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Ficha Técnica

Título original: MidvinterblodTítulo: Sangue Vermelho em Campo de Neve

Autor: Mons KallentoftCapa: Rui Garrido

Revisão: Soares dos ReisFoto de capa: A. Mateur

Publicado originalmente por Natur & Kultur, SuéciaPublicado em Portugal com o acordo de Nordin Agency, Suécia

Edição: Maria da Piedade FerreiraISBN: 9789722050111

Publicações Dom Quixote[Uma chancela do grupo Leya]Rua Cidade de Córdova, n.º 22610-038 Alfragide – Portugal

Tel. (+351) 21 427 22 00Fax. (+351) 21 427 22 01© 2007, Mons Kallentoft

Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigorwww.dquixote.leya.com

www.leya.pt

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Agradeço às seguintes pessoas que, de várias maneiras, me ajudaram no trabalho deescrever este livro:

Bengt Nordin e Maria Enberg pelo incentivo e dedicação. Nina Wadensjö e PetraKönig pela tolerância e zelo. Rolf Svensson pelas pesquisas feitas e outras ajudas. Àminha mãe, Anna-Maria, e ao meu pai, Björn, pela descrição pormenorizada da área dacidade de Linköping.

Gostaria de agradecer também a Bengt Elmström, sem cujo bom senso e grandesensibilidade este livro não existiria.

O meu agradecimento maior vai para a minha mulher, Karolina, que de muitas formasfoi essencial no trabalho de escrever este livro. O que teria sido de Malin Fors, da suafamília e dos seus colegas sem a ajuda de Karolina?

Ao escrever esta história, tive sempre em mente as melhores soluções. Por issomesmo, tomei certas liberdades, ainda que pequenas, em relação ao trabalho dapolícia, à cidade de Linköping, à geografia dos seus arredores e aos seus habitantes.

21/03/2007Mons Kallentoft

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PRÓLOGO

ÖSTERGÖTLAND, TERÇA-FEIRA, DIA 31 DE JANEIRO

[NO ESCURO]

NÃO ME BATA.

PARE, PARE!

ESTÁ A OUVIR?

DEIXE-ME EM PAZ.

NÃO, NÃO. DEIXE-ME ENTRAR. AS MAÇÃS, O CHEIRO A MAÇÃS, ESTOU A SENTI-LO.NÃO ME DEIXE FICAR AQUI FORA, AO FRIO, NO MEIO DA NEVE . O VENTO FORTE ATINGE ASMINHAS MÃOS, A MINHA CABEÇA, COMO AGULHAS, ATÉ QUE NÃO SINTA MAIS PELE GELADA,NEM CARNE, NEM GORDURA A COBRIR OS OSSOS, O CRÂNIO.

NÃO VÊ QUE ESTOU A DESAPARECER? NÃO, NÃO SE PREOCUPA COM ISSO, NÃO É VERDADE?

OS VERMES JÁ SE MEXEM NA TERRA.

EU JÁ OS OUÇO. E AOS RATOS. ELES ADORAM O CALOR E FICAM EXCITADOS, LUTAM E

RETALHAM-SE EM PEDAÇOS. «JÁ DEVÍAMOS ESTAR MORTOS», DIZEM ELES, «MAS TUACENDESTE UMA FOGUEIRA E CONSEGUES MANTER-NOS VIVOS. SOMOS A TUA ÚNICA

COMPANHIA NO FRIO, NO GELO. » MAS QUE ESPÉCIE DE COMPANHIA É ESSA? SERÁ QUEREALMENTE ESTAMOS VIVOS OU SERÁ QUE JÁ MORREMOS HÁ MUITO TEMPO, NESTE LUGAR

TÃO APERTADO QUE NÃO NOS DEIXOU ESPAÇO PARA AMAR?AGARRO NUM PEDAÇO DE TECIDO FRIO E HÚMIDO E ENVOLVO NELE O MEU CORPO MAGROENQUANTO OBSERVO O LUME A CREPITAR NA LAREIRA, O FUMO A SAIR PELO BURACO NEGROE A ESPALHAR-SE NO AR, PASSANDO PELOS RAMOS ADORMECIDOS DOS PINHEIROS, DAS

OUTRAS ÁRVORES, POR CIMA DO MUSGO E DO GRANITO, E DO GELO DO LAGO.ONDE ESTÁ O CALOR? SÓ NA ÁGUA QUE FERVE. SE ADORMECER, SERÁ QUE VOLTO AACORDAR?

PARE DE ME BATER.

NÃO ME DEIXE AQUI FORA, NA NEVE.

VOU FICAR ROXO. DEPOIS, BRANCO COMO TUDO O RESTO.

VOU FICAR SOZINHO.

AGORA ESTOU A DORMIR E NOS SONHOS AS PALAVRAS REGRESSAM: « MIÚDO DE MERDA,RANHOSO, ÉS UMA PORCARIA, NÃO EXISTES.»

MAS O QUE É QUE EU LHE FIZ? DIGA-ME SÓ UMA COISA: O QUE É QUE EU FIZ? O QUEACONTECEU?

E DE ONDE VEIO PELA PRIMEIRA VEZ AQUELE CHEIRO A MAÇÃS? AS MAÇÃS SÃO REDONDAS,MAS PARTEM-SE, DESFAZEM-SE, NAS MINHAS MÃOS.

HÁ MIGALHAS POR BAIXO DO MEU CORPO.

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E EU NÃO SEI QUEM ELA É, MAS HÁ UMA MULHER NUA, A FLUTUAR POR CIMA DE MIM, ADIZER: «VOU TOMAR CONTA DE TI, TU EXISTES POR MINHA CAUSA, NÓS SOMOS SERES

HUMANOS. FOMOS FEITOS UM PARA O OUTRO.» MAS DE REPENTE, ALGO A AFASTA DE MIM . OTECTO DO MEU ABRIGO DESAPARECE NUMA TEMPESTADE SOMBRIA E PERCEBO QUE AO

LONGE ALGUÉM A AGARROU PELAS PERNAS E ELA GRITA E DEPOIS CALA-SE, EMUDECE.DEPOIS REGRESSA, MAS AGORA É UMA OUTRA MULHER, A MULHER SEM ROSTO POR QUE

ESPEREI A VIDA INTEIRA. SERÁ QUE FUGIU, SERÁ QUE ME BATEU? QUEM É ELA, AFINAL?

SINTO ESPASMOS NO PEITO. EM TODO O LADO. O MEU PEITO ESTÁ VAZIO.

DESISTO. JÁ NÃO SINTO FALTA DE NADA.

POSSO PARAR DE RESPIRAR.

E SE DEIXAR DE SENTIR FALTA DE AR, E DE RESPIRAR, SOFRO AS CONSEQUÊNCIAS. OU NÃO?

ACORDEI. ESTOU MUITOS ANOS MAIS VELHO, MAS O BURACO ONDE VIVO, O FRIO GÉLIDO, AS

NOITES DE INVERNO E O BOSQUE SÃO OS MESMOS. TENHO DE FAZER ALGUMA COISA. ALIÁS,

JÁ FIZ. ALGUMA COISA ACONTECEU.

DE ONDE VEM O SANGUE QUE SUJA AS MINHAS MÃOS?

E O RUÍDO?

O QUE É QUE AQUI NÃO FAZ SENTIDO?

COM TAMANHA BARULHEIRA, OS VERMES E OS RATOS JÁ NÃO SE OUVEM.

A TUA VOZ. AS PANCADAS NAS TÁBUAS PREGADAS QUE SERVEM DE PORTA PARA O MEU

BURACO. VENS FINALMENTE. VÊM FINALMENTE.

AS PANCADAS. NÃO BEBAS TANTO.

AFINAL QUEM É? SÃO VOCÊS? ÉS TU? OU OS MORTOS?

SEJA QUEM FOR QUE ESTEJA AÍ FORA, ESPERO QUE CHEGUE COMO AMIGO . ESPERO QUECHEGUE COM AMOR.

PROMETA-ME ISSO.

PROMETA-ME SÓ ISSO.

PROMETA.

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PRIMEIRA PARTE

O AMOR IMPOSSÍVEL

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CAPÍTULO 1

QUINTA-FEIRA, 2 DE FEVEREIRO

O AMOR E A MORTE SÃO VIZINHOS.

Os seus rostos são únicos e iguais. O ser humano não precisa de parar de respirarpara morrer e não lhe basta respirar para viver.

Nunca estamos seguros, nem quanto à morte nem quanto ao amor.Duas pessoas conhecem-se.Apaixonam-se.Amam-se.Amam-se e desejam-se, e um dia o amor chega ao fim, de repente, tal e qual como no

dia em que parecia ter surgido para sempre. O amor foi sufocado pelo ritmo monótonodas circunstâncias, exteriores ou interiores.

Ou o amor permanece até o seu tempo terminar ou, então, ainda que inevitável, era jáum amor impossível à partida.

Será este último amor aquele que cria mais problemas?É, sim, pensa Malin Fors, quando, depois de sair do banho, se encontra de roupão

diante da bancada da cozinha a barrar com manteiga uma torrada de pão integral comuma das mãos, e a levar aos lábios uma caneca com café com a outra.

O relógio do IKEA pendurado na parede branca marca 6h15. Lá fora, sob ailuminação da rua, a atmosfera parece ter-se transformado em gelo. O frio intensoenvolve os muros cinzentos ao redor da Igreja de Santo Lars e as extremidades brancasdas ramagens parecem gritar há muito tempo: «Piedade, nem mais uma noite com atemperatura abaixo dos vinte graus negativos; é melhor quebrar-nos de uma vez,deixar-nos cair mortas no chão.»

Quem é que pode gostar deste frio?Um dia como este, pensa Malin, não foi feito para seres vivos.

***

Linköping está paralisada. As ruas da cidade permanecem vazias e os vidros dasjanelas ficam embaciados pelo vapor interior congelado, impedindo a vista para oexterior.

Na noite passada as pessoas nem sequer conseguiram ir ao Cloetta Center para ver ojogo de hóquei no gelo, disputado pela equipa da cidade, o LHC – Linköping HockeyClub. Compareceram apenas duas mil pessoas, quando, normalmente, o recinto

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costuma ficar repleto de gente.Gostaria de saber como correu aquilo ao Martin, pensa Malin. Martin é o filho do seu

colega Zeke que o treinara e orientara para o lugar de avançado e goleador na equipanacional da Suécia. E para uma carreira promissora como profissional. Ela própria nãonutria grande interesse pela equipa de hóquei de Linköping, mas como vivia na cidadeera impossível não ter conhecimento dos resultados alcançados pelo LHC no hóquei.

As ruas continuam quase desertas.A agência de viagens, na esquina das ruas St. Larsgatan e Hamngatan, diverte-se a

colocar na montra cartazes de locais, cada um mais exótico do que o outro. É o sol.São as praias. Os céus azuis que parecem irreais, pertencentes a um outro planetahabitável. Uma mãe solitária passa com um carrinho de gémeos diante de um banco, oÖstgötabanken, as crianças a dormir em sacolas pretas, invisíveis, sem vontadeprópria, fortes, mas, ao mesmo tempo, tão infinitamente indefesas. A mãe escorrega nogelo escondido sob uma camada de lama, balança, balança, mas não cai, segue emfrente, como se nenhuma outra coisa fosse possível.

– Diabos me levem, os Invernos aqui são de morrer!Dentro de si, Malin ouve as palavras do pai, de como ele, alguns anos antes,

justificou a compra de uma vivenda de três divisões numa das áreas para reformados, aPlaya de la Arena, um pouco a norte da Playa de las Américas, nas ilhas Canárias.

Como é que vocês estão? interroga-se Malin em pensamento.O café quente aquece-lhe o estômago.Vocês, certamente, ainda estão a dormir e quando acordarem vão ter sol e calor.Por aqui, o frio é intenso, pensa Malin.Devo acordar a Tove? A minha filha de treze anos gosta de dormir muito, de

preferência o dia inteiro, vinte e quatro horas seguidas, se puder. Num Inverno comoeste, seria óptimo poder hibernar durante alguns meses sem sair de casa e depoisacordar, repousada, do outro lado dos graus negativos.

É melhor deixar Tove dormir. O seu corpo alto e esguio precisa de descansar.A primeira aula não começa antes das nove. Malin pode antever o que vai acontecer.

A filha obrigando-se a sair da cama às oito e meia, a entrar aos tropeções na casa debanho, a deixar a água do chuveiro correr pelo corpo, a vestir-se. Ainda não se pinta.Depois, Malin ainda imagina Tove a dispensar o pequeno-almoço, apesar de todas assuas recomendações. Talvez eu deva usar uma táctica nova, pensa Malin, O pequeno-almoço faz-te mal, Tove. De qualquer forma, nunca seria um pequeno-almoço…

Malin bebe o resto do café, o seu último gole.As poucas vezes em que Tove acorda cedo é para acabar de ler um daqueles muitos

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livros que devora quase compulsivamente. Para a sua idade, tem um gosto para livrosrealmente espectacular. Jane Austen, por exemplo, pensa Malin. Qual é a miúda detreze anos que lê uma autora destas? Por outro lado, Tove não é como as outras miúdasde treze anos, nunca precisa de se esforçar para ser a primeira da turma. Talvez atéfosse melhor ter de se esforçar um pouco, vencer resistências, não é?

O tempo foge e Malin quer ir para o trabalho, não quer perder aquela meia hora entreas quinze para as sete e as sete e quinze, em que normalmente consegue ficar sozinha naesquadra, a preparar o dia, sem ser incomodada.

Na casa de banho, despe o roupão, deixando-o no chão de linóleo amarelado.O vidro do espelho está ligeiramente ondulado e embora isso comprima ligeiramente

o seu corpo de um metro e setenta, ainda é uma figura esbelta, atlética e bemmusculada, pronta a enfrentar as merdas que lhe atiram para cima. Isso já aconteceu,mas reagiu bem, encaixou o golpe e seguiu em frente.

Nada mal, pensa Malin, cheia de autoconfiança «não há nada que eu não possaresolver», e depois a dúvida, a sabedoria, «não cheguei a lado nenhum, não avanceimesmo nada e a culpa é minha, apenas minha».

O corpo.Concentra-se no seu corpo.Dá umas palmadinhas na barriga, pressiona as costelas, levanta o peito, de modo a

que os pequenos seios pareçam maiores, mas assim que vê os bicos apontarem para afrente, contém-se.

Inclina-se e apanha o roupão. Depois, começa a secar os cabelos loiros, deixa-os cairsobre as suaves maçãs do rosto, ajeita-os para o lado, mas deixa a franja sobre a testa,a tocar as sobrancelhas rectas, uma franja que ela sabe dar mais destaque ao azul dosolhos. Malin faz beicinho. Gostaria que os seus lábios fossem mais carnudos, masimagina que isso talvez resultasse estranho em contraste com o nariz curto, um poucoarrebitado. Ou não?

No quarto, veste uns jeans, uma camisa branca e um pólo preto de lã, de malha larga.Ao espelho do hall, dá um último retoque nos cabelos e pergunta-se se ainda

consegue disfarçar as rugas nos cantos dos olhos. Acaba por enfiar umas botas comsolas de borracha reforçadas.

Afinal, quem sabe o que a espera?Talvez tenha de andar em terrenos baldios. O casaco escuro, falsamente fino,

comprado na loja Stadium do Centro Comercial Tornby por oitocentas e setenta e cincocoroas, faz com que se sinta uma velhinha lunar, reumática, de movimentos lentos edesajeitados.

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Será que não me esqueci de nada?O telemóvel, o porta-moedas no bolso. A pistola. Os apêndices habituais. A arma

continua na cadeira, perto da cama ainda por fazer.O colchão é largo, suficiente para dois corpos e ainda sobraria espaço, uma largura

boa para sono e solidão durante as horas mais negras da noite. Mas como poderia elaencontrar alguém que a suportasse se, muitas vezes, nem ela própria se suportava?

Há uma fotografia de Janne na mesinha-de-cabeceira. E ela tenta convencer-se de quetem a foto do seu ex-marido ali para que Tove fique contente.

Na foto, Janne aparece bronzeado, com um sorriso nos lábios, mas os seus olhos azuisnão sorriem. Por detrás dele, o céu está claro e, ao lado, pressente-se o vento fraco nosramos de uma palmeira e, ao fundo, pode ver-se o prenúncio de uma floresta. Janneestá com o capacete azul-claro das Nações Unidas e um casaco de algodão com coresde camuflado e o emblema da Cruz Vermelha. Parece querer voltar-se, assegurando-sede que nas suas costas não vai aparecer, por entre a paisagem verdejante, nenhumpredador.

Ruanda.Kigali.Ele contou-lhe como os cães comiam a carne de seres humanos que ainda não estavam

mortos.

Janne viajou, viaja e sempre viajará como voluntário. Pelo menos, é essa a versãooficial.

Viajou para a floresta de escuridão tão cerrada que é possível até pressentir o perigopelo som das batidas do coração. Para os caminhos montanhosos, minados eencharcados de sangue, nos Balcãs, onde os camiões cheios de sacos de farinhapassam com estrondo por longas valas comuns, mal escondidas pelo matagal e ocascalho.

E também nós, desde o início, fomos voluntários.Resumindo:Uma jovem de dezassete anos encontra um jovem de vinte numa discoteca qualquer,

numa qualquer cidadezinha da província. Dois seres humanos sem planos, iguais e aomesmo tempo desiguais, com cheiros e sentimentos que combinam. E é assim que doisanos mais tarde acontece aquilo que não devia acontecer. Uma finíssima película deborracha rompe-se e uma criança começa a desenvolver-se.

– Tens de abortar.– Não, eu sempre quis um filho.

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As palavras dos dois colidem, o tempo passa e a filha nasce, o mais radiante entretodos os raios de sol. Brincam às famílias. E assim se passam mais dois anos. Depoisacontece algo idiota, uma situação em que não tinham pensado, aliás impensável, e oscorpos assumem uma vontade própria, longe da razão e do bom senso.

Nada explosivo, apenas uma reviravolta que leva um rapaz para longe, muito longe nageografia e ainda mais longe na alma.

São as vivências do amor, pensa Malin.Agridoces. Foi o que ela pensou depois da separação, quando o camião das mudanças

partiu para Estocolmo, e Janne partiu para a Bósnia: «Se eu me tornar a melhor adestruir o mal, então o bem virá até mim.»

Será que é assim tão simples?Será que então o amor vai ser outra vez possível? Ou não?

Já à saída do apartamento, Malin sente a pistola contra o peito. Abre cautelosamentea porta do quarto de Tove. Consegue vislumbrar as paredes no escuro, as filas delivros nas prateleiras, pressente o corpo juvenil, desproporcionado, de Tove sob olençol turquesa da cama. Tove dorme quase sem fazer ruído. É assim que dorme desdeos dois anos de idade. Antes disso, o seu sono era conturbado, acordava várias vezesdurante a noite, mas depois era como se tivesse compreendido que o silêncio e a calmaeram necessários, pelo menos durante a noite. Era como se a bebé de dois anos tivessepercebido que todas as pessoas, por vezes, precisam de ter a noite livre para sonhar.

Malin deixa o apartamento.Desce lentamente os três lanços de escada até chegar à entrada. A cada degrau, sente

mais frio. Na entrada, para lá do portão, quase zero graus.Deus queira que o carro pegue logo. Está tanto frio que até a gasolina parece querer

congelar.Ainda hesita junto do portão. A névoa do frio envolve o ambiente e entra pelos cantos

dos candeeiros da rua. Gostaria de voltar a correr pela escada acima, entrar noapartamento, tirar a roupa e enfiar-se na cama. Depois, a vontade é mais forte, quervoltar ao departamento de investigação criminal. Portanto, está na hora: abrir a porta,correr para o carro, encontrar a chave às apalpadelas, abrir a porta, atirar o corpo paradentro do carro, ligar o motor, e partir.

Quando sai, o frio aperta-lhe a garganta, parece ouvir os pêlos do nariz estalarem acada inspiração e sente que o fluido lacrimal tende a congelar pela acção do frio, masainda consegue ler a inscrição por cima de uma das portas laterais da Igreja de SantoLars: «Abençoados são os puros porque verão Deus.»

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Onde está o carro? O Volvo cinzento metalizado, modelo de 2004, está estacionadono seu lugar, em frente da Galeria de Santo Lars.

Braços cruzados.Com dificuldade, Malin consegue enfiar a mão no bolso do casaco onde pensa que

tem as chaves. Nada de chaves. No outro bolso? E no outro? Raios! Será que seesqueceu delas lá em cima? Então, concentra-se: estão no bolso dos jeans.

Abre, porta dos infernos! O gelo poupou o buraco da fechadura. Senta-seimediatamente no assento do condutor e começa a praguejar contra o frio, contra omotor que hesita e se recusa a pegar.

Tenta. E volta a tentar.Mas o motor não pega.Malin sai do carro. Pensa: vou ter de ir de autocarro, mas de onde é que ele vem?Com os diabos!, que frio! Raios partam o carro. E então o telefone toca.Agarra o maldito aparelho de plástico. Nem quer saber de quem se trata.– Sim, Malin Fors.– Aqui é Zeke!– O maldito do meu carro não quer pegar.– Calma, Malin. Calma. Ouve. Há um caso diabólico. Conto-te assim que chegar aí.

Dentro de dez minutos, em tua casa.As palavras de Zeke parecem pairar no ar. Pelo tom de voz, Malin percebe que algo

de muito sério aconteceu, mais sério do que aquilo que está a acontecer: o Invernomais frio de que há memória, agora alguns graus ainda menos suportável, o frio arevelar a sua verdadeira face.

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CAPÍTULO 2

OS ACORDES DE UM CORAL ALEMÃO ressoam dentro do carro que Zacharias «Zeke»Martinsson guia com segurança ao passar por um dos extremos da área de vivendasdenominada Hjulsbro. Pela janela lateral, consegue ver os beirais vermelhos e verdesdas enormes casas. Os beirais pintados estão carregados de gelo e as árvores, queconseguiram crescer majestosas durante os quase trinta anos que se passaram desdeque as casas foram construídas, transmitem uma imagem de fragilidade e de desgastepela exposição ao frio cortante, mas ainda assim todas as construções aparentam estarnotavelmente bem conservadas e aquecidas, de quem vive muito bem.

Gueto de médicos, pensa Zeke. É essa a designação que se lhes dá na cidade. É, semdúvida, uma área popular entre os médicos que trabalham no hospital. Exactamente emfrente, do outro lado da grande via, a Stureforsleden, atrás de um parque deestacionamento, estão os prédios brancos, relativamente baixos, de uma outra área, aEkholmen, com as casas de alguns milhares de imigrantes e de descendentes jánascidos na Suécia, bem menos afortunados.

Malin pareceu-me cansada, quase sonolenta. Talvez tivesse dormido mal. Talvez eulhe pergunte se lhe aconteceu alguma coisa. Mas não. É melhor calar-me. Ela costumaficar zangada quando lhe perguntamos como se sente.

Zeke tenta manter o pensamento longe do problema que em breve vão ter de enfrentar.Nem sequer tenta imaginar como se vai apresentar a situação. Vão saber em breve.Porém, os homens da patrulha pareciam impressionados e isso não era de espantar,atendendo ao cenário que descreveram. Com os anos de serviço, já estava habituado aretardar, a adiar tomar conhecimento de factos horrorosos, mesmo quando estes oatingiam directamente.

Johannelund era o nome da localidade por onde passava agora.Os campos de futebol onde costumavam jogar as equipas de miúdos estavam cobertos

de neve. Era lá que jogava Martin, na equipa da Saab, antes de decidir dedicar-setotalmente ao hóquei no gelo. Nunca o encorajei quando ele jogava futebol, pensa Zeke.E agora, quando as coisas no hóquei começam a correr muito bem ao meu filho, nãoaguento ter de ir ver os jogos. Ontem à noite foi uma tortura. Apesar de terem ganho àequipa do Färjestad por quatro a três. Nunca gostei deste jogo, por muito que queira.Um jogo para idiotas valentes.

Ou gostamos de uma coisa, pensa Zeke, ou não. Eu gosto do meu coral.Ensaiam duas noites por semana no Da Capo, o grupo coral a que ele se juntou há uns

dez anos, depois de arranjar coragem para lhes fazer uma visita e apresentar-se.

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Concertos, talvez uma vez por mês, uma viagem por ano para algum festival.Zeke gosta da liberalidade no convívio com os outros elementos do coro, ninguém se

importa com o que cada um faz. Encontram-se, conversam e cantam. Por vezes, quandoestá com os colegas, absorto nos cânticos numa qualquer igreja iluminada, sente apossibilidade de realmente pertencer a uma organização, de fazer parte de algo que émaior do que a sua própria e insignificante pessoa. É como se nos cânticos houvesseuma unidade e uma alegria espontâneas, um domínio em que não pode haver lugar parao mal.

Isso, porque é preciso manter o mal sob controlo, o mais possível.Neste momento, estão a caminho do mal. Com certeza absoluta.Neste momento, a localidade é Folkungavallen.O próximo passo na hierarquia do futebol. O campo de futebol foi negligenciado e

merece ser renovado. A equipa feminina do Clube Linköping FF é uma das melhoresdo país. Um grupo de mulheres, muitas a jogar na selecção nacional, que nuncaconseguiu entusiasmar os habitantes da cidade. A seguir, a piscina. As novas casas,perto do silo de estacionamento. Vira para outra rua, a Hamngatan, e passa por doiscentros comerciais, o Hemköp e o Åhléns, e depois vê Malin à porta de casa, a tremerde frio. Porque não esperou do lado de dentro?

Ela curva-se para a frente, mas parece, de certa maneira, imperturbável, cruzando osbraços contra o corpo, toda ela como que ancorada no solo pelo gelo, na certeza de queesse é o começo de mais um dia em que irá desempenhar o papel para o qual realmenteestá preparada.

E Malin está preparada, sim, para a investigação policial. Caso cometesse algumdelito, eu não iria querê-la no meu encalço, pensa Zeke, ao mesmo tempo que diz emvoz baixa:

– Com os diabos, Malin, onde é que este dia nos vai levar?

A música coral com o volume reduzido ao mínimo. Dentro do carro, cem vozes nummurmúrio.

O que conta a voz de um ser humano? pensa Malin.A sua maneira de repercutir, de acentuar os tons graves, de como que a sufocar as

palavras a meio da frase.A voz de Zeke tem uma rouquidão que Malin nunca ouviu noutra pessoa, um tom de

humildade construída que desaparece quando ele canta, mas que se tornaextraordinariamente acentuada quando fala agora sobre o que aconteceu:

– Vai ser, certamente, um cenário horrível – disse ele, com a voz rouca em que se

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destacava a sua dicção perfeita. – Foi o que disseram os homens do carro-patrulha aotelefone. Mas também, quando é que não é assim?

– O quê?– Quando é que não se trata de uma visão horrorosa?Zeke está sentado ao lado de Malin, ao volante do Volvo, com o olhar bem fixo na

estrada gelada, escorregadia.Os olhos.Nós confiamos neles. Noventa por cento das impressões que recolhemos do mundo

que nos rodeia são-nos dadas pelos olhos. São eles que prestam esse serviço. Aquiloque não vemos, não existe. Quase. Tudo o que possa esconder-se num armário fica defora. Problema resolvido. Simplesmente.

– Nunca – diz Malin.Zeke concorda com um aceno da sua cabeça rapada. Assente num pescoço

anormalmente longo, o crânio parece não combinar com o seu corpo curto e musculoso.A pele é lisa nas maçãs do rosto.

Do lugar em que está sentada, Malin não consegue ver os olhos dele. Mas confia nasua memória.

Conhece aqueles olhos. Sabe que descansam bem fundo no rosto e que, na maior partedas vezes, ficam quietos. Na sua cor mate, esverdeada, um pouco acinzentada, existeuma luz quase permanente que é a um tempo dura e suave.

Com cinquenta e cinco anos de idade, tem a calma de uma experiência enorme, aomesmo tempo que, de certa maneira, essa experiência o tornou mais irrequieto,implacável. Ou como ele próprio lhe disse uma vez, depois de muita cerveja e de muitaaguardente, numa festa de Natal: «Somos nós contra eles, Malin. Por vezes, por muitolamentável que isso possa soar, temos de usar os métodos deles. É a única linguagemque essa espécie de gente realmente entende.» E disse-o sem satisfação nem amargura.Foi apenas uma constatação.

Zeke não deixa transparecer a inquietação, mas ela conhece-o muito bem. Como devesofrer durante os jogos do filho Martin.

«…um cenário horrível.»Passaram onze minutos entre o telefonema de Zeke e o momento em que chegou para

apanhar Malin. A curta constatação dele quando ela se sentou no carro fez com que oseu corpo se encolhesse ainda mais, ainda que, contra a sua vontade, a deixasseextraordinariamente animada.

Ver Linköping pela janela do carro.

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A cidade esconde a sua pequenez de todas as formas, o verniz da sua história cadavez mais fino.

Aquela que antes era uma cidade de fábricas e de intenso comércio entre camponesestornou-se rapidamente uma cidade universitária. As fábricas foram em grande partedesactivadas. Os habitantes mais instruídos fizeram pressão. Optaram pela educação,nas escolas, na universidade, e logo nasceu a cidade mais fútil do país, com oshabitantes mais extraordinários do país.

Linköping.A cidade dos anos quarenta, com académicos inseguros e um passado para varrer

para debaixo do tapete a qualquer preço. Um povo que queria ser elegante e vestir-sebem, com as melhores roupas, para ir almoçar ao centro, aos sábados.

Linköping.Uma cidade maravilhosa para os doentes.E melhor ainda para as vítimas de queimaduras.No hospital da universidade existe a melhor unidade de queimados do país. Malin

esteve lá uma vez, para resolver um caso, vestida de branco da cabeça aos pés. Osdoentes conscientes gritavam de dor ou gemiam, os inconscientes sonhavam em serdispensados de acordar.

Linköping.O domínio dos aviadores. A morada da indústria de aviação. Os caças, tal qual

besouros, passam a zumbir pelo céu. Barris, Dragões, Raios e Sins voam numinfindável crescendo e, de repente, há novos-ricos a passear pelas ruas, depois devenderem a sua empresa de tecnologia de ponta aos Estados Unidos.

E as planícies e os bosques em volta. O lar de todos aqueles cujos genes nãoaguentam mudanças assim tão rápidas, cujos códigos protestam, que se recusam amudar. Sem a possibilidade de crescer noutro lugar qualquer.

Janne. És um desses?São os nossos códigos que não se ajustam no mesmo ritmo?Os «índios» selvagens. As pessoas em comunidades como Ukna, Nykil e Ledberg.

Podemos ver os «índios» em fatos de treino e de tamancos, lado a lado com osmédicos, os engenheiros e os pilotos de testes, no IKEA, aos sábados. Lado a lado, éassim que as pessoas devem viver. Mas, e se os códigos não combinam? Se o quaseamor for impossível? No ponto de ruptura entre o passado e o presente, entre o aqui e oali, entre o interior e o exterior, nasce por vezes a violência como possibilidade única.

Passam agora por Skäggetorp.Um milhão de casas de telhados brancos a rodear um centro deserto. Nessas moradias

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em banda moram aqueles que vieram realmente de longe. Aqueles que sabem quandoos torturadores de uniforme batem à porta durante a noite, aqueles que já ouviram osmachetes a silvar no ar no momento exacto em que o amanhecer acorda a selva,aqueles que ainda são vítimas do desvelo das autoridades da imigração.

– Passamos pelo Mosteiro de Vreta ou tomamos a Ledbergsvägen?– Estes não são exactamente os meus domínios – responde Malin.– Decide tu. Mas depressa.– É melhor seguir em frente. Então, como é que foi o jogo ontem?– Nem me fales nisso. Os assentos vermelhos do estádio são uma verdadeira tortura

para os nossos traseiros.Zeke passa pela saída que dá acesso à Ledbergsvägen e segue em frente na direcção

do Mosteiro de Vreta.A leste, vê-se o lago Roxen coberto de gelo. Mais parece um glaciar fora do sítio. E,

ao longe, do outro lado do lago, amontoam-se as mansões nas encostas que levam aoMosteiro de Vreta a partir de uma elevação abrupta. As comportas do canal Gota, aolado, aguardam os velejadores estivais e os barcos cheios de turistas americanosendinheirados.

O relógio no painel de instrumentos.7h22.Um cenário horroroso.Ela gostaria de pedir a Zeke para pisar no acelerador, mas permanece em silêncio.

Prefere fechar os olhos.A esta hora começa a chegar gente ao edifício da polícia e, normalmente, ela estaria a

dar os bons-dias aos outros colegas da área de investigação no Departamento deInvestigação Criminal de Linköping, já sentada atrás da sua secretária, na amplapaisagem da sala de trabalho. Estaria a observar o estado de espírito deles e adeterminar qual o tom que iria vigorar nesse dia. E diria ou pensaria:

«Bom dia, Börje Svärd. Levantaste-te e foste dar de comer aos teus cães. Nunca estádemasiado frio para cuidares dos teus animais, não é verdade? Os pêlos deles estãocolados às tuas camisolas, ao teu casaco, até aos teus cabelos cada vez mais raros. Oslatidos dos teus cães são para ti como vozes. Como é que realmente aguentas? Como éque se pode ver alguém que se ama sofrer tanto como a tua mulher sofre, todos osdias?»

«Bom dia, Johan Jakobsson. Foi difícil pôr as crianças na cama ontem? Ou estãodoentes? Há uma epidemia de gastroentrite. Passaste a noite em branco a limpar ovomitado, tu e a tua mulher? Ou sentiram a alegria silenciosa de quem vê os filhos

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adormecer cedo e bem-dispostos? Hoje, é a tua mulher que os deixa na escola e és tuque os vais buscar? Vocês chegam a horas. Tu chegas sempre a horas, Johan, emboraisso não seja suficiente. E a preocupação, Johan, eu vejo-a nos teus olhos, ouço-a natua voz. Nunca desaparece. Eu sei o que isso significa, porque essa preocupaçãotambém existe dentro de mim.»

«Bom dia, comissário Sven Sjöman. Como está o chefe de secção hoje? Tenhacuidado. Essa barriga está realmente demasiado grande, realmente perigosa. Deenfarte, como dizem os médicos no hospital da universidade. Barriga de viúva, comose diz à boca pequena no bar do hospital antes de colocarem a banda gástrica. Não meolhe assim com esse ar de pedinte, Sven, sabe que eu tento sempre fazer o melhorpossível. Tenha cuidado. Eu preciso de todos os que acreditam em mim, já que é fácilduvidar, mesmo quando a motivação é muito maior do que aquela que julgamos ter. Eentão as suas palavras, o seu conselho, “Tens muito talento para isto, Malin. Grandetalento, cultiva-o. Existem muitos talentos no mundo, mas são poucos os que sabemusá-los. Olha bem para aquilo que está à tua frente, mas não confies apenas naquilo queos teus olhos vêem, confia na tua intuição, Malin. Confia na intuição. Uma investigaçãoé composta por uma série de vozes, vozes que tu podes ouvir ou deixar de ouvir. Asnossas próprias vozes e as dos outros. É preciso escutar as vozes inaudíveis, Malin.São elas que escondem a verdade”.»

«Bom dia, Karim Akbar. Sabes que até o mais jovem, o mais mediático chefe dapolícia do país precisa de se dar bem connosco, pequenos funcionários? Tu deslizaspela sala com os teus fatos italianos, brilhantes, bem engomados, e é absolutamenteimpossível saber qual o caminho que vais tomar. Nunca falas do teu Skäggetorp, dacasa de fachada cor de laranja em Nacksta, no Sundsvall, onde cresceste sozinho com atua mãe e seis irmãos e irmãs, depois de terem fugido do Curdistão turco e do teu paise ter suicidado no desespero de não encontrar um bom emprego no novo país.»

– Em que estás a pensar, Malin? Pareces estar completamente na lua.As palavras de Zeke soam como uma chicotada. Com um movimento brusco, Malin

pára a sua brincadeira de saudações hipotéticas e volta a aterrar no carro, volta para ocaminho que leva ao acontecimento, à violência que surge nos pontos de ruptura, àpaisagem consumida pelo Inverno.

– Em nada – responde ela. – Estava apenas a pensar em como se deve estar bem lá noquentinho da esquadra.

– Deixaste entrar o frio na cabeça, Malin.– E como é que poderia impedir o frio de entrar na cabeça?– Endurece a tua posição, Malin, e o frio desaparece.

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– O frio?– Não, a ideia de que está frio.Passam pelo viveiro de Sjövik. Malin aponta pela janela para as estufas

esbranquiçadas pela geada.– É ali – diz ela – que se podem comprar tulipas na Primavera. Tulipas de todas as

cores, até as impensáveis.– Caramba – responde Zeke. – Mal posso esperar.

Avistam-se os faróis acesos do carro-patrulha, como se fossem estrelas coloridas emcontraste com o branco da paisagem e do céu.

Eles aproximam-se devagar, o carro parece arrastar-se metro a metro, lentamente,pelo campo coberto de neve, numa solidão que parece ter sido inventada para aquelelugar. Metro a metro sobre os cristais de neve, aproxima-se da meta, uma clareiraredonda e curvilínea. No local, uma ocorrência decorrente de outra ocorrência quedecorreu ainda de outra ocorrência, concentra as atenções. O vento sopra contra opára-brisas.

Por vezes, as rodas do Volvo derrapam na estrada recentemente limpa de neve ereaberta. E, talvez uns cinquenta metros à frente dos faróis dos carros da polícia,desenha-se no horizonte a figura meio indistinta de uma árvore, um carvalho isolado,com os seus tentáculos acinzentados a formar uma espécie de teia de aranha venenosa acontrastar com o céu nublado, branco, os ramos finos instigando uma teia de memóriase pressentimentos. Os ramos mais grossos do carvalho debruçam-se para o solo e,lentamente, pelo peso, deixam cair pedaços do manto de cristais brancos, diante dosolhos de Zeke e Malin.

Uma figura humana do lado de fora do carro-patrulha. Vêem-se duas cabeças pelovidro traseiro de um Saab estacionado alguns metros à frente.

Um cordão de isolamento à volta da árvore, quase até à estrada.E na árvore. Uma visão nada fascinante.Algo que deixa os olhos em dúvida.Para as vozes contarem.

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CAPÍTULO 3

DE CERTA FORMA, até é agradável ficar pendurado aqui em cima.A vista é esplêndida e o meu corpo congelado balança agradavelmente ao sabor do

vento. Posso deixar os pensamentos vaguear como quiserem. Há aqui uma calma quenunca antes vivi e que nem sequer pensava que existisse. A minha voz é nova. Oolhar, também. Talvez eu seja agora aquela pessoa que nunca tive oportunidade deser.

Lá longe, no horizonte, começa a amanhecer e a planície de Östgötaland surgecomo um manto branco acinzentado e parece infinita, a vista entrecortada apenaspor grupos de árvores que rodeiam pequenas casas de campo. A neve sobrepõe-seem ondas sobre as planícies e os campos, os pastos misturam-se com os camposlivres de neve, e lá muito abaixo dos meus pés pendentes, perto de um carro dapolícia, encontra-se um jovem, vestido com um fato de treino cinzento, de olharpreocupado de expectativa, agora quase satisfeito ao ver um carro a aproximar-se.Olha para mim com uma expressão de quem está a controlar o meu corpo, como seeu pudesse fugir.

O sangue congelou no meu corpo.O meu sangue congelou no céu e nas estrelas, muito longe, nas galáxias mais

afastadas. E, no entanto, continuo aqui. Mas já não preciso de respirar, isso seriamuito difícil atendendo ao laço que me envolve o pescoço. Quando saiu do carro e seaproximou no seu casaco vermelho, só Deus sabe o que estava a fazer aqui tão cedo,gritou e depois ficou a murmurar: «Com os diabos!, raios me partam, meu Deus…»

Depois, apressou-se a telefonar e agora está sentado no carro, a abanar a cabeça.Deus, sim. Uma vez, fiz uma tentativa para me aproximar d’Ele, mas o que é que

Ele me poderia dar? Ouço-o em todos os homens, esse apelo a Deus que eles fazemquando entram em contacto com o que julgam ser as trevas.

Agora não estou sozinho. São inúmeros os que estão à minha volta, embora nãohaja apertos. Aqui, há lugar de sobra para todos. No meu universo, em expansãoconstante, tudo se comprime ao mesmo tempo. Tudo se torna claro, mas, ao mesmotempo, extraordinariamente obscuro.

É claro que doeu.É claro que tive medo.É claro que tentei fugir.Mas ainda assim, bem dentro de mim mesmo, eu sabia que já tinha vivido tudo. Não

estava satisfeito, mas cansado, cansado de me mover em círculos à volta daquilo que

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me era negado, que eu, no entanto, lá bem no fundo, queria ter, de que queriaparticipar.

Os movimentos das pessoas.Jamais os meus movimentos.Por isso é agradável estar aqui nu e morto, pendurado num carvalho isolado, numa

das áreas mais férteis do país. Acho que aquelas duas luzes do carro que seaproxima pela estrada são bonitas.

Antes, nada era bonito para mim.Será que a beleza só existe para nós, os mortos?É maravilhoso ser dispensado de todas as preocupações dos vivos.

O frio não tem cheiro. O corpo nu e ensanguentado por cima da cabeça de Malinmovimenta-se lentamente para a frente e para trás, sendo o carvalho a forcainvoluntária cujo ranger se mistura com o barulho de um motor de carro em pontomorto. A pele soltou-se em grandes camadas das costas e da barriga protuberante e acarne ensanguentada, congelada, apresenta-se com uma miscelânea de tons vermelhos.Aqui e ali, nos membros, como que ao acaso, as feridas são profundas, côncavas, feitasà faca em fatias retiradas do corpo. O sexo parece intocado. O rosto apresenta-se semcontornos, é uma massa arroxeada, inchada, gelada. Apenas os olhos, bem abertos,espantados, cheios de sangue, quase surpresos e ansiosos, mas ao mesmo tempoinundados de um medo hesitante, revelam que o rosto é de um ser humano.

– Ele deve pesar, no mínimo, uns cento e cinquenta quilos – diz Zeke.– No mínimo – reage Malin a pensar que já antes viu olhos assim em vítimas de

assassínio. Quando somos colocados perante a morte, tudo se torna original, por muitoque tenhamos visto antes, desde os tempos em que éramos novos. Olhos cheios demedo, ávidos, mas capazes de expressar espanto desde o primeiro momento.

É o que costuma pensar quando se depara com cenas como esta. Vale-se da memóriapara relembrar essas cenas e tudo o que já leu sobre o assunto, tenta fazer acomparação do que os olhos viram com o que as teorias dizem. E tenta fazer com quecoincidam.

Os olhos dele.Acima de tudo, vê-se neles raiva. E desespero.Os outros aguardam no carro-patrulha. Zeke diz ao agente da polícia para se sentar no

carro e aguardar.– Não precisas de ficar aí a apanhar frio. Ele está lá pendurado e lá pendurado vai

ficar.

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– Vocês não vão ouvir o homem que o encontrou? – O agente da polícia olha por cimado ombro. – Foi ele que o encontrou.

– Deixa-nos fazer o ponto da situação.E assim continua aquele corpo frio e inchado na árvore isolada: o corpo de um bebé

gigantesco a quem alguém ou alguns tiraram a vida.O que é que quer de mim? pensa Malin. Por que razão me trouxe aqui nesta manhã

esquecida por Deus?O que é que nos quer contar?Os pés estão roxos, com os dedos negros, a apontar para o chão branco.Os olhos, pensa Malin. A sua solidão. Parece um movimento pela planície, pela

cidade, em direcção a mim.

Primeiro, o que é evidente.O ramo está a cinco metros do solo, o corpo está nu, não há sangue na neve, nenhuma

pista no manto profundo à volta da árvore, a não ser as marcas frescas de um par debotas.

Do homem no carro que te encontrou, pensa Malin. Uma coisa é certa: não subiste aípara cima por ti. E as feridas no corpo, alguém as fez. E é de supor que não foi aquique foste ferido, senão o chão por baixo de ti devia estar coberto de sangue. Não;estiveste a congelar durante muito tempo noutro sítio, tanto tempo que até o teu sanguecongelou.

– Estás a ver as marcas no ramo da árvore? – Pergunta Zeke, ao mesmo tempo quelevanta os olhos para o corpo.

– Estou – responde Malin. – É como se alguém tivesse arrancado a casca.– Podia jurar que a pessoa que fez isto usou uma roldana para içar o corpo e só

depois colocou a corda no pescoço.– Ou pessoas – responde Malin. – Podem ter sido várias.– Não há nenhuma pista que venha da estrada até aqui.– Não, mas a noite foi ventosa. O solo muda de minuto a minuto. Neve solta, depois

crosta gelada. Muda tudo a toda a hora. Quanto tempo pode subsistir uma pista? Umquarto de hora, uma hora. Não mais do que isso.

– De qualquer maneira, vamos ter de deixar os técnicos pesquisarem o terreno.– Para isso vão precisar do maior aquecedor do mundo – diz Malin.– Vão ter de arranjar.– Há quanto tempo pensas tu que ele está pendurado lá em cima?– É impossível dizer. Mas quando muito, desde a noite passada. Durante o dia,

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alguém o teria visto.– Mas podia já estar morto há muito tempo – diz Malin.– Esse é um problema para Johansson.– Algo relacionado com sexo?– Não está tudo relacionado com sexo, Fors?Zeke usa o apelido dela quando está a brincar, quando responde a uma pergunta que

acha desnecessária ou idiota, ou apenas formulada de maneira idiota.– Vamos lá, Zeke.– Creio que não tem nada que ver com sexo. Não.– Óptimo. Então, estamos de acordo.Regressam aos carros.– Quem fez isto – diz Zeke – deve ter uma determinação diabólica. Seja como for, não

é uma manobra fácil trazer o corpo até aqui e depois içá-lo para a árvore. – Eacrescenta: – É preciso estar com muita raiva.

– Ou muitíssimo magoado – reage Malin.

– Sentem-se no nosso carro que ainda está quente.Os agentes saem do carro-patrulha.O homem de meia-idade no assento traseiro olha, interrogativo, para Malin, e faz

menção de se levantar.– Deixe-se ficar – diz ela. E o homem afunda-se no assento, mas mantém-se alerta e

franze as sobrancelhas muito finas. Todo o seu corpo exprime uma e a mesma coisa:raios me partam, como é que vou explicar isto? O que é que eu estava a fazer aqui, aesta hora?

Malin senta-se ao lado dele. Zeke fica no lugar da frente.– Óptimo – exclama Zeke. – Estamos melhor aqui dentro do que lá fora.– Não fui eu – diz o homem, virado para Malin, com os olhos húmidos de

preocupação. – Eu não devia ter parado. Foi uma idiotice. Devia ter continuado aviagem.

Malin pousa a mão no braço do homem. O tecido vermelho almofadado afunda-se sobos seus dedos.

– Fez o que devia fazer.– Quer dizer, eu estive…– Vamos lá – diz Zeke, virado para trás. – Acalme-se. Comece por dizer como se

chama.– Como me chamo?

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– Isso mesmo – confirma Zeke.– A minha amante…– O nome.– Liedbergh. Peter Liedbergh.– Obrigado, Peter. Agora pode começar a contar a sua história.– Portanto, eu estive com a minha amante em Borensberg e regressava a casa por este

caminho. Moro em Maspelösa e por aqui é mais perto. Confesso, mas não tive nadaque ver com isto. Vocês podem confirmar com ela. Ela chama-se…

– Nós vamos confirmar, sim – diz Zeke. – Portanto, você regressava a casa depois deuma noite de amor, é isso?

– Sim, e escolhi este caminho para regressar. A estrada não tinha neve e então vi umacoisa estranha na árvore e parei. Saí do carro e, com os diabos, foi isto. Meu Deus!

Movimento de pessoas, pensa Malin. Luzes de carros a brilhar na escuridão, luzes apiscar. Depois diz:

– Quando parou, não havia aqui ninguém? Viu alguém?– Ninguém. Tudo deserto.– Cruzou-se com algum outro carro?– Não nesta estrada. Mas alguns quilómetros antes da saída para aqui cruzei-me com

uma carrinha, não me lembro da marca.– A matrícula?A voz grave de Zeke.Peter Liedbergh abana a cabeça.– Vocês podem confirmar tudo com a minha amante. Ela chama-se…– Nós vamos confirmar tudo.– Sabem, primeiro pensei em seguir viagem. Mas sei muito bem o que é correcto, o

que se deve fazer numa situação como esta. Juro. Eu não tenho nada que ver com ocaso.

– Nós também achamos que não – diz Malin. – Eu, quero dizer, nós não conseguimosacreditar que telefonasse se tivesse alguma coisa a ver com isto.

– E a minha mulher? A minha mulher precisa de saber?– Saber de quê? – pergunta Malin.– Eu disse-lhe que tinha de trabalhar na padaria, a Karlssons Bageri. Trabalho lá à

noite mas, quando é assim, vou por outro caminho.– Não precisamos de lhe dizer nada – diz Malin. – Mas, mesmo assim, ela vai acabar

por saber.– Mas o que é que lhe vou dizer?

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– Diga que foi dar uma volta. Estava sem sono.– Ela não vai acreditar. Costumo chegar sempre esgotado. E com este frio…Malin e Zeke trocam um olhar.– Tem mais alguma coisa que considere interessante para nos contar?Peter Liedbergh abana a cabeça de novo.– Já posso ir-me embora?– Não – diz Malin. – Os técnicos precisam de verificar os dados do seu carro e medir

a sola das suas botas. Temos de verificar se as marcas deixadas aqui na neve são assuas e de mais ninguém. E ainda tem de dar o nome e a morada da sua amante aosnossos colegas.

– Eu não devia ter parado – diz Peter Liedbergh. – Teria sido melhor deixa-lo lápendurado. Quer dizer, mais cedo ou mais tarde alguém iria descobri-lo.

O vento aumenta de intensidade, entranha-se pelo tecido falsamente almofadado docasaco de Malin, atinge a pele, a carne, até às mais ínfimas partículas do seu ser. Osharmónicos da tensão entram de serviço, ajudam os músculos a enviar sinais de dorpara o cérebro e ela sente dores por todo o corpo. Malin pensa em como deve serhorrível morrer de frio e congelar. Não se morre nunca de frio, mas de tensão, da dorque o corpo sente quando não consegue conservar a temperatura normal e entra emgrande actividade, enganando-se a si mesmo. Quando se está realmente com frio, sente-se um calor que se espalha pelo corpo. É uma sensação enganosa, os pulmões nãopodem continuar a oxigenar o sangue, sufoca-se e ao mesmo tempo ficamos com sono,mas o calor ainda existe e aqueles que sobreviveram a esse estado falam deafogamento, de como se sentiram a afundar, a cair, para depois subir de novo para umanuvem, tão macia e branca e quente que todo o medo desaparece. Essa sensação denuvem macia é uma invenção fisiológica, pensa Malin. É apenas a morte a acariciar-nos para que a aceitemos.

Vê-se um carro ao longe.Já são os técnicos?Dificilmente.É mais provável que sejam as hienas do jornal Östgöta Correspondenten que

sentiram o cheiro. Será ele? chega a pensar Malin, antes mesmo de começar a ouvir umforte e preocupante ranger, ranger que vinha do local onde se erguia o carvalho. Elavira-se e vê o corpo a balançar. Não deve ser agradável ficar assim pendurado.

Espera mais um pouco que já vamos tirar-te daí.

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CAPÍTULO 4

– MALIN, MALIN, O QUE TENS A DIZER-ME?

O frio parece comer as palavras de Daniel Högfeldt; as ondas sonoras como queparam no ar a meio do caminho. Apesar de estar vestido com um casaco almofadado,com gola de pele, existe algo na sua presença e na sua maneira de andar que revelasimplicidade e elegância, uma maneira de andar que demonstra domínio e sabedoria noexercício do poder na Terra.

Ela enfrenta-lhe o olhar e vê nele um sorriso trocista, uma alusão subtil a uma históriaanterior àquele momento, uma história secreta que ele conhece e que ela não quer queninguém imagine, nem por sombras. E ela sabe o que ele pensa: «Eu sei, tu sabes e vouusar isso para obter o que quiser quando quiser.» Chantagem, pensa Malin. Comigo,não funciona. Quando é que vais jogar a tua cartada, Daniel? Agora? Porque não? Éuma boa oportunidade. Mas eu não me vou dobrar. Temos a mesma idade, mas nãosomos iguais.

– Ele foi assassinado, Malin? Como é que foi parar àquela árvore? Algumainformação DEVES ter para me contar!

De repente, Daniel Högfeldt está colado a ela, o seu nariz recto parece tocar o dela:– Malin?– Não vais dar nem mais um passo. E eu não vou dizer nada. Não te DEVO nada.E o sorriso trocista abre-se ainda mais, mas Daniel decide recuar.A câmara da fotógrafa dispara sem cessar, enquanto ela se movimenta pelo lado de

fora da área interdita à volta da árvore e do corpo.– Afasta-te, porra! – grita Zeke. E pelo canto do olho Malin vê os dois agentes a

correr na direcção da fotógrafa que, lentamente, baixa a câmara e recua para o carro dereportagem.

– Malin, claro que ele foi assassinado, já que querem manter o local intacto. Algumacoisa deves ter para me contar. Se me perguntares, dir-te-ei que não se trata desuicídio.

Ela afasta Daniel, sente o braço roçar pelo dele, quer recuar, quer andar, mas ouve avoz dele a chamar por ela. E então, pensa: como é que eu pude? Como é que se podeser tão idiota?

Depois, vira-se para o jornalista do Correspondenten:– Nem mais um passo. Volta para o carro e fica lá. Ou, melhor ainda, sai daqui, vai-te

embora. Aqui está frio, apenas isso. E já têm as fotos do corpo, certo?Daniel sorri, um sorriso de garoto atrevido que, ao contrário das suas palavras,

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atravessa a atmosfera gelada.– Mas, Malin, estou só a fazer o meu trabalho.– A única coisa que vai acontecer aqui, agora, é a chegada dos técnicos para

realizarem o trabalho deles. Só a partir daí é que nós vamos tomar conta do assunto.– Já acabei – grita a fotógrafa. E Malin imagina que ela não pode ser muito mais

velha do que Tove, talvez uns oito, nove anos. Para não falar das dores provocadaspelo frio, que ela deve sentir nos dedos nus que seguram e disparam a máquinafotográfica.

– Ela deve estar gelada – diz Malin.– Pois deve – diz Daniel que, em seguida, passa por Malin em direcção ao carro, sem

olhar para ela.

Quando recomecei a pensar, achei que ela ia ajudar-me a descer daqui. Já mecansei de estar pendurado. É esta a minha situação. Fico a balançar aqui, nestelugar. Estou aqui e por toda a parte. Mas este lugar, na árvore, não serve paradescansar. Aliás, o descanso talvez nunca chegue. Ainda não sei.

Todas estas pessoas de roupas almofadadas.Não sabem como são ridículas?Acham que podem defender-se do frio?Será que não está na hora de me tirarem daqui?Começo a ficar cansado deste balançar e dessa brincadeira que estão a fazer aí na

neve por baixo do meu corpo. Mas é divertido ver como os vossos passos deixammarcas na neve, marcas que me divirto a seguir, rodando, rodando como se fossemlembranças inquietantes, escondidas em inalcançáveis sinapses.

– Eu não suporto esse tipo – diz Zeke, quando vê o carro do Correspondentendesaparecer na névoa. – É uma sanguessuga hiperactiva afogada em cocaína.

– Por isso mesmo – diz Malin – é considerado muito bom no trabalho que faz.As metáforas americanas de Zeke. Aparecem quando menos se espera e Malin

reflectiu muitas vezes sobre qual seria a sua origem. Pelo que sabia, Zeke não era um

amante da cultura popular americana e nem sequer sabia quem era Philip Marlowe1.– Se é assim tão competente, o que está ele a fazer num jornal de província?– Sente-se bem por aqui.– Certamente.Depois, Malin olha de novo para o corpo.– Como imaginas tu que é estar pendurado lá em cima?As palavras ficam a pairar no ar por algum tempo.

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– É apenas carne – responde Zeke. – E a carne não sente. Seja quem for a pessoa, oser humano que está lá em cima já não está aqui.

– Ainda assim pode contar-nos muitas coisas – diz Malin.

Karin Johannison, analista, patologista e investigadora no Laboratório Nacional deCiências Forenses, SKL, a trabalhar em part-time como investigadora da Polícia deLinköping nos cenários de crime, aparece num casaco de penas muito sofisticado edistinto, mas vem a bater febrilmente os braços contra o corpo, em movimentosdeselegantes. No ar soltam-se pequenas penas que em contacto com a neve que caiformam uma espécie de grãos. E Malin repara que aquele casaco deve ter sidoincrivelmente caro, atendendo ao acolchoado vermelho bem preenchido de penas.

Mesmo com gorro de pele e faces rosadas por causa do frio de Fevereiro, a imagemde Karin parece a de uma princesa da Riviera, levemente envelhecida. Ou a de umaFrançoise Sagan de meia-idade, sem nenhuma preocupação de maior e demasiadobonita para fazer aquele tipo de trabalho. O bronzeado do sol das férias na Tailândiano Natal anterior ainda se nota na pele dela e Malin por vezes inveja Karin, casadacom um homem rico e com uma vida sem complicações.

Aproximam-se do corpo, cautelosamente, andando sobre as pegadas já existentes.Karin age como uma perita, mete-se por baixo do corpo nu, por baixo da árvore na

sua frente, evita ver a gordura, a pele, aquilo que antes tinha sido um rosto. Evitaimaginar todas as ideias que poderiam ter passado pelo cérebro inchado daquelecorpo, deduções que agora, lentamente, começam a preocupar toda a cidade,estendendo-se pelos prados e bosques como um murmúrio sinistro, uma discussão que,eventualmente, só poderá parar com a resposta à pergunta:

Quem fez isto?O que estás a ver, Karin?Já sei, pensa Malin, vês um objecto, um parafuso ou uma rosca, um pormenor que

deverá ser analisado, que poderá contar uma história.– É quase certo que ele nunca poderia chegar onde está por si mesmo – afirma Karin,

de pé, directamente por baixo do corpo. Tinha acabado de fotografar as marcas dossapatos em volta, desenhando uma linha em torno delas, mesmo percebendo que, quasede certeza, eram apenas as marcas deles próprios e de Peter Liedbergh. De qualquermaneira, precisavam de ser verificadas.

Malin não responde, mas pergunta:– Há quanto tempo pensas que ele está morto?– É impossível responder a essa pergunta, olhando apenas para ele. Aqui não

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conseguimos avaliar nada. Essa questão só poderá ser respondida na sala de autópsias.Era a resposta esperada. Malin resolve pensar no bronzeado de Karin, no seu abafo

bem almofadado enquanto o vento se entranha no seu casaco, comprado nosupermercado.

– Temos de pesquisar o terreno antes de baixar o corpo – diz Karin. – Vamos ter detrazer para aqui o aparelho de aquecimento que os militares têm em Kvarn e montaruma tenda assim que conseguirmos acabar de verificar esta neve aqui em baixo.

– Não vai ficar tudo um lamaçal? – Pergunta Malin.– Só se aquecermos o local tempo de mais – responde Karin. – Eles podem trazer

para aqui o aparelho dentro de algumas horas, caso não estejam a trabalhar com elenoutro lugar.

– O corpo não devia ficar aqui pendurado por muito mais tempo – diz Malin.– Estão trinta graus negativos agora, aqui – diz Karin. – Com um frio destes, não vai

acontecer nada ao corpo.

Zeke deixa o motor do carro a trabalhar em ponto morto e há uma diferença dequarenta graus entre a temperatura no interior do carro e a atmosfera exterior. O ar queexpiram transforma-se em cristais nas janelas laterais do carro.

Malin senta-se à frente, no assento do passageiro.– Fecha a porta – geme Zeke. – A senhora Johannison está a verificar o local?– Kvarn. Ela vai mandar vir de lá o aparelho para derreter a neve.Chegaram mais dois carros-patrulha e pelos ramos das árvores, esbranquiçados pela

neve, Malin consegue ver Karin a dar instruções aos agentes.– Agora podemos ir embora – diz Zeke.Malin concorda.Ao passar de novo pelo viveiro de Sjövik, Malin liga o rádio e sintoniza a estação

P4. Uma velha amiga, Helen Aneman, é apresentadora de um programa que vai para oar todos os dias, entre as sete e as dez horas da manhã.

O relógio no painel de instrumentos indica que são oito horas e trinta e oito minutos.A voz suave da amiga surge, enquanto uma melodia se esbate no éter.«Durante a música que acabámos de ouvir, entrei no site do Correns. Não é um dia

normal em Linköping, caros ouvintes. E não é do frio que estou a falar. A polícia acabade encontrar um corpo nu, pendurado num carvalho no meio de um prado, para os ladosdo Mosteiro de Vreta.»

– Aquele não perde tempo – comenta Zeke, sobrepondo-se à voz na rádio.– Ele é bom – diz Malin.

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«Se quiserem começar o dia com emoções fortes – continua a voz de veludo na rádio– entrem no site do Correns: aí poderão ver imagens de um pássaro diferente pousadona árvore.»

1 Philip Marlowe é uma personagem fictícia criada pelo escritor americano Raymond Chandler para protagonizaruma série de histórias policiais. (N. do T.)

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CAPÍTULO 5

DANIEL HÖGFELDT RECOSTA-SE NA SUA CADEIRA do escritório e o encosto flexívelobedece inclinando-se para trás e para o chão.

Fica a balançar para a frente e para trás, como fazia na cadeira de baloiço do avô nacasa de campo em Vikbolandet, que ardeu pouco depois de a avó, finalmente,adormecer para sempre no Hospital de Vrinnevis. Daniel olha primeiro pela janela quedá para a rua do porto, a Hamngatan, e depois para a panorâmica sala da redacção,para os colegas que se debruçam sobre os computadores, a maioria deles meioindiferentes diante do trabalho a realizar, contentes com o que têm e cansados, muitocansados. Se existe um veneno para os jornalistas, pensa Daniel, é o cansaço. Ocansaço destrói, mata.

Eu não estou cansado.Nem um pouco.Fez referência a Malin no seu artigo sobre o homem na árvore.Malin Fors e a Polícia de Linköping não querem dar nenhuma informação…Para a frente e para trás.Exactamente como a maioria das investigações sobre crimes que ele cobriu.Ouvem-se as batidas nos muitos teclados, esparsas chamadas em voz alta pela sala e

sente-se o aroma acre do café.Muitos dos seus velhos colegas são de um cinismo muito para além do razoável e

produtivo. Mas ele não. Pelo contrário. É preciso manter uma espécie de respeito pelaspessoas cuja história e infelicidade constituem o pão de cada dia para os jornalistas.

Um homem nu, pendurado numa árvore. Enforcado.Uma bênção para quem tem páginas de jornal para preencher e vender.Mas há mais, algo diferente.A cidade vai acordar. Podem estar certos.«Eu sou competente naquilo que faço porque gosto de brincar a essa brincadeira

chamada “jornalismo”, mas também porque sei como manter a distância e pôr aspessoas umas contra as outras.»

Cinismo?A rua, a Hamngatan, estende-se lá fora dominada pelo Inverno.Os lençóis amarrotados no apartamento de Malin Fors. Apenas a dois quarteirões de

distância.

A testa enrugada de Sven Sjöman, a sua barriga protuberante, a camisa de ganga que

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mal consegue meter por dentro das calças de fazenda castanha. A sua cara de umbranco acinzentado, tão vazia de vida como o casaco que usa. Os cabelos ralos, tãobrancos quanto o quadro que tem à frente. Sven prefere fazer reuniões com pouca gentee transmitir depois as conclusões aos outros. As reuniões que fazem nos outros distritospoliciais nunca são tão produtivas segundo o seu ponto de vista.

Costuma convocar reuniões deste tipo quando o pessoal começa a trabalhar num novocaso. A pergunta «quem?» tem de ter uma resposta. E é da sua responsabilidade fazercom que todos comecem à procura de um caminho que, eventualmente, leve à resposta:ele, ela, eles.

Existe um vazio enganador, um veneno gotejante, na sala de reuniões. Isto porque oscinco inspectores sabem que quando o ponto de interrogação surge suspenso no ar podeinfluenciar e mudar um distrito, uma província, um país ou até o mundo inteiro.

A sala está situada no piso térreo de uma das antigas casernas militares transformadasem posto policial há mais de uma dezena de anos, quando o regimento foi extinto.Saíram os militares, entraram os polícias.

Do lado exterior, em frente da janela, existe um relvado com dez metros de largura,agora todo coberto de neve, um recreio vazio e deserto com baloiços e escorregaspintados com cores vivas, mas que o gelo transforma numa mistura louca de tonscinzentos. No recreio, pela grande janela da creche, Malin pode ver as crianças abrincar, a correr de um lado para o outro, a preparar as actividades que fazem parte doseu mundo.

Tove.Já passou muito tempo desde que brincavas assim.Malin liga-lhe do carro. Tove atende quando está a sair:– Claro que me levantei.– Agasalha-te bem.– Pensas que sou idiota?Zeke:– Adolescentes. São como cavalos numa pista de corrida. Nunca fazem aquilo que

queremos.Por vezes, quando se dedicavam a investigações de crimes violentos e examinavam

imagens colocadas nas paredes da sala de reuniões, baixavam as persianas da janelapara evitar que as crianças da creche as vissem, embora certamente elas as vissemtodos os dias na televisão, quando o aparelho está ligado num quarto qualquer, asimagens se sucedem, e as crianças aprendem a acreditar no que vêem.

Um pescoço cortado. Um cadáver queimado e pendurado num poste telefónico. Um

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outro cadáver inchado numa cidade inundada.E agora as palavras de Sjöman, as mesmas palavras de sempre, a sua voz rouca:– O que pensam que aconteceu? Alguém faz ideia? Ninguém telefonou a alertar para

um desaparecimento. Mas se alguém tivesse desaparecido, por esta altura já tinhamtelefonado. Portanto, o que temos nós? – Uma pergunta atirada para a sala por umhomem de pé, na direcção de pessoas sentadas em volta de uma mesa comprida, umdedo que pressiona o botão Play de um aparelho, as palavras que soam como música,tonalidades diversas, frágeis e duras, entre quatro paredes.

***

Johan Jakobsson toma a palavra e apercebe-se de que estava à espera de poder ouvira sua própria voz, que queria dizer alguma coisa, qualquer coisa, nem que fosse apenaspara quebrar o efeito do seu próprio cansaço.

– Está claro que se trata de algum tipo de ritual.– Nem sequer temos a certeza de ele ter sido assassinado – diz Sven Sjöman. – Não

teremos a certeza até Karin Johannison fazer o seu trabalho. Mas podemos partir doprincípio de que ele foi assassinado. Até aí estamos de acordo.

Nunca se sabe nada ao certo, Malin, antes de se saber. Até então, prevalece aignorância.

– Parece, de facto, um ritual.– Devemos abordar este caso, sem ideias preconcebidas.– Nem sabemos quem ele é – diz Zeke. – Parece-me boa ideia começar por saber de

quem se trata.– Talvez ainda alguém venha a telefonar. As imagens já estão no jornal – dizem Johan

e Börje Svärd, que até então tinham ficado em silêncio, suspirando.– As imagens? Não se vê o rosto.– Mas quantos gordos existem na área? Alguém dará por falta deste gordo.– Não estejas tão certo disso – diz Malin. – A cidade está cheia de gente de que

ninguém sentiria a falta se desaparecesse.– Mas ele parece tão especial, o corpo dele…– Se tivermos sorte – interrompe Sven Sjöman – alguém vai telefonar. Por agora só

nos resta esperar pelo resultado das investigações feitas no local e pela autópsia. Edepois vamos ter de bater às portas das redondezas, uma a uma, para saber se alguémviu ou ouviu alguma coisa, se sabe de algo que nos possa ser útil. Nós temos, comosabem, uma pergunta que precisa de ser respondida.

Sven Sjöman, pensa Malin.

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A quatro anos de atingir os sessenta e cinco e a reforma. Quatro anos a correr o riscode sofrer um ataque de coração, quatro anos de horas extras, quatro anos de boacomida carinhosamente preparada pela mulher, mas, infelizmente, cheia de gordura.Quatro anos de pouco exercício. Barriga de viúva. Mas, de qualquer maneira, Svenainda é a voz do bom senso na sala, a voz da experiência, da ordem mantida e dadisciplina, aquele que sabe falar desprendidamente e de consciência limpa.

– Malin, tu e o Zeke serão os principais responsáveis pela investigação preliminar –anuncia Sven. – Vou providenciar os recursos de que precisam para o trabalho decampo. Os outros dois vão ajudar o mais que puderem.

– Eu gostaria de assumir este caso – diz Johan.– Johan, nós já temos outro caso – responde Börje. – Não nos podemos dar ao luxo de

repartir a nossa concentração por mais de um caso.– A reunião acabou? – Pergunta Zeke, enquanto afasta a cadeira para trás e se levanta.Nesse preciso momento, quando já estavam todos levantados, abre-se a porta da sala.

– Podem voltar a sentar-se.Karim Akbar põe todo o peso dos músculos do seu corpo de trinta e sete anos por

detrás dessas palavras. Coloca-se ao lado de Sven Sjöman e espera que os quatroinspectores se sentem novamente nas cadeiras.

– Vocês compreendem como é importante… – começa Karim. E Malin pensa como apronúncia dele soa diferente, consequência de ter chegado à Suécia apenas com dezanos de idade. Quando fala, exprime-se em puro sueco sem qualquer sotaque regional.– … Como é importante – repete ele – colocar ordem nisto. – E exprime-seexactamente como se estivesse a apresentar uma tese que precisa de ser discutida empúblico.

Em nome da inteligência e do zelo.Começando do zero e querendo chegar longe, não se pode deixar nada ao acaso.

Karim Akbar já escreveu artigos polémicos nos jornais Svenska Dagbladet e DagensNyheter. Perfeitamente adaptados às exigências do seu tempo. Os seus pontos de vistamexeram com muita gente: que os imigrantes devem ser exigentes quanto à sua própriaconduta, que as ajudas obtidas devem depender do conhecimento que tiverem da línguasueca um ano depois de terem chegado ao país. Que o isolamento só poderá acabarquando se começarem a empenhar na integração.

O seu rosto no televisor, em debates. Fazer exigências liberta a força existente emtodas as pessoas. Olhem bem para mim. Consegue-se. Sou um exemplo vivo.

Mas, e os medos? pensa Malin.

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E as pessoas que nascem tímidas?– Nós sabemos que o nosso trabalho é justamente esse. Pôr ordem nas coisas – diz

Zeke. E Malin repara em como Johan e Börje se riem à socapa, ao mesmo tempo queSven faz uma expressão de como quem diz: calma, Zeke. Deixa que ele faça o seudiscurso. Lá por não entrares em conflito com ele não quer dizer que sejas apenas uminstrumento nas mãos dele. Por amor de Deus, tu já não tens idade para rebeldias,Martinsson, pois não?

Karim olha para Zeke como que a dizer: respeita-me, não uses esse tom. Mas Zekeenfrenta-lhe o olhar. E Karim resolve continuar:

– Os jornais e os outros meios de comunicação vão fazer uma grande cobertura destecaso e eu vou ter de responder a muitas perguntas. Temos de resolver este casorapidamente. Temos de dar uma boa imagem da eficiência da Polícia de Linköping.

Malin pensa que as palavras de Karim soam como se passassem através de umamáscara. Ninguém fala assim quando quer ser levado a sério. Parece que a pessoarealmente competente que está à sua frente desempenha o papel de uma pessoacompetente, quando, na realidade, devia descontrair-se e mostrar a sua… a sua quê?…fragilidade?

Em seguida, Karim dirige-se a Sven.– Como é que vais distribuir os recursos?– Fors e Martinsson serão os responsáveis. Todos os recursos ficarão à disposição

deles. Jakobsson e Svärd ajudarão sempre que tiverem tempo para isso. Anderssonestá de baixa médica. E Degerstad está em Estocolmo, a tirar um curso. A situação éesta.

Karim respira fundo e retém o ar nos seus enormes pulmões por algum tempo antes deexpirar:

– Vamos fazer assim. Tu, Sven, assumes como habitualmente a responsabilidade peloinquérito preliminar. E vocês os quatro vão formar uma equipa. Tudo o resto vai ficarcomo está. Este caso tem prioridade absoluta.

– Mas…– É assim que vai ficar, Martinsson. Não duvido da tua capacidade, nem da

capacidade da Fors, mas precisamos de concentrar as nossas forças.A barriga de Sven parece ficar ainda maior, as rugas na testa ainda mais fundas:– Será que devo contactar o Departamento Central de Investigação Criminal?

Formalmente ainda nem sabemos se ele foi assassinado.Karim dirige-se à porta:– Nada de Departamento Central de Investigação Criminal. Este caso será resolvido

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por nós. Ficas encarregado de me comunicar a evolução dos acontecimentos, de trêsem três horas, ou menos, se acontecer alguma coisa.

O bater da porta accionada pela respectiva mola ecoa pela sala.– Ouviram o que ele disse. Vão ter de trabalhar em conjunto e informar-me sobre as

vossas actividades.As crianças que brincavam no parque da escola já se foram embora. O móbil amarelo

inspirado nos de Calder flutua logo por baixo das cortinas axadrezadas.Pele roxa a desprender gordura.Supliciado e sozinho, ao vento gelado.Quem és tu? pensa Malin.Volta e diz-nos quem eras.

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CAPÍTULO 6

AGORA MONTARAM UMA TENDA por baixo de mim. A sua cor verde à noite vai ficarcinzenta e eu sei que vai estar quentinho lá dentro, mas nem uma réstia desse calorvai chegar até mim.

Será que mais tarde vou sentir algum calor? Será que um dia ainda vou sentiralgum calor? Eu vivia perto, nesta região, de certa forma livre do mundo em quevocês vivem, mas, agora, que grande liberdade.

Mas já não preciso do vosso calor, não do que vocês entendem por calor. O calorexiste à minha volta. Não estou sozinho. Ou talvez seja isso mesmo. Eu sou asolidão, o seu cerne. Será que enquanto era vivo eu era já o cerne da solidão? Amatéria do núcleo da solidão. O mistério de cuja solução nos aproximamos, areacção química, o processo certamente simples, mas vasto, grandioso, nos nossoscérebros, que dá lugar às percepções que, por sua vez, nos transmitem a consciênciae que formam os pré-requisitos para alcançar a verdade que reconhecemos comosendo a nossa própria verdade. A luz está acesa nos laboratórios dos investigadores.Quando descobrirmos qual é esse código, vamos conhecer todos os outros. Então,poderemos descansar. Rir ou gritar. Parar. Mas, e até aí?

Divagar, trabalhar, procurar a resposta para todas as questões.Nada do que estão a fazer é estranho.A neve derrete, escorre, mas vocês não vão encontrar nada, portanto, tirem daí a

tenda, vão buscar um guindaste e tirem-me daqui de cima. Sou um fruto estranho,não devo ficar aqui pendurado, desequilibro tudo, o ramo já começou a estalar, atéa árvore já está a protestar, não ouvem?

Sim, é isso mesmo, são todos surdos. Como é fácil esquecer, na vida real.

– Mamã, a sombra para os olhos?A voz de Tove vinda da casa de banho soa a desespero, raiva e resignação, mas, ao

mesmo tempo, revela uma determinação consciente, interior, quase assustadora.Sombra para os olhos? Não foi propriamente ontem. Malin já nem se lembra da

última vez que Tove se maquilhou e agora gostaria de saber o que está ela acongeminar para esta noite.

– Para que é que queres a sombra para os olhos? – Grita Malin do seu lugar no sofá.O noticiário começa justamente agora e vão passar a história do homem na árvorecomo terceira notícia do dia, após a do primeiro-ministro a apresentar mais umaproposta e a de um meteorologista qualquer a dizer que o frio que se faz sentir pode ser

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a prova final de uma alteração à normalidade, de que estamos a caminho de uma novaera glacial que vai cobrir o país com um metro de cristais de neve, duros que nemgranito.

– Para que é que achas que a quero?– Vais encontrar-te com algum rapaz?Faz-se silêncio na casa de banho. Ouve-se depois um «raios!» ao mesmo tempo que

se percebe que a bolsa de maquilhagem guardada no armário cai no chão. Depois:– Aqui está ela. Já a encontrei.– Óptimo.Um repórter da redacção do Östnytt encontra-se no local do crime, está bastante

escuro, apenas um holofote ilumina a tenda ao fundo e quase não se vê o corpo naárvore, só o adivinha quem sabe que ele está lá pendurado.

«Encontro-me num campo gelado, a alguns quilómetros de Linköping. A polícia…»Pelo país fora, as pessoas estão a ver as mesmas imagens que eu vejo, pensa Malin. E

estão a reflectir sobre a mesma coisa «Quem é ele? Como acabou ali? Quem fezaquilo?»

Aos olhos dos telespectadores sou eu a responsável por encontrar a verdade, porfazer com que os criminosos sejam colocados atrás das grades. É em mim quedepositam a responsabilidade de transformar o perigo em segurança, mas na realidade,longe dos ecrãs do televisor, isso não é nada fácil de alcançar. Nos bastidores datelevisão fazem-se testes de imagem, estudam-se as nuances e as probabilidadesinesperadas, todas as interpretações. Entretanto, o relógio continua a rodar, tiquetaque,tiquetaque, e todos esperam algo de novo, mais esclarecedor, melhor.

– Mamã, posso usar o teu perfume?Perfume?Ela tem um encontro, pensa Malin. Se assim for, é o primeiro. Quem será? Onde?

Quando? Mil perguntas, pressentimentos e preocupações perpassam pela sua mentenuma fracção de segundo.

– Vais encontrar-te com quem?– Com ninguém. Posso usar o perfume?– Claro.«…o corpo continua no mesmo sítio.»A câmara afasta-se para o lado e na escuridão profunda, sobre a tenda, vê-se o corpo

a balançar. Malin pensa em mudar de canal, mas, ao mesmo tempo, quer ver tudo.Mudança de plano para a conferência de imprensa. Karim Akbar, bem vestido, fatocompleto, na grande sala de reuniões do departamento de investigação criminal, os

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cabelos negros bem penteados para trás, o semblante sério, apesar de os olhos nãoconseguirem esconder o prazer que sente diante dos holofotes, e como esse prazer oestimula.

– Ainda não sabemos se foi assassinado.O microfone em primeiro plano. Ouve-se uma pergunta da multidão de jornalistas.

Malin reconhece a voz de Daniel Högfeldt:– Por que razão deixaram o corpo no mesmo sítio?Daniel.O que estás a fazer?Karim responde em tom convincente:– Por motivos técnicos que se prendem com a investigação. Por enquanto, não

sabemos nada. Ainda estamos a trabalhar sem pistas.– Mamã, viste a minha camisola vermelha? – A voz de Tove vem agora do seu

próprio quarto.– Já viste na cómoda?Passam-se alguns segundos. Depois, uma voz triunfante:– Encontrei!Óptimo, pensa Malin. Depois, reflecte sobre o termo «trabalhar sem pistas». No que

isso significa e vai exigir. Procurar num raio de três quilómetros a partir da árvore,visitando as casas de campo dos arredores, bater à porta dos lavradores, contactar osmotoristas de autocarros que passam por lá, os trabalhadores preguiçosos, de baixamédica.

«Ah, sim. Ah, é? Não, não vi nada.»«A essa hora já estou a dormir.»«Com este frio, não saio de casa.»«Eu prefiro preocupar-me com os meus assuntos, é melhor assim.»Foi assim com Johan e Börje, tal como com ela e Zeke, ninguém sabe, ninguém viu

nada. É como se o corpo de cento e cinquenta quilos tivesse voado para a armadilha,na árvore, enfiado a cabeça no laço, e ficasse à espera de que alguém o descobrisse.

Outra vez o repórter.«Naturalmente, continuamos a seguir a evolução dos acontecimentos em Linköping.»

Pausa. «Em Londres…»E então, Tove aparece à porta da sala.– Eu li sobre isso na Internet – diz ela. – Estás a resolver o caso?Malin não consegue responder à pergunta da filha. Em vez disso, fica de boca aberta:

a criança que viu de manhã na cama, a miudinha que apenas um quarto de hora antes

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tinha entrado na casa de banho, passou por uma transformação radical, maquilhou-se,armou os cabelos para cima, e agora à sua frente está um prenúncio de mulher que sesobrepôs à figura da filha.

– Mamã? Mamã, estás a ouvir?– Estás tão bonita.– Vou ao cinema.– Sim, estou a trabalhar no caso.– Ainda bem que amanhã fico com o pai. Assim, poderás trabalhar até mais tarde.– Tove, minha querida, não digas isso.– Agora tenho de ir. Volto pelas onze horas. A sessão deve terminar por essa altura.

Vamos comer qualquer coisa antes.– Vais sair com quem?– Com a Anna.– E se eu dissesse que não acredito nisso, o que responderias?Tove encolhe os ombros.– Vamos ver o novo filme com o Tom Cruise. – E Tove refere o título do filme, título

de que Malin nunca ouviu falar. Tove é tão selectiva em relação aos livros quantoliberal quando se trata de filmes.

