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Este material deve ser utilizado apenas como parâmetro de estudo.

Os créditos deste conteúdo são dados aos seus respectivos autores

Módulo - Psicanálise Existencial

DOUTORADO EM

PSICANÁLISE

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DISCIPLINA DE PSICANALISE EXISTENCIAL

1-História da Daseinsanalyse

Como a Daseinsanalyse entrou na psiquiatria

O termo “Daseinsanalyse” foi traduzido por “Analyse Existentielle” em francês e “Existencial Analysis” em inglês. Estas denominações, entretanto, passaram logo a abranger divergentes concepções da existência humana e métodos terapêuticos e com isso perderam quase todo o significado. Tentando recuperá-lo, passou-se a manter o termo alemão Daseinsanalyse mesmo em língua estrangeira.

As designações de "Análise do Dasein" e “Dasein Analyses” apareceram pela primeira vez na obra de Heidegger - Ser e Tempo – em 1927. Esses dois termos tinham como objetivo denominar a explicitação filosófica dos “existenciais”, isto é, das características ontológicas constituintes do existir humano. Heidegger descreveu como “existenciais” a abertura original ao mundo, a temporalidade do homem, sua espacialidade original, sua afinação ou estado de humor, seu estar-com-o-outro, sua corporeidade, palavra criada para traduzir o alemão Leibhaftigkeit, designando a essência específica do corpo do homem vivo (Leib) oposta àquela de um corpo físico (Körper) e seu caráter de ser mortal. A análise desses “existenciais” foi chamada de Daseinsanalytik.

O intuito principal de Heidegger foi esclarecer o sentido do Ser enquanto tal. As explicitações do existir humano que aparecem em Ser e Tempo devem ser consideradas como uma primeira etapa no caminho de seu pensamento. Não foi sua intenção fazer uma antropologia.

Ludwig Binswanger percebeu a importância da concepção heideggeriana da essência do existir humano para a Psiquiatria. A conselho do psiquiatra suíço Jakob Wirsch, Binswanger utilizou o conceito de Daseinsanalyse, que era originalmente de ordem puramente filosófica e ontológica, num sentido completamente diferente, ôntico.

Em 1941 Binswanger considerou que uma “Daseinsanalyse Psiquiátrica” traria um novo método de investigação para compreender e descrever, sob um ângulo fenomenológico, as síndromes e os sintomas concretos, distintos e diretamente perceptíveis da psicopatologia, afastando-se do método científico que até então prevalecia na Psiquiatria e na Psicanálise.

Seguindo o pensamento de Heidegger, Binswanger dedicou-se a um caminho fenomenológico: julgando não haver nada a procurar atrás dos fenômenos, quis esclarecer, de modo mais diferenciado, os significados e as relações que se mostravam imediatamente a partir deles mesmos.

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Já antes de conhecer o pensamento “daseinsanalítico”, Binswanger havia percebido os limites da aplicação do método das ciências naturais na Psiquiatria. Os trabalhos do psiquiatra parisiense Eugene Minkowski, influenciado por Bergson, tinham despertado sua atenção. Binswanger mostrou que o pensamento das ciências naturais era insuficiente para estudar o comportamento humano, pois deixava de lado o caráter específico da existência, provocando danos no domínio da psiquiatria. Apoiou-se, então, na “desconstrução” proposta por Heidegger da idéia cartesiana que divide o mundo em res–cogitans e res-extensa.

Binswanger considerava que a divisão cartesiana do mundo em sujeito e objeto era prejudicial para a Psiquiatria, constituindo mesmo um verdadeiro câncer da ciência. Segundo ele, a concepção de uma res-cogitans existindo primordialmente em si, não consegue explicitar como o espírito humano pode se dar conta da existência do mundo exterior, como esse espírito pode sair dele mesmo e descobrir o que compõe esse mundo e atingi-lo.

Binswanger fez uma descrição daseinsanalítica de numerosos casos de esquizofrenia. Afastou -se, entretanto, do pensamento de Heidegger num ponto capital, isto é, achou necessário acrescentar o conceito de “amor” ao conceito heideggeriano de “zelar”. (N.T.- Do alemão “sorge” que significa: cuidar, zelar, preocupar-se, etc...). Não percebeu que nesse termo “zelar”, empregado por Heidegger num sentido ontológico, já estavam incluídas todas as formas de relações afetivas, portanto também o amor.

Quando reconheceu o próprio engano, deixou de qualificar suas pesquisas como “daseinsanalíticas” e chamou sua nova orientação de pesquisa de “fenomenologia antropológica”. Em seguida voltou a se aproximar mais do pensamento de Husserl, o mestre de Heidegger.

O psiquiatra e psicoterapeuta suíço Medard Boss, descontente também com os fundamentos da Psiquiatria tradicional e estimulado pelos trabalhos de Binswanger, voltou-se para o pensamento de Heidegger, motivado sobretudo por preocupações de ordem terapêutica.

2- William Wilson na perspectiva da Daseinsanalyse de Medard Boss

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Na Daseinsanalyse de Medard Boss [1], desenvolvida a partir da obra e das colaborações de Martin Heidegger, a psicopatologia é definida de acordo com a

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perda ou diminuição das possibilidades de existir do ser humano acarretadas por cada doença. Procedendo desta forma, a Daseinsanalyse acredita evitar a redução do fenômeno patológico a seus aspectos apenas orgânicos, psicológicos, sociológicos, entre outros. O “ser doente” é tomado a partir do “ser sadio”, isto é, a doença não é algo a ser definido, como uma entidade abstrata, e sim uma redução de possibilidades em relação à saúde.

No caso de William Wilson, este acreditava existir um duplo seu, que o perseguia e que com ele rivalizava, sempre vigilante e pronto a apontar suas falhas – um algoz, inimigo ou gênio mau, como ele o descreve. Em algumas passagens, podemos nos dar conta de que Wilson sabe que sua percepção não é compartilhada pelos outros: “essa superioridade, ou antes igualdade, não era verdadeiramente conhecida senão por mim”, “não tinha razão alguma para acreditar que essa semelhança tivesse jamais sido assunto de comentários ou mesmo notada por nossos camaradas”, “a imitação, segundo me parecia, era notada apenas por mim”.

No conto, conforme o duplo vai se distanciando de Wiliam Wilson, vai também perdendo sua voz e sua face. Assim, na infância, quando “todos acreditavam que éramos irmãos”, os dois Wilsons eram iguais, com “o mesmo nome, os mesmos traços”, os mesmos gestos e palavras. Havia até mesmo algum sentimento de estima, respeito e admiração de Wilson em relação a seu homônimo. Este, em contrapartida, lhe dava conselhos e tinha, às vezes, “certos ares de afetuosidade”. Quando Wilson relata que “todos os dias tínhamos uma briga”, nota-se que sua relação com o duplo, embora agressiva na maior parte das vezes, era franca, aberta, pois ambos conheciam os sentimentos que cada um nutria pelo outro. Posteriormente, entretanto, o duplo vai se afastando, até que Wilson pergunta: “quem é ele? De onde vem? Qual o seu objetivo?”.

No final da escola solene e rígida, quando Wilson estava prestes a conseguir sair detrás de seus muros maciços, seus sentimentos pelo duplo tomaram a feição de um “verdadeiro ódio”. A partir daí, Wilson passa a uma vida de “infames desregramentos”, nos quais o duplo sempre aparece para frustrar suas ambições desmedidas e seus vícios ou impedir a concretização de planos prejudiciais a outras pessoas. Nessas situações, o duplo nunca mostra seu rosto e fala em tom quase inaudível. Essas intervenções vão se tornando cada vez mais intoleráveis para Wilson, a tal ponto que acredita ter matado seu duplo, ou seja, acabado com sua identidade.

À luz da psicopatologia daseinsanalítica, podemos analisar o movimento de Wilson como privação da abertura ao mundo e da liberdade, pois ele não conseguia relacionar-se livremente. Wilson sentia-se refém das exigências circundantes, como demonstra seu comentário: “até então, eu me submetera sem reação ao seu imperioso domínio”. O duplo, a partir da saída da escola, e daí crescentemente,

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parecia-lhe onipresente e sempre lhe inspirava temor. Wilson sentia-se fraco, submisso e escravizado frente a esta “ditadura arbitrária”.

Podemos pensar que, após Wilson sair da escola, um ambiente monótono, no qual “havia pouca coisa para relembrar”, e “entrar no mundo”, as exigências das coisas passaram a ser sentidas como um peso insuportável para ele. Para proteger-se, Wilson limitou-se em relação a estas solicitações, talvez delirando sobre um duplo que pudesse contê-las ou barrá-las. Ao mesmo tempo, esse duplo passou a ser sentido como cada vez mais demandante e aterrorizante.

Boss, acerca de um paciente esquizofrênico que atendeu por dez anos, refere que o mesmo sentia-se compelido a responder a quaisquer demandas externas, de forma ilimitada. Assim, por exemplo, se o paciente via uma cadeira, sentia-se compelido a sentar-se, se enxergava um jardineiro, sentia -se tragado emocionalmente por ele e desejava também tornar-se um jardineiro, se pensava em uma mancha que viu na parede, precisava indagar sobre sua origem:

“... as coisas lhe chamavam desde fora, quer estivessem fisicamente presentes ou tivessem vindo à mente. Elas lhe faziam demandas exageradas, excêntricas, às quais não podia resistir” (1)

O paciente de Boss, tal qual Wilson, sentia-se tragado pelo mundo, cujas exigências eram sentidas como imperiosas. Wilson também parece não sentir seu existir como seu, pois refere estar sempre à mercê dos desmandos do duplo. Ele não consegue atuar livremente quando confrontado e sente -se em constante ameaça. Nesse sentido, tal qual preconiza a Daseinsanalyse, o delírio de Wilson não deve ser entendido como uma ilusão ou um erro, mas como a sua verdade.

Através da experiência com outro paciente, o qual apresentava delírios persecutórios, temendo ser envenenado por seu companheiro, Boss compreendeu a situação vivenciada a partir da totalidade do existir do paciente, que corria “o perigo de ser sobrecarregado pelas exigências dos adultos e de sucumbir e quebrar-se como ser humano sob seu peso” (2). Tal parece ser exatamente o caso de William Wilson. Notas:

(1) BOSS, M. (1979). Existencial Foundations of Medicine and Psychology. New York: Jason Aronson, p. 277. In: CARDINALLI, I. E. (2004). Daseinsanalyse e esquizofrenia: um estudo da obra de Medard Boss. São Paulo: EDUC – FAPESP, p. 143.

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(2) BOSS, M. (1977). O modo-de-ser-esquizofrênico à luz de uma fenomenologia daseinsanalítica. Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, São Paulo, n. 3, p. 23. In: CARDINALLI, I. E. (2004). Daseinsanalyse e esquizofrenia: um estudo da obra de Medard Boss. São Paulo: EDUC – FAPESP, p. 153. Referência:

CARDINALLI, I. E. (2004). Daseinsanalyse e esquizofrenia: um estudo da obra de Medard Boss. São Paulo: EDUC – FAPESP.

Lucia Cristina H. Navarro

3-Psicanálise e Psicanálise da Existência

Resumo

Neste artigo procuro trabalhar com as idéias de Psicanálise em Freud e Sartre. Parto da idéia de uma psicanálise "clássica" de Freud e a confronto com a idéia de psicanálise existencial em Sartre. Onde a primazia à liberdade é a tônica da psicanálise existencial; a consciência livre e projetiva produz, na realidade, toda espécie de desejos. A tarefa da psicanálise existencial é interrogar a consciência individual. O referencial teórico utilizado é o Ser e o Nada de Jean-Paul Sartre, que pressupõe a leitura de outras obras do filósofo existencialista, relacionadas nas referências, embora não citadas no texto.

I. Psicanálise

Sigmund Freud elaborou a psicanálise, às vezes chamada de psicanálise clássica, para distingui-Ia de muitas de suas derivações e de outras formas de psicanálise, como um procedimento para o diagnóstico e tratamento de certas neuroses. A psicanálise é, portanto, um método, mas é também uma doutrina relativa à natureza do ser humano. Tanto no método como na doutrina, usam-se certo número de conceitos fundamentais que exporemos sumariamente, sem dar-Ihes uma interpretação determinada e sem ter em conta as diversas doutrinas no próprio Freud.

