revista trt9 (dano existencial)

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  • 5/26/2018 Revista TRT9 (Dano Existencial)

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    Dano Existencialedio

    Setembro22

    Tribunal Regional do Trabalho do Paranv.2 n.22 Setembro2013

    ISSN 2238-6114

    RevistaEletrnica

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    Ficha Tcnica

    TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO 9 REGIOCURITIBA - PARANESCOLA JUDICIAL

    PRESIDENTE

    Desembargadora Rosemarie Diedrichs Pimpo

    VICE-PRESIDENTE

    Desembargador Altino Pedrozo dos Santos

    CORREGEDOR REGIONALDesembargador Dirceu Buyz Pinto Jnior

    CONSELHO ADMINISTRATIVO BINIO 2012/2013

    Desembargadora Marlene T. F. Suguimatsu- Diretora

    Desembargadora Ana Carolina Zaina - Vice-Diretora

    Juiz Paulo H. Kretzschmar e Conti Coordenador

    Juiz Eduardo Millo Baracat - Vice-Coordenador

    Desembargador Arion Mazurkevic

    Desembargadora Nair Maria Ramos Gubert

    Juiz Cssio Colombo Filho

    Juza Valria Rodrigues Franco da Rocha

    Juiz Lourival Baro Marques Filho

    Juiz Rafael Gustavo Palumbo

    COMISSO DE PUBLICAES

    Desembargora Marlene T. F. Suguimatsu-Diretora

    Desembargadora Nair Maria Ramos GubertJuiz Cssio Colombo Filho

    GRUPO DE TRABALHO E PESQUISADesembargador Luiz Eduardo Gunther - OrientadorAdriana Cavalcante de Souza SchioAnglica Maria Juste CamargoEloina Ferreira BaltazarJoanna Vitria CrippaJuliana Cristina Busnardo de ArajoLarissa Renata KlossMaria da Glria Malta Rodrigues Neiva de LimaSimone Aparecida Barbosa MastrantonioWillians Franklin Lira dos Santos

    COLABORADORESSecretaria Geral da PresidnciaServio de Biblioteca e JurisprudnciaAssessoria da Direo GeralAssessoria de Comunicao SocialAssessoria de Uniformizao de Jurisprudncia

    FOTOGRAFIAAssessoria de Comunicao e acervos dospesquisadores

    APOIO PESQUISA E REVISOMaria ngela de Novaes MarquesMrcia Bryzynski

    Diagramao e Capa

    Patrcia Eliza Dvorak

    Acrdos, Sentenas, Ementas, Artigos e Informaes.Edio temtica: Dano ExistencialPeriodicidade MensalAno II 2013 n. 22

    Envie sua contribuio (sentenas, acrdos ouartigos) para o e-mail [email protected]

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    Nossa capa Chegamos ao nmero 22 da nossa Revista Eletrnica, agora tratando do DanoExistencial nas Relaes de Trabalho.

    Sempre temos ressaltado os nmeros de acessos que a Revista recebe, mostrando

    que os leitores aprovam, de alguma maneira, o trabalho realizado.

    Trs palavras podem resumir a importncia atribuda ao peridico: ser eletrnico,

    ser temtico, ser mensal. Parece que esse trio valoriza os textos, a doutrina, a jurisprudncia,

    as palestras, as resenhas e as sinopses que divulgamos.

    Um aspecto esquecido at agora, pelo menos em matria de explicao ao leitor,

    a capa, que procura traduzir uma sntese, por imagem, do contedo da Revista. O que,

    convenhamos, nem sempre fcil. Afinal a Revista jurdica, e os temas de Direito,

    normalmente, so muito abstratos, tericos, dificultando a transformao em imagem.Melhor dizendo, em uma imagem. Excetuando-se a Revista sobre os Grupos Vulnerveis e

    a sobre o ndice das Revistas em geral, as demais apresentam apenas uma imagem na capa.

    Explica-se ao leitor: em relao a edio da Revista anterior, tivemos dificuldades em

    elaborar uma capa. Como faz-lo de forma a transmitir ao leitor a ideia sobre o Dano Moral?

    Acabamos por optar pela foto de duas mulheres, sentadas em um banco, uma parecendo

    consolar a outra. Talvez pudessem existir imagens melhores para resumir o Dano Moral,

    mas aquela que representou a Revista foi a que melhor nos ocorreu.

    Pois bem. Estamos, neste nmero, s voltas com o Dano Existencial. Se a capa

    anterior foi difcil de fazer, imagine-se esta agora.

    Viajamos ento para as pinturas, os quadros clssicos, que pudessem dar uma ideia

    ampla do Dano Existencial. E acreditamos t-la encontrado em A Balsa da Medusa, que

    ilustra esta edio.

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    Vamos explicar.

    A Balsa da Medusa

    (realizada nos anos de

    1818-1819) a obra-

    prima do francs Jean-

    Louis Andr Todore

    Gricault (1791-1824),

    pintor e arquelogo.

    Essa obra de arte

    e sua reproduo

    encontram-se em

    domnio pblico nomundo inteiro.

    Mas afinal, o que representa essa pintura? rata-se de uma obra de arte inspirada no

    naufrgio da fragata Medusa, que ia da Frana para o Senegal, no ano de 1816. Cerca de 400

    pessoas estavam a bordo. Segundo consta dos relatos histricos, aps o naufrgio 147 pessoas

    teriam ficado abandonadas em uma jangada (denominada a balsa da Medusa), pois no havia

    lugares suficientes nos botes salva-vidas. A balsa foi construda de forma precria com tbuas,

    cordas e partes do mastro do navio, ficando quinze dias deriva, sem comida nem gua. Os dez

    sobreviventes foram resgatados por um navio mercante chamado Argus.

    O momento escolhido por Gricault para contar a tragdia foi o de quando os nufragos

    avistaram o Argus, que aparece ao longe mas desaparece sem v-los. Horas mais tarde que

    finalmente o navio os avista e acontece o resgate.

    Com base nesses fatos o artista Todore Gricault executou a obra durante dezoito meses,

    valendo-se de um estudo que fez sobre os detalhes da tragdia.

    E o que isso tem a ver com o Dano Existencial? udo, com certeza. O naufrgio, o perodo

    sem rumo na balsa e a sobrevivncia de apenas algumas pessoas resultou na interrupo de

    diversos projetos de vida. A linguagem corporal das pessoas que estavam na balsa, daqueles que

    sobreviveram, tudo leva a uma pergunta: o que aconteceu depois com os sobreviventes? Com os

    familiares daqueles que morreram?

    Nesse momento podemos falar do Dano Existencial, que, segundo Flaviano Rampazzo

    Soares, abrange todo acontecimento que incide, negativamente, sobre o complexo de afazeres da

    pessoa, sendo suscetvel de repercutir-se, de maneira consistente temporria ou permanentemente

    sobre a sua existncia (Responsabilidade Civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do

    Advogado, 2009. p. 44).

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    O capito e os tripulantes que estavam no bote salva-vidas, em certo momento, cortaram

    a corda que os ligavam balsa com as 147 pessoas. As historias de fome, loucura e canibalismo

    num mar tempestuoso relatadas ao autor o auxiliaram na elaborao dessa pintura.

    O importante da historia que o navio da Marinha Real transportava colonos franceses

    para o Senegal, e que encalhou em um banco de areia por incompetncia do capito, nomeado

    por motivos polticos (e que mais tarde teve que responder por seus atos perante um tribunal

    marcial).

    No estaria a um caso de Dano Existencial coletivo decorrente de naufrgio?

    A indignao pelos acontecimentos levou o artista obra de arte. E a ns, no seu caminho,

    mostrou-se a possibilidade de, com o apoio do artista, tentar mostrar como uma tragdia pode

    interromper no s o projeto de vida pessoal, mas tambm vida de relao, quanto ao conjuntode relaes interpessoais, nos mais diversos ambientes e contextos. (FROTA, Hidemberg Alves

    da. Noes fundamentais sobre o dano existencial. Jus Navigandi. Teresina, ano 16, n 3046,

    3.nov.2011. Disponvel em: < http://jus.com.br/artigos/20349/nocoes-fundamentais-sobre-o-

    dano-existencial >. Acesso em: 12 set. 2013.

    Convenceram-se os integrantes do grupo de pesquisa que constri a Revista Eletrnica

    que A Balsa da Medusa caracteriza, de forma emblemtica, a ocorrncia do Dano Existencial.

    E ao leitor, o que parece? Gostaramos da sua opinio tambm. (clique no link ao lado do nmerode acessos em e deixe seu registro )

    Estamos nesse momento atingindo a marca de 412.900 acessos.

    Muito Obrigado ao Leitor por nos prestigiar!

    Curitiba, 12 de setembro de 2013.

    LUIZ EDUARDO GUNTHERCOORDENADOR DA REVISTA ELETRNICA

    Em tempo: querendo receber automaticamente nossas prximas Revistas, inscreva-se abrindo a aba

    direita superior, acione o mouse no clique aqui, preenchendo, aps, seu nome e fornecendo seu e-mail.

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    Sumrio1. Apresentao...................................................................................................................................62. Artigos

    2.1 O Dano Existencial no Direito do Trabalho - Ilse Marcelina Bernardi

    Lora......................................................................................................................................................8

    2.2 O Dano Existencial e o Direito do Trabalho - Jorge Cavalcanti Boucinhas

    Filho e Rbia Zanotelli de Alvarenga ........................................................................................24

    2.3 Dano existencial e a jornada de trabalho - Lorena de Mello Rezende

    Colnago ...........................................................................................................................................50

    2.4 Noes fundamentais sobre o Dano Existencial - Hidemberg Alves da

    Frota ..................................................................................................................................................60

    3. Acrdos

    3.1 Acrdo da 3 Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9 Regio

    publicado no DJ 11/09/2009, Relatora a Desembargadora Ftima T. L. Ledra

    Machado ...............................................................................................................................................77

    3.2 Acrdo da 1 Turma do Tribunal Superior do Trabalho publicado no DEJT

    28/06/2013, Relator o Ministro Hugo Carlos Scheuermann ........................................102

    3.3 Acrdo da 4 Turma do Tribunal Superior do Trabalho publicado no

    DEJT 10/08/2012, Relator o Ministro Vieira de Mello Filho .......................................111

    3.4 Acrdo da 6 Turma do Tribunal Superior do Trabalho publicado no

    DEJT 21/09/2012, Relatora a Ministra Ktia Magalhes Arruda ..............................122

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    4. Ementas

    4.1 DANO MORAL. DANO EXISTENCIAL. SUPRESSO DE DIREITOSTRABALHISTAS. NO CONCESSO DE FRIAS. DURANTE TODO O PERODOLABORAL. DEZ ANOS. DIREITO DA PERSONALIDADE. VIOLAO ..........................128

    5. Sentenas

    5.1 Sentena da 4 Vara do Trabalho de Curitiba - PR, publicada no DJ27/06/2013, Juiz Brulio Gabriel Gusmo .........................................................................130

    5.2 Sentena da 19 Vara do Trabalho de Curitiba - Pr, publicada em13/05/2013, Juza Tatiane Raquel Bastos Buquera........................................................137

    6. Direito Comparado

    6.1 Acrdo do Tribunal da Relao do Porto, Relator o Magistrado Ferreirada Costa, datado de 08/02/2010 ....................................................................................................139

    6.2 Acrdo do Tribunal da Relao do Porto, Relator o Magistrado Ferreirada Costa, datado de 17/06/2013 ....................................................................................................166

    7. Sinopses

    7.1 Responsabilidade civil por dano existencial. Flaviana Rampazzo

    Soares. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009 ...........................202

    8. Smulas do TST...............................................................................................................204

    9. Bibliografa .........................................................................................................................205

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    ApresentaoA vida imita a arte ou a arte imita a vida?