– Não conheço.– Mas, mãe, tu não percebes nada destes assuntos.Tove vira as costas e desaparece da vista de Malin que a ouve a vasculhar no hall de

entrada. Malin grita:– Precisas de dinheiro?– Não.E Malin gostaria de segui-la. Não acredita na história, mas sabe que não deve, que

não pode e não vai. Ou será que deve fazer justamente o contrário e ir?– Então, até logo.Preocupação.Johan Jakobsson, Börje Svärd, Zeke, todos os pais conhecem esta preocupação.Está frio lá fora.– Até logo, Tove.A porta fecha-se e Malin fica só.Desliga o televisor com o controlo remoto.Recosta-se no sofá e bebe um gole do copo de tequila de que se serviu depois de

jantar.Ela e Zeke viajam até Borensberg e interrogam a amante de Liedbergh. A mulher deve

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ter uns quarenta anos, nem bonita nem feia, apenas uma entre muitas mulheres comuns,com vontade de viver a vida, de ser feliz. Ela convida-os para tomar café e provarbolinhos feitos em casa. Conta que vive só e que está desempregada, que tenta fazerpassar os dias, que procura emprego sempre que encontra uma oportunidade.

– É difícil – diz a amante de Liedbergh. – Ou somos considerados velhos ou nãotemos as habilitações necessárias. Mas tudo vai acabar bem.

A mulher confirma a história de Liedbergh. Depois, abana a cabeça:– Foi uma sorte ele ter ido por aquele caminho. Senão, sabe-se lá por quanto tempo

ficaria o homem ignorado, com este frio.Malin vê as figuras de porcelana colocadas no parapeito da janela da cozinha. Um

cão, um gato, um elefante. Um pequeno jardim zoológico como companhia.– Você ama-o? – Pergunta Malin.Instintivamente, Zeke abana a cabeça.Mas a mulher não leva a mal.– Quem? Peter Liedbergh? Não, nem pensar – responde ela, a rir. – Sabe como é, é

apenas uma necessidade que nós, mulheres, temos, um pouco de companhia, não éverdade?

Malin afunda-se ainda mais no sofá. Pensa em Janne, em como ele tem dificuldadecom as palavras, em como, por vezes, se sente um peso, um empecilho na vida dela.Pela janela, avista a cúpula da Igreja de Santo Lars, espera o toque do sino a assinalaras horas, tenta também perceber se há vozes a murmurar no escuro.

Se não fossem surdos, ouviriam agora o ramo a ranger. Ouviriam o som das fibrasque começam a ceder e perceberiam como a minha carne consegue aguentar o frio eo vento; tu, que estás exactamente no sítio onde vou cair, devias saltar para o lado,mas não, este meu peso todo vai estatelar-se em cima da tenda, derrubar os postesde alumínio como se fossem fósforos, e toda a vossa construção vai ficar em pedaçose tu que estás aí onde vou cair, tu, meu infeliz agente da polícia, tu serás o primeiroa sentir que alguma coisa te caiu em cima, depois sentirás o meu peso e, em seguida,serás pressionado contra o solo, sofrerás a pressão do meu corpo congelado e duro,e sentirás que alguma coisa, ainda sem saberes bem o quê, se partiu. Mas tens sorte,é apenas um osso do braço, nada que os médicos não possam curar, o teu braço vaivoltar a ser o que era, até ver, morto, ainda sou inofensivo.

Já que não baixaram o meu corpo, apesar de todos os meus apelos, tive deconvencer a árvore e, para dizer a verdade, até já ela está cansada de me aguentarpendurado no mais antigo dos seus ramos. O carvalho disse-me: «Esse ramo é

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dispensável, portanto, por favor, cai, cai em cima da tenda, cai no chão, talvez issoos excite, lá em baixo.»

Agora estou aqui caído, em cima de um agente que grita e numa total confusão depalavras, de postes e de panos amachucados. A máquina de aquecimento faz umbarulho infernal nos meus ouvidos, não sinto o calor que produz, mas sei que existe.Por baixo das minhas mãos sinto a terra, o calor fez com que ficasse húmida,agradavelmente molhada, macia, entranhada sei lá de quê, pode ser qualquer coisa.

Malin acorda com a voz de Tove.– Mamã, mamã, já estou em casa. Não será melhor ires deitar-te na cama?Onde é que eu estou? O programa terminou? Tove? Saíste?– O quê?– Adormeceste no sofá. Eu voltei para casa assim que o filme acabou.– Muito bem, muito bem.Malin acorda devagar, fica hesitante. Quando fazia alguma coisa que não devia,

acordava sempre o pai, para lhe mostrar que estava tudo bem e em ordem. Mas antesde Malin poder duvidar de Tove, esta diz:

– Mamã, bebeste?Malin esfrega os olhos.– Não, bebi apenas um pouco de tequila.A garrafa de tequila na sua frente está meio vazia. Tequila da boa, envelhecida em

tonel e comprada no Systemet2 no caminho entre a esquadra da polícia e a sua casa.Um terço da bebida desapareceu.

– Óptimo, mamã – diz Tove. – Posso ajudar-te a ir para a cama?Malin abana a cabeça, não precisa.– Isso só aconteceu uma vez, Tove. Precisar de ajuda para ir para a cama. UMA vez!– Duas.Malin concorda, sacudindo a cabeça.– Duas.– Então, boa noite – diz Tove.– Bom sono – responde Malin.Na mesa de canto, o relógio marca um quarto para a meia-noite. Agora que Tove está

de costas, Malin repara que ela tem os cabelos soltos. Agora, ela é novamente a suafilhinha.

Ainda resta um pouco de tequila no copo. Muita na garrafa. Uma última dose?Desnecessária. Malin levanta-se e vai aos tropeções para o quarto.

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Não aguenta ter de tirar a roupa. Cai na cama.Sonha sonhos que era melhor não serem sonhados.

2 Na Suécia, todas as bebidas alcoólicas, importadas ou não, são compradas e vendidas através de uma organizaçãoestatal: System Bolaget. (N. do T.)

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CAPÍTULO 7

SEXTA-FEIRA, 3 DE FEVEREIRO

A SELVA FICA MAIS DENSA DURANTE A NOITE.

A humidade… pelas folhas cortantes deslizam todas as formas diabólicas que sepossa imaginar, cobras, aranhas, lagartas de mil pés e bolores que crescem dentro dosaco-cama durante a noite.

Então, eles aterram no aeroporto, uma quantidade enorme de luzes, um céu de estrelasno chão, e o Tupolev russo a aterrar bruscamente, quase como um helicóptero, asasdesgastadas, e ele voa de alma lavada para a sala estreita, as crianças e as mães arodeá-lo, Tove, nessa época, pequena: O que fazes aí, papá? Devias estar em casacomigo. Estou a chegar, estou a chegar, e então eles descarregam, do interior do aviãoretiram comida, canos para as latrinas, e vêm ao seu encontro no escuro, vêem-seapenas os olhos, olhos, milhares de olhos no escuro, e as frases indistintas, esfomeadase cheias de medos e as salvas das metralhadoras, recuem, caso contrário nóscompletamos aquilo que os hútus não fizeram convosco. Recuem. E as lagartas de milpés sobem pela minha perna, os bolores crescem, Kigali, Kigali, Kigali, a inevitávelmantra dos sonhos.

Tira daí essa maldita lagarta.Janne chama por alguém. Tove? Malin? Melinda? Per?Tira daí…Alguém corta a perna de um ser humano ainda vivo, atira a perna para um caldeirão

com água a ferver e depois come primeiro antes que alguém deixe as crianças partilharos restos. Ninguém se importa, mas roubar o leite daquelas que ainda estão vivas, issoé punido com a morte.

Não o mate, digo eu. Não dispare.Está com fome. Ele são dez. Os seus olhos são grandes e amarelados, as pupilas

dilatam-se à medida que aumenta o reconhecimento de que isto termina aqui e agora.Nem a ti posso salvar.

Cão, cão, cão, hútu, hútu, hútu, contenham os vossos gritos e a vossa ganância, a vossamaldita condição humana faz com que eu queira afogar-vos a todos nas latrinas,latrinas que viemos aqui construir para vocês, para que o tifo e a cólera, e todas asoutras merdas não vos venham a matar em epidemias a que nem os hútus conseguemescapar.

Janne. Papá. Vem para casa.

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O guarda-chuva estragou-se?Está tudo molhado. Será que nem as lagartas de mil pés conseguem aguentar-se com

todos estes pingos de chuva?Malditos, como pica, malditos negros que agem contra eles próprios.Não levantes esse machete contra mim, não, não, não, e o grito enche o quarto fora do

sonho, fora do sono, no vazio do seu quarto, na solidão e nos lençóis molhados pelosuor do sonho.

Senta-se na cama.O grito ecoa entre as quatro paredes.A mão sobre o tecido.Molhado. Por muito frio que esteja lá fora parece que está bastante quente aqui

dentro, tão quente que o suor escorre interminavelmente.Alguma coisa rasteja pela sua perna.O último resquício do sonho, pensa Jan-Erik Fors, antes de se levantar para ir buscar

um lençol lavado ao armário do hall de entrada. O armário foi herdado. A casa,localizada solitariamente num bosque, a um par de quilómetros de Linköping, nadirecção do prado de Malmslätt, foi comprada por ele e Malin logo depois de Tove ternascido.

As tábuas do chão rangem quando ele sai do quarto e se dirige para a rua.

***

Os cães ladram em volta das pernas de Börje Svärd.Para os cães não existe o frio matinal, nem mesmo às cinco da manhã. Estão apenas

contentes por o ver, excitados pelo facto de poderem correr pelo jardim atrás dospedaços de madeira que ele atira para um lado e para o outro.

Totalmente despreocupados.Não têm de pensar no homem na árvore, maltratado e morto. As conversas com todas

aquelas pessoas dali não deram em nada. Silêncio e cegueira totais, como se aspessoas fossem mal agradecidas por estarem na posse de todos os sentidos.

Valla.A zona de Valla foi construída nas décadas de 1940 e 1950, com casas de madeira

que foram melhorando ao longo dos anos, e são o testemunho de como a vida dos seushabitantes ficou cada vez melhor. Esta zona de Linköping acolhia gente comum, antesde os operários das fábricas serem obrigados a tirar um curso universitário paratrabalhar com robôs.

Mas certas coisas ainda funcionam.

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Há assistência ao domicílio. Os assistentes sociais chegam à noite, normalmente.Ajudam crianças e idosos. Como no caso de Börje e Anna. Vão a casa deles e, àsvezes, ficam durante todo o dia, quase fazem parte da família.

Esclerose múltipla. Poucos anos depois de terem casado, Anna começou a teralgumas dificuldades na fala. Depois, foi rápido. E agora? Para ela, os avanços damedicina chegaram tarde. Nem um músculo sequer obedece e Börje é o único quepercebe o que ela tenta dizer.

Querida Anna.Na realidade, a história dos cães é uma loucura. Mas é preciso arranjar uma saída

para desanuviar e espalhar alguma alegria por ali. Os vizinhos reclamaram por causado canil.

Que reclamem.E os filhos? Mikael mudou-se para a Austrália há dez anos. Karin para a Alemanha.

Para escapar? Claro. Quem é que aguenta ver a mãe assim? Como é que eu faço paraaguentar?

Mas aguento.Por amor.Claro que eles disseram que «quando quiser, há lugar para ela numa instituição

especializada».Quando eu quiser?Cães, pistolas. Concentração na pontaria. O campo de tiro funciona como escape.Mas, Anna, és tudo para mim. E enquanto fores tudo para mim, talvez aguentes ser

tudo para ti mesma.

«Vamos lá então abrir a garagem.»A colher com a papa não quer entrar na boca do menino de um ano de idade. E, por

um momento, Johan Jakobsson reage bruscamente, agarra a cabeça do menino e enfia acolher na que antes era a boca errante dele e que agora engole.

A casa deles está situada em Linghem. Era a que estava ao alcance das suas finanças.E no que se refere a dormitórios de Linköping, Linghem está longe de ser umaalternativa disparatada. Residência de classe média, homogénea. Nada deextraordinário, mas também sem sinais de miséria.

«Popó, o camião está a chegar.»Do lado de fora da casa de banho, ouve a mulher a lavar os dentes da filha de três

anos. Ela grita e esperneia, não quer lavar os dentes. E pela voz da mulher sabe que elaestá quase a perder a paciência.

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Ontem, ela perguntou-lhe se estava a trabalhar no caso do homem na árvore, e o quepoderia ele responder? Mentir, e dizer que não para a acalmar, ou dizer a verdade:claro, estou a trabalhar no caso.

«Ele parece estar tão só, lá na árvore», dissera a sua mulher. «Só», e ele nãoconseguiu comentar aquelas palavras. Pois, é claro, mais só do que aquilo, ninguémpode ficar.

«Brum, brum. Um Passat.»Depois, ela fica zangada por ele não querer falar. As crianças cansadas, rabugentas,

acabam por adormecer.Crianças.Elas conseguem que eu me sinta esgotada, os caprichos delas, cada vez mais

exigentes, cansam-me, deixam-me muito cansada. Ao mesmo tempo que me fazemsentir viva e adulta. E, de certa forma, a vida prossegue ao lado da família. Como se ocrime que eles investigam não tivesse nada a ver com as crianças. Mas tem. Ascrianças fazem parte da comunidade em que nasceram.

«Abre…»Ao fundo, o programa matinal da televisão. Primeiro noticiário. Referem o caso, de

passagem.

Vou sentir falta destes momentos, pensa Sven Sjöman, ao mesmo tempo que faz umapausa no trabalho de lixar na carpintaria situada na cave da casa no Bairro Hackefors.Vou sentir a falta do cheiro da madeira na manhã em que me reformar. É claro que voucontinuar a sentir o cheiro da madeira mesmo depois, mas não vai ser a mesma coisa senão tiver pela frente um dia de trabalho na polícia. Eu sei que vai ser assim. Sei quefaz sentido apoiar os outros. É uma sensação agradável estar com agentes jovens, comoJohan e Malin, cuja formação ainda não está completa e na qual ainda posso interferir.Em especial Malin, que gosta de aprender e que ainda poderá pôr em prática muitasdas coisas que tento ensinar.

Sven costuma descer para a sua marcenaria pela manhã, antes de a sua mulherElisabeth acordar. Lixa aqui a perna de uma cadeira, enverniza ali uma superfície.Pequenas tarefas, coisas simples, para dar início ao dia, antes de beber o primeirocafé.

O trabalho com a madeira é simples e óbvio. Com a sua competência pode fazer damadeira o que quiser, ao contrário do que acontece com as outras realidades.

O homem na árvore. O cadáver dilacerado que cai sobre um colega. É como se tudopiorasse, a toda a hora. Como se a fronteira da violência fosse mudada,

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constantemente, para a frente. Como se as pessoas cheias de medo, em desespero e porraiva, se dispusessem a fazer tudo e mais alguma coisa contra as outras. Como se cadavez mais pessoas, de certa maneira, se sentissem fora de si mesmas e acima de todas asoutras.

É fácil ficar amargurado, pensa Sven. E, em consequência, lamentar que toda arespeitabilidade e honra tenham desaparecido na escuridão da história.

Mas não é hora para lamentações. Pelo contrário. É hora de sentir alegria por cadanovo dia que nasce. Mais um dia em que a consideração pelos outros e a solidariedadeainda continuam a prevalecer e a conter o pior cinismo de alguns.

Máscaras.Todas estas máscaras que tenho de assumir.Karim Akbar fica em frente do espelho na sua casa de banho, de barba feita. A mulher

já saiu para a escola com o filho deles, de oito anos. Tal como costuma fazer.Eu posso representar muitos papéis, pensa Karim, dependendo do que a situação

exige.Faz caretas. O seu rosto produz uma imagem de raiva, um sorriso. Uma imagem de

espanto, de atenção, de expectativa, de reflexão, de alerta.Na realidade, quem sou eu entre todas estas máscaras?Como é fácil, por vezes, perder a concentração, mesmo para quem, supostamente,

pode representar qualquer papel, que considera poder ser qualquer um?Eu posso ser um duro chefe da polícia, um imigrante feliz, um moderador mediático,

um pai contemporizador. E posso ser ainda o homem que sabe atrair a sua mulher,sentir o calor do seu corpo por baixo dos lençóis.

Sentir o amor.Em vez de sentir o frio.Posso ser aquele que finge que o homem na árvore nunca existiu, mas a minha

máscara agora é outra: a de lhe fazer justiça. Ainda que seja apenas na morte.

«O que é que vão fazer?»A pergunta de Malin para Janne e Tove ocorre na sua cabeça.São oito horas e pouco. O dia está claro.Por enquanto ainda não telefonaram da esquadra, mas Malin espera uma chamada a

qualquer momento. O debate de ontem no local do crime, quando o cadáver caiu sobrea tenda, está na primeira página do jornal local.

«A situação parece uma farsa», pensa Malin, quando passa os olhos pelo jornal, umquarto de hora antes, cansada demais para ler o enorme texto da notícia até ao fim.

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Janne está com Tove no hall de entrada. Ele também parece cansado, o seu corpo,longo e musculoso, está encolhido, a pele do rosto, esticada. Emagreceu? E será queestou mesmo a ver vários cabelos brancos nas têmporas, entre os fios castanhos,brilhantes, cor de âmbar?

«Tove não tem escola, vem buscá-la cedo, de manhã, em vez de à tarde. Troca dehorários. Beijinhos.»

Ela escreveu uma carta a Janne, para a Bósnia, depois de empacotar as suas coisas eas de Tove e de se mudar para um pequeno apartamento na cidade, uma paragem acaminho de Estocolmo.

«Podes ficar com a casa. A casa serve melhor para ti do que para mim, lá há lugarpara os teus carros. Realmente, eu nunca fui muito de viver no campo. Espero queestejas bem e que não vejas mais, nem sofras, qualquer tipo de violência. Depois,resolveremos o resto.»

A resposta dele chega num postal.«Obrigado. Vou pedir um empréstimo para fazer as contas contigo quando chegar à

Suécia. Faz como quiseres.»Faz como quiseres?Gostaria de fazer como antes. Como no começo. Antes de tudo se tornar uma rotina

sem interesse.Isto porque há acontecimentos e dias que podem separar as pessoas, separações

inevitáveis. Nós éramos jovens, muito jovens. O tempo, o que é que nós sabíamosentão sobre ele, a não ser que era nosso?

Malin pensa na distribuição de mantimentos nos sonhos dele, naqueles de que elequeria sempre falar quando se viam, mas de que ela já não aguentava ouvir falar. Atéporque ele nunca conseguia articular as palavras certas, mesmo quando ela se dispunhaa ouvi-lo.

De novo, a voz de Janne:– Pareces cansada, Malin. Não achas, Tove?Tove assente com a cabeça.– Tenho trabalhado muito – diz Malin.– O da árvore?– Hummmm.– Nesse caso, vais trabalhar no fim-de-semana.– Trouxeste o Saab?– Não, o Volvo. Com correntes nos pneus. Não me apeteceu ter de mudar as correntes

para o Saab.

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Os homens adoram carros. Na sua maioria. E Janne, em especial. Tem quatro carrosna garagem de casa. Quatro carros em diferentes estados de decadência… ou demanutenção, como ele gosta de dizer. Ela nunca teve qualquer inclinação especial paracarros, nem mesmo no início, quando iam os dois a festas. Porquê? Falta de vontade?Falta de imaginação? Indiferença? Reflexos condicionados? O amor exige outrascoisas.

– O que é que vocês vão fazer?– Não sei – diz Janne. – Não há muita coisa que se possa fazer com este frio. Que

achas, Tove? Vamos alugar uns filmes, comprar umas guloseimas e atirar a chave fora?Ou queres ler?

– Ver filmes, para mim, é perfeito. Mas eu já meti alguns livros na mala.– Pelo menos, tentem sair um pouco – diz Malin.– Mamã, não és tu que vais decidir.– Podemos ir até à esquadra da polícia – diz Janne. – Ou jogar um pouco de hóquei

em campo coberto. Tove, podemos fazer isso, ou não?Tove revira os olhos, abana a cabeça, como se não ousasse confiar na ironia do seu

pai:– Nunca na vida.– Então, vamos ver filmes.Malin olha, cansada, para Janne e os olhos dele, castanhos, fixam-se nos dela, não se

desviam, algo que ele nunca tinha feito. Ao desaparecer, leva com ele o seu corpoperfeito e a sua alma, seguro de que irá para lugares onde alguém precise de toda aajuda que ele pode dar. Justamente, ajudar é uma causa sem a qual ele acha que nãopode sobreviver.

Ajuda.A palavra que usou para voar.Assim que o apartamento, a casa, tudo ficava demasiado apertado, a situação repetia-

se.Hoje, quando Janne chegou, Malin abraçou-o, apertou-o contra si e ele correspondeu.

Faz sempre isso e ela gostaria de mantê-lo junto a si, apertá-lo contra si por muitotempo, pedir-lhe para ficar, até que o frio entre eles acabasse, que ficasse em casa, quepermanecesse.

Mas, em vez disso, recompôs-se, inventou uma forma de se libertar dele, de umabraço que o intimidava, precisamente como se fosse ele que tivesse espicaçado essaemoção. A timidez fazia com que os músculos se contraíssem, como se perguntassem:«O que estás a fazer? Já não somos casados há muito tempo e tu sabes tão bem como eu

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que é impossível.»– E tu, conseguiste dormir?Janne assente com a cabeça, mas Malin ia jurar que aquele aceno esconde uma

mentira.– Mas fartei-me de suar.– Apesar de estar frio.– Apesar disso.– Levas tudo, Tove?– Sim, tenho tudo o que preciso.– Vejam se conseguem dar um passeio…– Mamã!E eles saíram. Janne virá trazê-la amanhã à noite, sábado, de modo a passarmos o

domingo juntas.E eu, o que é que vou fazer agora?Esperar que o telefone toque? Ler o jornal?Pensar?Não. Os pensamentos transformam-se facilmente numa complicação.

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CAPÍTULO 8

«MORREU DE UMA PANCADA NA NUCA. O autor do crime usou um objecto rombo,batendo várias vezes no crânio e no rosto com raiva, até que tudo se transformou namassa informe de carne que vemos agora. Ele estava vivo quando foi atingido, masdeve ter perdido os sentidos, com toda a certeza, quase de imediato. O autor ouautores, provavelmente também usaram uma faca.»

Karin Johannison está ao lado do corpo arroxeado, estendido em cima da mesa fria,de aço, das autópsias. Os braços, as pernas e a cabeça saem do corpo como troncosnodosos e irregulares. A barriga está insuflada, com a pele e a gordura divididas emquatro abas, cada uma para o seu lado. Os intestinos são uma massa informe. O crânioserrado na nuca, de acordo com as regras.

Parece, ao mesmo tempo, planeado e fortuito, pensa Malin. Como se alguém tivesseplaneado por muito tempo e, depois, perdesse o controlo.

Demorou. Já era de tarde quando a médica legista declarou:– O corpo teve de descongelar antes de eu poder começar – foi esta a frase de Karin

ao telefone. – Mas, assim que comecei, cheguei facilmente à conclusão.

Zeke está ao lado de Malin, aparentemente impassível. Já esteve perante a mortemuitas vezes e reconhece que é difícil de compreender.

Karin trabalha com a morte, mas não a compreende. Talvez não haja quem a possacompreender, pensa Malin, mas, de qualquer forma, a maioria de nós consegue pelomenos imaginar o que a morte significa. Karin, pensa Malin, não percebe muito bem oalcance do que se passa aqui nesta sala do necrotério e do que se trata. Aqui ela é útil,funcional, precisamente como os instrumentos que usa no seu trabalho, precisamentecomo esta sala em si.

O rosto mais prático da morte.Paredes brancas, janelas pequenas, armários de aço inoxidável e prateleiras ao longo

das paredes, onde estão reunidas todas as obras de literatura sobre o assunto, comcaixas, compressas, luvas cirúrgicas e outras coisas do género. O chão é de linóleo, deuma cor vagamente azul, fácil de limpar, resistente e barato. Malin jamais seacostumará a esta sala, ao seu propósito e função, mas ainda assim sente-se atraída.

– Ele não morreu por enforcamento – diz Karin. – Já estava morto quando aqueles queo mataram resolveram pendurá-lo na árvore. Se tivesse morrido na forca, o sangue nãoteria subido até ao cérebro como subiu. No enforcamento, as veias ficamimediatamente obstruídas, isto para usar uma linguagem de leigos, mas as pancadas na

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cabeça fizeram com que o coração acelerasse, daí as enormes hemorragias.– Há quanto tempo morreu? – Pergunta Malin.– Queres dizer, até agora?– Não, antes de ser pendurado na árvore.– Acredito que, no mínimo, cinco horas antes, talvez um pouco mais. Pelo facto de

não haver coágulos de sangue nas pernas, apesar de estar pendurado.– E as pancadas no corpo? – Pergunta Zeke.– Que pancadas?– O que é que tens a dizer sobre as contusões no corpo?– Certamente dolorosas, se ele estivesse consciente e não morto. Os arranhões nas

pernas indicam que foi arrastado pelo chão, que alguém arrastou o corpo. As feridastêm vestígios de terra e restos de tecido. Alguém o despiu depois de o maltratar earrastou o corpo. É o que eu posso imaginar.

– O molde da arcada dentária? – Pergunta Zeke.– Com falhas, quase ao ponto de ser considerada inútil. Os dentes, na sua maioria,

estavam partidos.Karin agarra um dos pulsos do morto.– Vêem estas marcas aqui? – Malin acena que sim. – São marcas de correntes. Foi

assim que eles o fizeram subir para a árvore.– Eles?– Não sei. Mas acham que um homem sozinho poderia fazer isto, com todo o esforço

físico exigido?– Impossível não é – diz Malin.Zeke abana a cabeça.– Isso ainda não sabemos.A neve não escondia nada de interessante.Karin e os colegas apenas encontraram algumas beatas, um invólucro de bolachas e

um invólucro de gelado que parecia não pertencer ao local do crime. Gelado? Nãonesta época do ano. E os papéis e as beatas pareciam velhos, como se já estivessem láhá vários anos. Eles ou ele, ou ela, não deixaram nenhuma marca no solo.

– Encontraste mais alguma coisa?– Nada por baixo das unhas. Nenhum sinal de luta. Isso indica que ele foi

surpreendido. Já receberam alguma denúncia? Alguma coisa que indicasse uma pista?– Silêncio completo – responde Malin. – Nada, niente.– Pelos vistos, ninguém desapareceu – diz Karin.– Isso ainda não sabemos – acrescenta Zeke.

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Se continuasse a poder falar como vocês, se pudesse levantar-me e contar o quesei. Limpem os ouvidos. Eu diria para pararem de fazer todas essas perguntas.

De que serve tudo isso?Agora, não vale a pena. É como é, está como está. Eu sei quem fez isto, ainda tive

tempo de olhar pelo canto do olho, ainda tive tempo de ver a morte chegar, tão lentaquanto rápida e negra.

Depois, ficou tudo branco, a morte.Branco como a neve recém-caída. Branco é a cor com que o cérebro se fecha, um

sopro diáfano de esperança, mais curto do que um suspiro. E, depois, quandorecuperei os sentidos, vi tudo, estava ao mesmo tempo livre e preso.

Mas, querem mesmo saber?Querem mesmo que eu lhes conte a história? Creio que não. Ela é pior, mais

horrível, mais terrível, mais implacável, do que possam imaginar. Procurem o trilhoque vai direito ao coração. Saiam daqui, do lugar onde apenas o corpo, e não aalma, pode respirar e viver, onde somos um produto químico, um código, um lugaronde a palavra sentimento não existe.

No final do trilho, na escuridão que cheira a maçãs, mas que está revestida debranco, vão encontrar pensamentos tão negros que fazem deste um Inverno quente eacolhedor. Sei que vão seguir esse trilho. Porque são seres humanos. São apenasisso.

– Quanto tempo vais levar para o recuperar?– Recuperar, como?– Precisamos de ter uma imagem reconhecível – diz Malin. – Para a podermos passar

aos jornais. Talvez assim apareça alguém a comunicar o seu desaparecimento ou, pelomenos, a assumir que o reconhece.

– Percebo. Posso telefonar para o Skoglund, na Fonus. Ele poderá ajudar-me areconstruir rapidamente a cara dele. De qualquer maneira, deve ficar razoável.

– Telefona então para o Skoglund. Quanto mais depressa tivermos uma imagem,melhor.

– Vamos embora – diz Zeke e, pelo tom de voz rouco, Malin percebe que ele estáfarto. Do corpo, da sala esterilizada, mas principalmente de Karin Johannison.

Malin sabe que Zeke acha que ela gosta de se evidenciar, de se fazer de fina. Outalvez se tenha sentido provocado pelo facto de ela não ter perguntado por Martin,como todos fazem sempre. Talvez o desinteresse de Karin por estrelas do hóquei sobreo gelo e pelo filho seja para ele a prova da arrogância dela. Aparentemente, está

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cansado das perguntas sobre Martin, mas também fica desapontado quando nãoperguntam.

– Tomas banhos de sol? – Pergunta Zeke a Karin, à saída do necrotério.Malin desata a rir, mesmo sem querer.– Não. Tenho um solário artificial para manter o bronze que ganhei na Tailândia, nas

férias do Natal passado – responde Karin. – Entretanto, sei que existe um lugar na RuaDrottningsgatan onde se pode tomar duches autobronzeadores, mas nunca lá fui. Pareceque é muito vulgar, muita gente nua. Mas talvez dê para bronzear só o rosto.

– Tailândia? Estiveste lá no Natal? – pergunta Zeke. – Não é muito mais caro? Ouvidizer que os conhecedores preferem viajar noutra altura, na época baixa.

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CAPÍTULO 9

– MALIN, REGASTE AS FLORES? Senão, não vão sobreviver ao Inverno.A questão é tão clara, pensa Malin, que nem era preciso perguntar. A afirmação

também era desnecessária: a tendência dele é falar pedagogicamente para defender osseus interesses.

– Estou a caminho do vosso apartamento para fazer isso.– Ainda não o fizeste?– Desde a última vez que falámos, não.Está no semáforo à espera da luz verde, na esquina do cemitério com o antigo quartel

dos bombeiros, logo após ter deixado a esquadra da polícia. Hoje, apesar de estartanto frio como no dia anterior, o Volvo resolve pegar à primeira.

Era como se o pai estivesse ali. Irritante, adorável, exigente, egocêntrico, bondoso:quero toda a tua atenção, não vou desistir antes que tu respondas, não estou aincomodar, estou?

Na reunião com o grupo de investigação da polícia aborda-se a questão dos atrasos eda espera.

Börje Svärd atrasou-se e tiveram de esperar. Atrasou-se por causa da mulher.Também tiveram de esperar pela pergunta sobre o braço partido de Nysvärd, atingido

quando o cadáver caiu da árvore.– Fica de baixa durante duas semanas e meia – diz Sven Sjöman. – Pareceu-me estar

bem quando falei com ele, embora ainda não tivesse sido tratado.– É uma situação macabra, a de levar com um cadáver congelado e roxo de cento e

cinquenta quilos na cabeça. Mas podia ter sido pior – diz Johan Jakobsson.Depois esperam que alguém diga aquilo que todos já sabem. Que ainda não havia

nenhuma pista para seguir. E também esperam que o agente funerário Skoglund termineo serviço, que seja tirada a fotografia, o rolo revelado e feitas as cópias.

Börje: «O que é que eu disse? Que ninguém iria reconhecê-lo pelas fotos.»A espera pela espera, o vigor espremido de agentes cansados, conscientes de que é

preciso ter pressa, mas que não podem fazer mais nada senão esperar, encolher osombros e dizer: Quando todos, cidadãos, jornalistas, querem saber novidades, qual é asituação? Sabemos o que aconteceu, mas não sabemos quem fez isto.

O tempo de espera por Karim Akbar, até ele atrasado, ainda que tenha telefonado dasua casa em Lambohov. O tempo à espera de que o filho desligasse o som daaparelhagem em fundo, depois a espera de que a voz de Karim desaparecesse do

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altifalante ligado ao telefone.– Isso não serve, como compreendem. Sven, tens de convocar uma nova conferência

de imprensa para amanhã para confirmar o que sabemos e para acalmá-los.E tu vais ter mais uma oportunidade de te exibires, pensa Malin. De qualquer

maneira, vais estar lá para responder às perguntas, todas assertivas, e zelar para quepossamos continuar o nosso trabalho com tranquilidade. E tu és o responsável, Karim.E tens de compreender a força de um grupo em que todos têm papéis definidos.

As palavras cansadas de Sven, depois de Karim ter desligado:– Devíamos ter aqui o mesmo que em Estocolmo. Um responsável pela comunicação.– Tu é que tens experiência a lidar com os media – diz Zeke. – Devias ser esse

responsável, não é verdade?Risos na sala. Tempo de descontrair. Sven:– Reforma à vista e tu queres atirar-me aos leões, Zeke? Muito oportuno…

O sinal vermelho dá lugar ao verde. O Volvo hesita, mas avança depois pela RuaDrottningsgatan abaixo.

– Como está a mamã, pai? As flores estão a ser bem tratadas. Pode estar certo.Prometo.

– Está a dormir a sesta. Aqui estão vinte e cinco graus, o sol está forte. Como é queestá o tempo aí?

– Não queiras saber.– Quero, sim.– Não vais querer saber, pai.– De qualquer maneira, aqui, em Tenerife, está sol. Como está a Tove?– Está com o Jan-Erik.– Malin, vou desligar. Senão, gasto muito dinheiro. Não te esqueças das flores.As flores, pensa Malin, enquanto estacionava à porta de uma casa secular, de cor

ocre, na Rua Elsa Brännström, onde os pais têm um apartamento de quatro divisões. Asflores nunca podem esperar.

Malin movimenta-se pelo apartamento dos pais, um fantasma do seu próprio passado.Os móveis entre os quais cresceu.

Já estou assim tão velha?Os aromas, as cores, os contornos, tudo pode perturbar-me, fazer com que me lembre

de alguma coisa que, por sua vez, me leva a lembrar-me de outra coisa.Quatro divisões, um hall de entrada, uma sala de jantar, outra de estar e um quarto.

Nenhuma possibilidade de a sua única neta poder dormir por lá. Eles conseguiram o

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contrato do apartamento depois de vender a casa que tinham em Sturefors, treze anosantes. Nessa época, o mercado imobiliário em Linköping era diferente. Para quemencontrasse uma unidade disponível e conseguisse pagar um bom aluguer, existiampossibilidades de fechar um contrato. Hoje, só se consegue fechar contratos nomercado negro, pagando luvas. E os contratos são feitos por valores inacreditáveis.

Malin olha pela janela da sala de estar.Do terceiro andar tem-se uma boa vista sobre um parque, o Infektionsparken, o nome

de uma clínica que havia ali antes, e cujas instalações foram recuperadas etransformadas em apartamentos.

O sofá em que ela estava proibida de se sentar.O revestimento de couro castanho ainda hoje brilha como novo. A mesa, antes bonita,

está agora empenada. A estante cheia de livros da editora Bra Böker, bons títulos, deMaya Angelou, Lars Järlestad, Lars Widding, Anne Tyler.

A mesa de jantar e as cadeiras. Quando havia convidados, as crianças comiam nacozinha. Nada de estranho. Toda a gente o fazia e as crianças também não gostavam dese sentar à mesa de jantar.

O pai era soldador. Foi promovido a chefe, mais tarde sócio de uma empresaespecializada em soldar os tectos das casas. A mãe, secretária na administraçãomunicipal.

O cheiro a velhos. Ainda que Malin tenha aberto a janela e arejado a casa, o cheironão desapareceu. Na melhor das hipóteses, talvez o frio consiga fazer desaparecer ocheiro, pensa ela.

As flores estão murchas, mas nenhuma morreu. Não as deixou chegar a esse ponto.Olha para as molduras com fotografias em cima de uma mesinha. Nenhuma dela nem deTove. Apenas os pais em vários ambientes: na praia, na cidade, nas montanhas, nafloresta. «Vais regar as flores?»

Claro que sim. Vou regar as flores.«Vocês podem vir até cá quando quiserem.»Com que dinheiro?A poltrona no hall de entrada. Senta-se nela e a lembrança de tristezas mudas

perpassa pelo seu corpo… tem outra vez cinco anos, os pés calçados com sandálias, enas costas ouve as vozes da mãe e do pai, que não gritam um com o outro, mas pelotom da conversa sente-se que há um abismo entre os dois, as pausas entre palavrasexpõem algo que dói, algo que a menina de cinco anos na poltrona, percebe, mas queainda não sabe nomear.

O amor impossível. A frieza de certos casamentos.

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Será que um dia terá nome? Esse sentimento?Depois, regressa.O regador com água na mão.Uma flor é uma flor. Metodicamente, como o papá-chefe apreciaria.O aspirador, nunca vou usá-lo, pensa Malin. Muito pó pelo chão. Quando aspirava o

pó, em pequena – fazia parte do contrato semanal para receber um dinheirinho nosábado –, a mãe ficava por perto, a observar, para que ela não batesse com o aspiradornos rodapés e nas ombreiras das portas. Quando terminava, a mãe aspirava o pó umasegunda vez, mesmo onde ela já tinha aspirado, mesmo à frente dela, como se fosse acoisa mais natural do mundo.

Que poder tem uma criança?O que é que sabe uma criança?Uma criança educa-se.Isso era claro.Todas as flores foram regadas. Agora, vão reviver por algum tempo.Malin senta-se na cama dos pais.Marca Dux. Já usam aquele colchão há décadas, mas será que ainda dormiriam nesta

cama se soubessem o que nela aconteceu? Foi ali que ela perdeu a virgindade. Ou,melhor ainda, foi ali que ela se desembaraçou da virgindade.

Não foi Janne.Foi outro.Antes. Ela tinha catorze anos e estava sozinha em casa enquanto os pais tinham ido a

uma festa. E dormiram lá, depois da festa, em Torshälla.Entretanto, mesmo que tenha acontecido aqui o que aconteceu, esta cama não é dela. E

também não pode andar pelo apartamento, sozinha ou acompanhada, sem sentir umvazio. Então, levanta-se da cama e afasta a saudade que parece ter ficado presa no ar.O que é que lhe falta?

Os pais nas fotos emolduradas.Nas cadeiras de praia, a apanhar sol perto de casa. Há três anos que a compraram,

mas nem ela nem Tove já estiveram lá.«Sabes regar bem as flores?»Claro que sei.Viveu com estes dois seres humanos, foi gerada por eles, mas, para ela, as pessoas

nas fotografias são estranhos. Principalmente a mãe.Despeja o resto da água do regador na pia da cozinha.Os segredos caem como gotas na pia e saem pelo ralo esverdeado. No frigorífico

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ligado e barulhento estão guardadas as cantarelas da estação anterior.Devo levar? Um saquinho?Não.As últimas coisas que vê antes de fechar a porta do apartamento dos pais são os

tapetes espessos no chão da sala de estar. Acha que são tapetes mais adequados ao hallde entrada e sabe que são de qualidade mediana. Não de óptima qualidade, como amãe fingia que eram. Toda a sala, toda a casa, apinhadas de objectos desajustados,verniz que esconde outro verniz.

Dá a sensação, pensa Malin, de que nunca nada condiz. De que nada é suficientementeelegante. De que nós, eu, não somos suficientemente elegantes.

Ainda hoje hesita perante a elegância, perante pessoas de quem se espera que sejamverdadeiramente elegantes e não apenas ricas, como Karin Johannison. Nos médicos,nos aristocratas, nos advogados, há essa espécie de elegância. Diante dessas pessoas,sente os seus preconceitos e sentimentos de inferioridade a entrarem em acção. Porpreconceito, assume que essas pessoas olham sempre de cima para baixo para gentecomo ela. E assume a posição de defesa.

Porquê?Para evitar decepções?No trabalho, as coisas correm melhor, mas na vida privada a situação pode ficar

tensa.Os pensamentos sucedem-se na cabeça de Malin, enquanto desce as escadas e sai

para a rua numa difícil noite de sexta-feira, ainda a começar.

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CAPÍTULO 10

NOITE DE SEXTA-FEIRA E SÁBADO, 4 DE FEVEREIRO

APENAS UMA CERVEJA PEQUENA , muito pequenina, eu mereço. Quero ver algumas gotasde vapor congelarem, transformarem-se quase em gelo em volta do copo gelado. Possodeixar o carro aqui. Posso vir buscá-lo amanhã.

Malin odeia aquela voz. Costuma dizer para si mesma, como que para dominá-la:«não há nada mais desagradável do que uma ressaca.»

Assim é mais simples.Mas, por vezes, tem de ceder.Apenas uma pequena, bem pequenina…Quero torcer-me a mim mesma como se torce um esfregão. É assim que funciona o

álcool.O Restaurante Hamlet está aberto. Ainda falta muito para chegar lá? Maldição, que

frio. Três minutos se eu correr um pouco.Malin puxa a porta do restaurante.O barulho e o cheiro desagradável envolvem-na. Cheira a carne grelhada. Mas acima

de tudo, cheira a alegria e a descontracção.

O telefone toca.Ou?Não é o telefone? É a televisão? É o sino da igreja? O vento? Ajudem-me. A cabeça.

Há qualquer coisa na minha cabeça, e agora toca de novo. A boca. A que eu uso parafalar está seca. Onde é que estou?

Não estou deitada na cama. Isto aqui não é nenhum lençol. O sofá? Também não énenhum sofá. O que é então? Um jornal? Não, também não.

E então o telefone pára de tocar.Graças a Deus.Mas, então, recomeça.

Já suficientemente acordada, reconhece de novo o toque do telemóvel. O chão dohall. Um tapete de retalhos. Como é que eu vim parar aqui? O casaco está aqui, ao meulado. Ou é o cachecol? A caixa do correio, vista de baixo para cima. O casaco. Aalgibeira. O telemóvel. A boca a saber a papel de música. O pulso, uma bolsa quepulsa. Um globo eléctrico em frente da cara. Malin leva a mão ao bolso. Aqui…aqui… aqui está ele. Apoia a cabeça na outra mão, pressiona um botão ao acaso, o

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auscultador no ouvido, mal se ouve. «Fors, Malin Fors.»

– Sjöman. Já sabemos quem ele é.Ele, quem? Tove, Janne. O homem na árvore? O tal de que ninguém sentiu a falta?– Malin, és tu?Sim. Talvez. Mas eu não sei se quero.– Estás bem?Não, não estou nada bem. Ontem, cedi, entreguei-me.– Estou aqui, sim, Sven. Sou eu. Apenas com uma pequena ressaca. Espera um pouco.Ao fazer um esforço para passar da posição de deitada para a de sentada ainda o

consegue ouvir dizer: «Estás grogue, já percebi…» Cabeça erguida, a névoa negradiante dos olhos desaparece, não resta mais nada a não ser uma pressão na nuca.

– Se estou grogue? Estou apenas com uma pequena ressaca. É assim que as pessoas sesentem nas manhãs de domingo.

– É sábado, Malin. E já sabemos quem ele é.– Que horas são?– Sete e meia.– Merda. Sabem desde quando?– A fotografia ficou pronta ontem. Ele, o agente funerário, Skoglund, fez um óptimo

trabalho. Enviámos a foto para o Corren e para a agência noticiosa TT. O Correncolocou-a no seu site às onze e ontem ligou uma pessoa e hoje, logo de manhã,telefonaram muitas mais. Todas referem a mesma pessoa, portanto deve ser. Chama-seBengt e o apelido é Andersson. Mas, é engraçado, todas o tratam pela alcunha. Apenasuma pessoa sabia o seu verdadeiro nome.

A cabeça. O pulso. É melhor não acender a luz. Não importa o que aconteça.Concentra a tua atenção em qualquer outra dor, não a tua. Dizem que ajuda. Terapia degrupo. Ou como alguém disse: A dor é sempre nova e nossa. Personalizada.

– Apanha Bolas. Chamam-lhe Apanha Bolas. Pelo que as pessoas nos contaram,parece que a vida dele foi tão horrível como a sua morte. Podes estar aqui dentro demeia hora?

– Dá-me quarenta e cinco minutos – responde Malin.Quinze minutos depois, recém-saída do chuveiro, de roupa lavada, e com uma

pastilha de Penodil efervescente no estômago, Malin liga o computador. Deixa aspersianas fechadas, mas ainda é de noite lá fora. O computador está em cima daescrivaninha no quarto, o teclado escondido sob uma confusão de camisolas e cuecassujas, contas pagas e por pagar, extractos de ordenados recebidos. Ela aguarda, insere

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a password, espera, faz deslizar o rato e clica: www.corren.se.A luz do monitor provoca-lhe dor de cabeça.Daniel Högfeldt trabalhou bem.O homem na árvore. O seu rosto em grande plano num local de destaque do site.

Agora parece um ser humano. Na fotografia a preto-e-branco, os inchaços e as marcasarroxeadas assumem vários tons de uma cor acinzentada que mostram ser mais oresultado da maquilhagem do que a consequência dos golpes mortais. Skoglund, sejaele quem for, quase consegue ressuscitar os mortos. A gordura faz do rosto do homem,Bengt «Apanha Bolas» Andersson, uma imagem sem contornos. O queixo, as faces e atesta juntam-se numa camada macia, redonda à volta dos ossos do rosto e formam umagrande massa. Os olhos estão fechados, a boca como um pequeno ponto deinterrogação, o lábio superior mais espesso, e o inferior mais fino. Apenas o narizsobressai, pontiagudo, nobre, a sua única boa sorte na lotaria da genética.

Será que tenho tempo de ler?A linguagem de Daniel Högfeldt.Impressionante. Nada aconselhável a pessoas enjoadas ou com dores de cabeça.Ele sabe, realmente, mais do que nós. As pessoas telefonam primeiro para o jornal.

Sentindo o cheiro a dinheiro. Querendo sentir-se especiais. Mas quem sou eu para ascensurar?

O Östgöta Correspondenten pode revelar hoje a identidade do homem que…

As letras atingem-lhe o cérebro como setas em brasa.

Bengt Andersson, 46 anos, alcunhado de «Apanha Bolas», era conhecido emLjungsbro, onde vivia, como uma pessoa original, um eremita. Morava sozinhonum apartamento na zona de Härna e vivia há muitos anos de uma pensão social,incapacitado de trabalhar por causa de deficiências psíquicas. A alcunha de BengtAndersson advém do facto de ele ter o hábito de ficar na rua, por detrás da rede dearame e de uma das balizas do campo de futebol do Linköping FC, à espera de quealgum dos jogadores chutasse a bola para o alto e por cima da rede de arame. Eleapanhava então a bola e devolvia-a para o campo.

Bolas!, pensa Malin, hoje a minha cabeça é que parece uma bola.Eu consigo chutar a bola, papá, mandá-la até à macieira! E a mamã: «Nem penses em

chutar a bola no jardim, Malin, podes estragar as roseiras.»Tove não se interessa por futebol.

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Uma mulher que não quis revelar a sua identidade disse ao Correspondenten:«Todos sabiam quem era, mas ninguém o conhecia. Era mais uma dessaspersonagens que existem em todas as comunidades.»

Bengt Andersson foi encontrado na sexta-feira…

Discurso directo. A especialidade de Daniel para criar expectativa e aproximação.

***

Reproduções. Repetições.Quando é que esta morte vai terminar?

Malin sai de casa. Continua frio. O caminho pela igreja, uma miragem longe, muitolonge.

Mas hoje o frio é bem-vindo, espalha uma névoa nos seus pensamentos, envolve-anuma bruma moderada.

O carro não está onde devia estar.Roubado. O seu primeiro pensamento.Então, lembra-se. O apartamento dos pais.«Vais regar bem as flores?»Hamlet. Anónima por ali. Um público mais velho e eu.Mais uma cerveja, por favor.Táxi? Não, muito caro.Se me apressar, levo dez minutos até ao departamento de investigação.Malin começa a andar.O passeio vai fazer-me bem, pensa ela. O saibro lançado sobre o gelo que cobre o

passeio estala sob os seus pés. Ela vê vespas. Os grãos de saibro são vespas, umainvasão de insectos que rastejam e que ela tenta matar com as botas grossas.

Pensa que o homem na árvore agora tem nome. Que o trabalho deles agora poderáentrar em velocidade de cruzeiro e que precisam de avançar com cuidado. Não se tratade um crime normal, aquele que encontraram pela frente, no campo. É outra coisa.

O frio fere-lhe os olhos.Cortante, afiado.São sapos que dançam na frente das minhas retinas? pensa ela. Ou é o frio que faz

com que as lágrimas congelem? Se transformem em gelo? Tal como nos teus olhos,Apanha Bolas. Sejas tu quem fores.

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CAPÍTULO 11

O QUE FAZ ESTE MUNDO A UMA PESSOA, TOVE?

Eu tinha vinte anos.E éramos felizes, o teu pai e eu. Éramos jovens e felizes e amávamo-nos. Um amor

juvenil. Éramos puros e descontraídos, mental e fisicamente. E, então, tu nasceste: oraio de sol mais bonito entre todos os raios de sol.

Não havia nada para além de nós.Eu nada mais sabia fazer na vida a não ser amar-vos aos dois. Podia ignorar os carros

do teu pai, a sua indolência, as nossas diferenças. O amor para mim era uma dádiva,Tove, não havia nenhuma hesitação, nenhuma necessidade de esperar, apesar de todosdizerem o mesmo: esperem, tenham calma, não se precipitem, vivam a vida. De facto,eu tinha sentido o perfume da vida, esse aroma existia no meu amor por ti, por Janne,pela nossa vida. Que ingenuidade a minha. Queria mais. E acreditava que iria durarpara sempre. Eu acreditava no amor. E ainda acredito, o que é um verdadeiro milagre.Mas naquela época eu acreditava no amor, na sua forma mais simples e pura. Talvezpossamos chamar-lhe amor familiar, amor primitivo, aquele com que nos aquecemos,quando nós, seres humanos, estamos juntos. O amor original.

É claro que discutíamos. É claro que eu tinha saudades. É claro que não fazíamos amenor ideia de para onde seguir, do que fazer com o tempo à nossa disposição. E éclaro que eu percebi quando ele me disse que se sentia preso, dentro de uma cave,ainda que no paraíso.

E, então, ele chegou a casa com o papel da Cruz Vermelha na mão, um papel ondeestava escrito que devia apresentar-se no aeroporto de Arlanda na manhã seguinte paraseguir de avião para Sarajevo.

Fiquei tão zangada com ele, com o teu pai. Disse-lhe que se ele fosse, já nãoestaríamos aqui quando ele voltasse. Disse que não se abandona a família por nada.

Por isso faço-te esta pergunta:Podes compreender agora porque eu e o teu pai já não aguentávamos mais?Sabíamos ao mesmo tempo demasiado e muito pouco.

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CAPÍTULO 12

NA CRECHE NÃO HÁ CRIANÇAS AOS SÁBADOS.

Baloiços vazios. Nenhum fato minúsculo, nenhuma bola. A luz desligada em frente dajanela. Nenhuma brincadeira.

– Aguentas fazer isto, Malin? Estás com mau aspecto.Pára de chatear, Sven. Estou a trabalhar, certo?Zeke ri à socapa do seu lugar na mesa, mesmo à sua frente. Börje Svärd e Johan

Jakobsson mostram-se satisfeitos e divertidos. Demasiado, para quem tem de irtrabalhar, pouco depois das oito, numa manhã de sábado.

– Eu estou bem. Foi só uma pequena festa, ontem à noite.– No meu caso, fiquei-me por uma tábua de queijos, batatas fritas e Pipi das Meias

Altas no DVD – diz Johan.Börje mantém-se em silêncio.– Tenho aqui uma lista – diz Sven, sacudindo um papel na mão. Hoje, não está de pé

ao fundo da mesa. Está sentado numa cadeira – das pessoas que telefonaram e deram onome de Bengt Andersson ou da sua alcunha. Vamos começar por ouvir estas pessoas.Vamos saber o que têm a dizer a respeito dele. São nove, os nomes da lista, todos deLjungsbro e arredores. Börje e Johan ficam com os cinco primeiros. Vocês, Malin eZeke, com os últimos quatro.

– E o apartamento? O apartamento dele?– Os técnicos já lá estão. Pelo que puderam ver a olho nu, não aconteceu nada por lá.

Vão terminar mais logo, durante a tarde. Podem ir lá, se quiserem, mas só depois,quando já tiverem interrogado toda a gente da lista. Nessa altura, falem com osvizinhos. Ele vivia da pensão social, portanto, deve haver um ou uma assistente socialque também deve saber alguma coisa sobre ele. Mas vai ser difícil de encontrar antesde segunda-feira.

– Não se consegue acelerar isso?Era a voz impaciente de Zeke.– Bengt Andersson ainda não está oficialmente identificado ou declarado morto – diz

Sven. – E enquanto não o for, temos de pedir uma autorização para consultar osregistos e anotações onde estão os nomes dos médicos e assistentes. Mas essaformalidade deve ficar resolvida amanhã, domingo.

– Então, vamos ao trabalho – diz Johan, levantando-se.Quero dormir, pensa Malin. Um sono profundo, tão profundo quanto possível.

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O meu quarto está escuro, fechado, mas, mesmo assim, vejo tudo.Está frio aqui dentro, mas não tão frio como na árvore, lá fora, no campo. Mas por

que razão estou preocupado com o frio? E aqui não há vento, nem tempestades, nemneve. Posso sentir a falta do vento e da neve, mas prefiro a clarividência que advémda minha situação actual. Saber o que sei, poder o que posso. Consigo encontrar aspalavras certas como nunca antes consegui.

E não é divertido ver como agora se preocupam todos comigo? Como agora todosvêem a minha cara e querem mostrar que me conheceram? Antes, afastavam-sesempre que eu aparecia, atravessavam a rua só para não enfrentarem o meu olhar,para não passarem perto de mim, do meu corpo, das minhas roupas que acreditavamestar sujas, a cheirar a suor, a urina.

Deplorável e repugnante.E os miúdos, que não me deixavam em paz. Que me atormentavam, que se metiam

comigo, que me gozavam sem parar. Os pais deixavam-nos dar livre curso àmaldade.

Eu nem sequer devia ser motivo de troça. Era uma monstruosidade ambulante.

As chaminés da fábrica Cloetta.Não podem ser vistas da rotunda, perto do antigo Mosteiro de Vreta, mas é possível

ver o fumo que sai delas, um fumo mais branco do que o branco, que se eleva no ar,num céu supostamente azul. As nuvens matinais, mais baixas, já se foram, o Invernotorna-se azulado, o mercúrio desce ainda mais, é o preço a pagar pela luz.

– Vamos virar aqui?A placa indica Ljungsbro para os dois lados.– Não sei – diz Malin.– Vamos por aqui – responde Zeke, virando o volante. – Quando chegarmos, o GPS

avisa-nos.Malin e Zeke passam pelo Mosteiro de Vreta, seguem depois perto das comportas,

que agora não estão a ser utilizadas, e dos diques agora vazios. Os restaurantes tambémestão fechados durante o Inverno. Casas onde se movimentam pessoas por detrás dasjanelas, árvores que estão a crescer em paz. Um supermercado ICA. Nada de músicadentro do carro. Zeke não insistiu e Malin aprecia o silêncio.

Depois de uma paragem de autocarros, abre-se o conjunto habitacional à esquerda, ascasas desaparecem da vista por uma encosta e, mais adiante, surgem as águas doRoxen. O carro desce, passa por um bosque e, logo em seguida, abre-se um novocampo à direita, para depois aparecer, algumas centenas de metros à frente, uma outra

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encosta mais íngreme com casas em socalcos.– A nata da sociedade em prateleiras – diz Zeke. – Tipo médicos.– Invejoso?– Não, nem por isso.Mais uma placa a dizer Kungsbro, Stjärnorp, Ljungsbro.Viram mais uma vez. Na esquina, uma cavalariça pintada de vermelho com um pátio

empedrado, mas não se vêem cavalos. Apenas algumas adolescentes, bem agasalhadase com botas grossas, deslocando fardos de feno entre duas construções.

Agora, aproximam-se das casas em socalcos. Sobem pela encosta e depois vêem aschaminés da Cloetta.

– Sabes – diz Zeke – podia jurar que hoje cheira a chocolate. Da fábrica.– Vou ligar o GPS. Para encontrarmos logo o que procuramos: o primeiro nome da

lista.

Ela não quer deixá-los entrar.Pamela Karlsson, trinta e oito anos de idade, loira, cabelo estilo pajem, balconista na

H&M vive sozinha. Mora num bloco de apartamentos quase por detrás da lojaHemköp. Apenas quatro apartamentos num prédio cinzento, de madeira. Fala com eles,com a porta semiaberta e presa pela corrente de segurança. Treme de frio, vestindoapenas uma camisa de dormir e cuecas, aparentemente acordada pelo toque dacampainha.

– Precisam de entrar? Está tudo tão desarrumado…– Está frio na escada – diz Malin. E pensa: foi encontrado um homem morto,

pendurado numa árvore, e ela preocupa-se com a falta de arrumação. Enfim… pelomenos, telefonou.

– Estive numa festa ontem.– Outra… – diz Zeke.– O quê?– Nada – diz Malin. – Para nós é indiferente que esteja desarrumado. Não vamos

demorar muito.– Nesse caso… – A porta fecha-se, um ruído, e abre-se de novo. – Façam favor de

entrar.Uma divisão apenas, um sofá-cama, uma pequena mesa e uma cozinha minúscula.

Móveis do IKEA e um banco em estilo rústico, provavelmente herdado, sem cordefinida. Caixas de cartão de pizas, latas de cerveja, uma caixa de vinho branco. Noparapeito da janela um cinzeiro, cheio até acima.

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Ela repara que Malin olha para o cinzeiro.– Habitualmente, não os deixo fumar aqui dentro, mas ontem não podia obrigá-los a

sair.– Quem são eles?– Os meus amigos. Ontem estivemos a surfar na Internet e, de repente, vimos o homem

e o pedido para telefonar. Liguei imediatamente. Ou, melhor, quase imediatamente.Senta-se na cama. Não é gorda, mas afunda-se no colchão.Zeke senta-se numa poltrona.– O que é que sabe sobre o homem?– Não muito. Só que morava aqui no bairro. E como se chamava. De resto, nada mais.

É ele?– Sim, estamos quase certos disso.– Não parámos de falar dele, na festa, ontem à noite.Recordações distorcidas, pensa Malin. Falar dele devia ser um tema sórdido numa

festa destas. «Mas, espera aí, ouçam agora o que aconteceu com o amigo de um amigomeu…»

– Quer dizer que não sabe quem ele era?– Na verdade, não. Sei que vivia de uma pensão de invalidez. E que lhe chamavam

«Apanha Bolas». Pensei que era por ser incrivelmente gordo, mas o Corren escreveuoutra coisa qualquer.

Deixam Pamela Karlsson com a sua desarrumação e a sua dor de cabeça e dirigem-sede carro para a Rua Ugglebovägen, uma casa desenhada por um arquitecto em quatroplanos diferentes onde cada divisão parece ter vista para o campo e, mais adiante, parao Roxen. É um corretor de seguros de olhos encovados, chamado Stig Unning, queabre, depois de baterem à porta com uma pata de leão dourada.

– Foi o meu filho que telefonou. Podem ir ter com ele à cave.O filho, Fredrik, diante de um jogo no televisor. Talvez treze anos, magro,

borbulhento, vestido com uns jeans demasiado grandes e uma T-shirt cor de laranja.Gnomos e bonecos, morrem aos montes no monitor.

– Telefonaste para nós? – pergunta Zeke.– Sim – responde Fredrik Unning, sem levantar os olhos do jogo.– Porquê?– Porque reconheci a fotografia. Pensei que havia algum tipo de recompensa. Há

mesmo?– Infelizmente, não – diz Malin. – Não há recompensa para quem reconhece uma

vítima de assassínio.

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Um gnu explode em pedaços, um duende vê os membros cortados.– Devia ter telefonado para o Aftonbladet.Bangue. Morto, morto, morto.Fredrik levanta os olhos para eles.– Tu conhecia-lo? – Pergunta Malin.– Não, nem pensar. Só sabia a alcunha e que cheirava mal, a mijo. Nada mais do que

isso.– Não tens mais nada para nos contar?Fredrik Unning hesita e Malin julga ver um medo repentino passar pelos seus olhos

antes de voltar a fixá-los no monitor e, freneticamente, movimentar o comando, ojoystick.

– Não – diz Fredrik.Tu sabes alguma coisa, pensa Malin. Ou, então, já sabes por que estamos aqui, já

sabes o que aconteceu.– Estás absolutamente seguro de que não tens nada mais a acrescentar?Fredrik Unning abana a cabeça.– Não, nem uma palavra, nada.Um lagarto vermelho deixa cair uma pedra cinzenta gigantesca na cabeça de um

monstro parecido com o Hulk.

A terceira pessoa na lista, o pastor pentecostal Sven Garplöv, quarenta e sete anos,mora numa casa recém-construída do outro lado do rio Motala, num dos extremos deLjungsbro. Telhado branco, árvores brancas, portas brancas, branco sobre branco,como se fosse para afastar os pecados. No caminho passam pela fábrica Cloetta, adobra do telhado é uma perversa cobra de açúcar e a chaminé espalha os seus aromas,fazendo sonhar com uma vida doce.

– Lá dentro fazem bolachas com chocolate – diz Zeke.– Eu não recusaria se me oferecessem uma – diz Malin.Apesar de estarem com pressa, a mulher do pastor, Ingrid, convida-os para tomar

café. Sentam-se os quatro no conjunto de sofás verdes de couro, na sala de estarpintada de branco, a comer biscoitos amanteigados, sete qualidades, feitos em casa.

A gordura nos biscoitos.Exactamente o que ela precisa.A mulher do pastor fica em silêncio. Ele fala.– Tenho um serviço a realizar ainda hoje, mas a assembleia vai ter de aguardar. Um

pecado desta gravidade está em primeiro lugar. Aquele que espera para rezar, nunca

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espera demais. Não é, Ingrid?A mulher concorda. Depois, faz um sinal com a cabeça apontando para o prato de

biscoitos.Eles tiram biscoitos uma segunda vez.– Ele era, sem dúvida, uma alma atormentada. Uma alma para a qual o Senhor olhava

de maneira especial. Nós falámos dele, brevemente, uma vez na assembleia, alguém,não me lembro quem, mencionou o nome dele. Constatámos que estava muito só.Estava a precisar de um amigo como Jesus.

– Alguma vez falou com ele?– Desculpe?– Sim, alguma vez o convidou para ir à igreja?– Não, creio que não. Ninguém dos nossos pensou nisso. As nossas portas estão

sempre abertas para todos, embora mais para uns do que para outros, devo confessar.

E agora estão diante da porta de um certo Conny Dyrenäs, trinta e nove anos, que vivenum apartamento numa avenida, a Cloettavägen, logo atrás do campo de futebol, oCloettavallen, e não leva mais do que alguns segundos, depois de terem tocado acampainha, para que a porta se abra.

– Eu ouvi-os a chegar – diz o homem.O apartamento está cheio de brinquedos por todo o lado, montes de brinquedos. De

plástico em cores berrantes.– Crianças – explica Conny Dyrenäs. – Este fim-de-semana ficam em casa da mãe.

Habitualmente, ficam comigo. É incrível como sinto a falta delas. Tentei dormir umpouco mais esta manhã, mas acordei à mesma hora, como de costume. Fiquei a surfarna Internet. Querem café?

– Acabámos de beber, mas obrigado mesmo assim – diz Malin. – Está absolutamentecerto de que é o Bengt nas imagens?

– Sim, sem dúvida.– Conheceu-o? – Pergunta Zeke.– Não, mas, ainda assim, ele fez parte da minha vida.Conny Dyrenäs vai até à porta que dá para a varanda e faz sinal para o

acompanharem.– Vêem a rede de arame e a baliza, ali? Ele costumava ficar lá em baixo à espera das

bolas quando o Linköping FC jogava em casa. Era-lhe indiferente se chovia a potes ouse estava frio ou calor no Verão. Estava lá sempre. Às vezes, durante o Inverno,chegava ali e ficava a olhar para o campo vazio. Certamente, tinha saudades. Era como

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se tivesse arranjado um trabalho, um lugar a preencher neste mundo. Ele corria atrásdas bolas assim que eram chutadas por cima da rede de arame. Aliás, era mais trotar. Ea assistência nas bancadas costumava rir-se. Inegavelmente, era divertido, mas o meuriso, de qualquer maneira, ficava engasgado na garganta.

Malin olha para a rede de arame, também branca pelo frio e a neve, as bancadascobertas e o pavilhão do clube nas traseiras.

– Pensei em convidá-lo para tomar café comigo, algumas vezes – diz Conny Dyrenäs.– Mas agora é demasiado tarde.

– Parece que era uma pessoa muito só. Devia ter feito isso, tê-lo convidado paratomar café – diz Malin.

Conny Dyrenäs concorda, parece querer dizer alguma coisa, mas permanece emsilêncio.

– Sabe mais alguma coisa sobre ele? – Pergunta Malin.– Sei lá se sei. Corriam vários rumores sobre ele.– Rumores?– Sim, de que o pai era louco. De que uma vez ele agrediu o pai, dando-lhe com um

machado na cabeça.– Um machado na cabeça?– Sim, era o que se dizia.E sobre isto Daniel Högfeldt não descobriu nada?– Mas pode ser que seja apenas conversa fiada. Deve ter acontecido há vinte anos.

Talvez mais. Agora, sem dúvida, estava bem. Tinha um olhar bondoso. Isso via-se atémesmo daqui. Mas nas fotos publicadas, essa bondade não transparecia, não éverdade?

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CAPÍTULO 13

MALIN ESTÁ EM FRENTE DA VEDAÇÃO de arame, olha para o campo de futebol, um mantode neve branca já um pouco acinzentada e, por trás, um grupo de construções escolaresainda mais cinzentas. À esquerda, o pavilhão do clube, uma longa escada de betãopintada de vermelho diante de um portão verde e um quiosque de salsichas com amarca Cloetta por cima.

Procura cheirar o ar. Talvez a adivinhar o aroma do chocolate?Atrás do quiosque, um court de ténis, um templo para um desporto de elite.Enfia os dedos na vedação de arame.Através das suas luvas pretas Thinsulate, não consegue sentir a frieza do metal. É

apenas um arame grosso e, ao mesmo tempo, grosseiro, sem vida. Abana um pouco arede, fecha os olhos e vê o verde do campo, sente o cheiro forte da relva recém-cortada, a expectativa no ar quando a equipa principal entra a correr no campo, osjogadores saudados pelas crianças de oito, nove e dez anos e pelos velhotesaposentados, com as suas garrafas térmicas cheias de café. E lá atrás o Apanha Bolas,sozinho, do lado de fora, longe de todos.

Como é que se pode ficar tão sozinho?Um machado na cabeça.Eles vão procurar o teu nome nos velhos arquivos e vai acabar por aparecer. As

senhoras no arquivo são zelosas, competentes, vão encontrar-te. Vamos ver-te. Podesestar certo.

Malin estica os braços no ar. Finge apanhar a bola com as mãos, depois faz-se pesadae desajeitada, deixa-se cambalear para trás e para o lado e pensa: eles riram-se de ti,mas não todos, tu e as tuas desesperadas tentativas de apanhar a bola, de tomar partenos incidentes da vida numa pequena cidade como esta. Eles não conseguiam perceberque tu eras um deles, dos que faziam com que esta pequena cidade fosse aquilo que é.Deves ter sido uma constante na vida de muita gente, visível, mas invisível, conhecido,mas desconhecido, uma trágica piada ambulante que dava brilho às vidas normais,justamente por seres motivo de piadas.

Eles vão sentir a tua falta na Primavera. Vão lembrar-se de ti. Quando a bola voar porcima da vedação de arame, irão desejar que tu estivesses lá. Talvez, então, venham acompreender o que significa ter uma sensação desagradável na boca do estômago.

Pode alguém sentir-se mais sozinho do que tu? Motivo de troça em vida, a ausênciainconsciente na morte.

Então, o telefone toca no bolso.

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Ouve a voz de Zeke nas suas costas.– De certeza que é o Sjöman.E era Sjöman, sim.– Não telefonou mais ninguém, apesar de ele ser agora uma espécie de celebridade.

Vocês conseguiram alguma coisa?– Há rumores sobre uma machadada na cabeça – diz Malin.– Uma quê?– Ao que dizem, matou o pai atingindo-o com um machado na cabeça, há uns vinte

anos.– Temos de verificar esse dado – diz Sjöman. Depois, acrescenta: – Se quiserem, já

podem ir ao apartamento dele. Os técnicos já terminaram. Vão dizer, com certeza, quenão foi assassinado no apartamento. Apesar da violência do crime, não foramencontrados vestígios de sangue. O teste com Luminol deu negativo. Edholm e algunscolegas estão a ouvir, porta a porta, o que dizem os vizinhos. O endereço éHärnavägen, 21 B, rés-do-chão.

Em cima da bancada da cozinha, quatro pães da marca Skogaholm, devidamentefatiados, dentro de embalagens com manchas cinzentas e esverdeadas. Luzesfluorescentes no tecto fazem com que as embalagens de plástico dos pães deixemtransparecer a humidade. Estão estragados, parecem conter um veneno mortal.

Malin abre a porta do frigorífico, estão ali, de certeza, umas vinte embalagens desalsichas, leite magro e várias embalagens de manteiga sem sal.

Zeke olha por cima dos ombros dela.– Um homem de bom gosto.– Acreditas mesmo que vivia com esta alimentação?– Sim – responde Zeke. – Não é impossível. Em princípio, esses pães são açúcar

puro. E as salsichas têm imensa gordura. Uma combinação perfeita. Uma verdadeiradieta de solteiro.

Malin fecha a porta do frigorífico. Por detrás das persianas rebaixadas vê oscontornos de muitas crianças a enfrentar o frio e a tentar construir algum tipo de bonecocom a neve. Parece ser uma missão impossível. A neve está muito dura e resiste aqualquer tentativa de se lhe dar forma. As crianças são todas descendentes deimigrantes. Essas casas de dois andares, enfileiradas, geminadas, são de aluguer. Ocimento é pintado de branco e as madeiras de castanho. São, sem dúvida, o ladosombrio de Ljungsbro.

Risos abafados do lado de fora. Demonstrações de alegria, como se fosse possível

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dominar o frio.No entanto, talvez não seja o lado sombrio.As pessoas vivem as suas vidas. A alegria irrompe, pontos luminosos de magma no

dia-a-dia.Um sofá manchado, padrão da década de 1970, encostado à parede e uma carpete de

um castanho amarelado com várias manchas. Uma mesa de jogo com o respectivo panoverde, um par de cadeiras estilo Windsor, uma cama no chão e, a um canto, uma colchamuito bem dobrada.

Espartano, mas sem exagero. Nada de lixo espalhado ou amontoado, nada de caixasde cartão de piza, nada de beatas no chão. Ordem e limpeza na solidão.

Numa das janelas da sala de estar há três pequenos buracos no vidro, devidamentetapados com fita-cola colocada ao longo das fissuras que se espalham a partir dosburacos.

– Parece que alguém atirou pequenas pedras contra o vidro – diz Zeke.– Sem dúvida.– Achas que isso significa alguma coisa?– Há muitas crianças nos arredores e inventam sempre artimanhas. Será que atiraram

cascalho com demasiada força?– Ou será que ele tinha encontros amorosos?– É possível, Zeke. Temos de chamar os técnicos para examinarem o vidro da janela,

se é que já não fizeram isso – diz Malin. – Para ver se conseguem saber o que deuorigem aos buracos.

– Estou admirado por não terem levado o vidro – diz Zeke. – Mas, certamente, foi aJohannison que esteve aqui. E talvez não tenha aguentado fazer esse serviço.

– Se a Karin tivesse estado aqui, o vidro já estaria agora no laboratório – diz Malin,enquanto se dirige ao roupeiro perto do quarto onde o homem dormia.

Calças de tecido de gabardina, enormes, em vários tons de um castanho triste,penduradas cuidadosamente nos cabides, lavadas e engomadas.

– Não combinam – diz Zeke. – Esta ordem na casa, as roupas lavadas e as afirmaçõesde que cheirava mal, a sujidade e a urina.

– Não – diz Malin. – Mas não sabemos se cheirava mal. Talvez a expectativa fosse ade que cheirasse mal. E então um disse isso a outro que, por sua vez, o disse a umterceiro, que o repetiu a outra pessoa, até que isso se transformou em verdade. «OApanha Bolas cheira a urina, o Apanha Bolas não se lava, não toma banho.»

Zeke concorda.– Ou, então, alguém esteve aqui depois e arrumou a casa.

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– Se assim fosse, os técnicos teriam percebido.– Tens a certeza?Malin passa a mão pela testa.– Não, não posso garanti-lo. A questão em si é muito difícil de esclarecer.– E os vizinhos? Nenhum deles viu nada de estranho?– Nada, segundo Edholm, que tratou de bater às portas de todos.Os últimos vestígios da dor de cabeça desapareceram. Agora resta apenas a sensação

de inchaço, de moleza, a sensação que surge quando o álcool sai do corpo.– Há quanto tempo disse a Johannisson que ele estava morto? Entre dezasseis e vinte

horas? Teria estado aqui alguém? Ou a imundície era um mito?

O frango de caril, bem quente, está ao lume, os aromas de alho, gengibre e açafrãoespalham-se pelo apartamento e Malin está com fome, todo o corpo pede comida.

Picar, bater, fatiar. Guizar e deixar cozinhar.Cerveja com baixo teor de álcool em cima da mesa. Nada vai melhor com o caril que

uma cerveja.Janne acaba de ligar. Sete e quinze. Estão a caminho. Aliás, já se ouve a chave na

fechadura da porta. E Malin ao encontro deles, no hall de entrada. Tove excitada comose fosse subir ao palco.

– Mamã, mamã, vimos cinco filmes este fim-de-semana. Cinco, e tirando um, eramtodos bons.

Janne no hall, atrás da excitada Tove. Culpado, mas, apesar disso, exibindo umaexpressão de autoconfiança. Sempre que ela estiver comigo, sou eu que decido. E tusabes disso. Essa discussão já a tivemos há muito tempo.

– Quais foram os filmes que viram?– Todos de Ingmar Bergman.Foi este o número que prepararam e a que os dois costumam submetê-la.Malin não pôde evitar uma gargalhada.– É… E eram todos bons.– Sem dúvida, Tove. A mamã acredita. Afinal, quais foram os filmes que realmente

viram?– Morangos Maduros.– Tove, o título é Morangos Silvestres. E esse vocês não viram…– ok. Vimos A Noite dos Mortos-vivos.O quê? Janne? És louco? Mas controla-se, conscientemente. E pensa: mortos-vivos.– Mas também estivemos no ginásio – diz Janne. – Treinámos bem.

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– Exercício físico?– Sim, queria experimentar – diz Tove. – Tentar perceber aquilo que tu achas tão

divertido, mamã.– Cheira muito bem, esse guisado.Horas no colchão no ginásio da esquadra. Máquinas de musculação. Johan Jacobsson

ao lado das máquinas: – Mais uma vez, Malin. Mais uma vez, sua molengona.Está a suar. Força. Nada melhor do que exercício físico quando se quer renovar

energias.– E tu, mamã, o que fizeste?– O que achas? Trabalhei.– Vais trabalhar esta noite?– Que eu saiba, não. E tratei de fazer o jantar.– O quê?– Não reconheces pelo cheiro?– Caril. De frango?Tove não consegue esconder o seu entusiasmo.Janne, de ombros encolhidos.– Bem, vou-me embora – diz ele. – Falamo-nos durante a semana.– Está bem – diz Malin.Janne abre a porta.Quando ele já ia a sair, Malin acrescenta:– Não queres ficar para comer um pouco de caril? Também chega para ti.

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CAPÍTULO 14

SEGUNDA-FEIRA, 6 DE FEVEREIRO

MALIN ESFREGA OS OLHOS, ESTÁ COM SONO.

Quer começar cedo, esta manhã.Cereais, fruta e iogurte. Café, café, café.– Adeus, mamã.Tove, agasalhada, no hall, levantou-se mais cedo do que o costume. Malin, ela

própria, arranja-se mais tarde. No domingo, ficam as duas em casa o dia todo, a fazerbolos, a ler. Malin teve de refrear o impulso de ir à esquadra, apesar de Tove ter ditoque poderia ir trabalhar, se quisesse.

– Então, até logo. Estarás em casa quando eu voltar à noite?– Talvez.A porta fecha-se. A meteorologista do Canal 4: «…e assim vai ficar ainda mais frio,

de facto, é verdade, há um vento mais frio a caminho, vindo do mar de Barents, que seestende em crista sobre o país, até à Escânia, no Sul. Portanto, agasalhem-se bem, commuita roupa, se tiverem de sair de casa.

Devo sair?Quero sair. Quero continuar com o caso.O Apanha Bolas.Quem eras tu, na realidade?

A voz de Sjöman ao telemóvel. Malin guia apenas com uma das mãos.Segunda-feira, gente a caminho do trabalho a tremer de frio nas paragens dos

autocarros na praça, a Trädgårdstorget. Quando expiram, o vapor transforma-se emfumo e sobe pelo ar e pelos edifícios heterogéneos que rodeiam a praça, edifícios dosanos trinta, com os seus muito ambicionados apartamentos, edifícios dos anoscinquenta com lojas no piso térreo e o pomposo edifício na esquina, construído nadécada de 1910, onde durante décadas funcionou uma grande loja de discos que agorateve de fechar as portas.

– Ligaram de um lar de idosos chamado Vretaliden, em Ljungsbro. Parece que umvelhinho de noventa e seis anos contou a uma empregada um monte de coisas sobre oApanha Bolas e a família dele. Leram o jornal ao velho, que parece ver mal e, então,ele começou a contar as suas lembranças. A enfermeira-chefe telefonou. Achou que eramelhor falarmos com ele. Vocês podem ir fazer isso.

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– O velhinho está disposto a falar connosco?– Parece que sim.– Como é que se chama?– Gottfrid Karlsson. A enfermeira chama-se Hermansson.– E o nome dela, qual é?– Ela só disse ser a enfermeira Hermansson. Acho melhor falares primeiro com ela.– Disseste Vretaliden? Vou já para lá.– Não levas o Zeke contigo?– Não, vou já para lá.Malin trava e faz inversão de marcha pela frente de um autocarro da linha 211, que

vinha atrás dela.O motorista do autocarro reage, buzina, ameaça com o punho fechado.Sorry, pensa Malin.– Encontraste alguma coisa nos arquivos?– Só agora começaram o trabalho, Malin. Já sabes que não encontraram nada nos

computadores. Mas continuamos a procurar. Vamos ver se surge alguma novidadedurante o dia. Telefona assim que souberes de alguma coisa.

Cumprimentos recíprocos e, depois, silêncio dentro do carro. Ouve-se apenas obarulho do motor em aceleração, quando Malin mete outra mudança.

***

Vretaliden.Lar de idosos e hospital, tudo num mesmo lugar. Edifício ampliado e modificado ao

longo dos anos. Arquitectura original dos anos cinquenta, em convivência com o pós-modernismo dos anos oitenta. O complexo está situado num vale, a uns cem metros deuma escola, com apenas algumas ruas arborizadas e algumas casas de telhadosvermelhos entre as duas instituições. A sul, um campo pertencente à firma Wester,Comércio e Jardins, onde normalmente se plantam morangos. Ao fundo, algumasestufas.

Mas, agora, está tudo branco.O Inverno não tem aromas, pensa Malin, enquanto corre do estacionamento para a

entrada do lar. Um hall envidraçado, com uma porta giratória a rodar lentamente.Malin hesita. Já tinha trabalhado na Casa de Saúde Ålerryd, durante o Verão, aosdezasseis anos, um ano antes de encontrar Janne. Não gostou do trabalho. Mais tardejustificou-se, dizendo que era demasiado jovem e inexperiente para cuidar dos idosos,das suas fraquezas e necessidades. E muitas das actividades práticas eram

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desagradáveis. Mas gostava de falar com os velhinhos, de lhes fazer companhia quandotinha tempo e de ouvir as recordações das suas vidas. Eram muitos os que gostavam defazer isso, de recordar, se ainda conservavam a capacidade de falar. Bastava fazer umaprimeira pergunta e começavam logo a relatar peripécias das suas vidas. Depois, erasó responder aqui e ali, para manter e continuar a conversa.

Um balcão branco na recepção.Alguns velhotes em cadeiras de rodas que se parecem com poltronas. AVC? Doentes

de Alzheimer em estado avançado? «Puseste mesmo água nas flores?»– Olá, sou da polícia de Linköping. Gostaria de falar com a enfermeira Hermansson.O lar cheira a químicos dos produtos de limpeza, não perfumados.A jovem empregada na recepção, de pele gordurosa e cabelos de cor indefinida

recém-lavados, levanta os olhos para Malin, com uma expressão compadecida.– Enfermaria três. Pode ir de elevador. Ela deve estar na recepção do serviço.– Obrigada.Enquanto espera pelo elevador, Malin olha para os velhinhos nas cadeiras de rodas.