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Freud estima que não há atos de nenhuma classe, incluindo atos verbais e sonhos, que não tenham uma causa. Geralmente se supõe que os atos em que o homem executa, as idéias que tem, as palavras que diz, são explicáveis em virtude de motivos relativamente bem determinados ou, em todo caso, determináveis. Sabe-se

que muitas vezes não se diz o que se havia querido dizer, ou se faz algo que não se havia querido fazer, ou se tem sonhos inexplicáveis ou estranhos. Sabe-se assim mesmo que em ocasiões se produzem inibições, se experimentam angústias, se tem sentimentos que Freud deu conta e razão de todas estas manifestações humanas à base de um mecanismo constituído por forças e atividades de tal índole que muito do que estava psiquicamente presente devia remeter a algo que estava ausente e que era, em princípio, inescrutável. A primeira noção e principal era apostada ao efeito, foi a do Inconsciente, ao qual pode hipostasiar-se em um tipo de realidade ou servir simplesmente de nome para uma série de entidades mentais chamadas "inconscientes". Estas entidades mentais devem distinguir-se de atos mentais dos quais não somos conscientes, mas podemos ser conscientes à vontade. Com efeito, é característico do inconsciente freudiano ao servir como fundo no qual se ancoram e ao qual se remetem entidades mentais que o indivíduo inconscientemente recusa manifestar. Vou limitar a um caso somente, se bem que fundamental: o indivíduo vive em uma sociedade na qual há pressões de toda classe encaminhadas a moldá-Io segundo certos padrões. Para conformar-se com estes padrões, o indivíduo tem que reprimir seus próprios impulsos, os quais são "desalojados" da área da consciência e "censurados". Quando a censura e a repressão são muito fortes podem irromper estados neuróticos. Normalmente, a censura opera de tal sorte que o próprio indivíduo encontra maneira de desviar sem que se produzam transtornos excessivamente graves, os impulsos. Estes se manifestam nos sonhos, que devem ser interpretados, em função de lentidão e equívocos inumeráveis formas de lapsus linguae e lapsus calami que parecem meros deslizes, mas que são símbolos de desvios, repressões e censuras. O paciente chega a crer que não é um paciente, que o que está ocorrendo com ele é normal, até o momento em que se acentua a gravidade de suas inquietudes. Quando isto sucede é mister encontrar meios para descobrir os desvios, as inibições, repressões etc. E abrir-lhes o caminho para que se manifestem claramente. Em certas ocasiões os impulsos flutuam no Inconsciente, e então voltam outra vez a produzir os estados de desassossego que podem culminar na neurose.

A análise consiste, assim, em fazer que o paciente ponha a descoberto, fatos ou atos que, desde o ponto de vista não psicanalítico, podem parecer perfeitamente normais, mas que, de acordo com a psicanálise, são sintomáticos. No decurso da análise se produzem transferências, entre elas se destaca a transferência ao próprio analista, das atitudes do paciente, com as outras pessoas. Deste modo, o analista se faz carregador das angústias e perplexidade do paciente, ao ponto que precisa ele, o analista, ser analisado. Há certos mecanismos "complexos" que mantêm o indivíduo ou em estado de paralisia mental ou em um estado de transferência de atitudes e emoções. Os complexos têm de ser desalojados, ou dissolvidos, mas é levado a cabo por meios puramente mentais, isto é, fazendo que o próprio paciente chegue não somente a conhecê-los, senão também a resolver a enfrentá-los. O mero conhecimento de que há um complexo não constitui ainda a cura.

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A hipótese de um inconsciente, ou conjunto de entidades mentais inconscientes, Freud agregou a hipótese de uma série de impulsos, comparáveis a, se não identificáveis, com instintos e que constituem a força motor dos atos psíquicos. Não é sempre clara a relação entre impulsos e inconsciente, mas é provável que sem os primeiros o segundo permaneceria inativo. A energia dos impulsos é de várias classes e não somente sexual. É um erro atribuir a Freud a idéia de que a sexualidade é o motor único dos processos mentais. No entanto, Freud pôs em relevo a grande importância dos impulsos sexuais, isto é, da chamada "libido", que se manifesta muito prematura no ser humano.

Freud tratou de sistematizar os mecanismos de explicação do comportamento psíquico mediante várias hipóteses suplementares. A mais destacada é a que postula três grandes fatores ou sistemas constituintes da personalidade: O Id, o Ego e o Superego. O Id é o nome que recebe a origem dos impulsos, os quais aspiram a ser satisfeitos. O Ego é a parte da pessoa que trata com o mundo e que representa uma espécie de ponte entre o mundo e o Id. No Ego se encontra o Superego, este trata de sobrepor-se ao Ego, e com ele, aos esforços do Ego para relacionar o Id com o mundo. O Superego aspira a exercer um controle sobre o eu, sobre o Ego, ao modo como as normas estatísticas e normativas (morais) aspiram a controlar o comportamento. De fato, o Superego é como o conjunto de normas que se adquiriu desde a infância e que aparecem às vezes como desejáveis e indesejáveis; desejáveis por sua racionalidade; indesejáveis por opor-se à satisfação dos impulsos do Id.

A repressão de impulsos pode ser, e é em pequena proporção, a causa da neurose. Por outro lado, os impulsos e especialmente a libido, podem ser canalizados e sublimados, dando lugar a grandes criações culturais. Mas, posto que os impulsos não se reduzem à libido, há que se ter em conta outros fatores ou sistemas de impulsos para dar conta tanto das atividades psíquicas individuais como, e sobretudo, do processo da civilização humana. O princípio do prazer fica compreendido em um princípio mais vasto e potente: o princípio da vida ou Eros. E este se contrasta com um impulso de morte ou impulsos de destruição. Boa parte da cultura humana se desenvolve ao fio do conflito entre estes dois impulsos.

Há muitas interpretações possíveis dos conceitos básicos propostos por Freud. Em uma passagem das lições para a Introdução à Psicanálise, 1916-1918, Freud diz que há que se descartar todo suposto alheio às questões tratadas, de qualquer índole que seja, anatômico, químico ou fisiológico, e há que se usar conceitos de caráter puramente psicológico. Isto faz com que se pense que a psicanálise de Freud se funda em uma psicologia ou metapsicologia puramente mentalista.

Em 1895, Freud redigiu um texto intitulado "Projeto de psicologia científica", donde se propunha investigar as bases fisiológicas do comportamento psíquico, particularmente como estudo das interações de neurônios. A não publicação deste texto tem sugerido que Freud achava prematuro o estado dos conhecimentos de fisiologia do sistema nervoso na época. Se é verdade, o mentalismo não reducionista de Freud é conseqüência de uma série de hipóteses provisórias e não é, em princípio, incompatível com uma concepção fisiologista ou materialista. Os que

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estão a favor desta interpretação mostram que há continuidade entre o projeto científico de referência e o desenvolvimento da psicanálise freudiana. Alguns indicam que a teoria freudiana da psique, ainda que representada em termos puramente psicológicos, funda-se em modelos conceituais equiparáveis a modelos físicos, químicos ou neurofisiológicos. II. Psicanálise da Existência

Temos três sentidos para análise existencial:

A. Uma, melhor dita, analítica existencial psiquiátrica, desenvolvida por Ludwig Binswanger; Viktor Von Gebsattel, Erwin W. Strauss, Eugène Minkowski e Rollo May. Binswanger a definiu como uma forma antropológica de investigação científica, isto é, uma forma encaminhada a apreender a essência do ser humano. Seu nome e fundamentação filosófica derivam da análise existencial (Daseinsanalyse) de Heidegger e Medard Boss, embora quem tenha usado pela primeira vez a expressão análise existencial tenha sido Viktor Frankl. Heidegger teve o mérito de haver descoberto uma das estruturas fundamentais da existência e descrevê-Ia, em suas partes essenciais, isto é, a estrutura do "estar-no-mundo".

As idéias de Binswanger representam uma parte importante da analítica existencial psiquiátrica, mas nem todos os psicanalistas existenciais estão de acordo com ela. Mas todos os psicanalistas acima citados insistem em que cultivam uma ciência empírica e que tem fins terapêuticos.

Os psicanalistas existenciais argúem contra os psicanalistas ortodoxos, ou clássicos, que ainda que estes últimos pretendam não apoiar-se em fundamentos filosóficos, o certo é que quase todas as suas teses e práticas se fundem em uma concepção naturalista do ser humano e usando esquemas procedentes das ciências naturais, por exemplo, o esquema da explicação causal.

B. Em outro sentido se chama de psicanálise existencial, alguns, como eu, preferem psicanálise da existência, a proposta por Jean-Paul Sartre, em O Ser e o Nada, parte IV, Cap. II, seção 1. Nem uma fenomenologia ontológica nem uma pura descrição empírica bastam para decifrar, isto é, saber interrogar as condutas, tendências e inclinações humanas. É necessário um método, que é a análise existencial. Sartre descreve seu princípio, finalidade, ponto de partida e método da seguinte maneira: o princípio que o homem é uma totalidade e não uma coleção; em conseqüência se expressa inteiro na mais insignificante e mais superficial de suas condutas. A finalidade é decifrar os comportamentos empíricos do homem. O ponto de partida é a experiência; seu ponto de apoio é a compreensão pré-ontológica e fundamental que o homem tem da pessoa humana. Seu método é comparativo, posto que, com efeito, cada conduta humana simboliza a seu modo a escolha fundamental que porá em manifesto, e posto que ao mesmo tempo cada conduta oculta tal escolha sob seus caracteres ocasionais e sua oportunidade histórica,

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comparando estas condutas faremos surgir a revelação única que expressam de modo diferente.

Note-se que em vários aspectos a psicanálise existencial sartreana é parecida com a clássica; em todo caso, ambas coincidem no principio adotado. Sartre reconhece que o esboço primeiro do método da psicanálise existencial foi proporcionado pela psicanálise de Freud e seus discípulos (Carl Gustav Jung e Alfred Adler), mas esta é razão demais para estabelecer em que diferem ambos os tipos de psicanálise. Uma discrepância fundamental é esta: a psicanálise clássica tem decidido acerca de seu elemento irredutível em vez de deixá-Io que se manifeste por si mesmo em uma intuição evidente. A Libido ou a Vontade de poder constituem, com efeito, um resíduo psicobiológico que não é por si mesmo claro, e que não nos parece que deva ser o fim irredutível da investigação. Esta discrepância se deve ao que se poderia chamar, paradoxalmente, a natureza da escolha fundamental, que desempenha um papel decisivo na idéia sartreana da realidade humana e que descarta todas as causações mecânicas e, em rigor, todas as causações. A psicanálise existencial interroga com a finalidade de extrair à luz esta escolha, a diferença de qualquer estado. Uma importante diferença entre a psicanálise freudiana e a sartreana é que este último rechaça a hipótese do inconsciente. O fato psíquico, afirma Sartre, é co-extensivo à consciência.

"A psicanálise empírica trata de determinar o complexo... A psicanálise existencial procura determinar o projeto original" (EN 690). O projeto é o conceito chave de Sartre para o exame do comportamento humano e é estabelecido a partir da liberdade radical do conceito de para-si (consciência). Ora, se somos indeterminação pura, não possuímos nenhum caráter no sentido estrito da psicanálise clássica, freudiana ou não, pois toda ela é determinista. Sartre afirma que não há caráter, há projeto de si mesmo. Educação, hereditariedade, constituição física, são para Sartre ídolos explicativos de nossa época, para ofuscar nossa liberdade, nos eximimos da responsabilidade e usamos como armas a má fé.

Somos condenados a ser livres, somos livres para escolher a nós mesmos.

Sartre estuda como se desdobra e se efetiva no mundo nossa liberdade segundo a estrutura da ação humana. O para-si cria um conteúdo através de atos: ele é obrigado a escolher e agir, face às possibilidades que se abrem diante dele. A ação é fundada no vazio do para-si e na sua capacidade de negação.

Mas, para agir o homem deve estabelecer projetos: decidir entre as coisas a serem feitas, e quais ele irá efetivamente fazer. A decisão é feita pela valoração da consciência. A consciência confere valor às coisas, tomando-as preferíveis umas às outras. Por isso, Sartre afirma que a consciência reflexiva se identifica com a consciência moral. A consciência moral é necessariamente implicada na consciência reflexiva. Ao refletir sobre o mundo eu imediatamente o julgo e o avalio. O valor é a criação específica do ser para-si: funda-se na liberdade.

Ao criar e conferir valores, escolho livremente meus atos e o que a psicanálise clássica chamaria de "caráter". Essa escolha fundamental de mim próprio é o que

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Sartre designa de "projeto original", não é um "caráter", pois pode ser mudado a qualquer momento, mas orienta a minha maneira de apreender o mundo, subordina meus outros projetos e determina minhas ações, emoções, sentimentos etc.