    Oscar Wilde, ao responder essa intrincada questo, dizia que a vida imita a

    arte muito mais do que a arte imita a vida. No entanto, tal questo aberta e ter

    uma resposta diversa a partir de cada sujeito e suas circunstncias.

    No entanto, verdade que h determinadas liturgias da arte que podem ser,

    ao menos, comparadas ao que ocorre na vida real.

    Assim, se para o intrprete de Hamlet ou Otelo, o fechar das cortinas do

    ltimo ato representa um suspiro do dever cumprido com amor, o que dizer do

    palco da vida, onde cada um de ns, dentro da nossa histria cumpre o seu papel

    como ator principal?

    Nesse contexto, feliz a pessoa que ao final da vida, ao cerrar os olhos,

    pode afirmar: tudo est consumado! Tal expresso traduz a magnitude do dever

    cumprido, do projeto de vida realizado, seria o trmino feliz de uma histria da vida

    real. De modo contrrio, tal sujeito, poderia dizer, ou pensar: tudo est consumido!Essa situao, apesar da semelhana na escrita, traduz algo diametralmente oposto:

    prepondera no lugar da felicidade o sentimento de angstia, do tempo acabado e

    do projeto de vida inacabado.

    Mas, e se esse projeto de vida inacabado tivera como causa ou concausa

    circunstncias alheias ao livre arbtrio do sujeito? Se esse esvaziamento da

    autorrealizao tivera origem em atos e omisses de outros sujeitos? E, se a resposta

    for afirmativa, quais os instrumentos jurdicos que o Direito possui para conceder

    uma resposta adequada aos danos e tambm iminncia de danos?

    Essas questes interessam ao Direito e vm sendo estudadas a partir do que

    a doutrina nominou de dano existencial, que se subdivide em ofensa ao projeto

    de vida e no prejuzo vida de relao. Nesta Revista Eletrnica, Hidemberg Alves

    da Frota afirma no artigo Noes fundamentais sobre o dano existencial, que no

    h projeto de vida sem a vida de relao e, na coexistncia dos seres humanos, a

    solidariedade dever estar presente para que todos alcancem uma vida digna, seja

    no mbito familiar, social e no trabalho.

    Dentro da caracterstica gregria da natureza humana, a Dra. Lorena de

    Mello Colnago brinda-nos com o excelente artigo Dano existencial e a jornada de

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    trabalho que aborda de forma muito didtica a relao entre a dignidade do homem

    com o tempo potencial em convvio em sociedade e com o tempo despendido na

    jornada de trabalho e tambm a imprescindvel questo do meio ambiente do trabalho

    e a sustentabilidade humana, citando valioso precedente judicial do Egrgio Tribunal

    Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul.

    De forma sempre brilhante, a Dra. Ilse Marcelina Bernardi Lora, aps apresentar

    o necessrio dilogo entre direitos fundamentais, dignidade humana e relao de

    trabalho, traz um panorama histrico dos danos existenciais, bem como a sua aplicao

    no mbito do Direito do Trabalho.

    Os professores Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho e Rbia Zanotelli de Alvarenga

    aps tecerem consideraes pontuais a respeito do dano existencial no Direito do

    Trabalho, traam distines importantes em relao perda de uma chance e enfrentamde forma pontual a difcil questo da quantificao da indenizao por dano existencial.

    Por fim, publicada na presente Revista Eletrnica uma tima sinopse da obra

    Responsabilidade civil por dano existencial de Flaviana Rampazzo Soares, por Larissa

    Kloss Neto.

    No desfecho constam decises paradigmticas proferidas no Tribunal da Relao

    do Porto (TRP) a respeito do dano existencial, bem como Acrdos do Colendo

    Tribunal Superior do Trabalho, de lavra do Exmo. Ministro Luiz Philippe Vieira de

    Mello Filho, Exma. Ministra Ktia Magalhes Arruda e Exmo. Ministro Hugo Carlos

    Scheuermann que abordam o tema.

    Do nosso Egrgio Nono Regional consta Acrdo de lavra da Exma.

    Desembargadora Ftima Loro Ledra e duas sentenas proferidas pelos Exmos.

    Magistrados Brulio Gusmo e Tatiane Raquel Bastos Buquera.

    A todos desejo que essa edio da Revista Eletrnica possa servir de ponto de

    partida para importantes reflexes a respeito do direito fundamental ao desenvolvimento

    pleno das capacidades humanas. E que possamos concretizar o respeito autorrealizao

    daqueles que esto prximos de ns, seja na famlia, no trabalho, na vida social e commuito amor em relao s pessoas desconhecidas, que esto ao nosso lado nas ruas, dia

    aps dia, e ainda assim a sociedade insiste em torn-las invisveis.

    Boa leitura.

    ANA CAROLINA ZAINADesembargadora Vice-Diretora da Escola Judicial

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    Revista Eletrnica

    Setembro de 201310Dano

    Existencial

    1. INTRODUO

    Oriunda do direito italiano, a teoria acerca do dano existencial

    como espcie dos danos imateriais, distinto do dano moral, e apto a

    fundamentar pleito ressarcitrio, vem despertando gradativamente

    o interesse da doutrina e da jurisprudncia, em especial diante de

    seus desdobramentos no mbito do Poder Judicirio, instado a

    pronunciar-se sobre a matria, tanto na esfera cvel como laboral.

    A jurisprudncia nacional j registra casos de acolhimento de

    pedido de indenizao fundado em prejuzo vida do trabalhador

    fora do ambiente laboral, em razo de condutas ilcitas praticadas

    pelo empregador, citando-se a ttulo de exemplo julgado proferido

    pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4 Regio, em maro de 2012(Processo 0000105-14.2011.5.04.0241).

    A relevncia do tema e suas provveis implicaes no mbito

    laboral e, por consequncia, a necessidade de exame por parte do

    Judicirio Trabalhista, diante do previsvel incremento das demandas

    envolvendo esta espcie de dano, motivaram o presente estudo.

    2. EVOLUO HISTRICA DO TRABALHO HUMANO

    O trabalho foi concebido, originariamente, como castigo e

    dor. A doutrina menciona que a palavra advm de tripaliare, torturar

    com tripalium, mquina de trs pontas. Para outra vertente, a palavra

    tripalium significa cavalete de trs paus, utilizado para conter os

    cavalos no momento de lhes aplicar a ferradura. Desta noo surgiu

    o termo trapaliare, que designa toda e qualquer atividade, inclusive

    a intelectual.1

    1FERRARI, Irany. Histria do Trabalho. In: NASCIMENTO, Amauri Mascaro. FERRARY,

    Irani. SILVA FILHO, Ives Gandra Martins da (org.). Histria do Trabalho, do Direito doTrabalho e da Justia do Trabalho. 3 edio. So Paulo: LTR, 2011, p.13-14.

    ArtigosO Dano Existencial no Direito do Trabalho

    Ilse Marcelina BernardiLora Juza Titular da Varado Trabalho de Francisco

    Beltro, Professora,Especialista em Tendnciasdo Direito Processual pelaUniversidade Estadualdo Oeste do Paran -UNIOESTE; - Especialistaem Tutela dos InteressesDifusos, Coletivos eIndividuais Homogneospela Universidade daAmaznia - UNAMA;-

    Especialista em DireitoConstitucional para omercado de trabalho pelaUniversidade do Sul deSanta Catarina - UNISUL.

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    DanoExistencial

    Independentemente do sentido que lhe atribudo, certo

    que em torno do trabalho as pessoas estruturam suas vidas, do que

    decorre a relevncia do estudo acerca de todos os aspectos sociais,

    culturais e, especialmente, jurdicos nele envolvidos.

    O trabalho passou por vrios estgios de evoluo.

    Inicialmente, sua principal funo era obter alimentos. Na sequncia,

    o homem, para prevenir ataques de animais ferozes, passou a

    fabricar instrumentos de defesa. Nas lutas com outras tribos, os

    vencedores matavam os adversrios feridos. Com o passar do

    tempo, concluram que, em lugar de matar, seria mais adequado

    escravizar os prisioneiros e submet-los ao trabalho. Os excedentes

    passaram a ser vendidos, trocados ou alugados. A histria registra

    que os primeiros assalariados foram os escravos libertados por seus

    senhores e que, para sobreviver, alugavam seus servios a terceirosmediante pagamento.

    escravido seguiu-se a servido, amplamente utilizada na

    sociedade feudal da Idade Mdia e vista como condio intermediria

    entre a escravido e a liberdade, na medida em que aos servos eram

    assegurados alguns direitos, a exemplo da herana de animais e

    objetos pessoais. Paralelamente servido, praticada no campo,

    desenvolveram-se no meio urbano as corporaes, centradas

    no ofcio e na profisso. Os denominados mestres da profissomantinham sob sua direo os aprendizes e companheiros, a quem

    eram assegurados salrio, assistncia mdica e monoplio do ofcio.

    A inveno da mquina de fiar e a vapor provocou profunda

    mudana nos mtodos de produo, com reflexos nas relaes

    entre patres e trabalhadores. Inexistiam leis regulamentadoras do

    trabalho, o que propiciava ilimitada explorao dos operrios.