A saliva escorre pela boca de um deles. Será que ficam assim sentados o dia todo?Malin dirige-se a eles, tira um lenço de papel do bolso interior do casaco. Estende o

braço a um dos idosos e limpa a saliva que lhe sai da boca e escorre pelo queixo.A empregada por detrás do balcão abre os olhos de espanto, mas não se zanga. Sorri.O elevador faz plim-plim.– Assim fica melhor – murmura Malin ao ouvido do velhinho.Ele rumoreja qualquer coisa em voz baixa, como se quisesse responder.Ela passa-lhe a mão pelos ombros. Depois, corre para o elevador, mas a porta fecha-

se novamente. Raios, agora vou ter de esperar.

A enfermeira Hermansson tem cabelos curtos, com permanente, os caracóis caem emcachos sobre o seu rosto como palha de aço. Olhos duros por detrás de óculos de fundode garrafa.

Cinquenta e cinco, sessenta anos?Está em pé, de bata branca, por detrás do balcão de enfermagem, um pequeno espaço

entre dois corredores com salas. Está firme, de pernas afastadas, braços cruzados. Esteé o meu território.

– Uma mulher – diz Hermansson. – Esperava que fosse um homem.– Actualmente, também existem inspectores do sexo feminino.– Pensei que a maioria usava uniforme. Não é preciso estar lá bem em cima para

poder trajar à civil?

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– Gottfrid Karlsson?– Na realidade, sou totalmente contra isto. Ele está velho. E agora com este frio

extremo não é preciso muito para espalhar a inquietação na enfermaria. A inquietaçãonão é boa companhia para os idosos.

– Ficamos gratos por toda a ajuda que pudermos obter. E, aparentemente, ele tem algopara nos contar, não é verdade?

– Acho que não. Mas a assistente que lhe leu as notícias do Corren insistiu.Hermansson passa por Malin e segue por um dos corredores. Malin atrás dela, até

que Hermansson pára em frente a uma porta, tão de repente que até as solas das suassandálias Birkenstock chiam.

– É aqui.Depois, Hermansson bate à porta.Ouve-se um fraco, mas perceptível: «Entre».Hermansson faz um gesto na direcção da porta.– Faça favor de entrar no território de Karlsson.– Não vai estar presente?– Não, nós não nos damos muito bem, Karlsson e eu. E isto é coisa dele. Não minha.

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CAPÍTULO 15

É MUITO BOM FICAR AQUI DEITADO à espera, sem ansiar por nada, só a deixar o tempopassar, tão pesado como eu. E, entretanto, poder flutuar.

Neste preciso momento estou a flutuar, a voar para longe da apertada caixa donecrotério e da sala, para longe, através da janela da cave (eu gosto de fazer estecaminho, embora as paredes não sejam uma barreira para mim).

E os outros?Vemo-nos uns aos outros só quando queremos. Portanto, na maior parte do tempo,

continuo sozinho, mas conheço todos os outros, como moléculas num corpogigantesco e difuso.

Quero ver a minha mãe. Mas será que ela já sabe que estou aqui? Quero ver o meupai. Quero falar com ambos, explicar que sei que nada é fácil, contar-lhes sobre asminhas calças, o meu apartamento, de como estava limpo, sobre as mentiras, decomo eu era alguém.

A minha irmã?Já estava cansada da vida. Eu compreendi. E ainda compreendo.E lá continuo eu a flutuar sobre os campos, sobre o Roxen, a contornar a piscina e

o parque de campismo em Sandviken, a passar por cima do castelo de Stjärnorpcujas ruínas, de certa forma, reflectem o branco à luz do Sol.

Eu flutuo como uma canção, como a alemã Nicole no Festival da Canção: «Einbisschen Frieden, ein bisschen Sonne, das wünsch ich mir.»3

Depois, passo sobre uma floresta, densa e escura, e cheia dos segredos maishorríveis. Ainda estão a seguir-me?

Eu avisei-os. As serpentes estão a subir pelas pernas da mulher, os seus dentesvenenosos mordem-lhe o sexo que fica em sangue.

Uma estufa, uma plantação de flores, uma área gigantesca plantada de morangosonde eu costumava ir em criança.

Então, desço ainda a flutuar, passo pela casa dos meninos maus, não querodemorar-me muito por aqui, prefiro seguir logo para o quarto de esquina de GottfridKarlsson, no terceiro andar do velho edifício de Vretaliden.

Gottfrid está lá sentado na sua cadeira de rodas. Velho, mas satisfeito com a vidaque viveu e que vai viver ainda por alguns anos.

Malin Fors está sentada numa cadeira, na frente dele, com uma mesa de permeio.Está um pouco confusa, não sabe se o velhote na sua frente ainda vê bem, o

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suficiente para encarar o olhar dela.Não acredites em tudo o que Gottfrid diz. Mas a maior parte do que conta, pode

servir como «verdade» na vossa dimensão.

O homem em frente de Malin.O cretinismo fez com que o seu nariz ficasse achatado, grosso e vermelho, as faces

acinzentadas e encovadas, mas ainda assim cheias de vida. As suas pernas são magraspor baixo do tecido de algodão, grosso, de cor bege das calças hospitalares, a camisabranca e bem engomada.

Os olhos.Quanto consegue ele ver? Cego.O instinto dos velhos. É apenas a vida que nos pode ensinar. Ao vê-lo, Malin recorda

o Verão em que trabalhou num lar semelhante. Como algumas pessoas idosas, de certamaneira acreditam que em grande parte as suas vidas já ficaram para trás eencontraram a tranquilidade, enquanto outras se sentem completamente revoltadasperante a ideia de que, em breve, irão morrer.

– Não se preocupe, menina Fors. Acho que ainda é menina, não? Apenas consigodistinguir a luz da escuridão e, portanto, não precisa de tentar olhar-me nos olhos.

Um dos tranquilos, pensa Malin, inclinando-se para a frente, articulando bem aspalavras, falando alto.

– Muito bem, Senhor Gottfrid, sabe por que razão estou aqui?– Não tenho nenhum problema nos ouvidos, menina Fors.– Desculpe.– Leram-me o jornal sobre o terrível acontecimento com o rapaz de Kalle i Kröken.– Kalle i Kröken? Kalle da Curva?– Sim, o pai de Bengt Andersson era assim conhecido. Sangue ruim o dessa família,

sangue ruim. Na realidade, o rapaz não era doente, mas o que é que se pode fazer comum sangue daqueles, sempre com uma impaciência diabólica?

– O senhor pode falar-me um pouco mais de Kalle da Curva?– De Kalle? Com muito gosto, menina Fors. Histórias são tudo o que agora tenho para

contar.– Então, continue.– Kalle da Curva era uma lenda aqui na comunidade. Dizia-se que teria vindo de uma

família de ciganos que costumava acampar num terreno baldio na outra margem doMotala, lá para os lados de Ljung, perto da tipografia. Talvez fosse verdade o quetambém se dizia, que era fruto de uma ligação incestuosa, que todos sabiam que os

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donos da tipografia, irmão e irmã, dormiam juntos. E que os ciganos receberamdinheiro para o criar. E que era por isso que Kalle da Curva se tornou naquilo que era.

– Quando foi isso?– Foi na década de 1920, acho eu, que Kalle nasceu. Talvez nos anos trinta. A região

era diferente, nessa época. Havia fábricas. E plantações e florestas. Nada mais. Desdeo início, Kalle afastava-se, ficava longe de nós, as outras crianças. A menina percebe,ele era a ovelha mais negra de todas as ovelhas. Não na cor da pele, mas por dentro.Como se a dúvida o condenasse, como se a insegurança fosse o motivo de ele se tornarlouco, uma mágoa que, por vezes, fazia com que perdesse a noção de tempo e deespaço. Dizia-se que foi ele que deitou fogo ao armazém da tipografia, mas ninguémsabe ao certo. Quando tinha treze anos, ainda não sabia ler nem escrever. O professorexpulsou-o da escola lá em Ljung e foi então que o prenderam pela primeira vez, porter roubado ovos de um camponês, Tureman, criador de galinhas.

– Aos treze anos?– Sim, menina Fors, ele estava com fome, certamente. Será que os ciganos se

cansaram dele? Será que os donos da tipografia deixaram de pagar? Não sei. Essascoisas não se conseguiam saber ao certo nessa época. Não era tão fácil como agora.

– Essas coisas?– Paternidade, maternidade.– E depois?– Depois, Kalle desapareceu durante muitos anos. Houve rumores de que teria

embarcado. Ou ficado preso em Långholmen, coisas horríveis. Assassínios, violênciacontra menores. Mas o que é que sabíamos? Embarcado não esteve, senão eu teriasabido.

– Como assim?– Eu passei muitos anos na marinha mercante durante a guerra. Sei como se porta um

marinheiro. E Kalle não era marinheiro.– Então, onde é que ele esteve?– Em primeiro lugar, era um mulherengo. E um beberrão…– Quando é que ele regressou aqui?– Deve ter sido, mais ou menos, em meados dos anos cinquenta. Durante uma época

trabalhou como mecânico na oficina de uma fábrica, mas não foi por muito tempo.Depois, foi trabalhar nas plantações como substituto de outros trabalhadores. Enquantosóbrio, trabalhava por dois. E então, continuava.

– Continuava o quê?– Continuava com as prostitutas e a bebida. Certamente não existem muitas operárias,

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criadas ou até donas de plantações que não tenham conhecido Kalle da Curva. Ele eraum imperador nos salões de dança no Folkspark. Aquilo que não conseguia meter nacabeça, letras e números, saía-lhe do corpo. Era um dançarino de primeira. Dava avolta à cabeça das raparigas. Tinha as que queria.

– Como é que ele era?– Esse era o segredo, menina Fors. As mulheres não conseguiam resistir-lhe. Parecia

um predador disfarçado de ser humano, despertava atracção física. Tinha ombroslargos, olhos negros, profundos, muito juntos, um queixo que merecia ser esculpido emmármore.

Gottfrid Karlsson fica em silêncio como que para deixar que a imagem de macho,indisfarçável, ficasse bem viva na jovem menina Fors.

– Machos assim já não há, menina Fors. Embora exista ainda gente rude nesta região.– Porquê «Da Curva»?Gottfrid põe as mãos pigmentadas, manchadas e desgastadas pela idade, nos braços

da cadeira de rodas.– Deve ter sido no final da década de 1950 ou no início dos anos sessenta. Eu

trabalhava como capataz na fábrica Cloetta. De alguma maneira, Kalle tomou posse deuma boa quantia de dinheiro e comprou um terreno com uma velha casa de campo,pintada de vermelho, perto do terreno da Wester, a cerca de duzentos metros daqui,numa curva junto do túnel que passa por baixo da grande estrada hoje chamadaAndersväg. Naquela época, o túnel ainda não existia e onde passa hoje a estrada,existia um pasto. Eu também ofereci dinheiro pela mesma casa, de modo que sei o quese passou. Era uma grande quantia, naquela época. Tinha havido um assalto a um bancoem Estocolmo e circulavam rumores de que o dinheiro dele teria vindo daí.

Nessa altura, ele tinha encontrado uma mulher, a mãe de Bengt, Elisabeth Teodorsson.Ela era muito segura de si, tinha os pés assentes no chão, e parecia completamenteimperturbável. Uma óptima mulher que morreu cedo de mais.

Então, o velhote suspira, fecha os olhos.As palavras de Gottfrid parecem ter-se esgotado.Será cansaço pelo esforço que fez para desenterrar as memórias? Ou estará cansado

das coisas que contou? Mas, de repente, reabre os olhos e vê-se alguma luminosidadenas suas pupilas enevoadas.

– Depois que comprou a casa, passou a ser chamado Kalle da Curva. Antes, todossabiam quem era Kalle. Então, acrescentaram-lhe essa alcunha. Acho que aquela casase tornou para ele o princípio do fim. Não tinha nascido para o que se chama uma vidanormal.

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– E depois nasceu Bengt?– Sim, 1961, lembro-me, mas antes de ele nascer, Kalle da Curva foi parar atrás das

grades.Gottfrid Karlsson volta a fechar os olhos.– O senhor está cansado?– Não, nem pensar, menina Fors. Ainda não contei tudo o que tinha para contar.

Ao sair, Malin pára no balcão de atendimento da enfermaria.A enfermeira Hermansson está sentada junto ao balcão e alinha uma série de letras

com uma caneta de tinta preta numa espécie de diagrama.Levanta os olhos.– E então?– Tudo bem – diz Malin. – Muito bem.– Ficaram a saber de mais alguma coisa?– Sim e não.– Todos aqueles cursos que Gottfrid Karlsson fez na universidade, depois de

reformado, tornaram-no especial. De modo que até posso compreender que ele tenhaconseguido meter uns bichinhos na sua cabeça. Certamente falou-lhe sobre os cursosque fez?

– Não – responde Malin. – Não, não me disse nada sobre isso.– Então, é melhor eu ficar calada – diz Hermansson, voltando ao seu diagrama.Lá em baixo, perto da entrada, os velhotes nas cadeiras de rodas desapareceram.Ao passar pela porta giratória e ao sentir o frio da rua, Malin recorda-se das últimas

palavras de Gottfrid Karlsson, palavras de que eles, na polícia, se irão lembrar muito,a toda a hora.

Malin já estava a sair quando ele lhe agarrou o braço.– Agora, tome cuidado, menina Malin.– Perdão?– Lembre-se disto, menina Fors. É sempre o desejo que mata.

3 Literalmente: «Um pouco de paz, um pouco de sol, é o que desejo para mim.» (N. do T.)

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CAPÍTULO 16

O TERRENO ONDE A CASA DE CAMPO , o chalé da curva, em tempos se encontrava épresentemente o símbolo do esplendor da classe média, e da indústria das casas pré-fabricadas. Quando é que a casa cor-de-rosa de madeira, produzida numa fábrica,alegria de um marceneiro, foi montada ali? Em 1984? Em 1990? Mais ou menos por aí.Aquele que comprou a casa do Apanha Bolas sabia o que estava a fazer. Certamentecomprou barato, esperou por uma boa conjuntura, deitou abaixo a casa original,mandou construir um chalé pré-fabricado e vendeu-o.

Aquele que a construiu, desprezou a vida de alguém?Não.Isto porque uma casa não é mais do que uma propriedade, e o que faz uma

propriedade senão criar obrigações? Alugue uma moradia, não possua nada, é esse omantra dos conscientes e dos pobres.

Malin sai do carro. Precisa de se livrar da atmosfera sufocante. Por detrás das copasdos vidoeiros avista a passagem pedestre, o túnel por baixo da estrada, aLinköpingsvägen. Um buraco negro em que a encosta do outro lado parece um caminhoimpenetrável.

A casa em frente é um chalé dos anos cinquenta, ampliado. A do vizinho, à esquerda,a mesma coisa. Quem mora hoje aqui? Não é Kalle da Curva. Não é um bêbado.Haverá mulherengos? Gordos abandonados cujas almas nunca chegaram a crescer?

Nada disso.Vendedores, médicos, arquitectos, esse tipo de gente.Malin dá largas à sua imaginação, ainda do lado de fora do carro.A voz de Gottfrid Karlsson:– Kalle da Curva maltratou um homem no Folkpark. Fazia-o constantemente. Uma luta

corpo a corpo era uma espécie de alimento para ele. Mas naquele caso o homem ficoucego de um olho e Kalle apanhou seis anos de prisão por isso.

Malin atravessa o túnel e a estrada, sobe a encosta caminhando por uma cicloviaainda cheia de neve por limpar. O aqueduto, que antes não existia, pode ser visto àdistância. Carros que desaparecem, os pneus com correntes, na neve que cobre aestrada. Malin pode imaginar a vegetação verde, o esplendor do Verão, os barcos nocanal a deslizarem sobre a água na época estival. Nessa altura, chega gente do mundointeiro! E a paisagem deixa de ser tua, não é tua. O teu mundo vai permanecer comoagora, nesta comunidade. A tua solidão. O riso dos outros quando corres atrás dasbolas, atiradas por cima da vedação.

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– Elisabeth conseguiu remediar a situação costurando. Fazia modificações nas roupasdas madames e costurava também para as lojas de moda, estabelecidas numa ruaespecífica, a Vasagatan. Apanhava o autocarro todas as manhãs, com Bengt ao colo,para ir buscar as roupas e apanhava o mesmo autocarro à noite, para as devolver jámodificadas. Os motoristas deixavam-na viajar de graça. Foi então que ele ficougordo. Dizia-se que a mãe deixava o rapaz comer manteiga e açúcar para o mantersossegado enquanto costurava.

Malin está agora junto do rail da estrada, por cima do túnel. Olha para a casa, para ochalé vermelho que em tempos existia ali. Um chalé tão pequeno, mas para o rapaz,todo o universo, as estrelas no céu escuro da noite eram recordações da sua própriavida passada.

– Quando Kalle saiu da prisão, Elisabeth ficou logo grávida. E ele, constantementebêbado, agora já sem dentes, prematuramente envelhecido. Dizia-se que foi espancadonuma casa em ruínas, por alguma coisa que fez em Estocolmo. Dizia-se que tinhadenunciado alguém. Mas as mulheres continuaram a ficar doidas por ele, como sempre.Aos sábados, ia sempre para o parque. Saias e lutas.

Telhados negros. Fumo a sair pela chaminé. Certamente de uma lareira.– E assim nasceu Lotta, a irmã de Bengt. E Kalle continuou o mesmo, a beber e a

lutar. E a bater na mulher, no rapaz e na rapariga quando ela não parava de chorar,mas, de certa forma, continuaram juntos. De certa forma. Kalle também costumava ir àpadaria e ficar do lado de fora a discutir com quem passava. A polícia vinha eprendia-o. Mas ele já estava velho.

Malin anda à volta da casa, hesita antes de entrar na via que leva à garagem. Num doscantos do terreno vê-se um carvalho centenário. Essa árvore já devia existir aqui no teutempo, não é verdade Apanha Bolas?

Já existia, sim, no meu tempo.Eu e a minha irmã corríamos por baixo e em volta do carvalho. Íamos correr para

lá para manter o nosso pai à distância, para obrigá-lo a ficar longe com a ajuda dosnossos risos, dos nossos berros, dos nossos gritos.

E como eu comia.Enquanto eu comesse, havia esperança. Enquanto houvesse comida, havia fé.

Enquanto eu comia, não existia outra realidade a não ser a comida. Enquantocomia, esquecia a tristeza que sempre existiu no buraco escuro onde vivíamos.

Mas de que serviam as corridas e as comidas?Entretanto, foi a mamã que desapareceu. O cancro levou-lhe primeiro o fígado e

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depois levou-a a ela. Ela fugiu de nós em pouco mais de um mês. E depois, sim, o queaconteceu depois… foi aí que começou a noite eterna.

– Os serviços sociais deviam ter ficado com as crianças, menina Fors, quando aElisabeth morreu. Mas eles não podiam fazer nada. Kalle queria ficar com elas e a leiassim o determinava. Bengt talvez já estivesse com doze anos, a pequenina Lotta comseis. Por parte de Bengt, decerto, já tinha chegado o fim. Ele era o mais solitário detodos os solitários, filho do Da Curva, um monstro que era preciso manter à distância.Como é que se fala às pessoas que nos olham como se fossemos um monstro? Eu assistia isso à distância. E se é que cometi algum pecado na vida foi quando passei por elesem falar com ele, quando ele ainda era uma pessoa real, se é que a menina Forspercebe o que quero dizer. Quando ele precisava de mim e da comunidade.

E a mãe? Elisabeth. Quando erguer a mão para aparar um golpe, uma pancada, é aúnica força que resta. E quando as mãos já foram magoadas e já não servem paracoser?

Malin dá uma volta a contornar a casa.Conhece os olhos de quem está lá dentro. Como eles a observam, se interrogam sobre

a identidade dela. Podem observar, não há problema.

Macieiras recém-plantadas, o aroma das flores, um éden. Sabem como é fácil destruiristo? Fazer com que tudo desapareça e não volte mais?

Mãe, mesmo que não aguentes, volta para casa.«O que é que tu pediste, Bengt?»Não vou dizer mais nada.Até mesmo nós, eu, temos um limite.Agora, quero apenas flutuar.Flutuar e arder.Mas senti a falta da minha mãe. E receava pela minha irmã. Talvez fosse por isso

que desferi o golpe, não sei, para conseguir, de alguma maneira, manter oequilíbrio. Tu própria podes ver as casas à volta da nossa. Eu vi, sim, como devia tersido e como poderia ter sido.

Eu amava-o, ao meu pai, foi por isso que levantei o machado naquela noite.

Jovens ranhosos. Jovens sujos. Jovens medrosos, irritados. Jovens que não gostam deir à escola. Jovens bêbados.

Uma rapariga, uma pequena Lotta que deixou de falar, que cheira a urina, com o fedora miséria que não pode existir no bem-estar de uma social-democracia recém-

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restaurada.Um par de botas grossas deixam sulcos profundos na neve nas traseiras de um chalé

de sonho, uma porta que se abre, a voz máscula de um homem desconfiado:– Desculpe, em que posso ajudá-la?A jovem agente, já preparada, exibe as suas credenciais.– Polícia. Estou apenas a estudar o terreno. Morou aqui alguém, há muito tempo, que

está agora a ser investigado.– Quando? Já moramos aqui desde 1999.– Não se preocupe. Foi há muito mais tempo, antes mesmo de a sua casa ter sido

construída.– Então, posso fechar a porta? Entra imenso frio.Parece vendedor. Alguns cabelos brancos, apesar de não ter mais de quarenta anos.– Pode fechar. Estou quase a terminar.Uma mãe que se evapora com cancro, um pai que destrói tudo o que está à distância

dos seus braços. Um rugido pleno de exigências que ecoa por estas terras, por estesbosques e pela história destes campos.

A voz de Gottfrid:– Ele pegou no machado, menina Fors. Ainda não tinha sequer quinze anos. Esperou

em casa que o Kalle da Curva regressasse com mais uma bebedeira. Depois, quando ovelho abriu a porta, atingiu-o. O garoto tinha afiado o machado, e o golpe foi certeiro.A lâmina apanhou a orelha que quase se separou da cabeça, ficou pendurada,oscilando, presa por algum tendão. E Kalle correu para fora de casa, o sangue aescorrer aos borbotões pelo pescoço e pelo corpo. Os seus gritos ecoaram pelopovoado naquela noite.

A neve é branca, mas Malin sente o cheiro do sangue alcoolizado de Kalle da Curva.Sente o cheiro do desespero do Apanha Bolas de catorze anos, vê Lotta, a sua irmãmais nova, a cheirar a urina, deitada na cama, de boca aberta, os olhos cheios de ummedo que nunca mais chegou a desaparecer.

– Ele nunca tocou nela. Mas também se ouviam histórias sobre isso.– Quem é que não tocou nela?– Nem o velho nem Bengt. Estou certo disso, embora nenhum deles escapasse dessa

suspeita.Vestígios de sangue através da história.A rapariga foi adoptada. Bengt foi parar a uma casa de acolhimento por cerca de um

ano e regressou depois para junto de um Kalle sem uma das orelhas, com uma ligaduraà volta da cabeça e uma compressa branca no buraco de onde a orelha tinha caído.

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E, então, no início de um Verão, o velho morreu. Após alguns anos de conflitos emque os dois, ele e Bengt, passavam a maior parte do tempo a vigiar-se um ao outro. Porfim, o coração cedeu. Nessa altura, encontraram o Apanha Bolas. Tinha pouco mais dedezoito anos.

– Tinha ficado mais de um mês sozinho com o cadáver. Ao que parece, só saía paracomprar pão.

– E depois?– A assistência social providenciou a venda da casa. Depois, foi demolida, menina

Fors. E enfiaram Bengt num apartamento em Härna. Queriam que o caso caísse noesquecimento.

– Como é que o senhor sabe de tudo isso?– Não, menina Fors, não sei muita coisa. Aquilo que eu lhe contei é do conhecimento

de todos no povoado. Mas a maioria das pessoas já morreu ou esqueceu o que sepassou. Quem é que gosta de se lembrar de tristezas? De loucos? As pessoas como oBengt vivem à margem dos outros, menina Fors. É claro que a gente as vê, masraramente, ou nunca, se lembra delas.

– E o que aconteceu depois de o meterem no apartamento?– Isso, não sei. Nos últimos dez anos dediquei-me aos meus problemas. Sei que ele

apanhava bolas, que estava bem e limpo, de todas as vezes que o vi. Portanto, algumelo se deve ter quebrado.

Malin volta para o carro, acciona a chave de ignição.Pelo retrovisor, o túnel para pedestres passa a ser apenas um ponto negro. Ela respira

fundo.Talvez alguém se tenha preocupado, mas quem?

Fecho os olhos e sinto as mãos quentes da minha mãe no meu corpo de três anos,sinto quando ela me belisca nas pregas de gordura e no peito, como enfia o nariz naminha barriguinha redonda e faz cócegas. As suas mãos são quentes; nunca vouquerer que ela deixe de fazer isto.

Procura mais, Malin, procura mais.

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CAPÍTULO 17

O OLHAR DE ZEKE É FRIO quando se encontra com ela na entrada do departamento deinvestigação criminal. Está irritado e ralha com ela enquanto se dirigem à mesa dela naampla sala comum. Johan Jacobsson acena do seu lugar. O lugar de Börje Svärd estávazio.

– Malin, sabes que detesto que saias por aí sozinha. Tentei telefonar-te, mas tinhassempre o telemóvel desligado.

– Estava com pressa.– Malin, não leva mais tempo a apanhar-me aqui do que a apanhar uma prostituta no

Reeperbahn. Quanto tempo levas a chegar aqui? Cinco minutos? Dez?– Uma prostituta no Reeperbahn? Zeke, o que diriam as damas do coral a esse

respeito? Agora, pára de resmungar. Senta-te aqui e escuta. Vais gostar de ouvir.– Deixa-te disso, Malin. O que é que tens a dizer?

Mais tarde, depois de Malin ter relatado tudo o que sabia sobre o pai de BengtAndersson, o Kalle da Curva, e do mundo que ele construiu, Zeke abana a cabeça.

– Ser humano. Um verdadeiro animal, não é verdade?– Eles já descobriram alguma coisa, nos arquivos?– Não, ainda não. Ainda têm de verificar uns quantos anos. O registo criminal dele

estava limpo, mas isso explica-se: tinha apenas catorze anos quando o caso aconteceu.Precisamos apenas de confirmar o que o velhote disse. Mas isso é mais rápido. E oóbito foi confirmado esta manhã. Mas eu consegui um nome nos serviços sociais deLjungsbro, uma Rita Santesson.

– Já falaste com ela?– Rapidamente, ao telefone.– Não foste lá? Ou foste buscar-me? Agora, vou ter de voltar a Ljungsbro.– Que raio, Malin, tu sais por aí, eu não. Estamos a fazer esta investigação juntos, ou

não? E ir a Ljungsbro até pode ser agradável.– E os outros?– Eles foram bater à porta da última pessoa a interrogar. E, além disso, estão a ajudar

a secção de roubos. Houve um assalto à casa de campo de um dos directores da Saab,durante o fim-de-semana. Roubaram um quadro qualquer, de um americano, Harwool,acho que foi, vale milhões.

– Warhol. Quer dizer, um roubo na casa de campo de um director é mais importantedo que isto?

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– Tu sabes como é, Malin. Ele era apenas um pensionista gordo e solitário. Não oministro dos Negócios Estrangeiros.

– E Karim?– Os media acalmaram-se, de modo que ele também se acalmou. E uma obra de

Warhol pode ir parar ao jornal Dagens Nyheter.– Então, vamos embora, vamos falar com a Rita Santesson.

Rita Santesson parece que vai desmaiar diante dos olhares dos dois. Usa umacamisola verde-claro, tricotada, no corpo magro. As pernas não são mais do que umpar de pinos nas calças bege. As faces estão encovadas, os olhos húmidos pelo efeitoda luz fluorescente e o cabelo perdeu completamente a cor. Na parede, coberta por umpapel amarelado, está pendurada a reprodução de uma pintura de Bruno Liljefors, umacorça na neve, uma raposa que ataca um corvo. As persianas estão corridas, como sefosse para manter a realidade lá fora.

Rita Santesson tosse, mas é com grande determinação que atira a pasta escura, com onome e o número de identificação fiscal de Bengt Andersson, para cima da mesavermelha e gasta, diante dos dois.

– Isto é o que tenho para vos dar.– Podemos tirar uma cópia?– Não, mas podem tomar notas.– Podemos usar a sua sala?– Preciso dela para trabalhar. Podem utilizar uma das mesas do refeitório.– Também precisamos de falar consigo, mais tarde.– Podemos fazer isso agora. De facto, não tenho muito a dizer.Rita Santesson deixa-se cair na cadeira almofadada. E faz um gesto indicando duas

cadeiras de plástico alaranjado, obviamente para visitantes.Volta a tossir, uma tosse profunda que vem dos pulmões.Malin e Zeke sentam-se nas cadeiras.– Muito bem, o que é que desejam saber?– Como é que ele era? – Pergunta Malin.– Como é que ele era? Não sei. As poucas vezes que esteve aqui comigo estava

distraído, ausente. Tomava antidepressivos. Não falava muito. Parecia até querer ficarsozinho. Tentámos declará-lo como inválido, mas ele opunha-se firmemente. Achava,certamente, que seria internado nalgum lugar. Vocês sabem, a esperança é a última amorrer.

– Nada mais? Alguma coisa sobre inimigos? Sobre pessoas que lhe fossem hostis?

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– Não, ninguém, que eu saiba. Na realidade, parecia não ter amigos nem inimigos.Como disse…

– Nada mais? Tente lembrar-se. – Era a voz insistente de Zeke.– Sim, uma coisa. Ele queria saber da irmã. Mas sobre isso nada podíamos fazer.

Quer dizer, não era incumbência nossa procurar parentes por conta dele. Não acho queestivesse em condições de tentar, ele próprio, entrar em contacto com ela.

– Onde é que mora agora a irmã dele?Rita Santesson indica a pasta sobre a mesa: – Está tudo aí. – Depois, levanta-se e

aponta para a porta.– Vou receber um cliente dentro de um minuto. O refeitório fica ao fundo do corredor.

Se não tiverem mais nenhuma pergunta…Malin olha para Zeke. Este abana a cabeça.– Muito bem…Malin levanta-se:– Tem a certeza de que não existe mais nada que devamos saber?– Nada que eu queira mencionar. – Rita Santesson, de repente, parece encontrar novas

forças. A tigresa doente é ditadora na sua jaula.– Não quer mencionar, porquê? – Ataca Zeke. – Ele foi assassinado. Ficou pendurado

numa árvore como um negro linchado. E você não quer «mencionar»?– Nem uma palavra, obrigada. – Rita Santesson cerra ainda mais a boca, encolhe os

ombros, o movimento faz com que todo o seu corpo trema.Odeia os homens, não é verdade?, pensa Malin que, depois, pergunta:– Quem era a sua antecessora?– Não sei, mas deve encontrar essa informação na pasta. Nós somos três aqui, neste

escritório. Começámos todas no ano passado.– Pode dar-me os nomes das pessoas que trabalhavam aqui antes?– Pergunte na recepção. Lá, certamente, podem informar.

Um fedor azedo a cafeína queimada e a comida requentada. Uma toalha florida sobreuma mesa em forma de elipse.

Leitura sombria. Os dois dividem a papelada entre si, lêem por turnos, anotam.Bengt Andersson. Entradas e saídas na psiquiatria, depressões, eremita, várias

funcionárias, um escritório de passagem para assistentes sociais a promover.Um acontecimento estranho em 1997.O tom nos relatórios muda.Frases como «solidão, paralelamente estabelece contactos» aparecem.

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A mesma assistente social nesse período: Maria Murvall.Surge, então, nas anotações uma referência à irmã. Maria Murvall escreve: «Bengt

pergunta pela irmã. Fui ver nos arquivos. A irmã, Lotta, primeiro ficou numa casa deacolhimento, depois foi adoptada por uma família em Jönköping. Novo nome: RebeckaStenlundh.»

Lotta passou a ser Rebecka, pensa Malin, Andersson transformou-se em Stenlundh.Rebecka Stenlundh, uma troca de nome, tal qual uma gata que alguém abriga quando

os donos se cansam dela.Nada mais sobre a irmã, a não ser: «Bengt tem medo de entrar em contacto com a

irmã», um número, um endereço em Jönköping, escritos à mão, na margem. Depois,uma reflexão impensável: «Por que razão me empenho tanto neste caso?»

Maria Murvall.Eu conheço este nome.Já ouvi este nome antes.– Zeke, Maria Murvall. Não te parece um nome conhecido?– Sim, é-me familiar, sem dúvida.Novas anotações: «De bom humor. Depois das minhas visitas e da minha insistência,

conseguiu tomar cuidado com a higiene e a arrumação. Atitude exemplar.»Depois, um final rápido.Maria Murvall foi substituída primeiro por Sofia Svensson, depois por Inga kylborn

e, finalmente, por Rita Santesson.Todas fazem o mesmo julgamento.«Solitário, cansado, difícil estabelecer um relacionamento com ele.»Última reunião, três meses antes. Nada de extraordinário.

Deixam a pasta na recepção. Uma jovem com um anel no nariz e cabelos negros sorripara os dois e quando lhe pedem os números de telefone das assistentes sociais quetrabalharam com Bengt Andersson, responde: «Com certeza.»

Cinco nomes.Dez minutos depois, a jovem entrega-lhes a lista dos nomes e respectivos números.– Façam favor. Espero que a lista lhes seja útil.Antes de sair, Zeke e Malin vestem os casacos, põem as luvas, os gorros e os

cachecóis.Malin olha para o relógio na parede, do tipo institucional, ponteiros pretos sobre

fundo branco.15h15m.

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O telefone de Zeke toca.– Sim… Sim… Sim… Sim…Com o telefone ainda na mão, Zeke diz:– Era Sjöman. Quer fazer uma reunião, agora, às cinco menos um quarto, para fazer

uma actualização do caso.– Há alguma novidade?– Sim, telefonou um velhinho da Faculdade de História da universidade, a dizer que

tem uma teoria sobre o que poderia ter inspirado o assassínio.

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CAPÍTULO 18

SVEN SJÖMAN RESPIRA FUNDO, ao mesmo tempo que olha de relance para Karim Akbar,ao seu lado, em frente do quadro branco na sala de reuniões.

– Midvinterblot4 – diz ele, depois, fazendo uma longa pausa antes de continuar. –Segundo Johannes Söderkvist, professor de História na universidade, Midvinterblotera, sem dúvida, uma espécie de ritual pelo qual, nos tempos antigos, o povo matavaanimais e os oferecia aos deuses. Penduravam-se os animais nas árvores, o que serelaciona claramente com o nosso caso.

– Mas, neste caso, trata-se de um homem – diz Johan Jakobsson.– Eu ainda não tinha acabado. Também houve vítimas humanas.– Portanto, podemos estar perante um ritual criminoso realizado pelos actuais

seguidores da seita religiosa ASA – diz Karim Akbar. – Vamos pesquisar essahipótese admitindo partir dessa teoria.

Partir dessa teoria? pensa Malin, imaginando já os títulos dos jornais:

SEITA COMETE ASSASSÍNIO! A INCRÍVEL SELVAJARIADOS ADORADORES DOS DEUSES NÓRDICOS!

– Foi isso que eu disse – confirma Johan. – Tudo leva a crer que se tratou de umritual.

Nenhum tom triunfal na sua voz, apenas pura constatação.– Conhecemos algumas dessas seitas? A seita ASA? – Börje Svärd atira as perguntas

para cima da mesa.Zeke recosta-se na cadeira. Malin sente o cepticismo invadir todo o seu corpo.– Por enquanto, não sabemos da existência de nenhuma dessas seitas – reage Sven. –

Mas isso não quer dizer que não existam.– Se existem – diz Johan – então, estão na Internet.– Mas será preciso ir tão longe? – atalha Börje. – Parece-me mesmo improvável.– Actualmente passam-se aqui muitas coisas improváveis – diz Karim – e tenho a

impressão de que já as vi todas.– Johan e Börje – intervém Sven – vocês assumem o inquérito sobre essa questão de

sacrifícios e seitas na Internet, e Malin e Zeke vão falar com o professor Söderkvist eprocurar saber o que ele tem a dizer sobre o assunto. Ele vai estar disponível esta noitena faculdade.

– Vamos a isso – diz Johan. – Posso trabalhar em casa hoje à noite. Acho que posso irlonge a surfar nos diversos sítios. A questão é saber se existe alguma coisa. Mas se

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assim for temos de passar por cima dos direitos de autor.– Passa mesmo – salienta Karim. – É uma questão de força maior.– No que se refere a este assunto, o melhor é não ter preconceitos – diz Sven.– Mais alguma coisa? – pergunta Karim Akbar numa caricatura de auto-sacrifício.– O vidro da janela do apartamento de Bengt Andersson foi enviado para análise para

o SKL, o Laboratório Nacional de Ciências Forenses – diz Malin. – Se for possível,queremos saber como é que aquele buraco surgiu. Segundo Karin Johannison, a suaforma e aspecto talvez nos dêem alguma pista.

Karin acena, confirmando.– Óptimo. Temos de revolver todas as pedras. Mais alguma coisa?Malin relata o que ela e Zeke conseguiram durante o dia e termina referindo que, no

carro, na viagem de regresso das instalações da assistência social em Ljungsbro, ligoupara três dos números da lista sem conseguir qualquer resposta.

– Devíamos falar também com a irmã dele que, actualmente, se chama RebeckaStenlundh.

– Vão a Jönköping, amanhã, e tentem encontrá-la.– Mas não esperem milagres – previne Sven. – Com aquele terrível início de vida,

tudo pode ter acontecido.

– Vamos lá, força, força…Johan Jakobsson está por cima dela e dá uma ajudazinha com os dedos por baixo da

barra de pesos.Setenta quilos.Tanto quanto ela pesa. As costas bem coladas ao banco, a barra que quer vir para

baixo, para baixo, mais para baixo, pesada como tudo, ela sente-se quase esmagadapelo peso.

O suor escorre-lhe.– Vamos lá, mais uma vez, para cima. Queres dar uma de maricas?Ela até pediu que ele a chamasse assim, maricas, caso contrário ela nunca

conseguiria. De início reparou que ele ficou constrangido, mas agora não. Tornou-sealgo natural.

…três vezes, quatro, cinco, força, e, depois, seis, sete, oito…A força que apenas segundos antes parecia tão viva, agora estava a chegar ao fim.A armação redonda do tecto, lá em cima, explode, a sala fica mais branca, os

músculos cada vez mais fracos, não respondem, estão entorpecidos. Só a voz de Johan:– Força! Mais uma vez…

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E Malin empurra a barra de pesos para cima, braços esticados, mas depois a barravem para baixo, na direcção do pescoço.

Colocada a barra no descanso, termina a pressão contra o seu corpo, a cor azul-clarodas paredes surge de novo, assim como o amarelo do tecto. Os aparelhos do ginásio nacave sem janelas, o cheiro a suor.

Malin levanta-se. Estão sozinhos na sala. A maioria dos outros agentes prefere treinarno centro da cidade. «Lá os aparelhos são melhores.»

Johan faz uma careta.– A oitava vez parecia impossível – diz ele.– Tu não devias ajudar – diz Malin. – Eu ia conseguir sozinha…– Terias cortado o pescoço se eu esperasse um pouco mais.– Agora, é a tua vez – diz Malin.– Para mim, por hoje chega – responde Johan, despindo a camisola Adidas toda

suada. – Os filhos.– Agora, a culpa é dos filhos.Johan solta uma gargalhada e retira-se.– É só treino, Malin. Nada mais.E, então, ela fica sozinha na sala.Vai para a passadeira. Acelera quase ao máximo. Corre, corre, até ficar tudo branco

novamente, até o mundo que a rodeia desaparecer.

A água bem quente do chuveiro cai-lhe sobre a pele.Fecha os olhos. À sua volta está tudo escuro.Recorda a conversa com Tove, algumas horas antes.– Não podes aquecer alguma coisa do congelador? Caso contrário, ainda há as sobras

do caril. O papá não comeu tudo.– Está tudo bem, mamã. Vou tratar disso.– Vais estar em casa quando eu chegar?– Talvez vá a casa da Lisa para rever a matéria. Temos teste de geografia na quinta-

feira.Rever a matéria, pensa Malin, desde quando é que ela precisa de rever a matéria?– Eu posso fazer-te as perguntas, se quiseres.– Não vale a pena.Champô nos cabelos, sabonete no corpo, nos seios intocados.Malin fecha a torneira do chuveiro, seca o corpo e atira a toalha para o cesto da

roupa suja antes de retirar a roupa lavada do roupeiro. Veste-se, põe o agasalho

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Swatchen amarelo e vermelho, presente de Tove no Natal. Sete e meia. Zeke deve estarà espera no carro, no estacionamento. É melhor apressar-se. O professor que vai falarsobre os rituais não vai querer esperar a noite inteira.

4 Midvinterblot. (Ou blod). Acredita-se que o nome derive do termo que se referia ao acto de sacrificar ritualmente,chamado blóta, em sueco antigo, do tempo dos Vikings. O sentido mais antigo da palavra parece ser «invocar comencantamentos», sugerido pelo filólogo norueguês Sophus Bugge em 1879.O verbo blóta significava «venerar com sacrifício», ou «fortalecer». O sacrifício costumava ser feito com animais,em especial porcos e cavalos. A carne era cozida em grandes poços cheios de pedras aquecidas, tanto dentro comofora das residências. Acreditava-se que o sangue continha poderes especiais, e era aspergido nas estátuas dosdeuses, nas paredes e nos próprios participantes da cerimónia.O momento em que as pessoas se reuniam em torno dos caldeirões fumegantes, para fazer uma refeiçãojuntamente com os deuses ou com os elfos, era sagrado. A bebida que era passada em torno da mesa, departicipante para participante, também era abençoada e sagrada; era quase sempre cerveja ou hidromel, porémentre a nobreza podia ser vinho importado.O blót de Outono era realizado no meio de Outubro, e o grande blót de Inverno, ou Yule, no solstício de Dezembro.O Inverno escuro era um período difícil para os povos da Escandinávia e tinham de ser tomadas medidas especiaispara ajudar a natureza a passar a fase mais crítica. Freyr era o deus mais importante nos blót de Inverno. O blót deVerão era realizado em Abril, no equinócio vernal, e era dedicado a Odin. Nesta ocasião, bebia-se pela vitória naguerra, já que este blót marcava as datas de início das expedições Vikings. (N. do T.)

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CAPÍTULO 19

AVANÇAM A PASSOS RÁPIDOS entre as fachadas de tijolos avermelhados. E debaixo dosseus pés range a mistura de areia e sal para derreter o gelo de que ainda se vêempedaços aqui e ali. A passagem entre os compridos edifícios, na hora sem movimento,cria uma espécie de túnel de vento gelado que se entranha nos seus corpos. Oscandeeiros da rua, um ou outro, chegam a estremecer.

A universidade.Uma caixa rectangular, uma cidade dentro da cidade, localizada entre Valla, um

campo de golfe e o Mjärdevi Science Park.– Não sabia que o local do conhecimento podia parecer tão sinistro – diz Zeke.– Não é sinistro – reage Malin. – Apenas austero.Ela própria estudou ciências jurídicas a meio tempo durante dois anos, com Tove em

volta das suas pernas e Janne nas florestas ou nalgum campo minado, só Deus sabeonde. E ainda o serviço de patrulhamento, serviço nocturno, sozinha, sozinha, comTove.

– Disseste edifício C?A letra C brilha sobre o portão de entrada mais próximo. A voz de Zeke, cheia de

esperança.– Sorry, é edifício F.– Chiça, está cá um frio!– Cheira mal.Apenas uma luz ilumina uma das janelas do segundo andar do edifício F. Como se

fosse uma estrela aguardada num céu relutante.– Ele disse-nos que devíamos teclar B 3267 no portão e que depois ele teclaria outro

número para nos deixar entrar.– Vais ter de tirar as luvas – diz Zeke.Um minuto depois, já estão os dois dentro de um elevador a caminho do encontro com

o professor Johannes Söderkvist, cuja voz, um minuto antes no altifalante, soou quaseinaudível.

– É a polícia?– Sim, inspectores Fors e Martinsson.Ouviu-se um zeeee e, por fim, o calor do aquecimento no interior.

De que é que eu estava à espera? pensa Malin, ao sentar-se numa cadeiradesconfortável na sala em frente do professor. Um tio rabugento de colete de lã? Um

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professor de História não pertence à elite? Sente-se insegura. Quem é este sujeito?É jovem. Não tem mais de quarenta anos de idade. Tem bom aspecto, talvez o queixo

um pouco delicado demais. Mas nas faces e nos olhos azuis e frios, não há nada deerrado. Olá, professor!

Está sentado numa poltrona, levemente inclinado para trás, atrás de uma secretáriabem arrumada, com excepção, talvez, do pacote de bolachas Maria que está ao lado,em cima dela.

A sala deve ter uns dez metros quadrados, rodeada de prateleiras com livros e umajanela que dá para o campo de golfe, agora deserto e silencioso.

Sorri, mas apenas com os lábios e as faces, não com os olhos.Esconde uma das mãos, pensa Malin, aquela com que não nos cumprimentou.

Esconde-a por baixo da mesa. Qual o motivo dessa atitude, professor Söderkvist?– Parece que o senhor tem uma teoria para nos expor, não é verdade? – Pergunta

Zeke.A sala cheira a produtos de limpeza.– Midvinterblot – diz o professor, enquanto se inclina ainda mais para trás. – Sabem

o que é?– Vagamente – responde Malin.Zeke abana a cabeça, negativamente, e faz sinal para o professor continuar.– Um ritual pagão. Uns sujeitos, a que pessoas como vocês chamam Vikings,

costumavam fazê-lo uma vez por ano, mais ou menos nesta época. Matavam animais epessoas para os oferecer aos deuses, a fim de alcançarem a felicidade e o bem-estar.Ou como penitência. Para limpar o sangue. Para se reconciliarem com os mortos. Nãosabemos ao certo. A documentação fiável de que dispomos é muito escassa, maspodemos ter a certeza de que havia vítimas entre animais e seres humanos.

– Seres humanos?– Seres humanos, sim. E penduravam essas vítimas nas árvores, muitas vezes em

descampados, para que os deuses as vissem claramente. Pelo menos, é isso quesupomos.

– E o senhor acha que o homem na árvore, no bosque de Östgöta, poderá ter sidovítima de um acto pagão, um midvinterblot actual? – Pergunta Malin.

– Não, não é isso que quero dizer – o professor sorri. – O que quero dizer é queexistem, sem dúvida, semelhanças no cenário. Deixem que lhes diga: há locais nestepaís onde, nesta época do ano, se praticam actos pagãos inofensivos. Sem ligaçãodirecta com os aspectos mais obscuros desses actos, as pessoas organizam palestrassobre a antiguidade nórdica e servem refeições que consideram ter origem nessa

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época. Por motivos comerciais. Mas há pessoas que talvez estejam interessadas nosaspectos menos saudáveis da época, por assim dizer.

– Aspectos menos saudáveis?– Já encontrei pessoas dessas, por vezes nas minhas palestras no exterior. Uma

espécie de gente que tem dificuldade em conviver com o nosso tempo e que, por isso,se identifica mais com a história dos tempos antigos.

– Que vivem no passado?– Qualquer coisa nesse sentido.– Está a falar do culto ASA?– Eu não lhe daria essa designação. Nós falamos mais de História nórdica antiga.– O senhor sabe onde se encontram essas pessoas?– Não conheço nenhuma congregação em especial. Essas pessoas nunca foram uma

fonte importante para as minhas pesquisas. Mas é certo que existem. É certo que essesmalucos já foram assistir às minhas palestras. Se fosse a vocês, começaria porverificar na Internet. Embora vivam no passado, interessam-se pelas novas tecnologias,são literatas.

– O senhor não conhece mesmo nenhum desses grupos?– Ninguém em especial. Nas minhas palestras a entrada é livre, não se faz nenhum

registo dos participantes. É como ir ao cinema ou a um concerto. Chega-se, vê-se eouve-se. E, depois, toca a andar.

– Mas sabe que utilizam as novas tecnologias.– Não utilizamos todos, hoje em dia?– E nos seus cursos na universidade?– Aqui, nunca vêm. E o acto pagão do meio do Inverno não chega a ser uma matéria

importante em relação ao todo.Nessa altura, o professor levanta a mão escondida por debaixo da mesa, afaga a face,

e Malin vê o ferimento em ziguezague nas costas da mão.O professor parece tomar consciência do que fez e esconde novamente a mão sob a

mesa.– O senhor feriu-se?– Sim, temos gatos em casa. Durante uma brincadeira, uma gata assanhou-se. Levámo-

la ao veterinário. Tem um tumor no cérebro.– Lamento – diz Malin.– Obrigado. Para nós, Magnus e eu, os gatos são como filhos.

– Achas que ele mentiu sobre a mão?

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No túnel de vento entre os edifícios, Malin quase não consegue ouvir a voz de Zeke.– Não sei – responde Malin, gritando.– Achas que devemos investigá-lo?– Vamos pedir a alguém para fazer uma pesquisa rápida sobre este sujeito.No momento em que profere estas palavras, o telefone no bolso começa a tocar.– Raios me partam!– Deixa tocar. Depois telefonas, quando entrarmos no carro.

Já passavam pelo McDonald’s, na rotunda de Ryd, quando Malin devolve otelefonema a Johan Jakobsson. Ignora o facto de a mulher dele poder estar a deitar ascrianças e o toque do telefone despertá-las.

– Johan Jakobsson.Barulho de crianças ao fundo.– Aqui, Malin. No carro, com Zeke.– Muito bem – diz Johan. – Não encontrei nenhuma seita na Internet, mas a expressão

midvinterblot aparece em vários sítios. Principalmente em anúncios de cursosorganizados…

– Já sabemos disso. Mais alguma coisa?– É onde eu ia chegar. Além dos cursos, encontrei na Internet um sítio de um

indivíduo que diz ser mágico, mas um mágico da arte da antiguidade nórdica, do tempodos Vikings. Nesse sítio, está escrito que, segundo a tradição dos Vikings, omidvinterblot se realizava todos os anos no mês de Fevereiro.

– Sim, e depois?– Depois, entrei num grupo do yahoo, um blog sobre magia viking.– Um quê?– Um grupo na Internet interessado em discutir o assunto.– ok.– O grupo não tem muitos membros, mas o indivíduo que organiza a discussão deu

como endereço uma rua perto de Maspelösa.– Maspelösa?– Isso mesmo, Fors. Apenas a uns cinco quilómetros do local do crime.– Vão ouvi-lo ainda esta noite?– Só porque ele tem um sítio na Internet? Não. Vamos esperar até amanhã.– Mas isso não está certo!– Não sei se é certo ou errado. Mas, se for o caso, podem ir lá vocês agora, não?– Podemos ir, sim, Johan.

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– Malin, estás maluca. Vai para casa. Vai fazer companhia à Tove.– Tens razão, Johan. Isso pode esperar. Amanhã vocês vão lá.

A bancada da cozinha está fria, mas mais quente do que lá fora.Magia.A arte da magia na antiguidade nórdica, no tempo dos Vikings.Um buraco no vidro, inexplicável até agora.Haverá ligação entre tudo isto?O culto ASA.Zeke começa a rir-se, mas, depois, o seu rosto adopta uma expressão de incerteza,

como se uma ideia tivesse atravessado a sua mente: se foi possível pendurar umhomem nu numa árvore, numa madrugada gelada de Inverno, também podem existirmalucos que vivem as suas vidas segundo a mitologia nórdica.

Mas têm de seguir várias pistas ao mesmo tempo, sempre na esperança de encontraralguma coisa de relevante. São muitas as investigações policiais que falham, só porqueos agentes se fecham a novas informações ou, o que ainda é pior, encantam-se com assuas próprias teorias.

Malin come duas sanduíches de pão com queijo magro antes de se sentar à secretáriae começar a telefonar para as pessoas da lista que conseguiu no serviço de assistênciasocial em Ljungsbro.

O relógio no computador marca 21h12.Um bilhete de Tove na entrada.Estou em casa da Filippa, a estudar matemática. Temos prova amanhã. Volto o

mais tardar às dez horas.

Matemática? Ela não tinha dito geografia? Filippa?Ninguém atende. Deixa uma mensagem. Nome e número de telefone, assunto: «por

favor, telefone-me, assim que ouvir esta mensagem.» Como é que esta gente está tãoocupada numa noite de segunda-feira? E porque não?

Teatro, cinema, algum concerto. Cursos, treinos.Tudo actividades que as pessoas fazem para manter o tédio à distância.No número de Maria Murvall há uma mensagem. A assinatura foi cancelada. Não foi

indicado qualquer outro número pelas informações.Nove e meia.Malin sente o cansaço do treino no corpo. Sente que os músculos protestam à medida

que se fortalecem. Depois do encontro na universidade, o seu cérebro ficou baralhado.Será que a noite de sono vai ser tranquila? Nada afasta melhor os pesadelos do que o

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treino e a concentração, mas, mesmo assim, ainda se sente inquieta e preocupada.Sente-se incapaz de ficar em casa, apesar do frio lá fora.

Levanta-se, veste um casaco, põe o coldre com a pistola por uma questão de hábito,deixa de novo o apartamento. Vai caminhando pela Hamngatan, sobe em direcção à

Praça Filbytertorget e continua em direcção ao palácio e ao cemitério5, onde as pedrasdas campas estão cobertas de neve, guardando os segredos dos respectivosproprietários. Malin olha para os epitáfios, costuma fazer isso de vez em quando, veras flores quando as há, tentar sentir a presença dos mortos, ouvir as suas vozes, fingirque consegue alhear-se da realidade, que é uma super-heroína dotada de forçassobrenaturais.

O vento sopra.As vibrações do frio.Malin fica parada diante de um túmulo.Os carvalhos balançam um pouco. Os ramos congelados deixam cair o que parece ser

uma chuva de neve. Há pequenas velas que tremeluzem a seus pés, uma coroa de floresé um círculo escuro em campo de neve.

Vocês estão aqui?Mas tudo é silêncio, vazio, quietude.Eu estou aqui, Malin.O Apanha Bolas?A noite está extremamente agreste e fria, e Malin deixa o cemitério, vai andando ao

longo do muro e, depois, por uma avenida, Vallavägen, até chegar à antiga cisterna dedistribuição de água e ao hospital.

Passa pelo apartamento dos pais.«Rega as plantas…»Há algo que não bate certo. Há uma luz avermelhada a brilhar numa das janelas do

apartamento. Por que razão está a luz acesa?Eu nunca me esqueço de apagar as luzes.

5 Na Suécia e nos países nórdicos em geral, os cemitérios estão localizados junto das igrejas e, por isso, chamam-sekyrkogård, literalmente, «jardim da igreja». São locais ajardinados, com muitas flores e árvores, e com bancos dejardim para os vivos se sentarem. (N. do T.)

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CAPÍTULO 20

SOBE A ESCADA DA ENTRADA SEM ACENDER A LUZ.

Pega no telemóvel, digita o número dos pais, quem quer que esteja lá em cima deveapanhar um susto, mas antes de estabelecer a ligação lembra-se de que os paissuspenderam a assinatura do telefone.

Resolve não subir de elevador.Sobe os três lanços de escada tão silenciosamente quanto pode com as botas

Caterpillar, sente o suor nas costas.A porta não foi forçada, não há nenhuma marca visível.Malin encosta o ouvido à porta. Escuta. Nada. Olha pela abertura da caixa do correio.

A luz parece vir da cozinha.Pressiona o puxador da porta para baixo.Será que devo pegar na pistola?Não.A porta range ao abrir. Ouvem-se vozes abafadas no quarto dos pais.As vozes calam-se. Em vez disso, corpos em movimento. Será que me ouviram?Malin decide entrar, passa rapidamente pelo corredor em direcção ao quarto dos

pais.Abre a porta.Tove está deitada sobre a colcha verde da cama. Como eu. Tove enfia

desajeitadamente os jeans, tenta abotoar as calças, mas os dedos não obedecem.– Mamã.Ao lado, na cama, um rapaz alto, magro, de cabelos compridos, tenta vestir uma t-

shirt escura, com as palavras hard rock. A sua pele é anormalmente branca, como senunca tivesse apanhado sol na vida.

– Mamã, eu…– Nem uma palavra, Tove, nem uma palavra.– Eu… – Diz o rapaz, com uma voz que mal consegue sair da garganta. – Eu…– Você também fica calado. Calados os dois. E vistam-se.– Nós já estamos vestidos, mamã.– Tove. Não brinques comigo. – Malin sai do quarto, fecha a porta e grita: – Quando

estiverem prontos, saiam daí.Quer gritar uma série de coisas, mas o quê? Não consegue gritar: Tove, cometeste um

erro, um preservativo que rompe, e acontece a mesma coisa que aconteceu comigo. Éisso? Achas que é divertido ser mãe adolescente, mesmo que ames o teu filho?

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Do quarto vêm sussurros e risadinhas.Dois minutos depois saem os dois do quarto. Malin espera-os na entrada, aponta para

as poltronas no salão.– Tove, sentas-te aqui. E você… Quem é você?Bonito, mas pálido, pensa Malin. Mas, Santo Deus, não tem mais de catorze anos. E

Tove, Tove, tu ainda és uma criança.– Sou o Markus – responde o rapaz pálido, afastando o cabelo dos olhos.– Meu namorado – exclama Tove da poltrona.– Até aí já percebi – responde Malin. – Não sou idiota.– Estudo no colégio de Ånestad – continua Markus. – Conhecemo-nos numa festa, há

algumas semanas.Que festa? Tove algum dia foi a uma festa?– Qual é o seu apelido, Markus?– Stenvinkel.– Pode sair, Markus. O futuro dirá se nos encontraremos novamente.– Posso despedir-me da Tove?– Veste o casaco e sai.

– Mamã, estou mesmo apaixonada por ele.A porta da frente bate, quando Tove profere estas palavras.O problema é mais sério.Malin senta-se no sofá em frente de Tove. Em volta, o salão está escuro. Ela fecha os

olhos, suspira.Depois, surge outra vez a raiva.– Apaixonada? Tens treze anos, Tove. O que é que sabes disso?– Provavelmente, tanto como tu.A raiva dissipa-se tão depressa como chegou.– Estudar em casa da Filippa? Precisavas de mentir, Tove?– Achei que ficarias zangada.– Porquê? Por quereres ter um namorado?– Não, por sair sem dizer nada. E por ter de dizer que viríamos aqui. E ainda por ter

de dizer que tenho aquilo que tu não tens, um namorado.Estas últimas palavras atingem Malin em cheio, como um murro no estômago. Malin

não estava preparada para isto. Contém-se. Resolve reconsiderar.– Tens de tomar cuidado, Tove. Uma situação destas pode ter consequências graves.– Era disso que tinha medo, mamã, de que visses apenas os problemas. Achas que sou

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idiota a ponto de não perceber que tu e o pai me tiveram por acidente, porque algumacoisa correu mal? Quem pode ser tão estúpido a ponto de ter uma criança tão cedo?Não sou assim tão inconsciente.

– O que estás a dizer, Tove? Não nasceste por acidente. O que te levou a dizer umacoisa dessas?

– Eu sei, mamã. Já tenho treze anos e as adolescentes de treze anos já têm namorados.– Cinema com a Sara, estudo com a Filippa… Como é que posso ser tão idiota? Há

quanto tempo andam juntos?– Há quase um mês.– Um mês?– Não é estranho que não tenhas notado nada.– Mas porquê?– O que achas, mamã?– Não sei. Diz-me tu, Tove.Mas Tove não responde à pergunta. Mas acrescenta:– Chama-se Stenvinkel. Markus Stenvinkel.Depois, ficam as duas em silêncio, no escuro.A noite de Inverno, lá fora, pela janela, umas vezes melhora, outras, piora.– Markus Stenvinkel – finalmente, Malin ri-se. – É um pedaço. Sabes o que fazem os

pais dele?– São médicos.Óptimo.Sem querer, Malin tem uma ideia.– Muito bonito – diz Malin.– Não te preocupes, mamã. Aliás, estou com fome – diz Tove.– Piza? – pergunta Malin, batendo com as mãos nos joelhos. – Hoje ainda só comi

sanduíches de queijo.

O restaurante Shalom, na Trädgårdsgatan, tem as maiores pizas de Estocolmo, o maissaboroso molho de tomate, a decoração mais feia, as paredes de gesso com ninfaspintadas por amadores, e mesas de plástico como as que se usam ao ar livre no Verão.

Partilham uma calzone.– O teu pai sabe?– Não.– ok.– Como assim?

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Malin bebe um gole do seu whisky com cola.O telefone volta a tocar.Vê que é Daniel Högfeldt.Hesita, mas não atende.– O pai?– Para mim é importante saber que se me escondes assuntos, não os contas ao teu pai.Tove fica pensativa. Pega em mais um pedaço de piza, antes de falar.– Estranho.Um tubo de luz cintila por cima das cabeças delas.Pode-se jogar no amor, Tove, pensa Malin. Pode-se jogar e perder tudo.

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CAPÍTULO 21

TERÇA-FEIRA, 7 DE FEVEREIRO

PASSA POUCO DA MEIA-NOITE.

Daniel Högfeldt pressiona o botão que abre o portão do jornal Correspondenten. Oportão sobe, fazendo uma chiadeira irritante. Ele está satisfeito, trabalhou bem.

Olha para baixo, pela Hamngatan, e ao mesmo tempo respira fundo, sorvendo o argelado da madrugada.

Telefona para Malin. Para fazer uma pergunta sobre o caso e para lhe perguntar se…Mas da última vez que se viram ela foi tão fria que desistiu. E o que poderia ele dizer-lhe? Sim, o quê?

Apesar de o seu casaco estar fechado até ao pescoço, bastam apenas alguns segundospara o frio se entranhar pelo tecido.

Dirige-se rapidamente para casa, para a Linnégatan.Perto da Igreja de Santo Lars levanta os olhos para a janela escura do apartamento de

Malin, pensa no rosto e nos olhos dela e no pouco que sabe dela. E interroga-setambém sobre o que representa para ela: um jornalista muito activo, inteligente, quasediabólico, um porco chauvinista com um enorme encanto e irresistível sex apeal. Umcorpo que funciona muito bem, quando o outro corpo quer receber o que é seu.

Fazer amor.Vigoroso ou suave.Mas fazer amor.Passa pela loja da H&M e pensa na última vez. Fazer amor não é uma coisa que eu ou

tu façamos por fazer. É uma sensação estranha que vem do corpo e que flutua acima doprazer.

Hoje recebeu uma chamada de Estocolmo.Lisonjas, felicitações, promessas.Daniel não ficou surpreendido.Quando será que vou conseguir sair deste buraco?

A primeira página do Correspondenten encontra Malin quando ela, de banho tomadoe de roupa lavada, caminha para a cozinha, pela manhã, de pernas ainda bambas, aindainseguras, sem muita flexibilidade.

Apesar de estar escuro, pôde ler o título que, ao estilo jornalístico dos tablóides, tema marca inimitável de Daniel:

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A POLÍCIA SUSPEITA DE RITUAL CRIMINOSO

Mais um furo, Daniel. Deves estar satisfeito.Uma fotografia de arquivo de Karim Akbar e uma declaração feita pelo telefone, a

altas horas da noite: «Não posso confirmar nem desmentir que, neste momento,estejamos a investigar certos sítios secretos na Internet e alguns seguidores do cultoASA.»

Sítios secretos? Seguidores do culto ASA?Daniel entrevista o professor Söderkvist que confessa ter sido ouvido pela polícia

para dar informações sobre o ritual de que havia falado antes, durante o dia.Depois, uma cópia da página principal de um sítio sobre o culto ASA e a foto três por

quatro de um tal Rickard Skoglöf, morador em Maspelösa, apontado como a figuracentral da congregação ASA. Ontem à noite não conseguimos encontrar RickardSkoglöf para comentar.

Uma caixa com factos sobre o midvinterblot.E nada mais.Malin dobra o jornal, deixa-o em cima da mesa da cozinha, e prepara uma chávena de

café.O corpo. Os músculos e os tendões, as pernas e as articulações. Tudo dói.De repente, buzinam da rua.Zeke. Já estás aí?Jönköping. Saímos cedo.As últimas palavras de Zeke antes de a deixar em frente do apartamento.O relógio do IKEA indica um quarto para as sete.Sou eu que estou atrasada.O que é que este Inverno me está a fazer?

Zeke ao volante do Volvo verde. Ombros doridos, mãos descaídas. Música coralalemã em Dó menor inunda o carro e ambos estão cansados, tanto um como o outro. Aestrada E4 atravessa os campos gelados da paisagem plana.

Um centro comercial animado antes da cidade de Mantorp, o passeio favorito deTove, o pesadelo de Malin. Depois, as cidades de Mjölby, Gränna, o lago Vätterncomo uma planície branca diante de um horizonte que mais parece o reencontro dediferentes tons de cinzento numa imagem de gelo e escuridão, de eterna ausência de luz.

A voz de Zeke soa como libertação, um tom de voz alto para se sobrepor à música:– O que achas da antiguidade nórdica?– Karim pareceu levar o assunto a sério.

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– Mr. Akbar. O que é que sabe um chefe da polícia, frangote como ele, sobre o quequer que seja?

– Zeke. Ele não é assim tão mau.– Não, até aceito isso. Mr. Akbar tem de dar a impressão de que o caso está a

avançar. E os buracos na janela, descobriste algo de novo durante o sono?– Não faço ideia nenhuma. Mas talvez sejam a chave para uma pista.E Malin pensa que está tudo na mesma, e que, como em todas as grandes

investigações, a solução deve estar escondida, não muito longe dos seus pés. Masainda é inatingível, insuspeita.

– Quando é que a Karin nos vai dar os resultados da perícia à janela?– Hoje ou amanhã. Mas devo confessar-te – continua Zeke – que quanto mais penso

no Apanha Bolas pendurado na árvore, mais me convenço de que, de certa forma, temtudo a ver com feitiçaria.

– Também já senti o mesmo – confessa Malin. – Resta saber se há alguma ligação

com Valhalla6 ou qualquer outra coisa do género.

Malin toca à campainha do apartamento de Rebecka Stenlundh que mora num segundoandar de um prédio de telhado amarelo, numa colina que se ergue a sul da cidade deJönköping.

O apartamento deve ter uma vista fantástica. E, no Verão, os arredores devem ficarverdejantes, arborizados com todos os vidoeiros em flor. Até mesmo a garagem,ligeiramente desnivelada, tem bom aspecto, com portões pintados de cor de laranja erodeada de muitos arbustos.

A casa de Rebecka Stenlundh está situada numa área incaracterística. Não é bonita,mas é agradável. Um local onde as crianças podem crescer de forma saudável.

Nas redondezas, nada de bairros sociais ocupados por imigrantes. É antes um localonde as pessoas podem viver sem serem notadas, de forma saudável, felizes. Malinfica sempre surpreendida quando se depara com um ambiente destes, surpreendida porainda existirem lugares assim.

A felicidade no país do bem-estar social. Até em matéria de baloiços: três vírguladois por cada criança.

Ninguém responde, silêncio.Passa um pouco das nove horas, deviam ter telefonado antes a informar que iriam lá,

mas será que ela sabe o que aconteceu ao irmão?– Não, vamos sem avisar. – Palavras de Zeke. – Podemos chegar lá e surpreendê-la

com a notícia da morte do irmão.

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– Será que ninguém a informou antes de o nome dele se tornar público?– Nessa altura, ninguém sabia que ele tinha uma irmã e já há muito tempo que os

jornais deixaram de se referir a pormenores tão complexos.Malin toca a campainha uma segunda vez.Ruído na fechadura da vizinha.O rosto de uma velhota, amistosa, sorridente.– Procuram a Rebecka?– Sim, somos da polícia de Linköping – responde Malin. E Zeke mostra o distintivo.– Da polícia? Oh, meu Deus! – A velhota pestaneja, cheia de medo. – Ela não fez

nada de mal, pois não? Jamais poderia imaginar uma coisa dessas.– Nada disso – diz Zeke, com a voz o mais calma possível. – Queremos apenas falar

com ela.– Ela trabalha no hipermercado ICA. Tentem lá. É a gerente. Uma loja mais bonita e

fina, nunca se viu. É o que posso dizer-vos, inspectores. E deviam encontrar-se com ofilho dela, também. Rapaz mais fino do que ele, nunca se viu. Ajuda-me sempre quepreciso.

No preciso momento em que estão a entrar no ICA, onde as portas se abremautomaticamente, toca o telefone de Zeke.

Malin pára ao lado dele, ouve o que ele diz, vê-o a enrugar a testa.– Sim, sim, então, é verdade. – Zeke desliga. – Encontraram no arquivo a pasta com o

caso do machado – diz ele. – Condiz com o que o velhote te contou. Lotta, agoraRebecka, viu tudo. Na altura tinha oito anos.

Verduras e frutos bem alinhados e um cheirinho a comida deixam Malin com água naboca. Cartazes com um grafismo agradável, luzes em todos os cantos, tudo anuncia:aqui tudo é limpo.

A velhota tinha razão, pensa Malin.Uma mulher de meia-idade na caixa, cabelos loiros, encaracolados, uma permanente

cuidada.Rebecka?A voz de Zeke:– Desculpe, procuramos Rebecka Stenlundh.– A chefe? Deve estar por ali, no balcão das carnes. Está a marcar os preços.No balcão das carnes está uma mulher agachada, cabelos escuros por baixo de uma

rede, as costas que parecem arqueadas, bata branca com o logótipo vermelho do ICA.Parece esconder-se por dentro da bata, pensa Malin, exactamente como se alguém

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viesse atacá-la pelas costas, exactamente como se toda a gente lhe quisesse fazer mal eela nunca pudesse deixar de estar suficientemente alerta.

– Rebecka Stenlundh? – Pergunta Malin.A mulher gira sobre os tamancos. Surge um rosto agradável: traços suaves, olhos

castanhos com mil nuances de bondade, a pele das faces levemente bronzeada a reluzirde saúde.

Rebecka Stenlundh olha para os dois. Uma das sobrancelhas levanta-se um pouco,fazendo com que os seus olhos claros e puros brilhem.

– Já estava à espera da vossa visita – responde ela.

6 Na mitologia nórdica, Valhalla é o lugar onde se enterravam os vikings mortos em combate. (N. do T.)

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CAPÍTULO 22

– SERÁ QUE ELE ESTÁ À NOSSA ESPERA?

Johan Jakobsson deixa que as suas palavras pairem no ar, quando já estão a caminhoda quinta.

– Com certeza – diz Börje Svärd, abrindo as narinas de tal maneira que os pêloscastanhos do bigode vibram. – Ele sabe que estamos a chegar.

Três casas de pedra cinzenta no campo aberto de Östgöta, a alguns quilómetros deuma aldeia ainda sonolenta, Maspelösa. As casas parecem quase sufocadas debaixo detanta neve, que chega até às janelas muito pequenas. O telhado de palha quase seafunda sob o peso da neve branca, mas há luz na casa da esquerda. Uma garagemrecém-construída, com arbustos de ambos os lados, foi erguida, apertadamente, entredois carvalhos.

Apenas uma falha: Maspelösa nunca chega a acordar, pensa Johan.Alguns quintais maiores, umas cinquenta casas e edifícios pequenos lançados em

campo aberto, uma das comunidades nos campos suecos em que a vida parece terficado para trás.

Param, saem do carro, batem à porta.Da casa em frente ouve-se um mugido. Depois, o som de alguma coisa a bater no

metal. Börje vira-se.Nessa altura, abre-se uma porta baixa, que range. De dentro da casa e do escuro surge

uma cabeça, quase toda coberta de cabelos.– Com os diabos!, quem são vocês?A barba crescida ao acaso parece cobrir todo o rosto, mas os olhos azuis, assim

como o nariz, destacam-se, estão alerta.– Johan Jakobsson e Börje Svärd, da polícia de Linköping. Podemos entrar? Suponho

que seja Rickard Skoglöf.O homem confirma.– Primeiro, a identificação.Para cumprir a exigência, são obrigados a enfiar as mãos nas algibeiras, mas antes

tiveram de tirar as luvas, desabotoar os casacos e procurar os distintivos.– Está satisfeito agora? – Indaga Börje.Rickard Skoglöf faz um gesto com um dos braços e abre a porta com o outro.

– Já nascemos com determinado talento. Já vem entranhado na carne quandoatingimos essa dimensão.

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A voz de Rickard Skoglöf é clara como a água.Johan esfrega os olhos, olha em volta naquela que é a cozinha da casa. O tecto é

baixo. A bancada do lava-loiça está a abarrotar de pratos sujos e de caixas de cartão

de pizas. Nas paredes, imagens de Stonehenge7, de sinais relativos à antiguidadenórdica. E as roupas de Skoglöf: calças notoriamente feitas em casa, de sarja preta, euma espécie de capa, de tecido ainda mais preto, que desce solta sobre a barrigaavantajada.

– Talento?Johan sente o cepticismo na voz de Börje.– Sim, o poder de ver, de influenciar.– Feitiçaria?A casa está gelada.Uma antiga quinta do século xviii que, segundo o próprio Rickard Skoglöf, foi

renovada: «A renovação ficou barata, mas demorou imenso.»– Feitiçaria é o nome. Mas é preciso ter cuidado na utilização dessa força. Pode tirar

tantas vidas quanto as que pode dar.– E qual é a razão de existir um sítio na Internet sobre a sua magia?– O meu sítio. Na nossa cultura, a nossa verdadeira origem perdeu-se. Mas existem

os meus companheiros.Rickard Skoglöf baixa-se e entra na outra divisão da casa. Os dois inspectores

seguem-no.Um sofá muito gasto, encostado a uma parede. E um monitor gigantesco de um

computador em cima de uma secretária com um tampo de vidro brilhante, dois CPUligados e, atrás da mesa, uma cadeira moderna, de escritório, revestida de couroescuro.

– Companheiros? – Indaga Johan.– Há pessoas interessadas em feitiçaria e nos nossos antepassados nórdicos.– E fazem reuniões, regularmente?– Uma vez por ano. Entretanto, mantemos contacto no fórum de discussões e por meio

de mensagens via Internet.– E quantos são?Rickard Skoglöf suspira. Depois, endireita-se e olha para eles.– Se quiserem falar mais sobre o assunto, sigam-me até ao estábulo. Tenho de dar

comida à Särimner e aos outros.

As galinhas a cacarejar correm de um lado para o outro numa sala ainda mais fria,

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com as paredes meio sujas. A um canto, um par de esquis novos, dos que se usam parapercorrer longas distâncias sobre a neve.

– Gosta de esquiar? – Pergunta Johan.– Não, eu não.– Mas tem aqui um par de esquis novos. – Rickard Skoglöf não responde. Em vez

disso, segue em frente, na direcção dos animais. – Chiça, aqui dentro a temperaturadeve ser negativa – diz Börje. – Os seus animais devem congelar.

– Não correm esse risco – afirma Rickard Skoglöf, ao mesmo tempo que atira a raçãode um balde para as galinhas.

Há dois cercados junto de uma das paredes.Num, um porco preto, bem gordo. No outro, uma vaca castanha com manchas brancas.

Ambos estão a comer. O porco grunhe feliz diante das maçãs que acabou de receber.– Se acham que lhes vou dar os nomes dos companheiros que costumam comparecer

às reuniões, estão muito enganados. Vão ter de encontrá-los pelos vossos própriosmeios. Mas não vai adiantar nada.

– Como é que sabe? – Indaga Johan.– São apenas jovens inofensivos e velhos sem vida própria que estão interessados no

assunto.– E você, também não tem vida própria?Rickard Skoglöf faz um gesto na direcção dos animais.– Esta quinta e aqueles amigos ali representam mais vida do que muitos têm.– Não era a isso que me referia.– Tenho o talento – diz Rickard Skoglöf.– E qual é, concretamente, esse talento, esse dom?Börje olha fixamente para aquele homem de cabelos compridos na sua frente.Rickard Skoglöf pousa o balde da ração no chão. Quando volta a levantar a cabeça

para os dois homens, a sua expressão é de total desprezo. E ignora a pergunta com umgesto da mão.

– Quer dizer que a força do feiticeiro pode tirar e dar vida – diz Johan. – É por issoque fazem oferendas?

Rickard Skoglöf fica com uma expressão ainda mais enfadada.– Ah, já percebi! – acrescenta. – Acham que fui eu que pendurei Bengt Andersson na

árvore. Parece que nem o jornalista que esteve aqui acreditou nisso.– Não respondeu à minha pergunta.– Se faço oferendas? Sim, faço. Mas não como vocês pensam.– E como é que nós pensamos?

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– Que mato animais. Ou talvez seres humanos. Mas é o gesto que conta. A vontade dedar. Tempo, frutos. A união dos corpos.

– União dos corpos?– Sim, o acto pode ser uma oferenda. Se nos abrirmos.Como eu e a minha mulher fazemos de três em três semanas? É isso que quer dizer?

pensa Johan.Em vez disso, pergunta:– O que é que fez na noite de quarta para quinta-feira?– Devem perguntar isso à minha namorada – diz Rickard Skoglöf. – Agora, os animais

estão satisfeitos, passam bem. Aguentam um pouco de frio. Não são tão fracos comoalguns outros.

Ao sairem da casa, de regresso ao ar livre, os dois agentes depararam-se com umajovem descalça na neve com os braços levantados para o céu. O frio não pareceimportuná-la. Está apenas em cuecas e camisa de dormir. Levanta a cabeça para o céu,de olhos fechados, e os cabelos negros caem-lhe pelas costas como uma longa sombraem contraste com a pele muito branca.

– Esta é a Valkyria – diz Rickard Skoglöf. – Valkyria Karlsson. Meditação matinal.Johan percebe que Börje perde o bom humor.– Valkyria – grita ele. – Valkyria, está na hora de parar com essa brincadeira.

Queremos falar consigo.– Börje, não precisas de gritar. Chiça!– Pode gritar – diz Rickard Skoglöf. – Não vai adiantar nada. Dentro de dez minutos

estará disponível. Não adianta tentar interrompê-la. Podemos esperar na cozinha.E passam ao lado de Valkyria.Os seus olhos castanhos estão agora abertos. Mas não vêem nada. Ela está a milhões

de quilómetros de distância, pensa Johan. Depois, volta a pensar no acto sexual, nofacto de se abrir para algo diferente, para qualquer coisa.

A pele de Valkyria Karlsson está avermelhada por causa do frio, os dedos quasecongelados. Segura uma caneca de chá bem quente e leva-a até ao nariz para sentir oaroma.

Rickard Skoglöf está sentado à mesa, com ar divertido, parece gozar com a situaçãodifícil para os agentes.

– O que é que fez ontem à noite? – pergunta Börje.– Fomos ao cinema – responde Rickard Skoglöf.Valkyria Karlsson baixa a caneca de chá.

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– Ver o novo Harry Potter – informa ela com voz suave. – Disparates divertidos.– Algum de vocês conheceu Bengt Andersson?Valkyria abana a cabeça. Depois, olha para Rickard.– Antes de ler a notícia nos jornais, nunca tinha ouvido falar dele.– E na noite de quarta-feira, o que é que fizeram?– Fizemos oferendas.– Abrimo-nos aqui em casa – murmura Valkyria, enquanto Johan olha para os seios

dela, ao mesmo tempo pesados e leves, seios que desafiam a força da gravidade,balançando por baixo da camisa de dormir.

– Portanto, não conhecem ninguém que possa ter feito aquilo? – Indaga Börje. – Pormotivos pagãos, por assim dizer…

Rickard Skoglöf solta uma gargalhada. Depois, diz:– Está na hora de se retirarem.

7 Stonehenge. Do inglês arcaico «stan» = pedra, e «hencg» = eixo) é um monumento megalítico da Idade doBronze, localizado na planície de Salisbury, próximo a Amesbury, no condado de Wiltshire, no Sul da Inglaterra. (N.do T.)

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CAPÍTULO 23

O REFEITÓRIO DO ICA É MUITO ACONCHEGANTE , chão encerado e iluminação indirecta,suave, alaranjada. O aroma de café acabado de fazer alastra pela sala e a torta toscanaadere agradavelmente aos dentes.

Rebecka Stenlundh está sentada em frente de Malin e Zeke, os três numa mesa detampo laminado, cinzento.

Com esta luz, parece mais velha do que é, pensa Malin. De alguma maneira, a luz e assombras fazem sobressair as rugas que lhe acentuam a idade. Mas as consequências detudo o que se passou tinham de deixar marcas. Ninguém consegue passar por aquilo esair ileso.

– A loja não é minha – diz Rebecka. – Como já devem ter percebido. Mas o dono dá-me carta branca. Com esta dimensão, é a loja que mais lucro dá à empresa em toda aSuécia.

– Retail is detail como dizem os ingleses – diz Zeke. – Ou seja, o comerciante nãopode descuidar os pormenores.