À psicanálise freudiana reconhece Sartre, muitos méritos tanto práticos como teóricos: o de ter considerado o homem não como um conjunto de fenômenos sem relação, mas como uma totalidade orgânica; o de ter compreendido que cada palavra e cada gesto humano só encontram o seu significado se referido a esta totalidade; e que ambas, as palavras e os gestos, são símbolos de situações outras, as quais devem ser levadas em conta para compreender tais palavras e gestos; que existe no homem uma vida profunda e pré-reflexiva onde atuam desejos e impulsos de grande importância para todo o ser e agir humanos, e que o problema de fundo é a determinação desses desejos e impulsos, embora o sujeito não possa cumprir esta tarefa por si só, apenas com o seu próprio intelecto. Mas, para Sartre, a psicanálise freudiana veio comprometer a validade das suas próprias teses, ao ditar diversos princípios falsos. Sendo que, alguns destes princípios são análogos aos da velha psicologia que, todavia, a psicanálise pretendia rebater. Freud manteve uma concepção materialista e biologista, basta que pensemos como é apresentada a libido - das forças e dos fenômenos psíquicos. Desprezou a natureza própria da consciência, introduzindo a noção de inconsciente e negando a capacidade de livre escolha inerente ao homem. Assim esboçou uma teoria determinista e generalizante, resultado de considerar as forças e as estruturas como atuantes de um modo universal e necessário em todos os indivíduos. Destituído da sua capacidade intrínseca de livre escolha, o homem freudiano surge condicionado de um modo absoluto por toda uma série de determinismos, situações que o restringem a certa natureza e a certo passado.

A psicanálise existencial esboçada por Sartre pretende, antes de mais nada, dar um novo fundamento à especificidade dos fenômenos psíquicos e recuperar a consciência como livre escolha e livre projeção. Rejeita a pretensão de considerar as pulsões e os complexos como outros tantos em-si (mundo) existentes em números finitos dentre os quais se poderiam indicar de um modo universal e necessário os mais importantes (a sexualidade, o poder, a morte etc.) Para-si ontologicamente livre e projetivo, a consciência pode produzir, na realidade, toda a espécie de desejos. Toda a consciência constitui de um modo autônomo e indecomponível, a sua teia de desejos e projetos próprios, de faltas e de escolhas próprias. A tarefa da psicanálise não pode ser, portanto, o estabelecimento de uma tabela apriorística e abstrata dos desejos, complexos etc., em geral. Em vez disso, ela deve interrogar a consciência na sua existencialidade individual, procurando compreender o modo como o "projeto fundamental" do homem, fazer-se síntese finalmente de em-si-para-si, fazer-se Deus, se concretiza em cada caso singular em múltiplos desejos e projetos particulares e numa determinada relação consigo, com o Outro, com o mundo circundante.

Com a definição da consciência, como liberdade, Sartre é levado a não considerar o peso dos condicionamentos psíquicos. Mas é preciso dizer que algumas críticas ao biologismo e ao determinismo são muito importantes e que sua insistência nas questões da consciência - como falta e desejo e da escolha como expressão pré-

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reflexiva, de todo o sujeito enquanto ser-no-mundo, suscita um aprofundamento dos aspectos subjetivos e existenciais presentes no agir humano.

A liberdade é apresentada como uma "totalidade não analisável" (EN,548), não podendo ser objetivada ou definida de modo algum. Dela apenas se pode ter uma experiência pessoal e interior. Mas, a liberdade configura-se como um absoluto: sem essências sem norma, sem necessidade lógica. Não estando condicionada a qualquer fixação efetiva na situação histórico-social do sujeito humano a liberdade não pode ser examinada na sua proveniência, conteúdos, modos específicos e determinados; definida como superação e transcendência, configura-se como não-ser, como negação genérica de uma realidade classificada como facticidade opaca e em estado bruto. Identificada com o próprio ser do homem, deveria na teoria definir o horizonte ontológico do agir humano sob a forma de possibilidade e problematização. Ao invés disso, e devido ao seu caráter absoluto, esta identificação transforma o âmbito do possível e do problemático - que deveria diferenciar o homem das coisas no seu contrário - o homem, como já dissemos, está condenado à liberdade, ou seja, vive a liberdade como necessidade e como destino.

O homem, neste ponto, vive no absurdo e na angústia. O absurdo está, para Sartre, no fato de que o ato humano, qualquer que seja este ato, sendo levado a cabo por um sujeito livre, independente de todos os princípios e valores dados. Assim como criticamente transcendente ao negar a realidade sobre a qual age, não é fundado em qualquer objetividade exterior, sendo determinado apenas por uma norma interior, para além de todas as razões. É, por isso, incompreensível, absurdo, à luz dos simples dados e dos princípios gerais e objetivos. A angústia, em seguida, está no fato de que o sujeito enquanto sujeito livre se descobre como um mero nada, como transcendência que se distancia em relação às coisas, como inevitável projeção em direção a esse nada que é o futuro, assim negando o ser do presente. E acaba descobrindo, também, o inquietante vazio da sua própria disponibilidade em relação à infindável gama de possibilidades de ação em um mundo que, por sua vez, lhe surge como enigmático e silencioso, não a ponto de impedir a ação, mas também não fornecendo um sentido e indicações de modo a clarificar a própria ação. Concebida como não-ser, como transcendência por definição estranha ao ser e estranhando o ser, a liberdade sartreana parece condenar o homem a uma solidão absoluta, porque não há a priori a possibilidade de deixar uma marca válida na realidade. O conceito primordial da psicanálise existencial é o da liberdade. III. A Liberdade

O que leva Sartre a rejeitar a concepção comum de liberdade é sua crença de que o poder de realizar fins particulares não é em si um grande valor, sob esta sentença repousam outras três.

_ Em primeiro lugar, o homem é um ser que só existe projetando-se a si próprio além do presente, em direção ao futuro. Existir é fixar alvos e persegui-Ios. Se tenho um desejo empírico e ele é satisfeito significa que substituiremos e devemos

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substituí-Io por outro desejo. Um estado de completa satisfação dos desejos seria equivalente à morte. A tragédia da condição humana está em que o homem é um ser que deseja e o desejo é um estado de carência ou falta. O existencialista afirma que o homem comum definiu a liberdade com base na noção errada de que há um estado de desejo satisfeito ou ausência de frustração, que pode ser alcançado através da satisfação dos desejos empíricos. O homem tem de desejar para existir, e no ato do desejo, ele se constitui como incompleto e não realizado. Tal imperfeição e insatisfação são necessárias para que o homem seja livre, mesmo no sentido de ser capaz de superar obstáculos. A liberdade, diz Sartre, "cria ela mesma os obstáculos em virtude dos quais sofremos" (EN, 576). Portanto não adianta dizer que eu sou livre para ir ao Japão pelo fato de não ter dinheiro. Pelo contrário, é em relação a meu projeto de ir ao Japão que eu me vou situar não tendo dinheiro.

_ Em segundo lugar, mesmo que o homem conseguisse satisfazer todos os seus desejos particulares, empíricos, ele não alcançaria a felicidade; pois o desejo de objetos particulares, empíricos do mundo, está sempre pendente e é simplesmente uma particularização do desejo mais geral, do impossível. O projeto fundamental do homem, de ser Deus, não pode ser satisfeito através do desejo empírico, como o complexo de Édipo não pode ser resolvido, ao sonhar que um soldado mata o general. O que Sartre quer dizer, é que um desejo satisfeito, no sentido de desejo realizado, não traz satisfação no sentido de prazer ou felicidade.

_ Em terceiro lugar, mesmo que o homem pudesse furtar-se ao assalto de desejos e pudesse sentir prazer ou felicidade em um estado de satisfação total dos desejos, isto se daria à custa da intensidade e dos valores existencialistas. É claro que a vida intensa com valores existencialistas seria superior a um estado de contentamento ou felicidade.

"O homem, diz Sartre, não pode ser ora livre, ora escravo; ele é totalmente e sempre livre, ou não o é" (EN,516). Ele nega que situações objetivas, ou motivos subjetivos nos conduzam realmente à ação. A situação objetiva nos leva a agir somente na medida em que a apreendemos e nossa própria apreensão de uma situação objetiva é determinada por uma livre escolha de fins. As paixões ou motivos subjetivos só podem ser considerados em um sentido derivado, uma vez que as paixões só têm o peso que lhe damos. Não somos joguetes de nossas paixões; somos nós que as escolhemos. É claro que as paixões ou motivos subjetivos existem realmente. Mas não devemos considerá -Ias como "pequenas entidades psíquicas habitando a consciência" (EN,643) e exercendo uma influência causal original, e não como manifestações de uma opção anterior.

O motivo real do comportamento humano é um projeto original de nos escolher livremente no momento em que nos destacamos do em-si (mundo) para criar nosso mundo. A causa genuína do comportamento humano é o projeto fundamental de ser do indivíduo. E esse projeto é "uma opção e não um estado; não está enterrado nas trevas do inconsciente" (EN, 661). É antes de tudo uma determinação livre e consciente de si mesmo. A liberdade para Sartre consiste em que "o projeto de ser do indivíduo, fundamental e livremente escolhido, exprime a totalidade de seu impulso em direção ao ser, sua relação original para consigo, com o mundo e com

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os outros". "O homem, diz Sartre, é uma totalidade e não uma coleção" (EN,656). Pois dado o conhecimento do projeto fundamental de ser de um indivíduo, é possível compreender a mais insignificante e mais superficial de suas atitudes.

A Liberdade é o fazer-se do homem. O para -si, com efeito, é consciência, mas também e mais profundamente liberdade, pois está constituído pelo nada que leva em si e que o opõe radicalmente ao em-si. Já que não pode ser simplesmente, fica a obrigação de fazer-se. Mas a liberdade não é outra coisa: é esse mesmo nada que caracteriza o homem, ou a realidade humana, que segrega seu próprio nada, como possibilidade permanente daquela ruptura ou aniquilação do mundo que é a estrutura mesma da existência. A liberdade é condição primeira da ação.

A Liberdade não é definível, porque não tem essência; pelo contrário, a liberdade é o fundamento de todas as essências. É precisamente o nada que tem existido no coração do homem e que obriga a realidade humana a fazer-se, em lugar de ser. Consiste, portanto, na mesma existência humana: nela, a existência precede a essência, isto é, não há uma natureza humana; somente há uma maneira de dizer que o homem se faz escolhendo-se. A liberdade do para-si aparece como seu ser. Mas como essa liberdade não é algo dado, nem uma propriedade, somente pode ser escolhendo-se.

Sartre, como estamos vendo, aceita a análise comum do ato voluntário, que se determina para seus fins através de certas causas subjetivas e motivos objetivos. Mas a realidade humana não pode receber seus fins nem do exterior nem de uma pretendida natureza interior. Ela mesma os escolhe e por essa escolha confere-lhes uma existência transcendente como limite externo de seus projetos. A liberdade originária é pura espontaneidade e o fundamento dos fins que trata de alcançar, seja pela vontade ou pelos impulsos passionais; toda a estrutura da escolha deliberada se organiza com o conjunto de causas, motivos e fins pela espontaneidade livre e esta sustentada por uma liberdade originária e ontológica, que coincide com a aparição da mesma existência. "Estou condenado a ser livre", isto significa que não se poderá encontrar a minha liberdade em outros limites que os dela mesma, ou, que não sou livre para deixar de ser livre.

O ato fundamental da liberdade e o que dá seu sentido às ações particulares, um ato constantemente renovado, que não se distingue de meu ser, é escolha de mim mesmo, no mundo e, ao mesmo tempo, descobrindo o mundo. E uma escolha original que se confunde com a consciência que temos de nós, porque escolha e consciência são uma só e a mesma coisa. E é a vez do projeto fundamental de minha existência, pois a liberdade não se refere tanto aos atos e volições particulares quanto a esse projeto fundamental, no qual estão compreendidos e que constitui a possibilidade última da realidade humana. O projeto fundamental deixa sem dúvida certa margem de contingência às volições e aos atos particulares; mas a liberdade originária é a que é inerente à escolha deste projeto inicial e às diversas maneiras de constituir nossas vidas pela vontade, encontram sentido no projeto inicial e não poderão alcançar mais que estruturas de detalhe que não modificam jamais o projeto original. Nossos projetos particulares referentes à realização no mundo de um fim particular se integram no projeto global que somos.

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Mas a liberdade é pura facticidade e contingência. Que o para-si seja livre não significa que seja seu próprio fundamento. Se ser livre significará ser seu próprio fundamento seria preciso que a liberdade decidisse acerca de seu próprio ser. Não poderia determinar-se a existência partindo do nada, já que então seria Deus. O homem em sua liberdade está aflito de uma contingência irremediável. Estamos condenados à liberdade, abandonados e jogados nela. Por isso nossa liberdade está em situação e não podemos modificar nossa situação ao nosso arbítrio. Denominaremos situação à contingência da liberdade no pleno ser do mundo e enquanto é dado, que não está ali para obrigar a liberdade. O para-si se descobre como marcado no ser, cercado pelo ser, ameaçado pelo ser; descobre o estado de coisas que o rodeia como motivo para uma reação de defesa ou ataque. O paradoxo da liberdade é que não há liberdade senão em situação e não há situação senão pela liberdade.