    A Revoluo Francesa (1789), com seus ideais de liberdade,igualdade e fraternidade, deu origem ao liberalismo, afastando a

    interveno do Estado da economia e conferindo-lhe a condio de

    mero rbitro das disputas sociais, o que prejudicou sensivelmente o

    desenvolvimento do direito do trabalho.

    A intensa explorao dos trabalhadores deu origem ao

    movimento sindical, iniciando na Inglaterra, a partir de pequenos

    clubes que tinham em vista garantir direitos trabalhistas. A reunio dos

    trabalhadores assegurou-lhes mais fora de negociao, passando

    ento o direito do trabalho a ganhar contornos. Juntamente com o

    "A histria registra

    que os primeiros assalariados

    foram os escravos libertados

    por seus senhores e que, para

    sobreviver, alugavam seus

    servios a terceiros mediante

    pagamento."

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    DanoExistencial

    incremento dos sindicatos, passou a intensificar-se a interveno do

    Estado na economia e nas relaes entre os particulares, inclusive

    nos contratos de trabalho, o que propiciou o efetivo nascimento do

    direito do trabalho.

    A Constituio Mexicana de 1917 apontada como marco

    inaugural do constitucionalismo social, que representa a incluso

    de direitos trabalhistas e sociais na Constituio dos pases. A

    Constituio alem de 1919 contemplou importante conjunto de

    direitos trabalhistas, influenciando outras constituies europeias.

    Tinha incio, assim, a institucionalizao do Direito do Trabalho, que

    tem como um de seus pontos relevantes a criao da Organizao

    Internacional do Trabalho (1919) e que atingiu seu pice nas dcadas

    seguintes Segunda Guerra Mundial, com o aprofundamento doprocesso de constitucionalizao dos direitos. Criava-se dessa forma

    o chamado Estado de Bem-Estar Social.

    Entretanto, no final do sculo XX iniciou-se, nos pases

    desenvolvidos, aps a crise do petrleo de 1973/1974, processo

    de reorganizao do capital, com intensificao da concorrncia

    interempresarial, aumento das taxas de desemprego e agravamento

    do dficit fiscal do Estado, inibindo seu papel de protagonista no

    incremento de polticas sociais. A revoluo tecnolgica agravou oquadro, trazendo, dentre outras consequncias, a terciarizao da

    atividade empresarial, a precarizao das relaes de trabalho, o

    desemprego estrutural e a criao de outras formas de prestao do

    labor, de que so exemplos o teletrabalho e o escritrio em casa.

    O Direito do Trabalho, em consequncia do novo cenrio

    social e econmico, aliado ao fenmeno da globalizao, sofreu

    profundas transformaes, com diminuio das normas de origem

    estatal e defesa enftica da flexibilizao e da desregulamentao.

    O Estado buscou afastar-se das relaes laborais, cedendo espao

    aos sindicatos e conferindo maior prestgio negociao coletiva.

    Entretanto, os sindicatos, tambm eles enfraquecidos, foram

    paulatinamente perdendo seus poderes de presso e barganha. Neste

    cenrio, emergiram os direitos fundamentais como fator decisivo

    para conter o avano dos poderes empresariais e restabelecer o

    equilbrio entre tais poderes e os direitos dos trabalhadores. Arion

    Sayo Romita assinala que A funo dos direitos fundamentais, em

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    DanoExistencial

    tal contexto, cresce de importncia. O ncleo duro representado

    pela gama de direitos denominados fundamentais resiste ao embate

    dos novos acontecimentos de ordem econmica para reafirmar o

    imprio da necessidade de respeito dignidade da pessoa humana.2

    3. DIREITOS FUNDAMENTAIS, DIGNIDADE HUMANA E RELAESDE TRABALHO

    Para Arion Sayo Romita, pode-se definir direitos

    fundamentais como os que, em dado momento histrico, fundados

    no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, asseguram a

    cada homem as garantias de liberdade, igualdade, solidariedade,

    cidadania e justia.3

    Os direitos fundamentais e o princpio da dignidade humana

    entrelaam-se fortemente. O ltimo apontado como elemento

    fundante, informador e unificador dos direitos fundamentais e uma

    das bases do Estado de Direito Democrtico, conforme previsto no

    inciso III, do art. 1, da Constituio Federal, servindo tambm como

    elemento orientador do processo de interpretao, integrao e

    aplicao das normas constitucionais e infraconstitucionais.

    A doutrina ressalta:

    Quando a Constituio Federal elencou no seu art.

    1, III, a dignidade da pessoa humana como um dos

    princpios fundamentais da Repblica, consagrou a

    obrigatoriedade da proteo mxima pessoa por

    meio de um sistema jurdico-positivo formado por

    direitos fundamentais e da personalidade humana,

    garantindo assim o respeito absoluto ao indivduo,

    propiciando-lhe uma existncia plenamente digna

    e protegida de qualquer espcie de ofensa, querpraticada pelo particular, como pelo Estado.4

    No mbito das relaes trabalhistas a simbiose entre direitos

    fundamentais e princpio da dignidade ganha destaque e relevncia.

    2 ROMITA, Arion Sayo. Direitos Fundamentais nas Relaes de Trabalho. So Paulo: LTR,2005, p. 393.

    3 ROMITA, Arion Sayo. Op. Cit., p. 36.

    4 ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial A tutela da dignidade da pessoa

    humana. Disponvel em www.mp.sp.gov.br/portal/page, acesso em 19.12.2012.

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    O respeito aos atributos do trabalhador, atendida sua condio de

    pessoa humana, elemento fundamental para que no seja visto

    apenas como mera pea da engrenagem e passe a ser reconhecido

    como homem, valorizando-se sua integridade fsica, psquica e

    moral. Para Rodrigo Goldschmidt, o direito fundamental ao trabalho

    digno compreende o complexo de normas jurdicas que visem no

    somente a garantir o posto de trabalho como fonte de rendimentos

    e de sustento, mas tambm a fomentar condies dignas de labor,

    preservando a higidez fsica e mental do trabalhador.5

    Os direitos fundamentais foram concebidos originariamente

    como direitos de defesa, para proteger o cidado de interferncias

    indevidas do Estado. Atendida essa dimenso, ao Poder Pblico era

    atribuda competncia negativa, o que determinava a obrigao

    de respeitar o ncleo bsico de liberdades do cidado. Trata-se da

    chamada eficcia vertical, necessria, ante a manifesta desigualdade

    do indivduo perante o Estado, a quem so atribudos poderes de

    autoridade. Para Jos Joaquim Gomes Canotilho, a funo de direitos

    de defesa dos cidados, exercida pelos direitos fundamentais,

    compreende dupla perspectiva: 1) no plano jurdico-objetivo,

    representam normas de competncia negativa para os poderes

    pblicos, proibindo sua interferncia na esfera jurdica individual;

    2) no plano jurdico-subjetivo, significam o poder de exercer

    positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigirabstenes do Estado, a fim de evitar aes lesivas por parte deste

    (liberdade negativa).6

    Entretanto, com o evoluir das relaes sociais e o incremento

    de suas necessidades, observou-se a insuficincia desse mero

    dever de absteno. Surgiu ento a chamada vinculao positiva

    dos poderes pblicos, que pressupe a ao do Estado, que deve

    adotar polticas e aes aptas a fomentar a preservao dos direitos

    e garantias dos indivduos, concretizando assim o iderio do EstadoSocial.

    Historicamente, conferiu-se especial proeminncia

    proteo dos direitos fundamentais em face do Estado, em razo

    5 GOLDSCHMIDT, Rodrigo. Sade mental do trabalhador: direito fundamental social,reparao civil e aes afirmativas da dignidade humana como forma de promoo. .In: BAEZ, Narciso Leandro Xavier; LEAL, Rogrio Gesta; MEZZAROBA, Orides. (coord.)Dimenses Materiais e Eficaciais dos Direitos Fundamentais. So Paulo: Conceito Editorial,2010, p.209.

    6 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 3 ed.Almedina: 1999, p. 383.

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    de que estes surgiram e afirmaram-se justamente como reao ao

    poder das monarquias absolutistas.

    Entretanto, em razo da manifesta superao do tradicional

    conceito de que direito constitucional e direito privado ocupavam

    posies estanques, divorciadas entre si, e diante da progressiva

    assimilao da fora normativa da Constituio, fez-se necessrio

    refletir sobre o problema da aplicao dos direitos fundamentais

    nas relaes entre particulares. Segundo Von Mnch, Uma vez

    desmoronado o dique que, segundo a doutrina precedente, separava

    o direito constitucional do direito privado, os direitos fundamentais

    se precipitaram como uma cascata no mar do Direito privado.7.

    Segundo a doutrina tradicional, dominante no sculo

    XIX, os direitos fundamentais tinham por objetivo proteger o

    indivduo contra eventuais aes do Estado e, como tal, no

    apresentavam relevncia nas relaes entre particulares. Entretanto,

    o reconhecimento de que os direitos fundamentais no se limitam

    ao direito de defesa, para conter o poder estatal, mas tambm

    compreendem postulados de proteo, conferiu supedneo

    teoria que defende sua aplicao no mbito do direito privado.

    Consoante afirma Konrad Hesse a liberdade humana pode resultar

    menoscabada ou ameaada no s pelo Estado, mas tambm no

    mbito de relaes jurdicas privadas, razo por que s possvelgaranti-la eficazmente considerando-a como um todo unitrio8

    Com efeito, o desenvolvimento da sociedade pulverizou o

    poder, antes concentrado nas mos do Estado. As diversas formas de

    organizao surgidas na rbita privada passaram a assumir relevantes

    funes, desenvolvendo-se tambm entre elas o fenmeno do

    poder, que deixou de ser atributo exclusivo do Estado. Existe na

    sociedade contempornea, marcada que pela complexidade,

    relaes jurdicas entre particulares em que no impera o dogmada igualdade, verificando-se amide verticalidade, desigualdade e

    sujeio, com manifesta superioridade de uma das partes sobre as

    7 MNCH, Ingo von. Drittwirkung de derechos fundamentales em alemania. ApudPEREIRA, Jane Reis Gonalves. Apontamentos sobre a Aplicao das Normas de DireitoFundamental nas Relaes Jurdicas entre Particulares. In: BARROSO, Lus Roberto(organizador). A nova interpretao constitucional.Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 121.

    8 HESSE, Konrad. Significado de los derechos fundamentales. Apud PEREIRA, Jane ReisGonalves. Apontamentos sobre a Aplicao das Normas de Direito Fundamental nasRelaes Jurdicas entre Particulares. In: BARROSO, Lus Roberto (organizador). A nova

    interpretao constitucional.Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 138.