– Exactamente – replica Rebecka, enquanto Malin baixa os olhos para a mesa.Depois, Rebecka faz uma pausa.Agora, estás a concentrar-te, pensa Malin. Vais respirar fundo, muito fundo, e

preparares-te para contar a tua história.Nunca desistes, nunca te deixas dobrar, não é verdade, Rebecka? Como é que o

consegues? Como é que te manténs sempre na tua trajectória?Depois, ela começa a falar.– Decidi que devia esquecer tudo o que dissesse respeito à minha mãe, ao meu pai e

ao meu irmão Bengt. Decidi passar por cima dos acontecimentos. Embora muitas vezesodiasse o meu pai, compreendi, ao completar vinte e dois anos, que ele não podia serdono de mim, que não tinha nada com a minha vida. Eu corria sempre para os braçosdos rapazes errados, bebia, fumava, cheirava pó, comia demais, mas depois faziaexercício até o corpo não aguentar. Se não tomasse uma decisão acabaria na heroína.Não podia continuar a revoltar-me, a ter medo, a ficar triste. Isso ia dar-me cabo davida.

– Tomou uma decisão, assim, de um dia para o outro? – Malin surpreende-se pelaforma como as palavras lhe saem da boca, como se fossem palavras de raiva, deinveja. Rebecka recosta-se na cadeira. – Desculpe – diz Malin. – Não quis seragressiva.

Rebecka cerra os dentes e morde os lábios antes de continuar.

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– Acho que não existe outra forma de nos comportarmos, só isso. Tomei uma decisão.Se me perguntassem, diria que não tinha alternativa.

– E com os seus pais adoptivos, como foi? – Pergunta Zeke.– Deixei de os ver. Pertenciam ao meu passado.Seja onde for que este caso nos leve, pensa Malin, terá sempre a ver com uma lógica

errada de sentimentos, a lógica que leva alguém a torturar outra pessoa, a pendurá-lanua numa árvore, ao ar livre, ao frio gelado de Inverno.

Rebecka volta a morder os lábios, mas, depois, descontrai os músculos do rosto.– Foi injusto, claro. Eu sei. Não havia nenhum problema com eles, mas era um caso

de vida ou morte. E sentia que tinha de seguir em frente.Apenas isto, pensa Malin. O que foi mesmo que T. S. Eliot escreveu?

Not with a bang, but a whimper.8– Tem família?Pergunta certa, pensa Malin. Mas por um motivo errado.– Um filho. Levei algum tempo a decidir ter uma criança. Tem agora oito anos e vivo

para ele. Você tem filhos?Malin assente:– Uma filha.– Então, sabe. Apesar de tudo o que possa acontecer, nós existimos para eles e por

causa deles.– E o pai?– Estamos separados. Uma vez deu-me uma chapada, mais por engano, acho eu, uma

mão que voou por acaso depois de uma noite de discussão, mas foi o suficiente.– Você mantinha algum contacto com Bengt?– Com o meu irmão? Não, nem pensar.– E ele tentou entrar em contacto consigo?– Sim, telefonou uma vez. Mas desliguei quando percebi quem era. Há um antes e um

depois. E nunca, mas nunca, podiam voltar a encontrar-se. Devem achar que eu soudoida, não?

– Não. Nem pensar – responde Malin.– Mais ou menos uma semana depois do telefonema dele ligou uma assistente social.

Maria, acho que se chamava assim. Pediu que eu falasse com o Bengt, mesmo que nãonos encontrássemos. Falou das depressões dele, da solidão que ele sentia, pareciarealmente importar-se com ele. Percebem?

– E o que aconteceu depois?– Eu pedi-lhe que nunca mais me telefonasse.

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– Uma pergunta, uma pergunta dura – diz Malin. – O seu pai chegou a assediá-lasexualmente. Ou ao Bengt?

Rebecka Stenlundh permanece estranhamente calma.– Não, isso nunca aconteceu. Reflecti várias vezes sobre o assunto, se fui de alguma

forma assediada. Mas não, nunca. – Em seguida, um longo silêncio. – Mas, afinal, narealidade o que é que eu sei?

Zeke molha os lábios.– Sabe se o Bengt tinha inimigos ou tem alguma outra informação que nos possa

interessar?Rebecka Stenlundh abana a cabeça.– Eu vi a fotografia dele no jornal. Senti que tudo me dizia respeito, quer eu quisesse

ou não. Não se pode evitar, não é verdade? Por mais que uma pessoa faça, está sempreligada ao passado, não é assim? É como se estivéssemos amarrados a um poste comuma corda. Uma pessoa pode mexer-se, mas nunca consegue soltar-se.

– Mas você parece estar bem, está óptima – diz Malin.– Ele era meu irmão. Deviam ter ouvido a voz dele ao telefone. Soou como se fosse a

pessoa mais sozinha do mundo. E eu fechei-lhe a porta na cara.Uma voz no altifalante.«Rebecka à caixa três, Rebecka à caixa três.»– O que é que fez na noite de quarta-feira?– Estava com o meu filho no Egipto, em Hurghada. – Daí, a pele bronzeada, pensa

Malin. – As passagens foram baratas, last minut, no dia anterior. O frio deixa-melouca. Regressámos na sexta-feira passada.

Malin bebe o resto do café e levanta-se.– Penso que é tudo – diz ela. E repete: – Penso que é tudo.

8 «Não com estrondo, mas com um gemido.» Tradução livre de um verso do poeta inglês T. S. Eliot. (N. do T.)

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CAPÍTULO 24

SE TE PERDOEI, REBECKA?

Nada começou contigo, nem terminou contigo. Portanto, na realidade, o que hápara perdoar?

Coloca as maçãs alinhadas, educa o teu filho, dá-lhe a educação que nuncativemos. Dedica-lhe o teu amor. Reescreve a tua carne com amor.

Não posso tomar conta de ti, mas posso flutuar e ver-te, para onde quer que vás.Desfrutei da delicadeza de Maria Murvall da mesma forma que comi as sanduíches

rústicas à moda de Skogsholm, as salsichas de salame, a manteiga sem sal. Lavei-mecomo ela disse para me lavar, engomei as minhas calças, fiz o que ela dizia,acreditei nas teorias dela sobre respeitabilidade. Mas que tipo de respeitabilidadehouve na floresta?

Limpeza?Clareza?Tu devias flutuar comigo, Maria, em vez de estares sentada onde estás.Ou não?Será que não devíamos todos flutuar, deslizar em frente como o Volvo verde, lá em

baixo, na auto-estrada?

Huskvarna, que deu nome à famosa marca de electrodomésticos.Cortadores de relva e de sebes. Espingardas para todos os tipos de caça e um ser

sobrenatural de madeira a olhar para o lago Vättern. Foi nestas águas que John Bauer9

se afogou quando o barco em que viajava se afundou. Nenhum mágico conseguiu salvá-lo. Será que descansa agora nalguma das suas densas florestas?

Música dentro do carro, nem pensar. Malin recusa-se. E o barulho engasgado domotor fê-la lembrar-se de ligar o telemóvel.

Recebe de imediato uma mensagem.«Tem uma nova mensagem…»«Aqui Ebba Nilsson. Assistente social. Procurou-me ontem à noite. Estarei em casa a

manhã toda. Poderá telefonar-me de volta.»Digita o número.Um, dois, três toques.Não atende, nem agora? Ah, sim.– Sim, com quem estou a falar?Voz estridente, como se a gordura pressionasse as cordas vocais. Malin vê Ebba

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Nilsson diante de si: uma senhora baixa e redonda perto da reforma.– É Malin Fors, da polícia de Linköping. Já falámos uma com a outra.Silêncio.– E o que é que a polícia quer?– Bengt Andersson. Foi assistente social dele durante algum tempo.– Correcto.– Já sabe o que aconteceu?– Não pude evitá-lo.– Pode dar-nos informações sobre Bengt?– Receio que muito poucas – responde Ebba Nilsson –, infelizmente. Durante o tempo

em que trabalhei em Ljungsbro visitou-me apenas uma vez. Falou muito pouco, mas nãoera de admirar. Não tinha uma vida fácil… E era isso que se via nele.

– Tem alguma coisa de que se lembre e nos possa interessar?– Não, de facto acho que não, mas a rapariga que me substituiu teve uma boa relação

com ele. Foi o que ouvi dizer.– Maria Murvall?– Isso mesmo.– Já tentámos entrar em contacto com ela. Mas o número que temos parece que não

existe. Sabe onde poderemos encontrá-la agora?– Como? – Novo silêncio na linha. – Pobre rapariga… – diz Ebba Nilsson, por fim.Zeke desvia os olhos da estrada e encara Malin.– Ia a dizer…– Maria Murvall foi violada numa floresta perto de Hultsjön há alguns anos. Não se

lembram disso?Malin lembra-se então das palavras de Rita Santesson: «Não quero falar disso.»Maria.Murvall.Bem lhe parecia que o nome não lhe era desconhecido.Um caso da polícia de Motala. Já me lembro. Devia ter ligado uma coisa à outra.Maria Murvall.Ela era a única que se importava contigo, Bengt?Até mesmo a tua irmã te virou as costas.Lógica dos sentimentos.Os flocos de neve dançam por cima da estrada.Ela era a única que se importava contigo, Bengt?E foi violada.

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9 Pintor sueco (1882-1918).

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CAPÍTULO 25

FLORESTA DE HULTSJÖN, NO FINAL DO OUTONO DE 2001

O QUE É QUE ESTÁS A FAZER AQUI SOZINHA na floresta, já tão tarde, rapariga?Não há cogumelos nesta época do ano e também já é demasiado tarde para encontrar

amoras.Está a escurecer.Os troncos das árvores, arbustos, ramos, as copas das árvores, as folhas, o musgo e

os vermes. Tudo se prepara para a agressão mais íntima.Assassinos de crianças. Violadores. É um homem? São vários? Uma mulher,

mulheres?Seguem-te, escondidos, enquanto andas pela floresta a cantarolar. Os olhos. Eles

vêem-te. Mas tu não os vês.A escuridão cai agora mais rapidamente, mas tu não ficas com medo, podes andar por

este trilho de olhos fechados, a orientar-te com a ajuda do olfacto.As cobras, as aranhas, o que apodrece.Um alce?Um veado?Viras-te, a tranquilidade, o silêncio que se abate sobre a floresta.Segues em frente. O teu carro espera-te, mas só na estrada. Em breve verás o lago

Hultsjön brilhar na derradeira luz do dia.Depois, só escuridão.Som de passos no trilho atrás de ti.Alguém te passa uma rasteira, a pressão sobre o teu corpo, as tuas costas contra o

chão molhado, alguém que respira, um hálito doce e quente no teu pescoço. Tantasmãos, tanta força.

Não importa o que faças, os dedos de cobra, as pernas de aranha, tudo sobe pelas tuasroupas, as raízes negras da árvore provocam o teu grito, prendem-te para sempre aosilêncio da terra.

Os vermes trepam pelas tuas coxas, por baixo da roupa abrem as suas garras,castigam a tua pele e atacam as tuas entranhas. Há algo estranhamente duro a queimardentro de ti. A rasgar tudo o que és.

A que ponto pode ser imperfeito e duro o tronco de uma árvore?Duro a que ponto?Não.

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Assim não.Ninguém ouve os teus gritos na vegetação escura. E se ouvissem, viriam?Ninguém ouve.Não há salvação.Apenas humidade, frio e dor, essa forma dura a arder dentro de ti, despedaçando tudo

dentro do teu ser.Silenciosa para sempre.Dormir, sonhar, acordar.Em plena noite, na floresta, só consegues inspirar esse hálito doce. O teu corpo está

nu, ensanguentado, condenado a vaguear pela orla da floresta à volta do Hultsjön.Deves ter caminhado muito.Respiras. O frio da noite fugiu em pânico quando chegaste à estrada, rastejando. Os

faróis do carro.Caminhaste muito.A luz intensifica-se, cega, corrói.É a morte que está a chegar? A maldade?De novo?Ela veio ontem, a passos rápidos, a correr do seu esconderijo atrás de um arbusto

espinhoso.

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CAPÍTULO 26

– MARIA MURVALL.Zeke deixa deslizar os dedos pelo volante.– Eu sabia que já tinha ouvido falar desse nome. Diabos. Eu e os nomes. Foi ela a

mulher violada perto do Hultsjön há quatro anos. Um caso muito feio.– Caso da polícia de Motala.– Exactamente na fronteira dos municípios. Por isso, assumiram o caso. Encontraram-

na a vaguear numa estrada, quase a cinco quilómetros do local onde tudo aconteceu.Foi um motorista de camião que a encontrou numa aldeia perto de Tjällmo. Estavaretalhada. E também cheia de nódoas negras.

– E nunca apanharam o autor.– Não, se é que não foi uma autora. Encontraram as roupas e o lugar onde aconteceu o

crime, mas nada mais.Malin fecha os olhos.Ouve o barulho do motor.Um homem pendurado numa árvore.A assistente social que se ocupava dele, violentada quatro anos antes. Encontrada a

vaguear na estrada.Kalle da Curva. O pai decrépito, maluco. Um diabo.E tudo surge na investigação desirmanado, mas, de certa maneira, forma um conjunto

de circunstâncias.Uma coincidência?– Bengt Andersson. Deve ter sido ouvido na investigação. Caso ela se tenha

preocupado tanto com ele como dizem.– Certamente – diz Zeke, ao mesmo tempo que aponta para um carro que estão a

ultrapassar.– Estou a pensar em comprar um Seat daqueles. A Seat foi comprada agora pela

Volkswagen.Já sei, pensa Malin. Janne disse isso umas dez vezes quando começou a coleccionar

carros.– Não estás satisfeito com o carro que tens?– Murvall – exclama Zeke. – O nome não é conhecido também por outras

circunstâncias? – Malin acena com a cabeça. Não sabe. – Eu e os nomes, Malin – dizZeke.

– Vou telefonar para Sjöman e pedir-lhe que consiga da polícia de Motala toda a

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papelada sobre a investigação. O Nordström, de Motala, vai enviar tudo na hora.

Precisamente quando entravam pela rampa da garagem do departamento deinvestigação criminal, telefona a terceira assistente social da lista, aquela quesubstituiu Maria Murvall.

– Horrível, o que aconteceu. Repulsivo. Bengt Andersson estava deprimido, falavapouco, durante uma reunião só dizia: «Qual é a importância da limpeza? Qual é aimportância da limpeza?» Para ser sincera, nunca associei isso à violação. Mas talveztenha alguma coisa a ver, não sei. Mas o autor do crime? Bengt Andersson? Ele não erade fazer uma coisa dessas. Qualquer mulher sente logo isso. – Malin sai do carro, orosto contrai-se numa careta involuntária, assim que os graus negativos lhe atingem apele. – De qualquer maneira, nunca cheguei a conviver com ele como Maria Murvall.Ao que parece, ela preocupou-se com ele para além do que o trabalho exigia, tinha umacerta inclinação por ele. Era quase como se fosse uma irmã mais velha, pelo que pudeentender.

Entram os dois no departamento.Sjöman está junto da mesa de Malin e acena com uma pilha de folhas em papel de fax.O colega de Motala, ao que parece, não precisou de ser pressionado.

***

Sven Sjöman fala depressa, excitado. Malin e Zeke estão ao seu lado. Malin chega apensar em dizer-lhe para se acalmar, para ter cuidado com o coração.

– Bengt Andersson esteve entre as pessoas que foram ouvidas pela polícia de Motalano caso da violação de Maria Murvall. Não deu nenhum álibi para aquela noite, masnada foi encontrado no local do crime nem, em geral, se encontrou nada que oapontasse como autor. Foi apenas uma das vinte e cinco pessoas que tinham sidoassistidas por Maria Murvall e que foram ouvidas sobre o caso.

– Uma leitura realmente chocante – diz Sjöman, apontando com a papelada na mãopara Zeke.

– A realidade ultrapassa sempre a ficção – observa Zeke.– Ela foi… Quero dizer, ela é irmã dos chamados irmãos Murvall – continua Sjöman.

– Um bando de malucos furiosos que há uns anos causou uma série de problemas.Ainda que tudo tenha acontecido há muito tempo.

– Os Murvall! Eu sabia… – exclama Zeke.– Deve ter acontecido antes do meu tempo – diz Malin.– Durões – afirma Zeke. – Verdadeiros delinquentes.

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– Ao que parece, foram encontradas roupas na floresta e conseguiram-se amostras deADN correspondentes às deles, mas não suficientes para os incriminar.

– E no corpo dela?– Chovia nessa noite – responde Sjöman. – A água limpou tudo e, ao que parece, a

violação foi realizada com um pedaço de ramo de árvore. Ela ficou toda ferida earranhada por dentro… É o que está escrito aqui. Não se sabe se também foi penetradade qualquer outra maneira. Não foi possível comprovar.

Malin sente a dor.Levanta as palmas das mãos para Sjöman.Basta!Maria Murvall.O anjo dos solitários.Que encontro de amor enfrentaste…Malin escuta as palavras dentro de si. Quer chicotear-se a si mesma até ficar roxa.

Nada de ser cínica, agora, Fors, nada de ser cínica, cinismo nunca… Será que já sou?Cínica?

– Ela nunca mais foi a mesma – continua Sjöman. – Segundo as últimas informações,antes de o caso ter sido arquivado, acabou por entrar numa espécie de estadopsicótico. Ao que se sabe, está agora numa ala de isolamento no Hospital de Vadstena.É essa a morada aqui anotada.

– Já falaram com ela? – Pergunta Malin.– Ainda não, mas isso não será difícil – diz Zeke.– Se algum médico se opuser, faz-lhes notar que é prioridade absoluta da polícia.– E recebemos também uma mensagem de Karin – diz Sven – a dizer que ao final da

tarde vai ter informações sobre os buracos na janela.– Óptimo. Certamente vai telefonar assim que chegar a uma conclusão. Como estão os

estudos sobre a antiguidade nórdica? – Pergunta Malin, depois.– Börje e Johan continuam a trabalhar nesse assunto. Já ouviram um tal Rickard

Skoglöf e a namorada, Valkyria Karlsson, enquanto vocês estiveram em Jönköping. Econtinuam a investigar.

– O interrogatório deu algum resultado?– Nunca se sabe – responde Sjöman. – Se ouvirmos como deve ser, talvez as pessoas

digam mais do que elas próprias sabem. Estamos a analisar agora as declarações.

A voz de uma médica do outro lado da linha.– Sim, temos aqui uma Maria Murvall. Sim, podem vir falar com ela, mas de

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preferência poucas pessoas e que não sejam do sexo masculino. Ah, sim, é vocêmesma, óptimo. – Depois, uma longa pausa. – Mas não esteja à espera de que a Marialhe diga muita coisa.

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CAPÍTULO 27

A CHAMADA DE KARIN JOHANNISON chega quando Malin tinha acabado de se sentar nocarro e rodado a chave de ignição.

– Malin? Aqui Karin. Acho que já sei o que provocou os buracos no vidro da janela.Malin deixa-se afundar no assento frio. Sente que em apenas alguns segundos o vento

gelado entrou no carro e fica à espera de que o ar quente vindo do motor lhe dê umpouco de calor.

– Sorry, queria apenas ligar o motor. E o que é que encontraste?– Posso dizer com toda a segurança que o buraco não foi provocado por cascalho ou

pedra, caso em que os seus limites não seriam tão perfeitos. O buraco provocou, alémdisso, fissuras muito grandes em comparação com o seu tamanho, portanto, achoimpossível que alguém do lado de fora tenha atirado qualquer coisa contra a janela.

– O que é que estás a querer dizer?– O buraco foi provocado por uma bala, Malin.Tiro em cheio.Abre-se uma nova porta.– Tens a certeza?– Tão certa quanto possível. O disparo deve ter sido feito com uma arma de pequeno

calibre. Também não há vestígios de fuligem ou pólvora no buraco, mas isso raramenteacontece quando se trata de vidro. Mas a arma, de facto, pode ser uma espingarda de arcomprimido.

Malin fica em silêncio, os pensamentos a voar pela cabeça.Arma de pequeno calibre.Será que alguém tentou atingir Bengt Andersson?Espingarda de ar comprimido.Uma brincadeira infantil.Os técnicos não encontraram nada de anormal no apartamento de Bengt Andersson.

Nenhuma marca de bala no seu corpo.– Mas, então, devem ter sido balas de borracha. Será que esse tipo de munição

poderia ter causado alguns dos ferimentos de Bengt?– Não. Essas balas provocam um tipo de hemorragia muito especial. Eu teria notado.Barulho de motor.Malin, sozinha no carro, a caminho de um encontro com uma mulher violentada e

muda.– Malin, ficaste calada? Ainda estás aí? – A voz é de Karin, ainda ao telefone. –

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Paraste para continuarmos a conversa?– Não parei, não – responde Malin. – Estou apenas a reflectir. Será que podes voltar

ao apartamento de Bengt Andersson e ver se encontras algo de novo? Leva o Zekecontigo.

Karin suspira, mas diz:– Eu sei o que devo procurar, Malin. Confia em mim.– Vais informar o Sven Sjöman?– Ele já deve ter recebido a minha mensagem pela Internet.O que é que eu, nós, ainda não desvendámos? pensa Malin, ao mesmo tempo que pisa

a fundo o acelerador.

Uma inspectora da polícia, pensa a médica-chefe Charlotta Niima. Deve ter menosdez anos do que eu. E olha para nós como se nos atravessasse com o olhar. Alerta mas,ao mesmo tempo cansada, como se quisesse entrar de férias e deixar para trás tudo oque faça lembrar o frio. O mesmo parece acontecer com o seu corpo, atlético, mas, aomesmo tempo, um pouco lento de movimentos, como que hesitante, diante de mim.Esconde-se por detrás da sua sobriedade.

É gira, mas certamente odeia essa palavra. E por detrás desse olhar perscrutador? Oque é que vejo nele? Tristeza? Deve ter a ver com o seu trabalho. As coisas que eladeve ver por aí! Exactamente como eu. Trata-se de saber separar as águas, ligar edesligar como se fosse um aparelho qualquer.

***

Os óculos de armação escura dão um aspecto severo a Charlotta Niima, mas,combinados com os cabelos ruivos encaracolados dão-lhe uma aparência vagamentelouca.

Talvez seja preciso ser um pouco louca para poder trabalhar com os loucos, pensaMalin. Ou será preciso ser completamente sã?

Há algo de maníaco na postura da médica, como se a demência dos seus pacientestivesse mantido a sua própria demência adormecida, sob controlo.

Preconceitos.O hospital está instalado em três edifícios da década de cinquenta, devidamente

pintados de branco, num campo cercado, num dos extremos da cidade de Vadstena.Através da janela da sala da Dra. Niima, Malin consegue ver o lago Vättern, quasecompletamente gelado, onde nadam peixes entorpecidos a tentar romper com os seuscorpos a massa viscosa e traiçoeira. E onde, dali a pouco, não poderão sequer

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respirar.À esquerda, para lá da cerca, pode ver ainda o muro vermelho do Convento de

Vadstena.Santa Birgitta. Rezas. Santas. A vida em conventos.Malin viaja sozinha. Conversa de mulher para mulher. Zeke não protesta.O antigo manicómio, muito conhecido naquelas paragens como uma espécie de lixeira

para almas perdidas, foi reconstruído e transformado em moradias para habitação.Malin passa por elas, ao atravessar a cidade. As fachadas brancas do manicómio estãocinzentas e o parque que o circunda exibe os seus troncos escuros e desfolhados queescutam, durante a noite, os gritos abafados de mil doentes mentais.

Como é que se pode ter vontade de viver numa casa destas?– Maria já está aqui há quase cinco anos. Nunca falou com ninguém neste tempo todo

– a voz de Niima, simpática, familiar, mas mantendo a distância. Não expressaquaisquer desejos.

Maria, uma mulher sem voz, sem palavras.– Ela é autónoma?– Sim, lava-se e alimenta-se. Vai à casa de banho. Mas não fala com ninguém e

recusa-se a sair do quarto. No primeiro ano mantivemo-la sob vigilância, tentouenforcar-se no tubo de aquecimento várias vezes. Mas agora parece já ter perdido essapulsão suicida.

– Ela conseguiria morar num apartamento fora do manicómio? Com algum tipo deapoio?

– Se tentarmos tirá-la do quarto, fica com cãibras. Nunca vi nada semelhante. Étotalmente incapaz, na nossa opinião, de viver lá fora, em sociedade. Parece ver todo oseu corpo como uma prótese, uma substituição de alguma coisa que se perdeu. Émetódica em relação à sua higiene diária, veste as roupas que lhe damos para vestir. –A Dra. Niima faz uma pausa antes de continuar: – E come três refeições por dia, masnão muito, não aumenta de peso. Controlo total. Mas não temos nenhum contacto comela. As nossas palavras, nós mesmos, é como se não existíssemos. Os autistasprofundos apresentam sintomas semelhantes.

– Medicação?– Tentamos. Mas nenhuma das nossas chaves químicas conseguiu abrir os cadeados

de Maria Murvall.– E porque é que nenhum homem se pode aproximar dela?– Ela sofre as mesmas cãibras. Nem sempre, mas por vezes. Os irmãos vieram visitá-

la algumas vezes. Sem problemas. Os irmãos não são homens.

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– Alguns visitantes mais?A Dra. Niima acena com a cabeça negativamente.– A mãe dela prefere ficar afastada. O pai morreu há muito tempo.– E os ferimentos físicos?– Esses cicatrizaram. Mas fomos obrigados a operá-la para lhe retirar o útero.

Aquelas coisas com que a violaram lá na floresta causaram danos permanentes.– Ela tem dores?– Dores físicas? Acredito que não.– Terapia?– A senhora precisa de compreender uma coisa, inspectora Fors, é quase impossível

fazer terapia com uma pessoa que não quer falar. O silêncio é a arma mais eficiente daalma.

– Quer dizer que ela como que se protege através do silêncio?– Sim. Se falasse, perderia a razão.

– É aqui que Maria vive.A empregada abre cautelosamente a porta, a terceira de sete portas no mesmo

corredor do segundo andar do edifício. Os tubos de luz branca no tecto espelham-se nochão de linóleo e de um dos quartos ouvem-se alguns gemidos fracos. Por aqui usam-seprodutos de limpeza diferentes dos que se utilizam nos lares de idosos. São produtosmais perfumados. Lúcia-lima. Exactamente o mesmo usado no spa do Hotel Ekoxen.

– Deixe-me entrar primeiro e anunciar-lhe que vai ter uma visita.Através da pequena abertura da porta, Malin ouve a voz da empregada. É como se ela

estivesse a falar com uma criança.– É uma senhora da polícia que está aqui para falar consigo. Está bem? – Nenhuma

resposta. A empregada volta ao corredor. – Pode entrar agora.Malin abre a porta toda para trás, passa por um pequeno hall onde há uma porta meio

aberta que dá para a casa de banho.Em cima de uma mesa vê-se uma bandeja ainda com sobras de comida. Há um

televisor em cima de uma bancada, um tapete no chão feito de retalhos azuis e verdes, enas paredes alguns posters pendurados, com motivos de motocicletas e carros decorrida.

E sentada na cama, a um dos cantos do quarto, Maria Murvall. O seu corpo parecenão existir, ela não é mais do que um pequeno rosto emoldurado por uns cabelos loirosbem penteados.

É muito parecida comigo, pensa Malin, muito mesmo.

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A mulher na cama não reage minimamente à entrada de Malin no quarto. Está sentada,quieta, só com as pernas a balançar à beira da cama, para cima e para o chão, nos pésmeias amarelas, a cabeça inclinada para a frente. Os olhos estão abertos, mas o olharvazio, estranhamente claro, fixo nalgum ponto, no ar que enche o quarto.

A neve cai em cascata contra o vidro da janela. Recomeça a nevar. Com isso, talvez atemperatura suba alguns graus.

– O meu nome é Malin Fors. Trabalho como detective da polícia de Linköping. –Nenhuma reacção. Apenas quietude e silêncio no corpo de Maria Murvall. – Está friolá fora. E muito vento, também – diz Malin.

Idiota.Falar por falar.É melhor ir directa ao assunto. Ou vai ou racha. – Uma das pessoas a quem prestava

assistência social em Ljungsbro foi assassinada. – Maria Murvall pestaneja, mas ficana mesma posição. – Bengt Andersson. Foi encontrado pendurado numa árvore,completamente nu. – Ela respira fundo. Pestaneja de novo. – Foi com Bengt que vocêse encontrou na floresta? – Um pé mexe-se por dentro da meia de algodão amarelo. –Pelo que percebi, ajudou muito o Bengt. Esforçou-se bastante para que ele vivesse omelhor possível. Confirma? – Nova cascata de neve fina. – Por que razão se importavatanto com ele? Ele era especial? Ou tinha a mesma atitude com os outros?

As palavras esvaem-se no silêncio.Vá-se embora. Não venha para aqui com as suas perguntas, não percebe que eu

morro um pouco ao ouvi-las? Ou talvez que, se responder, seja obrigada a viver.Respiro, sim, mas é tudo. E o que é que significa respirar?

– Sabe alguma coisa sobre Bengt Andersson que nos possa ajudar?Maria Murvall levanta as pernas do chão, muda a posição do corpo, leve como uma

pena, deita-se na cama, os olhos seguindo o movimento do corpo.Exactamente como um animal.Conta-me o que sabes, Maria, usa as palavras.– Que motivo teria alguém para pendurar Bengt Andersson numa árvore no meio do

prado de Östgöta no Inverno mais frio de que há memória?Porquê, Maria? Será que ele ainda não tinha sofrido bastante?E quem é que disparou contra o vidro da janela do apartamento dele?Maria fecha os olhos. Abre-os novamente. Continua a respirar, resignadamente, como

se respirar ou não respirar já há muito tempo tivesse perdido o significado. Como se jánada tivesse a mínima importância.

Está a tentar consolar-me?

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O que é que vê que os outros não vêem, Maria? O que ouve?– Bonitos posters – diz Malin, antes de sair do quarto.

No corredor, Malin detém a empregada que passa com uma série de toalhas de banhonos braços.

– Os posters nas paredes. Parecem estar deslocados do ambiente. Foram os irmãosque os puseram lá?

– Sim. Acham, certamente, que isso a faz recordar o lar em que viveu.– Os irmãos vêm aqui com frequência?– Apenas um deles. O mais novo, Adam. Vem de vez em quando. De certa forma,

parece ter até a consciência pesada pelo facto de ela estar aqui.– A Dra. Niima disse que vêm aqui todos os irmãos.– Não, apenas um. Tenho a certeza.– Será que estes dois se davam melhor?– Isso, não sei. Mas talvez, visto que é ele que vem sempre. Uma vez, veio outro, mas

não aguentou sequer entrar no quarto. Disse que o quarto era muito pequeno, muitofechado, e que não se dava bem com isso. Era exactamente como estar fechado dentrode um roupeiro. Depois, foi-se embora.

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CAPÍTULO 28

– ESTÁS AÍ, BENGT?

– Estou aqui, sim, Maria. Vês-me?– Não, não posso ver-te, mas posso ouvir-te a flutuar.– E eu que pensava que este flutuar era silencioso.– É silencioso, também. Mas, tu sabes, eu ouço coisas que os outros não ouvem.– Ficaste com medo?– Tu ficaste?– Acho que sim, mas pouco depois compreendemos que não vale a pena ter medo, o

que não impede o medo de voltar. Não é verdade? Claro que é.– Sim.– Não é tarde demais para ti, Maria. Não da mesma maneira que é para mim.– Não digas isso.– É tudo a mesma coisa.– Cheira a solidão aqui. És tu ou sou eu?– Queres dizer o cheiro a maçãs? Não é de nenhum de nós. É de alguém, sim, mas

não de nós.– Quem será?– Eles, elas, ele, ela, todos nós.– Quem disparou para a tua janela?– Lembro-me de que, quando cheguei a casa, muito, muito tarde, vi o buraco. Eu

sabia que era um buraco de bala.– Mas quem disparou o tiro?– Acho que todos dispararam.– Eram vários?– Se nós estamos todos juntos, então, somos sempre vários, Maria.

***

Zeke está três metros atrás de Karin Johannison, na porta entre a cozinha e a sala deestar, no apartamento de Bengt Andersson. Tem o casaco apertado, o aquecimentoregulado no mínimo, apenas o suficiente para que a água não congele nos canos. Isso jáaconteceu em vários pontos da cidade durante este Inverno, sobretudo na época deNatal quando muitos foram passear para a Tailândia e para outros lugares, deixando oaquecimento desligado. De repente, bum! Canos a rebentar, água a escorrer e a causar

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estragos.E agora os prémios dos seguros vão aumentar, pensa Zeke.Karin abaixa-se, fica de joelhos no chão, inclina-se no sofá, e examina com uma pinça

um buraco no estofo.Zeke não sabe como ajudar, mas quando ela se inclina para a frente, assim vista de

trás até é realmente tolerável, para não dizer atraente. Até provocante. Sem dúvida.Na viagem de carro tinham ficado em silêncio. Zeke deixou bem claro que não estava

para conversas. E Karin concentrou-se, então, no caminho, mas sempre dando aentender que queria falar, que tinha esperado por uma oportunidade para falar com ele.

O buraco que Karin investiga está em linha recta com o buraco na janela, mas, dequalquer forma, o tiro poderia ter vindo de qualquer lado.

Agora a mão de Karin agarra alguma coisa. Ela diz:– Muito bem, muito bem! – E levanta a pinça, triunfalmente. Vira-se, estende a pinça

na direcção dele e afirma: – Se procurar um pouco mais, prometo que vou encontrarmais um par destas belezas.

Malin está na cozinha do seu apartamento. Tenta afastar da mente a imagem de MariaMurvall deitada na cama no quarto triste do manicómio.

– Continuem vocês, tu e o Zeke, na pista da Murvall. Mas se a pista dos ASA exigirmuito trabalho, vão ter de os ajudar.

Durante a reunião, Karim Akbar falou de uma maneira que levava a crer que todas asideias tinham sido dele, mesmo no que dizia respeito a Maria Murvall. No entanto, erabom poder concentrar-se numa única pista.

Sven Sjöman:– Vamos ter de verificar os registos criminais dos irmãos Murvall. E vocês, Börje e

Johan, continuem a investigar os ASA. Revirem todas as pedras rúnicas do país. Evamos ter de ouvir outra vez os vizinhos de Bengt Andersson, para saber se viram ououviram alguma coisa de extraordinário, agora que sabemos que o buraco no vidro dajanela foi feito por uma bala.

Balas de borracha.Karin e Zeke encontram três balas verdes no sofá. Provavelmente, uma para cada

buraco no vidro da janela. O tamanho certo para servir numa arma de pequeno calibre.Possivelmente, uma arma de ar comprimido.

Balas de borracha.Demasiado duras para uma brincadeira de criança, mas ao mesmo tempo não

demonstram uma verdadeira intenção de ferir. Provavelmente, só para magoar, fazer

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sofrer. Precisamente como foste torturado, Bengt.Balas de borracha.Segundo Karin, era impossível dizer que tipo de arma fora usado. Karin: «Os relevos

e sulcos do cano na borracha não são suficientemente nítidos. A borracha é maisflexível do que o metal.»

Malin deita um pouco de vinho tinto no guisado que tem ao lume.Johan Jakobsson: «Interrogámos alguns fanáticos do culto ASA na zona de Kinda.

Pelo que pudemos apurar, eram todos inofensivos. Digamos que eram pessoasinteressadas em História. Esse professor da universidade deve ser das pessoas maisobcecadas em aparecer na imprensa que já encontrei. E parece estar completamentelimpo. O namorado, Magnus Djupholm, confirmou o incidente com os gatos.

Obcecado em aparecer na imprensa. Faz qualquer coisa para aparecer nos jornais.A ideia faz com que Karim Akbar levante as sobrancelhas, como se de repente se

tivesse dado conta de que isso pudesse ser uma doença, o que faz com que Malin se riaà socapa.

Johan traz consigo para a reunião alguns exemplares dos jornais Aftonbladet eExpressen. Nada na primeira página, mas no interior páginas inteiras com uma grandefotografia do professor, «perito em rituais da antiguidade nórdica», que descreve comoo ritual pagão midvinterblot se desenrola. E dando a entender que esse ritual aindahoje se realiza.

Sven fica em silêncio durante quase toda a reunião.Malin mexe o guisado ao lume mais uma vez e aspira o aroma da pimenta branca e da

folha de louro.O homicídio que estão a investigar está a desaparecer da mente das pessoas. Já

aconteceram novos assassínios, novos escândalos com pessoas mediáticas, jogadaspolíticas, vírus mortais na Tailândia.

Quanto vale um corpo pendurado numa árvore quando deixa de ser «novidade»?Apanha Bolas, já não és um caso actual.

Abrem a porta da frente.Tove.– Mamã, estás em casa?– Estou na cozinha.– Fizeste comida? Estou com fome.– Guisado de carne.As faces de Tove estão rosadas, bonitas. As faces mais bonitas do mundo.– Encontrei-me com o Markus. Fomos tomar café em casa dele.

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Uma mansão enorme no bairro dos médicos em Ramshäll. O pai é cirurgião, um dosque vestem bata branca e verde. A mãe exerce na clínica de otorrinolaringologia. Umcasal de médicos. Uma combinação habitual na cidade.

Toca o telefone.– Atende tu – pede Malin.– Não, atende tu.Malin pega no auscultador do aparelho pendurado na parede.– Malin, é o pai. Como é que vocês estão?– Bem. Mas está frio. Já reguei as flores.– Não é por isso que estou a telefonar. Está tudo em ordem?– Já lhe disse. Está tudo bem.– Continua o frio aí na Suécia, não? A TVSuécia, na programação internacional, diz

que as tubagens estão a rebentar nos apartamentos em Estocolmo.– Aqui, em Linköping, também está a acontecer o mesmo.Ele está a esconder alguma coisa, pensa Malin. Gostaria de saber se ele vai conseguir

abordar o assunto.– Há alguma coisa em especial que queira saber?– É apenas que eu… Não, é melhor falar disso noutra ocasião.Não consegue pedir. Não consegue.– Como queira, papá.– A Tove está aí?– Acaba de entrar na casa de banho.– Não é nada de importante. Depois falamo-nos. Até logo.Malin fica com o telefone na mão. Ninguém consegue terminar uma conversa ao

telefone tão abruptamente como o pai. Num momento está lá e no segundo seguinte jánão está.

Tove volta à cozinha.– Quem era?– O teu avô. Estava um pouco estranho.Tove senta-se à mesa, olha pela janela.– A quantidade de roupa que uma pessoa precisa de vestir nesta época do ano. As

pessoas ficam feias – diz ela. – Ficam a parecer gordas.– Sabes uma coisa – diz Malin. – Há comida suficiente para o teu pai. Vamos

telefonar e ver se ele quer vir cá comer?Um desejo repentino de se encontrar com ele. De se aconchegar a alguém. Senti-lo.

Apenas isso.

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Tove fica contente.– Telefona para ele – pede Malin. E Tove perde o sorriso tão rapidamente como

surgiu.– Isso é uma coisa que deves ser tu a fazer, mamã.Um toque, dois, três, quatro, cinco. Ninguém atende.Talvez esteja de plantão nos bombeiros.Nos bombeiros, a telefonista diz-lhe que hoje é o dia de folga dele.Telemóvel.Uma mensagem de Janne: «Olá, ligou para Janne. Deixe uma mensagem depois do

sinal sonoro e eu devolverei a chamada mais tarde.»Malin não deixa mensagem.– Conseguiste falar com ele?– Não.– Então, vamos comer nós as duas, mamã.

Tove está a dormir na sua cama.Faltam quinze minutos para a meia-noite. Malin ainda está acordada, sentada no sofá.Levanta-se, dá uma olhadela no quarto de Tove, admira o corpo perfeito da rapariga

por baixo do lençol, o peito a oscilar, a respiração tranquila.Os irmãos não são homens.Um excesso de vida.O corpo a arder, o sangue a circular, intensivamente. Um outro corpo numa outra

cama.Janne, Janne, onde é que estás? Vem aqui. Volta aqui. Há guisado ao lume.«Não posso. Estou a transportar sacos de leite em pó nas montanhas da Bósnia, numa

estrada cheia de minas. Eles precisam da minha ajuda aqui.»Nós precisamos de ti.Malin entra no seu quarto. Senta-se na cama. O telemóvel toca.Corre para a sala, encontra o telemóvel no bolso do casaco.– Aqui Daniel Högfeldt.Primeiro raiva, depois resignação, em seguida esperança.– Tens alguma novidade para mim?– Não, nada de novo.– O que é que achas?– Acho que serás muito bem-vinda aqui, se quiseres.– Estás em casa?

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– Sim. Vens?Malin olha-se ao espelho da entrada. Vê os contornos do rosto a ficarem menos

nítidos à medida que se vai olhando ao espelho.Resistir para quê?Segreda: «Eu vou, eu vou, eu vou.»Bebe uma dose de tequila antes de deixar o apartamento. No chão, à entrada, deixa

uma mensagem.Tove.Eles telefonaram do trabalho. Levo o telemóvel.Mamã.

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SEGUNDA PARTE

IRMÃOS

[NO ESCURO]

SÃO VOCÊS QUE ESTÃO A CHEGAR?

COM AMOR?

ESBOÇOS, ANOTAÇÕES, O MEU PEQUENO LIVRO NEGRO COM PALAVRAS PEQUENAS A PRETO,IMAGENS DE AGORA, DO FUTURO, DO PASSADO, DE SANGUE.

NÃO ESTOU LOUCO. HÁ APENAS UMA PARTE DE MIM QUE CEDEU, QUE SE DESENCAIXOU . DEQUE SERVIRIA FALAR COM OS PSICÓLOGOS?

ESTÁ LÁ EM CASA, NO ROUPEIRO, O LIVRO DE ANOTAÇÕES; AQUI HÁ APENAS MIGALHAS DEBOLO, MAÇÃS, UMA CAIXA COM CARTAS PARA ESVAZIAR E AQUILO QUE PRECISA DE SERFEITO, QUE JÁ ESTÁ FEITO, E QUE PRECISA SER REFEITO.

DEIXEM-ME ENTRAR, OUÇAM, ESTÁ FRIO AQUI FORA. DEIXEM-ME ENTRAR.

POR QUE MOTIVO SE ESTÃO A RIR? AS VOSSAS GARGALHADAS MAGOAM-ME.

ESTÁ FRIO E HÚMIDO.

QUERO VOLTAR PARA CASA. MAS A MINHA CASA, AGORA, É AQUI.

QUERO APENAS ESTAR JUNTO DE VOCÊS PARA BRINCAR.

RECEBER AMOR.

SÓ ISSO.

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CAPÍTULO 1

QUARTA-FEIRA, 8 DE FEVEREIRO

QUARTO DE DANIEL HÖGFELDT.

O que é que estou a fazer aqui?Será que as mãos no meu corpo são dele? Está ansioso, decidido, abraça-me, aperta-

me, dá-me palmadas. Bate-me? Deixa-o bater, deixa-o arranhar-te levemente, umpouco de dor até sabe bem.

Desisto. Deixo-me levar. O corpo dele é forte, maciço, é quanto basta, não interessa aquem pertence. As paredes cinzentas. As minhas mãos junto da cabeceira cromada dacama. Ele morde-me os lábios, sinto a língua dele na minha boca e, enquanto isso,penetra-me, mais, mais…

Suor. Lá fora trinta e cinco graus negativos.Tove, Janne, papá, mamã, Apanha Bolas, Maria Murvall.Daniel está em cima de mim, é ele que comanda agora. Achas que sou tua, Daniel?

Podemos fingir que sim, se quiseres.Isso magoa-me, mas é bom.Ela assume o comando, rola, vira-se, passa para cima dele, pressiona o corpo dele

contra o colchão, coloca-se em posição, sente-o outra vez dentro de si.Agora, Daniel, agora.Quase desmaio, um espasmo tremendo, maravilhoso.Não é tudo o que precisamos?Malin está deitada ao lado de Daniel, rola na cama e senta-se. Olha para o corpo

musculoso ainda adormecido ao seu lado. Levanta-se, veste-se e sai do apartamento.São cinco horas da madrugada. Linköping está deserta.Dirige-se à polícia.

***

Eu ouvi-te a sair, Malin. Estava acordado, mas tu não deste por isso.Gostaria de manter-te aqui comigo. Gostaria, sim. Esse maldito frio lá fora. Quer

dizer, quero que fiques comigo. Até mesmo os machões, os mais fortes, precisam decalor, todos precisam.

Não há nada de original no calor.Mas, de qualquer maneira, o calor é essencial, pode mudar toda uma vida.Eu vou até ao fundo e investigo a vida das pessoas, tento desvendar os seus segredos.

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Não existe nenhum calor nessa procura e, no entanto, gosto do que faço.Como é que fiquei assim?

Os irmãos Murvall.Adam, Jakob, Elias.Malin tem os registos deles à frente, em cima da mesa. Folheia, despreocupada, os

papéis, lê, bebe café.Três pessoas. Igualmente deploráveis.O registo criminal dos três irmãos pode ler-se como o boletim de um combate de

pugilismo.Primeiro assalto: furtos, haxixe, roubo de motorizadas, condução perigosa,

desobediência à autoridade, roubo de quiosques, roubo de mercadorias de camiões dafábrica Cloetta.

Segundo assalto: maus-tratos a pessoas, cenas de pugilato em bares.Terceiro assalto: caça furtiva, chantagem, roubo de barcos, posse ilegal de armas.Depois, é como se o combate tivesse terminado.As últimas anotações dos actos ilegais dos irmãos têm dez anos.Contudo, o que terá acontecido aos irmãos Murvall? Acalmaram-se? Constituíram

família? Tornaram-se mais expeditos? Enveredaram por um caminho honesto?Certamente que não. Isso nunca acontece. Uma vez gangster, sempre gangster.

Qual deles é o pior?Anotações, fragmentos de interrogatórios.O irmão mais novo, Adam. Maluco por motores, fumador de haxixe, tendência para a

violência. Agride violentamente um condutor em Mantorp e deixa-o como morto. Tudoisso porque o homem tinha perdido uma corrida e Adam tinha apostado nele.

Jogo ilegal? Certamente. Três meses na prisão de Skänning. Dois alces mortos fora deépoca, em Fevereiro. Um mês preso em Skänning. Maus-tratos a uma namorada.Tentativa de estupro comprovada: seis meses.

O irmão do meio, Jakob. Segundo as informações, analfabeto. Disléxico. Tendênciapara o descontrolo. E o que faz uma pessoa assim? No sétimo ano agride um professor,parte o braço de um rapaz da mesma idade a pontapé, em frente de um quiosque emLjungsbro. Escola especial para jovens delinquentes. Vendedor de haxixe no pátio daescola depois de voltar, um murro no queixo de um agente que queria prendê-lo. Seismeses em Norrköping. Chantagem contra o dono de uma loja em Borensberg, conduçãoem estado de embriaguez. Um ano na prisão em Norrköping. Depois, mais nada. Comose tivesse parado de fazer asneiras.

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O irmão mais velho, Elias. Uma espécie de talento especial para o futebol. Incluídona Liga B com treze anos de idade e com uma carreira promissora até invadir e roubaro quiosque do parque desportivo do Linköping FC. Expulso do clube. Culpado dehomicídio voluntário por matar um transeunte quando conduzia sob o efeito do álcool,tendo acabado por embater numa árvore. Seis meses em Skänning. Cena de pugilato emaus-tratos a um cliente no restaurante Hamlet. Uma garrafa de cerveja partida nacabeça de outro cliente. O homem deixou de ver de um dos olhos.

«Pouco inteligente, facilmente influenciável, sempre inseguro.» Palavras dopsicólogo. Pouco inteligente? Quem é que escreve isto?

A irmãzinha, Maria.São então estes os teus irmãos, Maria? Os que colocaram os posters no teu quarto?

Adam? Na linguagem deles, na dele, implica muita consideração.O corpo roxo de Bengt na árvore.Vingança de três irmãos?Quarto assalto: homicídio?Malin esfrega os olhos. Beberica a sua terceira caneca de café.Ouve a porta do escritório a abrir, sente um sopro de vento frio.A voz de Zeke, áspera e cansada.– Hoje chegaste cedo, Fors? Ou fizeste uma noitada anormalmente longa?

Zeke liga o rádio.Volume baixo.– Leitura agradável, não?– Ao que parece, acalmaram-se – diz Malin.– Ou ficaram mais espertos.Zeke vai para dizer alguma coisa mais, mas a sua voz é abafada pelo rádio. A

melodia termina num descendo, depois um jingle e em seguida a voz quente e suave daamiga de Malin: «Foi uma…»

Helen.Ela cresceu lá, pensa Malin. Tem quase a mesma idade dos irmãos. Talvez ela se

lembre deles, não? Posso telefonar-lhe. Vou ligar-lhe.

– Olá, Malin.A voz tão suave e sensual ao telefone como no rádio.– Podes falar?– Temos três minutos e vinte e dois segundos antes desta música terminar. Depois,

podemos ter um pouco mais de tempo depois de eu dizer a frase intercalar entre as

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músicas.– Então é melhor ir directa ao assunto: será que conheceste uns irmãos Murvall

quando vivias perto do Mosteiro de Vreta?– Porquê essa pergunta?– Sabes que não posso dizer nada.– Irmãos Murvall? Claro. Toda a gente os conhecia.– Eram famosos?– Pode dizer-se que sim. Eram conhecidos por uma alcunha: «Os Murvall malucos.»

Eram terríveis. No entanto, havia qualquer coisa de deplorável neles. Sabes, todosachavam que dali não era de se esperar grande coisa. Jamais seriam consideradospessoas normais. E todos protestavam contra essa situação. Os irmãos viviam, porassim dizer, à margem da sociedade, desde crianças. Não sei, mas era como sebatessem a várias portas e ninguém as abrisse. Estavam marcados. Moravam emBlåsvädret, o lugar mais ventoso e depreciado da região. Eram os domínios da famíliaMurvall. Não me admiraria se ainda morassem por lá.

– Lembras-te de Maria Murvall?– Sim. Era a única que poderia chegar a ser alguém na vida. Andava no mesmo ano

que eu.– Chegaram a conviver?– Não, de certa forma ela também se mantinha um pouco afastada. Era como se

sofresse o mesmo tipo de exclusão. Como se as boas notas que obtinha fossem, porassim dizer, lamentavelmente inúteis. Os irmãos defendiam-na. Houve um rapaz quetentou intimidá-la por algum motivo, não me lembro bem o que foi, e eles esfregaram-lhe a cara com lixa de madeira. Duas feridas enormes, mas o rapaz nunca disse quemlhe tinha feito aquilo.

– E o pai?– Era trabalhador braçal. Prestava diversos serviços. Tinha por alcunha o Negro,

lembro-me bem. A pele dele era até bem clara, mas era assim que era conhecido. Teveum acidente de carro, partiu a coluna e passou a andar de cadeira de rodas. Depoisacabou por morrer, uma morte provocada pela bebida. E beber muito já ele fazia antes.Ao que parece, partiu o pescoço ao cair de uma escada dentro de casa.

– E a mãe?– Corria o boato de que era uma espécie de bruxa. Mas eu acho que era uma dona de

casa normal.– Bruxa?– Rumores, Malin. Num buraco miserável como Ljungsbro as pessoas vivem de

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rumores e intrigas.

***

A voz no rádio.«E a próxima música é para a minha querida amiga Malin Fors, a estrela mais clara e

brilhante da polícia de Linköping.» – Zeke faz uma careta. «Podes vibrar, Malin. Embreve serás famosa no mundo inteiro. Mas agora estás a investigar o caso de BengtAndersson, no qual todos na cidade estão interessados. Se alguém tiver informaçõessobre este caso, telefone para Malin Fors, da polícia de Linköping. Qualquerinformação será útil.»

Zeke faz uma careta ainda maior.– Agora é só esperar por uma chuva de telefonemas na tua linha.

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CAPÍTULO 2

PRECISAMENTE NO MOMENTO em que a música terminou, o telefone de Malin, em cimada mesa, tocou.

– Caramba, já? – exclama Zeke.– Pode ser uma pessoa qualquer – responde Malin. – E não ter nada que ver com o

caso. – O aparelho parece vibrar com uma segunda chamada em espera, insistindo emser atendida. Urgente. – Malin Fors, polícia de Linköping.

Silêncio.Ouve-se a respiração.Malin faz um gesto para Zeke esperar, ergue a mão.Uma voz grossa, sincopada:– Sou eu, do jogo de televisão. – Jogo de televisão? Malin tenta lembrar-se,

febrilmente. – Do Gnu Warriors.– Desculpe?– Vocês interrogaram-me sobre…– Já me lembro – responde Malin, vendo Fredrik Unning sentado, com o joystick na

mão, na cave da bela casa burguesa. Vê também o seu pai a olhar para ele, com umolhar distante. – Eu perguntei-te se não tinhas nada para nos contar que nos pudesseinteressar.

– Isso mesmo. Eu ouvi no rádio.Agora, na voz o mesmo medo que antes havia nos olhos.Um breve sentimento que desaparece tão rapidamente como surgiu.– E tu sabes de alguma coisa?– Será que a senhora pode vir aqui, a senhora e aquele outro?– Nós temos de ir hoje para os lados de Ljungsbro. Podemos demorar um pouco, mas

vamos.– Ninguém precisa de saber, não é? Que estiveram aqui.– Claro que não. Pode ficar tudo entre nós – responde Malin, que pensa: depende,

evidentemente, do que disseres. E, de repente, repara na facilidade com que mentedescaradamente a um jovem desde que esteja em jogo alguma coisa que venha abeneficiar a investigação, ou seja, o seu próprio interesse. E sente como ela própriaodiaria ser tratada daquela forma. Mas, ainda assim, mente.

– Vai ficar entre nós.– ok.Depois, um clique e a expressão inquiridora de Zeke, do outro lado da mesa.

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– Quem era? – Pergunta ele.– Lembras-te de Fredrik Unning? O adolescente que jogava aqueles jogos no televisor

na mansão?– Ele?– Sim, tem alguma coisa para nos contar, mas vamos primeiro a casa dos Murvall.

Não achas?– Murvall primeiro – diz Zeke, apontando para a porta. – Que será que o jovem

Unning tem em mente?

– Se souberem que estás a entrar por este caminho, os preços dos imóveis por aquivão baixar uns trinta por cento – diz Zeke, ao mesmo tempo que faz inversão de marchanum posto de gasolina deserto e entra pela estrada que leva a um conjunto de casasconhecido pelo nome de Blåsvädret, o «casal ventoso» da Suécia. Fora do carro, o friofaz ranger os ossos. Os termómetros parecem contorcer-se de raiva para marcar grausainda mais negativos, provocados pelo vento. Os redemoinhos de neve formam-se portoda a parte, o vento levanta do chão os flocos inertes e atira-os contra o pára-brisasdo carro.

– Diabo! que ventania! – Diz Malin.– E o céu está tão branco.– Cala a boca, Zeke!– Adoro quando dizes banalidades, Malin. Simplesmente, adoro.Um lugar horrendo. É essa a primeira sensação.É bom ter Zeke ao seu lado. Isto porque se alguma coisa acontecer, ele sabe reagir

numa fracção de segundo. Como daquela vez, em Lambohov, quando um drogado puxoude uma seringa e a pressionou contra o seu pescoço. Ainda ela não tinha dado por issoe já Zeke tinha levantado o braço e tirado a seringa das mãos do drogado. Depois, Zekeainda o atirou ao chão e começou a dar-lhe pontapés na barriga. Ela teve de segurá-lopara que ele parasse.

– Não há perigo, Fors, vai parecer que lhe demos um par de murros normais. Maspodia ser pior. Afinal, ele queria matar-te e não podemos tolerar isso, não é verdade?

Uma nova tempestade ainda mais forte.– Que estranho, quase não havia vento no caminho para aqui. Que raio de lugar é

este?– Blåsvädret é uma espécie de Triângulo das Bermudas – diz Zeke. – Aqui tudo pode

acontecer.Uma única rua.

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Um túnel de vento.Cinco casas de madeira pintadas de vermelho de um lado, garagens e oficinas do

outro, uma casa de tijolos a desmoronar-se, com as persianas corridas, uma casa maiorde madeira pintada de branco ao fim da rua, quase invisível devido à neve que cai.

Nas casas de Blåsvädret que não são habitadas pela família Murvall não hámovimento, os moradores, certamente, estão nos empregos. O relógio no painel deinstrumentos do carro marca 11h30, quase a hora de almoço, e Malin começa a sentircãibras no estômago.

Comida, por favor, mais café, não.Os irmãos Murvall moram em casas vizinhas. As duas últimas casas de madeira e a

de tijolos são as deles, a casa branca é da mãe. Os caixilhos das janelas das casas demadeira estão pintados de preto. Há destroços de automóveis espalhados pelosterrenos, quase todos cobertos de neve e gelo. Mas há luz por detrás das persianas dacasa de tijolos, na frente da qual se vê uma vedação de ferro enferrujado a balançar aovento. A oficina em frente tem portas pesadas de ferro também enferrujado e por pertoum Range Rover verde de um modelo antigo.

Zeke pára o carro.– A casa de Adam – diz ele.– Vamos tocar a campainha.Abotoam os dois os casacos e saem do carro. Mais carros desfeitos, mas, ao

contrário daqueles que estão no terreno de Janne, estes podem ser consideradosirrecuperáveis. À entrada da garagem, uma pick-up Skoda verde. Zeke observa opatamar da entrada, passa a mão enluvada pela neve e abana a cabeça.

O vento desafia todas as descrições. São rajadas raivosas que atacam como setas deverdadeiro frio ártico, setas que ultrapassam com a maior facilidade e desprezo otecido das gabardinas, dos sobretudos de lã, dos casacos e dos pulôveres.

Há areia com sal para derreter o gelo nos degraus de cimento de acesso à casa. Acampainha não funciona. Zeke bate à porta com o punho, mas só obtém silêncio comoresposta.

Malin olha pelo pequeno postigo na porta. Vê os contornos difusos de um hall, roupasde criança, brinquedos, um armário de armas, tudo em desordem. Desmazelo.

– Não está ninguém em casa.– Devem estar a trabalhar fora a esta hora – comenta Malin.Zeke concorda.– Talvez tenham passado a ser gente decente.– Duvido – diz Malin. – Repara como todas as casas parecem estar no mesmo estado

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de degradação.– Parecem todas iguais – comenta Zeke. – Não fisicamente, mas se cada casa tem a

sua alma, estas aqui são todas almas gémeas.– É melhor seguirmos para a casa da mãe.Apesar de a vivenda de madeira estar apenas a uns setenta e cinco metros de

distância, um pouco mais abaixo no caminho, é impossível descortinar qualquer outracoisa, a não ser os seus contornos. Mal dá para ver a pintura branca da madeira emcontraste com o branco da neve em volta.

Dirigem-se à casa.Quando se aproximam, conseguem ver um pouco mais através da neblina. O quintal

está todo plantado com macieiras já adultas. Os ramos negros ao vento destacam-se noambiente. Malin respira fundo, pelo nariz, fecha os olhos por momentos, na tentativa dereconhecer o aroma das flores e dos frutos que devem surgir, respectivamente, naPrimavera e no final do Verão.

Mas o mundo aqui não tem aromas.Malin reabre os olhos.A fachada da casa está envelhecida, o revestimento de madeira parece gasto, mas

ainda assim infinitamente obstinado. Há luz em todas as janelas.– Parece que a mãe está em casa – diz Zeke.– Parece que sim – concorda Malin, mas antes que terminasse de falar é interrompida.Na entrada, está um homem alto, com a barba por fazer há pelo menos uma semana.

Está vestido com um fato-macaco verde. É ele que abre a porta da frente da moradia ese coloca na posição de quem quer impedir a entrada.

– Com os diabos!, quem são vocês? Se entrarem no terreno, vou buscar uma arma eabro-lhes a cabeça.

– Bem-vindos a Blåsvädret – diz Zeke, sorrindo, na expectativa de que as suaspalavras amainassem o espírito agressivo do homem.

– Somos da polícia.Malin mostra o distintivo, ao mesmo tempo que se aproxima mais da entrada.– Podemos entrar?E, nesse momento, consegue ver os outros.Toda a gente, a família que olha para eles pelas janelas da casa: mulheres cansadas,

crianças de várias idades, uma senhora de xaile, de olhos negros, profundos, por cimade um nariz afilado e cabelos brancos, finos, lisos e ralos, que caem pelas faces de umbranco cadavérico. Malin olha para aqueles rostos e bustos e chega a pensar que

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aquelas pessoas parecem ligadas a um único corpo escondido sob os parapeitos dasjanelas. Pensa que as coxas, joelhos, pernas e pés estão juntos num só corpo,impossíveis de diferenciar, mas ao mesmo tempo numa demonstração de força.

– O que é que querem de nós?O homem na entrada parece atirar as palavras contra eles como se fossem murros.– E com quem temos a honra de falar?A franqueza de Zeke parece surtir efeito.– Elias Murvall.– Então, por favor, senhor Elias, queira deixar-nos entrar. Era óptimo sairmos deste

frio aqui fora.– Não vamos deixar entrar ninguém.Do interior da casa ouve-se uma voz forte de mulher, de alguém que está habituado a

fazer o que quer.– Deixa entrar a polícia, rapaz. – Elias Murvall afasta-se para o lado e eles entram

para o hall. Sentem de imediato o cheiro a couve queimada. – E deixem os sapatos naentrada! – Mais uma vez a voz de comando da mulher.

A entrada está cheia de roupas de Inverno: casacos de criança em cores fortes,casacos acolchoados, um sobretudo do exército. Da entrada, Malin vê a sala de estarcom móveis de estilo em cima de tapetes do Wilton, reproduções na parede do pintorJohan Krouthén. E a destoar na sala um ecrã de computador, um ecrã plano do modelomais recente.

Malin tira as botas Caterpillar, sente-se desprotegida apenas com as meias nos pés nomeio daquela gente.

A cozinha.A uma enorme mesa no meio da cozinha está sentada o que deve ser toda a família

Murvall, numa expectativa silenciosa. São mais pessoas do que as que vira há pouconas janelas. Malin conta três mulheres com filhos pequenos ao colo. Há ainda outrascadeiras com crianças mais velhas: será que àquela hora não deviam estar na escola?Aulas em casa? Ou ainda nenhuma tem idade para andar na escola?

Há mais dois homens na sala, um deles com a barba curta, bem aparada, e o outro debarba feita há pouco tempo. Estão vestidos com fatos-macaco, tal como Elias queencontraram à entrada, e têm traços fisionómicos marcantes. O de barba feita, queparece ser o mais jovem, deve ser Adam. Os seus olhos são de um azul tão escuro quequase se confundem com os olhos negros da mãe. O irmão do meio, Jakob, de cabelosfinos, sentado diante do fogão, com uma proeminente barriga por baixo do fato-macaco, olha para eles com uma expressão sombria, como se já tivesse estado mais de

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mil vezes diante de agentes da polícia a quererem saber alguma coisa dele.A mãe está junto ao fogão. É uma mulher baixa, magra, vestida com uma saia

vermelha e um casaco cinzento de lã sem gola. Vira-se para Malin.– Às quartas-feiras, a minha família come pudim de couve.– Saboroso – diz Zeke.– Como é que você sabe? – responde a mãe. – Já alguma vez comeu o meu pudim de

couve?Ao mesmo tempo estende a mão na direcção de Elias, fazendo um gesto como que a

dizer: «Olha lá, senta-te à mesa. JÁ!»Algumas das crianças começam a perder a paciência, saltam das cadeiras, correm da

cozinha para a sala de estar e sobem pela escada para o andar de cima.– E então?A velhota olha fixamente para Malin e depois para Zeke.Zeke não hesita, sorri levemente e avança atirando as palavras para a sala.– Estamos aqui por causa do assassínio de Bengt Andersson. Ele foi ouvido no caso

de violação da sua filha Maria Murvall.À medida que as palavras saem da boca de Zeke e enchem o ambiente, Malin sente

por momentos um calor a atravessar-lhe o corpo. É exactamente assim que tem de ser.Zeke não tem medo, entra directamente no ninho de vespas. Impõe respeito. Por vezesesqueço-me, mas é por isso que eu o admiro.

Ninguém à mesa muda de expressão.Jakob Murvall estica-se sobre a mesa, tira um cigarro do maço de Blend amarelo e

acende-o. Um bebé no colo de uma das mulheres começa a choramingar.– Não sabemos nada sobre isso – diz a velhota. – Não é, rapazes?Os irmãos acenam negativamente com a cabeça.– Nada – diz Elias. – Absolutamente nada.– A vossa irmã foi violada. E um dos inquiridos na investigação apareceu agora

assassinado – diz Zeke.– Onde é que vocês estavam todos na noite de quarta para quinta-feira? – Pergunta

Malin.– Nós não precisamos de lhes contar nada – diz Elias.Malin pensa que ele disse estas palavras com exagerada firmeza, como se não

quisesse mostrar-se fraco diante dos outros.– Oh, sim, vão precisar de responder, aliás, vão ter de responder – afirma Zeke. – A

vossa irmã…Adam Murvall levanta-se de punhos erguidos e grita:

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– Esse maldito pode muito bem ter violado a Maria. E agora está morto, o que émuitíssimo bem feito – a cor dos seus olhos muda de azul para negro ao gritar estaspalavras. – Talvez agora ela possa descansar em paz.

– Rapaz, agora senta-te.É a voz da mãe vinda do fogão.Agora são várias as crianças que começam a chorar, as mulheres tentam acalmá-las, e

é Elias Murvall que obriga o irmão a sentar-se na cadeira.– Isso mesmo – diz a mãe, assim que se restabeleceu o silêncio. – Acho que o pudim

de couve já está pronto. E as batatas, também.– E o culto ASA – diz Malin. – São seguidores desse culto?Gargalhada geral por parte dos adultos à volta da mesa.– Nós somos homens de verdade – diz Jakob Murvall. – E não vikings.– Têm armas em casa? – Pergunta Malin.– Armas de caça, todos temos – responde Elias Murvall.– Com o vosso historial, como é que obtiveram as licenças?– Os nossos pecados de juventude? Já se passou muito tempo.– Têm espingardas de ar comprimido?– O tipo de espingardas que temos não lhes interessa.– Portanto, vocês não dispararam nenhum tiro contra a janela de Bengt Andersson,

não é verdade?– Se alguém disparou para a janela dele – diz Elias Murvall –, isso é coisa em que

ele já não deve estar interessado. Ou está?– Nós gostaríamos de ver o vosso armário de armas – diz Zeke. – Têm certamente um

armário desses… E nós temos ainda muitas perguntas para vos fazer. Mas queremosfalar com um de cada vez. Ou aqui e agora, ou na esquadra. Podem escolher.

As mulheres estão todas a olhar para mim, pensa Malin. Tentam perceber onde euquero chegar, como se eu lhes fosse tirar alguma coisa que elas, lá bem no fundo, nãoquerem, mas que estão dispostas a defender até à morte.

– Podem levar os meus rapazes para interrogatório. E se quiserem ver o armário, vãoter de trazer um mandado de busca – diz a velhota. – Mas os rapazes Murvall agoravão comer. Portanto, fora daqui.

– Nós também queremos falar com a senhora – anuncia Zeke.Rakel Murvall levanta o nariz para o tecto.– Elias, acompanha os inspectores à porta.

Malin e Zeke saem da casa para o frio, viram-se, olham para a fachada, vêem os

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contornos por detrás das janelas cada vez mais enevoadas. Malin sente como é bom tercalçado outra vez as botas.

– Como é que se pode viver assim, hoje, na Suécia? – pergunta ela. – Totalmente forado contexto actual. De uma maneira bizarramente anacrónica.

– Não sei mesmo – diz Zeke. Depois, encontra uma explicação, a primeira que lhevem à cabeça: – É a assistência social – diz ele. – É o mal dos subsídios. Possoimaginar, vivem todos de algum tipo de auxílio, desde o subsídio de desemprego àassistência social. Para não falar dos abonos de família, com todas aquelas crianças.No mínimo, é uma fortuna todos os meses.

– Não tenho tanta certeza assim de que recebam subsídios – diz Malin. – Talvez nemrecebam nenhum auxílio. Mas, de qualquer maneira, estamos na Suécia, no início doterceiro milénio, na primeira década de dois mil. Uma família que parece vivertotalmente fora das regras do jogo.

– Eles vivem de pequenos biscates, caçam e pescam, enquanto nós suamos paraganhar a vida. Queres que eu sinta simpatia por eles?

– Talvez pelas crianças. Quem sabe o que elas passam?Zeke pára, parece reconsiderar.– Viver à margem dos cânones comunitários não é assim tão raro, Malin. Viver sem

acompanhar os ditames da realidade actual. Olha para os bandos que vivem emBorlänge, Knutby, Sheike, e em parte da província da Norrland, no norte do país. Éclaro que também existe disso aqui entre nós, no centro. E enquanto eles não ameaçama ordem geral, ninguém se preocupa com isso. Deixam-nos levar essa vida miserável.Deixam-nos em paz, a viver da forma que escolheram. Pobres, imbecis, imigrantes,deficientes. Ninguém se importa, Malin. As pessoas apenas pretendem viver numambiente de normalidade. E quem somos nós, na realidade, para ter opinião sobre amaneira como os outros devem viver? De facto, até podem ter uma vida mais divertidado que nós.

– Não quero sequer acreditar nisso – diz Malin. – E no que diz respeito a BengtAndersson, eles têm um motivo.

Encaminham-se para o carro.– Em todo o caso são gente simpática, esses Murvall – diz Zeke enquanto faz girar a

chave de ignição.– Viste o ódio nos olhos de Adam Murvall? – Pergunta Malin.– E eles são muitos, podiam ter feito tudo em conjunto. E disparar contra a janela dele

para a partirem com as suas balas de borracha? Uma brincadeira para aqueles homens.Temos agora de arranjar o mandado de busca e apreensão para podermos verificar o

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armário das armas. Mas eles também devem ter armas ilegais. Não lhes devem faltarcontactos para arranjar essas armas e as respectivas munições.

– Achas que temos indícios suficientes para conseguir o mandado? Na realidade,juridicamente falando, não há nenhum indício concreto de que estejam implicados nocaso.

– Talvez não. Vamos ver o que diz o Sjöman.– O Adam Murvall estava mesmo irritado!– Se isso acontecesse a uma irmã tua, Malin, não estarias também zangada?– Não tenho irmã nem irmão – responde Malin. Depois, acrescenta: – Ficaria furiosa.

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CAPÍTULO 3

À DISTÂNCIA, E DESTA ALTITUDE , o Bairro de Roxen parece um edredão branco,levemente acinzentado, atirado para ali. As árvores e os arbustos nas margens do lagoestão sufocados sob a pressão que vem de cima. E os campos de pasto, mais à frente,cortados rente e ainda a enfrentar os ventos fortes, estão à espera do calor que não sesabe quando virá. Se é que virá.

Moradias alinhadas umas ao lado das outras, com telhas brancas e pilares castanhos,no mais puro estilo dos anos setenta. Quatro casas privilegiadas agarradas a umacolina abrupta.

Batem à porta com a argola que rodeia a cabeça de um leão cujas mandíbulas polidasoferecem uma passagem estreita.

Da primeira vez que falaram com Fredrik Unning, Malin ficara convencida de que eletinha algo para contar, mas que reteve por uma questão de medo. Agora, Malin tem acerteza. E por cada metro que os dois avançam em direcção à casa, mais cresce a suaexpectativa.

O que estará escondido por detrás daquela porta?Tinham de ser cautelosos. Zeke permanece inquieto ao seu lado, o bafo branco a sair-

lhe da boca, a cabeça descoberta, enfrentando o frio.Um restolhar por detrás da porta.Um espreitar por uma fresta da porta que se abre depois, deixando ver o rosto de um

rapaz de treze anos com o corpo levemente balofo, sem exercício físico, vestido comuma t-shirt Carhartt e umas calças de treino de um modelo do exército.

– Só agora? Demoraram imenso. – Diz ele. – Pensei que vinham logo.Se soubesses, Fredrik, pensa Malin, como estás, com essa frase, a resumir os

sentimentos de muitos cidadãos sobre a polícia…– Podemos entrar? – Inquire Zeke.

***

O quarto de Fredrik Unning está localizado no terceiro andar e as paredes estãorevestidas de cartazes de skates. O conhecido Bam Margera, de Jackass, flutua bemalto no espaço por cima de uma esquina de cimento. E num dos cartazes mais recentesvê-se a figura do jovem Tony Alva a deslizar ao longo de uma rua deserta de LosAngeles. Cortinados brancos, leves, escondem a vista de uma janela que vai do chãoaté ao tecto. A carpete tem algumas manchas. A um dos cantos, no chão, uma

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aparelhagem de som estereofónico que parece ser nova e um televisor de ecrã plano,certamente de quarenta e cinco polegadas.

Fredrik Unning está sentado agora na beira da cama, a sua atenção concentrada nosdois. Longe vai o tempo da primeira visita em que se mostrava alheado. Longe estão osseus pais. O pai, corrector de seguros, levou a mulher, dona de uma loja, numa curtaviagem a Paris. «De vez em quando fazem esta viagem. A minha mãe gosta de comprase o meu pai gosta de comer. É bom ficar sozinho.»

Caixas vazias de piza na cozinha, pedaços de torta Gorby, comidos pela metade, e umcaixote de lixo atulhado no meio do chão.

Malin senta-se ao lado de Fredrik, na beira da cama. Zeke fica junto da grande janela,como uma figura negra em contraste com a luz lá de fora.

– Sabes de alguma coisa sobre Bengt Andersson que nos queiras contar?– Se disser alguma coisa, ninguém mais vai saber que fui eu que disse, combinado?– Combinado – promete Malin, e Zeke acena com a cabeça, concordando. E

acrescenta: – Vai ficar tudo entre nós. Ninguém vai saber de onde veio a informação.– Eles nunca o deixavam em paz – diz Fredrik Unning, enquanto olhava fixamente os

cortinados. – Ficavam em cima dele o tempo todo. Como se estivessem possessos.– Em cima de Bengt Andersson? – Zeke fala da janela. – Quem eram eles?Fredrik Unning fica de novo com medo, o corpo encolhe-se, afasta-se de Malin. E ela

pensa em como o medo alastrou à volta deles com o correr dos anos, em como aspessoas, uma a seguir à outra, parecem ter entendido que o silêncio é sempre o meiomais seguro para sobreviver, que cada palavra pronunciada é um perigo potencial. Etalvez tenham razão. Ou não?

Só agora é que perguntam isso? Demoraram.– Bengt – continua Fredrik Unning.– Quem? Enfim, está tudo bem – diz Malin. – Coragem, vamos.E a palavra coragem faz com que Fredrik se descontraia.– Jocke e Mangan. Estavam sempre dispostos a torturá-lo, a maltratar o Apanha

Bolas.– Jocke e Mangan?– Sim.– Qual é o nome verdadeiro deles? Jocke e Mangan?Nova hesitação. Novo receio.– Temos de saber.– Joakim Svensson e Magnus Tedensjö.Fredrik Unning diz os nomes com uma voz que denota decisão.

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– E onde vivem eles?– Andam na minha escola. São uns porcos. Grandes e maus.A esta hora, devias estar na escola, pensa Malin, mas não o questiona sobre isso.– O que é que eles faziam ao Apanha Bolas?– Perseguiam-no, irritavam-no, gritavam-lhe nomes feios. E, acho eu, vandalizavam a

bicicleta dele e atiravam-lhe sacos de plástico cheios de água, pedras e outras coisas.Acho até que chegaram a atirar uma mistura de neve e lama para a caixa do correiodele.

– Neve e lama?A pergunta veio de Zeke.– E não só. Misturavam farinha, água, ketchup, qualquer coisa, tudo junto, uma

porcaria.– E como é que sabes isso?– De vez em quando, obrigavam-me a ir com eles. Caso contrário, batiam-me.– E batiam-te?Vergonha nos olhos de Fredrik, medo:– Eles nunca poderão saber que eu vos contei isto, ok? Eles chegam a maltratar gatos,

também.– Gatos? Como assim?– Apanham os gatos e põem-lhes mostarda no cu.São corajosos, esses rapazes, pensa Malin.– Tu viste-os a fazer isso?– Não, mas ouvi falar. Soube por outros.Ainda da janela onde estava, a voz de Zeke soa como uma chicotada:– Será que também foram eles que dispararam para a janela de Bengt com uma

espingarda? Também estavas lá?Fredrik Unning abana a cabeça.– Eu nunca fiz isso. E onde iriam eles arranjar a espingarda?

Lá fora, o tecto de nuvens abre-se um pouco e por entre pequenas brechas deixampassar alguns hesitantes raios de sol que vieram abater-se no tapete branco de neve,fazendo com que ficasse mais claro e brilhante. Malin imagina como Roxen serádurante o Verão, vista dali de cima, à luz quente dos raios solares, dançando livressobre a superfície reluzente dos campos. Mas, infelizmente, um Inverno como este nãodá muito azo a pensamentos positivos sobre ambientes ensolarados e brilhantes.

– Chiça! – exclama Zeke. – Esses gajos, Jocke e Mangan, devem ser da pior espécie!

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– Tenho pena de Fredrik Unning – exclama Malin.– Pena?– Sim. Deves ter percebido que se sente sozinho, não? Deve ter feito tudo para

acompanhar os seus colegas rufiões.– Queres dizer que eles não o obrigavam a acompanhá-los?– Também obrigavam, certamente. Mas a conclusão não é assim tão simples.– De qualquer forma, ao que parece, vivem bem.Segundo as palavras de Fredrik Unning, ditas há pouco: «O pai do Mangan trabalha

em plataformas petrolíferas e a mãe é dona de casa. O pai de Jocke já morreu e a mãe,penso eu, trabalha como secretária.»

O telefone de Malin toca.O número de Sven Sjöman.– Aqui, Malin.Ela resume a visita à família Murvall e o que ouviram da boca de Fredrik Unning.– Estamos a pensar ir ouvir já o Magnus Tedensjö e o Joakim Svensson.– Precisamos de nos reunir – diz Sven. – Eles podem esperar uma ou duas horas.– Mas…– Reunião do grupo de investigação dentro de trinta minutos, Malin.

As crianças enfrentam o frio.O parque infantil defronte da janela da sala de reuniões está cheio de pequenas

figuras lunares que circulam com movimentos lentos e muita roupa. Agasalhos azuis,vermelhos, e um, cor de laranja, que funciona como um aviso: «Atenção, soupequenino, tenham cuidado comigo!» As auxiliares circulam com calças de lã azul-escuras, o ar quente da respiração congela assim que lhes sai da boca. Ficam a saltarno mesmo lugar, sempre que não precisam de ajudar algum dos pequenos a reerguer-sedo chão. E toca de mexer os braços para os lados e para a frente, abraçando o corpo,para manter a temperatura com a ajuda do exercício.

Se o frio insiste em continuar, é preciso aprender a conviver com ele. Como se fosseuma dor nas costas.

Börje Svärd fez o relatório. Depois da visita a Rickard Skoglöf, foram interrogaralguns jovens que parecem viver diante dos ecrãs de computador ou que vivem comose fossem personagens de um jogo: «Qualquer coisa, menos as suas próprias vidas.»

Hesitação no corpo de Börje. Malin consegue senti-la, consegue cheirar esse tipo dedesconforto. Como se a vida inteira lhe tivesse ensinado apenas uma única lição: nuncaaceites nada como certo!

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Relato da investigação.Rickard Skoglöf parece ter crescido num ambiente normal, num lar comum de

trabalhadores em Åtvidaberg. O pai trabalhou na fábrica da Facit até a empresa serdesactivada. Depois, foi trabalhar num pomar, nas plantações da empresa Adelsnäs,onde trabalhou também o filho durante as férias de Verão, quando já frequentava auniversidade. Dois anos. Depois, o vazio total. Valkyria Karlsson foi criada numaquinta enorme, de uma família de camponeses na província de Dalsland. Licenciou-seem antropologia, na Universidade de Lund, depois do liceu em Dals Ed.

Karim Akbar. Também hesitante, mas mesmo assim: «A pista dos ASA, continuempor aí, tem de haver alguma coisa.»

A voz um pouco convincente demais, como se assumisse o papel de um animador amotivar as suas hostes.

Johan Jakobsson, com olheiras. Depressão do Inverno, noites sem dormir, mudarfraldas. Novas rugas na testa a cada manhã, cada vez mais fundas. Papá, onde estás?Não quero, não quero.

Malin fecha os olhos.Já não suporta a reunião. Quer sair, trabalhar. Interrogar os «teenage bullies» de

Ljungsbro, perceber o que sabem. Talvez lhes possam dar alguma pista, talvez tenhamconseguido a arma e sejam eles os responsáveis pelos tiros contra a janela doapartamento do Apanha Bolas, talvez se tenham excedido nalgum dos seus actos demalvadez, quem sabe do que são capazes dois irrequietos garotos de quinze anos?

Tove e Magnus no apartamento dos pais de Malin.Na cama.Malin vê-os na sua frente.– E temos ainda os dois adolescentes que viviam a maltratar Bengt Andersson – diz

Sven.Sjöman:– Tu e Zeke vão ter de ouvi-los na escola. Vão directos para lá depois da reunião. A

esta hora, devem estar lá.Com certeza, com certeza, pensa Malin, que acaba por dizer:– E se não os encontrarmos na escola, vamos procurar saber onde moram, já temos os

números dos telemóveis.Depois dos rapazes, Malin quer convocar os irmãos Murvall para interrogatório,

chamar a velhota, pressioná-la. Chamar as mulheres deles.Os irmãos.Os olhares das mulheres.

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Nenhuma cortesia, apenas suspeita em relação aos estranhos. Sozinhas, apesar de semanterem unidas.