Há diversos tipos de situação: espacial, geográfica, passado, meu próximo. Em todas elas, a liberdade encontra resistências e obstáculos que não foi criado. No entanto, não destroem, nem amenizam a liberdade da escolha, que não há de confundir-se com a liberdade de obter, pois a liberdade pode assumir na previsão e organização seus projetos, as realidades provenientes de um coeficiente de adversidade e de utilidade. O projeto de liberdade é um projeto aberto. E a liberdade recupera e faz com que entrem na situação os limites irrealizáveis, escolhendo ser liberdade limitada pela liberdade do outro, ou assumindo a alienação permanente de seu ser-objeto. Sou absolutamente livre e responsável por minha situação. Mas não sou jamais livre senão dentro de uma situação. Assim, a liberdade é total e infinita, o que não quer dizer que não tenha limites, senão que não os encontra jamais. A liberdade tropeça nos únicos limites que se impõe a si mesma: a morte e o nascimento.

A morte, como situação-limite, Sartre tenta humanizar sua realidade. A morte é simplesmente um fato puro ou facticidade derivada de minha contingência e ser nada; e como o nascimento, é afetado do mesmo absurdo. É absurdo que tenhamos nascido, como é absurdo que devamos morrer, esse absurdo se apresenta como alienação permanente de meu ser-possibilidade que não é já minha possibilidade. É uma espera enganosa, que isenta toda a significação da vida. Eu sou espera de esperas de espera que a morte suprime totalmente; a morte transforma minha vida em destino. Mas, não traça limites à minha liberdade. Trata -se, pois, de um limite permanente a meus projetos, e como tal, deve ser assumido este limite. Não há, no fundo, diferença entre a escolha pela qual a liberdade assume sua morte como limite inacessível de sua subjetividade e aquela pela qual escolheu ser liberdade limitada. A conseqüência é que a morte marca o signo mais claro da negatividade do para-si, que se deve resistir com fria atitude estóica.

O erro do determinismo psicológico foi o de procurar uma causa preexistente, unívoca e objetiva para todos os atos humanos, ao mesmo tempo, que descura a existência da consciência crítico-intencional do homem e a sua inerente capacidade de agir de um modo livre e próprio em relação à facticidade do existente. A esta atitude errada, contrapõe Sartre uma psicologia que se recusa a reduzir a consciência a um inerte em-si, em vez disso, concebendo-a como um para-si

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ontologicamente "em falta" e "desejante" e, portanto, ontologicamente tendente a superar a sua própria situação. A liberdade é precisamente esta permanente "superação", e "projeção", absolutamente espontânea e não derivada do sujeito. O livre agir não resulta propriamente de alguma causa que o motive, sendo antes ele mesmo ao escolher as suas próprias causas à luz dos seus próprios fins e projetos. A psicologia não deve, pois, pretender "entender" de um modo intelectual e determinista os motivos singulares que estão por trás dos atos humanos singulares. Deve, em vez disso, procurar "compreender" a teia de escolhas e de projetos autônomos e originais que constitui o ser do homem enquanto sujeito livre. A esta psicologia anti-factualista e anti-determinista deu Sartre o nome de "psicanálise existencial" (repito, eu prefiro "psicanálise da existência", mas uma andorinha... ). Referências bibliográficas

1. FREUD S - Conferências de Introdução à Psicanálise (Vorlesungen zur einfuhrung

in die psychoanaIyse). GW XI, SE XV-XVI; BNII.

2. ____ - Cinco lições sobre a Psicanálise. Paris: Payot, n. 84, 1979.

3. ____ - Ensaios de Psicanálise. Paris: Payot, 1979.

4. SARTRE JP - L'Être et le Néant. Paris: GaIlimard, 1943.

4-Psicanálise Existencial de Medard Boss

Medard Boss/Gion Condrau

O termo “psicanálise existencial” é aplicado, em psiquiatria e psicoterapia, a todas aquelas divergências com a psicanálise clássica de Sigmund Freud, que substituem a “teoria da libido” e o “aparelho psíquico” pela imediatamente compreensível existência humana. A psicanálise existencial baseia seu conhecimento da natureza da existência do homem nos ensinamentos da filosofia existencial, especialmente na obra do filósofo alemão Martin Heidegger, Sem und Zeit (que apareceu em inglês com o título “Being and Time”, Nova Iorque, 1962) e seus trabalhos subseqüentes.

O termo-chave nas obras de Heidegger e de seus seguidores é Dasein, traduzido popularmente como “existência”. A fim de evitar confusão com as outras escolas ditas psicanalíticas-existenciais, Medard Boss denominou sua abordagem de “daseinsanalítica”. Por este motivo, então, a expressão “psicanálise existencial” é doravante substituída por “Daseinsanálise” — sabendo que assim fazendo, estamos empregando uma palavra estrangeira que é impossível de ser adequadamente traduzida de forma a ser entendida pelo público em geral.

O presente capítulo é uma apresentação, em parte ao pé dá letra, e em

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parte sob a forma de resumo, das noções daseinsanalíticas que já se tornaram conhecidas em inúmeras publicações do autor. Faz-se uma referência particular às duas obras Psychoancdysis and Daseinsanalysis de Medard Boss (Nova Iorque. “Basic Books”, 1963) e Daseinsanalytische P.sychotherapie de Gion Condrau (Berne and Stuttgart, Hans Huber, 1963).

1. Base Teórica do Método

A experiência daseinsanalítica não só impõe modificações teóricas em nossa

compreensão da doença, mas é também de grande importância para a prática

psicoterapêutica. Inicialmente, tinha-se a impressão que a Daseinsanálise diferia

da psicanálise somente, ou principalmente, em seu conceito teórico; contudo

tornou-se então evidente que a teoria e a prática jamais estão inteiramente

separadas. Portanto, o tipo de compreensão teórica da natureza humana na qual

se baseia a psicoterapia é uma questão de grande importância.

O psicoterapeuta que emprega os discernimentos da Daseinsanálise faz

descobertas fundamentais que são importantes para sua conduta terapêutica. Antes de

mais nada, ele descobre que a análise de Dasein não lhe ensina, e não pode ensinar-

lhe, quaisquer conceitos ou expressões novas especiais que poderiam servir para

formular suas reflexões ou exames sistemáticos da psicopatologia; nem lhe ensina

quaisquer termos a serem empregados ao lidar com pacientes. Este conhecimento

restringe o psicólogo e o psicoterapeuta à descrição e exame sistemático de todas as

formas imediatamente observáveis do comportamento humano e às suas disposições

subjacentes igualmente perceptíveis, e faz com que ele se limite a falar dos mesmos

em linguagem comum. A descoberta de que o homem é essencialmente um ser, em

cujas relações reveladoras de significado aparecem os fenômenos de nosso mundo,

desenvolve no terapeuta Daseinsanalítico um respeito básico pelo valor intrínseco e

conteúdo essencial de tudo que se toma proeminente e vem a aparecer sob a luz

Daseiniana.

Como ele compreendeu que o significado e o contexto de todas as coisas que

chegam até si mostra-se diretamente a si próprio, ele não tem necessidade de

destruir o que presentemente vê e ouve do analisando e substituir isso por forças

hipotéticas, supostamente subjacentes ao comportamento e percepção do

paciente. A Daseinsanálise capacita então o praticante a dispensar as acrobacias

intelectuais tediosas exigidas pela teoria psicanalítica. Ele está livre para se

descartar da teoria psicanalítica da libido assim como das interpretações

psicanalíticas elaboradas sobre os símbolos, teorias que constituem obstáculos

para uma compreensão imediata entre médico e paciente.

Há pelo menos uma grande vantagem em se livrar do lastro teórico e especulativo da teoria freudiana. O psicoterapeuta se torna menos preconceituoso. Ele pode se devotar inteiramente ao analisando com aquela “atenção uniforme flutuante” que Freud sempre exigiu. Ele não aborda o paciente do ponto de vista de uma teoria científica; nem sua atenção é

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distraída pela observação de supostas forças anônimas dentro do paciente. Ao contrário, o comportamento do analista se apóia na compreensão de que, sendo humano, ele é chamado a revelar coisas e homens ao mesmo tempo. Este discernimento aumenta sua sensibilidade a todos os obstáculos que geralmente reduzem a relação potencial de um paciente a algumas formas um tanto rígidas e inautênticas de comportamento. A compreensão Daseisanalítica do homem imbui o analista de um profundo respeito por tudo que ele encontre. Na situação psicanalítica, tal respeito significa que o Daseinsanalista pode seguir a regra básica da psicanálise com mais consistência ainda que o psicanalista, que é estorvado pelos seus preconceitos teóricos. O respeito do analista por tudo o que ele encontra lhe possibilita levar a sério e encarar sem preconceitos todo comportamento e todas as expressões verbais que o paciente apresenta. Ele não precisa pôr no caminho do paciente obstáculos novos, surgidos de sua censura pessoal baseada em preconceitos teóricos.

A consciência do Daseinsanalista está desembaraçada quando ele firmemente se abstém de declarar que um tipo de comportamento (por exemplo, as reações instintivas) é mais real ou fundamental que outro. Tal imparcialidade é de grande importância prática. Ela elimina o perigo do que se chama transferência inquebrável.

Esta dificuldade terapêutica surge, às vezes, quando o analista tenta transportar (por meio da interpretação) um novo tipo de comportamento do paciente, a uma relação anterior na vida do paciente, uma relação considerada primária e causal porque aconteceu anteriormente. Se esta possibilidade embrionária de relação não tem permissão para desabrochar à sua própria maneira, ela permanece fixada no nível embrionário da relação transferencial. Ë improvável que isto aconteça se os sentimentos do paciente são encarados como sendo realmente dirigidos ao analista, e assim aceitos em sua total realidade, mesmo que a percepção que o paciente tenha do analista esteja ainda distorcida e limitada devido a experiências anteriores. A atitude do Daseinsanalista em relação aos sentimentos do paciente na situação transferencial é característica de sua atitude em relação a todos os acontecimentos durante o tratamento analítico. O que pertence ao domínio humano, por exemplo, está autorizado a ser exatamente isso.

O domínio do divino é igualmente reconhecido como possuindo sua própria autenticidade; não é considerado um produto da sublimação das lutas infantis, libidinosas, e desta forma rebaixado à irrealidade.

Os Daseinsanalistas aceitam todos os fenômenos nas suas condições próprias. Por esta razão o terapeuta evita um segundo perigo, o de “curar” os sintomas iniciais do paciente, provocando então uma nova neurose melhor chamada de “psicanalitite”. Esta síndrome (de forma alguma rara) provoca em seus sofredores o hábito de pensar e falar com termos e símbolos psicanalíticos. As panelinhas e seitas são formadas de pessoas semelhantemente angustiada. Conquanto muito de tais adeptos possam perder os antigos sintomas, é fácil detectar a natureza neurótica de sua

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nova conduta. Em vez de ficarem próximos aos aspectos imediatamente observáveis do mundo, eles os desprezam e especulam sobre o que está por “trás” dos mesmos sem se darem conta que suas observações não confirmam suas deduções. Em vez de se apoiarem na franqueza em relação às pessoas e cosas que encontram, eles “interpretam” estes mesmos fenômenos, humanos e materiais. Geralmente tais pessoas se agarram rigidamente às suas convicções teóricas e se esforçam muito para evitar pessoas com idéias diferentes. Estes sintomas denunciam sua incapacidade em transpor os conceitos e interpretações da teoria psicanalítica; eles não conseguiram chegar a uma relação com o mundo, imediata e aberta. O temor que têm em serem contaminados por outras idéias denuncia seu modo de vida neuroticamente limitado, onde a liberdade genuína e a sinceridade são sempre experimentadas como uma ameaça.

2. Transferência

Freqüentemente temos mencionado até que ponto a terapia psicanalítica depende dos conhecimentos fundamentais da natureza humana. Embora não expressos na teoria psicanalítica, estes conhecimentos na verdade sustentam os métodos psicanalíticos. Eles foram explicitamente desenvolvidos desde o tempo de Freud na obra de Heidegger. Portanto, não é surpresa que a maior parte das sugestões concretas de Freud referentes à técnica psicanalítica continuem insuperáveis aos olhos do Daseinsanalista. Na realidade, a Daseinsanálise dá aos psicoterapeutas uma compreensão melhor do significado das recomendações de Freud para o tratamento psicanalítico do que o faz a própria teoria de Freud. Não é incomum, de forma alguma, encontrar Daseinsanalistas que aderem com mais rigidez à maioria das sugestões práticas de Freud do que aqueles psicanalistas cuja orientação teórica permanece ortodoxa. Estes são apenas alguns (embora importantes) dos domínios de terapia onde as teorias secundárias de Freud influenciaram negativamente os métodos terapêuticos. Ë nestas áreas que o Daseinsanalista aborda os problemas terapêuticos de forma diferente do analista ortodoxo. Talvez o setor mais importante em que o pensamento Daseinsanalítico difere do pensamento psicanalítico seja na concepção da transferência.