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    outras, o justificar a adoo da teoria da chamada eficcia horizontal

    dos direitos fundamentais.

    Ao explicar a tese que advoga a aplicao dos direitos

    fundamentais nas relaes jurdicas entre particulares, Jane

    Reis Gonalves Pereira afirma que esta toma em considerao,

    principalmente, a dimenso funcional dos direitos fundamentais.

    Quando se examina os direitos fundamentais a partir de sua

    finalidade que , precipuamente, garantir nveis mximos de

    autonomia e dignidade aos indivduos - , mostra-se razovel

    defender sua aplicao em todas as hipteses onde possa haver

    comprometimento dessa esfera de autogoverno. Para esse efeito,

    irrelevante que a reduo do mbito da autonomia decorra de ato

    de um poder privado ou de um poder pblico. Se uma das partes

    encontra-se em situao de sujeio, seu poder de autodeterminao

    resta aniquilado, no havendo como cogitar-se de aplicao do

    princpio da liberdade.9

    A experincia demonstra a pertinncia da observao. O

    mbito laboral, em razo de suas particularidades, em especial

    a subordinao jurdica do empregado, propcio chamada

    horizontalizao dos direitos fundamentais, ou seja, aplicao

    desses direitos a relaes entre particulares. Como consequncia

    imediata da celebrao do contrato de trabalho, surge para o

    empregador os poderes de organizao, fiscalizao e disciplina do

    trabalho, que encontram fundamento no art. 2 da Consolidao

    das Leis do Trabalho, segundo o qual empregador a empresa,

    individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade

    econmica, admite, assalaria e dirige a prestao pessoal de

    servios.(grifos acrescidos). Consequncia do poder diretivo

    assegurado ao empregador a sujeio do empregado, que assume

    dependncia hierrquica perante o empregador. H, portanto,

    manifesta assimetria de poder, circunstncia que pode fomentar

    a exacerbao das faculdades prprias dos poderes de direo e

    disciplinar enfeixados nas mos do empregador, afetando, dentre

    outros, os direitos da personalidade do trabalhador.

    9 PEREIRA, Jane Reis Gonalves.Apontamentos sobre a Aplicao das Normas de DireitoFundamental nas Relaes Jurdicas entre Particulares. In: BARROSO, Lus Roberto

    (organizador). A nova interpretao constitucional.Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 148-149.

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    4. DIREITOS DA PERSONALIDADE

    A doutrina assinala que, embora o reconhecimento dos

    direitos da personalidade, como categoria de direito subjetivo,

    seja relativamente recente, sua tutela jurdica j existia na

    Antiguidade, com a punio de ofensas fsicas e morais pessoa.

    A efetiva construo de sua dogmtica, entretanto, somente foi

    possvel no final do sculo XX, em razo do redimensionamento

    da noo de respeito dignidade da pessoa humana (art. 1, III,

    da CF/88). A importncia desses direitos e a posio privilegiada

    que vem ocupando na Lei Maior so to grandes que sua ofensa

    constitui elemento caracterizador de dano moral e patrimonial

    indenizvel, provocando uma revoluo na proteo jurdica pelo

    desenvolvimento de aes de responsabilidade civil e criminal: [...].10

    Sobre o conceito dos direitos da personalidade, afirma adoutrina:

    Conceituam-se os direitos da personalidade como

    aqueles que tm por objeto os atributos fsicos,

    psquicos e morais da pessoa em si e em suas

    projees sociais.

    A idia a nortear a disciplina dos direitos da

    personalidade a de uma esfera extrapatrimonial

    do indivduo, em que o sujeito tem

    reconhecidamente tutelada pela ordem jurdica

    uma srie indeterminada de valores no redutveis

    pecuniariamente, como a vida, a integridade fsica,

    a intimidade, a honra, entre outros.11

    Os direitos da personalidade representam consequncia do

    reconhecimento da dignidade humana. No ordenamento jurdico

    brasileiro, sua proteo tem base constitucional, como se observa,

    exemplificativamente, do teor do art. 5, da Carta Magna, e tambmdo art. 6, que assegura, dentre outros, o direito ao trabalho. Tais

    direitos compreendem ncleo mnimo assegurador da dignidade

    humana, o que alcana o trabalhador. A intangibilidade da dignidade

    do ser humano e o disposto nos arts. 12, 186 e 927 do Cdigo Civil

    legitimam a reparao de danos causados por ao ou omisso que

    implique violao dos direitos da personalidade.

    10 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 19 ed. 1 v. So Paulo: Saraiva,

    2002, p.118.

    11GAGLIANO, Pablo Stoleze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil.Parte Geral.V. I. So Paulo: Saraiva, 2002, p. 144.

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    Flaviana Rampazzo Soares assevera:

    So as condutas que afetam os direitos da personalidade as

    que mais causam danos de natureza extrapatrimonial, pois afetam o

    equilbrio da pessoa, atingindo a sua essncia e, em ltima anlise, a

    sua dignidade, tornando conveniente a atuao da responsabilidade

    civil para cessar a desarmonia ocasionada pelo ofensor.

    Os interesses ligados existncia da pessoa esto

    intimamente relacionados aos direitos fundamentais e,

    consequentemente, aos direitos da personalidade. Da ampla tutela

    dos mesmos, resulta a valorizao de todas as atividades que a pessoa

    realiza ou pode realizar, pois tais atividades so capazes de fazer com

    o que o indivduo atinja a felicidade, exercendo, plenamente, todas

    as suas faculdades fsicas e psquicas, e a felicidade , em ltima

    anlise, a razo de ser da existncia humana.12

    5. DANOS MATERIAIS E IMATERIAIS

    A responsabilidade civil inclua, tradicionalmente, apenas

    os danos materiais, que alcanavam os danos emergentes e

    os lucros cessantes. No Brasil, at o advento da Constituio

    Federal de 1988, a indenizao por danos extrapatrimonais era

    reconhecida em carter excepcional. A admisso da reparabilidadedos danos extrapatrimoniais somente passou a existir, de forma

    ampla, a partir da atual Carta Magna, mas sob a denominao de

    dano moral. No contexto nacional, a exemplo do que se verifica

    no direito comparado, historicamente doutrina e jurisprudncia

    classificaram o dano injusto indenizvel em dano patrimonial

    aquele que atinge diretamente o patrimnio suscetvel de valorao

    econmica imediata e em dano moral aquele que causa abalo

    pisolgico, emocional, aflio, sensao doloroso ou angstia, a que

    foi acrescentado, posteriormente, o dano esttico como terceiracategoria de dano indenizvel.

    Progressivamente, no Brasil e no mundo, cresceu o

    reconhecimento da valorizao do ser humano, considerado como

    um valor em si, o que propiciou maior interesse pela tutela dos

    direitos imateriais, com a ampliao de seu mbito de proteo.

    Passou-se a contemplar no apenas os danos morais propriamente

    12 SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade Civil por Dano Existencial. PortoAlegre: Livraria do Advogado Editora Ltda, 2009, p. 37.

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    ditos, e sim qualquer dano extrapatrimonial de relevo, do ponto de

    vista jurdico, ao desenvolvimento da personalidade, o que inclui,

    dentre outros, o direito integridade fsica, esttica, s atividades

    de convivncia e de relao. O novo paradigma da indenizao

    passou a ser a ampla indenizao dos danos extrapatrimoniais,

    considerados gnero, e dos quais o dano moral espcie.13

    6. O DANO EXISTENCIAL

    Deve-se doutrina italiana a construo de nova moldura

    da responsabilidade civil, incluindo nos danos indenizveis nova

    categoria, denominada dano existencial, fundada nas atividades

    remuneradas ou no da pessoa, relativa aos variados interesses da

    integridade fsica e mental, de que so exemplos as relaes sociais,

    de estudo, de lazer, comprometidas em razo de uma conduta lesiva.

    A nova categoria passou a ser estudada em razo de que, no

    direito italiano, segundo a lei, somente so admitidas duas espcies

    de dano indenizvel praticado contra a pessoa, quais sejam: a) o

    dano patrimonial, fundado no art. 2.043 do Cdigo Civil; e b) o dano

    extrapatrimonial, previsto no art. 2.059 do mesmo Cdigo, com a

    ressalva, entretanto, de que a indenizao somente devida nos

    casos previstos em lei ou se o dano for causado por uma conduta

    criminosa.

    A falta de previso em lei para a reparao do dano imaterial

    decorrente de ato ilcito civil levou a doutrina italiana, no incio dos

    anos 60, a classificar nova espcie de dano injusto causado pessoa,

    que foi denominado de dano vida de relao e que consiste na

    ofensa fsica ou psquica a uma pessoa, que obstaculiza, total ou

    parcialmente, usufruir as benesses propiciadas por atividades

    recreativas, fora do mbito laboral, como praticar esportes, frequentar

    clubes e igrejas, fazer turismo, dentre outras. A leso provoca

    intensa interferncia no estado de nimo e, por consequncia, no

    seu relacionamento social e profissional, reduzindo as chances de

    progresso no trabalho, com reflexo patrimonial negativo. Como

    exemplos, a doutrina cita erros mdicos que comprometem a

    higidez fsica e impossibilitam a prtica de esportes.14

    13 SOARES, Flaviana Rampazzo. Op. Cit. P. 40.

    14ALMEIDA NETO, Amaro Alves. Op. Cit. P. 18

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    O reconhecimento do dano vida de relao, que exigia

    repercusso no patrimnio da vtima para gerar indenizao,

    fundamentou os estudos que culminaram na admisso do dano

    existencial, mais amplo que o primeiro, pois enseja indenizao

    independentemente do prejuzo financeiro e representa

    consagrao da tutela da dignidade humana em sua plenitude. O

    dano existencial, ou seja, o dano existncia da pessoa, portanto,

    consiste na violao de qualquer um dos direitos fundamentais

    da pessoa, tutelados pela Constituio Federal, que causa uma

    alterao danosa no modo de ser do indivduo ou nas atividades por

    ele executadas com vistas ao projeto de vida pessoal, prescindindo

    de qualquer repercusso financeira ou econmica que do fato da

    leso possa decorrer.15

    A sentena 500, de 22.07.1999, proferida pela Corte de

    Cassao Italiana, apontada como prova de reconhecimento,

    pelo Judicirio, da nova tendncia doutrinria, na medida em

    que admitiu a pretenso indenizatria fundada to somente na

    injustia do dano e na leso a uma posio constitucionalmente

    garantida. Em um segundo momento, considerado de maior relevo,

    a mesma Corte de Cassao Italiana proferiu a sentena 7.713, de

    07.06.2000, reconhecendo expressamente o dano existencial. Trata-

    se de ao em que o pai foi condenado a pagar indenizao pelodano existencial causado ao filho, em razo da conduta omissiva

    do genitor, que resistiu inflexivelmente ao adimplemento das

    prestaes de alimentos, somente vindo a efetuar o pagamento

    anos depois do nascimento do filho e em razo de determinao

    judicial, conduta que ofendeu o direito do autor de ser tratado com

    a necessria dignidade e comprometeu seu desenvolvimento.