Que tipo de solidão é essa? De onde vem? De um ambiente hostil? De teremenfrentado recusas sucessivas de toda a gente? Ou essa solidão é habitual? Faz parte detodos nós? E se a oportunidade se apresentar e essa solidão germinar, sobrepõe-se atudo e passa a dominar-nos?

Um profundo conhecimento da solidão. O medo.Onde é que eu vi pela primeira vez essa solidão, no carácter rebelde do olhar de

Tove? Quando é que vi pela primeira vez no olhar dela alguma coisa diferente, puramesquinhez, alegria?

Ela devia ter dois anos e meio. De repente, entre expressões de inocência e deencanto, havia nela um traço de calculismo e, ao mesmo tempo, de angústia. E a criançatransformou-se para sempre em mulher.

A solidão. O medo. A maioria ainda consegue conservar alguma ingenuidade, algumaausência de preconceitos relativamente a outras pessoas, sem sentimentos de posse.Ainda consegue vencer a solidão sempre presente. Tal como Fredrik Unning tentoufazer hoje. Estender a mão. Como se tivesse reconhecido valer mais do que serdeixado entregue a si próprio pelos pais e ser obrigado a agir como cúmplice demiúdos que, na realidade, não queriam saber dele.

A alegria é possível.Como em Tove. Como em Janne, apesar de tudo. Como em mim mesma.Mas as mulheres à mesa da família Murvall? Onde foi parar a sua alegria genuína?

Como desapareceu? Esgotou-se, acabou para sempre? Será que é assim? São estas asreflexões de Malin enquanto Sven Sjöman faz um ponto da situação. Será que a alegriaapenas existe enquanto não há malícia e que, uma vez perdida, essa alegria fica perdidapara sempre? E passa a ser substituída apenas por mutismo e severidade?

E o que acontece se a pessoa é obrigada a ceder à solidão?A que violência pode isso levar? Ao ponto de ruptura? Ao isolamento absoluto?A criança estende os braços para a mãe, para a ama:Toma conta de mim, dá-me colo.É claro que te darei colo.Nunca te deixarei entregue a ti própria.

«Mamã, estou a pensar dormir em casa do papá, está bem?»Mensagem de Tove no telemóvel. Malin ouve a mensagem ao avançar pela grande

superfície cheia de secretárias.

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Malin telefona.– Sou eu, a mamã.– Mamã, deixei-te uma mensagem.– Já recebi, está tudo bem. Como é que vais para lá?– Vou até ao quartel dos bombeiros. Ele termina o turno às seis. E, depois, vamos

para casa.– Está bem. De qualquer maneira, vou ter de trabalhar até tarde.Palavras de Sjöman na reunião: «Já os convoquei para interrogatório. Se toda a

família Murvall não vier amanhã, voluntariamente, mando-os buscar. Mas ainda nãotemos o suficiente para o mandado de busca e apreensão de armas.

Ao terminar a conversa com Tove, Malin telefona para Janne. E deixa mensagem:«Tove vai dormir em tua casa, hoje? Quero apenas confirmar.»

Depois, senta-se na cadeira, à secretária. Aguarda. E observa Börje Svärd que cofiaos seus bigodes do outro lado da sala.

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CAPÍTULO 4

A FACHADA DO EDIFÍCIO PRINCIPAL da Escola de Ljungsbro é de um tom cinzento mate,as telhas de um vermelho queimado em todos os telhados, todos cobertos por uma finacamada de neve que em alguns pontos da grande superfície congelaram e parecemplacas de gelo em forma de espiral. Estacionaram junto dos ateliês, alinhados entreedifícios, ao longo da rua que leva ao centro do povoado.

Malin olha para dentro das salas, vazias, serras em descanso, plainas e equipamentospara moldar e soldar. Passam pelo que deve ser uma sala onde há guindastes ecorrentes suspensos do tecto, abandonados, como se estivessem à espera de seremusados. Do outro lado, Malin pode descortinar o lar de idosos de Vretaliden e, ládentro, o vulto de Gottfrid Karlsson sentado na cama, coberto pela manta alaranjada dolar, incitando-a tranquilamente: «O que aconteceu a Bengt Andersson? Quem o matou?»

Malin e Zeke dirigem-se à entrada do edifício principal, passando por aquele quedeve ser o refeitório da escola. Lá dentro, pelas janelas enevoadas, vêem o pessoal alimpar os tabuleiros de água quente e os balcões. Zeke abre a porta da entrada,disposto a fugir do frio o mais depressa possível. E na sala aquecida da entrada vêem-se logo uns cinquenta alunos a falar uns com os outros. Lá fora, do outro lado, o jardimda escola coberto por uma neblina cerrada, como se vê pelas janelas.

Ninguém presta atenção a Malin e Zeke, estão todos muito concentrados nas suasconversas, como é comum entre os jovens.

O mundo de Tove.É com isto que se parece.Malin repara num jovem magro, de cabelos compridos e negros com um olhar

preocupado, que está a falar com uma jovem loira e bonita.Do outro lado da sala, uma placa por cima de uma porta de vidro, indicando:

«Gabinete do Reitor.»– Vamos – diz Zeke, assim que vê a placa.

Britta Svedlund, reitora da Escola de Ljungsbro, deixou-os logo entrar. Talvez fosse aprimeira vez que a polícia tinha um assunto a tratar com a escola, durante a suaregência.

Mas, provavelmente, não.A escola é conhecida por ter problemas. E todos os anos transferem alunos para uma

instituição de reeducação de jovens, algures no interior da província, para aliprosseguirem os estudos na sequência de pequenos delitos cometidos.

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Agora, Britta Svedlund recebe a polícia, sentada, de pernas cruzadas, a saia curta adeixar ver um pouco a coxa, mais do que seria normal, e um par de meias pretas denylon. Malin repara que Zeke está com dificuldade em manter o olhar sob controlo.Não acredita que ele ache que a mulher na frente deles seja bonita, com a pele assimtão enrugada, desgastada e os cabelos grisalhos.

Maldição masculina, pensa Malin, enquanto se senta, direita, na incómoda cadeirapara os visitantes.

As paredes do gabinete estão cobertas de prateleiras com livros e reproduções depinturas de Bruno Liljefors. A mesa, dominada por um computador já antigo. E, depoisde ter ouvido a justificação de Malin e Zeke para aquela visita, Britta Svedlundinforma:

– Eles vão sair daqui na Primavera. Para Magnus Tedensjö e Joakim Svensson,Mangan e Jocke, restam apenas alguns meses e vai ser um prazer vê-los sair daqui.Todos os anos surgem uns ovos podres. Alguns, conseguimos mandar embora. Joakim eMagnus são demasiado inteligentes para isso, fazemos o que é possível para os manterno bom caminho.

Malin e Zeke devem ter feito uma expressão de surpresa, visto que Britta Svedlundacrescenta:

– Nunca fizeram nada que fosse ilegal. E se cometeram alguma ilegalidade, nuncaforam apanhados. Vêm de famílias bem formadas, o que não se poderá dizer da maioriados que frequentam esta escola. Não, o que eles gostam de fazer é atormentar os outros,alunos e professores. E, além disso, praticam artes marciais. Posso garantir que emcada duas lâmpadas que se estragam nesta escola, uma foi pontapeada por eles.

– Precisamos dos números dos telefones dos pais deles – diz Zeke. – E os endereçosparticulares.

Britta Svedlund digita no teclado do computador e, depois, escreve num papel osnomes, os endereços e os números.

– Aqui estão todos os dados – diz ela, ao estender o papel a Malin.– Obrigada.– E sobre Bengt Andersson? – Pergunta Zeke. – Sabe de alguma coisa que eles lhe

possam ter feito?De repente, Britta Svedlund fica na defensiva.– Afinal, quem é que vos deu essas informações? Não duvido de que sejam

verdadeiras. Mas como souberam?– Não estamos autorizados a prestar essa informação – responde Malin.– Aquilo que eles fazem fora das portas da escola, depois do horário escolar,

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confesso, sinceramente, que não me diz respeito. Se me importasse com o que osalunos fazem nos seus tempos livres, ficaria doida.

– Portanto, não sabe de nada – diz Zeke.– Exactamente. O que sei é que, seja como for, eles não faltam às aulas mais do que é

permitido, e as notas deles, aliás, são espantosamente boas.– Eles estão aqui na escola, agora?Britta Svedlund digita de novo qualquer coisa no teclado do computador.– Estão com sorte. Vão começar agora mesmo a aula de trabalhos manuais. Nunca

perdem essa aula, a não ser por um motivo de força maior.

Na sala de trabalhos manuais cheira a madeira cortada e aplainada, mas no centro ocheiro é de tintas e solventes.

Quando entram na sala, o professor, um homem de uns sessenta anos de idade, vestidocom um casaco cinzento, acolchoado, e com o rosto coberto por uma barba grisalha,deixa um aluno junto da máquina de aplainar e vai ao encontro deles.

O professor estende a mão coberta de aparas e serradura, mas recolhe-a logo. Sorri.Malin repara que os olhos dele são azuis, calorosos, e que, aparentemente, nãoperderam a luminosidade com o passar dos anos. A seguir, levanta a mão em sinal desaudação.

– Hai! – Diz ele. E Malin sente que o seu hálito tem um cheiro forte a cafeína e atabaco, um hálito verdadeiramente clássico de professor. – Vamos ter de nos saudar àmaneira dos índios. Mats Bergman, professor de trabalhos manuais. Atrás de mim estáa turma 9 B. Vocês são da polícia, presumo eu? Britta telefonou e disse que vinham acaminho.

– Certo – responde Malin.– Então, já sabe quem procuramos. Eles estão aqui? – Pergunta Zeke.Mats Bergman confirma.– Ao fundo da sala. Na área de pintura. Pintaram o depósito de gasolina de uma

motorizada com um motivo especial.Por detrás do professor, Zeke avista a área de pintura. Encaixada a um canto da sala,

com prateleiras cheias de latas de tinta, atrás de uma parede de vidro fosco. Lá dentroestão dois rapazes sentados, pelo que Malin consegue apenas vislumbrar as suascabeleiras loiras.

– Podemos ter problemas? – Pergunta Malin.– Aqui dentro, não – responde Mats Bergman, de novo a sorrir. – Sei que lá fora

podem ser arruaceiros. Mas aqui dentro sabem comportar-se.

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***

Malin empurra a porta da área envidraçada reservada à pintura. Os rapazes, cada umsentado no seu banco, erguem os olhos com uma expressão inicialmente calma, masdepressa ficam agitados, tensos e preocupados, na expectativa. Malin observa-os dealto a baixo, compondo uma expressão deliberadamente autoritária, a mais autoritáriaque conseguiu arranjar. O motivo pintado: uma caveira vermelha, com ossadas, sobrefundo preto.

Desordeiros?Sim.Atiradores?Talvez.Assassinos?Quem sabe? Essa é uma questão a resolver.Nessa altura, os rapazes levantam-se. São ambos musculosos e um palmo mais altos

do que Malin. Ambos vestem jeans largos do modelo hip-hop e casacos com capuz,com o logótipo WE.

Adolescentes borbulhentos, estranhamente iguais nas suas faces infantis, cheias deespinhas, narizes grandes demais, a denunciar a chegada do prazer e do excesso detestosterona.

– E quem são vocês? – Pergunta um deles, levantando-se.– Senta-te – ruge Zeke, por detrás dela. – Agora!E como se fosse atingido por um tecto em queda livre, ele senta-se e fica encolhido,

sentado em cima do banco cheio de manchas de tinta. Zeke fecha a porta e os doisfazem uma pausa deliberada, antes de Malin se apresentar:

– Malin Fors, da polícia, e o meu colega Zacharias.Malin tira o distintivo do bolso traseiro dos jeans.Mostra-o aos rapazes que agora parecem ter ficado ainda mais preocupados, como se

estivessem com medo, perante um mar de ilegalidades cometidas que agora ameaçavavir afogá-los.

– Bengt Andersson, sabemos que costumavam atormentá-lo. E agora queremos sabertudo e, em especial, onde é que passaram a noite de quarta para quinta-feira.

O pavor assoma aos olhos dos rapazes.– Quem é quem entre vocês? Magnus?O de casaco azul faz um sinal com a cabeça.– Muito bem – diz Malin. – Fala.

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Joakim Svensson começa a desculpar-se.– Com os diabos!, nós apenas gozávamos um pouco com ele. Só ficava irritado por

nós lhe chamarmos gordo. Nada de mais.Magnus Tedensjö continua:– Ele era muito bom a apanhar bolas durante as partidas de futebol. Mas cheirava

mal. A mijo.– E isso era suficiente para que se achassem no direito de atormentá-lo?Malin não consegue esconder a irritação na voz.– Exactamente – diz Magnus Tedensjö, fazendo uma careta.– Temos o testemunho de pessoas que dizem que vos viram a molestar Bengt

Andersson e que o agrediam com pedras e bombas de água. E agora ele foi encontradomorto – acrescenta Malin que passa a palavra a Zeke:

– Trata-se de assassínio. Será que é possível enfiar isso na vossa cabeça de idiotas?– ok, ok.Magnus Tedensjö abre os braços e olha para Joakim Svensson, que concorda:– Maltratar? Atirámos-lhe pedras, cortámos a ligação eléctrica para o apartamento

dele, atirámos um monte de merda para a caixa do correio, muito bem. Mas agora eleestá morto, e isso já não faz diferença nenhuma.

– Poderá fazer a maior diferença do mundo – diz Zeke, num tom de voz calmo. – Oque nos garante que, um dia, não foram longe demais? Que vocês, de alguma maneira,não tiveram um contacto mais directo com ele? Que não lutaram com ele? E que nãoacabaram por matá-lo? Tentem ver o nosso lado da questão, rapazes. Portanto, o quefizeram na noite de quarta para quinta-feira?

– Como é que poderíamos levá-lo para aquele lugar? – Diz Joakim Svensson queacrescenta: – Estivemos em casa do Mangan a ver filmes em DVD.

– Isso mesmo. A minha mãe foi a casa do amiguinho dela. O meu pai morreu, de modoque ela arranjou outro homem. Um tipo muito razoável, diga-se de passagem.

– Alguém poderá confirmar essa versão? – Pergunta Malin.– Sim, nós mesmos – responde Joakim Svensson.– Ninguém mais?– Será preciso?Juventude, juventude, pensa Malin. Deslizam da insolência para o pavor numa

questão de segundos. Uma perigosa mistura de autoconfiança e dúvida. No entanto, oMarkus da Tove pareceu-me um adolescente muito diferente. O que diria Tove destesdois? Não são propriamente uns cavalheiros como os de Jane Austen.

– Vocês são vaidosos e arrogantes – exclama Malin. – Estou a falar de assassínio.

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Ouviram? Assassínio! Não de torturar gatos na rua. Vai ser preciso comprovar tudo,podem estar certos. E então, que filme viram?

– Lords of Dogtown – respondem os dois ao mesmo tempo. – Um filme muito bom –acrescenta Magnus Tedensjö. – É a história de uns arruaceiros tão bons como nós.

Joakim Svensson faz uma nova careta.– Nós nunca torturámos nenhum gato, se é que acreditou nisso.Malin olha de relance por cima do ombro.Lá fora dá-se uso às plainas, às lixadeiras e às serras, como se nada se estivesse a

passar. Alguém usa o martelo para, febrilmente, pregar um prego num objecto com aforma de uma gaveta. E Malin volta-se de novo para os rapazes.

– Alguma vez dispararam um tiro contra a janela do apartamento de BengtAndersson?

– Nós? Disparar? E onde iríamos buscar a arma?Inocentes que nem cordeirinhos.– Interessam-se pelo culto ASA? – Pergunta Zeke.Ambos trocam olhares, como se se perguntassem de que se tratava. Idiotas ou

culpados, impossível decidir.– Interessados pelo quê?– Pelo culto ASA.– O que é isso? – Pergunta Magnus Tedensjö. – Alguma coisa que se relacione com

ases? Claro, eu acredito.Já eram malandros antes de deixarem de usar cueiros. Arruaceiros, metediços. Mas

perigosos?– Torturar gatos? Só pode ter sido o Unning a bater com a língua nos dentes – diz

depois Magnus Tedensjö. – Aquele pedaço de merda não aguenta nada.Zeke estica o corpo na direcção dele, faz com que os olhos vibrem como os de uma

serpente. Malin sabe muito bem como eles ficam nessas alturas. Ouve a voz do colega,o tom grave, tão frio e cortante como a noite que se aproxima do lado de fora dasjanelas da sala de trabalhos manuais.

– Se tocarem num só cabelo que seja de Fredrik Unning, vou pessoalmente fazer comque engulam o guisado das vossas próprias tripas, com toda a merda lá dentro. Agora,já estão avisados, já sabem.

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CAPÍTULO 5

– SIM, ELA PODE DORMIR AQUI.

A mensagem de Janne chega às 20h15m. Malin está cansada, vai no carro a caminhode casa, depois dos exercícios no ginásio da polícia. Precisava de arejar as ideias,depois de um dia a armazenar tanta sordidez humana.

Ela e Zeke tinham regressado à polícia depois de terem ouvido os rufiões deLjungsbro. E ela, sentada ao lado de Zeke, faz para si mesma o resumo rápido dasituação:

Bengt Andersson, irritado e maltratado, e talvez mais do que isso, pelos rufiõescarregados de testosterona. Amanhã, vamos ter de ouvir os pais deles. Ver o que saidali. Na realidade, não temos nada para poder acusá-los. As agressões contra BengtAndersson que eles confessaram, prescreveram com a morte dele. E eram talvez maistraquinices de juventude do que qualquer outra coisa.

Os tiros pela janela da sala de estar.Os idiotas do culto ASA lá fora, no campo. O assassínio cometido,

reconhecidamente, como um acto do ritual pagão.E, finalmente, a família Murvall como uma grande nuvem negra pairando sobre toda a

investigação.As armas no armário.Maria Murvall, de boca fechada, em silêncio, violada. Por quem? Bengt?Malin desejaria responder não quanto a esta questão. Mas sabe que ainda não pode

fechar nenhuma porta, em lugar nenhum, em nenhuma hipótese. Pelo contrário, precisade tentar prever o imprevisível. Escutar as diferentes vozes da investigação.

O que mais poderá sair da escuridão dos campos e dos bosques?«Sim…»Ela olha para a primeira palavra da mensagem.Por momentos, desvia a atenção do caminho.Sim.Foi essa a palavra que dissemos uma vez um ao outro, Janne, mas não soubemos

prever o que viria pela frente.Malin estaciona, corre rapidamente para o apartamento. Prepara dois ovos, deixa-se

cair no sofá, liga o televisor. Acaba presa a um programa sobre uns quantosamericanos frenéticos que competem para ver quem é que constrói a motocicleta maisbonita e mais perfeita.

O programa diverte-a, de uma forma relaxante. E, depois de uma interrupção para

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publicidade, compreende, enfim, a razão.Janne podia ser um daqueles americanos, feliz para além de todos os limites, quando,

enfim, conseguisse esquecer todos os problemas do dia-a-dia, todas as recordações, eentregar-se àquela que era a sua verdadeira paixão.

Vê a garrafa de tequila em cima da mesa.Como é que a garrafa foi ali parar?Foste tu que a colocaste lá, Malin, quando retiraste o prato com os restos de ovo.Beber um pouco?Não.O programa sobre motocicletas termina.Nessa altura, a campainha da porta toca. Malin pensa que deve ser Daniel Högfeldt

que transpõe a última fronteira e agora aparece e bate à porta sem avisar, exactamentecomo se já tivessem oficializado a situação.

Não é possível, Daniel. Mas talvez.Malin vai até à entrada, abre a porta, sem olhar pelo visor. «Daniel, seu monstro…»Não é ele.Daniel.Em vez dele, um homem de olhos azuis-escuros, um cheiro de óleo de motor, gordura,

suor e loção de barba. Olhos em fogo. Que lhe gritam, quase com raiva.Ele mantém-se do lado de fora da porta. Malin vê nele fúria, desespero, violência?

Raios!, o que vem ele fazer aqui? Zeke, devias estar aqui e agora. Será que ele querentrar?

O estômago enrola-se-lhe de medo. Numa fracção de segundo, começa a tremerimperceptivelmente. Os olhos dele. A porta. Devia fechar a porta. Nada deinfantilidades, diante da obstinação deste homem.

Tenta fechar a porta, mas não consegue, uma bota alta, rústica e negra interpôs-se naabertura estreita entre a porta e a ombreira. Maldita bota. Bate-lhe, dá-lhe pontapés,pisa-a, mas a biqueira de aço da bota torna os seus ataques, com os pés descalços,ineficazes. As dores nos pés nus são dela.

Ele é forte. Coloca as mãos na pequena brecha e reabre a porta.Impossível detê-lo.Maria Murvall. Será que vai acontecer comigo o que aconteceu contigo?Medo.Agora, é mais um pressentimento do que uma sensação.Adam Murvall.Fez mal à sua irmã? É daí que vem esse olhar? É por isso que ficou descontrolado

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hoje de manhã?Calma, Malin. É apenas medo. Controla-o, manda-o embora.E onde está o casaco com a pistola? Mas ele apenas me olha fixamente, sorri, troça, e

torna a olhar fixamente para mim. Depois, retira a bota, tira as mãos da porta, recua,não invade o apartamento. Vira-se e vai-se embora, tão depressa como chegou.

Meu Deus.As mãos tremem, o corpo explode de adrenalina, o coração dispara acelerado.Malin espreita para a escada. Há um papel no chão, ao pé da porta. Escrito à mão, em

letras tremidas.Deixem a Murvall tranquila. Também podemos usar outros meios.Como se tudo isto fosse um jogo de escondidas entre miúdos. E depois aquela ameaça

explícita: podemos usar outros meios.Agora, Malin volta a senti-lo, o medo. Aparece ao mesmo tempo que a adrenalina sai

do corpo. E o medo transforma-se em pavor. E a respiração altera-se, fica acelerada. Ese Tove estivesse em casa. Depois do pavor, a fúria:

Como é que pude ser tão idiota?O homem à porta.Podia ter-me violado. Facilmente.Estava sozinha.Volta para o sofá. Deixa-se cair. Resiste ao desejo de tomar uma tequila. Passam-se

cinco minutos, dez, talvez uma meia hora, até reunir forças para telefonar a Zeke.– Ele esteve aqui, há pouco.– Quem?De repente, Malin não consegue lembrar-se do nome.– Aquele com os olhos azuis-escuros.– Adam Murvall? Queres que mande aí alguém?– Não, chiça!… Ele foi-se embora.– Raios o partam, Malin. O que é que ele te fez?– Acho que se pode dizer que me ameaçou.– Vamos prendê-lo já. Assim que te sentires recuperada, vem para cá. Ou queres que

vá buscar-te?– Não, obrigada. Eu estou bem.

Três carros-patrulha, dois a mais do que algumas horas antes. Adam Murvall vê-oschegar pela janela. Os carros param em frente da sua casa. Ele prepara-se, sabe porqueé que vieram, por ele ter feito o que fez.

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Alguém tem de o avisar.E muitos outros pensamentos lhe atravessam a mente. A irmã mais nova, o irmão mais

velho, os acontecimentos na floresta. Quando metemos uma coisa na cabeça, será queesquecemos tudo o resto?

– Vai ter com aquela porca, Adam. Entrega-lhe o papel e vem-te embora.– Mãe, eu…– Vai.Tocam à porta. Lá em cima dormem Anna e as crianças. Os irmãos dormem nas suas

casas. Chegam quatro agentes aos degraus da entrada.– Posso vestir o casaco?– Estás a falar connosco, seu sacana?Então os agentes caem sobre ele, atiram-no ao chão, ele luta para respirar. Os agentes

pressionam-lhe o corpo. Anna e as crianças surgem na escada que conduz ao andar decima, gritam e chamam pelo pai: papá, papá, papá.

No quintal, os outros agentes mantêm os outros irmãos à distância, enquanto Adam éconduzido, algemado, como um cão selvagem até ao carro-patrulha.

Um pouco mais longe, numa janela iluminada, está a mãe. Ele vê-a, apesar de ter ocorpo dobrado para a frente.

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CAPÍTULO 6

O FRIO LEVOU OS ÚLTIMOS RESQUÍCIOS de preocupação e medo, assim como a adrenalinaque restava. A cada passo, a caminho do edifício da polícia, Malin sente-se cada vezmais preparada para, na manhã seguinte, enfrentar Adam Murvall e os seus irmãos. Pormuito que queiram viver fora da sociedade, agora entraram nela. E após terem entrado,não voltarão a sair.

Ao passar pelo velho quartel dos bombeiros, Malin, sem saber porquê, foi levada apensar na mãe e no pai. Na vivenda com telhado lajeado em Sturefors onde elacresceu. Como mais tarde compreendeu a razão pela qual a mãe tentara sempre fazercrer que a sua casa era mais elegante do que na realidade era. Mas os poucos olhostreinados que passavam a porta de entrada deviam notar que os tapetes eram de fracaqualidade, que as litografias nas paredes eram produzidas em série e que toda a casaera uma tentativa para parecer admirável. Ou será que estou enganada?

Talvez eu te faça essa pergunta da próxima vez que nos virmos, mamã. Se bem que tuvais atirar a pergunta para trás das costas, fazendo de conta que não percebeste apesarde teres entendido muito bem o que eu queria dizer.

– Que idiota – diz Zeke.Malin pendura o casaco na cadeira, junto da sua mesa de trabalho. Todo o

departamento está na expectativa do café acabado de fazer e cujo aroma lhes chega àsnarinas. Normalmente, café acabado de fazer só de manhã.

– Nada inteligente, não é?– Não sei – reage Malin.– O que queres dizer com isso?– Eles são daqueles que gostam de controlar a evolução dos acontecimentos. Não

pensaste nisso?Zeke abana a cabeça.– Será que não estás a tornar as coisas mais complicadas do que são? Estás mesmo

bem?– Sim, estou muito bem.Dois agentes entram na sala, vindos do refeitório, com as faces rosadas em

consequência do café quente.– Martinsson – berra um deles. – O teu miúdo meteu algum golo contra o Modo?– Ele jogou muito bem contra o Färjestad – berra o outro.Zeke prefere ignorar os dois colegas, finge que não ouve, tenta mostrar-se ocupado.

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Karim Akbar chega e é a salvação de Zeke. Coloca-se entre Malin e ele.– Prendêmo-lo. – diz Karim. – O carro-patrulha deve estar a chegar a qualquer

momento.– Com que argumento vamos mantê-lo na prisão? – Pergunta Malin.– Perturbou a paz de uma agente da lei que estava em casa.– Tocou à campainha da porta e deixou uma mensagem.– Tens o papel?– Claro.Malin procura no bolso e entrega um papel dobrado a Karim que, cautelosamente,

desdobra o papel e começa a ler.– Está claro como a água – diz ele. – Há razões de sobra: obstrução à investigação de

um crime, ameaça velada, tentativa de intimidação.– É isso mesmo – diz Zeke.– Tudo dirigido contra ti, Malin. Porquê? O que achas?Malin suspira.– Porque sou mulher. Acho que é muito simples. Ataquem primeiro as mulheres. São

medrosas, mais fáceis de intimidar.– Os preconceitos são sempre cansativos – responde Karim. – Não podem deixar de

ser, não é?– É verdade.– Onde está o Sjöman? – Pergunta Zeke.– Vem a caminho.Tumulto na recepção.Estão a chegar? Não, nenhuma luz azul no pátio.A seguir, Malin vê-o:Daniel Högfeldt. Gesticula, fala agitado, mas através de uma janela à prova de balas

e de som entre a grande sala dos escritórios e a entrada. Não se ouve nada. Vê-seapenas um rosto bem conhecido, um homem de casaco de couro preto que quer algumacoisa, que parece falar a sério, mas que, de certa forma, revela alguém que faz daprofissão uma brincadeira.

Ao lado de Daniel está uma jovem fotógrafa que tira fotografias freneticamente. Ebbae Malin perguntam-se se o aro que tem no nariz vai ou não ficar preso na máquina, seas tranças se vão enrolar na objectiva. Börje Svärd tenta acalmar Daniel, mas depressapercebe que é inútil, afastando-se resignado.

Daniel lança um olhar mais preciso na direcção de Malin. A vaidade escorre-lhe pelorosto. Mas será também a saudade? A noite recordada ou imaginada? Difícil de

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interpretar.O melhor é olhar para outro lado, pensa Malin.– Meet the press – diz Karim, sorrindo para ela, ao mesmo tempo que a pele do rosto

parece mudar de cor. Em seguida, acrescenta: – Aliás, Malin, pareces abatida. Estátudo bem contigo?

– Abatida? Essa é uma palavra que jamais dirias a um homem, teu colega – diz Malin,virando-se para o computador a tentar fingir que estava ocupada.

Karim sorri de novo.– Mas, Fors, foi apenas uma pergunta com a melhor das intenções.Börje chega até eles, com um olhar ligeiramente divertido. Como se tivesse qualquer

coisa que os outros não têm.– O orgulho da corporação jornalística. Quer saber se Adam Murvall é suspeito do

assassínio ou se vai ficar detido por outro motivo. Ficou irritado quando lhe respondi«sem comentários».

– Não irrites a imprensa sem necessidade – diz Karim. – Eles já são naturalmentediabólicos. – E acrescenta: – Como é que ele sabe o que se está a passar aqui nestemomento?

– Estão oito agentes envolvidos, oito telemóveis a funcionar – responde Zeke.– Mais dez outros – completa Malin.– Mais salários ridiculamente baixos – acrescenta Karim, antes de abandonar a sala e

se dirigir a Daniel.– O que foi aquilo? – Comenta Börje. – Uma tentativa de se aproximar do povo?– Quem sabe? – diz Zeke. – Talvez tenha tido uma revelação que o levou a ver para lá

do seu próprio umbigo.– Já chega – diz Malin. – Parem de fazer troça dele.Nesse momento, a luz azul começa a piscar freneticamente na entrada, e de imediato

os colegas, enérgicos, robustos, abrem as portas para deixar passar um carro-patrulhapintado de branco.

Músculos.Mãos-de-ferro seguram os braços de Adam Murvall, puxados para trás e para cima.

As algemas de metal prendem-lhe os pulsos, cortam-lhe a pele das articulações. Umsolavanco. O corpo avança, instintivamente dobrado para a frente, para se defender. Acabeça pende para o chão. Eles empurram-no e as calças azuis, as galochas pretas, opiscar da luz azul em contraste com o asfalto coberto de neve, todo branco, faz lembrarum céu estrelado. Os flashes das máquinas fotográficas. Portas automáticas a abrir.

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Uma voz estridente, uma mulher ou um homem?– Adam Murvall, sabe o motivo da sua detenção?Acha que sou idiota?Depois, mais uma porta, um padrão azul e bege por baixo dos pés, vozes, rostos, a

jovem, um par de bigodes.– Levem-no directamente para a sala de interrogatórios.– Qual?– A número um.– Quem?– Vamos esperar pelo Sjöman.Uma voz firme de homem.Ele pensa que o sotaque não se nota. Mas não passa de um maldito imigrante.

Através de uma janela espelhada que dá para a sala de interrogatórios, Malin vê SvenSjöman ligar um gravador, ouve-o dizer a data e a hora, o seu próprio nome e o nomedo inquirido, e o número do processo.

Malin vê ainda Sjöman a recostar-se na cadeira metálica, lacada de preto.A sala.Quatro metros por quatro.Paredes cinzentas com placas acústicas, perfuradas. Um espelho que não engana

ninguém. Por detrás do espelho, sou eu que estou a ser observado. O tecto pintado depreto com iluminação indirecta de halogéneo. A confiança deve ser criada, quebrada, aculpa deve ser fundamentada, confessada. A verdade deve vir ao de cima e, para isso,é preciso silêncio e calma.

Ninguém tem mais calma do que Sven.Ele tem esse dom.A capacidade de levar os estranhos a confiar, de transformar em amigo um inimigo.

Informações: «Como é o ambiente onde moram? E as suas casas? Pormenores, dêem-me pormenores.»

Do outro lado da mesa, Adam Murvall.Calmo.As mãos algemadas sobre a mesa de aço, nódoas negras a aparecer, logo acima dos

anéis de metal. Na semi-obscuridade, paira a cor dos seus olhos. E, pela primeira vez,Malin observa melhor o nariz dele, como sobressai da base e termina numa pontaafilada que se desdobra para os lados, formando narinas bem proporcionadas.

Não é um nariz de camponês.

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– Então, Adam – diz Sven. – Não conseguiu controlar-se, não é verdade?Adam Murvall não muda de expressão, limita-se a esfregar as mãos, uma na outra,

produzindo ruídos tilintantes sempre que as algemas de metal batem uma na outra.– Não precisamos de falar disso agora. Nem da sua irmã. Podemos falar de carros, se

preferir.– Não precisamos de falar de nada – responde Adam Murvall.Sven inclina-se para a frente sobre a mesa. Com uma voz que é a essência da amizade

e da confiança:– Ora, vamos lá a saber, conta-nos qualquer coisita sobre aqueles carros que têm nos

vossos quintais. Presumo que ganhem muito dinheiro a desmanchá-los.

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CAPÍTULO 7

VAIDADE, MALIN. Encontra um caminho nas histórias deles, cultiva a vaidade deles.Nessa altura, eles abrem-se e, quando se abrem, geralmente corre tudo bem.

Sven Sjöman.Um mestre em persuasão para levar as pessoas a falar.

Adam Murvall está a pensar que este inspector trabalha na corporação há muitotempo, mas não nesta cidade, «caso contrário já se teria lembrado de mim. Eles nuncase esquecem. Ou será que está a fingir que não se lembra? Neste momento os outrosestão atrás do espelho, observam-me. Olham para mim, mas eu não me importo.Pensam que vou falar? Como é que podem acreditar nisso. É melhor não ligares aoscarros, mas, claro, se começarem a fazer perguntas sobre os carros, posso falar sobreeles. Quanto aos carros, não há segredos, não é?»

Adam sente, contra a sua vontade, que já está a começar a ceder.

– Você não estava aqui há nove anos – diz Adam Murvall. – Onde é que estava?– Acredita em mim – responde Sven. – A minha carreira é absolutamente banal. Há

nove anos, era inspector criminal em Karstad, mas a minha mulher veio trabalhar paracá e eu tive de tratar da transferência.

Adam Murvall acena com a cabeça e Malin pôde notar que ele ficou satisfeito com aresposta. O que é que isso lhe interessa? Porque se interessa pela biografia de Sven?Mas, de repente, Malin percebe que se Sjöman estivesse ali há mais tempo lembrar-se-ia dos irmãos Murvall.

Vaidade, Malin, vaidade.– Então, os carros?– Os carros? São apenas mais uma coisa que fazemos.Adam Murvall demonstra autoconfiança. A sua voz, um motor bem lubrificado.– Desmontamos os carros e vendemos as melhores partes.– E vivem disso?– Também temos o posto de gasolina, aquele que fica no caminho para o aqueduto, o

Posto Preem.– E isso é o suficiente para viverem?– Parece que sim, não acha?– Conhecia o Bengt Andersson?– Sabia quem ele era. Todos o conheciam.– Acha que ele esteve implicado na violação da sua irmã?

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– Esqueça. Não toque nesse assunto.– Sou obrigado a perguntar, Adam. Você sabe isso.– Não fale da Maria. O nome dela não é apropriado a uma boca suja como a sua.Sven recosta-se na cadeira, nada no seu movimento denuncia qualquer espécie de

raiva diante daquele insulto.– Você e a sua irmã mantêm um bom relacionamento? Ouvi dizer que é o único que a

visita.– Não fale da Maria. Deixe-a fora disto.– Foi por isso que escreveu a mensagem?– Isso não é da sua conta. Nós resolvemos esse problema.– E o que fez na noite de quarta para quinta-feira?– Jantámos em casa da minha mãe. Depois fui para casa com a minha família.– Foi mesmo isso que fez? Não foram vocês que penduraram o Bengt na árvore? Uma

solução à vossa maneira?Adam abana a cabeça.– Porco.– Quem? Eu ou Bengt? E foi você ou outro dos seus irmãos que disparou contra a

janela da sala de estar do Bengt? Algum de vocês foi lá às escondidas, numa destasnoites, tal como você foi a casa da investigadora Fors hoje à noite? Para deixar umpapel, uma mensagem?

– Eu não sei nada sobre os tiros que furaram a maldita janela. E agora não digo maisnada. Pode ficar aí a noite inteira. A partir de agora, da minha parte, só silêncio.

– Como a sua irmã?– E o que sabe você sobre a minha irmã?– Que tem bom coração. Todos dizem isso. – Os músculos do rosto de Adam Murvall

descontraem-se um pouco. – Sabe que a sua situação é péssima, não sabe? Ameaças auma inspectora, resistência violenta, direitos violados. Com o seu histórico, sãoalegações muito sérias.

– Eu não ameacei ninguém. Fui entregar uma carta.– Sei muito bem até que ponto se pode irritar, Adam. Ficou furioso com o gordo e

repulsivo Bengt, não foi? Aquele que violou a sua irmã? Aquele que destruiu o coraçãode ouro dela? Como foi, Adam? Foi você que pendurou…

– Eu devia ter feito isso, sim.– Portanto, você…– Você acha que sabe tudo.– O que é que eu não sei?

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– Vai para o inferno…Adam Murvall pronuncia estas palavras em voz baixa, antes de, lentamente, levantar

o indicador e levá-lo a meio da boca.Sven desliga o gravador, ergue-se da cadeira. Sai da sala e deixa Adam Murvall

sozinho. Este permanece sentado, as costas direitas, como se a sua coluna fosse feita deuma única estaca sólida, de aço, impossível de derrubar.

– Qual é a vossa opinião?Sven Sjöman olha para os que estão à sua frente.Karim Akbar, na expectativa, junto da porta.– Há qualquer coisa que não bate certo – diz Malin. – Qualquer coisa.Mas o seu coração não lhe diz o quê.– Ele não nega – comenta Johan Jakobsson.– São um bando de durões, bad boys – diz Zeke. – Negar ou confessar? Nunca. Isso

seria fazer uma concessão. O que, para eles, está simplesmente fora de questão.– Sven já decidiu mantê-lo preso. Vamos colocá-lo esta noite na cela mais fria.

Talvez isso o amacie – diz Karim provocando o silêncio geral. Ninguém sabe se está abrincar ou a falar a sério.

– A brincar – diz Karim em seguida. – O que lhes parece? Querem que transformeisto numa prisão à moda curda? É isso?

Karim solta uma gargalhada. Os outros sorriem.O relógio na parede da sala de espera. Os ponteiros pretos marcam onze horas e vinte

minutos.– Eu acho – diz Malin – que pode valer a pena falar com toda a família Murvall. É o

que eu penso. Amanhã.– Podemos mantê-lo preso por uma semana. Os irmãos e a mãe vão ser ouvidos

amanhã de manhã. Também podemos intimar as mulheres – acrescenta Karim.Pela janela espelhada e com isolamento sonoro, Malin observa dois agentes a entrar e

a levar Adam Murvall da sala de interrogatórios para uma das celas da cadeia local.

O céu está limpo, cheio de estrelas.A Via-Láctea sorri para os seres humanos, o longo caminho de luz tem um aspecto

severo, mas, ao mesmo tempo, reconfortante.Malin está junto de Zeke, já no estacionamento, perto do Mercedes preto de Karim

Akbar.Quase meia-noite.Ele fuma um dos seus raros cigarros. Os dedos parecem estar roxos por causa do frio,

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mas isso não o incomoda.– Devias baixar o ritmo, Fors. Vai com mais calma.O brilho das estrelas esmaece.– Mais calma com quê?– Com tudo.– Tudo?– Apenas reduzir um pouco a velocidade, o ritmo acelerado.Malin pára, deseja que o tempo quente regresse rapidamente, mas sabe que vai

demorar, nunca mais chega.Zeke apaga o cigarro, procura as chaves do carro.– Vens comigo?– Não – responde Malin –, vou a pé, preciso de andar um pouco.

Adam Murvall está deitado num beliche, na cadeia, puxa o cobertor para cima docorpo musculado e pensa nas palavras que Svarten, o negro, costumava pronunciar erepetir como se fosse um mantra, quando entrava em delírio alcoólico, sentado nacadeira de rodas, na cozinha.

No dia em que cederes, estás lixado. Lixado, entendes?Svarten cedeu. Nem ele próprio chegou a perceber porquê.Depois, Adam Murvall pensa na mãe, que ela pode confiar nele, tal como ele sempre

confiou nela. De certa maneira, ela conseguiu sempre interpor-se entre eles e todos osdiabos do mundo, como uma muralha.

Adam não é daqueles que falam. E as crianças devem estar agora a dormir, comcerteza, embora Anna tenha tido dificuldade em obrigá-las a descansar.

Adam Murvall vê o peito da sua filha Annelis, de sete anos, a subir e a desceracompanhando a respiração. Vê os cabelos loiros e encaracolados do filho Tobias, detrês anos, deitado sobre um lençol decorado com pequenos barcos à vela azuis e vêainda o seu rapazote de oito meses, a dormir de costas no berço. Depois, Adamadormece também. Sonha com um cão que está em frente a uma porta, em plenoInverno. É uma noite de céu claro e estrelado e o cão ladra tão alto que a portaestremece nos gonzos enferrujados que a sustentam. E Adam sonha que ele próprio estásentado a uma mesa posta, na cozinha de uma grande casa branca. E vê a mão, cheia deveias finas e salientes, estender-se por cima da mesa e arrancar a perna de uma galinhacorada no forno. E a mesma mão a atirar pela janela a perna da galinha para o cão.

O cão continua lá fora na neve e ladra.Mas quando a perna cai fica em silêncio.

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Depois, volta a ladrar. Uma voz:DEIXEM-ME ENTRAR.

NÃO ME DEIXEM FICAR AQUI FORA.

TENHO FRIO.

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CAPÍTULO 8

QUINTA-FEIRA, 9 DE FEVEREIRO

NÃO É NENHUM PESADELO.

É apenas o que é.Janne anda para a frente e para trás na sala de estar da casa. Os miúdos do campo de

refugiados em Kigali acabaram de vir ter com ele outra vez, durante a noite. Traziamos pés recém-cortados nas palmas das mãos, aproximaram-se da cama dele e exibiramos pés como se fossem troféus sangrentos. O sangue vermelho-escuro pingava em cimado lençol da cama, ainda quente, fresco, cheirando a ferro.

Janne acordou quando sentiu o lençol molhado.O suor.Como é hábito.É como se o corpo relembrasse as noites húmidas na floresta e se adaptasse às

reminiscências da mente, mais do que às condições do momento.Sobe silenciosamente a escada, entreabre a porta do quarto de Tove que dorme

tranquilamente, no ambiente aquecido.No quarto de hóspedes dorme Markus. Bom rapaz, pelo que Janne pôde ajuizar

durante o breve jantar, antes de Tove e Markus desaparecerem em direcção ao quartode Tove.

Ele não disse a Malin que Markus ia dormir lá em casa. Ela parecia não saber denada, mas ele apostaria que ela sabia, sim. Certamente iria protestar, mas estava tudobem, pensa Janne, ao descer a escada. É melhor controlarmos a situação com eles porperto do que deixá-los ir para o apartamento do sogro.

Sogro? Foi isso que eu disse?De qualquer forma, telefonei para o pai de Markus, para saber se não havia problema.Ele foi simpático. Nada daquela atitude pomposa que a maioria dos médicos assume

lá no hospital, quando chegamos com alguém na ambulância.

Pela manhã, a família Murvall apresenta-se na polícia.Chegam no Range Rover verde e numa carrinha Peugeot, pouco depois das oito.O sol arranca reflexos da pintura dos veículos que vomitam as pessoas cá para fora.

Pelo menos, é assim que Malin resolve descrever a situação para si mesma.O clã Murvall: homens, mulheres, crianças e mais crianças ocuparam todo o átrio do

edifício.

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Conversas agitadas.Gente no ponto de ruptura.Disposta a não fazer o que as autoridades pedem que façam: contar, falar. Uma

mistura consciente de arrogância e resignação em cada movimento, em cada expressão,em cada piscar de olhos. Roupas surradas, jeans muito usados, agasalhos e casacos decores vivas, fora de moda, desfilam em parada. Não há diferenças, tudo sujo, cheio denódoas, o ranho a escorrer do nariz das crianças, a completar o conjunto.

– Impostores – sussurra Börje Svärd ao ouvido de Malin, enquanto observam a cenada janela dos escritórios. – São um bando de impostores.

No centro do grupo, a mãe Murvall.Como se estivesse sozinha entre os outros.

– É uma família e tanto, a sua – diz Sven Sjöman, a tamborilar com os dedos em cimada mesa, na sala de interrogatórios.

– Mantemo-nos unidos – constata a mãe. – Como nos velhos tempos.– E isso é raro, hoje em dia.– É, mas a gente mantém-se unida.– E a senhora Murvall já tem muitos netos.– Nove, no total.– E podiam ser muitos mais, caso a Maria…– Maria? O que é que ela tem que ver com isto?– O que é que fez na noite de quarta para quinta-feira, na semana passada?– Dormi. É o que uma velha como eu faz durante a noite.– E os seus filhos?– Os rapazes? Pelo que sei, também dormiram.– A senhora conhecia Bengt Andersson?– Bengt quê, inspector? Sim, li sobre ele nos jornais, se o senhor se refere àqueles

que o penduraram na árvore.– Àqueles?– Eu li nos jornais que, provavelmente, eram vários.– Como os seus filhos?– Tenha vergonha, inspector. Tenha vergonha.

Malin olha Sofia Murvall nos olhos. Tem olheiras cavadas, mas os cabelos castanhosparecem bem lavados, reunidos num longo e bonito rabo-de-cavalo até abaixo dopescoço. A sala de reuniões teve de funcionar como sala de interrogatório.

Jakob, o filho do meio. A sua mulher. Quatro crianças, dos sete meses aos dez anos.

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Exausta, cansada de tantas noites mal dormidas, esgotada até à medula.– Quatro filhos – diz Malin. – Deve sentir-se feliz. Eu só tive uma.– Posso fumar aqui dentro?– Infelizmente, não. Aqui as regras são rígidas. Mas talvez eu possa abrir uma

excepção – continua Malin, ao empurrar por cima da mesa o copo de café que haviaterminado de beber. – Deite a cinza aqui.

Sofia Murvall procura no bolso do seu casaco verde um maço de Blend Menthol e umisqueiro com publicidade a uma transportadora. Acende o cigarro e o fumo doce,mentolado, faz com que Malin sinta náuseas, mas faz um esforço para continuar asorrir.

– Deve ser dura a vida no campo.– Nem sempre é divertida – diz Sofia Murvall. – Mas quem é que disse que devia ser

divertida?– Como é que se conheceram, você e Jakob?Sofia vira a cara para o lado e dá mais uma passa no cigarro.– Não tem nada com isso.– São felizes?– Muito, muito felizes.– Mesmo depois do que aconteceu com a Maria?– Isso não alterou nada.– Custa a acreditar – diz Malin. – Jakob e os seus irmãos devem ter ficado furiosos.– Eles trataram da irmã, se é isso que quer saber, e é ainda o que continuam a fazer.– Também trataram do responsável pelo sucedido? Pendurando Bengt Andersson na

árvore? – Alguém bateu à porta da sala. – Entre – reage Malin. E uma outra agente, denome Sara, abre a porta e olha pela pequena abertura.

– Está aqui uma criança a chorar. Dizem que precisa de mamar, pode ser?Sofia Murvall não reage nem muda de expressão.Malin acena afirmativamente com a cabeça.A mulher, que deve ser a que está casada com Adam Murvall, traz um bebé gorducho,

a chorar, para dentro da sala e deixa-o no colo de Sofia. O rapaz abre a boca, procuraa mama, Sofia apaga o cigarro, desaperta a roupa, o bico rosa aparece, o bebé procura-o, encontra-o e começa a chupar.

Consegues perceber a tua felicidade? Reconhece-la?Sofia acaricia a cabeça do filho.– Estás com fome, querido? – e depois: – Jakob não teve nada que ver com isso.

Impossível. Ele dormiu em casa todas as noites e durante o dia ficou a trabalhar na

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oficina. Consigo vê-lo da janela da cozinha o dia inteiro.– E a sua sogra. Dá-se bem com ela?– Sim – responde Sofia Murvall. – Não há ninguém mais simpático.

Elias Murvall, fechado. A sua expressão, a de uma concha.– Não vou dizer nada. Deixei de falar com a polícia há quinze anos.A voz de Sven Sjöman:– Não somos assim tão perigosos, especialmente para um tipo duro como você, não

é?– Se eu não disser nada, como é que vão saber o que eu fiz ou deixei de fazer? E

acham que sou assim tão fraco a ponto de ceder?– Aí é que está a questão – diz Sven. – Não pensamos que seja um fraco. Mas se não

disser nada, vai ser mais difícil para nós. Queres criar-nos dificuldades?– O que é que acha?– Foi você que disparou contra…

A boca de Elisa Murvall, costurada por uma linha cirúrgica invisível, a línguadomesticada, sem movimento. Tão silenciosa que se consegue ouvir o zunido dosistema de ventilação.

Do seu lugar de observadora, Malin não ouve o zunido, mas sabe que existe. Umsopro contínuo, mecânico, que renova o ar no ambiente.

Jakob Murvall ri às gargalhadas:– Se temos alguma coisa que ver com isso? São loucos. Nós respeitamos a lei, há

muito tempo que estamos calmos, dentro da legalidade. Somos mecânicos deautomóveis, iguais a quaisquer outros.

Börje Svärd:– ok. O que tem a dizer sobre os rumores de que ameaçaram aqueles que fizeram

propostas para a compra da casa que estava à venda em Blåsvädret? Que ameaçaramaté o agente imobiliário interessado na venda?

– Rumores. Está nos nossos domínios. E nós fizemos a proposta mais alta. Podemoscomprá-la, ou não? A noite de quarta para quinta-feira? Estava a dormir, ao lado daminha mulher. É verdade que não dormi a noite inteira, mas fiquei deitado na cama,com a minha mulher. Quanto a Maria. Você não devia sequer mencionar o nome dela,ouviu, seu chui maldito? Bengt Andersson… Maria… O Apanha Bolas, esse monstro,ela devia tê-lo mandado para o inferno.

Jakob Murvall levanta-se, apressadamente.

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Depois, um corpo de homem que cai, músculos que perdem toda a sua força.«Ela tomou conta dele. Ela é a mulher mais doce e carinhosa com que Deus

presenteou o nosso maldito planeta. Ela apenas tomou conta dele, dentro do possível.Não consegue perceber isso, não é, seu chui fracassado? Ela é como é. Ninguém podedetê-la. E se ele agradeceu fazendo o que fez lá na floresta, ele merecia morrer,merecia retirar-se para o inferno de onde veio.»

– Mas não foram vocês que fizeram isso, não é verdade?– O que é que você acha, seu chui fracassado? O que é que você acha?

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CAPÍTULO 9

UM EXÉRCITO EM RETIRADA, PENSA MALIN.

O clã Murvall sai do átrio do edifício da polícia criminal e, a tremer de frio, regressaaos carros.

Elias e Jakob ajudam a mãe a ocupar o lugar da frente na carrinha, mas será que avelhota precisa daquela ajuda?

Antes, à saída, com um xaile à volta da cabeça, tinha os olhos tão abertos quepareciam ir sair das órbitas.

E reclama a Karim Akbar.– Vou levar o meu Adam para casa.– O responsável pela investigação… – Karim Akbar fica estupefacto diante da velha

senhora, subitamente furiosa. E domina-se graças à educação que recebera, e que oensinara o respeito que é devido aos mais velhos.

– Ele vai para casa. Agora.O resto da família como uma muralha atrás dela, a mulher de Adam à frente, com as

crianças à volta das pernas, a fungar.– Mas…– Então, pelo menos, vou vê-lo.– Senhora Murvall, o seu filho… Ele não pode receber visitas. O responsável pela

investigação, Sven Sjöman…– Quero que esse tal responsável pela investigação vá para o inferno. Vou ver o meu

filho, pode ter a certeza.E mostra um sorriso que logo se transforma em careta, a dentadura falsa sobressaindo

irrealisticamente branca.A provocação era como uma peça de teatro, uma brincadeira.– Vou ver o que posso…– Não pode fazer nada, não é verdade? – E, nessa altura, Rakel Murvall vira-se,

levanta um dos braços, e a retirada recomeça.O relógio da parede indica que são 14h50, quase três horas da tarde.

Sala de reuniões. Demasiado frio para poder ser arejada. Por isso, o mau cheiro docigarro mentolado ainda persiste.

– Lisabeth Murvall é o álibi do marido, Elias – diz Malin.– De uma forma ou de outra – diz Zeke – são todos álibis uns dos outros.– E parecem não ter outra ligação a Bengt Andersson a não ser o facto de ele ter sido

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assistido pela irmã e de o seu nome ter aparecido na investigação sobre o estupro –continua Johan Jakobsson.

– De qualquer forma, temos de fazer uma busca em Blåsvädret – diz Sven Sjöman. –Quero saber o que há naquelas barracas.

– Temos argumentos para isso? – Karim mostra-se hesitante. – Um motivo, indícios.É tudo o que temos.

– Eu sei o que temos e o que não temos. Mas é o suficiente.– Vamos apenas dar uma olhadela – diz Börje Svärd. – Nada de mais, pois não?Não, é apenas virar o mundo deles de pernas para o ar, pensa Malin. Nada de mais,

além disso. Mas acaba por dizer: – Arranja o mandado.– De acordo – diz Karim.– Quero ouvir os pais de Joakim Svensson e de Magnus Tedensjö – diz Malin. –

Alguém vai ter de confirmar o que fizeram na noite de quarta-feira, e talvez consigamossaber mais sobre os maus-tratos que infligiam a Bengt Andersson.

– Os tiros – refere Zeke. – Ainda não sabemos quem os disparou.– Vamos fazer o seguinte – conclui Sven. – Primeiro, a busca. Depois, podemos falar

com os pais desses arruaceiros.Malin acena, concordando. Pensa que precisam de reunir todas as forças. Ninguém

sabe do que esses loucos são capazes.Depois, ouve a voz receosa de Fredrik Unning: «Isto vai ficar entre nós…» E

reconhece que tem o dever de seguir o rumo da investigação até onde puder.– Então, vamos para Blåsvädret – diz Johan, levantando-se.– Quando mexemos na merda, encontramos sempre qualquer coisa – diz Börje.

A merda, Börje, tu sabes o que é estar na merda, não é?Já estiveste enterrado nela, quando ficavas alerta junto da tua mulher, a ouvir a

dificuldade que ela tinha em respirar, quando o seu diafragma mal conseguiasuportar os pulmões.

Sentiste a expectoração dela nos teus dedos durante a noite, num quartofracamente iluminado, quando ela te pedia para lhe segurares a mão e dispensar aassistência das enfermeiras anónimas.

É isso, fazes uma ideia do que é estar na merda, Börje, mas também sabes que háalgo mais do que isso.

À tua maneira, esperaste que as bolas voassem por cima de uma rede, para quepudesses devolvê-las. Mas nunca ninguém se riu dos teus movimentos.

Nunca tiveste fome. Fome a sério. Nunca estiveste realmente sozinho.

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Perigosamente sozinho. Sozinho a ponto de atirar um machado afiado contra acabeça do teu pai.

Eu flutuo sobre os campos, estou a aproximar-me de Blåsvädret, daqui de cima, umpequeno conjunto de casas como se fossem pequenos pontos escuros em cima de umaimensa toalha branca. A árvore onde fiquei pendurado parece um mastro debandeira, a cerca de cinco quilómetros à esquerda. Desço, vejo os carros, os agentesda polícia cheios de frio e os Murvall todos reunidos, apertados, na cozinha da casade Rakel, ouço as maldições deles, a fúria mal refreada, desconhecem o princípiodas panelas de pressão e dos reactores sobreaquecidos que explodem. A violênciaapenas pode ser confinada dentro do possível, e vocês movimentam-se agora nolimite. E os quatro agentes da polícia lá fora na rua, diante das vossas portas, seráque vão conseguir confinar a violência?

Na oficina, a maior, o grande barracão de telhado branco.Malin e Zacharias, que é como Zeke se chama, abrem a porta de uma das divisões

do fundo. Está frio lá dentro, dez graus apenas, mas mesmo assim conseguem sentiro cheiro.

Vão perguntar-se porque é que os Murvall não fizeram uma limpeza maior ecomeçam a ter dúvidas. O que é isso? Que animal é este, que não se curva?

Vão ver as correntes penduradas no tecto, os guindastes que ajudam as pessoas asuspender coisas mais pesadas, coisas que, de outro modo, não conseguem levantarem direcção ao tecto ou ao céu.

Vão ver o sangue seco.Sentir o cheiro.E então, vão perceber.

– Vês, Zeke?– Vejo. E sinto o cheiro.O cheiro desagradável a óleo de motor que dominava o primeiro grande espaço da

oficina desaparece face ao cheiro no espaço interior.– Luz, precisamos de mais luz.Antes, tiveram de afastar as gigantescas portas de ferro que separavam os dois

espaços, sem dificuldade, portas bem oleadas e obedientes. Não se sente o peso, pensaMalin, observando as marcas de pneus no caminho que leva até à porta.

O cúmulo da facilidade, uma bem oleada porta de correr.E, então, a dependência sem janelas. Chão de cimento manchado, correntes a pender,

imóveis, das vigas do tecto, mas que, ainda assim, produzem pequenos ruídos como

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peles secas de serpentes, as roldanas móveis parecem bonitos planetas negros lá noalto, junto ao telhado. Ao longo das paredes, bancadas de aço inoxidável, a brilharvagamente no escuro, e ainda o mau cheiro, cheiro a morte e a sangue.

– Ali.Zeke aponta para uma parede, para um interruptor.Segundos depois, a luz inunda o ambiente. Zeke e Malin vêem sangue coagulado no

chão, nas correntes, filas de facas dispostas com precisão sobre as bancadas de açoinoxidável.

– Isto é de mais.– Chama imediatamente os técnicos.– Cuidado ao sairmos.

***

Malin, Zeke e Johan Jakobsson estão junto da bancada da cozinha da casa de AdamMurvall. Inspectores da polícia revistam o conteúdo das gavetas na sala de estar cujochão está cheio de jornais, fotografias, toalhas e talheres.

– Quer então dizer que a sala interior da oficina parece realmente um matadouro?Será que foram eles que fizeram tudo? – Pergunta Johan.

Zeke acena com a cabeça, concordando.– E vocês, o que encontraram? – Pergunta Malin.– A cave está repleta de carne. Grandes arcas congeladoras brancas. Sacos com a

indicação do ano e do conteúdo: carne picada 2001, bifes 2004, veado 2005. E isso écomum às três casas. Certamente, também na casa da mãe.

– Nada mais?– Uma quantidade enorme de lenha. Pouca papelada. Parece que não são muito

apologistas de guardar documentos.

São interrompidos por uma chamada via rádio que vem do carro que está perto dagaragem de Elias Murvall.

– Temos aqui alguma coisa.A voz alegre dos novatos. Era assim a minha voz há dez anos? pensa Malin. Depois

de acabar os exames na Academia da Polícia e fazer a primeira ronda, já de regresso àminha cidade natal. Para sempre?

Malin, Zeke e Johan saem a correr da cozinha de Adam Murvall, correm ainda maisrápido pelo quintal e pela rua na direcção da garagem.

– Aqui – chama a atenção o jovem agente, e faz sinal do lugar onde está. Os olhos

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dele brilham de excitação ao apontar para uma pick-up Skoda. – Toda a carroçaria estámanchada de sangue – diz ele. – Inacreditável.

Nem tanto, pensa Malin, antes de dizer: «Não mexam em nada.»Ela não repara no rosto do jovem agente, que muda de uma extraordinária expressão

de orgulho e felicidade para outra, de irritação mal contida, que só a arrogância de umsuperior pode provocar.

Börje Svärd anda com os músculos abdominais muito tensos, pode sentir ascontracções a espalharem-se pelo corpo.

A estação de serviço está bem organizada. Nada de estranho na loja, nada na oficina.Bem cuidadas, com um ar de competência. Ali, até ele poderia deixar o seu carro.

Ao fundo da loja, um pequeno escritório, algumas pastas na prateleira, um aparelhode faxe. E outra porta. Dois cadeados bem fortes, pendurados numa lingueta. Mas nãosuficientemente resistentes.

Na oficina, Börje encontra uma grossa alavanca de ferro. De volta ao escritório,coloca a alavanca por detrás da lingueta e pendura-se nela com todo o peso do seucorpo. Ouve de imediato os protestos do ferrolho e, em seguida, pressiona mais umavez com o peito, o metal cede e a lingueta voa do seu lugar.

Espreita para dentro da dependência. Primeiro, reconhece imediatamente o cheirofamiliar a lubrificante de armas. Depois, vê as espingardas penduradas nas paredes.

Não é possível, pensa ele. Em seguida, reflecte e lembra-se de que as estações deserviço estão muito expostas a assaltos. Mas quando se dispõe de um arsenal daqueles,não há razão para ter medo de que isso aconteça. Se não fosse por isso, as armaspoderiam estar noutro lugar.

Börje imagina a conversa entre os outros moradores da localidade: «Aconteça o queacontecer, evitem a estação de serviço de Blåsvädret. Os irmãos Murvall sãoperigosos. Lembrem-se disso.»

A noite começa a cair no horizonte, muita actividade em volta de Malin. Agentes,civis, sangue, armas, carne congelada. A família reunida agora na cozinha de AdamMurvall, enquanto fazem a busca na casa da mãe.

Malin suspeita de que está a faltar alguma coisa. Mas, o quê? E, de repente, percebe oque é. Daniel Högfeldt. Ele devia estar aqui.

Mas em vez dele está outro jornalista de que ela não sabe o nome. Em contrapartida,a fotógrafa está presente, com anel no nariz e tudo.

Malin dá por si a ter vontade de perguntar por Daniel, mas seria um passo em falso.Como justificaria a pergunta?

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O telefone toca.– Olá, mamã.– Tove, minha querida, vou para casa daqui a pouco. Houve grandes novidades hoje

no trabalho.– Não vais perguntar se eu passei uma boa noite em casa do papá?– Claro que sim. Então estiveste…– sim!– E agora, estás em casa?– Sim. Mas estava a pensar em apanhar o autocarro e ir ter com o Markus.Johan comunica via rádio:– Börje encontrou uma grande quantidade de armas na estação de serviço.Malin inspira fundo o ar frio.– Para casa de Markus? Óptimo… Nesse caso, será que podes comer qualquer coisa

por lá?

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CAPÍTULO 10

O ROSTO DE KARIN JOHANNISON parece absorver a luz dos projectores. A sua pelebronzeada destaca-se ainda mais graças ao contraste com a cor brilhante do fino blusãoque usa, numa tonalidade cor de vinho, esplendorosa. Diferente do blusão que vestiranaquele dia em que pesquisou o local junto da árvore.

Bordeaux, pensa Malin, assim diria Karin, ao classificar a cor.Karin abana a cabeça, quando se aproxima de Malin, que estava na entrada do acesso

à oficina a bater os pés no chão para espantar o frio.– À primeira vista, trata-se apenas de sangue de animais, mas, para termos a certeza,

vamos ter de esquadrinhar cada centímetro quadrado, o que vai demorar alguns dias.Se me perguntares, diria que usam o local como matadouro.

– Recentemente?– A última vez deve ter sido há poucos dias.– Mas, pelo que sei, não estamos agora na época de caça.– Isso não te sei dizer – responde Karin.– Mas isso também nunca impediu que certos indivíduos passassem o ano inteiro à

caça.– Caça ilegal?Karin enruga a testa só de pensar no facto de andar no meio da floresta, a uma

temperatura de trinta graus negativos, com uma espingarda ao ombro. Só a ideia já erauma tortura.

– Não é impossível – diz Malin. – Afinal, há muito dinheiro envolvido. Quandomorava em Estocolmo, perguntava-me sempre como era possível encontrar carnefresca de alce nos mercados, durante o ano inteiro.

Karin dirige o olhar na direcção da garagem.– Parece acontecer a mesma coisa com a camioneta. Mas não sabemos ainda.– Sangue de animais?– Sim.– Obrigada, Karin – diz Malin, que sorri sem saber exactamente por que razão.Karin fica confusa.Corrige a posição do gorro, descobrindo uns brincos com três diamantes ofuscantes.– Desde quando – replica Karin – agradecemos uma à outra o trabalho bem feito?

As armas estão alinhadas no chão da loja da estação de serviço, dentro de sacospretos de lixo.

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Não é o tipo de loja habitual, que vende cachorros quentes e produtos perecíveis,pensa Malin. Há apenas um balcão com chocolates e um velho e enferrujado frigoríficocom bebidas, que funciona ruidosamente a um canto. São essas as únicas concessõesfeitas à área alimentar. De resto, apenas óleo para motores, peças sobressalentes eacessórios.

Janne gostaria deste lugar.Carabinas de caça.Gravuras de veados e alces, de homens em locais de emboscada no meio da floresta,

de flores.Caçadeiras Smith & Wesson.Pistolas: Lugers, Colt e uma SigSauer P225, arma oficial da polícia.Nada de Mausers. Nada de espingardas de ar comprimido. Nenhuma arma que

pudesse ter sido usada contra a janela de Bengt Andersson, até aí, já Malin tinhapercebido. No armário de armas na casa só existiam caçadeiras e carabinas normais.Será que os irmãos têm outro esconderijo? Ou será que, apesar de todas estas armas,não têm nada que ver com os disparos contra a janela? Como, aliás, afirmam.

O mais estranho de tudo: duas metralhadoras pequenas de um modelo usado peloexército e uma granada de mão.

Parece uma maçã, pensa Malin, uma maçã disforme, de um verde sujo.– Aposto que essas metralhadoras e a granada vieram do roubo ao depósito de armas

do quartel de Kvarn, há cinco anos – afirma Börje. – Nessa altura, foram roubadas dezmetralhadoras e uma caixa de granadas. Tenho a certeza de que vieram de lá.

Tosse, enquanto anda de um lado para o outro.– Com isto, os irmãos podem começar uma guerra – diz Zeke.– Talvez até já tenham começado, não? – Sugere Börje. – Ao enforcar Bengt

Andersson naquela árvore.Jakob e Elias Murvall estão sentados à mesa da cozinha, um de cada lado da mãe, na

casa dela. Ao fundo, gavetas abertas, pratos de loiça em cima de tapetes de retalhos.Os irmãos estão psiquicamente preparados, à espera de uma ordem que terá de ser

cumprida a qualquer custo. É como se estivessem preparados para a guerra, pensaMalin, exactamente como Börje disse. Como se estivessem prestes a saltar datrincheira e avançar contra as linhas inimigas. Rakel Murvall, a mãe, como umamatrona, entre os dois, o queixo levantado, o pescoço ligeiramente inclinado para trás.

– Malin e Zeke, tratem vocês do assunto – tinha dito Sven Sjöman. – Pressionem,ameacem.

Inspectores no hall de entrada e na sala de estar, «caso tentem tomar alguma atitude».

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Zeke, ao lado de Malin, em frente do trio. Já tinham decidido antes o mais antigoesquema de interrogatório do mundo, um bom e um mau. Os olhos de Zeke, como osdos lobos no prado onde o frio é intenso.

– Eu faço o papel de má – diz Malin.– ok. Aguentas?– Contigo ao meu lado, vou ser dura que nem pedra.Malin inclina-se sobre a mesa, olha primeiro para Jakob, depois para Elias e,

finalmente, para a mãe.– Vocês estão enterrados até ao pescoço.Nenhum deles teve qualquer reacção. Continuam apenas a respirar fundo, sem alterar

os ritmos da respiração e das batidas do coração.Zeke confirma:– Cinco anos para cada um, no mínimo. Acusação por roubo, furto de armas, porte

ilegal de armas, caça ilegal e, se encontrarmos sangue humano, acusação porhomicídio. Se encontrarmos o sangue do Bengt.

– Roubo? Que roubo? – pergunta Elias Murvall.A mãe repreende-o:– Cala-te, nem mais uma palavra!– Não acham que podemos prendê-los pelo roubo das metralhadoras?– Nunca – murmura Elias. – Nunca.Malin sente que alguma coisa no tom de voz de Elias faz com que Zeke ultrapasse os

limites. Já tinha visto isso antes. É como se perdesse o autocontrolo e todo ele setransformasse em acção, uma mistura de músculos, adrenalina e vontade de pôr pontofinal no assunto. Zeke salta da cadeira e dá a volta à mesa, tudo num movimento só.Segura com as mãos o pescoço de Elias Murvall, força a cabeça dele contra a mesa demadeira e pressiona-a.

– Seu troglodita de merda – murmura Zeke. – Vou tirar-te os pelos do cu e enfiar-tospela goela abaixo.

– Quieto, Jakob – diz a mãe. – Quieto.– Foi você que o matou? Foram vocês? Lá dentro, na oficina? Como se mata um cão?

E depois foram pendurá-lo numa árvore para que todos vissem, é isso? Para que todossoubessem o que acontece quando alguém se mete com a família Murvall? Foi isso quefizeram?

– Largue-me – chia Elias Murvall. – Mas Zeke pressiona ainda mais. – Largue-me –geme ele.

Zeke solta-o. E fica de braços cruzados atrás das costas.

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Um verdadeiro duro, pensa Malin. Eras capaz de enfrentar os irmãos todos ao mesmotempo, se a situação o exigisse, não é verdade?

– Entendo-vos – diz Malin calmamente, assim que Zeke retoma o seu lugar à mesa. –Talvez não tenham suportado a ideia de Bengt ter, presumivelmente, violado a vossairmã. E resolveram tratar do assunto à vossa maneira. Nós até podemos compreenderisso.

– Estamos nas tintas para o que os outros pensam – diz Jakob Murvall.A mãe encosta-se no espaldar da cadeira, cruza os braços sobre o peito.– Não diga absolutamente nada, mãe – reage Elias Murvall.– Não acham que é suficiente? – Acrescenta Zeke. – Vamos encontrar, com certeza, o

sangue de Bengt na pick-up e com isso vocês vão todos para a cadeia.– Não vão encontrar lá sangue nenhum de Bengt.– Vocês devem ter ficado furiosos. Devem ter cedido à raiva na quinta-feira passada

– diz Malin, com a voz mais suave, com o olhar mais compassivo do mundo.– Acusem os rapazes por caça ilegal e por posse de armas – diz a mãe, de repente. –

Quanto ao resto, eles não sabem de nada.Mas tu sabes, pensa Malin.– E você sabe?– Eu? Eu não sei de nada. Mas, rapazes, contem-lhes da caça, da cabana perto do

lago, contem-lhes tudo, para ver se acabamos com esta conversa de uma vez.

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CAPÍTULO 11

A CABANA, MALIN.

A floresta.Tudo o que rasteja entre os troncos das árvores lá fora ao frio.Os irmãos e a mãe.Foram eles que me fizeram mal, Malin? Que dispararam contra a minha janela,

que me penduraram na árvore? Que fizeram todos estes ferimentos no meu corpo?Eles negam.Ou foram os rapazes da escola?Ou os seguidores do culto ASA?As perguntas nunca mais terminam.Fala com os pais dos rapazes, Malin. Eu sei que vão fazer isso agora, tu e

Zacharias. Esclareçam tudo isto e procurem a verdade.É algures, lá fora, que está a resposta.Muito perto, Malin.

Segue o plano.Actua de acordo com o padrão estabelecido. Não descartes nada, antes de teres a

certeza.Sem preconceitos, Malin.As palavras favoritas de Sven Sjöman.Portas abertas de par em par, portas fechadas como aquela diante da qual ela está

agora.O dedo de Zeke na campainha da porta, os dois na pequena entrada, de tecto

vermelho, do apartamento no rés-do-chão. Há luz na janela mesmo ao lado da porta,uma cozinha, mas ninguém lá dentro.

A Rua Pallasvägen.Apartamento de rés-do-chão construído mais ou menos no final da década de 1970, se

pensarmos que o estilo usado na década de 1930 se tornou muito popular quarenta anosmais tarde. O apartamento está situado numa área plana, como que esquecida, ao ladoda piscina municipal de Ljungsbro, passeios de saibro bem desenhados, agora cheiosde gelo, e ladeados por arbustos a hibernar. Pequenas áreas de relva, cobertas de neve,em frente de cada entrada.

Como se fossem vivendas, embora não sejam, pensa Malin. Apartamentos a fingir decasas, para aqueles que não têm posses para tanto. Uma forma de morar que não é uma

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coisa nem outra. Será que os moradores também não são nem uma coisa nem outra?A mãe de Joakim Svensson, Margaretha.Ela está em casa, pensa Malin. Mas porque não abre a porta?Zeke toca de novo à campainha. E o bafo continua a congelar assim que lhe sai da

boca. Um bafo branco, a contrastar com o escuro da noite que se aproxima.Quando pararam o carro no estacionamento, o relógio marcava 17h15m. O resto da

tarde, e talvez a noite, vai ser longa.Os irmãos na cadeia.A cabana na floresta.E, então, Malin ouve passos a descer a escada. A fechadura roda, com o seu ruído

característico. A porta abre-se, apenas uma fresta.Todas estas pessoas, pensa Malin, que olham para o mundo através de pequenas

frestas nas portas… O que receiam elas?E, então, lembra-se do corpo de Bengt Andersson pendurado na árvore.Os irmãos Murvall.Rakel. E Malin pensa que talvez seja melhor para Margaretha manter a porta fechada.

E pergunta:– É Margaretha Svensson? Somos da polícia de Linköping e queremos fazer algumas

perguntas sobre o seu filho. Podemos entrar?A mulher acena que sim e abre a porta. Tem o corpo envolto numa toalha branca, os

cabelos estão molhados e a água goteja para o chão, pelas pontas loiras eencaracoladas. As apresentações e os apertos de mão.

– Estava a tomar banho – diz Margaretha Svensson. – Mas façam favor de entrar. Epodem esperar na cozinha, enquanto me vou vestir.

– Joakim está em casa?– Não, Jocke está fora, anda por aí.A cozinha está a precisar de obras. A pintura branca das portas dos armários está

muito lascada e as placas do fogão eléctrico gastas. No entanto, há no ambiente umaatmosfera aconchegante. A mesa de madeira envernizada e as cadeiras desirmanadas,estilo Windsor, de certa forma conferem um pouco de dignidade à cozinha e à suasimplicidade. Assim que o frio aliviou a sua pressão no nariz, Malin consegue notar umligeiro aroma a ervas aromáticas e a especiarias.

Despem os dois os blusões almofadados, sentam-se à mesa e esperam. Na bancada dacozinha vê-se uma lata de azeite e uma saladeira cheia de biscoitos sortidos.

Cinco minutos.Dez.

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Em seguida, chega Margaretha Svensson, vestida com um agasalho desportivovermelho e calças brancas de ginástica. E chega maquilhada. Não pode ter mais detrinta e oito anos de idade, no máximo quarenta, apenas alguns anos mais velha do queMalin. É bonita e tem uma silhueta de sonho.

Aproxima-se e senta-se à mesa, encarando Malin e Zeke com um ar de expectativa.– A reitora telefonou e disse que já estiveram na escola.– É verdade. Como talvez já saiba, o seu filho e Magnus Tedensjö tinham por hábito

importunar Bengt Andersson, vítima de homicídio – diz Malin.Margaretha Svensson ouve as palavras com atenção e faz uma pausa, antes de

responder.– A reitora contou-me. Eu não sabia de nada. Mas também acho que isso é muito

possível. Quem sabe o que eles inventam e do que podem ser capazes?– Eles andam sempre juntos? – Pergunta Zeke.– Sim, são como irmãos – responde Margaretha Svensson.– Mas você não sabe o que eles fizeram a Bengt Andersson? –Margaretha Svensson

abana a cabeça. – Será que tiveram acesso a armas?– Facas ou instrumentos parecidos, é isso? As gavetas desta cozinha estão cheias

delas.– Armas de fogo? – Pergunta Malin.Margaretha Svensson fica com uma expressão de espanto.– Não posso sequer imaginar uma coisa dessas. Absolutamente. Onde é que iriam eles

buscar essas armas?– Culto ASA – diz Zeke em seguida – será que Joakim já andou metido nisso?– Garanto que nem sabe do que se trata. Falem-lhe de artes marciais ou de

skateboard. Disso sabe ele tudo.– Já sabe conduzir? – Pergunta Malin.Margaretha Svensson respira fundo e passa a mão pelos cabelos ainda molhados.– Ele só tem quinze anos. Mas quem sabe do que esses dois são capazes?– Eles disseram-nos que estiveram aqui a ver filmes, na quinta-feira passada, mas que

você não estava em casa, confirma?– Quando eu saí, às sete horas da noite, eles ficaram aqui e quando voltei o Jocke

estava na cama, a dormir. O televisor estava ligado e o filme ainda não tinha acabado.Era um filme de skateboard que eles estão sempre a ver.

– Onde é que você…– Primeiro, estive a praticar natação na piscina municipal. Depois, fui para casa do

meu namorado. Posso dar-vos o número de telefone dele, se quiserem. Voltei para casa

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por volta das onze e meia.– Namorado?– Chama-se Niklas Nyrén. Podem telefonar-lhe.– Muito bem – diz Zeke. – Ele dá-se bem com o seu filho?– Tenta. Pensa que é vantajoso que o rapaz tenha uma imagem masculina como

modelo a seguir.– O pai de Joakim morreu, não é verdade? – Pergunta Malin.– Sim, num acidente de automóvel, quando Joakim tinha três anos. – Depois,

Margaretha Svensson endireita as costas e acrescenta: – Fiz o melhor que pude paraeducar o rapaz, trabalhei a tempo inteiro como contabilista numa maldita empresa deconstrução e tentei fazer dele uma pessoa decente.

Mas não conseguiu, pensa Malin. Ele parece ser mais um criminoso de meia-tigela,malcomportado, com tendência para torturar os outros. Como se tivesse adivinhado ospensamentos de Malin, Margaretha acrescenta:

– Sei que não é um santo e que é impossível controlá-lo. Mas é duro de roer e nissoincentivei-o para não deixar que ninguém se aproveite dele, para que sejadesembaraçado. E é. Está bem preparado para lutar contra tudo o que se lhe apresentarpela frente, não é verdade?

– Podemos ver o quarto dele?– É só subir a escada, é a porta em frente.Zeke fica sentado à mesa, enquanto Malin sobe a escada.O quarto tem o cheiro característico de um ambiente fechado. Solidão. Cartazes de

skateboard. Estrelas de hip-hop. Tupac, Outkast.A cama bem feita, a alcatifa de um tom azul-claro. Paredes pintadas também de azul-

claro. Uma escrivaninha com gavetas que Malin abre. Algumas canetas, papel, umbloco sem anotações.

Malin olha para debaixo da cama. Nada. Apenas algum cotão nos cantos.Um lugar para dormir.E Malin pensa como é bom saber que Tove não conheceu um rapaz como Joakim

Svensson. Que o filho do médico é um verdadeiro sonho, comparado com aquelebrutamontes.

A casa seguinte, pertence a outro mundo. Apesar de estar apenas a uns quinhentosmetros de distância do apartamento de Margaretha Svensson.

Uma vivenda grande, com telhado lajeado, construída na década de 1970, garagempara dois carros, situada exactamente à beira de uma encosta que dá para o canal Gota.

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Uma vivenda muito bem dimensionada, junto de uma praça com parque infantil, um jipeSubaru preto estacionado na rua, ao lado de alguns arbustos.

O dedo de Malin toca a campainha, de um modelo preto-e-branco bem popular. Onome escrito num cartão, numa bela caligrafia, dentro de uma caixa de plástico, porbaixo do espaço preto onde está localizada a campainha.

Tedensjö.Já escureceu e o frio persiste. A noite chega a Ljungsbro e com ela uma temperatura

cada vez mais negativa.Joakim Svensson e Magnus Tedensjö estavam sozinhos no apartamento entre as sete e

as onze e meia da noite. Como é que podem ter a certeza de que os dois estiveram lá?Que os dois não deram uma escapadinha para fazer uma traquinice? Que não saírampara fazer mal a Bengt Andersson nesse período de tempo? Será que, entretanto, openduraram na árvore? Ou será ainda que Joakim Svensson saiu depois de a mãechegar a casa?

Nada é impossível, pensa Malin. E quem sabe se não ficaram os dois a ver os filmespara se inspirarem? Talvez tudo não tenha passado de uma travessura de doisadolescentes, uma travessura que saíu dos eixos?

Henrietta Tedensjö abre a porta de par em par.Nada de um entreabrir hesitante.– São da polícia, não são?Uma grande cabeleira ruiva, olhos verdes, feições delicadas. Uma camisa branca,

elegante, calças azul-escuras, mulher de uns quarenta e cincos anos que sabe enfrentartodas as situações.

– Aquele carro é seu? – Pergunta Malin. – Aquele, ao pé da garagem?– É sim. Bonito, não é?Henrietta Tedensjö dirige-se para dentro de casa à frente deles, faz um gesto para

indicar onde devem deixar os casacões almofadados, na parte mais interior do hall deentrada. Assim que se desembaraça do seu casacão, Malin repara que a anfitriã já seadiantou e entrou numa sala de estar com dois sofás brancos de couro, um de cada ladode uma mesa de centro cujos pés são grossas patas de leão de mármore vermelho.