Freud acreditava que, na transferência, as emoções de amor ou ódio do paciente, enterradas e esquecidas, se tornavam presentes e manifestas. De acordo com ele, os pacientes querem exprimir na ação — reproduzir na relação de vida real com o terapeuta — os sentimentos infantis pelos seus pais, sentimentos estes que foram reprimidos. Eles querem atuá-los act them out, mas não sabem o que estão fazendo. Sua atuação (acting out) é uma indicação de que eles repelem qualquer consciência dos sentimentos que tiveram pelos pais nos seus períodos anteriores na vida. Estes sentimentos reprimidos escondem-se agora atrás dos sentimentos pelo analista. O tratamento psicanalítico se destina a revelar esta estratégia de atuação (acting out). O paciente deve ser encorajado a relembrar sentimentos que teve por objetos infantis de amor mas relembrar apenas. Ele deve conservá-los dentro da esfera mental”. Em outras palavras, a

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transferência deve ser superada. A implicação é que somente frustrando a atuação (acting out) pode o paciente ser levado a lembrar objetos infantis de amor e assim se afastar gradualmente da situação transferencial.

O Daseinsanalista não pode concordar com as sugestões de Freud para o manuseio da transferência e atuação (acting out). O motivo é simples: ele não acredita que as hipóteses teóricas que levaram às sugestões de Freud sejam corretas. Em parte alguma Freud prova convincentemente que os sentimentos do paciente pelo analista não surgem da situação presente, que eles são dirigidos, não ao analista, mas “realmente” ao pai ou mãe do paciente. Ele prova até mesmo o contrário. Primeiro, ele admite que “ninguém tem o direito de contestar a natureza genuína do amor que surge no decorrer do tratamento analítico”. Segundo, ele confessa, num contexto diferente, que uma interpretação correta de um afeiçoamento emocional ao analista como sendo “transferência” de algum outro lugar, ou de uma atuação (acting out) como sendo “resistência transferencial”, não produz os resultados que esperamos das interpretações corretas do comportamento neurótico — isto é, a interrupção do mesmo. Contrastando com a opinião de Freud, o Daseinsanalista sabe de antemão que o que se chama transferência não “transfere” coisa alguma. Ele sabe também que as curas não são efetuadas por meses de elaboração (working through) , durante a qual o sentido suposto da relação do paciente com o analista e da sua atuação (acting out) são-lhe ensinados metodicamente.

O Daseinsanalista acredita que o “amor ou ódio transferencial” é uma relação interpessoal genuína para o analista como é experimentada pelo analisando. O fato de que o analisando se comporta de uma forma infantil e portanto, julga erroneamente a situação presente de forma exagerada (devido à sua imaturidade emocional, que por sua vez é devida a um treinamento defeituoso em sua fase inicial) não deprecia a autenticidade dos seus sentimentos atuais. O analisando começa a amar o analista assim que se torna cônscio de ter encontrado alguém — possivelmente pela primeira vez em sua vida — que realmente o entende e que o aceita mesmo que ele esteja atrofiado pela sua neurose. Ele o ama ainda mais porque o analista lhe permite revelar de forma mais completa seu ser real e fundamental dentro de uma relação interpessoal segura, no “jardim da infância da transferência”. Como dissemos antes, todo o amor genuíno de uma pessoa pela outra está baseado na possibilidade de que o ser amado proponha ao que ama que revele inteiramente seu próprio estar-no -mundo com ele. Por outro lado, o paciente odiará seu analista enquanto ele ainda está disponível apenas para uma relação criança-pai ou criança-mãe, que limita sua percepção dos adultos a experiências frustradoras. Ele o odiará ainda mais, e com bom motivo, se o analista, devido à sua própria dita contra-transferência (i. e. sua própria atitude emocional neuroticamente limitada em relação ao paciente) realmente se comporta como um dos pais odiados anteriormente. Não é de se surpreender que qualquer pessoa que estude cuidadosamente os estudos de Freud sobre o assunto da transferência perceberá que ele realmente não consegue, apesar de grandes esforços,

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apresentar qualquer prova da existência de tais afetos oscilantes. Aquilo que se chama transferência positiva é um caso em mira.

Freud não é capaz de diferenciar convincentemente a natureza do amor transferencial da natureza do amor genuíno de um parceiro por outro, numa relação amorosa normal. Eventualmente ele é forçado a admitir que não se tem o direito de contestar a natureza genuína do amor que aparece no decorrer do tratamento analítico. Além do mais, todo analista pode observar que o amor transferencial por ele aparece naqueles momentos do tratamento em que ele fez suas primeiras interpretações acarretando compreensão interna (insight) com seus conseqüentes feitos emocionais no paciente. Parece evidente que o fenômeno do amor aparece quando estar junto com um parceiro permite que surjam as possibilidades, até aqui inadequadas, de relação com o mundo. A transferência não é uma simples decepção baseada num elo defeituoso de afetos e instintos com o objeto errado, como pensou Freud. A transferência é sempre uma relação genuína entre o analisando e o analista. Cada vez que estão juntos os parceiros se revelam um ao outro como seres humanos, isto é, cada um sendo basicamente o mesmo tipo de ser que o outro. Nem catexias objetais secundárias, nem “transferência da libido” de um “ego fundamentalmente narcísico” para o “objeto de amor”, nem transferência de um afeto de um objeto de amor anterior para um parceiro atual, são necessários para tal revelação, porque é da natureza fundamental de Dasein revelar o ser, incluindo o ser humano. Isto significa que nenhuma relação interpessoal, qualquer que seja ela, necessita uma transferência de afeto. Nem precisamos do conceito mais moderno de empatia para compreender a revelação imediata de uma pessoa para a outra. Isto, por sua vez, nos livra da obrigação de explicar mais um processo misterioso, porque a natureza básica da empatia jamais foi elucidada.

Para compreender o fenômeno específico do que se chama transferência, devemos compreender que a sinceridade original de um ser humano pela descoberta do companheiro humano encontrado não resulta, necessariamente, em percepções que façam inteira justiça ao que é encontrado. A natureza básica do homem com a abertura para o mundo inclui, fundamental e necessariamente, uma conclusão. As limitações de uma franqueza neurótica (no sentido de uma relação compreensiva com seu mundo) são simplesmente o que a psicologia denomina de distorções neuróticas de sua personalidade. Ele está —visto que é neurótico — sujeito às formas de revelação e comportamento semelhantes às de uma criança.

A grande variedade de maneiras livres, inteiras e maduras de se relacionar não são acessíveis a ele (como na verdade não são acessíveis à criança sadia, mas por motivos distintos).

Esta limitação capacita-nos a compreender os fenômenos da transferência no sentido restrito da palavra, isto é, a assim-chamada distorção neurótica da transferência. A analogia apresentada a seguir pode facilitar uma compreensão do que queremos dizer. Uma criança brinca com uma vela acesa. Ao fechar suas pálpebras quase que completamente, passa a ver um arranjo feito estrelas de raios estreitos em lugar de uma

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chama de tamanho normal. Suponhamos que a criança queimasse suas pálpebras enquanto brincava com a vela e que as mesmas ficassem grudadas para sempre. A criança então continuaria a perceber todas as velas da mesma maneira pelo resto de sua vida. Mas ninguém poderia afirmar que esta maneira de conceber uma chama, já como um adulto, deve -se a uma “transferência” da experiência que ele teve, como criança, a uma situação semelhante ocorrendo no presente. A razão para a distorção das percepções é a mesma tanto na infância como na maturidade: o fechamento das pálpebras. A situação do adulto neurótico é semelhante.

Sua condição humana ainda é tão infantil e pouco desenvolvida que, para escolher um exemplo, ele está aberto apenas à percepção dos aspectos semelhantes ao pai em todos os homens adultos que ele encontra.

Assim, ele se comporta com o analista como se este último fosse seu pai. Naturalmente, a limitação das possibilidades para reabertura e relacionamento persiste no neurótico, devido a um pai que inibiu o crescimento da criança e foi portanto parcialmente detestado, e mesmo odiado. Desta maneira, este neurótico nem mesmo estará aberto a todas as possíveis relações pai-filho. Ele só será capaz de existir numa relação filho-pai dominada pelo ódio.

À luz de uma abertura tão reduzida para o mundo, ele pode apenas conceber os aspectos paternos odiados de qualquer homem adulto que ele encontre, por mais ilegítimo que possa realmente ser este aspecto em qualquer pessoa determinada que ele encontre. Tais pacientes, como o neurótico em nosso exemplo, são muitas vezes bastante maduros, no que diz respeito às suas potencialidades intelectuais para o relacionamento.

Mas esta consciência intelectual, via de regra, não tem muita influência para corrigir a relação defeituosa, precisamente porque é apenas uma maturidade periférica e não fechada.

Isto explica porque a compreensão intelectual que o paciente tem de que o analista não é como seu pai tem pouca, senão nenhuma, influência na reação do paciente para com o analista. Vendo a situação desta maneira, parece supérfluo pretender que um afeto antigo e deslocado de um objeto antigo para o objeto da situação transferencial. Ao mesmo tempo, não mais precisamos considerar o amor transferencial um fenômeno ilusório. Pelo contrário, a Daseinsanálise encara cada relação analisando-analista como uma relação genuína sui-generis. E genuína, apesar do fato de o paciente a estar levando a cabo de maneira limitada, devido às suas distorções mentais. Não poderia ser de outro modo. A relação analisando-analista, como qualquer outra, está baseada no estar-com fundamental de um homem e outro, que é parte da fundamental abertura para o mundo de Dasein. O amor transferencial do paciente não é, portanto, realmente amor por mais alguém — o pai, por exemplo. E amor pelo próprio analista, por mas imaturo e distorcido que ele possa aparecer, devido às limitações de percepção impostas no paciente pela sua relação anterior com seu pai verdadeiro. Poderia parecer que muitos psicanalistas classificam o amor e a confiança que os pacientes lhes demonstram como “fenômenos transferenciais” porque eles acham que tais sentimentos não convêm à uma atitude científica para com a humanidade. Temendo que possam ser

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considerados a-científicos, eles empregam este terminus technicus para mitigar seu mal-estar e para se protegerem do amor ou ódio “real”.

3. Resistência A Daseinsanálise capacita o psicoterapeuta a efetuar uma “análise de

resistência”, na qual o paciente é incansavelmente confrontado com as Imitações de sua vida e na qual estas limitações são constantemente questionadas, de modo que a possibilidade de uma existência mais rica esteja incluída. Como regra, as pessoas neuroticamente enfraquecidas encaram suas relações interpessoais infelizes como as únicas possíveis. Elas não sabem que é acessível uma liberdade maior. Se suas restrições são repetidamente questionadas, possibilidades de comportamento não admitidas anteriormente aparecem regularmente, assim como a percepção das coisas e dos seres humanos companheiros que fazem parte destas possibIlidades de abertura para o mundo. O analista, clinicando desta maneira, não irá tentar persuadir os pacientes que muito do que eles sentem e querem dizer é apenas um disfarce para desejos e tendências opostas. Assim, ele evitará dar a impressão de desvalorizar a experiência dos pacientes, confundindo-os portanto, e criando ansiedade desnecessária. Contudo, o respeito do Daseinsanalista pelos fenômenos não deve ser confundido com uma preocupação exclusiva pelos fenômenos dos quais o paciente já está plenamente consciente. Ele sabe que a natureza do paciente, além das formas de comportamento abertamente admitidas e aceitas, inclui 6 inúmeras outras formas de ser, e de algumas delas o paciente está tentando arduamente tornar-se cônscio e muitas das quais contrastam com as formas abertamente demonstradas. Ele também sabe que estas possibilidades para se relacionar têm que ser conhecidas pelo paciente como sendo suas próprias antes que ele possa melhorar.

Apesar disso, todas as formas de comportamento do paciente — aquelas efetuadas abertamente e aquelas até então repelidas — são consideradas autônomas pelo terapeuta; ele deve considerá-las todas válidas. Jamais deve negar a realidade de um fenômeno.