    7. DANO EXISTENCIAL NO DIREITO DO TRABALHO

    Dano existencial, como visto, a leso ao conjunto de

    relaes que propiciam o desenvolvimento normal da personalidade

    humana, alcanando o mbito pessoal e social. uma afetao

    negativa, total ou parcial, permanente ou temporria, seja a uma

    atividade, seja a um conjunto de atividades que a vtima do dano,

    normalmente, tinha como incorporado ao seu cotidiano e que, em

    15ALMEIDA NETO, Amaro Alves. Op. Cit. p.25.

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    razo do efeito lesivo, precisou modificar em sua forma de realizao,

    ou mesmo suprimir de sua rotina [...] Significa, ainda, uma limitao

    prejudicial, qualitativa ou quantitativa, que a pessoa sofre em suas

    atividades cotidianas.16

    O dano existencial distingue-se do dano moral porque no

    se restringe a uma amargura, a uma aflio, caracterizando-se pela

    renncia a uma atividade concreta. O dano moral propriamente

    dito afeta negativamente o nimo da pessoa, estando relacionado

    ao sentimento, ou seja, um sentir, enquanto o dano existencial

    um no mais poder fazer, um dever de mudar a rotina. O dano

    existencial frustra projeto de vida da pessoa, prejudicando seu bem-

    estar e sua felicidade. Destarte, o dano existencial difere do dano

    moral, propriamente dito, porque o primeiro est caracterizado em

    todas as alteraes nocivas na vida cotidiana da vtima em todos os

    seus componentes relacionais (impossibilidade de agir, interagir,

    executar tarefas relacionadas s suas necessidades bsicas, tais como

    cuidar da prpria higiene, da casa, dos familiares, falar, caminhar,

    etc.), enquanto o segundo pertence esfera interior da pessoa.17

    No mbito do Direito do Trabalho, o dano existencial pode

    estar presente na hiptese de assdio moral. Este, sabidamente,

    compromete a sade do trabalhador, que apresenta, segundo as

    pesquisas, desde sintomas fsicos, que incluem dores generalizadas,dentre outros males, at sintomas psquicos importantes,

    com destaque para distrbios do sono, depresso e ideias

    suicidas. O evento, alm de causar prejuzos patrimoniais, pelo

    comprometimento de capacidade laboral, pode ensejar sofrimento,

    angstia, abatimento (dano moral) e tambm prejuzos ao projeto

    de vida, s incumbncias do cotidiano, paz de esprito (dano

    existencial).

    O trabalhador vtima de LER/DORT tambm pode padecerde dano existencial. As expresses "Leses por Esforos Repetitivos

    (LER)" e "Distrbios Osteo musculares Relacionados ao Trabalho

    (DORT)" abrangem os distrbios ou doenas do sistema msculo-

    esqueltico-ligamentar, que podem ou no estar relacionadas ao

    trabalho. As Leses por Esforos Repetitivos (LER) contemplam

    problemas distintos, de causas diversas. Quando alguma destas

    enfermidades tiver como fator desencadeante os movimentos

    16SOARES, Flaviana Rampazzo. Ol. Cit. p.44.

    17 SOARES, Flaviana Rampazzo. Ol. Cit. p.99.

    "O dano existencial

    distingue-se do dano moral

    porque no se restringe a uma

    amargura, a uma aflio,

    caracterizando-se pela re-

    nncia a uma atividade

    concreta."

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    repetitivos merecer o enquadramento como LER. Se os esforos

    repetitivos em questo forem executados no exerccio da atividade

    laboral, a LER ento se equipar DORT, em razo do nexo causal

    (ocupacional), caracterizando-se como doena ocupacional (art.

    20, 2 da Lei 8.213/91). As leses do sistema msculo-esqueltico

    prejudicam no somente a atividade laboral, mas tambm as

    tarefas do dia a dia, tais como a higienizao pessoal, a execuo de

    instrumentos musicais e outras atividades de lazer, caracterizando-

    se, assim, o dano existencial.

    O fundamento legal da reparao do dano existencial

    encontrado nos arts. 1, III, e 5, V e X, da Constituio Federal,

    que consagram o princpio da ressarcibilidade dos danos

    extrapatrimoniais. O Cdigo Civil tambm empresta amparo

    indenizao, consoante se extrai do disposto nos arts. 12, caput, 186e 927. Tais dispositivos so aplicveis no mbito laboral, em razo

    da previso contida no art. 8, pargrafo nico, da Consolidao

    das Leis do Trabalho, que autoriza a aplicao subsidiria do direito

    comum ao Direito do Trabalho.

    Na esfera judicial, o tema vem encontrando acolhimento,

    conforme se constata, exemplificativamente, de julgado proferido

    pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4 Regio em 14.03.2012, e

    cuja ementa ora se transcreve:

    DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXTRA

    EXCEDENTE DO LIMITE LEGAL DE

    TOLERNCIA. DIREITOS FUNDAMENTAIS.

    O dano existencial uma espcie de dano

    imaterial, mediante o qual, no caso das

    relaes de trabalho, o trabalhador sofre

    danos/limitaes em relao sua vida

    fora do ambiente de trabalho em razo decondutas ilcitas praticadas pelo tomador do

    trabalho. Havendo a prestao habitual de

    trabalho em jornadas extras excedentes do

    limite legal relativo quantidade de horas

    extras, resta configurado dano existncia,

    dada a violao de direitos fundamentais

    do trabalho que integram deciso jurdico-

    objetiva adotada pela Constituio. Do

    princpio fundamental da dignidade da

    pessoa humana decorre o direito ao livre

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    desenvolvimento da personalidade do

    trabalhador, nele integrado o direito ao

    desenvolvimento profissional, o que exige

    condies dignas de trabalho e observncia

    dos direitos fundamentais tambm pelos

    empregadores (eficcia horizontal dos

    direitos fundamentais). Recurso provido.

    (0000105-14.2011.5.04.0241 RO. TRT/4

    Regio. 1 turma. Relator Desembargador

    Jos Felipe Ledur).

    H que considerar, entretanto, no obstante a relevncia

    do tema e a indispensabilidade de emprestar-se concretizao

    ao princpio e valor constitucional da dignidade humana, que

    a matria deve ser enfrentada pelo Judicirio Trabalhista com a

    necessria prudncia, sob pena de banalizao de to importante

    instrumento de tutela, apto, em razo de sua natureza e desde

    que adequadamente interpretado, preservao da normalidade

    do cotidiano do trabalhador. Incumbe, portanto, ao magistrado

    agir com ponderao, considerando todas as circunstncias do

    caso concreto e aquelas previstas de lei, de molde a aferir a real

    corporificao do dano existencial e, achando-se este presente,

    fixar quantia que, concomitantemente, desestimule a reincidncia

    e compense a privao sofrida pelo trabalhador vtima do danoexistencial, sem onerar excessivamente o ofensor e sem enriquecer

    a vtima, atendendo, assim, aos fins da responsabilidade civil.

    8. CONCLUSO

    O trabalho, concebido inicialmente como castigo e dor,

    ocupa posio central no cotidiano das pessoas, que em torno dele

    estruturam suas vidas.

    A evoluo do direito do trabalho foi lenta, mostrando-se

    como marco relevante consolidao e reconhecimento dos direitos

    sociais a sua constitucionalizao, que deu origem ao chamado

    Estado de Bem-Estar Social.

    Entretanto, a reorganizao do capital, precipitada pela crise

    do petrleo de 1973/1974, provocou o afastamento do Estado das

    relaes laborais, compelindo os trabalhadores a buscar nos direitos

    fundamentais ponto de apoio para conter os avano dos poderes

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    empresariais e restabelecer o equilbrio entre tais poderes e os

    direitos dos laboristas.

    Os direitos fundamentais, entrelaados com o princpio

    da dignidade humana, inicialmente concebidos como direitosde defesa em face do Estado, assumiram nova feio, prestando-

    se tambm a evitar leses e a fundamentar reparaes por atos

    ilcitos, inclusive aqueles praticados por particulares, neste contexto

    inserido o empregador.

    Os direitos da personalidade representam consequncia

    do reconhecimento da dignidade humana e sua violao enseja

    reparao dos danos causados.

    A responsabilidade civil inclua tradicionalmente apenas

    os danos materiais. A admisso da reparabilidade dos danos

    extrapatrimoniais somente passou a existir de forma ampla, no

    cenrio nacional, a partir da Constituio Federal de 1988, mas sob a

    denominao de dano moral.

    Deve-se doutrina italiana a construo de nova moldura

    da responsabilidade civil, incluindo nos danos indenizveis nova

    categoria, denominada dano existencial, que consiste em leso ao

    conjunto de relaes que propiciam o desenvolvimento normal da

    personalidade humana, alcanando o mbito pessoal e social.

    O dano existencial distingue-se do dano moral porque no

    se limita a uma amargura, a uma aflio, caracterizando-se pela

    renncia a uma atividade concreta.

    No mbito do Direito do Trabalho pode estar presente,

    exemplificativamente, nas hipteses de assdio moral e doena

    ocupacional, na medida em que tais eventos, alm de ensejarsofrimento e angstia (dano moral), tambm podem causar

    prejuzos ao projeto de vida, s incumbncias do cotidiano, paz

    de esprito (dano existencial), registrando-se acolhimento, pela

    magistratura trabalhista, de pedido de indenizao calcado em

    renncia involuntria s atividades cotidianas do trabalhador em

    razo de conduta ilcita do empregador (TRT/4 Regio. Processo

    0000105-14.2011.5.04.0241).

    Registra-se, entretanto, a necessidade de o tema serenfrentado com a necessria prudncia pelo Poder Judicirio, que

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    deve estar atento e vigilante para coarctar eventuais atitudes passveis

    de por em risco a credibilidade deste importante instrumento

    de tutela, que se mostra apto, em razo de sua natureza e desde

    que adequadamente interpretado, preservao da dignidade da

    pessoa humana do trabalhador.