Henrietta Tedensjö senta-se no sofá mais pequeno e aguarda os dois visitantes.No chão, um tapete chinês cor-de-rosa. Na parede, por detrás do sofá maior, uma

pintura em tons alaranjados, representando um pôr do Sol. Pela janela, vê-se umapiscina cheia de neve, iluminada por um holofote. E Malin pensa como deve seragradável dar um mergulho pela manhã na época quente de Verão.

– Por favor, sentem-se.

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Malin e Zeke sentam-se um ao lado do outro no sofá maior, afundando-se nasuavidade das almofadas, sentindo-se quase a desaparecer. Malin repara que sobre amesa há uma bandeja de madeira trabalhada cheia de maçãs esverdeadas, importadas.

– Presumo que a reitora da escola também lhe terá telefonado – pergunta Zeke.– Sim – confirma Henrietta Tedensjö.E, depois, as mesmas perguntas feitas a Margaretha Svensson.E praticamente as mesmas respostas.Os olhos verdes de Henrietta Tedensjö fixam-se na piscina lá fora, quando

acrescenta:– Eu desisti de Magnus há muito tempo. Ele é impossível, mas desde que se mantenha

dentro das normas da lei, poderá fazer o que quiser. Tem um quarto na cave, comacesso directo à rua. Pode entrar e sair quando quer. E se me perguntarem se eleperseguiu Bengt Andersson, eu vou responder que sim, que certamente fez isso. E aarma? Nada é impossível. Ele deixou de me ouvir aos nove anos. Chamava-me de«vaca velha», sempre que não obtinha aquilo que queria. Por fim, desisti de tentar.Actualmente, vem a casa para comer. Nada mais do que isso. E eu também faço o quequero. Estou filiada no Lions e num clube de jazz, na cidade.

Henrietta Tedensjö faz uma pausa, fica em silêncio, como se já tivesse dito tudoaquilo que queria dizer.

– Presumo que queiram ver o quarto dele?Ela levanta-se e encaminha-se para a escada que dá acesso à cave.Eles seguem-lhe os passos.Na cave, passam por uma lavandaria, por uma outra sala com sauna e com jacuzzi,

antes de pararem diante de uma porta.– É aqui o quarto dele.Ela afasta-se e deixa-os passar.Deixa que Zeke abra a porta.O quarto está desarrumado, uma cama enorme por fazer, estranhamente colocada no

meio do quarto, roupas atiradas ao acaso pelo chão de pedra, entre revistas, caixas debiscoitos e latas vazias de refrigerantes. As paredes brancas estão vazias e Malinverifica que a luz que entra pela janela é muito pouca.

– Acreditem ou não mas é aqui que ele gosta de estar – diz Henrietta Tedensjö.Procuram nas gavetas da única cómoda existente no quarto, reviram as roupas e os

papéis no chão.– Nada de mais por aqui – diz Zeke. – Sabe onde Magnus está agora?– Não faço a menor ideia. Andam por aí, algures, ele e Jocke. São como irmãos, os

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dois.– E o pai de Magnus? Será que é possível falar com ele?– Trabalha numa plataforma petrolífera no mar do Norte. Perto de Narvik, na

Noruega. Passa três semanas lá e duas em casa.– Deve sentir-se muito só – pergunta Zeke, ao fechar a porta do quarto de Magnus

Tedensjö.– Nem por isso – responde Henrietta Tedensjö. – Para nós, até é bom. Não temos

muito tempo para nos chatearmos um ao outro. Além disso, ele ganha muito bem.– Ele tem telemóvel lá onde trabalha?– Não, mas podemos telefonar para a plataforma em caso de emergência.– Quando é que ele regressa a casa?– Sábado de manhã. No comboio que vem de Oslo. Mas podem telefonar para a

plataforma, caso tenham pressa em falar com ele.

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CAPÍTULO 12

UMA VOZ NO OUTRO LADO DA LIGAÇÃO. Os ruídos fazem com que o norueguês se torneincompreensível, quase fantástico, enquanto Zeke saía da entrada da garagem dafamília Tedensjö.

– Sim, olá. Sim, é a extensão de Göran Tedensjö. Sim, ele estava aqui há pouco maisde uma semana. Terminou o turno na última terça-feira e não se espera que volte senãodaqui a duas semanas. Estou a ouvir muito mal, muito… Onde é que ele está? Emcasa… Quer dizer, raios, em casa, não… Não sei… Ele trabalha duas semanas edescansa três.

– Com os diabos! – exclama Malin, ao desligar. – O pai Tedensjö não está naplataforma. Saiu de lá há mais de uma semana.

– Ao que parece, Henrietta não sabia disso – diz Zeke. – E tu, o que achas que issosignifica?

– Pode significar uma quantidade enorme de coisas desagradáveis. Que estava emcasa na semana passada quando Bengt Andersson foi assassinado, e que pode terajudado os rapazes se eles de alguma forma foram longe demais nas suas travessurascontra Bengt Andersson. Ou, então, está a enganar a mulher e tem uma amante, ou entãoestá com um problema muito pior noutro sítio qualquer. Ou, simplesmente, resolveufazer umas pequenas férias sozinho.

– É no sábado que ele é esperado em casa?– Sim.– Vai ser difícil entrar em contacto com ele, antes disso. Achas que Henrietta está a

mentir? Que ela faz o papel de ignorante? Para defendê-los, a ele e ao filho?– Penso que não – responde Malin. – Não me pareceu…– Então, Fors, é melhor deixar os Tedensjö de lado. Vamos antes enfrentar o frio e

dar uma olhadela na cabana dos Murvall, na floresta. Podemos continuar nestadirecção.

Tanto faz, pensa Malin. Depois, fecha os olhos, descansa, e deixa as imagens irem evirem na sua cabeça como e quando quiserem.

Tove no sofá em casa.Daniel Högfeldt de tronco nu.Janne na foto ao lado da cama.E, então, a imagem que permanece em fundo, por detrás de todas as outras, que se

cola ao consciente, uma imagem impossível de descartar, a de Maria Murvall, deitadana cama num quarto de hospital. Maria Murvall entre os ramos negros e nus das

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árvores, numa noite húmida, brutal.

Os faróis do carro iluminam o caminho na floresta, as árvores em volta parecemfiguras aterrorizadoras e as cabanas desertas, com os seus contornos escuros, fazemsonhar com dias amenos à beira dos lagos. Mas agora apenas a imagem do frio, com asua tonalidade cinzenta, mais ou menos clara, conforme o luar consegue ou nãoatravessar a camada de nuvens.

A descrição de Elias Murvall, antes, em casa da mãe:– Em Hultsjön, depois de Ljungsbro, segue-se em direcção a Olstorp, passa-se pelo

campo de golfe e entra-se na Tjällmovägen. Cinco quilómetros à frente chega-se aolago, o caminho para as cabanas está limpo de neve. Depois, é preciso andar. Vai serfácil. Mas não vão encontrar lá nada.

Antes disso, Jakob Murvall começa a tagarelar de repente, como se a mãe tivessecarregado num botão onde está escrito «falar». Começa a contar como organizavam ascaçadas ilegais, como vendiam a carne, como montavam as armadilhas para os veadose como os milionários russos ficavam malucos diante dessas armadilhas.

– Vamos lá esta noite. Ainda hoje. Sjöman vai ter de arranjar o mandado de busca eapreensão.

Zeke ainda hesita.– Será que não podemos esperar até amanhã? Os irmãos vão ficar presos. Nada

podem fazer.– Agora.– Mas eu vou ter o ensaio de coro esta noite, Fors.– O quê?– ok, ok, Malin. Mas antes vamos ouvir os pais de Joakim Svensson e de Magnus

Tedensjö. – Desta vez, a sua voz rouca denotava a certeza de que iria sofrer asconsequências durante meses, caso insistisse em pôr um ensaio do coro Da Capo àfrente da investigação de uma pista recém-descoberta.

O mandado foi conseguido, Sven Sjöman telefonou e confirmou. E, nesse momento,Zeke mantinha as mãos no volante e guiava, enquanto um grupo coral dirigido por KjellLönnå cantava Swing it, professor, alto e bom som. Essa era a canção certa, a condiçãonecessária para chegar até à cabana. Zeke tinha de dominar o carro no gelo que à noitese formava no caminho. O motor sempre controlado pela caixa de velocidades paraevitar derrapagens. O dique, bem branco à beira da estrada, era sempre uma ameaça,enquanto Malin ficava a perscrutar a escuridão, atenta ao menor sinal de olhos deveados, de alces ou cervos, prontos a atravessar a estrada precisamente no momento

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em que o carro passava. Poucas pessoas sabiam conduzir como Zeke, não com airreverente autoconfiança dos pilotos profissionais, mas com a cautelosa devoção dequem quer chegar ao seu destino.

Contornam o lago. E podem perceber que a água congelada se estende ao interior dafloresta formando uma espécie de rio que penetra directamente no coração da noite eda escuridão.

O relógio no painel de instrumentos indica 10h34. Uma hora imprópria para esse tipode trabalho.

Tove em casa, acaba por não ir ao encontro de Markus: «Aqueci os restos doguisado. Está tudo bem, mãe.»

– Assim que a situação aqui no trabalho ficar mais calma, vamos fazer qualquer coisade divertido, está bem?

Divertido? Malin pensa no que seria divertido, no momento em que vê crescer àfrente uma parede de neve no final da estrada. Vê também uma fenda na parede, feitapor alguém. E vê os reflexos nas árvores, que, de certas perspectivas, fazem lembrarestrelas.

Na tua opinião, Tove, o que é divertido? Era tudo mais fácil quando eras pequena.Nadar na piscina municipal, era o que costumávamos fazer. E ir ao cinema é uma coisaque queres fazer com os outros. Gostas de ir às compras, mas não como umaobstinação maníaca como acontece com muitas outras miúdas na tua idade. Talvezpossamos ir a Estocolmo assistir a um concerto. Essa é uma boa opção. Já falámosmuito nisso, mas nunca chegámos a ir. Visitar a Feira do Livro em Gotemburgo? Isso éno Outono.

– Deve ser aqui – diz Zeke ao desligar o motor. – Esperemos que a caminhada nãoseja muito longa. Acho que esta noite ainda está mais frio.

A geografia do mal.Qual é o seu aspecto? A sua topografia?Não foi muito longe daqui que se encontraram as pistas da violência cometida contra

Maria Murvall, cinco quilómetros a oeste. Nenhum dos irmãos sabia o que ela estava afazer na floresta e na altura também ninguém falou sobre a existência da cabana. Acabana pertence ao agricultor Kvarnström que a emprestou gratuitamente aos irmãos,por razões que ninguém quer explicar.

– Nós mantemo-la em condições de habitabilidade, nada mais.Maria na floresta.Estraçalhada por dentro.

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Noite fria de Outono.O Apanha Bolas na árvore.Gelo nos prados.Ramos de árvores como serpentes, folhas e cogumelos apodrecidos como aranhas e

ainda os vermes por baixo da terra, espinhos afiados que cortam as solas dos teus pés.Quem é que está pendurado ali na árvore? Morcegos, mochos, um mal desconhecido?

Será a geografia do mal composta por picos de montanhas e vales profundos?Florestas em crescimento. Uma mulher, com a roupa rasgada e suja, que se arrasta porum trilho deserto na floresta, ao amanhecer.

Há animais aqui na floresta?Malin pensa em tudo isto enquanto ela e Zeke avançam sobre a neve, a caminho da

cabana dos irmãos Murvall. Perscrutam as árvores com as lanternas de bolso, a luzcausa reflexos cintilantes, devolve a vida aos troncos escuros, provoca vibrações nosilêncio quase total da noite. E faz com que os cristais de neve cintilem no chão comoincontáveis olhos de lemingues, olhos de roedores que funcionam como faróis,ajudando a encontrar o caminho para o desconhecido.

– How far, Fors? Estão no mínimo quinze graus negativos, mas o suor já me escorrepela cara.

Zeke vai à frente, avança por cima da neve. Ninguém esteve ali depois do últimonevão, embora existam pistas a seguir. De trenós a motor pelas áreas laterais.

Os animais, pensa Malin. Deve ser assim que eles transportam os animais. Comtrenós a motor.

– Que canseira – diz Malin, para incutir coragem a Zeke com o seu sofrimentosolidário. – Até aqui já fizemos pelo menos um quilómetro a enterrar os pés na neve acada passo.

– Qual era a distância?– Eles não quiseram dizer.Param um ao lado do outro, respiram fundo em silêncio.– Talvez devêssemos ter esperado até amanhã, não? – Comenta Malin.– Agora, vamos continuar – reage Zeke.Após trinta minutos a lutar contra a neve e o frio abre-se uma clareira na floresta, e

mais à frente, no meio de um bosque, uma cabana, certamente com várias centenas deanos de existência e neve até às fendas que servem de janelas.

Dirigem as faixas de luz das lanternas em direcção à cabana. Formam-se longassombras e as árvores constituem uma espécie de pano de fundo de tonalidades escuras,em contraste com o telhado branco coberto de neve.

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– Vamos entrar – diz Zeke.A chave está onde os irmãos indicaram, pendurada num gancho por baixo do beiral

do telhado. Quando rodam a chave na porta, a fechadura chia.– Aqui, não deve haver electricidade – diz Zeke ao empurrar a porta. – Não vale a

pena procurar interruptores.A luz dança através da sala vazia e gelada. Bonito e bem arranjado, pensa Malin.

Tapetes de retalhos no chão, um fogão a petróleo em cima de uma bancada simples demadeira, uma mesa de acampamento no meio da sala, quatro cadeiras, velas, nenhumalanterna e três camas de casal ao longo da parede sem janelas.

Malin dirige-se à mesa.O tampo está manchado de óleo.– Óleo de armas – diz ela, enquanto Zeke faz um grunhido de concordância.Num aparador, ao lado da bancada, vêem-se latas de conserva com sopas de ervilhas,

ravioli, almôndegas. E numa caixa, ao lado, garrafas de aguardente.– De certa forma, é muito estranho. Isto aqui faz lembrar um vestiário – diz Zeke.– É verdade. Tudo muito neutro, muito frio, impessoal.– O que é que esperavas, Fors? Eles indicaram-nos o caminho para aqui, na certeza

de que não encontraríamos nada.– Não sei. É apenas um pressentimento.Uma sala sem alma, sem sentimentos.O que existe para além disso?Se os elementos da família Murvall, lá bem no fundo, só têm maldade no coração,

então, quais os crimes que cometeram?Nesse momento, Zeke pára, fica atento. Malin vira-se e vê que ele leva a mão

enluvada à boca. Depois, aponta para a porta e faz sinal de que ouviu alguma coisa láfora. Ambos tapam a luz das lanternas de bolso com a mão.

A escuridão é total.– Ouviste alguma coisa? – Sussurra Malin.Zeke pede silêncio e ficam ambos quietos, a escutar. Há um som arrastado em

direcção a eles. Um animal a esgueirar-se? Um animal ferido? A deslizar para aclareira? De repente, apenas silêncio outra vez. O animal parou? Os irmãos Murvallestão na cadeia. A velhota? Não aqui, nem agora. Será que ela tem várias encarnações?Rapazes? Mas o que viriam eles fazer aqui?

Malin e Zeke vão pé ante pé até à porta ainda aberta, passam para fora, cada um parao seu lado, e nessa altura o ruído recomeça e os dois começam a correr em frente, comas lanternas a apontar também para a frente, para o lugar de onde vem o ruído.

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Alguém, uma sombra negra balança, agora cada vez mais longe, desce na direcção dafloresta e desaparece. Um movimento compassado, um ser humano?

Uma mulher?Um adolescente? Dois rapazes?– Pare, pare aí! – grita Zeke.Malin também corre, persegue a figura negra pela pista deixada, mas, ao correr, as

suas botas afundam-se na neve. Desequilibra-se, cai, levanta-se, corre, cai novamente,levanta-se e grita:

– Pare! Pare já! Volte aqui!A voz de Zeke, ameaçadora:– Pare, ou atiro!Malin vira-se e vê Zeke na entrada da casa a apontar a arma, a fazer pontaria no

escuro, no vazio da noite.– Não vale a pena – diz Malin. – Seja o que for que esteve aqui, já vai muito longe.Zeke baixa a arma. Concorda.– E veio de esquis – diz ele, apontando a luz da lanterna para duas faixas prensadas

na neve.

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CAPÍTULO 13

SEXTA-FEIRA, 10 DE FEVEREIRO

MALIN LEVA TOVE AO COLO.

Quanto é que pesas agora?Quarenta e cinco quilos?Por sorte, a mãe continua a ir ao ginásio de vez em quando, não é verdade?As pernas ainda lhe doem, mas o calor, de qualquer maneira, já começa a voltar aos

pés.Seguem a pista durante dois quilómetros. Nesse período de tempo cai uma tempestade

sobre a floresta, perto de Hultsjön, e quando chegam ao final, a pista está praticamentecamuflada debaixo de uma camada de flocos brancos. A pista termina numa pequenaestrada vicinal e não se consegue saber se havia ou não um veículo ali estacionado, àespera. Não há sinal de óleo no terreno. As marcas dos pneus teriam sido cobertas pelaneve.

– Engolido pela floresta – diz Zeke que, depois, determina a sua posição através dotelemóvel.

– São apenas dois quilómetros e meio. É mais rápido alcançarmos o nosso carro doque pedir ao departamento para mandar outro.

Tove dorme no sofá quando Malin chega. O televisor ligado passa um filme. Malinainda pensa em acordá-la para que fosse para a cama pelo seu pé.

Mas, depois, ao ver o corpo dela estendido no sofá, um corpo longo e magro, grandepara a sua idade, os cabelos finos e loiros contra a almofada, os olhos fechados, a bocaa denotar tranquilidade, Malin quer sentir o peso da filha nos braços, o peso do amorbem vivo.

Mas teve de reunir todas as suas forças para levantar o corpo. Pensa que Tove iráacordar, mas, afinal, lá está ela na sala de estar do apartamento, na sala escura esilenciosa, com a filha ao colo. Depois, dirige-se ao quarto, abre a porta com o pé ecoloca-a directamente na cama.

Porém, neste processo, Malin perde o equilíbrio sob o peso daquele fardodescontraído, sente o calor do corpo da filha deslizar-lhe dos braços e cair com umestrondo seco e surdo em cima do colchão.

Tove abre logo os olhos.– Mãe?

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– Sim?– O que estás a fazer?– Trouxe-te para a cama.– Ah, sim… – Depois, volta a fechar os olhos e adormece.Malin dirige-se à cozinha. Aproxima-se do lava-louça e olha para o frigorífico que

pisca no escuro e parece cansado de trabalhar.Quanto pesavas, Tove?Três mil duzentas e cinquenta e quatro gramas.Quatro quilos, cinco, e assim por diante. Por cada quilo a mais no corpo, menos

dependência, menos criança, mais adulta.Talvez tenha sido a última vez na vida que peguei nela ao colo, pensa Malin, ao

mesmo tempo que fecha os olhos e ouve os últimos ruídos da noite.

É em sonhos que o telefone está a tocar? ou é aqui, no quarto, na realidade?De qualquer forma, o telefone está mesmo a tocar. Malin estende o braço para a

mesinha-de-cabeceira, no lugar de sempre, e pega no auscultador, ainda vacilante, nafronteira entre a sonolência e o alerta, onde tudo pode acontecer, onde por algunsmomentos nenhuns pressupostos podem ser dados como certos.

– Malin Fors.Consegue pronunciar o seu nome de forma decidida, mas a voz está rouca, muito

rouca.O passeio nocturno deixa as suas marcas na garganta, mas, de resto, sente-se inteira, o

corpo restabelecido, a cabeça também.– Acordei-te, Malin? – Reconhece a voz, mas ainda não consegue saber em quem

colocá-la. Quem? Devo ouvir esta voz com frequência, mas não ao telefone. – Malin,estás mesmo aí? Estou a ligar-te entre duas músicas e não tenho muito tempo.

A locutora. Helen.– Estou, sim. Acordei agora.– Então, vou directa ao assunto. Lembras-te da nossa conversa, quando me telefonaste

a respeito dos irmãos Murvall? Esqueci-me de mencionar algo que talvez queirassaber. Li nos jornais da manhã de hoje que os três irmãos estão na cadeia. Não ficouabsolutamente claro se foi por causa do homicídio ou não, mas foi então que melembrei: há um quarto irmão, aliás, um meio-irmão dos outros três, acho eu. Ele era umpouco mais velho, um verdadeiro eremita. O pai era um marinheiro que morreuafogado. Lembro-me ainda de que os outros irmãos viviam juntos, mas ele, não.

Um quarto irmão, um meio-irmão.

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Silêncio total.– Sabes como se chama?– Não faço a menor ideia. Como disse, era um pouco mais velho. E é por isso que me

lembro de que não convivia com os irmãos. Raramente era visto. E já lá vai muitotempo. Talvez nem eu tenha a certeza. Talvez tenha confundido tudo.

– Isso foi uma grande ajuda – diz Malin. – O que é que eu poderia fazer sem ti? Estána hora de nos encontrarmos novamente para beber uma cerveja, não?

– Seria óptimo, Malin, mas quando? Parece que trabalhamos de mais.Desligam. Malin ouve Tove na cozinha. Levanta-se da cama e vai ter com ela. De

repente, sente uma imensa saudade da filha.

***

Tove à mesa da cozinha serve-se de iogurte, lê o Correspondenten.– Esses irmãos, mãe, parecem ser realmente malucos – diz ela, franzindo a testa. –

Foram mesmo eles que fizeram aquilo?Preto ou branco, pensa Malin.Fizeram ou não fizeram.De certa maneira, Tove tem razão. Parece tudo muito simples, mas, no entanto, é tudo

infinitamente mais complicado, difuso e multifacetado.– Ainda não sabemos.– Tá, tá, já sei. Mas mesmo assim vão ficar na cadeia por porte de armas e por caça

ilegal, não vão? E o sangue? Era mesmo só de animais, como esta médica diz aqui?– Ainda não sabemos. Estão a trabalhar nisso, no laboratório.– Aqui vem escrito que estiveram a interrogar uns adolescentes. Quem são?– Não posso dizer-te, Tove. Aliás, como foi a tua estada em casa do teu pai, aqui há

dias?– É… Eu já te contei tudo ao telefone, não te lembras?– O que é que fizeram?– Markus, o pai e eu, jantámos. Depois, ficámos a ver televisão, antes de irmos para a

cama e dormir.Malin sente um aperto no estômago.– Markus também estava lá?– Sim, também dormiu lá.– DORMIU LÁ?– Sim, mas cada um dormiu na sua cama, não na mesma. Espero que percebas isso.Tove e Janne falaram com ela de tarde. Nenhum deles mencionou a presença de

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Markus. Muito menos que ele dormiria lá em casa ou que jantaria com eles. Nem queJanne sabia da sua existência.

– Não sabia que o pai já conhecia o Markus.– Por que razão não deveria conhecer?– Disseste que ele não sabia de nada.– Mas agora sabe.– Porque é que ninguém me contou isso antes? Por que razão não me disseram nada?Até Malin reconhece que as suas palavras são ridículas.– Podias ter perguntado – responde Tove.Malin abana a cabeça.– Mãe – exclama Tove. – Às vezes, és incrivelmente infantil.

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CAPÍTULO 14

– HÁ MAIS UM IRMÃO.

Johan Jakobsson acena da sua mesa com um papel na mão, assim que vê Malin entrarna sala do departamento de investigação criminal. A conversa com Janne ao telemóvelainda continua a rodar na cabeça dela.

– Podias ter dito que Markus iria dormir na tua casa.Janne está ainda sonolento. Tinha acabado de adormecer depois do seu turno da noite.

Mas responde de forma clara e sem rodeios:– Aquilo que acontece na minha casa, Malin, é problema meu. E se não sabes como

controlar melhor a Tove e admites que ela te esconde certas coisas, talvez esteja nahora de meditares um pouco mais sobre as tuas prioridades na vida.

– Lições de moral, agora?– Vou desligar, quero dormir, ouviste?– Queres dizer com isso que a responsabilidade é da Tove e não tua?– Não, Malin. A responsabilidade é TUA, mas tu ainda tentas responsabilizar a Tove.

Adeus. Volta a telefonar quando estiveres mais calma.– Registo de nascimento – grita Johan. – Recebi uma cópia do registo de nascimento e

aqui está escrito que Rakel Murvall teve quatro filhos homens. E o primeiro a nascerfoi Karl Murvall. Deve ser um meio-irmão. No registo, está escrito que é filho de paiincógnito. O nome dele está na lista telefónica. Mora na Tanneforsvägen.

– Já sei – diz Malin. – Vamos ter de ouvi-lo o mais depressa possível.– Reunião dentro de três minutos – grita Johan, apontando para a porta da sala de

reuniões.Malin está a pensar se hoje as crianças vão brincar lá fora. Espera que sim. Afinal,

parece que o frio abrandou um pouco?

Nenhuma criança a brincar no parque da creche. Apenas baloiços, paredes paraescalar, caixas de areia e escorregas. Tudo vazio.

Karim Akbar comparece à reunião. Está impecavelmente bem vestido com um fatocinzento e sentado numa das pontas da mesa, ao lado de Sven Sjöman.

– Até agora nada, a não ser sangue de alces e veados – diz Sven Sjöman –, mas olaboratório continua a trabalhar intensamente no caso. Até chegarmos a uma conclusão,vamos manter todas as portas abertas em relação aos irmãos Murvall. Se nãoconseguirmos mais nada, já desenterrámos um pouco de merda…

– As metralhadoras e a granada de mão não são de desprezar – comenta Börje Svärd.

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– A propósito de armas – diz Sven. – Segundo os armeiros do SKI, nenhuma dasarmas encontradas em casa dos Murvall poderia ter sido usada para disparar balas deborracha contra o apartamento de Bengt Andersson.

– As metralhadoras e as granadas de mão podem não ser de desprezar, mas tambémnão constituem o nosso objectivo principal – diz Karim.

– A questão agora é saber quem é que vocês viram lá na floresta – diz Sven.– Não sabemos – responde Malin.– Quem quer que seja, tem que ver com esta nossa investigação – acrescenta Zeke.– Johan, conta o que sabes sobre esse quarto irmão – diz Sven.Enquanto Johan fala, o grupo na mesa fica em silêncio.As perguntas ficam a pairar no ar até que Zeke diz:– Nenhum dos membros da família Murvall mencionou, uma vez que fosse, a

existência desse meio-irmão. Será que ele cresceu com os outros?– Parece que sim – afirma Malin. – Helen acha que sim.– Talvez ele se tenha afastado – comenta Johan.– Podia querer ter uma vida diferente da que os outros levavam – acrescenta Börje.– Alguém sabe mais alguma coisa sobre esse tal Karl Murvall? – pergunta Karim. –

Sabemos, por exemplo, onde é que ele trabalha?– Ainda não – responde Malin. – Mas vamos saber isso ainda hoje, durante o dia.– Podemos até perguntar aos irmãos Murvall e à mãe, sempre tão amistosa –

acrescenta Zeke, fazendo uma careta.– Eu posso fazer uma tentativa – diz Sven, soltando uma gargalhada.– E a respeito da pista ASA? – Pergunta Karim, lançando um olhar inquisidor na

direcção do grupo de investigadores. – Considerando a cena do crime, não podemosdeixar de considerar essa hipótese.

– Sinceramente – diz Johan – temos estado ocupados com outros factos. Mas é claroque vamos continuar a investigar essa pista.

– Continuem, então. Façam o máximo possível – diz Sven. – Malin e Zeke, como éque correram as conversas com os pais de Joakim Svensson e Magnus Tedensjö?

– Com as mães deles – corrige Malin. – O pai de Joakim já morreu e Göran Tedensjötrabalha numa plataforma petrolífera, ao largo da Noruega. Na realidade, nãoconseguimos muitas informações novas. Continuamos sem obter um álibi claro arespeito de onde os rapazes estiveram na noite de quarta-feira. E também não se sabeonde o pai Tedensjö se encontra de momento.

– Sem respostas claras? – Pergunta Sven. – Sabes como eu adoro essas incertezas.Então, Malin explica porque é que o álibi dos rapazes ainda não foi confirmado.

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Ficaram os dois sozinhos num apartamento a ver filmes. E quanto a Göran Tedensjö, amulher acredita que ele está na plataforma, mas de lá informaram que, tanto quantosabiam, já tinha regressado a casa.

– De qualquer forma, é esperado em casa amanhã de manhã. Pensamos ir falar comele, então.

– E quanto ao namorado de Margaretha Svensson? Tem alguma coisa a dizer sobre ocomportamento do enteado?

– Vamos ouvir Niklas Nyrén ainda hoje. Ontem demos prioridade à investigação nacabana da família Murvall.

– Muito bem. Mas agora dêem prioridade ao quarto irmão Murvall. Eu vou tentarouvir a família – diz Sven.

– Ah, sim, Karl? Ele mudou-se para a cidade.É a voz de Rakel Murvall ao telefone.Mudou-se para a cidade? Trata-se apenas de uma pequena distância, nem cinco

quilómetros, mas ela falou como se fosse um lugar do outro lado do planeta, pensaSven Sjöman.

– Não tenho mais nada a dizer – afirma Rakel Murvall. E desliga.

– É aqui – diz Zeke, ao estacionar o carro diante de uma elegante casa de três andaresna Tanneforsvägen, perto da fábrica Saab. A casa deve ter sido construída, certamente,na década de 1940, quando a empresa sueca, fabricante de automóveis e de centenas decaças de combate, teve a sua grande expansão. No andar térreo da casa, uma pizariapromete capricciosas a trinta e nove coroas, cerca de quatro dólares, a unidade. E aloja do ICA, em frente, tem uma promoção de Café Clássico. A montra da pizaria exibeo seu nome a amarelo, um nome que Malin mal consegue pronunciar.

Correm os dois pelo passeio largo, apressados, a fugir do frio. Empurram o portãoque dá para a escada. E lêem na placa: terceiro andar, Andersson, Rydgren, Murvall.

Sem elevador.No patamar do segundo andar, Malin sente que o coração começa a bater acelerado e

que começa a ter falta de ar. Ao chegar ao terceiro está cansada, quase não conseguerespirar. Zeke respira fundo ao seu lado.

– É sempre uma surpresa – diz ele, expirando fortemente – quando se trata de subirescadas a pé.

– É. A neve de ontem foi uma brincadeira se comparada com esta escada aqui.Murvall.Tocam à campainha, ouvem o sinal por detrás da porta. Mas o silêncio é total dentro

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do que parece ser um apartamento vazio. Tocam outra vez, mas ninguém vem abrir.– Deve estar a trabalhar – diz Zeke.– Vamos bater à porta do vizinho?Rydgren.Após dois toques, aparece um homem já idoso, de nariz grande e olhos caídos, que

olha para os dois desconfiado e diz:– Não estou interessado.Malin mostra o distintivo da polícia.– Queremos falar com Karl Murvall. Não está em casa. O senhor sabe, por acaso,

onde ele trabalha?– Eu não sei nada disso.O homem ainda aguarda um pouco.– O senhor sabe…– Não.E fecha a porta.No prédio, só se encontra mais uma pessoa em casa, uma senhora idosa que pensa que

eles pertencem à assistência ao domicílio e que estão ali para lhe entregar o jantar.

Um a um, os irmãos saem das suas celas e tomam lugar na sala de interrogatórios pararesponder às questões apresentadas por Sven Sjöman:

– Eu não tenho nenhum irmão chamado Karl – responde Adam Murvall, enquantopassa a mão pela testa. – O senhor poderá dizer que somos parentes e, de acordo com asua maneira de ver as coisas, é verdade, mas esse não é o meu conceito. Ele escolheu oseu caminho. Nós, o nosso.

– Sabe onde ele trabalha?– Não sou obrigado a responder, não é verdade?

– O que é que achas, Malin? Podemos esperar na pizaria em frente e almoçar. E verse ele vem comer a casa.

Ainda estão fora do carro, Zeke procura as chaves e, ao mesmo tempo, conversam.– Há muito tempo que não como uma piza.– Não tenho nada contra. E talvez eles saibam onde ele trabalha.Dentro da pizaria cheira a orégãos secos e a fermento. Nada das habituais paredes

forradas a papel. Em vez disso, tecidos em cores vivas, rosa e verde. Cadeiras deestilo Bauhaus à volta de mesas de madeira, carvalho lacado. Um homem moreno, demãos extraordinariamente limpas, recebe os pedidos.

Será que é o dono? Não é segredo que os imigrantes são obrigados a abrir as suas

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próprias empresas para sobreviverem. O que diria Karim a respeito dele? Diria,certamente, que é um bom exemplo. Um ser humano que não deixa a outros a obrigaçãode o sustentarem. E que confia em si mesmo.

Devemos esperar que o ciclo continue. Os seus filhos, pensa Malin, se é que os tem,vão estar certamente entre os melhores alunos da universidade. Esperemos.

– O que desejam beber? Está incluído no preço do almoço.– Uma Cola – diz Malin.– O mesmo – confirma Zeke. E quando puxa da carteira para pagar, pega também no

seu distintivo.– Conhece Karl Murvall, que mora naquela casa?– Não – responde o dono da pizaria. – Não o conheço. Fez alguma tolice?– Não temos nenhuma razão para acreditar nisso – diz Zeke. – Queremos apenas falar

com ele.– Lamento.– A pizaria é sua? – Pergunta Malin.– Sim. Porquê?– Por nada. Imaginei que sim.Sentam-se os dois a uma mesa com vista para o portão de entrada. Cinco minutos

depois, colocam-lhes à frente duas pizas fumegantes, o queijo ralado derretido e omolho de tomate a formar pequenas bolhas por cima do fiambre e dos cogumelos.

– Bom apetite – deseja o pizzaiolo.– Delicioso – exclama Zeke.Enquanto comem, olham para a rua, para os carros que passam, para o fumo que sai

dos tubos de escape e cai pesadamente no asfalto.

O que poderá cavar um fosso entre pessoas do mesmo sangue? pensa Sven Sjöman.Acaba de ouvir Jakob Murvall. E as palavras dele ainda continuam a soar na sua

cabeça:– Ele vive a vida dele. Nós, a nossa.– Mas são irmãos.– Os irmãos nem sempre são irmãos, não é?O que leva pessoas que poderiam partilhar a alegria, que poderiam ajudar-se

mutuamente, a virar as costas? A ser, pelo contrário, uma espécie de inimigas.Podemos ter desavenças sobre dinheiro, sobre amor, sobre fé, sobre quase tudo. Masna família? Em família?

É uma e meia.

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A piza já está no estômago, a pesar como um bloco de cimento armado. E recostam-seambos nas cadeiras flexíveis, de verga.

– Ele não vem – diz Malin. – Vamos ter de voltar à noite.Zeke concorda.– Estou a pensar ir ao departamento para finalizar o relatório sobre o que aconteceu

ontem – diz ele. – Tu poderias ir até Ljungsbro e falar com o tal Niklas Nyrén, não?– ok. De qualquer modo, ainda tenho outras coisas que quero verificar – diz Malin.– Precisas de ajuda?– Posso fazer tudo sozinha.Zeke acena com a cabeça:– Como fizeste com Gottfrid Karlsson no lar de idosos?– Hum…Acenam ao dono da pizaria em sinal de agradecimento, antes de sair.– Nada má, a sua piza – diz Zeke.

Na melhor das hipóteses, Karl Murvall é uma pessoa desinteressante aos olhos dafamília. Pelo menos, isso é certo.

– Karl?Elias Murvall olha, resignado, para Sven Sjöman.– É melhor não falar desse parvalhão que se acha ridiculamente fino.– Ele fez alguma tolice?Elias Murvall parece reflectir, amaciar um pouco. Depois responde:– Ele sempre foi diferente, não é como nós.

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CAPÍTULO 15

A VISÃO DE MALIN TORNA-SE MAIS NÍTIDA, quando se aproxima da árvore no prado.Não quer acreditar no que vê.A árvore isolada no meio do prado não está sozinha. Uma carrinha, de caixa fechada,

está parada no caminho, em cima da neve, precisamente no lugar onde o corpo deBengt Andersson deve ter caído. E uma mulher, envolta num lençol branco – não, nãotem nada vestido! – ergue os braços para o céu, de olhos fechados.

E não os abre nem quando o carro de Malin se aproxima. A sua pele é mais branca doque a neve, os pêlos do púbis inacreditavelmente negros. Malin pára o carro e a mulhercontinua sem reagir.

Congelada?Morta?Em pé, corpo erecto. Mas Malin repara que o seu peito está a arfar ligeiramente, para

cima e para baixo. E que todo o corpo balança, em função do vento.Ao sair do carro, Malin sente que o solestício de Inverno abriu as suas portas, sente

como a força da natureza influencia os sentidos, como a natureza parece apagar oscorpos e encurtar a distância entre impressão, pensamento e acção. Uma mulher nua nomeio do prado. O caso fica cada vez mais descontrolado.

Ao fechar a porta do carro produz um estrondo enorme, mas é como se não fosse asua própria força que tivesse dado azo ao ruído.

A mulher deve estar gelada. Malin aproxima-se em silêncio.Aproxima-se, cada vez mais perto, até chegar a poucos metros da mulher, que

continua de olhos fechados, a respirar, com os braços levantados para o céu. O seurosto está completamente petrificado e os cabelos, negros como carvão, pendem pelascostas, numa longa trança.

O prado estende-se à sua volta, a perder de vista.Passou apenas pouco mais de uma semana desde que o corpo de Bengt Andersson foi

encontrado, mas o cordão de segurança da polícia que delimitava o espaço já caiu e aneve que veio depois não conseguiu esconder o lixo deixado pelos curiosos: beatas,garrafas, invólucros de biscoitos e rebuçados, embalagens de hambúrgueres.

– Olá – grita Malin.Nenhuma reacção.– Olá!Imobilidade total.Malin cansa-se da brincadeira, reconhece a mulher que está à sua frente, recorda-se

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das palavras de Börje Svärd ao contar o que ele e Johan Jakobsson viram durante avisita a Rickard Skoglöf.

Mas o que é que ela faz aqui?Malin tira a luva grossa de uma das mãos e aperta o nariz da mulher, um aperto forte,

por duas vezes. Enfim, a mulher estremece, salta para trás e grita.– Que raio está você a fazer?– Valkyria? Malin Fors, da polícia de Linköping. Eu é que pergunto: o que é que você

está a fazer aqui?– A meditar. E agora você perturbou-me antes de eu chegar ao final. Não percebe

como isso é irritante?De repente, é como se Valkyria Karlsson tomasse consciência do frio que está. Passa

por detrás de Malin e dirige-se para a carrinha. Malin segue-lhe os passos.– Porquê justamente aqui, Valkyria?– Porque foi aqui que o encontraram assassinado. Porque este lugar está cheio de uma

energia própria. Você mesma deve sentir isso.– De qualquer forma, é muito esquisito, não é, Valkyria? Tem de concordar.– Não. Não é nada esquisito – diz Valkyria Karlsson, ao mesmo tempo que envolve o

corpo nu num casacão de lã de carneiro e se senta na sua carrinha Peugeot.– Você e o seu amiguinho tiveram alguma coisa a ver com o que aconteceu aqui?Pergunta idiota, pensa Malin. Mas as perguntas idiotas, às vezes, também podem

provocar boas respostas.– Se tivéssemos, acha que eu lhe ia contar?Valkyria Karlsson fecha a porta da carrinha e Malin vê o fumo negro do motor elevar-

se para o céu, enquanto a carrinha desaparece, lentamente, no horizonte.

Malin vira-se para a árvore.A uns trinta e cinco metros.Obriga-se a esquecer a imagem nua de Valkyria. Voltará a ela mais tarde. Agora,

precisa de fazer o que se propôs.Estás aí, Bengt?Consegue lembrar-se do corpo, roxo e inchado, sozinho, a balançar ao vento.O que é que o grupo de curiosos que esteve aqui esperava ver?Um fantasma a balançar?Um cadáver? Sentir o cheiro pestilento da violência, da morte, tal como ela se

apresenta nos piores pesadelos?Turistas numa casa de horrores.

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Malin aproxima-se novamente da árvore. Deixa a pulsação abrandar, deixa de ouviros sons, deixa o dia desaparecer e ser substituído pelo que aconteceu aqui uma vez,tenta imaginar a cena na sua mente: um ser humano sem rosto que luta para empurrar umtrenó, um corpo acorrentado, os pés, as roldanas como luas negras contra um céuestrelado.

Malin está precisamente por baixo do ramo que se partiu e onde Valkyria estava ameditar momentos antes.

Alguém pôs um ramo de flores no chão, enfiou um cartão dentro de um saquinho deplástico e prendeu-o no meio das flores.

Malin levanta o ramo, já apodrecido e congelado, e lê:«Que vamos fazer agora, agora que ninguém vai buscar as nossas bolas?»Assinado: Equipa A do Ljungsbro IF.Agora é que vocês sentem a falta dele.Com a morte chega a gratidão. E depois da gratidão?Malin fecha os olhos.O que aconteceu, Bengt? Onde morreste? Porque morreste? Quem te odiava assim

tanto? Será que foi por ódio?

Por muito que eu grite, tu não me ouves. Por isso, agora, já nem tento, Malin Fors.Mas eu estou aqui, ao teu lado, a ouvir as tuas palavras e agradecido por todos osteus esforços, por todos os incómodos que te causei. Mas será que tudo isso,realmente, é necessário e importante?

Não tens nada melhor para fazer?O corpo nu e branco dela.Ela consegue tornar-se imune ao frio. Eu nunca consegui.Eu sei quem me odiava tanto.Mas seria, de facto, ódio?A tua pergunta tem fundamento.Será que era desespero? Solidão? Ou raiva? Ou curiosidade? Uma vítima? Um

erro?Ou talvez outra coisa, muito pior?Será que posso fazer ouvir as minhas palavras? Uma única e pequena palavra?

Nesse caso, gostaria que fosse esta:Trevas.As trevas que nascem numa alma que o olhar do outro nunca iluminou, que definha

e, por fim, tenta salvar-se.

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Malin balança com o vento, estica o corpo, quer alcançar o ramo caído da árvore,ainda arrumado junto do tronco, mas não consegue. Há sempre aquela distância entre oque ela quer e aquilo que consegue, uma distância que fica cada vez mais clara paraela.

Ainda nada terminou para ti. Ou para vocês. Não é verdade?Tu queres alguma coisa, ter alguma coisa. E demonstras isso dessa maneira.O que é que tu queres? O que é que vocês pretendem?O que podes tu, ou vocês, obter de um corpo nu, diante de uma árvore, num prado

fustigado pelo Inverno?O que se poderá desejar a esse ponto?

Defronte da imponente fachada amarela da fábrica Cloetta, o paraíso dos amantes dechocolates, do outro lado do parque, está situada uma fileira de casas, construídas nadécada de 1930, vivendas intercaladas com prédios brancos, de apartamentos paraalugar, onde cada um tem entrada e escada separadas, próprias.

Niklas Nyrén mora no prédio mais próximo da rua, no apartamento do meio, entredois outros.

Malin toca a campainha uma, duas, três vezes, mas ninguém abre a porta.

No carro, a caminho da árvore, tenta telefonar-lhe, tanto para o telemóvel como paracasa. Não teve resposta, mas ainda assim quis tentar e ver se ele estava em casa.

Não teve sorte.Não estava.Margaretha Svensson contou-lhe que ele trabalhava como caixeiro-viajante, a vender

biscoitos, como representante da fábrica Kakmästaren, pertencente à empresa Cloetta.Certamente está a viajar, a visitar clientes, pensa Malin. E tem o telemóvel desligado.Deixa uma mensagem no atendedor de chamadas:«Olá, aqui é Malin Fors, da polícia de Linköping. Preciso de lhe fazer umas

perguntas. Por favor, ligue-me com urgência para 070-3142022, assim que ouvir estamensagem.»

Na viagem de volta para a cidade, Malin ouve o programa da Rádio Suécia.Grande personalidade televisiva, Agneta Sjödin, escreveu mais um livro sobre um

guru da Índia que significou muito para ela.– Na sua companhia – diz Agneta Sjödin – tornei-me um ser humano melhor.

Encontrá-lo foi como abrir uma porta e conseguir entrar em mim mesma.O repórter, muito agressivo a julgar pela voz, escarnece de Agneta sem que ela

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perceba a armadilha.– E quem é que encontrou lá dentro desse espaço cheio de movimentações, Agneta? A

contrapartida indiana dos caracteres rúnicos?Depois, música.Diante de Malin, Linköping parece chorar o final de mais um dia em que a escuridão

chega mais cedo. Ao longo do horizonte, porém, o fulgor de uma luminosidade quente,a promessa de segurança, de um lugar mais seguro onde deixar as crianças crescer.

E existem lugares piores, cidades piores, pensa Malin. Aqui, em Linköping, a cidadeé suficientemente pequena para oferecer segurança a um nível aceitável. E, ao mesmotempo, suficientemente grande e desenvolvida para produzir uma sensação demundanidade.

Eu senti essa sensação. Pensava ficar em Estocolmo. Achava que, com o tempo, mehabituaria à sua grandeza. Mas para uma mãe, agente da polícia, sozinha, seria omelhor? Com os pais e o pai e os avós da filha a 100 quilómetros de distância, semamigos de verdade, seria?

Os armazéns da IKEA, da Babylândia, da Biltema, da BR de brinquedos. O cartaz daSkäggetorp. Luzes que acabam por se fixar na minha mente, luzes que, mesmo contra aminha vontade, acabam por me dar a sensação de estar em casa.

Malin e Zeke tocam à campainha do apartamento de Karl Murvall logo depois dassete horas da noite. Antes, no departamento, já contara a Johan Jakobsson e BörjeSvärd a sua visita ao local do crime onde encontrara Valkyria Karlsson a meditar nofrio.

Depois, telefona para Tove.– Hoje, também vou chegar tarde.– Posso chamar o Markus para vir aqui?– Claro. Se ele quiser.Preferia não ter de ficar, pensa Malin. Gostaria de ir para casa e encontrar de novo o

namorado da minha filha. Será que ele vai ter coragem de ir a nossa casa? A única vezque me viu foi no apartamento dos meus pais. Até que ponto, então, fui desagradável?Entretanto, Markus deve ter ouvido a versão de Janne sobre a minha personalidade.Aliás, que versão será essa?

Continua o silêncio dentro do apartamento de Karl Murvall. Este não tem registo detelemóvel para onde telefonar, nem atendedor de chamadas no telefone fixo em casa.

Sven Sjöman, a relatar os seus interrogatórios:– Eles chegam a negar quase por completo a sua existência. Seja lá qual for o motivo,

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as reacções provocadas no resto da família Murvall são as piores possíveis. Querdizer, qual o motivo que pode levar uma mãe a negar a existência de um filho? Isso vaicontra a natureza.

– Ele pode estar em qualquer lugar – diz Zeke, quando ainda estão no patamar daescada, junto da porta.

– De férias?Zeke abre os braços.– Sei lá!Viram-se e preparam-se para descer a escada quando ouvem o ruído do motor de um

carro que chega e estaciona em frente do portão.Malin inclina-se para a frente e procura ver quem é através de uma janela da escada.

É uma carrinha Volvo verde-escuro, com uma caixa para guardar esquis. Sob a luz darua, a caixa fica com uma cor rosa muito estranha. A porta do Volvo abre-se e sai de láum homem de cabelos ralos, de casacão escuro, que entra logo pelo portão da casa.

O portão fecha-se e o homem sobe rapidamente a escada. Não pára no primeiropatamar e chega ao segundo. Eles vêem-no e ele olha para cima, para eles, pára, fazmenção de retroceder, mas resolve continuar a subir.

– Karl Murvall? – Pergunta Zeke, mostrando o seu distintivo. – Somos da polícia deLinköping e gostaríamos de conversar um pouco consigo agora, se não tiver nadacontra.

O homem sorri.– Sou eu mesmo, Karl Murvall – repete ele. – Façam favor de esperar um pouco.Karl Murvall tem o mesmo nariz saliente dos seus meios-irmãos, mas o dele é mais

afilado.É um homem de estatura baixa, com uma barriga já proeminente. E toda a sua figura

parece querer, de certa forma, enfiar-se pelo chão, embora, ao mesmo tempo, exibauma força primitiva notável.

Karl Murvall mete a chave na fechadura e abre a porta do apartamento.– Li as notícias sobre os meus irmãos nos jornais – diz ele. – Já sabia que, mais cedo

ou mais tarde, viriam falar comigo.– Não podia ter tomado a iniciativa de vir ter connosco? – Pergunta Zeke. Mas Karl

Murvall parece não ligar às palavras pronunciadas. Em vez disso, simplesmente asorrir, convida:

– Façam favor de entrar.

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CAPÍTULO 16

O APARTAMENTO DE KARL MURVALL.

Duas divisões.Inquestionavelmente bonito. Mobilado com parcimónia.É parecido com o apartamento de Bengt Andersson, pensa Malin. Muito funcional,

com estante de livros, sofá e uma escrivaninha encostada à janela.Sem elementos decorativos, sem flores, sem ornamentos, nada que pudesse contrariar

a simplicidade do apartamento, o seu aspecto vazio, não contando com uma bandejacom maçãs amarelas e vermelhas em cima da escrivaninha.

Há livros sobre programação electrónica, matemática, Stephen King. A estante de umengenheiro.

– Café? – Pergunta Karl Murvall. Malin repara que ele tem a voz mais clara que a dosseus irmãos. E que, de certa forma, dá a impressão de maior equilíbrio, embora aomesmo tempo de ter um carácter forte. Como alguém que endureceu a ver e a ouvirquase tudo. Um pouco como Janne. Quando alguém se vangloria do seu comportamentocorajoso durante as férias na neve, há sempre uma mistura de desprezo e compaixão noseu olhar que parece querer dizer: «Felizes os que não sabem o que dizem.»

– Já é muito tarde para eu tomar café. Obrigado. – Diz Zeke. – Mas a inspectora Fors,certamente, vai aceitar.

– Com muito prazer.– Por favor, sentem-se.Karl Murvall aponta para o sofá e eles sentam-se. Ouvem-no a trabalhar na cozinha e,

depois, uns cinco minutos mais tarde, vêem-no regressar com uma bandeja com trêscanecas fumegantes.

– Trouxe uma terceira caneca, para o caso de… – diz Karl Murvall, ao colocar abandeja na mesa de centro e antes de se sentar na cadeira da escrivaninha.

– Bonito apartamento – comenta Malin.– E em que posso ajudar?– Esteve a trabalhar o dia inteiro?Karl Murvall confirma com um aceno.– Já me tinham procurado?– Sim – confirma Malin.– Estou com muito trabalho. Sou responsável por todos os instrumentos tecnológicos

das oficinas da Collins, em Vikingstad. Trezentos e cinquenta empregados emactividades cada vez mais computorizadas.

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– Um bom emprego.– É verdade. Estudei informática na universidade e foi isso que me levou a estas

funções.– Com um emprego desses, podia ter um apartamento maior – diz Malin.– Não estou muito interessado em coisas materiais. Não preciso de ter muito mais. –

Karl Murvall bebe um gole de café, antes de continuar: – Mas vocês não vieram aquipara falar deste assunto.

– Bengt Andersson – diz Zeke.– O cadáver na árvore – completa Karl Murvall, tranquilamente. – Horrível!– Conhecia-o?– Sabia quem ele era desde os tempos de Ljungsbro, onde cresci. Todos nós o

conhecíamos, e à família.– Mas nada mais do que isso?– Não, nada mais.– Nem quando ele foi investigado no caso da violação da sua irmã?Sem alterar o tom de voz, Karl Murvall responde:– Isso era natural. Era uma das pessoas a quem ela prestava assistência, e ela

preocupava-se com todas elas. Conseguiu até que Bengt fizesse progressos em termosde higiene pessoal.

– Você e a sua irmã mantêm o contacto?– É difícil manter contacto com ela.– Mas antes? – Karl Murvall vira a cabeça para o lado. – Vai visitá-la? – Novamente

silêncio. – Você e os seus irmãos parecem ter um relacionamento difícil – continuaZeke.

– Os meus meios-irmãos – argumenta Karl Murvall. – Nós não mantemos qualquercontacto. Essa é a verdade.

– Porquê? – Indaga Malin.– Eu procurei estudar. Tenho um bom emprego e pago impostos. Particularidades que

não rimam bem com os meus meios-irmãos. Pressuponho até que ficam zangados comisso. Acreditam que eu penso que sou melhor do que eles.

– E a sua mãe também? – Insiste Zeke.– A minha mãe talvez mais do que eles.– Você é meio-irmão deles. No registo de nascimento está escrito que é filho de pai

incógnito.– Sou o primogénito da minha mãe. O meu pai era um marinheiro que desapareceu

num naufrágio quando ela ainda estava à espera que eu nascesse. Isso é tudo o que eu

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sei. Mais tarde, ela conheceu Svarten, o pai deles.– Como era ele?– Primeiro, um bêbado. Depois, um bêbado inválido. Mais tarde, um bêbado morto.– Como foi que ele o acolheu?– Não sei o que é que a minha infância tem que ver com isso, inspectora Fors. Não

consigo mesmo perceber.Nessa altura, Malin consegue perceber uma alteração nos olhos de Karl Murvall.

Como se a objectividade se transformasse em tristeza. E, depois, em raiva.– Talvez vocês devessem tornar-se terapeutas. Aquelas pessoas no prado vivem as

suas vidas. Eu vivo a minha. É apenas isso, compreendem?Zeke inclina-se para a frente.– Apenas para que conste. O que é que fez na noite de quarta para quinta-feira da

semana passada?– Trabalhei. Tinha de fazer uma grande actualização do sistema e fui obrigado a fazê-

la durante a noite. O segurança da Collins poderá confirmar. Mas será que vai serpreciso?

– Não sabemos ainda, mas é quase certo que não.– Trabalhou sozinho?– Sim, é um trabalho que faço a sós, sempre que o projecto é grande e difícil. Para

falar francamente, ninguém percebe nada do sistema e acabam por empatar o meutrabalho. Mas o segurança poderá confirmar a minha presença, toda a noite, nasinstalações.

– O que sabe sobre os negócios dos seus irmãos?– Nada. E se soubesse, não contaria nada. Apesar de tudo, ainda são meus irmãos. E

se nós não nos ajudarmos uns aos outros na família, quem o fará?

Quando estão a vestir os casacões almofadados, antes de deixar o apartamento, Malinvira-se para Karl Murvall e pergunta-lhe:

– Vi uma caixa para esquis na sua carrinha. Gosta de esquiar?– Uso a caixa para carregar material – diz Karl Murvall que acrescenta: – Não gosto

de esquiar. Aliás, o desporto não me agrada.– Obrigado, então, pelo café – diz Malin.– Obrigado – diz Zeke.– Mas você nem bebeu – constata Karl Murvall.– Mas agradeço a gentileza.

Malin e Zeke estão ao lado da carrinha de Karl Murvall. Uma manta cobre todo o

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espaço da bagageira. Por cima dela, uma grande caixa de ferramentas.– Não deve ter passado uma época muito feliz quando viveu com o resto da família –

diz Malin.– Não, fico com pesadelos só de pensar nisso.– Vamos a casa de Niklas Nyrén?– Malin, já lhe telefonámos pelo menos umas dez vezes. Podemos fazer isso amanhã.

Vai para casa e descansa. Vai para casa ter com a tua Tove.

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CAPÍTULO 17

SÁBADO, 11 DE FEVEREIRO

O COMBOIO CONTINUA A ROLAR PELOS CARRIS.

Göran Tedensjö está estendido na cama da sua cabina. Deixa os pensamentos irem evirem.

E quando não houver mais nada em casa, a que mereça a pena voltar? Uma pessoafica tanto tempo fora que acaba por ser como ficar em casa, acaba por ser o seu lar. Dequalquer forma, entretanto acabam por acontecer percalços pelo caminho.

Continua escuro lá fora, a julgar pelo que ele consegue ver pela janela da cabina. Mastambém não consegue dormir, apesar do insistente e ritmado martelar das rodas aopassar por cima dos encaixes dos carris. Apesar de estar sozinho na cabina de primeiraclasse e apesar dos lençóis serem novos, quentes e macios e a cheirar bem.

A Statoil paga o bilhete.Pergunta-se até quando vai aguentar esta situação.Está na hora de escolher a vida que quer levar. Está com quarenta e oito anos de

idade e já quase há dez que vive uma vida dupla. E mente a Henrietta, descaradamente,de cada vez que chega a casa.

Mas ela, ao que parece, não dá por nada.Parece contentar-se com o dinheiro, em poder comprar o que quer sem precisar de

trabalhar.O pior é o miúdo.Cada vez mais distante, a cada temporada que fica fora de casa.E as histórias que ouve da escola. Será ele, realmente, que age daquela forma?Um verdadeiro demónio, pensa Göran Tedensjö, ao mesmo tempo que se vira na

cama. Será que é assim tão difícil comportar-se como gente? Afinal, tem quinze anos esempre teve tudo o que quis.

Será melhor fazer as malas e bater em retirada? Mudar-se para Oslo? Ver o queacontece?

O trabalho é horrível nesta época do ano. Está tanto frio que há sempre alguma coisaque acaba por congelar dentro de uma pessoa, nas suas idas e vindas à volta daperfuradora, bem lá em cima na plataforma, constantemente fustigada pelo ventoglacial. De tal maneira que o corpo nunca chega a aquecer entre os turnos de serviço eos homens nem sequer conseguem falar uns com os outros.

Mas são bem pagos.

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Compensa pagar bem a pessoas com experiência, considerando os prejuízos queadvêm de uma paragem na produção.

Norrköping é a próxima estação. Estamos a chegar. A seguir, Linköping.Depois, estará em casa.Um quarto para as seis.Henrietta não vem buscá-lo à estação. Há já muito tempo que deixou de fazê-lo.Em casa.Se é que ainda pode chamar-lhe casa.

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CAPÍTULO 18

O COMBOIO QUE PARTIU DE OSLO segue de Estocolmo para Copenhaga, via Linköping. Éum comboio tranquilo, com pessoas que sonham ou estão prestes a acordar.

O relógio marca seis horas e quinze. O comboio deve chegar às seis e dezasseis ecomeça a amanhecer. Está quase mais frio do que antes. Mas ela resolve enfrentá-lo,quer ver se Göran Tedensjö vem realmente no comboio, como lhe tinham dito. E, aqualquer custo, descobrir os seus segredos.

Tinha telefonado para a portaria da Collins. Eles consultaram os registos econfirmaram que Karl Murvall tinha estado na fábrica desde as 19h15 de quarta-feiraaté às 07h50 da quinta-feira seguinte. Tinha trabalhado durante a noite numaactualização do sistema informático da empresa e tudo tinha corrido bem, de acordocom os planos. Perguntou se havia alguma possibilidade de alguém sair por outra portae se Karl Murvall poderia ter saído de alguma outra maneira. Mas o segurança foiperemptório: «Ele ficou na empresa durante toda a noite. Não existe nenhuma outrasaída, além do átrio de entrada. E a vedação em volta da área da empresa tem sensoresque controlamos a partir da entrada. Se alguém tentasse saltar ou destruir a cerca,teríamos visto. E saberíamos onde. Mas sempre que passámos pela sala durante asrondas, ele estava lá.»

O jantar com Tove na noite anterior. Falaram sobre Markus. Depois, durante dezminutos, conseguiram ver juntas um filme da série Pantera cor-de-rosa, antes de Malinadormecer no sofá.

Agora, já consegue ver o comboio a passar pela ponte de acesso à estação, sobre aságuas da lagoa do Stångån.

O comboio cresce à medida que se aproxima, a locomotiva já está a entrar naplataforma de chegada. Parece um projéctil inventado por algum engenheiro.

Malin está sozinha no cais. Agita os braços à volta do corpo para se aquecer e ajeitao gorro de pele.

«Nada de Henrietta Tedensjö – pensa Malin. – Sou a única pessoa que está aqui àespera de alguém. E à caça de um assassino.»

Apenas uma das portas do comboio se abre, a dois vagões de distância. Malinapressa o passo e dirige-se para lá, sente o ar glacial a irritar-lhe a garganta. Apenasum homem desce para a plataforma, com dois enormes sacos de viagem, um em cadamão.

Um rosto curtido pelo tempo e um corpo maciço, mas musculoso. A sua aparência

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demonstra que está habituado a enfrentar o frio e as intempéries. O sobretudo azul nemsequer está fechado.

– Göran Tedensjö?O homem fica surpreendido.– Sim, sou eu. E você?A porta do vagão fecha-se e um revisor solta um apito que quase se sobrepõe à voz

de Malin quando esta diz o seu nome e a função. Assim que o ruído do apito termina eo comboio prossegue a sua viagem, abandonando a plataforma, ela explica rapidamentea sua missão.

– Quer dizer que tentou entrar em contacto comigo?– Sim – confirma Malin. – Para conseguir alguns esclarecimentos.– Então, já sabe que eu não estava na plataforma petrolífera.Malin acena com a cabeça, positivamente.– Podemos falar no meu carro – diz ela. – Lá está quente, deixei o motor a trabalhar

em ponto morto.Göran Tedensjö concorda. A sua expressão muda, descontrai-se, mas há um sinal de

culpa.Minutos mais tarde, senta-se no carro no lugar do passageiro. O seu hálito cheira a

café e a pasta dentífrica. E ele começa logo a falar, sem que ela precise de fazerperguntas.

– Conheci uma mulher em Oslo, há quase dez anos. E durante todo este tempo tenhomentido à Henrietta. Ela acredita que eu trabalho três semanas e descanso duas, mas éo contrário. Na semana livre fico em Oslo com a Nora e o filho dela. Gosto do rapaz,que é muito mais ajuizado do que o meu Magnus. Nunca compreendi o meu filho.

Porque nunca permaneceste tempo suficiente em casa, pensa Malin.– E armas? Imagina onde Magnus poderá ter conseguido uma arma?– Não. Nunca me interessei por isso.– E também não sabe nada sobre o que ele terá feito a Bengt Andersson?– Infelizmente, não.Porque nunca permaneceste tempo suficiente em casa, pensa Malin, novamente.– Vou precisar do número de telefone dessa sua mulher em Oslo.– A Henrietta precisa de ficar a saber? Eu ainda não sei o que quero. Já tentei

confessar-lhe, mas sabe como são as coisas. Portanto, ela vai precisar de saber…?Malin abana a cabeça.

Malin fica sentada no seu carro a ver o táxi que Göran Tedensjö apanhou a passar

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pelas lojas de fachadas tristes e a desaparecer em direcção a Ljungsbro.Pensa.Deixa que todas as possibilidades fiquem em aberto na sua cabeça. Entretanto,

telefona para os vários números de Niklas Nyrén. Sem resposta. Pensa que talvez eleesteja em casa de Margaretha Svensson. Procura o número dela, mas contém-se ao veras horas.

São 6h32.Sábado de manhã.É melhor esperar.Também deve haver alguma consideração, mesmo quando se trata de uma

investigação por homicídio. Deixemos que uma mãe exausta pelo trabalho, a viversozinha, tenha a oportunidade de dormir um pouco mais.

E, então, Malin resolve voltar para casa. Deita-se na cama depois de ter dado umaespreitadela ao quarto de Tove. E antes de adormecer vem-lhe de novo à mente aimagem de Valkyria Karlsson, nua, no prado, como um anjo, talvez um anjo da morte.

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CAPÍTULO 19

QUANDO É QUE UM CASO SIMPLES se torna num sombrio pesadelo?Quando a procura da verdade começa a andar em círculos? Quando se instala a

primeira dúvida entre os inspectores que trabalham na investigação, a sensação de queos seus esforços não vão dar em nada, de que desta vez a verdade lhes vai escapar?

Malin sabe.Pode acontecer mais cedo ou mais tarde na investigação. Pode ser no primeiro

telefonema. Pode acontecer de repente ou chegar aos poucos. Pode verificar-se duranteuma reunião, logo de manhã, quando cinco polícias, cansados e estremunhados, depoisde um sábado inteiro a trabalhar em vez de dormir e recuperar as forças, estão a bebercafé e a começar o dia para chegar a uma triste conclusão.

– Acabámos de receber o relatório final e conclusivo do departamento técnico sobrea investigação nas casas da família Murvall. Eles trabalharam vinte e quatro horas pordia, mas de que serviu?

Sven Sjöman, sentado numa das extremidades da mesa, apresenta uma expressãoresignada.

– Nada – diz ele. – Apenas sangue de animais, alces, veados, porcos selvagens elebres. Pêlos de animais na oficina. Nada mais.

Diabos!, pensa Malin, embora no fundo já tivesse previsto isso mesmo.– Então, por ali, estamos encalhados – diz Johan Jakobsson.Zeke concorda com um aceno.– Encalhados em cimento armado, diria eu.– Mas temos outras pistas. O culto ASA. Börje? – Pergunta Sven. – Alguma

novidade? Já ouviram novamente Valkyria Karlsson, depois de Malin a ter visto juntodo carvalho?

– Tentámos entrar em contacto com ela pelo telefone, sem resultado. Vamos tentarhoje um contacto pessoal – responde Börje Svärd. – Já ouvimos vinte pessoas ligadasa Rickard Skoglöf. Nenhuma parece ter a mínima ligação com Bengt Andersson. Masprecisamos, realmente, de reflectir. O que estaria ela a fazer ali no local do crime?Daquela maneira? Porquê?

– Comportamento indecoroso – responde Johan. – Meditar nua na via pública, nãoserá isso mesmo? Atentado ao pudor?

– Ela não estava a importunar ninguém – diz Malin. – Telefonei para a amante deGöran Tedensjö em Oslo e vou tentar falar com Niklas Nyrén ainda hoje. Ele pode sera última pedra a revirar nesta linha de investigação.

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– Temos, simplesmente, de continuar a lutar – diz Börje. E precisamente no momentoem que pronuncia estas palavras batem à porta da sala e, sem que alguém desseautorização para entrar, a assistente Marika Gruvberg abre a porta e espreita paradentro da sala.

– Desculpem se estou a incomodar. Mas um camponês encontrou corpos de animaispendurados numa árvore, junto de um terreno arado. Acabei de receber a chamada.

Círculos, pensa Malin.Sete círculos.Nenhum leva a nada.

As várias tonalidades de branco acinzentado confundem-se umas com as outras. Aolho nu, é difícil distinguir a terra do céu.

Os animais estão pendurados num de três pinheiros, a formar um pequeno grupo nomeio de um campo entre o canal Gota e a Igreja de Ljung. Perto do canal, outro grupode árvores sem folhas, os troncos escuros como se fossem sentinelas. E a leste, a unsoitocentos metros de distância, a imagem branca da igreja, em formato de arca, comoque desaparece no ar, apenas se distinguindo pelas casas à sua volta, todas de coresindefinidas, uma escola pintada de ocre, e a residência do professor em amarelodourado.

Os corpos parecem exangues, pendurados pelos pescoços no ramo mais baixo domenor dos três pinheiros. A neve apresenta algumas manchas vermelhas de sanguecongelado que deve ter jorrado do corpo dos animais e dos seus pescoços. Umdobermane, um leitão e um cordeiro com menos de um ano de idade.

O focinho do cão está amarrado com fita adesiva, em preto e amarelo.Por baixo da árvore, no sangue e na neve, há pontas de cigarros e lixo. E na neve,

Malin consegue notar marcas de um escadote.O camponês, de nome Mats Knutsson, está ao seu lado vestido com um anoraque

verde, acolchoado por dentro.– Eu estava a dar uma volta de carro pela propriedade, como faço sempre nesta época

do ano, apenas por uma questão de controlo. E, então, vi isto aqui na árvore, uma coisaestranha à distância.

– Certamente não tocou em nada, não é verdade?– Nem cheguei perto dos animais.Zeke, cada vez mais desconfiado de tudo o que está a acontecer na pradaria.– É como se quisessem fazer uma composição figurativa – grunhiu ele, a caminho do

local. – Com os diabos! o que significa isto?

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– Pois, não podem ter sido os irmãos Murvall.– Não, eles estão na cadeia.– Podem ter sido Magnus Tedensjö e Joakim Svensson, não?– É possível. Segundo o miúdo, Fredrik Unning, eles costumavam torturar gatos.– Vamos ter de ouvi-los novamente.– Assim como o Skoglöf e a Valkyria Karlsson.A alguns metros de distância do ramo onde os animais foram pendurados, alguém

escreveu na neve, com letras irregulares, tremidas, sacrifício do solestício de Inverno.Quem o fez não usou o sangue dos animais, mas uma tinta vermelha de spray. Era tudoo que Malin podia perceber a olho nu. Karin Johannison, que acabava de chegar,passou a pente fino toda a área com a ajuda de uma colega que Malin ainda não tinhavisto, uma jovem com o rosto coberto de sardas e cabelos ruivos por baixo de umgorro azul-turquesa.

Por baixo da palavra a vermelho, alguém urinou de maneira a formar a palavra VAL.Ao que parece, a bexiga deve ter ficado vazia antes de terminar.

Zeke, ao lado da árvore, aponta para os animais.– Eles cortaram os pescoços para lhes tirar o sangue.– Achas que os animais ainda estavam vivos?– O cão, dificilmente. Os cães resistem por todos os meios, assim que o instinto lhes

indica haver perigo.– As marcas do escadote – diz Malin. – Entre os corpos. As marcas indicam que foi

usada uma escada metálica e vêem-se os buracos que deixou na neve.Börje Svärd anda de um lado para o outro enquanto fala ao telemóvel.E, terminada a chamada, diz:– Esse cão aí na árvore. Não se pôde defender. Nem mesmo o focinho pouparam.

Pelo que posso ver, é um cão de raça e, assim sendo, deve ter sido comprado numcanil, certamente tem uma marca. Por ela vamos poder encontrar o dono no registo. Porisso, retirem-no de onde está. Agora!

– Estou quase pronta, aqui – exclama Karin, ao mesmo tempo que olha para eles asorrir.

– Depressa, então – diz Börje. – Não é preciso deixá-lo aí pendurado.– Será que desta vez vai ser preciso chamar a unidade de medicina legal? – pergunta

Karin.– Chiça!, claro que não – grita Börje.– Não para os animais – diz Zeke. – O que achas, Malin?Malin abana a cabeça.

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– No entanto, vamos levar tudo o que precisamos.Nessa altura, ouvem o motor de um carro a aproximar-se. Reconhecem de imediato o

som de uma carrinha da polícia e viram-se. A carrinha chega tão próximo quantopossível e ao longe, na estrada, vêem Karim Akbar sair do veículo e gritar na suadirecção.

– Eu sabia, eu sabia. Havia qualquer coisa na pista da ASA. Naquela história doprofessor. Nos círculos dos fiéis da ASA.

Alguém bate nas costas de Malin e esta vira-se.O camponês Knutsson está atrás dela, aparentemente tranquilo, nada perturbado com

toda a movimentação.– A senhora ainda precisa de mim ou já posso ir-me embora? As vacas…– Pode ir – diz Malin. – Nós telefonamos se precisarmos de mais alguma coisa.– E os animais?O camponês faz um gesto na direcção da árvore.– Os animais, vamos retirá-los.Exactamente no momento em que termina a frase, Malin vê à distância o carro de

reportagem do Correspondenten.Daniel, pensa ela, onde é que tens andado?Mas não é Daniel que sai do carro. Em vez dele, a fotógrafa do anel no nariz e um

jornalista grisalho que Malin sabe chamar-se Bengtsson, um tipo moreno a cheirar anicotina, cachimbo na boca e um genuíno desprezo por computadores e programas deescrita.

Destes, pensa Malin, é Karim que vai ter de se ocupar, agora que conseguiu chegaraté aqui.

Será que posso perguntar por Daniel? pensa Malin, depois. Mas, mais uma vez,resolve afastar essa ideia. Como justificá-lo? E porque me preocupo em saber dele?

– Tragam agora o cão para baixo – ordena Börje.Malin consegue ver a frustração e a raiva no corpo de Börje, todos os sentimentos

provocados pela visão do cadáver do cão na árvore.Ela gostaria de dizer: «Calma, Börje, o cão já não sente nada ali onde está,

pendurado na árvore.» Mas fica em silêncio. Aquilo que o animal sentiu, já passou hámuito tempo.

– Já estamos prontas – diz Karin. Entretanto, Malin já ouve os cliques da máquina dafotógrafa e a voz rouca de Bengtsson, a entrevistar Karim Akbar.

– O que acham…– Grupos de… gangs… adolescentes…

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E, então, Börje corre na direcção dos animais na árvore, toma balanço e salta paraapanhar o cão, mas nem sequer consegue chegar às patas com pequenas manchas desangue coagulado.

– Börje, chiça – grita Malin, mas ele salta de novo e de novo mais uma vez tentandovencer a força da gravidade no intuito de salvar o animal da sua posição indefesa.

– Börje – grita Zeke. – Estás maluco. Eles vão trazer um escadote. E, então, vamospoder retirá-lo daí.

– Cala a boca.Nessa altura, Börje consegue finalmente segurar uma das patas traseiras do animal,

puxa, o corpo ainda resiste, mas acaba por cair tal como o de Börje. O galho da árvorequer voltar à posição anterior. Por fim, a corda que segurava o cão à árvore cede.Börje grita, e cai também de costas na neve vermelha.

O cão acaba por cair ao lado dele, com os olhos abertos, sem vida.– Este Inverno está a deixar toda a gente maluca – sussurra Zeke. – Completamente

maluca.

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CAPÍTULO 20

DO MEIO DO CAMPO, Malin consegue avistar o bosque onde Maria Murvall foi atacada eviolentada. A orla da floresta aparece como uma faixa negra em contraste com o céu denuvens brancas. Não consegue ver a água, mas sabe que a corrente do rio Motala correpor aqueles lados, num murmúrio de um grande ribeiro por baixo de um tecto de gelo.

No mapa, a floresta não parece tão imponente, uma faixa de quinze, vinte quilómetrosde largura que se estende do lago Roxen até Tjällmo e Finspång e, para o outro lado,até Motala. Mas dentro da floresta é possível desaparecer, é possível uma pessoaperder-se, encontrar pela frente realidades incompreensíveis para nós, simples sereshumanos. E pode deixar alguém chegar ao esgotamento entre tanta lama e folhasapodrecidas, a ponto de se tornar parte do mundo subterrâneo da floresta. Antigamente,o povo da região acreditava que duendes, elfos, génios, fantasmas e seres sobrenaturaiscom pés de bode andavam por entre os troncos das árvores, tentando atrair os humanospara os matar.

Em que acredita o povo hoje em dia? pensa Malin, e olha para o campanário da igrejaem vez de olhar para a floresta. No hóquei e nos festivais da canção?

Depois, passa os olhos pelos animais mortos, estendidos sobre a neve.Börje Svärd, com protectores de orelhas, escreve um número num papel e digita-o no

seu telemóvel.Zeke também está a usar o telemóvel.Um outro camponês, de nome Dennis Hamberg, perto de Klockrike, denunciou a

ocorrência de um roubo no seu estábulo. Estava desesperado. «Dois animais deprodução biológica roubados, um leitão e um cordeiro de um ano. Mudei-me deEstocolmo para aqui, para trabalhar em agricultura sustentável, e acabo por serroubado.»

A floresta. Escura e cheia de segredos.Depois, sentam-se todos no carro da polícia, ao som de um motor a trabalhar em

ponto morto. O aquecimento do carro, enganador, muito fraco, que os leva a manterabotoados os seus casacões acolchoados, mas que desabotoam em seguida. Umareunião convocada à pressa, no campo, Malin, Zeke, Johan, Börje e Karim. SvenSjöman ocupado com papelada no departamento.

– E então? – pergunta Karim. – O que fazemos agora?– Eu vou procurar encontrar a pista do cão – responde Börje. – Não vou demorar

muito tempo.– A procura de informações porta-a-porta poderá ser feita por outros agentes – diz

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Zeke. – Eu e Malin vamos dar uma espreitadela em casa do tal camponês que se dedicaà agricultura biológica e saber o que fizeram ontem à noite os rapazes Tedensjö eSvensson. Por enquanto, não podemos descartar ninguém.

– A conexão é bastante clara – diz Karim do seu lugar, o de motorista. – Outrosacrifício iniciático.

– Em casos deste género, costuma haver uma escalada de violência – diz Malin. – Éisso que nos diz a experiência. E passar de um ser humano para animais não éexactamente uma escalada normal.

– Pode ser – diz Börje. – Quem sabe o que se passa na cabeça de certas pessoas?– Ocupem-se também de Rickard Skoglöf e Valkyria Karlsson – diz Karim – A marca

da ASA neste caso é clara.Ao terminar a reunião, Malin olha de novo para a floresta. Depois, fecha os olhos. Vê

o corpo nu de uma pessoa indefesa, estendido no musgo e nas pedras.Reabre os olhos. Quer afastar a imagem da mente.Karin Johannison passa por ela com um grande saco de desporto na mão.Malin retém-na.– Karin. As possibilidades de identificar o ADN das pessoas por análise ao sangue

têm melhorado nos últimos anos, não é verdade?– Isso já tu sabes, Malin. Não precisas de me adular com a tua suposta ignorância. Em

Birmingham, no principal laboratório de Inglaterra, já conseguiram irinacreditavelmente mais longe. Não imaginas o que eles podem conseguir do nada.

– E nós, na Suécia?– Nós ainda não temos os mesmos recursos. Mas já mandámos material para eles

analisarem.– Se eu tiver uma prova, poderás tratar do envio para Birmingham?– Claro. Tenho lá um contacto. Um intendente, John Stuart, que encontrei durante uma

conferência em Colónia, na Alemanha.– Voltarei ao assunto mais tarde – diz Malin.– Dispõe – responde Karin seguindo em frente, não sem antes pegar de novo no saco.

Apesar do peso, movimenta-se com total elegância, como se fosse uma modelo numapassarela de Paris.

Malin afasta-se um pouco dos outros, pega no telemóvel e liga para a centraltelefónica da polícia de Motala.

– Por favor, ligue-me à extensão de Sven Nordström.– Com certeza – responde a telefonista.

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Três toques, depois a voz:– Nordström.– Aqui é Fors, de Linköping.– Olá, Malin. Há quanto tempo não nos falávamos.– É verdade. Mas agora preciso da tua ajuda. Lembras-te, certamente, do caso de

violação da Maria Murvall? A irmã dos Murvall que surgiram na nossa actualinvestigação? Ela tinha ainda roupa no corpo quando foi encontrada, não é verdade?

– Tinha sim. Mas as manchas de sangue na roupa estavam tão sujas que a períciatécnica não conseguiu nada.

– Segundo a nossa Johannison, as novas técnicas melhoraram muito. E ela tem umcontacto em Birmingham que poderá conseguir algo mais.

– Quer dizer que pensas mandar os restos da roupa para Inglaterra. É isso?– Sim. Podes providenciar o envio para Karin Johannison no SKL?– Na realidade, isso devia seguir a via hierárquica.– Vai dizer isso à Maria Murvall.– Estão no arquivo. Karin vai recebê-las ainda hoje.– Obrigada, Sven.Assim que Malin desliga, Karin passa no seu carro. Malin pede-lhe para parar.Karin baixa o vidro da janela.– Vais receber o material ainda hoje de Nordström, da polícia de Motala. Envia tudo

para Birmingham, o mais rápido possível. É urgente.– O que é?– Roupas de Maria Murvall. Restos da roupa dela.

Margaretha Svensson mostra-se cansada ao abrir a porta do seu apartamento. Sente-seo aroma de café vindo da cozinha. Não parece surpreendida por ver novamente Malin eZeke. Faz apenas um gesto, convidando-os a entrar e a sentarem-se à mesa da cozinha.

Será que Niklas Nyrén está aqui? pensa Malin. Mas se estivesse, estaria sentado aquià mesa ou, então, na sala de estar. Devia estar visível.

– Querem café?Malin e Zeke ficam parados no hall de entrada, depois de fechada a porta.– Não, obrigada – responde Malin. – Temos apenas algumas perguntas que não

demoram muito a responder.– Então, perguntem.– Sabe o que o seu filho esteve a fazer ontem à noite e durante a madrugada?– Sim. Esteve aqui em casa. Ele, Niklas e eu jantámos juntos e depois ficámos a ver

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televisão até tarde.– Portanto, não saiu daqui, pois não?– Não saiu, não. Estou absolutamente certa. Ele está a dormir, agora, lá em cima.

Podem ir perguntar-lhe.– Não é preciso – diz Zeke. – Niklas Nyrén está aqui?– Está em casa dele. Saiu daqui ontem, já tarde.– Eu pedi-lhe para me telefonar. Deixei uma mensagem.– Ele falou nisso. Mas tem trabalhado muito.Um assassínio, pensa Malin. Estamos a investigar um assassínio e as pessoas não têm

tempo para telefonar. E depois reclamam que a polícia é lenta. Se ao menospercebecem que a polícia é a última instância numa sociedade em que todos e cada umtêm a obrigação de manter a ordem e colaborar para a sua manutenção.