A transferência e a resistência indiscutivelmente se referem a problemas reais das relações inter-humanas, embora de forma velada. A observação repetidamente confirma o acerto de Freud quando afirmou que se o analista der tempo ao paciente, lhe dedicar um interesse real e agir com tato, um afeiçoamento profundo do paciente pelo analista se desenvolverá espontaneamente. Nem pode qualquer observador analítico negar a descoberta de Freud: que todos os pacientes em tratamento psicanalítico resistem fortemente ao conhecimento total de si mesmos. Todo analista experimentado, portanto, concordará com a observação de Freud: que o fator patológico não é a ignorância que o paciente tem de si mesmo, mas a raiz desta ignorância em suas resistências internas. Freud admitiu francamente que parecia impossível sugerir que o paciente, que procura alívio de seu sofrimento na psicanálise, pudesse oferecer resistência enérgica e obstinada ao longo de todo o desenrolar do tratamento. E no

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entanto, continuou ele, é exatamente isto que acontece. E tal resistência não deixa de ter analogias. Tal comportamento é comparável ao de um homem que correu para o dentista com uma tremenda dor de dente mas que pode muito bem repelir o dentista quando este aplica seu fórceps no dente estragado. As resistências deste tipo não devem ser consideradas irrelevantes. Elas podem vir a ser de grande ajuda para a análise, se uma técnica hábil for corretamente empregada para aproveitá-las na forma mais vantajosa. De fato, pode-se afirmar que o domínio dessas resistências e a função fundamental da análise; aquela parte de sua função que por si só nos assegura que conseguimos alguma coisa para o paciente.

Defesa, não-aceitação e a importância fundamental da resistência na psicoterapia, são fenômenos que podem ser prontamente reconhecidos sem que, ao mesmo tempo, se aceite a hipótese de Freud sobre as mesmas. Não precisamos acreditar em representantes instintivos habitando numa consciência que é pintada como uma sala de recepção mas que ainda é capaz de observar as coisas. Nem somos obrigados a aceitar um “porteiro” psíquico (o ego antropomorfizado) que tranca as idéias mal recebidas na ante-sala do inconsciente, nem a aceitar especulações referentes a mudanças de estado e alterações de catexias de representantes instintivos indemonstráveis. Se examinarmos as defesas, sem preconceitos, assim como aquilo que se defende — a resistência e o resistido — começamos a perceber que nada têm a ver com as hipóteses de Freud sobre a estrutura interna da psique ou com o restante de suas especulações abstratas.

4. Interpretação do inconsciente Na teoria psicanalítica, a hipótese do inconsciente como um fator

constituinte do aparelho psíquico é profundamente importante. De acordo com o próprio depoimento de Freud, seu objetivo fundamental

era demonstrar a extrema importância de todos os fenômenos mentais. A importância de um fenômeno deveria mostrar que este tem uma posição e valor definido no processo de esclarecimento e maturação da existência de uma pessoa. Tentando provar isto, Freud descobriu que era obrigado a atacar um dos dogmas incontestáveis da maioria dos filósofos do seu tempo, isto é, a doutrina de que a mente e a consciência são idênticas. Esforçando -se sempre para provar a extrema importância de todos os fenômenos mentais, chegou à concepção de um “inconsciente” duplo, um parceiro da consciência porém infinitamente mais poderoso. O “inconsciente” de Freud logo se tornou o mais fundamental de todos os conceitos introduzidos no conjunto da teoria psicanalítica. Ele chegou ao ponto de designá-lo como a “verdadeira realidade psíquica”. A “qualidade de ser consciente ou não” permaneceu sempre para ele “o único raio de luz que penetra na obscuridade da psicologia-profunda”. A tal ponto o inconsciente se tornou o símbolo da teoria psicanalítica que a psicanálise, e todas as doutrinas dela originadas, eventualmente se tornaram conhecidas como psicologias “profundas”. A “profundidade” entrou no quadro porque Freud, aperfeiçoando o conceito das “localidades psíquicas” de Fechner, tentou ver os fenômenos mentas sob o ponto de vista de uma abordagem “topográfica”, e considerar o inconsciente como uma “localidade psíquica”

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um “sistema psíquico” “abaixo” da consciência. Freud sabia muito bem que a hipótese de um inconsciente significava ir além dos fenômenos imediatamente observáveis. Ele enfatizou esta percepção quando se referiu à idéia das localidades psíquicas como “conjectura”. Por esta razão, ele considerou sua doutrina sobre o inconsciente não como parte da psicologia mas como parte da metapsicologia. Apesar disso, o ponto de partida de suas investigações, além dos fenômenos imediatamente observáveis, foram as observações concretas. Entre estas, Freud citava a ocorrência diária de que “uma idéia que está consciente agora não mais o está logo depois... Qual era a idéia no intervalo nós não sabemos. Podemos dizer que era latente”. Freud também recordou as experiências de Bernheim, nas quais as pessoas realizavam depois de acordar sugestões recebidas durante a hipnose, sem saber que a fonte das sugestões fora alguém que não elas mesmas. Freud também considerava inexplicáveis os fenômenos parapráxicos, sintomas neuróticos e os sonhos — todos inexplicáveis, achava ele, a não ser que se aceitasse lutas e desejos inconscientes por trás dos mesmos. Contudo, tão logo ele se atreveu a aceitar um inconsciente, viu-se forçado a apresentar distinções complicadas entre o que é inconsciente apenas “em latência’ (i. e., “pré-consciente”) e o que é inconsciente no sentido exato da palavra (i. e., fenômenos inacessíveis mesmo ao pré-consciente). Nas fases posteriores de sua metapsicologIa, ele chegou a julgar extremamente necessário substituir os conceitos de “consciente” e inconsciente” pelos conceitos de “ego”, “id” e “superego”.

Basicamente, a obscuridade que encobre o problema da consciência se origina no fato de ser impossível entender a “consciência” surgindo de excitações desprovidas de qualidade e como uma propriedade da superfície de um aparelho. E quase desnecessário dizer que é igualmente impossível entender a consciência em conexão com a linguagem na maneira pela qual Freud tentou entendê-la. O fenômeno da linguagem humana não pode ser reduzido a resíduos e lembranças de estímulos sensoriais e sensações auditivas; mesmo o falatório sem sentido de um papagaio não pode ser explicado desta maneira. Continua incompreensível como a consciência pode surgir de uma conexão enigmática entre “processos de pensamento inconscientes” e os “estímulos auditivos” correspondentes. Acima de tudo, simples-mente não é verdade que percebamos os “estímulos auditivos” quando ouvimos uma criança chorar, por exemplo, ou um apito de trem. Nem percebemos apenas os “estímulos visuais ou “sensações visuais” quando nos tornamos cônscios de uma árvore plantada no jardim. Pelo contrário, primeira e fundamentalmente ouvimos alguém chorando ou alguma coisa apitando; nós percebemos uma árvore de pé no jardim. O fenômeno que o obscuro conceito de uma consciência disfarça, em vez de elucidar, não é nem uma propriedade misteriosa de um processo psíquico carregado de energia — que é como tal desprovido de qualidade — nem é uma localidade psíquica dentro de uma pessoa ou de um aparelho. Tais idéias tornam sempre impossível entender o me tornar cônscio de mim mesmo assim como da mesa, da casa, das pessoas à minha volta — além do mais, cônscio das mesmas tais como são realmente, isto é, como esta mesa, esta casa, aquelas pessoas. Esta “capacidade” de se tornar cônscio

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de alguma coisa, até agora considerada como uma propriedade ou um ato de uma consciência postulada, não esclarecida, não é nada disso.

E; apenas, simplesmente, evidência da abertura e percepção fundamental do homem, e isto, por sua vez, é a própria essência de sua existência e jamais, simplesmente a propriedade de um X desconhecido. O reconhecimento de que os outros têm a mesma capacidade que eu para entender, ou para se tornar cônscio” de alguma coisa, não está baseado em dedução ou analogia (como estão, de acordo com as próprias afirmações de Freud, suas noções de uma consciência ou um inconsciente). Este reconhecimento é, antes, uma parte integral da abertura fundamental do homem para um entendimento imediato e para uma percepção de um ser como o ser que ele é — de um ser humano, por exemplo, como um ser que existe da mesma maneira que aquilo que ele percebe. A hipótese de um inconsciente somente é necessária se se aceita a filosofia subjacente de Freud como obviamente verdadeira. Então, é claro, é inevitável a hipótese de um repositório psíquico, de uma localidade psíquica ou de um sistema psíquico. Todos os inúmeros processos de transformação psíquica, que Freud pretendeu estarem por trás dos fenômenos imediatamente verificados, exigem tal “caixa negra” psíquica, já que reconhecidamente eles nunca podem ser vistos.

Uma das infinitas vantagens da compreensão Daseinsanalítica do homem é o fato de tornar supérflua a hipótese de um inconsciente. A análise do Dasein faz-nos compreender que não temos base para conjecturar a existência de imagens subjetivas que refletem uma realidade externa independente, nem para admitir processos (ocorrendo em alguma localidade intrapsíquica) que fabricam idéias e pensamentos correspondendo mais ou menos a esta realidade externa.

Ao contrário, a análise do Dasein permite que nos tornemos cônscios de que as coisas e os companheiros que um indivíduo encontra aparecem-lhe sob a luz reveladora de significados do seu Dasein —imediatamente (e sem que qualquer processo subjetivo esteja envolvido). Elas aparecem tal como são, de acordo com a abertura para o mundo de sua existência. Como é da essência do Dasein clarear, lucidar, revelar e perceber, nós sempre encontramos Dasein fundamentalmente com o que ele encontra, semelhante ao que se chama luz física. A luz, também, está sempre “ali fora”, fazendo brilhar as coisas que aparecem dentro de seu domínio luminoso. Relacionando-se com as coisas graças ao viver-com-elas-fundamentalmente, deixando-as resplandecer para mas longe e aparecer, Dasein se especializa em suas relações com o que encontra, de acordo com sua preocupação próxima ou remota pelo encontrado em qualquer oportunidade. Tal homem existe, ocupa totalmente seu tempo e satisfaz seu Dasein. Vivendo desta maneira, o homem confia no que ele encontra, tanto quanto o encontrado confia na natureza reveladora do homem para que possa aparecer.

A Daseinsanálise pode conceder uma realidade imediata e autônoma a todas as espécies de fenômenos, que na opinião de Freud seriam

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rebaixados, desde o início, a decepções inexatas do inconsciente. É possível conceder esta realidade porque a Daseinsanálise não avaliou de antemão toda uma multidão de fenômenos de acordo com uma decisão arbitrária sobre a natureza do mundo e da realidade. A Daseinsanálise torna desnecessário ir-se além da experiência imediata. Pode elucidar sem dificuldade, baseada apenas na experiência imediata, todos aqueles fenômenos psíquicos que obrigaram Freud a inventar o inconsciente. O fenômeno que, acima de todos os outros, tornou imperativa a Freud a hipótese de um inconsciente foi o sonho. Se alguém parte da experiência imediata do sonho e tenta explicar os fenômenos oníricos com a ajuda de conceitos abstratos elaborados ao trabalhar com outros tipos do assunto exposto, é quase inevitável que chegue a alguma conclusão desta natureza. Foi isto o que aconteceu no caso de Freud.

Ele mesmo nos diz, no seguinte trecho: Nós tomamos emprestado a seguinte tese da teoria da histeria: uma seqüência normal de pensamento somente se submete a um tratamento psíquico anormal... se um desejo inconsciente, provindo da infância e num estado de repressão, se transferiu para o mesmo. De acordo com esta tese elaboramos nossa teoria dos sonhos supondo que o sonho-desejo que fornece a força motora origina-se invariavelmente do inconsciente. Esta é uma hipótese que, como eu mesmo estou pronto a admitir, geralmente não pode ser comprovada para vigorar, embora também não possa ser refutada.

Os fenômenos oníricos não nos habilitam a identificar os desejos infantis como fontes dos sonhos, nem a entender a transformação de -um desejo em um sonho, nem o trabalho onírico que supostamente realiza a transformação. Não é de se surpreender, portanto, que todas estas suposições tenham que ser postas na escuridão irreconhecível de um interior psíquico, isto é, o inconsciente. Para demonstrar sua teoria dos sonhos da forma mais clara possível, Freud usou o seguinte exemplo no final de The Interpretation of Dreams: Um menino de catorze anos veio a mim para tratamento psicanalítico sofrendo de tique convulsivo, vômito histérico, dores de cabeça etc. Comecei o tratamento assegurando-lhe que se ele fechasse os olhos poderia ver imagens ou ter idéias as quais deveria me transmitir. Ele replicou por imagens. Sua última impressão antes de vir ao tratamento foi revivida visualmente em sua memória. Ele estivera brincando de desenhar com seu tio e viu a cartolina diante de si. Ele imaginou diversas posições, favoráveis ou desfavoráveis, e os movimentos que não se deve fazer. Então ele viu um punhal sobre a cartolina — um objeto que pertencia a seu pai mas que sua imaginação pusera no papel. Depois havia uma foice sobre a cartolina e a seguir uma segadeira. E agora aparecia ali a imagem de um velho camponês com uma segadeira podando a grama na frente da casa longínqua do paciente. Poucos dias depois descobri o significado desta série de imagens. O menino estivera perturbado com uma situação familiar infeliz. Seu pai era um homem áspero, sujeito a acessos de raiva, que fora muito mal casado com a mãe do paciente e cujo método educacional consistira em ameaças. Sua mãe, uma mulher suave e carinhosa se divorciara de seu pai; este casou-se novamente e um dia trouxe para casa uma jovem mulher que deveria ser a nova mãe do menino.