    REFERNCIAS

    ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial A tutela da

    dignidade da pessoa humana. Disponvel em www.mp.sp.gov.br/

    portal/page, acesso em 19.12.2012.

    BAEZ, Narciso Leandro Xavier; LEAL, Rogrio Gesta; MEZZAROBA,

    Orides. (coord.) Dimenses Materiais e Eficaciais dos DireitosFundamentais. So Paulo: Conceito Editorial, 2010.

    BARROSO, Lus Roberto (organizador). A nova interpretao

    constitucional.Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

    CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da

    Constituio. 7 ed. Almedina: 1999.

    DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 19 ed. 1 v.

    So Paulo: Saraiva, 2002.

    NASCIMENTO, Amauri Mascaro. FERRARY, Irani. SILVA FILHO, IvesGandra Martins da (org.). Histria do Trabalho, do Direito do

    Trabalho e da Justia do Trabalho. 3 edio. So Paulo: LTR, 2011.

    GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso

    de Direito Civil. V.4. t.1. So Paulo: Saraiva, 2005.

    ROMITA, Arion Sayo. Direitos Fundamentais nas Relaes de

    Trabalho. So Paulo: LTr, 2005.

    SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade Civil por Dano

    Existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda, 2009.

    Publicado originalmente na

    Revista Sntese Trabalhista

    e Previdenciria, n 284, de

    fevereiro de 2013.

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    Existencial

    SUMRIO: 1. O dano existencial nas relaes de

    trabalho; 2. Elementos do dano existencial; 3. O

    projeto de vida e a vida de relao como direitos

    da personalidade do trabalhador; 4. O dano

    existencial e a sade do trabalhador; 5. Dano moral

    e dano existencial: distino e cumulao; 6. Dano

    existencial e perda de uma chance: distines; 7.

    Quantificao da indenizao por dano existencial.

    RESUMO:O presente texto dedicou-se ao estudo

    do dano existencial no Direito do Trabalho, figura

    jurdica que no deve ser confundida com o dano

    moral nem tampouco com o prejuzo pela perda

    de uma chance. No af de demonstrar a autonomia

    da figura estudada, foram analisados os elementos

    caracterizados do dano existencial, a saber: o

    projeto de vida e a vida de relaes, e dedicada

    particular ateno importncia da proteo

    sade do trabalhador. Evidenciou-se que o

    poder diretivo do empregador no pode afetar a

    existncia do empregado enquanto ser humano,

    titular de direitos da personalidade, e que para se

    assegurar a um completo bem-estar fsico e mentala todos os trabalhadores preciso encontrar

    mecanismos que impeam a sua submisso a

    regimes de trabalho exaustivos.

    ABSTRACT: This text devoted himself to the study

    of existential damage in Labor Law, a legal device

    that should not be confused with the moral

    damage nor injury with the loss of a chance. In the

    rush to demonstrate the autonomy of figure study,

    ArtigosO Dano Existencial e o Direito do Trabalho

    Jorge Cavalcanti BoucinhasFilho - Graduado em

    Direito pela UniversidadeFederal do Rio Grande doNorte. Mestre e Doutor pelaUniversidade de So Paulo -USP. Professor.

    Rbia Zanotelli deAlvarenga Mestre e Doutoraem Direito do Trabalho pelaPUC Minas. Professora.

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    we analyzed the existential elements characterized

    the damage, namely the project of life and a life

    of relationships, and devoted particular attention

    to the importance of protecting workers' health.

    It was evident that the directive power of the

    employer can not affect the existence of the

    employee as a human being, entitled to rights of

    personality, and to ensure that a complete physical

    well-being and mental health for all workers need

    to find mechanisms that prevent submission to

    comprehensive schemes of work.

    Palavras-chaves: Direitos da personalidade. Danoexistencial: o projeto de vida e a vida de relao.

    Dano Moral. Responsabilidade pela perda de umachance.

    INTRODUO

    Ao prefaciar uma de suas mais conhecidas obras, o professor

    Alain Supiot destacou que a razo humana no jamais um dado

    imediato da conscincia, sendo antes um produto de instituies

    que permitem que cada homem assegure sentido sua existncia,

    encontrem um lugar na sociedade e l possam expressar seu

    prprio talento.1 O papel das instituies e institutos de direitodo trabalho, que cuidam da relao empregado/empregador nos

    pases capitalistas, inegvel.

    Dentre os institutos de direito do trabalho destinados a

    viabilizar a plena busca de equilbrio entre vida e trabalho especial

    meno deve ser feita aos chamados perodos de descanso, como

    o repouso semanal e as frias; s diversas formas de interrupo

    e suspenso do contrato de trabalho, como as licenas para

    tratamento mdico e para formao profissional, e, finalmente ssituaes que os italianos convencionaram chamar de tempo libero

    destinato2, a saber, as atividades de voluntariado, doao de sangue,

    e, poderamos acrescer, a interrupo do contrato de trabalho para

    prestar exame vestibular.

    1 La raison humaine nest jamais une donne immediate de la conscience: elle est le produitdes institutions qui permettent chaque homme de donner sens son existence, qui luireconnaissent une place dans la socit et lui permettent dy exprimer son talent proper.(SUPIOR, Alain. Critique du droit du travail. Paris: Presses universitaires de France, 2002, p.XX).

    2NICCOLAI, Alberto. Orario di lavoro e resto della vita. Lavoroe diritto, anno XXIII, n.2,primavera 2009, pp. 243-253.

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    Esses perodos de descanso, contudo, no so sempre

    respeitados por aqueles que detm o poder econmico, causando

    aos trabalhadores prejuzos biolgicos, sociais e econmicos. H

    situaes de descumprimento pontual, motivado por alguma

    contingncia momentnea, e situaes, muito mais graves, de

    violao contumaz da norma, motivada pela expectativa de ganho

    com o descumprimento da norma, e facilitada pelo frgil sistema

    brasileiro de fiscalizao governamental das relaes de trabalho,

    que carece de servidores suficientes para fiscalizar todas as empresas

    existentes nesse pas.3

    O descumprimento estratgico das normas trabalhistas

    por determinadas empresas que se sujeitam s sanes legais por

    constatarem que a eventual aplicao delas acaba sendo menos

    onerosa do que o fiel cumprimento do ordenamento jurdico

    (poltica conhecida pela expresso risco calculado) facilmente

    visualizado no exemplo da instituio financeira que exige o labor em

    sobrejornada e no o remunera corretamente. Se em determinada

    agncia cem trabalhadores estiverem nessa situao e apenas

    cinquenta ajuizarem a ao, a empresa auferiu um lucro significativo.

    Ganho aumentado pelo fato de vinte e cinco dos cinquenta que

    propuseram a ao aceitarem, para outorgar quitao plena dos

    dbitos, cinquenta por cento ou menos do valor que efetivamentelhe devido. Por fim, quinze dos vinte e cinco trabalhadores recebem

    menos do que deveriam em razo de seu contrato de trabalho

    ter se prolongado por mais de cinco anos, deixando, portanto, de

    receber algumas parcelas alcanadas pela prescrio. De sorte que

    somente dez dos 100 trabalhadores que se ativaram em regime de

    sobrejornada efetivamente recebem o que lhes devido. E ainda

    assim o empregador em questo lucra com a demora processual vez

    que durante o trmite da ao o dbito da empresa esteve sujeito

    a juros de 1% ao ms e o valor contingenciado correspondente aele estava sendo emprestado no cheque especial ou no carto de

    crdito a um percentual superior 10% ao ms.

    3O modelo de tutela das relaes de trabalho no Brasil infelizmente privilegiou mecanismosde tutela repressiva da relao de emprego em detrimento de mecanismos de tutela preventiva.A dotao oramentria da Justia do Trabalho, normalmente acionada individualmente apso rompimento do vnculo empregatcio de determinado empregado e que, portanto, destina-se muito mais reprimir s irregularidades cometidas pelos empregadores do que a preveni-las, bastante superior do Ministrio do Trabalho e Emprego, cuja funo compreendeautorizar a instalao e o incio de atividades das empresas e fiscalizar periodicamente o seu

    funcionamento, atuando, portanto, de forma preventiva.

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    O exemplo hipottico, mas situaes de descumprimento

    deliberado e contumaz da legislao trabalhista, como a narrada,

    so verificadas na prtica com triste regularidade. Ele ilustra como

    alguns empregadores efetivamente auferem grandes ganhos

    mediante a explorao da mo de obra de seus trabalhadores em

    regime de sobrejornada, usando estratgias gerenciais prprias de

    um momento histrico em que, como bem enfatiza Alain Supiot, ao

    invs de indexarmos a economia s necessidades dos homens e as

    finanas s necessidades da economia, ns indexamos a economia s

    exigncias das finanas e tratamos os homens como capital humano

    servio da economia.4 Mecanismos prprios de uma sociedade

    dita moderna que, como observou Alberto Niccolai, acompanhou

    a inverso da relao entre ritmo de trabalho e ritmo de existncia,

    com aquele ditando inexoravelmente este.5

    preciso, contudo, ressaltar, e de forma enftica, que

    no apenas a inadimplncia das parcelas correspondentes

    sobrejornada que torna o seu uso indiscriminado e abusivo, como

    uma estratgia gerencial, um mal para o empregado. Ainda que as

    horas suplementares sejam corretamente quitadas, o prejuzo que

    essa poltica causa ao trabalhador, impedindo-o de desfrutar do

    convvio com seus amigos, fazendo-lhe perder a oportunidade de

    ver seus filhos crescer e, por vezes, privando-o at mesmo do direito

    de exercer seu credo religioso, subsistir.

    possvel perceber prejuzo ao desfrute pelo trabalhador

    dos prazeres de sua prpria existncia tanto quando dele se exige a

    realizao de horas extras em tempo superior ao determinado pela

    Lei, como quando dele se exige um nmero to grande de atribuies

    que precise permanecer em atividade durante seus perodos de

    descanso, ainda que longe da empresa, ou fique esgotado ao ponto

    de no encontrar foras para desfrutar de seu tempo livre.

    A constatao se torna ainda mais grave quando se tem claro

    que essa forma de explorao da mo de obra do trabalhador ocorre,

    4 Au lieu dindexer lconomie sur les besoins des hommes, et la finance sur les besoins delconomie, on indexe lconomie sur les exigences de la finance et on traite les hommes commedu au service de lconomie (SUPIOT, Alain.Lesprit de Philadelphie: la

    justice sociale face au march total. Paris: Seuil, 2010, pp. 24/25).