Mas todos confiam que haja outros a fazer isso por eles, e por isso ninguém faz nada.– O que achas? – Pergunta Zeke, quando regressam ao carro.– Ela está a dizer a verdade. Niklas esteve em casa, ontem. E Magnus Tedensjö não

podia ter feito aquilo sozinho. Vamos ao camponês. É o próximo.O grupo de casas no prado a um quilómetro de Klockrike está coberto de neve e de

gelo. E os bosques em redor, com vidoeiros e um bonito muro de pedra, malconseguem proteger o jardim de uma habitação recém-construída.

A casa é de tijolo, com janelas verdes. Diante do vestíbulo, pintado de azul-mediterrânico, está estacionado um Range Rover.

Devia cheirar a lavanda, tomilho e rosmaninho, mas, em vez disso, só a gelo. E naentrada do caminho de acesso à casa há um portão no qual alguém colocou um cartaz adizer: «Finca de Hambergo».

A porta esverdeada da casa abre-se e aparece a cabeça de um homem loiro de unsquarenta anos de idade.

– Ainda bem que chegaram tão depressa. Por favor, entrem.O andar térreo da casa é constituído por um único bloco que engloba hall, cozinha e

sala de estar. Ao ver as paredes de pedra aparente, os tijolos ornamentais, o chão detijoleira e as cores naturais do ambiente, Malin sente-se transportada para a Toscanaou para Maiorca. Ou até para a Provença, não?

Ela apenas esteve em Maiorca e as casas não eram assim. O apartamento do hotel emque ela e Tove ficaram, parecia-se mais com o interior da fila de casas em Skäggtorp.No entanto, pelas revistas de decoração de interiores, Malin sabe que é esse o sonhode muitos suecos, amantes dos ambientes do Sul da Europa.

Dennis Hamberg repara que estão os dois a olhar em volta.

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– Queríamos que o ambiente fosse uma mistura de finca andaluza e casa de aldeia.Nós mudámo-nos de Estocolmo para construir uma quinta ecológica. Na realidade,queríamos ficar ainda mais isolados, mas as crianças precisavam de ir à escola.Frequentam o secundário em Ljungsbro. E a minha mulher conseguiu um bom empregocomo responsável pelas relações públicas da empresa Nygårds Anna, em Linköping.Dantes, eu andava sempre na estrada e queria tranquilidade e segurança.

– Onde está agora a sua família?– Na cidade, a fazer compras.E agora és um tagarela num campo deserto em pleno Inverno, pensa Malin.– E o roubo no estábulo?– Isso mesmo. Por favor, sigam-me.Dennis Hamberg veste uma parka escura do tipo Canadian Goose e leva-os pelo

jardim até um celeiro vermelho. E aponta para a marca deixada por um pé-de-cabra naombreira da porta.

– Foi por aqui que entraram.– Eram vários?– Sim. Está cheio de pegadas lá dentro.– Então, é melhor tentar evitar pisá-las – diz Zeke.Marcas de ténis e de botas pesadas. Serão de botas militares? pensa Malin.No estábulo, há várias gaiolas com coelhos. Numa cerca de madeira, um cordeiro

sozinho. E noutra, de cimento, uma porca preta com cerca de dez leitões.– De origem ibérica. Pata negra de Salamanca. Vamos produzir presuntos.– Foi daqui que levaram o leitão, não foi?– Isso mesmo. Levaram um leitão e um cordeiro, também.– E vocês não ouviram nada?– Nada. Nem um ruído.Malin e Zeke olham em volta. Depois, dirigem-se para o jardim, com Dennis

Hamberg no encalço.– Acham que posso recuperar os animais? – Pergunta Dennis.– Não – responde Malin. – Foram encontrados mortos, pendurados numa árvore, hoje

de manhã, perto de Ljung.Os músculos do rosto de Dennis Hamberg contraem-se. Depois, recuperado, parece

tentar compreender um acto totalmente incompreensível.– O que é que me estão a dizer? – Zeke repete o que tinha dito. – Mas isso não devia

acontecer por aqui, não é verdade?– Infelizmente, aconteceu.

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– Nós vamos enviar para cá os peritos para passarem o local a pente fino.Dennis Hamberg olha para lá do prado. Cobre a cabeça com o capuz.– Antes de chegar aqui, não sabia como isto podia ser tão ventoso. É claro que

também há vento no Egipto e nas ilhas Canárias, em Tenerife. Mas não como aqui.– Vocês têm cão? – Pergunta Malin.– Não, mas vamos ter gatos quando chegar o Verão. – Dennis pensa um pouco, antes

de perguntar: – E os animais, vou ter de os identificar?Malin desvia o olhar para o prado, mas ouve as palavras de Zeke, reprimindo uma

gargalhada:– Fique tranquilo, Dennis – diz ele. – Nós partimos do princípio de que os animais

são seus. Mas, se quiser, podemos fazer uma identificação.

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CAPÍTULO 21

BÖRJE SVÄRD CERRA OS PUNHOS dentro das algibeiras. Sente que alguma coisa está paraacontecer, alguma coisa que não consegue definir. Está no ar, consegue-se respirar,sentir. Na realidade, é mais a intuição de que há um processo em andamento de grandesignificado para ele, um processo que vai muito além daquilo que conseguecompreender.

A névoa dentro do carro aumenta a cada momento, a cada expiração.O dono do dobermane, segundo o registo das Finanças, chama-se Sivert Norling e

mora na Olstorpsvägen 19, em Ljungsbro, ao lado da ribeira, onde os caminhos levamà floresta, na direcção de Hultsjön. Graças à boa vontade do pessoal do departamentoem Estocolmo, demora apenas alguns minutos para identificar o nome do dono do cão.

Começa por aqui.Todo o seu instinto de polícia lhe diz isso. Segue em frente, o mais rápido possível.

Skoglöf e Valkyria podem esperar.E agora ele e Johan Jakobsson estão lá. Quer ver como é esse malandro. Se é que foi

o dono que fez aquilo. De qualquer maneira, podia ter tido mais cuidado com o cão, enão deixar que uns doidos quaisquer lhe deitassem a mão.

A vivenda branca está comprimida entre várias outras iguais, todas construídas nadécada de 1970. As macieiras e as pereiras são já árvores adultas e, no Verão, aquelassebes devem estar altas e evitar a visão do exterior.

– Nada de cerimónias – diz Börje. – Nunca se sabe. Podemos estar muito próximos.– Como vamos fazer? – Pergunta Johan.– Tocamos à campainha.– Muito bem, acho que é o melhor a fazer.Saem do carro, abrem o portão, sobem os degraus e tocam à campainha.Tocam três, quatro vezes, antes de ouvirem passos atrás da porta.Um rapaz nos últimos anos da adolescência abre a porta. Veste calças pretas de

couro, tem cabelos compridos e argolas penduradas nos mamilos. A sua pele é tãobranca como a neve no jardim e o frio não parece importuná-lo.

– E? – Diz ele, olhando, indolentemente, para Börje e Johan.– E? – Repete Börje. – Você é Sivert Norling? – Pergunta ele, ao mesmo tempo que

mostra o seu distintivo.– Não. É o meu pai.– E o seu nome é?– Andreas.

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– Podemos entrar? Está frio aqui fora.– Não.– Não?– O que querem?– O seu cão, um dobermane, está desaparecido?– Eu não tenho nenhum cão.– Segundo o registo das Finanças, vocês têm um cão, sim.– O cão é do meu pai.– Mas ainda agora disse que não tinham cão nenhum.Johan olha para as mãos do rapaz. Pequenos pontos vermelhos espalham-se nas

costas das mãos.– Acho que vai ter de vir connosco – diz ele, em seguida.– Posso vestir uma camisola?– Sim.Sem dizer nada, o rapaz dá um passo para trás e fecha a porta com toda a força.– Danado – grita Börje, ao mesmo tempo que tenta empurrar a porta.– Controla as traseiras que eu fico aqui na frente.Puxam das armas, afastam-se um do outro, enfiam-se pelos lados da casa, os casacões

a raspar as tábuas irregulares.Johan agacha-se, passa disfarçadamente por baixo da janela no terraço, as tábuas de

madeira por baixo dos pés rangem, estica a mão para cima e vê se a maçaneta da portagira.

Fechada à chave.Passam-se cinco minutos, dez. Silêncio dentro da casa, ninguém parece mexer-se lá

dentro.Börje estica a cabeça, tenta ver através do vidro da janela aquilo que parece ser um

quarto. Tudo escuro lá dentro.Então, Börje ouve um barulho que vem da porta, ao lado do portão da garagem. A

porta abre-se com violência e o rapaz sai a correr com algo escuro na mão. Börjeainda teve tempo para pensar se devia detê-lo, mas não disparou. Em vez disso,persegue o rapaz que corre pela rua entre as vivendas.

Börje persegue o jovem rua abaixo, pela povoação e ao longo do rio Motala, virandoà esquerda por outra rua. Algumas crianças agasalhadas brincam num jardim. Ocoração parece querer saltar-lhe do peito, mas a cada passada fica um pouco maispróximo.

O rapaz começa a aumentar de tamanho na sua frente. Os jardins das vivendas

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parecem aumentar e diminuir a todo o momento, em ambos os lados. Os sapatos batemcadenciados no chão coberto de areia e sal por causa do gelo. Esquerda, direita,esquerda. O rapaz deve conhecer o bairro como as suas próprias mãos.

Cansado.Ambos correm agora mais lentamente.O rapaz, de repente, pára.Vira-se.Aponta um objecto negro que tinha na mão na direcção de Börje. Este atira-se para o

chão, de lado, para um monte de neve.

Que raio está o rapaz a fazer, o idiota, será que sabe o que me vai obrigar a fazer?A neve está cortante e fria.Na sua mente, Börje vê a sua mulher na cama, sem se mexer, os seus cães, que o

esperam, impacientes; vê ainda a sua casa e as crianças, longe, em países longínquos.E à sua frente vê um rapaz com uma arma apontada na sua direcção.Cães torturados. Crianças. O focinho do dobermane amarrado com fita adesiva.Os dedos enfiados nos gatilhos das armas. A do rapaz e a sua.Aponta para a perna. À barriga da perna. Ele vai cair e a bala não vai atingir nenhuma

veia que possa rebentar e deixá-lo a esvair-se em sangue.Börje aperta o gatilho, o estampido é curto e forte. E diante de si, na rua, o rapaz cai,

desmorona-se, como se alguém lhe tivesse cortado as pernas.

Johan ouve o tumulto na frente da casa e corre para lá.Para onde foram?Dois lados.Johan corre para cima e, depois, para a esquerda. Será que eles estão para ali, depois

da curva?Respiração difícil.Frio nos pulmões quando ouviu o tiro.Com os diabos!E corre, então, para o lugar de onde veio o ruído.E vê Börje a aproximar-se de um corpo estendido no meio da rua. O sangue escorre

de uma das pernas do rapaz, que estica a mão na direcção do ferimento. Os seuscabelos escuros e longos, espalhados como um leque sombrio contra o branco da neve.

Börje levanta-se, dá um pontapé numa coisa preta junto do corpo.Então, o rapaz começa a sentir a dor, solta um grito de desespero e medo, talvez

também de incompreensão. E o grito repercute-se por todas as paredes da área.

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A correr, Johan aproxima-se de Börje.– Ele parou e apontou-me a arma – esclarece Börje, tremendo, a sua voz a sobrepor-

se ao grito. Depois, aponta a arma na neve. – Uma arma de brinquedo, de plástico. Umadessas que se encontram em milhares de lojas por toda a parte. Como é que eu podiaadivinhar?

Börje agacha-se ao lado do rapaz. E diz:– Agora, calma. Tudo se vai resolver.Mas o rapaz continua a gritar, agarrado à perna.– Vamos ter de chamar uma ambulância – sugere Johan.

Malin olha pela janela para o parque infantil.E pensa, o que é que se está a passar naqueles campos? Porque é que tudo aquilo

aconteceu agora? Não sabe dizer porquê, mas talvez tenha sido atingido o ponto deruptura e alguma coisa tenha feito explodir a violência e a confusão.

Juventude.Bandos de jovens desorientados.E não parecem ter qualquer conexão uns com os outros.– Ele já foi operado. Vamos poder ouvi-lo mais tarde.A voz cansada de Sven Sjöman:– O pai confirma que o cão era deles. Que o comprou para o rapaz.– Disse mais alguma coisa? – Pergunta Zeke.– Que o rapaz não esteve em casa na noite de ontem, que nos últimos anos viveu no

seu próprio mundo de jogos de computador, Internet, música metálica e, citando o pai,«a cultivar um interesse pelo oculto em geral».

– Pobre pai! – Comenta Zeke, mas Malin percebe que ele reflecte no que disse, talvezconsiga analisar a sua própria situação com um pouco mais de perspectiva e pense quea sua agonia antes dos jogos de hóquei do seu filho Martin é ridícula. Talvez chegue àconclusão de que deve tentar ultrapassá-la de uma vez por todas. Existem dez mil paisque gostariam de ter um filho como Martin.

– O pai é vendedor da Saab – acrescenta Sven. – Trezentos dias por ano a viajar parao estrangeiro. Para lugares como o Paquistão e a África do Sul.

– Amigos? – Pergunta Malin.– De que o pai saiba o nome, não.– Börje?Johan Jakobsson revela preocupação na voz.– Vocês sabem como são as coisas. Foi retirado do activo até que o inquérito sobre o

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disparo esteja concluído.– O caso é claro como um dia de sol – diz Malin. – Ele disparou em legítima defesa.

Essas réplicas são absolutamente iguais às verdadeiras.– Eu sei – reage Sven. – Mas quando é que nós sabemos que as coisas são assim tão

simples, Fors?

A sala dez da ala cinco do hospital da Universidade de Linköping está às escuras,apenas a lâmpada de leitura está acesa por cima da cama.

Sivert Norling está sentado numa poltrona verde, perto da janela, na semiobscuridadedo quarto. É um homem alto e magro e, apesar da obscuridade, Malin consegue ver queos seus olhos são azuis e duros. Os cabelos são curtos, cortados quase rente. Ao seulado, a sua mulher Birgitta. É loira e usa uns jeans e uma camisa vermelha, o que fazcom que os olhos chorosos pareçam ainda mais vermelhos.

Na cama, está deitado o rapaz, Andreas Norling. Que Malin conhece vagamente, masnão sabe de onde.

A perna do rapaz está imobilizada e os seus olhos estão enevoados em consequênciados analgésicos e da anestesia, mas, segundo os médicos, ele vai aguentar um pequenointerrogatório.

Zeke e Malin estão junto da cama e há um polícia sentado à porta do quarto.O rapaz recusa os cumprimentos da praxe quando eles entram e vira a cabeça para o

outro lado, para não os encarar. Os seus cabelos longos e escuros estão raivosamentedispersos pela almofada.

– Tens alguma coisa para nos contar? – Pergunta Malin. – O rapaz não responde. –Estamos a investigar um homicídio. Não queremos dizer com isto que estejasimplicado, mas queremos saber o que aconteceu a noite passada, junto da árvore.

– Eu não estive perto de árvore nenhuma.O pai do rapaz levanta-se e exclama:– Está na hora de te comportares como deve ser e contar tudo o que sabes. O caso é

sério. E não um maldito jogo qualquer.– O teu pai tem razão – diz Malin, com voz calma. – Estás em maus lençóis, mas se

contares o que sabes, talvez tudo possa ser mais simples.Nesse momento, o rapaz olha para Malin. Ela tenta tranquilizá-lo com o olhar,

convencê-lo de que tudo vai acabar bem. Talvez ele ceda, confie nela e se decida acontar tudo. Afinal, talvez tudo não tenha a menor importância.

E ele começa a contar.De terem lido no jornal sobre o cadáver na árvore e o sacrifício do solestício de

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Inverno. Que lhe pareceu uma coisa de doidos e que tinha ficado em casa com a mãe nanoite em que o assassínio devia ter sido cometido, que eles não tinham nada a ver como assunto. Que ele estava farto do merdoso do cão e que a sua namorada, SaraHamberg, disse que podiam roubar uns leitões em casa dela e que o amigo HenkanAndersson tinha um tractor com um atrelado que poderiam usar. Também viram um sitena Internet que citava o blot e que Rickard Skoglöf, segundo os jornais, era o dono dotal site. Que Skoglöf era uma espécie de mágico do culto ASA e que os instigouenviando várias mensagens estranhas, e que uma coisa puxou a outra. Que nãoconseguiram parar e que era como se alguma força estranha os levasse a fazer o quefizeram.

– Bebemos algumas cervejas e tínhamos facas. Não acreditei que corresse tantosangue como correu. Muito sangue mesmo. Foi uma violência, sem dúvida. E o frio queestava!

A mãe começa a chorar de novo.O pai parece querer bater no filho.Pela janela do hospital vê-se que a noite lá fora está escura.– Rickard Skoglöf estava com vocês?– Não. Apenas enviou as mensagens pela Internet.– E Valkyria Karlsson?– Quem é essa?– Porque é que fugiste? – Pergunta Malin, a seguir. – E porque fizeste pontaria contra

o detective Svärd?– Não sei – responde o rapaz. – Não queria ser preso. Não é assim que se faz?– Deviam bombardear Hollywood – sussurra Zeke.– O que é que disse?O rapaz, de repente, fica interessado.– Nada. Apenas pensei em voz alta.– Tenho mais uma pergunta – diz Malin. – Magnus Tedensjö e Joakim Svensson,

conhece-los?– Conhecer? Jocke e Magnus? Não, mas, claro, sei quem eles são. Porcos imbecis, é

o que eles são.– Eles interferiram de alguma maneira naquilo que fizeram ontem?– Absolutamente nada. Eu jamais faria voluntariamente o que quer que fosse com

eles.No elevador, ao descer, Malin consulta Zeke:– Vamos meter Skoglöf na cadeia?

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– Por que motivo? Incitamento a torturar animais?– Tens razão. Vamos deixá-lo por enquanto. Mas, não há dúvida de que devemos ter

mais uma conversa com ele e com Valkyria. Quem sabe o que eles convenceram outrosa fazer?

– É claro. E vamos pedir a Johan para ouvir os outros dois adolescentes no caso dosanimais.

– Muito bem. Mas hoje ainda temos uma coisa a fazer.– O quê?– Vamos a casa do Börje.

Os armários pintados da cozinha brilham de limpeza e em cima da mesa está umatoalha Marimekko em tons de laranja e preto. Do tecto, pende um candeeiro PaulHenningsen.

Na cozinha da casa de Börje Svärd respira-se tranquilidade e existe uma qualidadeestética muito acima daquilo que Malin acha ter condições de poder alcançar. Toda acasa é assim. Muito cuidada, tranquila e bonita.

Börje está sentado a uma das pontas da mesa. A sua mulher, Anna, parece colada àcadeira de rodas, com o formato de uma poltrona em tom de azul. A expressão do seurosto parece petrificada. A sua respiração difícil, sofrida, persistente, enche oambiente.

– O que é que eu podia fazer? – pergunta Börje.– Fizeste o que devias fazer – diz Zeke.– Sem dúvida – acrescenta Malin.– Quer dizer que ele vai safar-se sem sequelas?– Absolutamente. A bala foi parar exactamente onde devia.– No entanto, que coisa diabólica – diz Börje. – Tratar assim os animais.Malin abana a cabeça.– Uma doidice!– Vou ficar sem trabalhar durante umas duas semanas, acho eu. Costuma levar esse

tempo.Um ligeiro balbuciar, seguido de alguns sons mais agudos, vem da cadeira de rodas.Linguagem?Novos sons que, persistentemente, acabam por formar meias palavras.– Ela diz – traduz Börje – que está na hora de acabar com esses horrores.– Está mesmo na hora, sim – completa Malin.

– O que aconteceu hoje no trabalho, mãe? – Pergunta Tove. – Pareces cansada.

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Tove tira a panela com puré de batata de cima do fogão e leva-a para a mesa dacozinha.

– Bem, o que aconteceu? Alguns adolescentes, apenas um pouco mais velhos do quetu, fizeram um monte de tolices.

– O quê?– Idiotices, puras idiotices, Tove.Malin tira um bom bocado do puré, antes de acrescentar: – Promete, Tove, que nunca

farás nenhuma idiotice.Tove promete com um aceno.– O que lhes vai acontecer?– Vão ser chamados a depor, imediatamente. E, depois, seja como for, a assistência

social vai tomar conta deles.– De que maneira?– Não sei, Tove. Acho que vão apenas controlá-los.

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CAPÍTULO 22

O RELÓGIO DA CAPELA MARCA ONZE HORAS, onze badaladas, e, em seguida, o sino toca. Etoca por mim. Anuncia que é agora, agora mesmo, que o Apanha Bolas Andersson vaiser enterrado. E é ao som do sino que se ouve a história da minha vida, aquelamontagem de acontecimentos aparentemente irrelevantes em que se transformou aminha existência. Mas, lamentavelmente, vocês estão enganados. Eu soube o que éamar, pelo menos algumas vezes, mesmo considerando que fiquei sempre hesitantediante do amor.

Embora seja verdade que eu vivia só, a minha solidão não era a maior.E agora vão ter de falar sobre mim. Depois, serei cremado. Cremado num domingo,

quem diria! Abriram uma excepção para mim, dada a violência da minha passagempara o outro lado.

Mas não faz diferença nenhuma, o que resta de mim já não vale nada, o que resta éo enigma. E, por esse motivo, há partes de mim ainda conservadas. Eu sou um gruposanguíneo, um código ADN completo. Sou aquele que está deitado dentro dessecaixão branco de pinho, na sala cor de laranja da capela da ressurreição, poucodepois de Lambohov, na direcção de Slaka.

A uns cem metros de distância, num corredor subterrâneo, esperam-me os fornos,mas eu não tenho medo do fogo que não é eterno nem quente, apenas um estilo novode desaparecer.

Vocês estão muito sérias, sentadas nesses bancos. São apenas duas, Malin Fors euma representante do agente funerário, aquele Skoglund que me arranjou para afoto no jornal Correspondenten. Perto do caixão está uma mulher, a gola de pastoraincomoda-lhe o pescoço e quer que tudo acabe depressa. A morte e a solidão querepresento enchem-na de medo. É dessa maneira que ela confia no seu Deus, e naSua bondade?

E assim começa e termina a solenidade.E eu continuo a flutuar.A dor não desapareceu, é mais errática do que nunca, mas eu aprendi uma coisa:Depois que morri, sou dono das minhas palavras.Posso sussurrar uma centena de palavras, gritar milhares de palavras. Posso

decidir ficar em silêncio. Na realidade, sou dono da minha própria história. Osvossos murmúrios não significam nada.

Eu voltarei.

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Malin cumprimenta Conny Skoglund, a representante da agência funerária, antes deentrar na capela. Dão os bons dias, reciprocamente, ainda sob as arcadas cor de areia,e depois dos cumprimentos ficam em compreensivo silêncio, lado a lado, até que ossinos começam a tocar e elas entram então na sala ampla. A luz penetra no ambiente deuma forma quase indecente, impondo-se do chão ao tecto, uma luz vinda das janelascom vista para um parque. Deve ser uma vista muito bonita, verdejante no Verão, pensaMalin. Agora, a luminosidade parece irreal.

Sentam-se as duas, cada uma do seu lado do corredor, como se quisessem encherdessa maneira a sala deserta.

Sozinho em vida.Mais sozinho ainda na morte.Encontrado há pouco mais de uma semana, Bengt Andersson vai ser agora cremado.

Num domingo. Com uma única coroa de flores em cima do caixão, da comunidade deLjungsbro. O clube de futebol achou que a coroa colocada no local em que foiencontrado era suficiente. Malin trouxe um cravo na mão. E os sinos continuam a tocar.E tocam tanto que ela pensa que se continuarem a tocar um pouco mais, tanto ela comoConny Skoglund vão ficar surdas. E a pastora também. Esta deve ter à volta de trinta ecinco anos. É ruiva, roliça e sardenta. E, finalmente, os sinos param de tocar. Ouve-se,então, um cântico fúnebre. E, depois, a pastora começa a falar.

Ela diz o que deve ser dito e, na hora de se pronunciar pessoalmente, afirma: «BengtAndersson foi uma pessoa anormalmente normal…» Malin quer levantar-se, fechar-lhea boca para que as banalidades terminem, mas, em vez disso, prefere abstrair-se. Esem se dar conta do que faz, deposita o cravo branco em cima do caixão, ao mesmotempo que pensa: «Vamos conseguir apanhá-los ou apanhá-lo. Vais poder descansarem paz. Prometo.»

Malin Fors, se pensas que preciso da «verdade» para descansar em paz, estásenganada a meu respeito. Mas estás a procurá-la para teu próprio bem, não é?

És tu que precisas de descanso e tranquilidade, não eu.Mas muito bem. Podemos ser sinceros um com o outro. Não precisamos de perder

tempo expondo pontos de vista e tendo discussões cansativas.Está na hora de ele me colocar na passagem, o caixão está escuro e quente. E, em

breve, ficará ainda mais quente.Ele chama-se David Sandström, tem quarenta anos de idade e todos se perguntam

como é que pode ter um emprego destes. Os cremadores de cadáveres não são tidosem grande consideração. Talvez sejam até menos considerados que os rapazes

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gordos que atingiram o seu próprio pai com um machado. Mas David Sandströmgosta do que faz. Está só, não precisa de enfrentar os vivos. E isso tem vantagensque não precisam de ser aqui mencionadas.

Agora estamos dentro do forno. É grande e espaçoso, com paredes azul-celeste,situado por baixo da terra, apenas com pequenas janelas no tecto. O forno étotalmente automatizado, o funcionário só precisa de meter o caixão numapassadeira rolante. Em seguida, abre-se a portinhola de um forno que se acende aocarregar num botão.

Depois, começo a arder.Mas ainda não.Primeiro, David Sandström vai empurrar o caixão para a passadeira, coisa que faz

com o máximo cuidado.

Chiça!, está pesado que se farta. No último percurso entre o carrinho e a passadeira énecessário empurrar o caixão e isso costuma ser fácil, mas neste caso está mesmopesado.

Bengt Andersson.David sabe como ele morreu, deixa que fique lá dentro, debaixo da tampa, nem quer

vê-lo. De preferência, devem ser jovens. É desses que ele gosta mais. Emanam maistranquilidade.

Assim mesmo.O caixão está na passadeira rolante.David carrega no primeiro botão da mesa de comando, a portinhola do forno abre-se,

carrega no botão seguinte e as chamas lambem esfomeadas a madeira e mordem-nacom sofreguidão.

Um pouco, um pouco mais.Nessa altura, em alguns segundos o fogo alastra, envolve todo o caixão e a portinhola

desce para a sua posição anterior.David Sandström pega no bloco de apontamentos que traz na algibeira de dentro do

casaco. Puxa por uma caneta especial e escreve numa das últimas páginas:Bengt Andersson, 61 10 15-1923. N.º 12 349.

Sinto o fogo.Essa é a única sensação que existe. Agora vou acabar para sempre. Fico a

transpirar vapor, transformado em fumo que sai pela chaminé do crematório, naspartículas queimadas e mal cheirosas que se espalham por Linköping e pelaatmosfera que Malin Fors respira quando atravessa o estacionamento a caminho do

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edifício da polícia.Restam apenas as cinzas, para serem espalhadas no memorial, um pequeno bosque

junto da capela do antigo cemitério.As urnas que ali se encontram servem apenas de pontos de recordação. E as minhas

cinzas vão ficar lá para que se alguém, ao contrário do que se supõe, quiser zelarpela minha memória, tenha um lugar para ir.

Procuramos memórias, visitamos as nossas vidas.Desolador, não?Mas são assim os hábitos dos vivos.

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TERCEIRA PARTE

OS HÁBITOS DOS VIVOS

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CAPÍTULO 1

FLORES PARA REGAR , correspondência para seleccionar, torneiras para fazer funcionar.Pó para limpar, frigorífico para descongelar, uma colcha para passar a ferro e, ainda,reprimir recordações, esquecer acontecimentos, negar as suspeitas, perdoar aspromessas não cumpridas e relembrar amores, eternamente.

Será que é possível?São 13h45, algumas horas depois do funeral de Bengt Andersson.Malin movimenta-se dentro do apartamento dos pais. Recorda a última vez que aqui

veio. Tove a fazer exactamente o que ela fez na cama dos pais, a mesma determinaçãoingénua, a mesma despreocupação pueril.

Entretanto…Malin solta uma gargalhada. Tem de se rir da determinação de Tove e de Markus em

encontrar um ninho de amor, no meio de tanto frio. À tarde foram os dois ao cinemapara ver um novo filme de acção criado a partir de uma série já esquecida da décadade 1950 e agora adaptado ao gosto actual. Mais violência, mais sexo, embora tãopudico como antes, e um final mais claro e mais feliz. A ambiguidade é inimiga dasegurança, a segurança necessária para assegurar o sucesso nas bilheteiras.

Onde o ritmo das histórias, pensa Malin, é o factor principal.

O cheiro dentro do apartamento dos pais.Cheiro a segredo.Como lá, na cabana dos caçadores furtivos, só que aqui é insondável e privado. Nós

andamos às voltas, pensa Malin, sobre o nosso próprio eixo, quando reflectimosdemais sobre o passado, mas, ao mesmo tempo, perdemos substância se não ousarmosremexê-lo. Os psicanalistas sabem tudo sobre isto.

Malin deixa-se cair no sofá da sala.Tem sede e sente-se cansada de trabalhar: o pai tem as bebidas alcoólicas no armário

por cima do frigorífico, na cozinha.Um nó na alma.Móveis finos que não são assim tão finos.«Já regaste as flores?»Já reguei as flores, sim.As flores. O cheiro. O cheiro a couves.A mentira. Até mesmo aqui? Exactamente como na casa de Rakel Murvall, em

Blåsvädret. Embora mais vago, mais fraco. Tenho de ir lá novamente e arrancar os

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segredos dos azulejos do chão e das paredes.O telemóvel toca na entrada.Está no bolso do casaco. Ela levanta-se do sofá, corre, procura o aparelho às

apalpadelas.Número do estrangeiro.– Sim, aqui Malin.– Malin, aqui é o pai.– Olá, estou no seu apartamento, acabei de regar as flores.– Imagino que sim. Mas não é por isso que estou a telefonar.Ele quer alguma coisa, mas não ousa dizer o que quer. A mesma sensação da chamada

anterior. E depois o pai respira fundo ao telefone antes de começar a falar.– Tu sabes – diz ele – Já falámos em ter cá a Tove durante algum tempo. Afinal, ela

deve ter um período de férias, agora, em Fevereiro, não é verdade? Talvez fosse umaboa ocasião, não achas?

Malin afasta o aparelho do ouvido, olha para ele e abana a cabeça.Depois, controla-se e volta a colocá-lo no ouvido.– Daqui a duas semanas.– Duas semanas?– Sim, as férias começam daqui a duas semanas, mas há um problema.– Que problema?– Não temos dinheiro para comprar a passagem de avião. Estou completamente lisa e

o Janne teve de trocar a instalação do aquecimento antes do Natal.– Sim, também já falámos disso, eu e a tua mãe. Nós podemos pagar a passagem.

Estivemos hoje numa agência de viagens e eles oferecem uma promoção via Londres.Talvez possas vir também. Arranjar uns dias de férias, não?

– Impossível – responde Malin. – Assim, de repente. E estamos a investigar um caso,agora, no trabalho, e estamos com dificuldades para resolvê-lo.

– Então, o que é que achas?– A ideia é óptima, mas preciso de falar com Tove, primeiro.– Ela vai poder nadar e andar a cavalo, aqui.– Ela sabe muito bem o que quer e o que não quer. Podes ter a certeza.– Vais falar com ela?– Telefona-lhe tu. De momento, está no cinema, mas deve voltar para casa lá pelas

dez horas.– Malin, mas tu podias falar com ela…– ok, ok, vou falar com ela e depois telefono. Amanhã.

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– Não adies muito a decisão. A promoção pode acabar.

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CAPÍTULO 2

AS VOZES.

Deixem-nas voar.Escutem-nas todas, na investigação.Deixem que falem. Isso conduzir-vos-á ao objectivo.Na entrada do apartamento de Niklas Nyrén há caixas transparentes com chocolates

diversos, sonhos de framboesa, de brigadeiros. O tapete verde está cheio de migalhasde bolos. No caminho que leva à garagem, está uma carrinha Volvo estacionada bemperto da caixa do correio.

Cuidado Malin, pensa ela, ao tocar à campainha. Se os rapazes fizeram aquilo, épossível que ele os tenha ajudado a transportar o corpo.

Quando entram no apartamento, Niklas Nyrén segue na sua frente até chegarem à salade estar, bem organizada e dominada por um sofá em tecido vermelho diante de umtelevisor de écrã plano montado na parede.

Nada no apartamento indica qualquer outra coisa que não seja que Niklas Nyrén é umhomem vulgar de meia-idade.

Veste jeans e uma camisola verde, o rosto é redondo e a barriga, proeminente, cai-lhepor cima da cintura. Muito tempo sentado. Muitas viagens de carro, ao volante. Econsumo exagerado de bolos e de outros produtos semelhantes.

– Pensei ligar-lhe – diz Niklas Nyrén. A sua voz é estranhamente grave para umapessoa nitidamente obesa. Devia ser mais clara, mais aguda.

Malin não reage, senta-se numa poltrona junto de uma pequena mesa, perto da janelacom vista para a fábrica Cloetta.

– Tinha algumas perguntas a fazer-me – diz Niklas Nyrén, assumindo um lugar nosofá.

– Como sabe, o nome de Joakim Svensson apareceu na investigação do assassínio deBengt Andersson.

Niklas Nyrén acena, positivamente:– É difícil para mim imaginar que o miúdo possa estar envolvido. Ele precisa apenas

de aprender boas maneiras e de ter um exemplo masculino como referência.– O seu contacto com ele é bom?– Estou a tentar – diz Niklas Nyrén. – Tento muito. Eu próprio tive uma infância de

merda e gostaria de ajudar o rapaz. Ele tem as chaves deste apartamento. Demonstroque confio nele.

– De merda, como?

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– Nada de que eu goste de falar. Mas o meu pai bebia muito, e a minha mãe não eraassim tão dedicada como devia.

Malin acena com a cabeça.– E na noite de quarta para quinta-feira da semana passada, onde esteve?– Margaretha esteve aqui e estou certo de que Jocke viu esse tal filme na companhia

de Magnus, como ele disse.– Magnus? Você conhece o Magnus Tedensjö?Niklas Nyrén levanta-se, vai até à janela e olha para a fábrica Cloetta.– Andam sempre juntos. Para construir um bom relacionamento com um deles, é

preciso fazer o mesmo em relação ao outro. Eu tento inventar sempre alguma coisa deque ambos gostem.

– E de que é que eles gostam?– De que gostam os miúdos? Levei-os a ver um torneio de skate em Norrköping.

Estivemos no Mantorp Park. Deixei-os guiar o meu carro na antiga estrada I4. Chegueimesmo a levá-los uma vez a uma escola de tiro no Verão passado.

Não precisas de ter tanto cuidado, Malin. Toda a figura de Niklas Nyrén irradiasinceridade ou, então, sabe muito bem como representar o papel de ingénuo.

– Você gosta de caçar?– Não, mas há tempos dediquei-me ao tiro desportivo. Com espingardas de ar

comprimido. Porquê?

– Será que me coloquei em maus lençóis?Niklas Nyrén procura no roupeiro do quarto.– É claro que não preciso de ter um armário de armas para guardar uma espingarda de

disparar chumbinhos, não é?– Acho que não – responde Malin.– Aqui está!Niklas Nyrén ergue na mão uma espingarda pequena, quase demasiado esguia, de cor

preta, à frente de Malin, que recupera a serenidade ao ver a arma. Ninguém deve tocarna arma antes de o pessoal da perícia dar uma olhadela.

– Por favor, coloque a arma em cima da cama – diz ela, enquanto Niklas Nyrénadopta uma expressão de surpresa, ao pôr a arma onde ela pediu.

– Tem daqueles sacos de plástico para guardar alimentos no congelador? – PerguntaMalin.

– Sim, claro, na cozinha. É lá, também, que guardo as munições.– Óptimo – diz Malin. – Pode ir buscar as duas coisas, os sacos e as munições? Eu

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espero aqui.Malin senta-se na cama, ao lado da arma. Respira fundo o ar pesado de um quarto que

não é regularmente arejado, e olha em volta para os quadros de peixes, pendurados nasparedes brancas, reproduções vendidas nas lojas IKEA, com molduras baratas.

Malin fecha os olhos, suspira.Joakim Svensson tem a chave do apartamento.Ele e Magnus Tedensjö devem ter levado a arma daqui num dia em que Niklas Nyrén

estaria a viajar em trabalho e foram até à casa de Bengt Andersson disparar para lhemeter medo. Para o atormentar. Os sacanas, pensa Malin, mas conteve-se. Ascircunstâncias e o excesso de testosterona, realmente, podem fazer com que osadolescentes cometam actos muito condenáveis. E aquele que sofre por viverabandonado e espezinhado acaba por revoltar-se e pagar na mesma moeda.

Malin reabre os olhos e vê Niklas Nyrén voltar da cozinha.Numa das mãos traz um pacote de sacos de plástico e na outra a caixa de munições.– Eu costumo usar balas de borracha – diz ele. – Raios me partam, se esta caixa de

munições não estava por abrir. Mas alguém a deve ter aberto. Faltam três balas.O rosto de Niklas Nyrén está crispado de decepção e cólera.

Pressionar os rufiões de Ljungsbro e levá-los a confessar que foram eles quedispararam contra o apartamento de Bengt Andersson? Continuar a pressioná-los paraque contem ainda mais?

Se é que existe mais alguma coisa para contar. Quem sabe?Por muito que queira avançar nesse sentido, ainda é demasiado cedo, pensa Malin.Pisa o acelerador a fundo, a caminho de Maspelösa, através da planície coberta de

neve. Já decidiu que não vai tomar nenhuma atitude antes de Karin encontrar asimpressões digitais na espingarda que está agora, envolta num cobertor, na mala docarro. Mas Malin ainda brinca com a ideia. Não será melhor eu regressar e procurarMagnus Tedensjö em casa para pressioná-lo? Posso fazer isso sozinha. É umabrincadeira de crianças em comparação com a família Murvall. Não. É melhor esperarque Karin faça o seu trabalho, confirmar se as balas de borracha que atingiram oapartamento de Bengt Andersson saíram realmente da espingarda de Niklas Nyrén.Nesse caso, será fácil colocar os rapazes perante um facto consumado. Os agentespoderão tirar as impressões digitais dos rapazes para as comparar com as daespingarda.

O endereço de Rickard Skoglöf está no telemóvel. Não é fácil encontrar a casa eMalin tem de andar às voltas no campo até chegar ao pequeno retiro.

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Pára o carro.As casas de pedra, acinzentadas, são a expressão do desalento diante do frio reinante,

a neve cobre os telhados de palha e há luz na janela maior da construção central.Idiotas do culto ASA, pensa Malin, antes de bater à porta. Destes também posso tratar

sozinha.Decorrem apenas alguns segundos antes de o homem, que deve ser Rickard Skoglöf,

abrir a porta, vestido com uma longa capa e com os cabelos e a barba em totaldesalinho. Por detrás dele, o corpo de uma mulher vestida de branco que deve serValkyria Karlsson.

– Malin Fors, da polícia de Linköping.– Ele deve estar suspenso, o outro, depois do tiro que deu – diz Rickard Skoglöf, e

sorri, ao mesmo tempo que convida Malin a entrar. No interior um calor húmido,apesar dos estalidos de uma lareira algures dentro de casa.

– Pode entrar por ali.Rickard Skoglöf aponta para a esquerda, para uma sala de estar onde um gigantesco

monitor de computador está a piscar em cima da escrivaninha.Valkyria Karlsson está sentada no sofá, com as pernas dobradas debaixo do corpo e

de camisa de dormir.– Foi você – diz ela assim que Malin entra na sala – que me perturbou.Rickard Skoglöf entra, com três chávenas numa bandeja.– Chá verde – diz ele. – Muito bom para os nervos, no caso de se ter problemas com

eles.Malin não responde, pega numa das chávenas e senta-se na cadeira preta do

escritório, diante do computador. Rickard Skoglöf mantém-se de pé, depois de dar achávena a Valkyria.

– Sente-se bem – pergunta Malin – a instigar jovens a fazer coisas idiotas?– O que é que quer dizer com isso? – Pergunta Rickard Skoglöf, às gargalhadas.Malin sente o impulso de atirar o chá quente à cara do estupor, mas contém-se a

tempo.– Chega de tolices. Nós sabemos que mandou mensagens pela Internet a Andreas

Norling e quem sabe o que mais ainda pode ter feito.– Ah, isso. Li sobre isso no Corren. Mas nunca acreditei que pudessem fazer o que

fizeram.– Teve algum contacto pessoal com Magnus Tedensjö? Um Joakim…– Não conheço nenhum Magnus Tedensjö. Presumo que é um daqueles adolescentes

sobre quem o Corren escreveu, um dos que perseguiu Bengt Andersson. Gostaria de

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dizer, de uma vez por todas, que nós os dois não temos nada que ver com isso.– Nada – diz Valkyria, enquanto estica as pernas no sofá. Malin repara que tem as

unhas dos pés pintadas com verniz alaranjado, luminoso.– Vou confiscar o disco rígido do seu computador, agora – diz Malin. – Caso

proteste, vou arranjar imediatamente um mandado de busca e apreensão.Rickard Skoglöf já não sorri, está com medo.Valkyria olha para Malin, com olhos de espanto. E diz:– Nunca vai conseguir nada contra nós, sua chui de uma figa.

Tove regressa a casa logo depois das seis horas. Fecha a porta com estrondo. Éimpossível dizer se foi por distracção ou por raiva.

Um belo domingo, pensa Malin, enquanto espera Tove na sala de estar.A espingarda foi entregue para a perícia. Karin e os seus colegas vão analisar a arma.

É a primeira coisa que vão fazer amanhã pela manhã. O disco rígido de RickardSkoglöf está em segurança no departamento. Johan Jakobsson e os técnicosespecializados em informática vão verificar tudo imediatamente e ver se esse profetada ASA, filho do demónio, andou a instigar outras pessoas, incentivando-as a realizaracções verdadeiramente hediondas, como o assassínio de Bengt Andersson. Nessecaso, deve haver pistas no seu computador, mensagens e outros indícios.

Nessa altura, Tove entra na sala. O seu rosto e os olhos revelam tranquilidade, nadade preocupações nem de inquietações.

– O filme era bom? – Pergunta Malin, do seu lugar no sofá.– Não valeu a pena – responde Tove.– Mas pareces satisfeita.– Sim, Markus vem cá jantar amanhã. Pode ser?Tove senta-se no sofá e tira batatas fritas de uma taça em cima da mesa.– Ele é bem-vindo.– O que estás a ver na televisão?– Um documentário qualquer sobre Israel, a Palestina e agentes duplos.– Não há nada melhor?– Certamente que há. Podes ver.Malin entrega o comando do televisor a Tove, que desata a procurar e a saltar de

programa para programa até se fixar no canal local. O Linköping Hockey Club está ajogar fora e a derrotar a equipa de Modo, e Martin Martinsson já fez três golos.Segundo consta, está presente no estádio um caçador de talentos do hóquei norte-americano.

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– Estive hoje em casa dos teus avós. – Tove acena com a cabeça como quempergunta: «E daí?» – O avô telefonou. Perguntou se queres visitá-los em Tenerifedurante as férias de Fevereiro.

Malin observa atentamente a reacção. Gostaria de ver um sorriso aberto nos lábios deTove, mas, em vez disso, surge uma expressão preocupada.

– Mas nós não temos dinheiro para a passagem de avião, pois não?– Eles pagam a passagem.Tove parece ficar ainda mais preocupada.– Mãe, não sei se quero ir. Será que vão ficar chateados se eu disser que agradeço,

mas não aceito?– Podes fazer o que quiseres, Tove. A decisão é tua.– Mas eu não sei.– É melhor dormires sobre o assunto, minha querida. Não precisas de decidir nada

até amanhã ou até terça-feira.– Está calor lá, não é?– No mínimo, vinte graus – responde Malin. – Como no Verão aqui.

Há maçãs nas árvores. E há um rapaz, dois, três, quatro rapazes, a correr em círculos,dentro do jardim. Caem na relva e sujam os joelhos de verde. E, então, há apenas umdos rapazes que depois de cair se levanta e continua a correr. Corre até chegar à orlade uma floresta. Hesita durante alguns momentos, a ganhar coragem, e então decidepenetrar na escuridão.

Corre entre os troncos das árvores, pisa os ramos secos e cortantes espalhados nochão, fere-se nos pés, mas não admite para si mesmo sentir dor e parar de combater omonstro que ruge por baixo, entre as raízes.

De repente, o rapaz está junto da cama de Malin, ajuda-a a respirar o ar amarelado damanhã e pressiona-lhe o tórax.

Depois murmura-lhe ao ouvido, ainda a dormir, a sonhar:– Como é que eu me chamo?, de onde vim?

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CAPÍTULO 3

SEGUNDA-FEIRA, 13 DE FEVEREIRO

NEVOEIRO MORTIÇO PELA MANHÃ sobre a cidade e os campos.A investigação quase totalmente estagnada.A arma a ser analisada.O disco rígido do computador a ser verificado, de manhã cedo.No campo coberto de neve não há vento, nada acontece, apenas polícias exaustos, uns

a dormir, outros acordados. Börje Svärd na cama, sozinho por baixo dos lençóisfloridos e bem lavados, os seus dois cães, pastores alemães, vindos do canil, um decada lado da cama. Na sala, junto da entrada, os dois enfermeiros de serviço, do turnoda noite da assistência domiciliária, ajudam a sua mulher a virar-se na cama. E ele afazer os possíveis para controlar os animais e mantê-los em silêncio.

Johan Jakobsson, na sua casa geminada em Linghem, ainda sonolento, sentado com assuas filhas de três anos nos braços. O programa Loranga & Mazarin, no ecrã dotelevisor, auscultadores nos ouvidos das filhas. Quando é que vocês vão saber como ébom dormir? No dia anterior, passou o tempo todo a falar com a jovem e o jovem queajudaram a montar o esquema da matança dos animais. Tinham os dois álibis para anoite do assassínio de Bengt Andersson. Estavam apenas confusos, como osadolescentes costumam estar. Mas foi um dia de muito trabalho, um dia em que teve dedeixar a família à deriva.

Zacharias Martinsson, o Zeke, está a dormir ao lado da mulher que está sempregelada, com frio, por dormirem com a janela entreaberta, convite para novasconstipações.

Sven Sjöman, a dormir de barriga para o ar na sua vivenda, roncando sonoramente, ea mulher já na cozinha, sentada à mesa, a bebericar o café acabado de fazer, e a ler ojornal, o Svenska Dagbladet. Costuma sair da cama primeiro, sem incomodar omarido.

Até Karim Akbar continua a dormir na sua cama, deitado de lado, a respirar bem, atossir de vez em quando, e a procurar com o braço a mulher que já lá não está. Estásentada na sanita, com o rosto entre as mãos, a pensar o que deve fazer para que tudoentre nos eixos e no que aconteceria se Karim soubesse.

A técnica em perícias, Karin Johannison, está acordada, bem sentada em cima domarido, a soltar os cabelos de um lado para o outro, a usar e abusar do seu própriocorpo e a usufruir do corpo do parceiro, que é mais dela do que dele. Na realidade, é

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só para isso que ela precisa dele, não é verdade?Malin Fors também já está acordada.E até já está ao volante do seu carro. Consciente do que tem a fazer.A terceira linha da investigação sobre a morte de Bengt Andersson tem de ser

reactivada, chicoteada, posta a correr.Malin está com frio.O sistema do carro não consegue aquecer o interior logo pela manhã. Pela janela, já

consegue ver a torre de pedra do Mosteiro de Vreta e, mais ao longe, o lugar chamadoBlåsvädret. Lá, na cozinha, sozinha, deve estar Rakel Murvall, com uma caneca de caféna mão, preparado à moda antiga, fervido directamente na água. E, certamente, a pensarque está na hora de os rapazes voltarem para casa, que a oficina não pode continuarsem produzir.

Malin estaciona em frente da casa de Rakel Murvall. A casa branca de madeiraparece mais desgastada do que na vez anterior em que esteve lá. É como se começassea envelhecer de vez, a ceder à pressão do tempo frio e do uso das pessoas lá dentro. Aentrada foi limpa da neve, bem limpa, como que preparada para receber o tapetevermelho de recepção aos regressados.

Ela já deve estar acordada, pensa Malin. Vou surpreendê-la. Chegar quando elamenos espera.

Exactamente como Tove, bate a porta do carro com estrondo, mas com uma intenção:acabar com a ideia de domínio, de agressividade, de superioridade, que faz da mãeMurvall um ser intransigente. Fazer com que ela se abra, confesse tudo o que tem acontar e que Malin sabe que ela esconde.

Malin bate à porta.Finge que Zeke está ao seu lado.Ouvem-se passos pesados, por detrás da porta. E surge a mãe Murvall. As suas faces

pálidas envolvem os olhos talvez mais atentos e espantados que Malin já viu emqualquer outra pessoa, um olhar que consome Malin, que a faz esmorecer, ficar semvontade própria e com medo.

Rakel Murvall tem mais de setenta anos. Malin pensa: «O que poderá ela fazer contramim?» Mas sabe que pode estar errada. Ela pode fazer tudo e mais alguma coisa.

– Inspectora Fors – diz Rakel Murvall, num tom de boas-vindas. E, à moda antiga,acrescenta: – Em que posso ajudá-la?

– Deixar-me entrar em sua casa. Está frio cá fora. Tenho mais algumas perguntas afazer-lhe.

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– Mas acha que tenho mais respostas?Malin acena com a cabeça. Acha que sim.– Acho que a senhora tem todas as respostas do mundo.Rakel Murvall afasta-se para o lado e deixa Malin entrar.

O café está quente e bem preparado, nem fraco nem forte.– Os seus rapazes não são nenhuns pombinhos – diz Malin, ao sentar-se na cadeira,

com o corpo bem direito.Nos olhos de Rakel Murvall vê transparecer a vaidade, depois a raiva.– O que é que sabe sobre os meus rapazes?– Na realidade, vim para falar do seu quarto filho. – Malin afasta de si a caneca de

café, olha para Rakel Murvall, fixa o olhar nela. – Karl – diz Malin.– Como disse?– Karl.– Não tenho muito contacto com ele.– Quem era o pai dele? Não é o mesmo dos outros rapazes. Até aí já eu sei.– Pelo que vejo, já falou com ele.– Tive uma conversa com ele, sim. Ele disse-me que o pai era um marinheiro que

morreu num naufrágio quando a senhora ainda estava grávida.– Tem razão – diz Rakel Murvall. – O naufrágio ocorreu perto de Cabo Verde, no dia

18 de Agosto de 1961. O navio M/S Dorian afundou-se com todos os homens a bordo.– Acho que está a mentir – diz Malin, mas Rakel Murvall sorri apenas, antes de

continuar:– Peder Palmkvist, era o nome dele, o marinheiro.Malin levanta-se.– Era tudo o que eu queria saber – diz Malin. A velhota levanta-se, também. E com

isso, aos olhos de Malin, voltou a assumir a autoridade na casa.– Se voltar aqui mais uma vez, vou denunciá-la por perseguição.– Estou a tentar fazer apenas o meu trabalho, senhora Murvall, apenas isso.– Os barcos afundam-se – diz Rakel Murvall. – Como pedras de granito, escuras.

Malin passa de carro pela estação de serviço da família Murvall. O cartaz da Preemestá apagado, as montras parecem bocas abertas, escuras, bocejando na sua direcção. Ea fundição em ruínas, no terreno das traseiras, parece suplicar para ser demolida.

Passa ainda por duas localidades, Brunnby e Härna, não quer ver a casa onde oApanha Bolas tinha o apartamento. Da estrada, vê-se apenas o telhado da construção,mas ela sabe qual é o prédio.

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Certamente, o senhorio já mandou fazer a limpeza do apartamento. As tuas coisas, aspoucas que se podiam vender, já devem ter ido a leilão e o dinheiro das vendasreverterá para o Estado. Rebecka Stenlundh, a tua irmã de sangue, mas não do ponto devista jurídico, não vai poder herdar nada do pouco que tinhas.

Já alguém alugou o teu apartamento, Apanha Bolas? Ou ainda está vazio, à espera deque voltes para casa? Talvez já estejas em casa, finalmente. O pó acumula-se nosparapeitos das janelas, as torneiras enferrujam-se, lenta, lentamente.

Malin passa por baixo do aqueduto, pela frente da escola, pega no telefone e pensa:quero que a reunião da manhã se lixe.

– Johan? É Malin.– Malin?É a voz de Johan Jakobsson ao telemóvel, bêbado de sono, certamente acabado de

chegar para a reunião.– Podes ir verificar uma coisa, por favor, antes de te dedicares ao disco rígido de

Rickard Skoglöf?Malin pede-lhe para confirmar o naufrágio do navio e o nome do marinheiro.– Coisa muito antiga para estar no registo de navegação marítima – diz Johan.– Deve haver alguma coisa na Internet. Há sempre algum tipo interessado nesses

assuntos.– Tens razão. Os heróis da Marinha Mercante devem ter uns admiradores que não

deixam ninguém ficar esquecido. Ou talvez haja alguma informação na Fundação daMarinha.

– Obrigada, Johan. Fico a dever-te um favor.– Espera, antes de fazeres promessas. Primeiro, vamos ver se consigo encontrar

alguma coisa. Depois, vou dedicar-me ao disco rígido.Malin desliga quando estava a chegar ao portão do lar de idosos, em Vretaliden.

Malin vai directa à recepção, mas, embora tenha passado rapidamente pelo átrio deentrada, consegue sentir o mau cheiro dos produtos de limpeza usados no local. Oproduto químico que utilizam é de baixa qualidade, não lhe misturam nenhum perfumenatural, o que torna o lugar deprimente. Em geral, nos lares de idosos, pensa Malin,usam-se produtos de limpeza que cheiram a limão ou a flores, mas não neste. E, aqui, olar é para pessoas sensíveis que decerto merecem outro odor que não aquele.

Apanha o elevador para o terceiro andar e continua pelo corredor até encontrar oquarto de Gottfrid Karlsson.

Malin bate à porta.

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Responde uma voz fraca, mas ainda firme.– Sim, pode entrar.Malin abre a porta, entra cautelosamente, e vê na cama um corpo magro escondido

por baixo de um cobertor. Antes mesmo de ela dizer qualquer coisa, o velhote abre aboca e fala:

– Menina Fors, sempre esperei que voltasse aqui.Malin acha que todos esperam saber a verdade, mas ninguém se dispõe a revelá-la.

Talvez seja da própria natureza da verdade: uma sucessão de aparências tímidas,disfarçadas, mais do que afirmações definitivas, não é? No fundo, existe apenas umtalvez.

Malin aproxima-se da cama. Gottfrid Karlsson dá umas palmadinhas num lugar ao seulado.

– Sente-se aqui, menina Fors, pertinho deste velho acabado.– Obrigada – diz ela, sentando-se na cama ao pé dele.– Eu pedi para alguém me ler sobre o caso – diz Gottfrid Karlsson, ao mesmo tempo

que olha para Malin com os seus olhos quase cegos. – Que coisas horríveis. E osirmãos Murvall parecem ser uns bons malandros. Devo ter perdido a oportunidade deconhecê-los quando me aposentei. Mas, como é natural, conheci muito bem a mãe e opai deles.

– Como era a mãe deles?– Ela não se expunha muito. Mas lembro-me dos olhos dela e do que se pensava,

então: «Ali vai Rakel Karlsson. Com aquela mulher não se brincar.»– Karlsson?– O mesmo apelido que o meu. Karlsson é, seguramente, o apelido mais vulgar na

região. Sim, era esse o apelido dela antes de se casar com Svarten Murvall.– E Svarten?– Um bêbado fanfarrão, mas bem lá no fundo era medroso. Não era como o Kalle da

Curva. Era de outra têmpera.– E o filho, o que ela teve antes de casar-se com Svarten?– Acho que me lembro dele, mas já me esqueci do nome. Acho que se chama… Bom,

não interessa. Certos nomes desaparecem da minha memória. Como se o tempoapagasse certas coisas dentro do cérebro. Mas lembro-me de uma coisa. De que o paido rapaz morreu num naufrágio quando ela ainda estava grávida.

– Como é que ela era com a criança? Deve ter sido difícil para ela.– Nunca ninguém viu a criança.– Não viu?

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– Todos sabiam que o rapaz existia, mas ninguém conseguia vê-lo. Nunca saía com amãe, nunca foi visto na povoação.

– E depois?– Ele devia ter uns dois anos de idade quando ela se casou com Svarten Murvall. Mas

havia rumores, a menina Fors entende?– Rumores de quê?– Sobre isso não vou dizer nada. Mas a menina poderá conversar com Weine

Andersson.Gottfrid Karlsson coloca a mão, cheia de veias salientes, em cima da mão de Malin.– Ele mora no lar de Stjärntorp. Weine Andersson estava no Dorian quando o navio

naufragou. Certamente, deve ter informações mais seguras sobre certas coisas.A porta do quarto abre-se e Malin vira-se.A enfermeira Hermansson.Os cabelos curtos parecem espetados na direcção do tecto. E, nesse dia, deve ter

trocado os óculos de fundo de garrafa por lentes de contacto. Parece dez anos maisnova.

– Inspectora Fors – diz ela. – Como é que se atreve?

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CAPÍTULO 4

– NINGUÉM, NEM MESMO A POLÍCIA, pode entrar aqui e falar com qualquer dos meuspensionistas sem se anunciar.

– Mas…– Ninguém, inspectora Fors, ninguém. Nem mesmo a senhora. A enfermeira

Hermansson arrasta Malin para a pequena recepção no corredor. E uma vez lá,continuou: – Os pensionistas podem sentir-se mais indefesos do que aparentam, mas, nasua maioria, estão mesmo muito fracos. E nesta época do ano, em especial, com o frioextremo, morrem como moscas, uns atrás dos outros. E os que sobrevivem ficampreocupados…

Primeiro, Malin fica zangada. Pensionistas? Então não seria como se estivessem emsuas casas? E não podiam fazer o que quisessem? Mas depois reconhece que aenfermeira tinha razão. Se ela não estivesse atenta e defendesse os velhinhos, quem ofaria?

Malin pede desculpa antes de se ir embora.– Desculpa aceite – diz a enfermeira, com uma nítida expressão de satisfação pessoal.– E tente mudar de produto de limpeza – acrescenta Malin. Hermansson olha para ela,

com uma expressão de dúvida. – Sim, usam um produto não perfumado. E existemoutros perfumados e antialérgicos que cheiram muito melhor e, na realidade, nãocustam muito mais.

Hermansson parece reflectir.– É uma boa ideia – diz ela, depois. E começa a folhear vários papéis como para

assinalar que a conversa entre as duas tinha terminado.Quando Malin já está a caminho do estacionamento, o telemóvel toca.Ela corre de volta para o ambiente aquecido, mas não perfumado, do átrio de entrada,

e atende a chamada.– Está confirmado. A Fundação da Marinha tem tudo nos seus registos.Johan Jakobsson também se mostra satisfeito.– Quer dizer, o M/S Dorian naufragou e havia um Palmkvist a bordo que se afogou, é

isso?– Exactamente. Não estava entre aqueles que escaparam nos barcos salva-vidas.– Portanto, alguns conseguiram salvar-se.– Parece que sim.– Obrigada, Johan. Fico mesmo a dever-te um favor.

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Ruínas.Malin afasta os olhos do caminho por alguns segundos, e observa o Roxen, um lago

onde o gelo parece ter-se solidificado permanentemente. Os carros rodam por umapista aberta no gelo, no mínimo com um metro de espessura, onde os condutorestreinam eventuais derrapagens e aprendem a evitá-las e a controlá-las quando estão nasestradas. Um treino em relativa segurança. E no outro lado do lago, mais ao longe, vê-se o fumo a sair das chaminés das pequenas casas de campo.

O palácio de Stjärntorp.Sofreu um incêndio no século xviii, foi reconstruído ao lado, residência da família

Douglas que, ainda hoje, cheira a dinheiro.O palácio não poderia ser mais sombrio. Uma construção de pedra cinzenta, de dois

andares, com janelas minúsculas, diante de um campo de relva aparada, ladeado poranexos modestos. As ruínas do antigo palácio ainda podem ser vistas numa área lateral,como uma lembrança permanente de como a qualquer momento, tudo pode acontecer.

O lar de idosos foi construído a um canto da propriedade, logo depois da curva quemarca o sítio em que a estrada abandona a floresta e se abre para o lago.

A construção de três andares está pintada de branco e Malin acha que ali não devempoder viver mais de trinta velhinhos, no meio de um silêncio quase total já que sãopoucos os carros que passam por ali.

Estaciona em frente da entrada.Qual será o tipo de enfermeira-chefe que desta vez vou encontrar pela frente?Depois, pensa na noite que se aproxima. Lembra-se que Tove convidou Markus para

jantar. Espera que não seja um fiasco. Olha para o edifício e pensa: Weine Andersson.Há o risco de se atrasar para o jantar.

Weine Andersson está sentado numa cadeira de rodas, ao lado de uma janela comvista para o lago Roxen.

Na recepção, quando Malin se apresenta a uma enfermeira idosa, esta parece ficarfeliz com a visita. E parece não se importar ou ficar preocupada com o facto de Malinser da polícia e ter uma missão a cumprir. Em vez disso, afirma: «Weine vai ficarcontente. Raramente tem visitas.» E depois de uma pausa: «Ele gosta de jovens.»

Jovem, eu? pensa Malin. Será que ainda posso ser classificada como tal? Tove é umajovem. Eu, não.

– Ele está paralisado do lado direito. Teve um derrame, mas a fala não ficouafectada. No entanto, está muito sensível, muito emotivo.

Malin agradece.

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O homem calvo na sua frente tem tatuagens de marinheiro nas mãos. Na mãoparalisada, apoiada no braço da cadeira, alguém desenhou uma âncora de linhasgrosseiras, com tinta preta.

O seu rosto está cheio de rugas e a pele manchada. Um dos olhos está cego, mas o sãoparece ver melhor ainda.

– É verdade – conta ele com o olho fixo em Malin. – Eu estava a bordo do navio.Partilhava a cabina com Palmkvist. Dizer que éramos amigos é talvez um exagero, masvínhamos da mesma região, portanto, era natural que convivêssemos bastante.

– Ele morreu afogado?– Ao largo de Cabo Verde caiu uma tempestade, não pior do que qualquer outra, mas

o navio foi atingido de lado por uma onda gigantesca. O barco adornou e, em apenasmeia hora, foi ao fundo. Eu consegui nadar e subir para um dos barcos salva-vidas.Andámos quatro dias no meio da tempestade até sermos apanhados pelo M/SFrancisca. Conseguimos sobreviver à custa da água da chuva.

– Não sentiram frio?– Não estava frio. Apenas escuro. Nem mesmo a água era fria.– E Palmkvist?– Não voltei a vê-lo. Acho que ficou na cabina onde estava quando fomos atingidos

pela primeira onda. A cabina deve ter ficado logo alagada. Eu estava de serviço e,naquele momento, na ponte de comando.

Malin pode imaginar a situação.O navio adorna, fica de lado.Um jovem acorda com o movimento, fica tudo escuro, a água entra, sobe, invade toda

a cabina como se fosse os tentáculos de um polvo. A porta da cabina recebe a pressãoda água pelo lado de fora, ele não consegue abri-la, a boca, o nariz, a cabeça ficamenvolvidos pela água. E, finalmente, desiste.

– Palmkvist sabia que ia ser pai?Weine Andersson não consegue esconder uma expressão negativa.– Quando regressei a casa, ouvi uns rumores. Mas posso garantir que Palmkvist não

era o pai do rapaz de Rakel Karlsson. Ele não estava interessado em mulheres, pelomenos dessa maneira.

– Ele não queria ter filhos, é isso?– Marinheiros, inspectora Fors.Malin acena com a cabeça, faz uma pausa antes de continuar:– E se o pai do rapaz não era o Palmkvist, então quem era?– Depois disso, fiquei em terra. Na terceira noite, a tempestade, precisamente quando

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pensávamos que ia amainar, voltou de novo. Tentei segurar Juan, mas ele acabou porescorregar, soltar-se de mim. Era de noite, estava muito escuro, e o vento soprava demaneira infernal, como na pior das noites de Inverno. O mar queria comer-nos, chiavade fome, vinha para cima de nós, segurava-nos, queria engolir-nos, e, apesar de…

A voz apaga-se, fica em suspenso. Weine Andersson leva a sua mão saudável aorosto, baixa a cabeça e chora.

– …apesar de eu o agarrar o mais que podia, ele foi-se, escorregou-me dos braços.Vi o medo nos olhos dele. Vi-o desaparecer nas ondas escuras do mar… Não havianada que eu pudesse fazer…

Malin espera.Deixa que Weine Andersson se recomponha, mas, precisamente quando pensava estar

pronto para responder à pergunta seguinte, o velhote na sua frente começa a choraroutra vez.

– …passei a viver – diz ele –, a viver sozinho, não havia outro caminho a seguir, nãohavia outra oportunidade para mim… acho eu.

Malin espera.Vê a tristeza afastar-se lentamente de Weine Andersson.E, de repente, sem que tivesse perguntado nada, ele acrescenta:– Palmkvist estava preocupado com os rumores a respeito de Rakel Karlsson. Já

tinham começado antes de termos partido para a viagem. Mas eu sabia, e muitos outrossabiam, quem era o pai da criança que ela esperava.

– Quem era? Diga-me, quem era?– Já ouviu falar de um homem chamado Kalle da Curva? Era ele o pai do rapaz que

ela teve e diz-se que foi ele que bateu em Svarten, de tal maneira que ele acabou nacadeira de rodas.

Malin sente um calor invadir-lhe o corpo. Um calor que é, ao mesmo tempo, gélido.

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CAPÍTULO 5

PARQUE POPULAR DE LJUNGSBRO, INÍCIO DO VERÃO DE 1958

OLHA COMO ELE SE MOVIMENTA.

Músculos tensos e fortes, olhos negros.Como os outros se afastam, instintivamente, quando ele passa com ela, com outra e

ainda outra.Não tem limites, Kalle.Como o aroma doce das noites de Verão se mistura com o suor dos corpos que

dançam, o desgaste da semana de trabalho que se esvai, a carne expectante, o sangueque corre por todas as partes do corpo, torcendo-os de desejo.

Ele viu-me.Mas espera.Está a dançar para se preparar. Ergue o teu corpo, Rakel, estica-te.A banda está no palco. No ar, o cheiro a salsichas e aguardente. E a desejo. Um, dois,

três… As outras, na sua maioria gordas, dos chocolates que comem, mas tu não, Rakel,tu não. Tu és roliça nos lugares certos. Por isso, estica o corpo, espeta os seios apenaspara ele, quando ele estiver a dançar com outra.

Ele é um animal.Desejo puro.Ele é a violência, indomável, primitiva. Aquele que não sabe o que é fugir, aquele

que fica e afronta os que não têm voz nem espaço na terra do chocolate.E esta noite, Kalle vai dançar contigo, Rakel. Pensa no que será ter a oportunidade de

dançar com ele, Kalle… Esta noite é Rakel que vai dançar a última dança com Kalle,aquela que vai sentir o cheiro do suor da camisa dele.

E, então, uma pausa. A multidão evapora-se na noite, há lanternas acesas, coloridas, euma fila para as salsichas, garrafas de aguardente que se esvaziam, Kalle que fura afila, lambe a mostarda da salsicha e engole-a de uma dentada. A gordinha está ao seulado, mas agora ele olha para mim, sai de ao pé dela e dirige-se a mim, mas ainda não,ainda não. Viro-me e caminho para as casas de banho, entro na das mulheres, a sentirsempre os passos dele, o seu hálito pesado e ofegante atrás de mim.

Ainda não, Kalle.Eu não me entrego a qualquer um.É a vez de as mulheres escolherem o par.E as mulheres dirigem-se logo para ele, o homem. O único na sala que merece esse

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título.Mas ele nega-se.Olha para mim.Será que devo? Nunca. Eu não me entrego a qualquer um. Então, ele dança com a

outra, há um outro corpo, mas não é o meu que ele conduz no meio da sala.A vez dos homens.Eu nego-me a este e àquele, ao outro e a outro ainda.E, então, aparece Kalle.Estou de pé, encostada a um painel de madeira.Ele pega na minha mão. Não pergunta. Resisto, abano a cabeça, não adianta.Ele arrasta-me.Não.– Dançar, Kalle – digo-lhe eu – podes fazê-lo com as outras, com as mulheres

vulgares…E ele larga a minha mão, pega na mulher ao lado e roda, volteia, até que a música

acaba. E eu estou perto da saída do parque e vejo-o vir, vejo-o passar de braço dado,com ela, com a outra.

Kalle, sussurro eu, a voz muito baixa para que ninguém mais possa ouvir.Fico mais algum tempo, ouço os motores das motocicletas a ir embora, de bêbados a

voltarem para casa, as lanternas a apagarem-se, a orquestra a guardar os instrumentosno autocarro.

Eu sei que tu vais voltar, Kalle.O canal Gota continua a deixar correr as suas águas, está escuro agora, anoiteceu, céu

de chumbo, sem estrelas, lá em cima as camadas de nuvens estenderam-se no céu,esconderam não só as estrelas como também o brilho da lua.

Quanto tempo passou?Uma hora?Tu vens.Já despachaste a outra, Kalle?E lá vens tu, contornando a curva. E pareces tão pequeno ao deixar para trás a guarita

do guarda da ponte, uma fachada de madeira pintada de amarelo.Mas tu não és pequeno.Não é por isso que eu espero aqui, numa noite fria, húmida e enevoada de Junho? Não

é por isso que eu me sinto quente, cada vez mais quente à medida que o teu corpocresce diante de mim?

A tua camisa está aberta.

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O teu peito peludo, os teus olhos negros, toda a força que existe no teu corpodireccionada para mim.

– Ainda aí estás.– Ainda aqui estou.E pegas na minha mão, conduzes-me ao longo da estrada, passamos pelas pequenas

vivendas recém-construídas e viramos à esquerda, seguindo por um caminho estreitodentro da floresta.

O que acho que vai acontecer?O que espero que aconteça?A tua mão.De repente, a tua mão está ali. O teu cheiro, a tua figura, estranhos. Não quero estar

aqui. Na floresta. Contigo. Quero que largues a minha mão.Larga.Mas tu apertas, seguras ainda mais e eu sigo contigo na escuridão da floresta, Kalle,

apesar de não saber se é isso que quero.Tu grunhes.Falas de aguardente, murmuras palavras indistintas, e os teus cheiros misturam-se

com os da floresta. Esta está cheia de vida, mas também de podridão, de vida quemorreu.

Larga, larga.Grito agora a plenos pulmões. Mas tu arrastas-me ainda mais, puxas por mim, és tão

primitivo como eu pensava.És um leão? Um leopardo? Um crocodilo? Um urso?Quero ir-me embora.Sou Rakel.A indomável.Os rugidos.E, então, tu paras, a escuridão à nossa volta, viras-te e eu tento libertar-me, mas tu

prendes o meu outro braço, levantas-me do chão, e não há nada de humano na tuapessoa. Longe está a luz, longe está o sonho.

Silêncio, sua vadia. Silêncio.E sou atirada para o chão. Não, não, não. Não assim. E tu bates-me na boca e eu grito,

mas tudo o que sinto é um sabor metálico e algo que é duro e forte e longo que sobe pormim acima.

Assim mesmo, agora fica quieta, é Kalle que manda.A terra magoa-me o corpo, queima-me.

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Era isto que eu queria tanto? Foi isto que sonhei?Eu ainda sou a Rakel e não me ofereço a ninguém.Kalle.Vou tornar-me como tu, mas mais esperta.Tu rasgas-me, mas eu já não protesto, estou deitada, quieta. E é estranho como

consigo reduzir este momento a nada.Estou quebrada, ferida, o teu peso faz com que eu quase não possa respirar, mas,

mesmo assim, tu não existes.E, então, acabas.Levantas-te. Vejo que abotoas as calças, ouço-te ainda murmurar a palavra vadia,

vadia. Todas umas vadias.Ramos quebrados, tu a cambalear, a praguejar. Depois, o silêncio indica que te foste

embora.Mas a noite apenas começou.As trevas inundam-me o ventre. Duas mãos estendem-se para cima, no ar, atravessam

a clara e ténue membrana da atmosfera. E decido que daqui, daqui vai sair vida.Sinto já que isso vai acontecer.Que em mim crescem todas as dores e sofrimentos que decorrem de ser humana.Ando de gatas pelo chão molhado.Os ramos das árvores balançam, os troncos rangem com desdém, os espinhos, as

folhas, os vermes comem-me a carne.Arrasto-me. Encolho-me. Mas, depois, levanto-me.Fico de pé.Com as costas direitas.

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CAPÍTULO 6

SEGUNDA-FEIRA À NOITE E TERÇA-FEIRA, 14 DE FEVEREIRO

– VAMOS CUMPRIMENTAR-NOS, NÃO?

Markus estende a mão e Malin aceita-a. O seu aperto de mão foi firme e decidido,consciente, sem ser demasiado forte.

Bem ensaiado, pensa Malin. E imagina à sua frente um homem de bata branca, demédico, que, por um aperto de mão, se transforma no filho perfeito.

– Bem-vindo!– Obrigado pelo convite.– Nós não moramos num apartamento tão grande como o da tua família – diz Malin,

abrindo os braços no pequeno hall de entrada e perguntando-se por que razão achoupor bem, quase instintivamente, desculpar-se ao namorado da sua filha Tove.

– É muito acolhedor – diz ele. – Gostava de morar aqui, no centro.– Vais desculpar…Malin gostaria de morder a língua. Fica em silêncio, mas reconhece que deve

continuar a frase.– …por eu ter ficado tão zangada da outra vez que nos vimos.– Eu também teria ficado – diz Markus, a sorrir.Tove volta da cozinha.– A mãe fez esparguete com pesto preparado em casa. Gostas de alho?– No Verão passado, alugámos uma casa na Provença e havia alho plantado no

jardim.– Costumamos fazer pequenas excursões, de poucos dias, no Verão – diz Malin,

rapidamente. E acrescenta logo: – Vamos, então, sentar-nos à mesa? Ou queres beberalguma coisa antes? Uma Cola, talvez?

– Estou a morrer de fome – diz Markus. – Podemos comer já.

Malin repara em como ele se atira à comida.Markus tenta conter-se, comportar-se como certamente os pais tentaram ensiná-lo a

fazer, mas Malin percebe que ele perde a luta contra a sua fome de adolescente.– É possível que tenha um pouco de parmesão a mais…– Está saboroso – atalha Markus. – Muito saboroso mesmo.Tove aproveita para clarear a voz.– Mãe, estive a pensar naquilo que o avô disse. Parece-me bem. Muito bem mesmo.

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Achas que seria possível o Markus viajar comigo? Nós falámos com os pais dele eeles disseram que poderiam pagar a passagem dele.

Espera lá.O que é que se está a passar?Então, Malin vê-se a si mesma e vê Janne na sua frente. Ela tem catorze anos, ele

dezasseis. Estão deitados na cama num quarto qualquer, os dedos a desabotoar asroupas um do outro. Como é que conseguiam ficar mais de duas horas longe um dooutro? É o mesmo sentimento que ela vê nos olhos de Tove.

Expectante, mas com o primeiro pressentimento de que o tempo é limitado.– Boa ideia – responde Malin. – Eles têm dois quartos de hóspedes.E ao mesmo tempo sorri.Um par de adolescentes enamorados. Com o seu pai e a sua mãe. Em Tenerife.– Por mim, está tudo bem – acrescenta Malin, depois. – Mas vamos ter de perguntar

ao avô.Depois, Markus diz:– Os meus pais gostariam de as convidar para jantar um destes dias lá em casa.Socorro.Não, não.À mesa com uma mulher elegante e um médico. Uma sessão de apertos de mão.

Arranjar uma desculpa.– É muito simpático da parte dos teus pais. Diz-lhes que temos muito prazer em

aceitar.

Quando Markus se retira, Malin e Tove ficam sentadas à mesa da cozinha, as suasfiguras espelhadas na janela que dá para a igreja, numa noite escura.

– Não achas que é giro?– É bem-educado.– Mas não demasiado.– Não, Tove, não demasiado. Mas o suficiente para que te sintas bem ao seu lado. No

entanto, quando chega a hora de tomar decisões, os piores são sempre os mais bem-educados.

– Mas, mãe, o que é que tu queres dizer com isso?– Nada, estava a falar sozinha.– Vou telefonar ao avô, amanhã.

Um despertador interno toca. Malin está acordada. Demasiado acordada, apesar de orelógio em cima da mesinha-de-cabeceira marcar apenas 2h34 e todo o seu corpo

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gritar por descanso.Malin rola na cama de um lado para o outro, tenta adormecer novamente e consegue

afastar da cabeça os pensamentos sobre a investigação, sobre Tove, Janne, e todos osoutros. Mas, mesmo assim, o sono não volta.

Tenho de dormir, tenho de dormir.O pensamento faz com que fique cada vez mais acordada, até que, finalmente, resolve

levantar-se, ir à cozinha e beber um pouco de leite directamente da embalagem. Pensa,então, como costumava ficar zangada com Janne quando ele fazia isso, como achavaque era vulgar e grosseiro, ultrapassando todos os limites. Agora, numa outra casa, forada cidade, talvez Janne esteja acordado a perguntar-se se um dia vai deixar de sonhar,se vai atirar para longe as recordações da vida na selva e nas estradas montanhosas. Erecordar, então, os rostos de Malin e de Tove. É assim que ele se acalma, fica alegre etriste ao mesmo tempo, e pensa que só as pessoas que verdadeiramente amamos podemprovocar sentimentos tão contraditórios. Nessa altura, Janne levanta-se, vai ao quartode Tove, olha para a cama vazia e imagina a filha deitada lá. Pensa também em comoela está a crescer e a tornar-se independente, mas que nunca se irá afastar. E que noapartamento na cidade, nesse mesmo momento, Malin está ao lado da cama de Tove, aimaginar se as coisas poderiam ser diferentes ou se tudo, de alguma maneira, já estava,ou está, decidido.

Gostaria de afagar os cabelos de Tove.Mas se calhar acordava Tove. E não queria acordá-la: «Não quero acordar-te, Tove,

mas gostaria de manter-te comigo.»

Ontem, a primeira reunião da semana foi adiada. Sven Sjöman, ao telefone:– Não faz sentido, Fors, se tu não estiveres presente.Os hálitos dos outros circulam pesados na sala e todos parecem estar mais acordados

do que ela.Por ter chegado a resposta da perícia?As balas de borracha que atingiram a janela do apartamento de Bengt Andersson

vieram da espingarda de ar comprimido encontrada na casa de Niklas Nyrén. Asimpressões digitais de Joakim Svensson e de Magnus Tedensjö foram encontradas naarma.

– É isso – diz Sven. – Portanto, já sabemos quem disparou os tiros contra oapartamento de Bengt Andersson. Está na hora de Malin e Zeke pressionarem a sérioaqueles dois rufiões e ver se estão a esconder mais alguma coisa. Façam isso o maisrapidamente possível. A esta hora, devem estar nas aulas.

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Depois, Malin conta o que conseguiu saber na pista dos Murvall.Sente o cepticismo de Karim Akbar quando fala da ligação entre Kalle da Curva e a

família. Se é ele o pai de Karl Murvall, que importância tem isso? O que pode dar-nosuma investigação sobre uma situação de que não sabemos nada? Sobre uma pista aindapor investigar?

Os Murvall são um beco sem saída. Está na hora de procurar novas pistas. Deencontrar novas linhas de investigação. A pista ASA. Deve haver alguma coisa nodisco rígido de Skoglöf. Johan, como está a situação? Ah, conseguiram entrar semcódigo, muito bem. E entraram nos ficheiros fechados, não?

Malin persiste:– Isso faz de Karl Murvall o irmão de Bengt Andersson, algo que talvez nem ele

saiba.– Se é que o velhote lá em Stjärntorp está a dizer a verdade – diz Karim.– Podemos verificar isso com facilidade. Temos o ADN de Bengt guardado, portanto,

basta fazer o teste a Karl Murvall. Teremos logo a certeza.– Devagar com o andor – diz Karim. – Não podemos andar por aí a recolher um

monte de provas, a ofender a integridade das pessoas, apenas para confirmar umasuposição de um velhote caquéctico. Em especial, quando o significado para ainvestigação é, no mínimo, nebuloso.

No dia anterior, de tarde, Malin tinha telefonado a Sven para lhe contar sobre arevelação de Weine Andersson.

Sven ouviu com atenção e ela não ficou a saber se ele estava satisfeito ou irritadopelo facto de ela ter trabalhado por conta própria no domingo. Mas, depois, disse:

– Muito bem, Fors, ainda não estamos prontos para seguir essa linha de investigação.Os irmãos Murvall ainda continuam na cadeia pelos outros crimes cometidos. – Etalvez por isso acrescentou – Malin, tu e o Zeke devem ouvir novamente Karl Murvall,ainda como testemunha. Ele tem um álibi para a noite do crime, mas tentem saber maisalguma coisa sobre essa história. Quando foram falar com ele, da outra vez, o homempode ter mentido sobre o que sabe. Comecem por ele e pressionem depois o Tedensjöe o Svensson.