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Foi logo nos dias que se seguiram a isto que apareceu a doença do menino de catorze anos. Foi sua raiva reprimida contra o pai que havia formado esta série de imagens com suas alusões compreensíveis. O material para tais imagens foi fornecido por uma recordação da mitologia. A foice era aquela com que Zeus havia castrado seu pai; a segadeira e a imagem do velho camponês representavam Kronos, o velho violento que devorara seus filhos e em quem Zeus se vingara de forma tão pouco filial. O casamento de seu pai deu ao menino uma oportunidade de retribuir as repressões e ameaças que ouvira do pai há muito tempo, porque ele havia brincado com seus genitais (cf. o brinquedo com desenhos; os movimentos proibidos; o punhal, que poderia ser usado para matar). Neste caso, lembranças há muito reprimidas bem como os derivativos das mesmas, que haviam permanecido inconscientes, vieram à consciência por via Indireta sob a forma de imagens aparentemente sem sentido.

Este exemplo contém inúmeras conclusões referentes aos “derivativos” afetivos e instintivos do inconsciente do menino. Deixando de lado o fato de que a essência de tais “imagens” continua, como sempre, completamente inexplicada, não há qualquer prova que seja nos próprios fenômenos do sonho para as deduções intelectuais em que Freud se baseia. Estas deduções não foram feitas por causa do fenômeno de sonhar, mas por causa da teoria segundo a qual os sonhos surgem dos desejos inconscientes.

Por este motivo, este tipo de interpretação de sonho jamais será capaz de se defender contra a acusação de total arbitrariedade. Se, contudo, não se aceita o fundamento (admitidamente descomprovado) para tais deduções, o punhal e a segadeira que o menino percebe podem ser compreendidos (sem aceitar uma consciência ou um inconsciente) como coisas que correspondem à freqüência à qual ele estava sintonizado, com muita probabilidade e da ansiedade.As pessoas em estado de ansiedade estão, em sua maioria, abertas somente à percepção daqueles aspectos do mundo que são uma ameaça para eles. Foi assim com este reino.

Teríamos de saber muito mais sobre o punhal e a segadeira dos sonhos do menino — mais que referências à mitologia (que são de Freud e não do menino) — para estarmos dispostos a rotular as interpretações de Freud (que elas provêm da raiva inconsciente e desejos de morte) unicamente como fantasias do interpretador. Seria impossível dizer, sem um conhecimento preciso da disposição e do conteúdo significativo que o camponês tinha para o menino, ou, se pelo contrário, isto emergia do anseio natural do menino pela segurança de um lar. Uma coisa permanece certa: a fim de entender significativamente este derradeiro exemplo da The Interpretation of Dreams, podemos dispensar uma grande parte do conteúdo precedente do livro, mas jamais a primeira frase, uma frase que, realmente, deu início a uma nova época. Repetindo: “Todo o sonho se revela como uma estrutura psíquica que tem um significado que pode ser inserido num ponto determinável das atividades mentais de sua vida em vigília”. Esta frase reflete o élan de alegria da descoberta existente num homem que acabara de se tornar cônscio de uma nova dimensão — a extrema significatividade de todos os fenômenos humanos —um homem que, até

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então, não obscurecera sua compreensão com a regressão teórica na explicação natural-científica.

A crítica indispensável que fazemos à hipótese de um inconsciente não nos faz fechar os olhos para a visão que Freud teve de um campo fundamentalmente importante para a compreensão Dasensanalítica do homem. Em sua incansável pesquisa do inconsciente, Freud estava a caminho do escondido, do esconderijo como tal. Sem esconderijo e escuridão, o homem não seria o ser descobrindo-o-mundo que ele é. Luz e escuridão, esconderijo e descoberta fazem parte, inseparavelmente, do mesmo todo; Freud deve ter percebido isto. Ele também disse isto do inconsciente: que este continha as forças “indestrutíveis” da mente humana, que era a “verdadeira realidade psíquica”. Sendo filho de uma época faminta de capacidade, ele sentiu o anseio de extrair objetos subjetivistas e psicologistas do esconderijo para que pudesse ser capaz de drená-lo sob a luz do intelecto técnico e torná-lo aproveitável. Como sempre fez, e como fará sempre, o segredo resistiu a esta impertinência caracteristicamente moderna.

5. Elaboração Aqui também podem ser observadas diferenças. A mais

importante consiste no manejo da atuação acting assim como na pergunta psicanalítica “por que?” e na pergunta Daseinsanalítica “por que não?”

Freud nos deu uma magistral descrição da maneira pela qual as resistências se liquefazem no “fogo do amor transferencial” contra a obtenção das possibilidades de vida até então temidas, mas quando o paciente deseja não apenas pensar ou falar sobre sua relação com o analista mas deseja também experimentar suas possibilidades recém-descobertas na linguagem de suas emoções e do seu corpo, Freud chama isto de atuação de resistência (acting-out of resistance). O Daseinsanalista pensa de outra maneira. Para ele, o desejo de atuação (acting out) emocional e física aparece tanto como uma parte das possibilidades recém-brotadas para se relacionar quanto o fazem os pensamentos que acompanham estas possibilidades. Desta maneira, o Daseinsanalista não pode considerar tal atuação (acting-out) como uma repetição — em ação — das emoções de amor infantil reprimidas em relação a um progenitor, ou mesmo como uma resistência para não se tornar cônscio de tais “objetos de amor” antigos. Ele evitará cuidadosamente que a assim-chamada atuação (acting-out) se transforme em “material psíquico”, isto é, em lembrança e manifestação verbal. Pelo contrário, ele deixará que a atuação (acting out) continue, o máximo possível, sem violar sua própria integridade, liberdade interna e preocupação abnegada pelo analisando. Ele agirá assim porque considera a atuação (acting out) como um fenômeno “genuíno”, como, na maioria das vezes, o extremo oposto de uma tentativa para reprimir.

A atuação (acting out) pode indicar que alguma coisa está desabrochando pela primeira vez na vida do analisando. Este atreve-se a se comportar de uma maneira que antes jamais lhe fora permitida (pelo menos suficientemente). A atuação (acting out), nestes casos, pode não ser

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nem uma lembrança nem uma repetição. Assim, a única ação terapeuticamente eficaz do terapeuta é a permissão para atuar (act out). Com esta permissão é possível ao paciente experimentar repetidamente, praticar, e eventualmente adquirir formas de comportamento que não haviam sido permitidas na relação com seus pais reais e educadores. E; pernicioso tentar “transformar” a atuação (acting out) em lembrança, principalmente se o terapeuta tenta realizar isto chamando o comportamento do analisando de “infantil”; isto contém a implicação depreciativa de que o paciente deveria ter superado e abandonado tal comportamento há muito tempo. Mas, pelo contrário, os modos infantis de comportamento que surgem pela primeira vez na relação analisando-analista deveriam ser valorizadas como preciosos pontos de partida de onde irão brotar todos os desenvolvimentos futuros. O ser-ele mesmo do analisando amadurecerá em formas ainda mais diferenciadas de relacionamento, se antes as formas mais primitivas de se relacionar tiverem permissão para se desenrolar completamente. Se isto for permitido, formas mais adultas de comportamento aparecem espontaneamente. Assim, a separação gradual da situação analítica acontece porque a atuação (acting out) agora é permitida; ela não é causada por uma interpretação errônea da atuação (acting out) como sendo uma renovação de lembranças infantis.

Na verdade Freud sabia disto ainda que, estando seduzido por suas hipóteses teóricas, não o tenha mencionado explicitamente em suas recomendações para o manejo clínico do que se chama transferência.

Ele contradisse sua própria definição de transferência ‘‘como um vínculo errado de um afeto e de um objeto” quando afirmou que não se tem o direito de contestar a natureza genuína do amor que faz seu aparecimento no decorrer do tratamento analítico”. Além do mais, o terapeuta Freud comportou-se no tratamento real como se estivesse ciente das compreensões Daseinsanalíticas. Nós observamos antes que ele advertiu o analista para “esperar e deixar as coisas seguirem seu curso”, porque em todos os pacientes capazes de sublimação, o processo de cura geralmente “começa de dentro, tão logo suas inibições tenham sido removidas pela análise”.

Estas frases significam que o conceito de elaboração (working through) é antes de mais nada uma proteção teórica para o consentimento no que se refere ao teste e prática das formas de comportamento recém -admitidas na relação analista-analisando. Incidentalmente, estas mesmas observações de Freud mostram como é insípido para alguns críticos da psicanálise requerer que a “psicossíntese” deva seguir a psicanálise.

Obviamente, o que ocorre por iniciativa própria não necessita, além do mais, ser completado por mais alguém. Certamente, a atuação (acting out) — como qualquer outro fenômeno da psicanálise — pode ser utilizada com objetivos de resistência e de esconder. Ocasionalmente, um analisando emprega na análise maneiras de se relacionar que ele tem praticado por algum tempo e assumiu com responsabilidade, a fim de resistir à aceitação de maneiras mais temidas de viver. Se o paciente não faz deste comportamento parte de suas relações fora da situação analítica, se ele insiste em atuar (acting out) somente com o analista, podemos admitir que

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sua atuação (acting out) serve para sabotar a aceitação responsável de certos setores que o paciente ainda teme. E; fácil reconhecer tal atuação (acting out) porque tem um caráter falso, jocoso, teatral e demonstrativo. Contudo, a técnica de análise de resistência de Freud fornece-nos meios adequados de superar esta dificuldade.

É importante lembrar que uma pessoa neuroticamente inibida pode tentar se abrir em sua relação com o analista somente se este último a recebe num nível que é genuinamente seu. Com pessoas gravemente doentes, este nível raramente é o conceptual, intelectual-verbal. Desta maneira, a relação analisando-analista deve muitas vezes parecer a de um bebê com sua mãe, se a relação for genuína e apropriada para as condições do paciente. Às vezes, esta relação só pode aumentar se estiver limitada à linguagem silenciosa dos gestos, outras vezes exclusivamente ao silêncio, a fim de que Dasein possa vir à luz e crescer. A análise infantil, em geral, há muito renunciou a qualquer tentativa de transformar atuação (acting out) em pensamentos e lembranças. Mas na análise de adultos nós fracassamos em reconhecer competentemente que estamos lidando com pessoas que continuaram a ser criancinhas no âmago de suas existências, e com as quais só podemos nos relacionar genuinamente se as recebemos no mesmo nível infantil. O analista que incita seus pacientes a considerar todas as suas atuações (acting out) como uma forma de resistência para não se lembrarem de seus comportamentos em relação a “objetos de amor” anteriores, engana gravemente seus pacientes e põe em perigo suas chances de recuperação. Se os pacientes fazem o que o terapeuta lhes pede para fazer, eles exigem ou demais ou muito pouco deles mesmos. Ou não há nada realmente para ser lembrado, porque um paciente está experimentando em sua atuação (acting out) com o analista uma nova maneira de se relacionar interpessoalmente, uma maneira que nunca lhe estivera aberta anteriormente; ou um paciente, na verdade, pode compreender que ele está se comportando com seu analista exatamente da mesma forma tortuosa que lembra ter-se comportado, em sua juventude, com seu pai ou mãe, em conseqüência desta ou daquela frustração, ou permissividade exagerada da parte deles. Mas nenhuma evidência real, convincente, jamais foi apresentada quanto ao efeito desta espécie de lembrança como tal. Pelo contrário, a convicção de Freud de que o simples recordar da ocasião em que o comportamento neurótico se produziu pela primeira vez, e se agravou na existência de uma criança irá, por si mesmo, interromper a repetição compulsiva de tal comportamento, baseia-se em leis que só podem ser aplicadas satisfatoriamente em objetos físicos. No setor da física, é verdade, um efeito não mais será produzido se sua causa for eliminada; um motor elétrico, por exemplo, pára assim que a corrente é desligada.

