer a experiência real do ser humano.Teorias devem suplementar e não suplantar a compreensão do aconse-lhador.

AVALIAÇÃO

O aconselhamento existencial, pelas suas próprias raízes e origens,representa mais uma filosofia do que uma teoria de aconselhamento. Aindeterminação de técnicas específicas, bem como a ênfase na criatividadeindividual de cada aconselhador, não oferece condições para verificaçõesempíricas. Não se dispõe de pesquisas que permitam tirar conclusões arespeito dos seus resultados ou da validade de seus pressupostos.

Tem sido ainda alvo de críticas pela indefinição, falta de sistemati-zação e de objetividade dos seus pressupostos. (Patterson, 1966.) O não-en-volvimento com técnicas não justifica a omissão de uma metodologia ou deilustrações que permitam a compreensão e a aprendizagem dos seus proce-dimentos. A inexistência de métodos, ou de procedimentos, poderá tornara abordagem existencial inteiramente intuitiva e vaga. No entanto, é pos-sível deduzir-se, através da obra de Van Kaam, que a adoção do métodofenomenológico aproxima nitidamente o aconselhamento existencial dorogeriano, embora a adoção do centro de referência do aconselhando nãotenha sido explicitada na atuaçao do aconselhador existencial.

Por outro lado, é inegável o reconhecimento das contribuições subs-tanciais do existencialismo ao campo do aconselhamento. SegundoShertzer e Stone (1970), o ponto de vista existencial teve o mérito decolocar as questões filosóficas na primeira linha do aconselhamento, cha-mando a atenção para sua importância como fonte de conflito humano.Carkhuff e Berenson (1967) consideram o aconselhamento existencial aforma mais elevada de relacionamento e que mais se aproxima da realiza-ção do homem como ser livre. Não obstante as suas lacunas, a abordagemexistencial levanta questões básicas e profundas sobre a natureza do serhumano, sobre o problema da liberdade e sobre a busca compulsiva que ohomem empreende para encontrar um sentido para a sua existência. Res-salta o problema da despersonalização do homem moderno e a sua neces-sidade do encontro com o outro, como forma de amenizar construtivamen-te o peso de sua solidão. Nesses aspectos, a posição existencial oferece aoaconselhamento uma dimensão única e até então ausente.

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