    5E parassoalmente pu si dirsi che tale approccio metodolgico, inadeguato nellepoca fordista,h trovato fertile terreno nella moderna societ, che h visto invertirsi il rapporto fra ritmi dilavoro e ritmi dellesistenza, com i primi a dettare inesorabilmente i seccondi (NICCOLAI,

    Alberto. Orario di lavoro e resto della vita. Lavoro e diritto, anno XXIII, n.2, primavera 2009,pp. 243-253).

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    por vezes, revelia da vontade do empregado, seja por precisar do

    acrscimo salarial correspondente, seja por temer sua demisso. Seja

    qual for a hiptese, o trabalhador estar abdicando de seu lazer, do

    deleite que poderia ter, para aumentar os ganhos do empregador.

    Essa hiperexplorao da mo-de-obra humana,

    acompanhada ou no de contraprestao em pecnia, causa ao

    trabalhador um tipo de prejuzo que vem sendo doutrinariamente

    chamado de dano existencial. O presente artigo objetiva analisar a

    figura em questo cuidando, dentre outras coisas, da sua distino

    em relao figura do dano moral (tambm previsto no arcabouo

    do Direito do Trabalho).

    O dano existencial nas relaes de trabalho

    O dano existencial no Direito do Trabalho, tambm chamado

    de dano existncia do trabalhador, decorre da conduta patronal

    que impossibilita o empregado de se relacionar e de conviver em

    sociedade por meio de atividades recreativas, afetivas, espirituais,

    culturais, esportivas, sociais e de descanso, que lhe traro bem-estar

    fsico e psquico e, por consequncia, felicidade; ou que o impede de

    executar, de prosseguir ou mesmo de recomear os seus projetos de

    vida, que sero, por sua vez, responsveis pelo seu crescimento ou

    realizao profissional, social e pessoal.

    Jlio Csar Bebber, um dos autores a adotar essa expresso

    para designar as leses que comprometem a liberdade de escolha e

    frustram o projeto de vida que a pessoa elaborou para sua realizao

    como ser humano, esclarece haver optado por qualificar esse dano

    com o epiteto j transcrito justamente porque o impacto por ele

    gerado provoca um vazio existencial na pessoa que perde a fonte

    de gratificao vital6

    Nos danos desse gnero o ofendido se v privado do direito

    fundamental, constitucionalmente assegurado, de, respeitando o

    direito alheio, livre dispor de seu tempo fazendo ou deixando de

    fazer o que bem entender. Em ltima anlise, ele se v despojado de

    seu direito liberdade e sua dignidade humana.7

    6 BEBBER, Jlio Csar. Danos extrapatrimoniais (esttico, biolgico e existencial): brevesconsideraes. Revista LTr, So Paulo, v. 73, n. 1, jan. 2009, p. 28.

    7 ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoahumana. Revista dos Tribunais, So Paulo, v. 6, n. 24, ms out/dez, 2005, p. 48.

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    Giuseppe Cassano, citado por Amaro Alves de Almeida Neto,

    esclarece que por dano existencial se entende qualquer dano que

    o indivduo venha a sofrer nas suas atividades realizadoras [...].8

    Flaviane Rampazzo Soares, por sua vez, considera que ele abrange

    todo acontecimento que incide, negativamente, sobre o complexo

    de afazeres da pessoa, sendo suscetvel de repercutir-se, de maneira

    consistente temporria ou permanentemente sobre a sua

    existncia.9

    Dessa maneira, estatui Amaro Alves de Almeida Neto:

    [...] toda pessoa tem o direito de no ser

    molestada por quem quer que seja, em

    qualquer aspecto da vida, seja fsico, psquico

    ou social. Submetido ao regramento social, o

    indivduo tem o dever de respeitar e o direito

    de ser respeitado, porque ontologicamente

    livre, apenas sujeito s normas legais e de

    conduta. O ser humano tem o direito de

    programar o transcorrer da sua vida da melhor

    forma que lhe parea, sem a interferncia

    nociva de ningum. Tem a pessoa o direito

    s suas expectativas, aos seus anseios, aosseus projetos, aos seus ideais, desde os mais

    singelos at os mais grandiosos: tem o direito

    a uma infncia feliz, a constituir uma famlia,

    estudar e adquirir capacitao tcnica, obter

    o seu sustento e o seu lazer, ter sade fsica

    e mental, ler, praticar esporte, divertir-se,

    conviver com os amigos, praticar sua crena,

    seu culto, descansar na velhice, enfim, gozar

    a vida com dignidade. Essa a agenda do serhumano: caminhar com tranqilidade, no

    ambiente em que sua vida se manifesta rumo

    ao seu projeto de vida.10

    8IDEM, p. 46.

    9 SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre:Livraria do advogado, 2009, p. 44.

    10ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoahumana. Revista dos Tribunais, So Paulo, v. 6, n. 24, ms out/dez, 2005, p. 49.

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    No mbito das relaes de trabalho, verifica-se a existncia de

    dano existencial quando o empregador impe um volume excessivo

    de trabalho ao empregado, impossibilitando-o de estabelecer a

    prtica de um conjunto de atividades culturais, sociais, recreativas,

    esportivas, afetivas, familiares, etc, ou de desenvolver seus projetosde vida nos mbitosprofissional, social e pessoal.

    O tipo de dano ora em estudo, segundo Flaviana Rampazzo

    Soares, capaz de atingir distintos setores da vida do indivduo,

    como: a) atividades biolgicas de subsistncia; b) relaes afetivo-

    familiares; c) relaes sociais; d) atividades culturais e religiosas; e)

    atividades recreativas e outras atividades realizadoras, tendo em

    vista que qualquer pessoa possui o direito serenidade familiar,

    salubridade do ambiente, tranquilidade no desenvolvimento dastarefas profissionais, ou ao lazer, etc.11

    Outra forma inquestionvel de dano existencial consiste em

    submeter determinado trabalhador condio degradante ou

    anloga de escravo. Como bem pondera a autora citada por ltimo,

    as condies de vida aviltantes que, normalmente, so impostas a

    tais trabalhadores tambm integram o dano existencial, pois no h

    como algum manter uma rotina digna sob tais circunstncias.12

    A impossibilidade de autodeterminao que o trabalho

    escravizado acarreta bem como as restries severas e as privaes

    que ele impe, modificam, de forma prejudicial, a rotina dos

    trabalhadores a ele submetido, principalmente, no horrio em que

    esto diretamente envolvidos na atividade laboral para a qual foram

    incumbidos.13

    Elementos do dano existencial

    Alm dos elementos inerentes qualquer forma de dano,

    como a existncia de prejuzo, o ato ilcito do agressor e o nexo de

    11 Quanto atividade biolgica de subsistncia, assinala Flaviana Rampazzo Soares, que aquela em que a pessoa sofreu uma leso fsica que a impediu de realizar atividades desubsistncia que, em condies normais anteriores, seriam plenamente possveis, tais comoas relacionadas alimentao, higiene ou locomoo. Veja-se: SOARES, Flaviana Rampazzo.Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2009, p. 47.

    12SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre:Livraria do advogado, 2009, p. 76.

    13IDEM, p. 75.

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    causalidade entre as duas figuras, o conceito de dano existncia

    integrado por dois elementos, quais sejam: a) o projeto de vida; e b)

    a vida de relaes.14

    O primeiro deles Jlio Csar Bebber associa a tudo aquilo

    que determinada pessoa decidiu fazer com a sua vida. Como

    bem pondera o aludido autor, o ser humano, por natureza, busca

    sempre extrair o mximo das suas potencialidades, o que o leva a

    permanentemente projetar o futuro e realizar escolhas visando

    realizao do projeto de vida. Por isso afirma que qualquer fato

    injusto que frustre esse destino, impedindo a sua plena realizao

    e obrigando a pessoa a resignar-se com o seu futuro, deve ser

    considerado um dano existencial.15

    Ainda sobre o mesmo elemento, Hidemberg Alves da Frota,

    observa que o direito ao projeto de vida somente efetivamente

    exercido quando o indivduo se volta prpria autorrealizao

    integral, direcionando sua liberdade de escolha para proporcionar

    concretude, no contexto espao-temporal em que se insere, s

    metas, aos objetivos e s ideias que do sentido sua existncia.16

    Quanto vida de relao, o dano resta caracterizado, na sua

    essncia, por ofensas fsicas ou psquicas que impeam algum

    de desfrutar total ou parcialmente, dos prazeres propiciados

    pelas diversas formas de atividades recreativas e extralaborativas

    tais quais a prtica de esportes, o turismo, a pesca, o mergulho, o

    cinema, o teatro, as agremiaes recreativas, entre tantas outras.

    Essa vedao interfere decisivamente no estado de nimo do

    trabalhador atingindo, consequentemente, o seu relacionamento

    social e profissional. Reduz com isso suas chances de adaptao

    ou ascenso no trabalho o que reflete negativamente no seu

    desenvolvimento patrimonial.17

    14Essa classificao feita por Hidemberg Alves da Frota em artigo doutrinrio que aborda asnoes fundamentais sobre o dano existencial. Veja-se: FROTA, Hidemberg Alves da. Noesfundamentais sobre o dano existencial. Revista Cincia jurdica, Belo Horizonte, v. 24, 2010,p. 275.

    15 BEBBER, Jlio Csar. Danos extrapatrimoniais (esttico, biolgico e existencial): brevesconsideraes. Revista LTr, So Paulo, v. 73, n. 1, jan. 2009, p. 28.

    16 FROTA, Hidemberg Alves da. Noes fundamentais sobre o dano existencial. RevistaCincia Jurdica, Belo Horizonte, v. 24, 2010, p. 276.

    17ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoahumana. Revista dos Tribunais, So Paulo, v. 6, n. 24, ms out/dez, 2005, p. 52.