Contudo, nada do que acontece a uma criança é capaz de produzir e manter qualquer padrão de comportamento nessa relação causal. As experiências da infância somente podem limitar e deturpar a realização das possibilidades inatas de se relacionar com o mundo. Elas próprias não podem causar e produzir as relações. Nem pode esta pseudocausa se tornar ineficaz simplesmente lembrando-se dela, tornando-a “consciente” e

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assim liberando uma dita quantidade determinada de libido. Não nos cansamos de repetir que nenhuma quantidade que seja de energias “cegas” pode jamais criar e construir um mundo humano transparente, formado de relações reveladoras de significado com o que é encontrado. Fundamental-mente, a existência humana não é um processo físico, porém antes de mais nada um fato histórico. Isso quer dizer que, em toda a relação real com alguma coisa ou com alguém, toda a história de Dasein está inerente e presente, quer a revelação histórica de um certo tipo de relação seja lembrado explicitamente ou não. O que interessa mesmo, terapeuticamente, não é a recordação da ocasião em que um padrão neurótico de se relacionar com os camaradas de alguém foi adquirido na infância, mas a descoberta da resposta para duas perguntas: Por que o paciente ficou, até o presente momento, preso a esta mesma maneira limitada de se comunicar? O que o está mantendo, exatamente agora, prisioneiro de seus padrões neuróticos de comportamento? A resposta genérica a estas perguntas igualmente importantes é que os pacientes neuróticos em geral não conseguem nem mesmo imaginar que é possível outra maneira de se relacionar com as pessoas. Alguns podem ter idéia, intelectualmente, de uma liberdade maior, mas não confiam suficientemente na mesma para testá-la. Ao contrário, eles ficam muito ansiosos para provar o contrário a si mesmos, estimulando o seu meio ambiente a continuar a maneira neuroticamente limitada de se comunicar com eles próprios. Para todos os neuróticos, qualquer mudança na perspectiva limitada a que estão acostumados é aterradora, especialmente se há uma mudança visando uma liberdade maior.

A última coisa de que nossos analisandos precisam ê de uma conversão de sua atuação (acting out) em fenômeno transferencial ou em qualquer outra explicação racional do mesmo. Nem necessitam considerá-la intelectualmente (com ou sem os afetos correspondentes) para refletirem sobre a mesma “conscientemente”, enunciá-la verbalmente ou assumirem total responsabilidade pela mesma.

A exigência fundamental deles não consiste em algum tipo de reconhecimento conceptual de suas atuações (acting out), mas antes a oportunidade para viverem e experimentarem, repetida, imediata e irrefleti-damente, suas novas formas de comportamento dentro da relação segura com o analista. O conselho de Freud para que os pacientes fossem instados a lembrarem “conscientemente” e a enunciarem verbalmente tão logo fosse possível, o que eles estavam irrefletidamente atuando (acting out), parece se originar de sua compreensão limitada da linguagem e consciência humana. Freud julgava que nada podia se tornar “consciente” (e assim evitado de se converter num sintoma neurótico) se não estivesse relacionado com os restos de lembrança do som do nome ou palavra pertencente ao mesmo. Na percepção e ação irrefletidas, contudo, há uma posse e uma revelação das possibilidades de comportamento reveladoras do mundo tão genuínas como as que ocorrem no domínio das expressões verbais. Porque uma forma irrefletida de comportamento espontâneo também pertence à linguagem humana em seu sentido mais profundo. Ela

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também pressupõe uma percepção do significado e referências dos seres encontrados. Na verdade, ela vem muito antes de qualquer reflexão e compreensão conceptual das palavras faladas. A autenticidade e a prioridade desta posse de novas maneiras de se relacionar, irrefletidas e “meramente” atuadas (acted-out), podem ser facilmente demonstradas. Todo analista experiente conhece pacientes que identificaram e refletiram sobre todas as suas “fixações” importantes a “objetos de amor” anteriores, que vieram a dar a estas identificações palavras e conceitos corretos e adequados, e até mesmo, que compreenderam todo o conteúdo emocional pertencente a estas relações — tudo sem o mais leve efeito terapêutico. Por outro lado, existem inúmeros pacientes que perderam para sempre todos os seus sintomas neuróticos sem se lembrarem dos “objetos de amor” anteriores, sem qualquer identificação conceitualizada ou verbalizada das possibilidades até então repelidas de se relacionarem com os seres humanos seus companheiros. Eles conseguiram isto exclusivamente atuando (acting out) irrefletidamente, e desta forma, tomando posse e aceitando seu comportamento vivido imediatamente com o analista.

O Daseinsanalista muitas vezes pergunta aos seus pacientes “Por que não?” encorajando-os, por meio disso, a testes ainda maiores de risco. “Por que é que você não se atreve a se comportar desta ou daquela maneira durante a sessão analítica?” é uma pergunta muitas vezes feita em lugar da pergunta analítica usual “Por que?”. Se o “Por que?” vem cedo demais, antes que o analisando tenha tido tempo suficiente para a atuação (acting out), ele põe sobre o paciente exigências excessivas que podem agravar seu estado em vez de melhorá-lo. Muitos pacientes ficam presos numa interpretação deles mesmos, mecanicista, casual-genética. Se perguntamos “Por que?” prematuramente, eles entenderão, na maioria dos casos, que isto significa que deveriam procurar a causa de seu comportamento presente num período anterior de suas vidas. Ao mesmo tempo, podemos despertar neles falsas esperanças. Eles podem ter a impressão de que, descobrindo simplesmente a causa presumível do sofrimento (um fato na infância primitiva, que “fixou a libido” num nível específico de desenvolvimento) removerá os obstáculos que impedem sua melhora. Mas no sentido exato da palavra, nenhum fato na história da vida da pessoa pode jamais ser a “causa” de sintomas neuróticos. As experiências pessoais simplesmente dão início a inibições que impedem a realização completa de todas as relações interpessoais possíveis.

Qualquer compreensão e experiência emocional do comportamento inadequado dos pais, que retardou o crescimento de um paciente em sua juventude, deve ser complementada, como já observamos, com a pergunta incansavelmente repetida, “Por que ele, ate hoje, ainda não se atreve a se libertar da mentalidade restritiva de sua infância?” Se esta pergunta extremamente importante é negligenciada, mesmo nas fases posteriores da terapia, o tratamento pode facilmente se tornar estéril e resultar nas acusações eternas e estereotipadas do paciente contra seus pais. É verdade, certamente, que muito psicoterapeutas modernos não mais entendem o “Por que?” da psicanálise como uma pergunta destinada a extrair causas. Seu interrogatório, atualmente, tem o sentido de conseguir

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exemplos da vida do analisando, que tornarão o significado — não a causa — dos seus sintomas mais claros para o mesmo. Apesar disso, mesmo tais analistas muitas vezes exigem demais do analisando. Seu interrogatório significa uma exigência para que o paciente verbalize uma explicação cognitiva, “razoável”, do seu comportamento. Esta exigência ignora a constituição infantil e imatura de uma pessoa neurótica; sobrecarrega-o; atinge-o apenas na superfície, pela solicitação de maneiras de se relacionar inautênticas (para ele), aprendidas, intelectuais. Os dois exemplos de histórias dados a seguir podem servir para enfatizar este ponto.

O psicoterapeuta perguntou certa vez “Por que?” numa tentativa de possibilitar a uma paciente, uma mulher de trinta e cinco anos, que chegasse rapidamente a uma compreensão racional de sua atuação (acting out). A pergunta foi feita no momento errado; embora o pior tenha sido eventualmente evitado, a pergunta provavelmente aumentou de dois anos a análise. Segue-se o que aconteceu: A paciente, depois que uma tremenda resistência interna tinha sido superada, levantou-se do divã e começou a se ajoelhar no chão, achando-se no divã. Quando o analista lhe perguntou porque ela estava fazendo isto, ela interpretou sua pergunta (como na maioria das vezes acontece) como uma proibição. Na realidade, o analista, leal ao conselho de Freud, tivera a intenção de transformar sua atuação (acting out) em uma lembrança. O (suposto) significado do seu ato de ajoelhar devia ser compreendido intelectualmente e expresso verbalmente. Mas a paciente não estava pronta para tal expressão.

Seu estado ainda era comparável ao de uma criança pequena; ela ainda era capaz de exprimir o que ela queria exprimir somente na linguagem de gestos adequada a uma criança pequena.

Seu gesto de se ajoelhar não foi, absolutamente uma atuação (acting out) de lembranças reprimidas. Ela não tinha lembranças reprimidas de se ajoelhar, ou coisa parecida, pela simples razão de que sua relação verdadeira com seus pais tinham sido de um tipo que jamais permitira se ajoelhar ou querer se ajoelhar. Na verdade, seu esforço se ajoelhando foi sua primeira tentativa para conseguir o que nunca tivera, um apelo tateante para que pudesse ser uma criança confiante — uma criança que tem permissão para se sentar nos joelhos de sua mãe e neles encostar sua cabeça. Se uma criança se ajoelha e se encosta nos joelhos de sua mãe, geralmente ela não fala, e muito menos explica o que está fazendo. A única expressão adequada da relação é através de gestos, possivelmente acompanhados de sons inarticulados de prazer.

O pensar e falar, conceptualmente articulados, sobre a experiência, deve necessariamente destruir a validade da experiência. Pedindo isso a um paciente, o analista o conduz a uma maturidade artificial, onde a verdadeira maturação e recuperação se tornam impossíveis. A esta altura da análise da mulher, tudo dependia do fato de ela ter permissão para experimentar uma relação mãe-criança confiante, tranqüila. Dentro da estrutura de tal relação, a paciente deveria ter tido permissão para se ajoelhar na presença do analista por algum tempo.

Somente muito depois o terapeuta compreendeu quão inadequadas suas perguntas tinham sido. Ele havia interferido em vez de encorajar sua

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recuperação. Assim que percebera sua intenção de se ajoelhar, ele não deveria ter perguntado “Por que?” No máximo, poderia ter-se arriscado a perguntar, “Por que não?” encorajando-a por meio disto. Somente tal encorajamento da parte do analista poderia ter induzido a paciente a seguir a regra básica de Freud: declarar tudo que vem à cabeça. Seu ato de ajoelhar — uma forma de falar na linguagem que ela dominava — teria constituído uma aquiescência à regra de Freud. Foram necessários mais de dois anos para que fosse superada a resistência criada pela pergunta mal feita do analista, e para que se estabelecesse nova confiança, criando a condição para a emergência de relações com o mundo, das quais até então a paciente se defendera. A causa principal desta resistência não era medo das possibilidades de vida até aqui rejeitadas. Nem era medo de uma liberdade maior; ela não desejava aderir a padrões de comportamentos familiares, embora dolorosos. Nem foram os dois anos de queixas inúteis feitas pela paciente, devidos a uma “compulsão à repetição” masoquista surgindo do inconsciente. Esta resistência era estritamente obra do analista. Fora liberada pela compreensão errônea que tivera do anseio infantil da paciente pela confiança. Ele a submetera a uma tensão excessiva. Ele havia exigido que ela entendesse seu anseio como um adulto o faria (isto é, em um nível intelectual), enquanto que neste estágio do seu desenvolvimento somente um gesto silencioso poderia genuinamente demonstrar o que ela sentia e o que ela era.

Em outro caso, o de um analisando masculino, o terapeuta duvidou até da sacrossanta regra básica de Freud perguntando, “Por que não?” Um paciente compulsivo, um médico, interpretou a regra — dizer tudo o que lhe vinha à cabeça — como uma confirmação do seu conceito de vida, como sendo uma escravidão incessante. Muito mais tarde (dois anos após o início da análise) o analista perguntou ao analisando (que estava, como sempre, formal e conscientemente se torturando a fim de ter certeza de dizer tudo) por que ele não se permitia ao menos uma vez não dizer tudo? Só então paciente se atreveu, pouco a pouco, a relaxar as leis dentro das quais sua existência estava encerrada. Eventualmente, ele se sentiu tão bem desobedecendo às ordens na situação analítica, tal como uma criança se sente em sua cama macia. Este foi o ponto decisivo em uma análise que até então parecera sem esperança. Violar a regra básica da psicanálise parece implicar em uma liberdade excessiva. Todavia, este paciente suportou a frustração suprema, no sentido freudiano, embora fosse uma frustração de um tipo específico. A pergunta “Por que não?” frustrou sua persistência dentro de seus padrões de comportamento compulsivos usuais. O próprio paciente afirmou que esta permissividade frustradora (ou frustração permissiva) havia “abalado o seu mundo”. Havia puxado o tapete de todas as relações com o mundo que até então havia conhecido. Mais tarde, o mesmo “Por que não?” abalou seu mundo de outra forma. Tornou-se um fator de cura. Deu-lhe, pela primeira vez, uma oportunidade de ser uma criancinha que não ter que ser ou fazer nada de especial. Depois de ter superado o medo de ficar louco, ele foi capaz de entrar numa relação mais livre com o mundo e finalmente alcançar a maturidade como um eu (self) livre e sincero.

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