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    Em suma, o dano vida de relao, ou dano vida em sociedade,

    com bem observa Amaro Alves de Almeida Neto: indica a ofensa

    fsica ou psquica a uma pessoa que determina uma dificuldade ou

    mesmo a impossibilidade do seu relacionamento com terceiros,

    o que causa uma alterao indireta na sua capacidade de obter

    rendimentos.18

    Hidemberg Alves da Frota, por sua vez, pondera que o prejuzo

    vida de relao, diz respeito ao conjunto de relaes interpessoais,

    nos mais diversos ambientes e contextos, que permite ao ser

    humano estabelecer a sua histria vivencial e se desenvolver de

    forma ampla e saudvel, ao comungar com seus pares a experincia

    humana, compartilhando pensamentos, sentimentos, emoes,

    hbitos, reflexes, aspiraes, atividades e afinidades, e crescendo,

    por meio do contato contnuo (processo de dilogo e de dialtica)em torno da diversidade de ideologias, opinies, mentalidades,

    comportamentos, culturas e valores nsitos humanidade.19

    fcil imaginar o dano causado vida de relao de

    determinado empregado em decorrncia de condutas ilcitas

    regulares do empregador, como a constante utilizao de mo de

    obra em sobrejornada, impedindo o empregado de desenvolver

    regularmente outras atividades em seu meio social. No se pode,

    contudo, descuidar da hiptese de o dano vida da relao poder sercausado por um nico ato. Um bom exemplo seria o do empregador

    que compele determinado empregado a terminar determinada

    tarefa, que no era to urgente ou que poderia ser concluda por

    outro colega, no dia, por exemplo, da solenidade de formatura

    ou de primeira eucaristia de um de seus filhos, impedindo-o de

    comparecer cerimnia.

    No tocante s relaes familiares no demasiado ressaltar

    que a Constituio de 1988 expressamente estatui que a entidadefamiliar, base da sociedade, tem especial proteo do estado(artigo

    226, caput) e que dever da famlia, da sociedade e do Estado

    assegurar criana, ao adolescente e ao jovem, com absoluta

    prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao,

    18IDEM, p. 52. O autor cita alguns exemplos de dano vida de relao, que so os seguintes:a) procedimentos imperitos mdicos que acarretam pessoa problemas ortopdicos e aimpossibilidade de praticar esportes como correr, jogar bola, tnis, etc; b) a divulgao denotcias difamatrias infundadas que acarretam humilhao e depresso; c) acidentes quecausam a sndrome do pnico ou problemas na fala, como tartamudez etc.

    19 FROTA, Hidemberg Alves da. Noes fundamentais sobre o dano existencial. RevistaCincia Jurdica, Belo Horizonte, v. 24, 2010, p. 277.

    "Um bom exemplo seria

    o do empregador que compele

    determinado empregado a

    terminar determinada tarefa,

    que no era to urgente ou

    que poderia ser concludapor outro colega, no dia, por

    exemplo, da solenidade de

    formatura ou de primeira

    eucaristia de um de seus filhos,

    impedindo-o de comparecer

    cerimnia."

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    ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito,

    liberdade e convivncia familiar (artigo 227). E como bem observa

    Maria Vittoria Ballestrero, a tutela da famlia no pode prescindir

    das normas que impe ao tomador dos servios o sacrifcio de

    reconhecer ao trabalhador direitos cujo exerccio pressupe que ele

    saia do trabalho com tempo e energia para se dedicar ao seio de sua

    famlia. Em outras palavras, a ideia de proteo da famlia passa pela

    conciliao entre interesse do empregador de usar o trabalhador

    da forma que lhe for mais profcua e o interesse do trabalhador a

    satisfazer as exigncias de sua vida privada e familiar.20

    E as atividades recreativas, como bem observa Eugnio

    Bonvicini, citado por Hidemberg Alves da Frota, representam uma

    fonte de equilbrio fsico e psquico, tal a compensar o intenso

    desgaste peculiar vida agitada do mundo moderno21. Ao discorrersobre tais atividades, Guido Gentile, citado pelo mesmo autor

    nacional, assinala que o incremento delas facilita o desenvolvimento

    da prpria labuta profissional.22

    Os tribunais vm, ainda timidamente, reconhecendo essa

    nova figura. O Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do

    Sul, em deciso relatada pelo Desembargador Federal do Trabalho

    Jos Felipe Ledur, estabeleceu o pagamento de indenizao

    trabalhadora que fora vtima de dano existencial, por ter trabalhadosobre jornada excedente ao limite de tolerncia, veja-se:

    DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXTRAEXCEDENTE DO LIMITE LEGAL DETOLERNCIA. DIREITOS FUNDAMENTAIS.O dano existencial uma espcie de danoimaterial, mediante o qual, no caso dasrelaes de trabalho, o trabalhador sofre

    20A valle della tutela (nella Costituzione e nelle leggi) del bene famiglia, e dunque nel dirittodel lavoro in senso stretto, il contemperamento prende corpo nelle norme che impongono unsacrifcio dellinteresse del datore di lavoro (sacrifcio ragionevole, cio proporzionato allasalvaguardia del bene tutelato), attibuendo al lavoratore diritti (congedi, permessi, flessibilite riduzioni di orario), il cui esercizio consente di liberare dal lavoro tempo ed energie dadedicare alle cure familiar. In altri termini, parliamo del contemperamento tra linteresse deldatore di lavoro allutilizzazione massimamente profcua del lavoro e dunque anche dellasingola prestazione di lavoro che retibuische, e linteresse del lavoratore a soddisfare le esigenzedella sua vita privata e familiare. (BALLESTRERO, Maria Vittoria. La Conciliazione tra lavoroe famiglia. Brevi Considerazioni introduttive. Lavoro e diritto, anno XXIII, n.2, primavera2009, p. 163).

    21 ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoahumana. Revista dos Tribunais, So Paulo, v. 6, n. 24, ms out/dez, 2005, p. 58.

    22IDEM, p. 60.

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    danos/limitaes em relao sua vida

    fora do ambiente de trabalho em razo de

    condutas ilcitas praticadas pelo tomador do

    trabalho. Havendo a prestao habitual de

    trabalho em jornadas extras excedentes do

    limite legal relativo quantidade de horasextras, resta configurado dano existncia,

    dada a violao de direitos fundamentais

    do trabalho que integram deciso jurdico-

    objetiva adotada pela Constituio. Do

    princpio fundamental da dignidade da

    pessoa humana decorre o direito ao livre

    desenvolvimento da personalidade do

    trabalhador, nele integrado o direito ao

    desenvolvimento profissional, o que exige

    condies dignas de trabalho e observncia

    dos direitos fundamentais tambm pelos

    empregadores (eficcia horizontal dos

    direitos fundamentais). Recurso provido.23

    No referido processo, o Desembargador relator Jos Felipe

    Ledur ainda aduz que a prestao de horas extras no representa,

    em regra, dano imaterial/existencial. Na verdade, o trabalho

    prestado em jornadas que excedem habitualmente o limite legal

    de duas horas extras dirias, tido como parmetro tolervel, querepresenta afronta aos direitos fundamentais do trabalhador e uma

    forma de aviltamento do mesmo. Portanto, o trabalho prestado

    em jornadas extenuantes que autorizam a concluso de ocorrncia

    do dano in re ipsa.24Extrai-se ainda do aludido julgado essa relevante

    passagem:

    Os direitos fundamentais previstos no art. 7 da

    Constituio de 1988, dentre eles o disposto no

    inciso XIII (durao do trabalho normal no superior

    a oito horas dirias e quarenta e quatro semanais,

    facultada a compensao de horrios e a reduo

    da jornada, mediante acordo ou conveno

    coletiva de trabalho) e no inciso XXII (reduo dos

    riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas

    de sade, higiene e segurana) so concrees

    23RIO GRANDE DO SUL, Tribunal Regional do Trabalho, RO 105-14.2011.5.04.0241. RelatorDes. Jos Felipe Ledur, 1 Turma, Dirio eletrnico da Justia do Trabalho, Porto Alegre, 3 jun.2011.

    24IDEM.

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    de valores e normas de carter principiolgico e

    correspondem a uma deciso jurdico-objetiva

    de valor adotada pela Constituio. Esta prev

    valores e princpios, dentre outros, no Prembulo

    (e.g., a assegurao do exerccio dos direitos

    sociais, da liberdade e do bem-estar), no art. 1,

    III e IV (dignidade da pessoa humana os valores

    sociais do trabalho e da livre iniciativa) e no rol dos

    direitos sociais elencados no art. 6 (e.g., o direito

    sade, ao trabalho, ao lazer e segurana). Do

    princpio da dignidade da pessoa humana, ncleo

    dos direitos fundamentais em geral, decorre o

    direito ao livre desenvolvimento da personalidade

    do trabalhador, nele abarcado o desenvolvimento

    profissional mencionado no art. 5, XIII, da

    Constituio, o que exige condies dignas de

    trabalho e observncia dos direitos fundamentais

    assegurados aos trabalhadores. Finalmente, esses

    valores e princpios vinculam no s o Estado

    (eficcia vertical dos direitos fundamentais), mas

    tambm o empregador/organizao econmica

    (eficcia horizontal dos direitos fundamentais ou

    eficcia em face dos particulares).25

    O projeto de vida e a vida de relao como direitos da

    personalidade do trabalhador

    Enquanto protetores da dignidade da pessoa humana, os

    direitos da personalidade tm por objeto assegurar os elementos

    constitutivos da personalidade do ser humano, tomada nos aspectos

    da integridade fsica, psquica, moral e intelectual da pessoa humana.

    Ademais, so direitos que jamais desaparecem no tempo e nunca se

    separam do seu titular.

    Acentua Flaviana Rampazzo Soares que a tutela existncia

    da pessoa resulta na valorizao de todas as atividades que a pessoa

    realiza, ou pode realizar, tendo em vista que tais atividades so

    capazes de fazer com que o indivduo atinja a felicidade, exercendo,

    plenamente, todas as faculdades fsicas e psquicas. Alm disso, a

    felicidade , em ltima anlise, a razo de ser da existncia humana.26

    25IDEM.

    26SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre:Livraria do advogado, 2009, p. 37.

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    Sendo assim, o bem-estar e a qualidade de vida so a

    exteriorizao de toda a potencialidade da personalidade da pessoa,

    representam a ao do ser humano, destinada a atingir a felicidade,

    a realizao, a busca da razo de ser da existncia.27

    O dano existncia do trabalhador acarreta, assim, em violao

    aos direitos da personalidade do trabalhador. A leso ao projeto de

    vida e vida de relao afronta as seguintes espcies de direitos

    da personalidade: direito integridade fsica e psquica, direito

    integridade intelectual, bem como o direito integrao social28.

    O dano existencial impede a efetiva integrao do trabalhador

    sociedade, impedindo o seu pleno desenvolvimento enquanto

    ser humano. A efetiva utilizao de todas as suas potencialidades

    somente seria possvel, com o desfrute de todas as esferas de suavida, a saber: cultural, afetiva, social, esportiva, recreativa, profissional,

    artstica, entre outras.

    No que tange ao direito ao lazer, assinala Mrcio Batista de

    Oliveira que a sua aplicao e eficcia traduz-se na garantia da

    efetividade da dignidade da pessoa humana do trabalhador