– E o teste de ADN?– Uma coisa de cada vez, Malin. Vão encontrar-se com ele. Vejam o que conseguem.

E vocês virem cada pedra, tentem encontrar novos ângulos de observação e reviremeste caso nos cantos e recantos onde ainda não mexemos. O tempo voa e todos nóssabemos que quanto mais tempo passa, menores são as oportunidades de agarrarmos ocriminoso.

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Zeke aproxima-se da mesa de Malin.Está zangado. As pupilas dos olhos, bem pequenas, afiadas.Está contrariado porque ela ficou a rondar a cidade sem ele. Será que nunca se vai

habituar a isso?– Podias ter-me telefonado, Malin. Achas, de facto, que Karl Murvall sabe de alguma

coisa? Sobre Kalle da Curva?– Já pensei nisso. Talvez ele saiba o que se passou, mas não realmente, se é que

entendes o que quero dizer.– Os teus pensamentos são demasiado profundos para mim, Malin. Mas vamos então à

Collins para ter uma conversa com ele. É terça-feira. Deve estar por lá.

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CAPÍTULO 7

COLLINS MEKANISKA AB, PERTO DE VIKINGSTAD.

O estacionamento asfaltado estende-se por quase uma centena de metros, na orla deuma floresta densa, até ao posto de vigilância e há uma barreira que constitui a únicaabertura numa cerca de dez metros de altura, coroada por rolos de arame farpado.

A empresa é fornecedora da Saab General Motors. Uma das poucas empresas bem-sucedidas da região, onde trabalham trezentas pessoas na montagem de peças para aindústria automóvel. Poucos anos antes, eram setecentos trabalhadores, mas épraticamente impossível concorrer com a China.

As empresas Ericsson, NAF, Saab, BT-Trucks, Printcom, tiveram de reduzir as suasactividades ou simplesmente foram desactivadas. Sempre que uma fechava as portas,Malin notava mudanças na região: crimes horríveis, assaltos, violência doméstica. Oque quer que os políticos possam dizer, o desespero e a violência andam de mãosdadas.

Mas algum tempo depois, de uma forma até estranha, tudo volta a ser como antes.Uma parte das pessoas consegue novos empregos. Outras são colocadas na reserva, emprogramas de requalificação, ou ainda obrigadas, ou convencidas, a antecipar asreformas. Transformam-se em pessoas dispensáveis, atingem o ponto de ruptura, eficam a viver à margem da sociedade como é o caso da família Murvall, que por preçoalgum se quer integrar na comunidade. A não ser sob as suas próprias condições.

Como podemos aceitar que nos achem inúteis, que não prestemos para mais nada,pensa Malin. Eu não posso sequer imaginar viver essa situação. Ser supérflua,desnecessária.

Por detrás da vedação intransponível estão os edifícios da fábrica, sem janelas, maisparecidos com hangares.

Parece uma prisão, pensa Malin.O segurança no posto de vigilância está vestido com um uniforme azul e tem um rosto

sem contornos, onde falta distância entre as faces, o queixo e o pescoço. No meio, doisolhos aquosos que se fixam, cheios de cepticismo, em Malin quando ela lhe mostra odistintivo da polícia.

– Queremos falar com Karl Murvall, que imaginamos ser o chefe do departamento deinformática.

– Qual é o assunto?– Não importa o assunto – responde Zeke.– Vocês têm de…

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– Assuntos da polícia – diz Malin.Então, o guarda faz uma consulta telefónica, conversa, acena com a cabeça duas

vezes, positivamente, e desliga.– Podem entrar e dirigirem-se à recepção principal – diz ele.Malin e Zeke avançam ao longo do caminho que leva ao átrio de entrada. Passam por

construções gigantescas, uma caminhada de várias centenas de metros, e a meio dopercurso, um par de portas abertas, centenas de roldanas usadas pendem de vigas dotecto como se estivessem a descansar há muito tempo, mas sempre prontas para entrarem acção. Uma porta rotativa de vidro inquebrável por baixo de um tecto sustentadopor vigas de aço dá passagem para a recepção. Duas mulheres estão sentadas pordetrás de um balcão de mogno, nem uma nem outra parecem ter reparado que seaproximavam. À esquerda, uma larga escada de mármore. Toda a sala cheira a produtode limpeza com perfume a limão e a couro polido.

Ao chegar ao balcão, uma das recepcionistas levanta os olhos.– Karl Murvall está a caminho. Por favor, sentem-se.Malin vira-se, vê três poltronas vermelhas, do tipo ovo, sobre um tapete castanho.– Ele vem já?– Dentro de um ou dois minutos.

***

Karl Murvall desce a escadaria vinte e cinco minutos mais tarde, de fato cinzento,camisa amarela e jeans azul-escuros, demasiado curtos. Malin e Zeke levantam-se aovê-lo e vão ao seu encontro.

Karl Murvall estende a mão para cumprimentá-los, o rosto sem expressão definida.– Caros inspectores, a que devo a honra?– Precisamos de falar, sem sermos interrompidos – diz Malin.Karl faz um sinal para as poltronas.– Aqui, talvez?– Talvez numa sala de reuniões – diz Malin.Karl Murvall vira-se e começa a subir a escadaria, olha por cima do ombro para ver

se Malin e Zeke o seguem.Karl digita um código na fechadura, a porta de vidro desliza para o lado e abre

caminho para um longo corredor.De dentro de uma das salas por onde passaram ouve-se o som forte, rotativo, de um

ventilador, por detrás de uma porta de vidro despolido. Uma sombra negra por detrásda porta.

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– A sala dos servidores. O coração de toda a produção.– É você o responsável por toda esta actividade?– É a minha sala – diz Karl Murvall. – É aqui que controlo tudo.– Foi aqui que esteve a trabalhar na noite em que Bengt Andersson foi assassinado,

não foi?– Exactamente aqui.Karl pára depois diante de mais uma porta de vidro, digita mais uma vez um código.

A porta desliza para o lado e vêem-se à volta de uma mesa de carvalho, com talvez unsdez metros de comprimento, doze cadeiras pretas. No centro da mesa, uma bandejacom maçãs vermelhas.

– A sala da administração – diz Karl. – Deve servir.

– E então?Karl Murvall está sentado em frente deles, as costas bem encostadas na cadeira.Zeke afunda-se na sua.Malin inclina-se para a frente.– O seu pai não era marinheiro.O rosto de Karl Murvall mantém-se impenetrável, nenhum músculo se mexe, nenhuma

preocupação perpassa pelos seus olhos.– O seu pai foi uma lenda em Ljungsbro – continua Malin – um homem chamado Karl

Andersson, mais conhecido como o Kalle da Curva. Sabia disso?Karl Murvall recosta-se ainda mais na cadeira. Sorri para Malin, com um sorriso nos

lábios, não de desprezo, mas vazio, inexpressivo.– Isso é ridículo – reage ele, depois.– E se for verdade, Bengt Andersson é, ou melhor, foi seu meio-irmão.– Eu e ele?Zeke confirma com um aceno.– Você e ele. A sua mãe não lhe contou isso?Karl Murvall morde os lábios.– Ridículo.– Não sabia de nada? Que a sua mãe teve uma ligação com Kalle da…– Não me preocupo minimamente em saber quem foi ou não foi o meu pai. Isso é algo

que deixei para trás, esqueci. E vocês têm de aceitar essa situação, essa minha vontade.Têm de compreender que lutei muito para chegar onde estou hoje.

– Podemos fazer um teste de ADN para comparar com o de Bengt Andersson, para tera certeza?

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Karl Murvall abana a cabeça.– Isso não tem interesse nenhum.– Sinceramente? Acredita?– Sim, porque eu estou ao corrente. Não precisam de fazer nenhuma comparação. A

minha mãe contou-me tudo. Mas como resolvi tentar deixar isso para trás, esquecer aexistência dos meus meios-irmãos, não tenho qualquer interesse nessa confirmação.

– Quer dizer que é mesmo meio-irmão de Bengt Andersson? – Pergunta Zeke.– Já não. Agora, ele está morto. Ou não? Mais alguma coisa? É que tenho uma

reunião.

De volta ao carro, Malin olha mais uma vez para a orla da floresta densa e escura.Karl Murvall não quis contar nada sobre o seu padrasto, nada sobre o seu

crescimento em Blåsvädret, nada sobre a sua relação com os irmãos, a irmã. – Nemuma palavra. «Já sabem o que queriam. Se não há mais nada que queiram saber, odever chama-me.»

– Mas, e Maria?– O que é que se passa com a Maria?– Ela foi simpática consigo como foi com Bengt? Mais simpática do que Elias, Adam

e Jakob? Soubemos que ela era muito carinhosa com Bengt. Ela sabia que você erameio-irmão dele?

Silêncio.As faces pálidas de Karl Murvall, pequenas contracções nos lábios.A cancela junto do posto de vigilância eleva-se e eles saem.Adeus, prisão, pensa Malin.O dever.Quanta tristeza um lugar como este pode provocar?Karl Murvall também é meio-irmão de Rebecka Stenlundh. E ela, portanto, sua meia-

irmã.Mas esse não é o meu dever, pensa Malin. Vão ter de ser eles a descobrir isso, se é

que já não sabem. Rebecka Stenlundh, certamente, quer que a deixem em paz.

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CAPÍTULO 8

– ACHAS QUE MARIA MURVALL sabia que Bengt Andersson e o seu meio-irmão tinhamo mesmo pai? Que foi por isso que ela se afeiçoou a ele?

A voz de Zeke soa abafada por causa da comida que tem na boca.Estão os dois a comer.Malin dá uma dentada no seu chorizo. Comida de quiosque de rua na rotunda de

Valla. A melhor salsicha da cidade.O motor do carro continua a funcionar em ponto morto para manter o aquecimento no

interior. E atrás estão os armazéns amarelos de aluguer e as instalações para estudantesde Ryd, todas em silêncio, como se estivessem conscientes do seu lugar na hierarquiade moradias: aqui só moram aqueles que têm problemas económicos, de momento oupara toda a vida, a não ser que entretanto ganhem um prémio do euromilhões.

Do outro lado, a auto-estrada e, mais ao longe, entre os bosques, os edifícios dauniversidade. Como devem parecer irreais para muitos dos que moram em Ryd, pensaMalin. Estão lá todos os dias, como imagens de sonhos inalcançáveis, deoportunidades perdidas, de escolhas erradas, de limitações. Arquitectura da amargura,talvez.

Mas não para todos. Longe disso.– Tu não respondeste à minha pergunta.– Não sei – responde Malin. – Talvez ela sentisse que havia uma ligação. Instintiva.

Ou então, sabia.– Intuição feminina?Zeke abafa o riso.– De qualquer forma, agora não podemos perguntar-lhe – conforma-se Malin.

***

Brinca com um escorpião e ele acaba por te picar. Enfia a mão numa toca e o texugovai morder-te. Provoca uma cobra e ela envenena-te. A mesma coisa acontece com aescuridão: conduz no escuro e numa esquina ela morde-te.

Mas a verdade.O que é a verdade?Malin murmura a palavra para si mesma, quando Zeke está a entrar com o carro na

área em que está localizada a casa de Rakel Murvall.Batem à porta.

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A mãe, decerto, já os viu chegar e está a pensar: mais uma vez!Mas abre a porta.– Vocês?– Queremos entrar – diz Zeke.– Já estiveram aqui vezes de mais.Rakel Murvall afasta o seu corpo magro, recua e fica de pé no hall de entrada, com os

braços ao longo do corpo, mas, evidentemente, antipática. Até aqui, sim, mas nem maisum passo para dentro.

– Vou directa ao assunto – diz Malin. – Kalle da Curva é o pai do seu filho Karl, nãoé?

Os olhos ficam escuros, depois mais claros.– Onde é que ouviu isso?– Existem provas – diz Malin. – Nós sabemos.– Isso torna Karl meio-irmão do assassinado – diz Zeke.– O que é que querem saber? Que inventei essa história do marinheiro maricas

quando o barco naufragou? Que me entreguei a Kalle da Curva uma noite no parque?Não fui a única a fazê-lo.

Rakel Murvall olha para Zeke, com desprezo silencioso. Depois, vira-se e entra paraa sala de estar. Eles seguem-na. E as palavras saem-lhe da boca dolorosamente, comose fossem as pontas de um chicote.

– Kalle nunca soube de nada, que era o pai da criança. Mas Karl, eu baptizei-o comesse nome para que nunca mais pudesse esquecer a sua origem.

Na realidade, pensa Malin, fez com que ele nunca se esquecesse de onde veio.Imposição sua.

Os olhos, agora, gelados.– Fazem ideia do que eu passei; sozinha com ele aqui? O rapaz do marinheiro. Ele é

filho do marinheiro, todos engoliram isso, as más línguas da comunidade.– Como é que Karl soube? – Pergunta Zeke. – Os rapazes e Svarten tratavam-no mal?– Ele veio visitar-me com um colar valioso na mão no dia do meu septuagésimo

aniversário. Pensou que se tinha tornado alguém na vida. Foi então que eu lhe contei oque devia, que o pai dele era Kalle da Curva. «É verdade, engenheiro!» E ele estava aíonde vocês estão agora. A velhota recua. Sacode a mão na direcção de Malin e Zeke,acena, como se lhes dissesse: vão, vão, vão-se embora! – E se disserem alguma coisasobre isto aos meus rapazes, vão desejar nunca terem nascido.

Ela não consegue afastar os seus fantasmas, é por isso que não tem medo de ameaçara polícia, pensa Malin. Fantasmas que devem ser expulsos a qualquer preço. E é ela,

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Rakel, que continua a comandar a evolução dos acontecimentos. O que significa isso?

Através da janela, Rakel Murvall vê os dois polícias afastarem-se no carro, voltandopelo mesmo caminho de onde vieram. Começa a sentir raiva, considera uma possívelagressão. Vai até ao hall de entrada e pega no telefone que está em cima da mesinha.

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CAPÍTULO 9

BRITTA SVEDLUND ACABA DE SE LEVANTAR da sua cadeira de reitora na escola deLjungsbro para fixar melhor os olhos em Joakim Svensson e Magnus Tedensjö quandoestes entram no seu gabinete. A sala vibra com a raiva que ela sente. Cheira a café e anicotina.

Ela deve fumar aqui dentro, de vez em quando, constata Malin ao entrar na sala.Quando os rapazes vêem Malin e Zeke tentam recuar numa atitude de quem quer fugir,

mas o olhar expressivo da reitora reteve-os, aliás, ainda os retém.Antes, enquanto esperavam por Joakim e Magnus, Britta Svedlund explicou-lhes qual

era a filosofia que usava para ensinar.– Devem compreender que não podemos ajudá-los a todos. Eu sempre tentei focar a

minha atenção naqueles que realmente querem aprender, não necessariamente nos maistalentosos, mas naqueles que querem aprender. Pode-se conseguir que os alunosqueiram mais do que possam imaginar, mas alguns são absolutamente impossíveis ecom esses há muito tempo que deixei de gastar as minhas energias.

Mas ainda não desististe de Joakim e Magnus, pensa Malin, quando se apercebe comoBritta Svedlund controla os rapazes apenas com o olhar. Apesar de estarem paraterminar o curso na Primavera. Apesar de já terem idade para assumir aresponsabilidade do que fazem?

– Sentem-se – ordena Britta. E os dois rapazes sentam-se, cada um na sua cadeira,baixando a cabeça.

– Eu sempre vos apoiei. E vocês só fazem asneiras?Malin muda de lugar para que os rapazes possam olhá-la nos olhos.– Olhem para mim – diz ela, com voz glacial. – Está na hora de acabarem com as

vossas mentiras. Sabemos que foram vocês que dispararam contra o apartamento deBengt Andersson.

– Nós não…Britta Svedlund, do outro lado da secretária:– BASTA!Então, Magnus Tedensjö começa a contar, a voz esganiçada, angustiada, como se

tivesse regredido da adolescência para uma idade mais inocente.– Sim, nós disparámos com aquela espingarda contra o apartamento dele. Mas ele não

estava em casa. Pegámos na espingarda e fomos de bicicleta até à casa dele. E, depois,disparámos. Estava escuro e ele tinha saído. Juro. Depois fugimos.

– Foi isso mesmo. Posso confirmar – diz Joakim Svensson, calmamente. – E não

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temos nada que ver com os malucos que penduraram o Apanha Bolas na árvore.– E quando é que vocês dispararam contra o apartamento? – Pergunta Malin.– Pouco antes do Natal, numa quinta-feira.– E agora vamos para a prisão? Temos só quinze anos, não é?Britta Svedlund abana simplesmente a cabeça, com um ar de cansaço.– Isso depende de quanto estiverem dispostos a colaborar – diz Zeke. – Contem tudo

o que sabem e que possa ser importante para nós. Mas tem de ser mesmo tudo!– Mas nós não sabemos mais nada.– Quer dizer, então, que depois disso nunca mais voltaram a incomodar o Bengt. É

isso? Essa brincadeira estúpida acabou de uma vez, nessa noite? Foi isso?– É melhor contarem tudo – insiste Malin. – Precisamos avaliar os factos com toda a

clareza.– Mas nós não fizemos mais nada.– E na noite de quarta para quinta-feira, antes de o Apanha Bolas ser pendurado?– Como já dissemos, estivemos a ver o filme Lords of Dogtown. Esta é a verdade.Desespero na voz de Joakim Svensson.– Podem sair – dizem Zeke e Malin quase ao mesmo tempo.– Quer dizer que estamos livres?É a voz ingénua de Magnus Tedensjö.– Quer dizer – responde Zeke – que vamos ficar de olho em vocês e que voltarão a

ser contactados daqui a algum tempo. Mas vejam se, entretanto, aprendem a divertir-sesem molestar ninguém. Senão, terão de aguentar com as consequências.

Britta Svedlund parece cansada, com ar de quem está a precisar de um uísque e umcigarro. Parece, também, satisfeita por ver os rapazes saírem da sua frente.

– Deus sabe como tentei ajudar estes dois!– Talvez eles venham a aprender alguma coisa com esta história toda – diz Malin.– Esperemos que sim. E a respeito do assassínio, estão prestes a prender o

criminoso?Zeke abana a cabeça.– Estamos a seguir várias pistas – diz Malin. – Precisamos de verificar todas as

possibilidades, esclarecer cada pormenor, mesmo que pareça ter pouco a ver com ocaso.

Britta Svedlund olha pela janela.– O que vai acontecer aos rapazes, agora?– Vão ser convocados para interrogatório, se o chefe achar que vale a pena dar-se a

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essa maçada.– Esperemos que sim – diz Britta Svedlund. – Eles precisam de uma boa lição, de

saber que cometeram um erro.

Quando chegam ao departamento, Karim Akbar está à espera deles na recepção.A irritação plana como uma nuvem em volta da sua cabeça.– O que é que andaram a fazer?– Nós…– Eu sei. Estiveram em casa de Rakel Murvall a incomodá-la e a tentar saber com

quem ela fez sexo há quarenta e cinco anos.– Não incomodámos ninguém – diz Zeke.– Segundo ela, incomodaram-na, sim. Ela telefonou a apresentar uma queixa formal. E

agora diz que vai informar os jornais.– Ela não é nenhuma…– Fors, o que pensas que isto vai parecer? Ela vai ser considerada uma velhota

inofensiva e nós, uns monstros.– Mas…– Nada de mas. Não há prova nenhuma contra eles. Temos de deixar a família

Murvall em paz. Se tu, ou melhor, se vocês não se deixarem disso, vou ter de substitui-los por Jakobsson.

– Merda! – murmura Malin.Karim aproxima-se dela.– Um dia sem irem vê-los, Fors, é tudo o que eu peço.– Merda!– Pressentimentos, Fors, não chegam. Já se passaram quase duas semanas. Temos de

conseguir algo de concreto. Não uma quantidade de frivolidades sobre quem é irmãode quem, a incomodar uma velhota à falta de mais que fazer.

A porta da grande sala do departamento abre-se e entra Sven Sjöman, com umaexpressão de desalento.

– As provas não são suficientes para prender os irmãos Murvall pelo assalto aodepósito de armas em Kvarn. Vamos ter de soltá-los.

– Mas eles tinham as granadas vindas de lá. Granadas de mão.– Certo, mas quem é que vai provar que não as compraram a alguém no submundo? A

caça ilegal e a posse ilegal de armas não são suficientes para o tribunal os manter naprisão. Vamos ter de soltá-los. Eles confessaram.

Então, alguém gritou por detrás da recepção.

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– Telefone para ti, Malin.Ela atende na sua secretária. O aparelho está frio e pesado na sua mão.– Sim, Fors.– Aqui, Karin Johannison.– Olá, Karin.– Ouve, acabei de receber uma mensagem via Internet, de Birmingham. Eles não

conseguiram nada das roupas da Maria Murvall. Estavam realmente muito sujas. Masvão fazer um outro teste, algo muito recente.

– Nada? Vamos esperar que o novo teste tenha outro resultado.– Pareces cansada. O teste à espingarda de ar comprimido deu algum resultado?– Sim, em princípio conseguimos encerrar essa pista de investigação.– E?– Bem, o que é que posso dizer, Karin? Crianças ou adolescentes, abandonados a si

próprios. Nunca dá bom resultado.

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CAPÍTULO 10

– MÃE, MÃE.

Malin ouve Tove a chamá-la da cozinha e pressupõe que ela já acabou de estudarmatemática. Matemática, livra! É possível que a Matemática seja o princípio de tudo,mas não é para mim.

– Anda cá, mãe.A adolescente.A criança.A semiadulta.A adulta.As quatro fases na mesma pessoa. E daí a vontade de definir o seu lugar no mundo,

um mundo que não espera por ninguém e que apenas contra vontade cede algum espaço.Mesmo com toda a educação que recebes, Tove. Estás certa de que vais conseguir umemprego? Ser médica, professora, ter um emprego seguro. Mas será que existe algumemprego seguro? Segue o teu coração. Serás qualquer coisa, desde que realmentequeiras. Essa é a resposta, por enquanto. Talvez escrever livros. Tão fora dos temposactuais. Inventa jogos originais no computador, talvez seja melhor, Tove. Faz qualquercoisa, mas não tenhas pressa. Vê o mundo como ele é, aguarda, não tenhas filhos logo.Espera.

Mas, de qualquer maneira, ela já sabe tudo isto. Tens mais noção de tudo do que eutive na tua idade.

– O que foi, Tove?Malin, sentada no sofá, endireita o corpo, baixa o som do televisor. A locutora do

noticiário está a falar, mas não se ouve nada.– Telefonaste para o avô?Diabo!– Não, não concordámos que serias tu a telefonar-lhe?– Não eras tu?– Já nem sei mas, de qualquer maneira, temos de lhe telefonar agora.– ok, vou fazer isso – a voz de Tove ecoa na cozinha e Malin ouve quando ela pega

no telefone, digita o número e espera:– Sim, avô, sou eu, Tove… Ah, sim, perfeito… Passagens… Quando? No dia vinte e

sete?... Ouça, eu tenho um namorado… Markus… Dois anos mais velho… E pensei…Ele podia ir comigo… Sim, para Tenerife… Os pais dele concordaram… Ah, bom… Émelhor o avô falar com a mãe… Mãeee, Mãeee, o avô quer falar contigo.

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Malin levanta-se e vai até à cozinha. O cheiro do jantar do dia anterior ainda perdura.Ela recebe o telefone das mãos de Tove, leva o auscultador ao ouvido.– Malin, és tu?A voz dele está emocionada e tem agora um tom de falsete.– O que é que tu me dizes disto? Que um tal de Markus quer vir com ela? Foi ideia

tua? Abusas sempre quando te damos a mínima confiança. Não compreendes que maisuma vez estragaste tudo, quando a nossa ideia era dar a Tove a oportunidade deconhecer Tenerife?

Malin afasta o auscultador do ouvido. Espera. Tove está ao seu lado, na expectativa,mas Malin abana a cabeça, tem de preparar o inevitável. Vê a decepção espalhar-sepelo corpo de Tove, que deixa descair os ombros.

Quando volta a levar o auscultador ao ouvido, só resta o silêncio.– Pai? Estás aí? Já terminaste?– Malin, o que é que te levou a meter isso na cabeça da Tove?– Pai. Ela está com treze anos. Hoje em dia, as raparigas com treze anos querem ter

namorados com os quais querem conviver quando estão de férias.Ouve-se um clique do outro lado da linha.Malin também desliga.Põe um braço no ombro de Tove e murmura:– Não fiques triste, minha querida, mas o avô achou que não era uma boa ideia

levares o Markus a tiracolo.– Então, também não vou – responde Tove. E Malin reconhece aquela espécie de

desafio, tão forte e definido como o seu com a mesma idade.

Em certas noites, a largura da cama parece infinita, em certas noites, cabe nela ummundo inteiro de solidão. Há noites em que a cama é macia, cheia de promessas, omomento em que esperamos que o sono chegue torna-se o melhor momento do dia, afuga. Em certas noites, como esta, a cama é dura, o colchão é um inimigo que quermanter os pensamentos no lugar errado, que parece querer maltratar uma pessoa por elaestar ali sozinha, sem outro corpo para se encostar e procurar aconchego.

Malin estende a mão e o vazio é frio como a noite lá fora, o espaço é ainda maiorporque ela sabe que o vazio está lá, antes mesmo de estender a mão.

Janne.Pensa em Janne.Sente como ele fica mais velho, como ambos começam a ficar mais velhos.Pensa em levantar-se, em telefonar-lhe, mas sabe que ele deve estar a dormir ou a

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trabalhar, de plantão. Pensa, então, em… Daniel Högfeldt. Não, esta noite não é essaespécie de solidão, é de uma espécie muito pior. A verdadeira solidão.

Malin afasta a roupa com os pés. Levanta-se da cama.O quarto está escuro, uma escuridão sem significado, vazia.Procura às apalpadelas o leitor de CD em cima da mesa. Sabe qual o CD que está lá

dentro. Põe os auscultadores nos ouvidos.Depois, deita-se novamente e começa a ouvir o som da voz suave de Margo Timmin.Cowboy junkies. Antes de se tornarem tristes.A mulher abandonada, só, cheia de saudade, mas no derradeiro verso triunfante:

«Kinda like the few extra feet in my bed…»Malin retira os auscultadores dos ouvidos, procura o telefone às apalpadelas, digita o

número de Janne e ele atende ao quarto toque.Silêncio.– Eu sei que és tu, Malin. – Silêncio. – Malin, eu sei que és tu.A voz dele é a voz de que precisa, macia, calma e aconchegante. É um abraço.– Acordei-te?– Não tem importância. Sabes que durmo mal.– Eu também.– Está frio esta noite, não está? Talvez seja a noite mais fria até agora.– É.– Por sorte, aqui tenho um novo aparelho de aquecimento.– Que bom. Tove está a dormir. Não deu em nada a história da ida de Markus com ela

para Tenerife.– Ele ficou zangado?– Sim.– Eles nunca aprendem.«E nós? Nós aprendemos?» Mas não foram essas as palavras que os seus lábios

pronunciaram. Em vez disso:– Este Inverno deves estar a gastar uma fortuna em querosene, não?Janne solta um suspiro ao telefone. E, depois, diz:– Agora vamos dormir, Malin. Boa noite.

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CAPÍTULO 11

QUARTA-FEIRA, 15 DE FEVEREIRO

DE CERTA FORMA , parece que a igreja se habituou ao frio. Conformou-se em ter a suacobertura cinzenta sob uma fina camada de gelo. Mas as árvores continuam a protestare as imagens, um pouco mais longe, na montra da agência de viagens, aquelas daspraias e dos céus claros e azuis, continuam a troçar dela.

Há um aroma que vem do forno. Malin acordou bem cedo e teve tempo de retirar asbaguetes do congelador e colocá-las no forno. Só ela comeu duas. E agora está de pé,junto da janela do apartamento.

Atrás dela, em cima da mesa, o Correspondenten. Ainda não teve coragem para abriro jornal. Está tudo na primeira página.

Polícia criminal acusada de perseguição.O título é uma afronta, pensa Malin, enquanto beberica o café e desvia o olhar para a

montra do Åhlén, que apresenta novos blusões e gorros.Mas se o título é uma afronta, o texto é uma brincadeira de mau gosto, uma mentira:

…apesar de a polícia não ter a menor prova da participação da família Murvallno assassínio de Bengt Andersson, interrogou a Senhora Rakel Murvall, de 72anos, nada menos do que sete vezes, na sua casa. Rakel Murvall, sofreu umpequeno derrame há menos de um ano… é uma verdadeira caça ao homem porparte da polícia…

Assinado, Daniel Högfeldt. Portanto, ele voltou. Em grande forma. Mais provocadordo que nunca. Onde terá estado?

Ao lado um artigo curto, sobre os tiros que atingiram o apartamento de BengtAndersson. A situação está esclarecida, mas a polícia não encontrou qualquer ligaçãoao homicídio. Citação de Karim Akbar: É, no mínimo, improvável, que haja qualquerligação.

Nessa altura, Malin senta-se à mesa da cozinha.Abre o jornal.Rakel Murvall menciona os nomes dela e de Zeke numa citação:

Estiveram aqui os dois sete vezes e impuseram a sua presença. A polícia não temrespeito nenhum por uma senhora de idade como eu… Mas agora os meus rapazesestão de novo em casa…

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Os rapazes a que se refere a Senhora Murvall são Elias, Adam e Jakob, que ontemsaíram da cadeia por as acusações contra eles não terem fundamento suficientepara restringir a sua liberdade.

A foto de Karim Akbar ao lado.O seu rosto apanhado numa pose ligeiramente distorcida. Os olhos fixados na câmara:

Naturalmente, levamos esta denúncia muito a sério.Ele não vai gostar desta foto, pensa Malin.

De uma maneira geral, ao que parece, a investigação em relação ao homicídioencalhou. O chefe da Polícia, Karim Akbar, não quis comentar a situação.Afirmou, entretanto, que não pode fazer quaisquer comentários sobre ainvestigação, atendendo à «sensibilidade da situação». Mas segundo outras fontesdo Correspondenten na polícia, a investigação encontra-se, actualmente, num becosem saída, em que os inspectores, simplesmente, não têm novas pistas a investigar.

Malin termina o café.Fontes na polícia? Quem? Podem ser várias pessoas.Controla o instinto de amassar o jornal. Sabe que Tove quer lê-lo. Em cima da

bancada da cozinha está o tabuleiro com as baguetes. Duas, para Tove. Ela vai ficarcontente quando as vir.

O jornal local é lido.Amado por quase todos na cidade. É pelo menos o que dizem as sondagens e a

tempestade de protestos naquelas poucas manhãs em que o jornal não saiu por haverproblemas na impressora rotativa. É como se o Correpondenten fosse sagrado.Parecem não ter qualquer distanciamento face ao que lá vem escrito.

Daniel Högfeldt está sentado na redacção, diante do computador.A ligação que mantém com os leitores e o retorno que obtém com os seus artigos são

geralmente positivos. Quando escreve algum artigo bom, recebe de imediato umadezena de mensagens elogiosas.

Daniel está satisfeito com os artigos publicados nesse dia, dá um presente a si mesmoe come um bolo de canela, bem fresquinho, que comprou na pastelaria Schelin, naPraça Central Trädgårdstorget. A cidade pode parecer paralisada pelo frio. Mas, ajulgar pelas mensagens recebidas pela Internet após a publicação dos seus artigos, elesente que existe uma preocupação generalizada, que o medo está bem presente emLinköping, assim como a irritação latente perante uma polícia que parece marcarpasso.

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– Aqui, pagamos cinquenta por cento de impostos e a polícia não faz nada…Daniel esteve em Estocolmo durante dois dias.Ficou no novo Hotel Anglais, perto da Praça Stureplan, com vista para os tipos bem

vestidos e o estádio de Svampen.O jornal Expressen.Até mesmo com o chefe de redacção, aquele psicopata bajulador, teve a honra de se

encontrar. Mas tudo aquilo cheirava a falso. É claro. Jornal maior, salário mais gordo.E depois?

Expressen.Estocolmo.Não agora. Ainda não.Primeiro, fazer como a colega, no jornal Motala Tidningen, que desenterrou um

escândalo na câmara municipal e recebeu o Prémio Nacional de Jornalismo.Se for para Estocolmo, vou chegar como um rei ou, pelo menos, como um príncipe.

Exactamente o que sou aqui.Imagino como Malin Fors deve estar agora.Ter um encontro com ela? É uma ideia.Deve estar esgotada, cheia de raiva, febril. Exactamente como eu fico quando

trabalho demais e durmo de menos.Expressen.Vou mandar um e-mail para o chefe de redacção ainda hoje, a recusar a oferta.

A menina de três anos esperneia quando o pai, Johan Jakobsson, tenta abrir-lhe aboca.

– Temos de lavar os teus dentes – diz ele. – Caso contrário, vem aí o papão dentista.– Ele tenta fazer com que a sua voz soe impositiva e ao mesmo tempo divertida, alegre,mas repara que apenas consegue soar a enfadonho e cansado.

– Abre a boca! – Mas ela quer ir-se embora, fugir. Ele tem de a agarrar, apertar asbochechas dela com os dedos, mas não com muita força.

E é ela que consegue fugir. Sai a correr da casa de banho. E Johan fica sentado,sozinho, na tampa da sanita. Que se lixe a escova de dentes!

O trabalho. Quando é que a investigação vai evoluir? Quando é que vai sair algumcoelho da cartola? Já não falta muito para acabarem de verificar todo o disco rígido deRickard Skoglöf e até agora, nada. É claro que apareceram as mensagens enviadas paraaqueles que penduraram os animais na árvore, e outras completamente idiotas, mas nãoilegais ou criminosas, para outros membros do culto ASA. Mas nada mais do que isso.

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Agora, faltam apenas dois ficheiros para abrir e verificar.Malin e Zeke parecem cada vez mais frustrados. Börje está suspenso, mas deve estar

junto da mulher ou com os seus cães, ou ainda na carreira de tiro. Embora, é claro,disparar seja agora a última coisa que quer fazer.

Karim Akbar estende uma nota de quinhentas coroas suecas no balcão da lavandaria.Utiliza aquela loja no Ryds Centrum por dois motivos: abrem cedo e limpam bem.

Por detrás dele, o centro em si, já antigo, desgastado e pequeno. Uma loja da cadeiaKonsum, um quiosque de jornais, uma loja de chaves que também conserta sapatos, euma loja de presentes que parece ter ficado intacta mesmo após a falência.

Três fatos envoltos em sacos de plástico e suspensos em cabides de arame. UmCorneliani, dois Hugo Boss, dez camisas brancas, umas sobre as outras.

O homem por detrás do balcão recebe a nota, agradece e prepara-se para devolver otroco.

– Está bem assim, deixe ficar – diz Karim.Ele sabe que o homem por detrás do balcão administra a lavandaria e veio do Iraque,

fugiu com a família para a Suécia no tempo de Saddam Hussein. Quem sabe o que terápassado? Uma vez, quando Karim chegou para deixar os seus fatos, o homem queriacontar a sua história, dizer-lhe que era formado em engenharia, reflectir sobre o quepoderia ter sido, mas Karim fingiu que estava com pressa e foi-se embora. Isto porque,por muito que ele admire os homens que lutam pelas suas famílias, ele próprio fazparte do problema, o que faz dele, e de quase todos os que chegam do estrangeiro,cidadãos de segunda classe. Como aqueles que se sujeitam a serviços em que nenhumsueco quer meter a mão. Devia ser proibido aos imigrantes administrar pizarias elavandarias, pensa Karim. De modo a que essa imagem pudesse desaparecer. Ospoliticamente correctos deviam protestar, mas a realidade é outra. Na prática, amudança é impossível. Eu mesmo? Não sou melhor nem pior do que ele, mesmo queseja considerado diferente.

Ser estrangeiro significa ficar de fora.Ficar de fora significa violência.Violência significa… Significa o quê?A infinita distância entre os seres humanos. A família Murvall só quer ficar de fora,

ficar em paz. Ao contrário de tantos outros que sonham em ficar por dentro eparticipar. E poucos são aqueles que vêem os seus sonhos transformarem-se emrealidade.

Ao sair da lavandaria, Karim pensa no pai. Foi a violência passiva que o levou à

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morte.Mas eu nunca falo com ninguém a respeito dele. Nem mesmo com a minha mulher.O frio bate de frente no rosto de Karim, quando abre a porta do edifício que dá para a

rua.Lá fora, mesmo à luminosidade fraca do Inverno, o carro, um Mercedes Benz, brilha

como uma jóia.Então, Karim pensa nos assassinos, ou no assassino, que continuam a procurar. O que

quer ele? Qual é a sua relação com a sociedade?

Zeke puxa e abre a porta de entrada do edifício da polícia.Vai até à recepção. Cheira a suor e a gente cansada de trabalhar. Um dos colegas, que

está ao cimo da escada que leva à cave, grita:– Como é que está o Martin, vai participar do próximo jogo? Já melhorou do joelho?O pai de um jogador de hóquei.Será que para eles não sou mais do que isso?– Pelo que sei, vai jogar.Martin já recebeu propostas de clubes da primeira liga, mas nenhuma ainda se

concretizou. Parece que querem deixá-lo a marinar. Zeke sabe que o hóquei no gelo vaitornar o rapaz rico, mais cedo ou mais tarde, rico a um nível difícil de imaginar.

Mas nem mesmo um tesouro faria com que ele gostasse desse desporto. Oequipamento de protecção e os encontrões são apenas uma brincadeira de miúdos.

Bengt Andersson não é uma brincadeira de miúdos. Nem a maldade que anda por aí.Quando nos defrontamos com o lado mais obscuro do homem, não há equipamento de

protecção que nos valha.Nesta profissão não há espaço para brincadeiras.

– Já viste o que é que eu pareço? – Karim Akbar está perto da bancada da cozinha, norefeitório, e exibe a fotografia dele no jornal. – Não podiam ter escolhido umafotografia melhor?

– Não é assim tão má – diz Malin. – Podia ser pior.– Como? Já viste bem como estou? Escolheram esta imagem para mostrar como

estamos desesperados.– Esquece isso, Karim. Amanhã vais estar novamente nos jornais. E nós não estamos

desesperados. Ou estamos?– Jamais, Malin. Nunca.

Malin vai verificar a sua caixa postal electrónica. Algumas mensagens

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administrativas, umas de spam, mas, também, uma mensagem de Johan Jakobsson.– Nada no disco rígido até aqui. Restam apenas alguns ficheiros para verificar.E ainda uma mensagem marcada a vermelho.– telefona-me.De Karin Johannison.Por que razão não telefona ela para mim?Mas Malin sabe como são as coisas. Por vezes, em certas circunstâncias, é mais fácil

mandar uma mensagem.Escreve uma resposta.– Soubeste de alguma coisa?Malin clica em «enviar» e não demora mais de um minuto para a sua caixa de entrada

começar a piscar.Ela abre a nova mensagem de Karin.– Podes vir aqui?Resposta:– Estarei no laboratório dentro de dez minutos.

Local de trabalho de Karin Johannison no departamento de perícias técnicas. Não temjanelas, só uma parede de vidro que dá para um corredor. As paredes interiores estãocheias de prateleiras com livros, do chão até ao tecto. E em cima da mesa vêem-semontes de pastas. Sobre o chão de linóleo amarelado sobressai um tapete espesso evermelho, bastante caro, que Malin sabe ter sido trazido pela própria Karin. O tapetetransforma toda a sala numa área nobre e aconchegante, no meio de tanta friezaagressiva.

Karin está sentada atrás da mesa, tão fresca como sempre, e convida Malin a sentar-se.

– Recebi a resposta de Birmingham – diz Karin. – E já conferi o resultado com operfil de Bengt Andersson. Não combina. Não foi ele que violentou a sua meia-irmã nafloresta.

– Foi um homem ou uma mulher?– Não se consegue ver. Mas garantidamente não foi ele. Era ele que tu pensavas que

fosse?Malin abana a cabeça.– Não, mas agora está confirmado.– Agora, sabemos – diz Karin. – E os irmãos Murvall podem vir a saber. Achas que

algum deles assassinou Bengt Andersson? E que agora vai querer confessar quando os

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outros souberem que estavam errados?Malin sorri.– Porque ris?– Tu és boa em química, Karin – diz Malin. – Mas não és tão boa em termos de

conhecimento das pessoas.As duas mulheres ficam em silêncio. Sentadas, juntas.– Porque não me disseste tudo isto por telefone? – Pergunta Malin.– Porque queria dar-te esta informação de olhos nos olhos – responde Karin. –

Pareceu-me que seria melhor assim.– Porquê?– És tão fechada às vezes, Malin. Tensa. E nós estamos sempre a encontrar-nos aqui

no trabalho. Pode fazer-nos bem vermo-nos assim, num ambiente mais calmo, uma vezpor outra, não achas?

À saída do laboratório, o telefone toca.Malin atende, ao mesmo tempo que caminha pelo estacionamento, passando por uma

garagem cuja porta está fechada, e na direcção de um lugar perto de uns arbustos ondeo seu Volvo está ao lado do brilhante Lexus particular de Karin.

Tove.– Olá, querida.– Olá, mãe.– Estás na escola?– No intervalo entre matemática e inglês. Mãe, lembras-te de os pais do Markus

quererem convidar-te para jantar?– Sim, lembro-me.– Pode ser hoje à noite?Médicos finos.Eles querem.Convidam no dia, para a noite.Será que não sabem que os outros também podem ter as suas agendas cheias?– Claro, Tove. Claro que posso, mas não antes das sete horas. Cumprimentos ao

Markus. Diz-lhe que terei muito prazer.Desligam.Quando abre a porta do carro, Malin pensa:O que acontece quando mentimos à nossa filha? Quando cometemos uma falta contra

ela? Apaga-se uma estrela no céu, é isso?

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CAPÍTULO 12

– SERÁ QUE AINDA EXISTE alguma pedra que não tenhamos revirado? – Pergunta Zeke.– Não sei – responde Malin. – Ainda não consigo ver o todo. Os pormenores não

combinam.O relógio na parede continua no seu tiquetaque incessante a caminho do meio-dia.A grande sala do departamento de investigação criminal está quase deserta. Zeke está

sentado à sua secretária. Malin, numa cadeira, ao lado.Desesperados? Nós?Desesperados não, mas atrapalhados.Quando voltou da perícia, Malin foi para uma reunião interminável em que fizeram a

revisão completa do desenrolar das investigações.As más notícias vieram primeiro.A voz de Johan Jakobsson, resignada, do outro lado da mesa:– Os últimos ficheiros no disco rígido de Rickard Skoglöf continham as habituais

imagens pornográficas, mas nada de ilegal. Temos ainda um ficheiro para ver, com umasenha completamente maluca, mas estamos a trabalhar no caso.

– Esperemos que tenha escondido algum segredo – diz Zeke, mas Malin pôde sentirna voz dele que a sua esperança era muito vaga, quanto a um final para breve.

Depois, tentam encontrar algum lapso, alguma voz na investigação, alguma coisa queunisse as pontas e formasse um conjunto. Mas por mais que tentassem, voltavamsempre ao ponto de partida. O homem na árvore e as pessoas à sua volta: os irmãosMurvall, Maria, Rakel, Rebecka. O ritual, a fé pagã. Valkyria Karlsson, RickardSkoglöf e apenas a pequena probabilidade de Magnus Tedensjö e Joakim Svenssonterem feito alguma idiotice maior, naquelas poucas horas em que ficaram sozinhos eapenas ofereceram álibi um ao outro.

– Já sabemos isso tudo – diz Sven Sjöman. – A questão é saber se podemos tirar maisalguma conclusão dessas pistas. Não há outros caminhos pela frente? Nenhuma outrapista?

Silêncio na sala, um longo e penoso silêncio.Depois, Malin falou:– Talvez esteja na hora de contar aos irmãos Murvall que não foi Bengt Andersson

quem violentou a irmã. Talvez eles digam alguma coisa de novo quando foreminformados disso, não é?

– É muito duvidoso, Malin. Tu acreditas mesmo nisso? – Questiona Sven.Malin encolhe os ombros.

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– E eles já estão em liberdade – diz Karim Akbar. – Não podem voltar para a cadeiaapenas para isso. E também não seria conveniente ir outra vez a casa deles. Issosignificaria, garantidamente, mais uma denúncia por invasão à sua privacidade. E aúltima coisa de que precisamos agora é de publicidade negativa.

– Nenhuma denúncia por parte da população em geral? – Tenta Johan.– Nenhuma – constata Sven. – Silêncio completo.– Podemos fazer um novo apelo – diz Johan. – Alguém deve saber alguma coisa.– A Comunicação Social já nos consome com a situação tal como está – diz Karim. –

Neste momento, vamos ter de nos desembaraçar sem qualquer apelo ao público. Issoapenas iria originar mais notícias sensacionalistas.

– Recorrer à direcção nacional da polícia de investigação criminal? – Propôs Sven. –Talvez esteja na hora de os chamar. Temos de confessar que estamos a marcar passo.

– Ainda não, ainda não – atalha Karim, com voz segura, apesar de tudo.Todos deixaram a sala de reuniões com a sensação de que tinham de esperar que

alguma coisa acontecesse, de que, na realidade, apenas podiam assistir à evolução dosacontecimentos, aguardando que os assassinos – ou o assassino – de Bengt Andersson,os que o penduraram na árvore, de alguma maneira se fizessem de novo notar.

Mas se ele, ela ou eles continuassem invisíveis? E se isto foi apenas um acto isolado?Nessa altura, estariam perdidos.Nesse momento, as vozes da investigação ficariam em silêncio para sempre.Mas Malin lembrava-se ainda da sensação que teve, perto da árvore: de que havia

algo por acabar, de que alguma coisa ainda se movimentava na floresta, lá fora, noscampos fustigados pelo frio e pela neve.

Porém, neste momento os ponteiros do relógio na parede aproximavam-seinexoravelmente do meio-dia. E, no mesmo segundo, Malin diz:

– Almoço?– Não – reage Zeke, rapidamente. – Vou ensaiar com o coro.– Vais mesmo? Na hora de almoço?– Sim, vamos dar um concerto na igreja matriz dentro de algumas semanas. Por isso,

marcámos uns ensaios extra.– Concerto? Ainda não tinhas dito nada sobre isso. Ensaios extra? Pareces um

jogador de hóquei.– Deus me livre – diz Zeke.– Posso ir contigo?– Ao ensaio?

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– Sim.– Claro – diz Zeke, espantado. – Sure, Malin.

O salão do Palácio da Cidade cheira a fechado há muito tempo, mas os membros docoro parecem sentir-se à vontade na área espaçosa. Estão vinte e duas pessoaspresentes nesse dia. Malin contou-as, treze mulheres e nove homens. A maioria temmais de cinquenta anos. Estão todos bem vestidos e de roupa bem engomada, como énormal em reuniões desse tipo no interior do país. Camiseiros coloridos e camisasbrancas, fatos completos e saias.

Os membros do coro assumiram os seus lugares em três filas no palco. Por trás, umgrande pano de fundo com aves bordadas que parecem querer levantar voo e flutuar noespaço, sob a cúpula do salão.

Malin ocupa uma cadeira na última fila, junto da parede coberta de painéis demadeira, e fica a escutar o grupo coral. Eles cantam, soltam risos abafados, trocamfrases entre si e riem abertamente. Zeke conversa entusiasmado com uma mulher, maisou menos da idade dele. Uma mulher alta, loira, de vestido azul.

Bonita, pensa Malin. Tanto ela como o vestido.Então, uma mulher eleva a voz e diz:– Vamos lá, vamos começar com People get ready.A essa ordem, todos os membros do coro acertam posições, clareiam as vozes uma

última vez e, pela expressão dos rostos, todos demonstram estar profundamenteconcentrados.

– Um, dois, três.E assim a canção enche o auditório, coordenação perfeita, um som bonito. Malin e as

pessoas na sala ficam espantadas perante a força calma do som. Como é bela a vozreunida e única de vinte e duas pessoas: «… you don’t need no ticket, you just get onboard…»

Malin encosta-se melhor na cadeira. Fecha os olhos, deixa-se abraçar pela música equando olha de novo já começara uma nova canção. E ela vê como Zeke e os outros sesentem realmente bem lá no palco. De alguma maneira, associam-se uns aos outros pormeio da música, na sua simplicidade.

E, de repente, Malin sente uma solidão penetrante. Não faz parte daquele cenário, massente ao mesmo tempo que a sua solidão tem algum significado, que aquela sensação deestar por fora, de alguma maneira tem um significado, para lá daquele salão.

Em algum lugar existe uma porta.Uma abertura num recinto fechado.

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Intuição, pensa Malin. Vozes. O que elas tentam dizer-me?

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CAPÍTULO 13

ATROCIDADES.

Quando começam, Malin? Quando terminam? Acontecem em ciclos? Com o passardo tempo, são cada vez mais numerosas? Ou a maldade é, praticamente, constante?Diluem-se ou concentram-se por cada novo ser humano que nasce?

Posso reflectir sobre isso tudo quando vagueio pela paisagem.Olho para o carvalho onde me penduraram.Um lugar isolado. Talvez a árvore gostasse da minha companhia? As bolas. Eu

apanhava as bolas e atirava-as de volta. E elas voltavam de novo, e de novo, denovo.

Maria?Sabias?Foi esse o motivo da tua amizade? O laço entre nós? É importante saber isso?

Acho que não.O ar por baixo e por cima de mim, eu descanso no meu próprio vácuo. Todos os

mortos cochicham à minha volta: «Continua, Malin, continua.»Ainda não acabou.Estou de novo com medo.Há alguma saída?Tem de haver.Basta perguntares à mulher aí em baixo. À mulher da qual se aproxima por trás

uma pessoa vestida de preto, escondida numa fileira de arbustos.

A noite escurece cedo. É silenciosa, fria e escura. O portão da garagem recusa-se asubir, guincha e estremece. E o ruído parece ficar paralisado no ar. Ela carrega nobotão de novo, a chave está no seu devido lugar, a corrente eléctrica ligada. Está tudocerto.

Atrás dela, os prédios, a vegetação congelada, luzes na maioria das janelas. Já quasetoda a gente voltou do trabalho. O portão recusa-se a abrir. Vou ter de abri-lo com asmãos. Já o fiz uma vez. É pesado, mas consigo. Ela está com pressa.

Um ruído esquisito nos arbustos atrás dela. Pode ser uma ave. Nesta época? Talvezum gato? Mas os gatos ficam sempre dentro de casa quando está frio, não é?

Vira-se e, nessa altura, vê uma sombra negra que avança na sua direcção, dá um, dois,três, quatro passos antes de alcançá-la. Ela esbraceja, grita, mas nada se ouve, algumacoisa que sabe a produto químico está a ser pressionada contra a sua boca e ela tenta

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arranhar, mas as luvas nas mãos fazem com que a sua violência se transforme numacarícia.

Olhem pelas janelas.Vejam o que está a acontecer.Ele, porque era de facto um «ele», tem luvas negras e ela vê os seus olhos, castanhos-

escuros, a raiva e a dor no olhar, mas o químico já atinge o seu cérebro, uma sensaçãosuave e clara que faz com que se esvaia, os músculos relaxam-se e ela já não conseguesentir o corpo.

Consegue ver. Mas vê a dobrar.Vê um ser humano ou seres humanos que se inclinam por cima dela. São vários?Não, parem, assim não.Mas não serve de nada tentar lutar. É como se tudo já tivesse acontecido. E ela, já

vencida.Os olhos.Os dele, os dela, os deles?Eles não estão aqui, pensa ela. Os olhos estão num outro lugar, muito longe.Hálito adocicado, quente, que devia ser estranho, mas não é.Depois, o produto químico chega aos olhos, em seguida aos ouvidos. E as imagens e

os ruídos desaparecem, o mundo desaparece. E ela não sabe se está a adormecer ou amorrer.

Ainda não, pensa. Ainda precisam de mim.Ainda não, não, não, não…

Está acordada. Sabe disso. As pálpebras subiram, estão abertas, a cabeça dói-lhe,embora esteja tudo escuro. Ou dorme? Pensamentos confusos.

Estou morta?É esta a minha sepultura?Não quero estar aqui. Quero ir para casa, para os meus. Mas não estou com medo.

Porque não estou com medo?Este barulho deve ser de um motor. Um motor bem conservado que faz o seu trabalho

com alegria, apesar do frio. Doem-me os pulsos e os pés. É impossível movimentá-los,mas posso espernear, suspender e arquear o corpo e bater nas quatro paredes doespaço estreito e apertado.

Devo gritar?Claro. Mas alguém, ele, ela, eles, fechou os seus lábios com fita adesiva, além de ter

posto um trapo contra o céu-da-boca. Qual é o gosto do trapo? A bolo? A maçã? A

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petróleo? Seco, mais seco, o mais seco possível.Posso lutar.Como sempre fiz.Não estou morta. Estou deitada na mala de um carro, a congelar, mas esperneio,

protesto.Bum, bum, bum.Alguém me ouve? Existo?

Eu ouço.Sou teu amigo. Mas não posso fazer nada. De qualquer forma, não muito.Talvez a gente se veja depois. Quando tudo terminar. Poderemos flutuar lado a

lado. Poderemos ser amigos. Correr por aí, em volta das macieiras floridas numaépoca do ano que pode ser considerada como um eterno Verão.

Mas primeiro:Um carro que avança pela estrada, o teu corpo na mala, o carro a parar numa

berma deserta e tu vais ser drogada outra vez porque os teus pontapés sãodemasiado barulhentos e o carro desloca-se ao longo dos campos e penetra naescuridão mais densa.

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CAPÍTULO 14

A CASA ONDE MORAM OS PAIS de Markus está localizada em Ramshäll, entre as vivendasde directores da Saab, de empreiteiros bem-sucedidos, de médicos de boas famílias ede poderosos homens de negócios.

As vivendas estão localizadas praticamente no centro da cidade, sobem por umaencosta com vista sobre Folkungavallen e Tinnis, uma grande área comum com piscinasao ar livre e relvados enormes, cobiçada por todos os promotores imobiliários dosquatro cantos do país. O local mais chique para se morar é na encosta, por causa davista e por estar mais próximo do centro da cidade, e é aí que vivem os pais deMarkus.

Malin e Tove seguem, lado a lado, à luz dos candeeiros da rua e os seus corposlançam sombras longas nos passeios cobertos de sal para que ninguém escorregue.Certamente, os moradores gostariam de colocar um gradeamento em volta de toda aárea, com arame farpado e um vigilante na entrada. A ideia de condomínios fechadosnão é estranha a certos vereadores municipais. Por isso, o gradeamento de Ramshällnão é tão impensável como se supõe.

Não demora mais de um quarto de hora para ir do apartamento até Ramshäll. Por isso,Malin decide enfrentar o frio, apesar dos protestos de Tove:

– Eu venho contigo, portanto, tu também deves vir comigo.– Acho que te ouvi dizer que ia ser agradável…– Vai ser agradável, Tove.No caminho passam pela vivenda de Karin Johannison. Uma casa construída na

década de 1930, com fachada de madeira e varanda.– Está frio, mãe – diz Tove.– Está fresco – diz Malin que, a cada passo, sente como a ansiedade aumenta, apesar

de todos os preparativos feitos para ser bem-sucedida no jantar.– Estás nervosa, mãe – diz Tove, de repente.– Nervosa, eu?– Sim, por causa do jantar.– Não. Porque deveria estar?– Costumas ficar nervosa quando sais para visitas assim. Para acontecimentos

sociais. E, neste caso, eles são médicos.– Como se isso tivesse alguma importância especial.– É ali. – diz Tove apontando para a frente, na rua. – Terceira casa, à esquerda.Malin olha para a vivenda, uma casa de dois andares, de tijolos brancos, rodeada por

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estacas baixas, com arbustos recém-cortados no jardim.Na sua cabeça, a vivenda cresce e transforma-se num castelo toscano fortificado,

impossível de invadir por simples soldados de infantaria.

Dentro da casa, um calor suave e cheiro a folhas de louro e a uma limpeza que só umameticulosa empregada doméstica polaca pode providenciar.

O casal Stenvinkel aguarda no hall de entrada, dá as boas-vindas e apertacordialmente a mão a Malin que fica confusa, desprevenida para aquela recepção tãoincontrolavelmente calorosa.

A mãe Birgitta, médica, chefe da Clínica de Otorrinolaringologia, quer ser tratadapelo diminutivo Biggan. E diz que é um «praaaazer» enorme, «finaaaalmente», poderencontrar-se com Malin, sobre quem tem lido muito no Correspondenten. O pai Hans,cirurgião, quer ser chamado de Hasse. «Espero que goste de faisão, porque euencontrei uns maravilhosos no Lucullus e não resisti.» Estocolmanos, da classe médiasuperior, cuja carreira os trouxe para este ermo, pensa Malin.

– Será que ouvi bem? – pergunta Malin. – Não são de Estocolmo?– De Estocolmo? Parece-lhe? Não, eu sou de Borås – diz Biggan. – E Hasse é de

Enköping. Conhecemo-nos quando estudávamos em Lund, na universidade.Já conheço a história da vida deles e ainda não passámos do hall de entrada.Markus e Tove já desapareceram dentro de casa. Então, Hasse conduz Malin para a

cozinha. Em cima de uma bancada lindíssima, de aço inoxidável, vê-se um shakergotejante de humidade diante do qual Malin capitula, acha que não vale a pena resistir.

– Um martíni? – Pergunta Hasse e Biggan acrescenta:– Mas, cuidado! O martíni que ele faz é very dry.– Com Tanqueray, está bem? – Pergunta Hasse.– Gosto muito – responde Malin. E, minutos mais tarde, está com uma bebida na mão,

pronta para um brinde de agradecimento pelo convite, um skål dirigido à dona da casacomo é da praxe. A bebida está maravilhosa, límpida e pura, e Malin só pode pensarque, de qualquer maneira, em matéria de bebidas, Hasse sabe da coisa.

– Nós costumamos tomar os aperitivos na cozinha – diz Biggan. – Aqui, o ambiente émais íntimo e agradável, não é?

Hasse está junto do fogão. Com a mão, faz um sinal e chama Malin, ao mesmo tempoque, com a outra, destapa uma panela preta, com ar de ser frequentemente usada.

Os aromas atacam Malin quando esta se aproxima.– Olhe para isto – diz Hasse. – Já viu coisa mais apetitosa?Dois faisões a nadar num molho amarelado, borbulhante, que fazem com que o

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estômago de Malin se revolva de fome contida.– O que lhe parece?– A aparência é fantástica.– Oh, muito bem, acabou-se depressa – diz Biggan. À primeira, Malin não percebeu o

que ele queria dizer, mas logo compreendeu ao ver que na sua mão o copo já estavavazio.

– Vou preparar mais um martíni – diz Hasse. E enquanto ele sacode mais uma vez oshaker, Malin pergunta:

– Markus tem irmãos?Hasse pára de chocalhar a bebida. E Biggan sorri, antes de falar:– Não, tentámos durante algum tempo, mas tivemos de desistir.Então, o gelo no shaker volta a chocalhar.

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CAPÍTULO 15

A CABEÇA DELA ESTÁ PESADA e a dor é como uma faca de cozinha enfiada entre astêmporas. Uma dor assim é razão bastante para não dormir. Nos sonhos, não existemdores físicas. É por isso que adoramos sonhar.

Não, não, não.Ela lembra-se agora.Mas onde está o som do motor? O carro? Já não está dentro do carro.Pare. Largue-me. Tenho alguém que está a precisar de mim.Tire essa venda dos meus olhos. Tire-a. Talvez possamos conversar. Porquê eu?Cheira a maçãs, aqui? É terra aquilo que sinto com os meus dedos, fria e quente ao

mesmo tempo, ou migalhas de bolo?Estalidos de uma lareira.Ela esperneia na direcção de onde vem o calor, mas as pernas não batem em nada.

Encosta-se para trás, mas também não encontra apoio nenhum. Apenas um som surdo,uma vibração por todo o corpo.

Eu estou… Onde é que eu estou?Estou deitada na terra fria. É um túmulo? Estarei morta? Socorro. Ajudem-me.Mas há calor à minha volta e se eu estivesse dentro de um caixão, aí, teria de sentir a

madeira à minha volta.Tirem-me estas cordas, com os diabos!Tirem-me o trapo da boca.Contrai os músculos. Talvez os nós se alarguem. Volta-te.Agita-se em todos os sentidos.Depois, alguém lhe tira a venda.Uma luz vacilante. A entrada de uma cave? Caminhos subterrâneos? Onde é que eu

estou? São aranhas e cobras que andam à minha volta?Um rosto. O rosto.Tapado com uma máscara, das que se usam para esquiar.Os olhos. O olhar existe, no entanto, não existe.Agora, desaparecem novamente os rostos.O corpo dói-me. Mas a dor ainda agora começou.

Eu gostaria de poder ajudar.Mas não posso.Posso apenas ver. E vou continuar a olhar. Talvez o meu olhar te possa dar algum

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alento.Vou ficar aqui a olhar, embora preferisse desviar os olhos e desaparecer para

todos aqueles lugares para onde posso desaparecer.Mas fico, cheio de medo e de amor. Cheio de todos os outros sentimentos possíveis.

Ainda nada está terminado, mas tens de fazer alguma coisa por ti, não é? Achas queeles vão ficar impressionados?

Eu sei que dói. Senti as mesmas dores. Pára, pára, digo eu para baixo, mas eu sei,tu não podes ouvir a minha voz. Pensas que as dores dela podem destruir outra dor?Será que as dores dela podem abrir-te as portas? A minha não o fez.

Portanto, suplico-te:Pára, pára, pára.

Será que disse «pára»?Como é que pode sair qualquer som da minha boca, com a fita adesiva nos lábios e

um trapo dentro da boca?Está nua. Alguém lhe rasgou a roupa, cortou as costuras com uma navalha e agora

passa uma vela acesa pelos seus ombros. Ela está com medo. Uma voz murmura: – Istotinha de acontecer, tinha de acontecer, tinha de acontecer.

Ela grita.Alguém aproxima a vela da pele, cada vez mais próximo. O calor é tremendo e ela

grita, grita como se não soubesse fazer outra coisa senão gritar, como se o estalar dasua carne a arder e a dor causada fossem uma coisa só. Vira-se e revira-se, mas nãoconsegue mover-se um milímetro.

– Devo queimar o teu rosto?É isso que ele está a dizer?– Talvez deva ficar por aqui. Assim, talvez não precise de te matar, visto que sem

rosto passas a não existir, não é?Ela grita, grita mais. Sem som.A outra face. A maçã do rosto arde. Movimentos circulares, vermelho, preto,

vermelho, a cor da dor. E já cheira a pele queimada, a pele dela.– Talvez vá antes buscar a faca? Espera. Não desmaies, mantém-te acordada –

murmura a voz, mas ela quer mesmo é ir-se embora.Os reflexos da lâmina da faca. A dor desaparece, a adrenalina circula pelo corpo e a

única coisa que resta é o medo de nunca mais sair dali.Quero voltar para casa, para os meus.Eles devem estar a perguntar-se onde estou. Há quanto tempo estou aqui? Eles devem

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estar preocupados, sentindo a minha falta.A faca é fria e quente. O que será essa coisa quente que escorre pela minha coxa? Um

pica-pau com bico de aço dá bicadas nos meus seios, desce até às costelas. E devora-me. O rosto arde-me como se alguém me batesse na tentativa vã de me manteracordada.

Mas não resulta.Vou desaparecer agora.Quer queiram, quer não.

Quanto tempo já se passou? Não sei.São correntes que fazem esse barulho?Agora, estou perto de um poste.A floresta à minha volta.Estou sozinha.Tu, vocês, desapareceram? Não me deixem aqui sozinha.Ouço-me gritar.Mas não sinto frio. E pergunto-me: quando é que o gelo deixa de ser frio, quando é

que a dor deixa de doer?Há quanto tempo estou aqui?A floresta é densa à minha volta, escura, mas branca por causa da neve, uma pequena

clareira, uma porta que dá para uma caverna.Os meus pés já não existem. Nem os meus braços, as minhas mãos, dedos ou faces.

As faces são apenas buracos que ardem. E nada à minha volta tem cheiro.Já não tenho recordações, já não há ser humano. Não há passado, nem futuro. Só o

instante presente, que me destina uma única missão.Fugir.Fugir daqui.É tudo o que me resta fazer.Fuga, fuga, fuga.A qualquer preço. Mas como é que posso correr, se não tenho pés?

Alguma coisa se aproxima de novo.É um anjo?Não nesta escuridão.Não, é alguma coisa negra que se aproxima.– O que é que eu fiz?É a coisa negra que diz isto?

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– Eu tenho de fazer isto – diz a coisa negra.Ela tenta levantar a cabeça, mas nada acontece. Apoia-se e assim consegue levantar a

cabeça, lentamente. A coisa negra está agora muito próxima e traz um caldeirão comágua a ferver às costas. E ela pensa, desvia o pensamento. E depois o grito, como sealguém rugisse quando a coisa atira a água sobre ela.

Mas não chega a atingir o alvo. Nenhuma água fervente a atinge, apenas alguns pingosde calor.

Agora, chega a própria coisa negra de novo.Com um ramo na mão?O que acontecerá agora?Devo gritar?Grito.Mas não espero que alguém me ouça.

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CAPÍTULO 16

NA SALA DE JANTAR, À LUZ VIVA DAS VELAS. Na parede por trás de Hasse e Tove está

pendurada uma grande tela a óleo de um artista chamado Jockum Nordström10 que,segundo Biggan, se transformou numa espécie de big shot em Nova Iorque. O quadrorepresenta um homem de cor, vestido com roupas de rapazito sobre fundo azul. Malinacha que a pintura é a um tempo ingénua e madura, o homem está sozinho, mas preso aofundo azul. E no céu flutuam guitarras e tacos de bilhar.

Os faisões estão saborosos, mas o vinho é ainda melhor, um tinto de uma região deEspanha que Malin não conhece. E ela é obrigada a convocar toda a sua força devontade para não começar a beber um copo atrás do outro, de tão bom que o vinho é.

– Mais faisão, Malin? – Hasse aponta para o cozinhado.– Sirva-se outra vez – diz Markus. – Assim, o pai fica contente.A conversa durante a noite girou sobre vários assuntos, desde o trabalho de Malin até

aos efeitos da musculação, a reorganização dos serviços hospitalares, a políticamunicipal e os «entediantes» espectáculos da sala de concertos da cidade.

Hasse e Biggan. Ambos igualmente gentis e sinceramente interessados em tudo. Pormuito que Malin procurasse, não encontrou um único tom de falsidade. Parecem,realmente, estar a gostar de nos ver aqui. Não estamos a incomodá-los nem umbocadinho. Malin toma mais um gole de vinho. E eles sabem o que fazer para eu medescontrair.

– Óptima, a ideia de viajar para Tenerife – diz Hasse. Malin olha para Tove por cimada mesa. Tove baixa os olhos.

– As passagens já estão reservadas e confirmadas? – Pergunta Hasse, depois. –Precisamos do número da conta bancária onde devemos depositar o dinheiro. Lembra-me disso, está bem?

– Eu… – Começa Tove.Malin tosse, clareia a voz.Biggan e Hasse olham para ela, preocupados. Malin vira-se para Tove.– O meu pai mudou de planos – responde Malin. – Vão receber outra visita.– Mas é a neta deles! – Exclama Biggan.– Porque não me disseste nada? – Pergunta Markus, virando-se para Tove.Malin abana a cabeça.– Eles são um pouco especiais, os meus pais.Tove respira aliviada, e Malin repara que esta mentira lhe devolveu a tranquilidade,

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ao mesmo tempo que fica envergonhada por não ter conseguido dizer simplesmente averdade, que Markus não era bem-vindo.

Porque estou a mentir? Pensa MalinPara não desapontadar ninguém.Porque sinto vergonha do conservadorismo dos meus pais.Porque a verdade dói?– É estranho – diz Hasse. – Quem poderia querer outra visita, mais do que a visita da

neta e do namorado?– Aparentemente, é um antigo colega.– Mas, não há problema – atalha Biggan. – Assim vão poder viajar connosco para

Åre, a nossa estância de Inverno, não é verdade? Tenerife é bonito, mas no Inverno faz-se esqui.

Malin e Tove voltam para casa pelas ruas ladeadas de vivendas.Um conhaque depois do jantar soltou definitivamente a língua de Malin. Biggan

também bebeu, mas Hasse conteve-se, iria trabalhar na manhã seguinte. – Um pequenomartíni, um copo de vinho. Nada mais, quando no dia seguinte tenho que usar o bisturi.

– Já devias ter contado a Markus.– Talvez, mas eu…– E assim obrigaste-me a mentir. Sabes muito bem que não gosto disso. E agora Åre,

eles convidaram-te? Não me podias ter dito? Quem sou eu, afinal, a tua…– Mãe, será que não podes ficar calada?– Porquê? Tenho coisas a dizer.– Mas a dizer disparates.– Porque não disseste nada sobre Åre?– Mas, mãe, não percebes? Quando é que eu tive oportunidade de te falar disso?

Quase nunca estás em casa. Estás sempre a trabalhar.Malin gostaria de gritar a Tove: – Não é verdade! Estás errada! – Mas reconsidera e

pensa, a situação está assim tão má?Continuam a andar em silêncio. Passam pelo Tinnis e o Hotel Ekoxen.– Mãe, vais ficar calada? – Pergunta Tove, ao passarem pelo mercado de segunda

mão, a feira da ladra da cidade.– Eles foram muito gentis – diz Malin. – Nada do que eu receava.– Tens sempre tendência a pensar mal das pessoas, mãe.

10 Jockum Nordström (1963-). Pintor sueco, mais conhecido pelas suas colagens impressionantes, mas tambémpelos seus desenhos, pinturas e ilustrações. (N. do T.)

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CAPÍTULO 17

ESTOU A SANGRAR.

Alguém me agarra, me tira do poste e me deita numa cama macia e felpuda.Estou viva.O meu coração continua a bater.E a coisa negra está por toda a parte, põe um lençol e um cobertor de lã por cima do

meu corpo. Fica quente. E a voz, as vozes, da coisa negra, dizem:– Ele morreu demasiado cedo. Mas tu, tu serás pendurada como pensei.Depois, a árvore por cima de mim. Estou em movimento, através da floresta. Será que

estou deitada em cima de um trenó? Ouço o som de esquis sobre o gelo? Estoucansada, tão cansada. Mas está quente.

É calor de verdade.Essa coisa negra faz parte de um sonho ou estou acordada?Mas quero fugir do calor.Ele mata.E não quero morrer.O som de um motor, novamente. Estou agora dentro de um carro.No som do motor, no seu trabalhar persistente, existe um pressuposto. De que o meu

corpo ainda tem uma oportunidade, nem tudo terminou.Respiro.Ainda bem que sinto dores em todas as partes debilitadas do meu corpo. Até às

entranhas arranhadas e sangrentas. As dores mantêm-me alerta. Vão ajudar-me asobreviver.

***

Estou a flutuar por cima dos campos.Entre Maspelösa, Fornåsa e Bankeberg, no final de uma pequena estrada que não

foi limpa e está coberta por uma fina camada de neve. Existe uma árvore isolada,igual àquela em que fiquei pendurado.

O carro com a mulher na bagageira pára por lá.Gostaria de poder ajudá-la agora.Mas fugir é algo que ela tem de fazer sozinha.

A coisa negra abre a bagageira. Vai ter de me ajudar a sair. Então vou transformar-me

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num motor. Vou explodir. Vou fugir. Vou viver.A coisa negra abre a bagageira, puxa o meu corpo por cima do rebordo e atira-me

para a neve, perto do tubo de escape.Deixa-me deitada no gelo.Um tronco de árvore, grosso, a uns dez metros de distância.A pedra está coberta de neve, mas eu consigo vê-la. São as minhas mãos que estão

livres? É a minha mão, essa coisa inchada e vermelha que vejo à esquerda?Agora, a coisa negra está ao meu lado. Murmura algo sobre sangue. Sobre sacrifício.Se eu me virar para a esquerda e, depois, agarrar a pedra e bater com ela naquilo que

deve ser a cabeça da coisa negra, pode ser que resulte. Que dê para eu fugir.Eu sou um motor e vou girar a chave.Agora, vou explodir.Pego na pedra, o murmúrio pára, bato com a pedra, vou fugir, vou sair daqui, que

ninguém tente impedir-me, eu bato, bato mais, a minha força vem lá bem de dentro demim, é mais forte, é mais clara, uma clareza que nem a escuridão consegue esmorecer.

Nem tentes.Bato na coisa negra e rolamos na neve e o frio não existe, a coisa negra agarra-me

fortemente, mas eu expludo mais uma vez e volto a bater. Com a pedra no crânio, acoisa negra fica abatida, fraca, deixa de me agarrar, cai na neve.

Consigo levantar-me, ficar de joelhos. O campo estende-se para todos os lados.Levanto-me.

No escuro. De onde vim.Corro, escorrego, cambaleio em direcção ao horizonte.Estou a fugir.

Estou a flutuar ao teu lado enquanto tu corres, a cambalear, pelo campo. Vaischegar a algum lugar. E não importa onde, eu estarei lá para te receber.

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CAPÍTULO 18

QUINTA-FEIRA, 16 DE FEVEREIRO

JOHNNY AXELSSON ESTÁ AO VOLANTE, sente as vibrações do carro, como o frio faz comque o motor trabalhe irregularmente.

É de manhã bem cedo.A névoa que se levanta do gelo eleva-se dos campos e das quintas, por cima da

estrada, alternadamente, em camadas, que quase não deixam ver nada.São precisos quase cinquenta minutos para ir de Motala a Linköping. E nesta época

do ano, ainda por cima, também é perigoso, por causa do gelo que cobre a estrada,aqui e acolá, por muito que lancem areia com sal.

Não. É melhor conduzir com cuidado. Ele segue sempre por Fornåsa, gosta maisdesse trajecto do que o de Borensberg.

E nunca se sabe o que poderá surgir das florestas que ladeiam a estrada. Já por váriasvezes que quase embateu com o carro em veados e alces.

Mas, de qualquer maneira, as estradas são rectas, construídas para funcionar comopistas de aterragem se houver guerra.

Mas quais são as probabilidades de haver guerra?Ou será que já há?Motala, a capital dos drogados na Suécia.Os empregos são raros, a não ser que se queira ser funcionário público.Mas é em Motala que Johnny Axelsson cresceu e é lá que ele quer morar. E o que

significam duas horas de distância entre as duas cidades? É um preço que de boavontade paga para morar no lugar de que gosta, onde se sente em casa. Quando oanúncio de um emprego no IKEA surgiu no jornal, não hesitou. Nem depois, quandoconseguiu o emprego. Não quer ser um peso para ninguém. Antes, contribuir. Ganhardinheiro com o seu trabalho. Quantos dos seus velhos amigos vivem do subsídio dedesemprego?

Continuam a viver sem trabalhar, à custa da segurança social, desde que os seusempregos anteriores desapareceram há mais de dez anos. Meu Deus, aos trinta e cincoanos, é uma vergonha.

Ir pescar.Ir caçar.Apostar. Corridas de cavalos. Trabalhar um pouco, em biscates aqui e ali, sem

descontar.

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Johnny Axelsson passa por uma casa vermelha ao lado da estrada. Lá dentro, vê umcasal de idosos a tomar o pequeno-almoço. E à luz da cozinha vê o amarelo-douradoda pele deles, como dois peixes de aquário.

Olha para a frente, pensa Johnny. É na estrada que te deves concentrar.

Quando chega ao departamento de investigação criminal, Malin dirige-se logo aorefeitório. Na máquina, há café acabado de fazer.

Senta-se a uma mesa perto da janela que dá para um jardim interior.Lá fora, nesta época do ano, há neve por todos os lados. Aqui, no jardim interior, num

pequeno espaço empedrado, canteiros de flores como se fosse Primavera, Verão ouOutono.

Há uma revista na mesa ao lado.Ela estende a mão e apanha-a.Amelia.Um número antigo.Título: «Atraente e natural!»Título na página seguinte: «Dossiê especial: A lipoaspiração!»Malin fecha a revista, levanta-se e dirige-se à sua secretária.Há uma pequena nota num post-it, como uma chamada especial entre a papelada

geral.Uma mensagem de Ebba, da recepção.

***

Malin,Telefona para este número. Ela diz que é importante: 013-173928.

Nada mais.Malin pega no papel e vai à recepção. Ebba não está. Só Sofia, por detrás do balcão.– Viste a Ebba?– Está na cozinha. Foi buscar café.Malin encontra Ebba no refeitório. Está sentada a uma mesa e folheia uma revista.

Malin mostra-lhe o recado.– O que é isto?– Foi uma senhora que telefonou.– Até aí já percebi.Ebba torce o nariz.– Ela não quis dizer qual era o assunto, mas era importante, pelo que pude perceber.

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– Quando é que ela telefonou?– Pouco antes de chegares.– Nada mais?– Sim – diz Ebba. – Ela estava com medo, hesitante, falava num murmúrio.Malin procura o número na lista telefónica para saber de quem é.Nada.Deve ser confidencial e ninguém vai conseguir saber nada, a não ser depois de perder

um tempo enorme com burocracias.Marca o número. Ninguém atende, nem mesmo o atendedor de chamadas.Mas apenas um minuto mais tarde, uma chamada.Malin levanta o auscultador. Atende:– Sim, aqui Malin Fors.– Aqui, Daniel. Tens alguma novidade para mim sobre o caso Andersson?Ela fica zangada. Depois, estranhamente calma, como se quisesse ter ouvido a voz

dele. Depois, afasta essa sensação.– Não.– A queixa por perseguição, algum comentário?– Estás doido, Daniel?– Estive fora alguns dias. Não vais perguntar onde?– Não.Quer perguntar, não quer perguntar.– Estive em Estocolmo. No Expressen. Eles querem que eu vá para lá. Mas eu recusei

o convite.– Porquê?A pergunta voa da boca de Malin.– Quer dizer que, apesar de tudo, ainda te preocupas comigo? Nunca se deve fazer o

que esperam de nós, Malin, nunca.– Adeus, Daniel.Ela desliga. E o telefone volta a tocar. Daniel? Não, número desconhecido no

mostrador, silêncio do outro lado da linha.– Aqui, Fors. Com quem é que estou a falar?Respiração profunda, hesitação. Talvez receio. Finalmente, uma voz feminina, uma

voz baixa, preocupada, como se estivesse para dizer palavras proibidas.– Sim – diz a mulher. Malin aguarda. – O meu nome é Viveka Crafoord.– Viveka, eu…– Trabalho como psicanalista aqui em Linköping. Trata-se de um dos meus pacientes.

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Instintivamente, Malin quer pedir à mulher para se calar, não dizer mais nada. Nemela pode receber informações sobre um paciente, nem a mulher que diz chamar-seViveka Crafoord pode contar seja o que for sobre qualquer dos seus pacientes.

– Eu li – continua a mulher – sobre o caso em que você está a trabalhar, o assassíniode Bengt Andersson.

– Você mencionou…– Acho que um dos meus pacientes… Enfim, penso que vocês precisam de saber de

uma coisa.– Qual paciente?– Compreende que não posso dizer.– Mas talvez possamos falar sobre o assunto, não?– Acho que não. Mas venha ao meu consultório ainda hoje, por volta das onze horas,

está bem? É na Drottninggatan três, em frente do McDonald’s. O código da porta é9490.

Viveka Crafoord desliga.Malin olha para o relógio no monitor do computador.São sete horas e quarenta e quatro minutos. Daqui a três horas e um quarto.O martíni, o vinho e o conhaque. Sente-se inchada.Levanta-se e dirige-se para a escada que leva ao ginásio.

Há quanto tempo estou a andar por aqui?Já está a clarear, mas ainda não é de dia. Estou a andar pelo campo, mas não faço

qualquer ideia de onde me encontro.Sou uma ferida aberta, mas o frio faz com que não sinta o meu corpo. Dou um passo,

depois outro, assim não vou chegar muito longe. Estou a ser seguida? A coisa negra jáacordou? Já está por perto?

É uma cor, ali adiante? A coisa negra no seu carro? É um motor?Desliga os faróis! Eles cegam-me. Cuidado com os meus olhos. Talvez sejam a única

coisa inteira que resta de mim.

Concentra-te na estrada, pensa Johnny Axelsson.Já saí da floresta.É bom circular em campo aberto, mas o frio e o vento tornam a visão pior do que

habitualmente. Como se a terra respirasse e o ar ficasse suspenso ao contactar com aatmosfera glacial.

Os olhos.Um veado?

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Não.Mas…Mas que raio é aquilo que vem ali?Johnny Axelsson mete outra mudança, abranda, faz sinal com os faróis para afugentar

o animal, mas, com os diabos!, não é um veado, é…O que é?O carro parece querer ficar colado à estrada.É o quê?Um ser humano? Uma pessoa nua? É uma mulher, e em que estado, meu Deus.E o que está a fazer aqui?Em campo aberto? Desta maneira? Numa manhã como esta.Johnny Axelsson passa por ela. Pára. E vê pelo retrovisor que a mulher continua a

andar, como se não tivesse notado sequer a passagem do carro. Continua em frente.Espera, pensa ele.Estou com pressa, mas ela não pode continuar a andar naquele estado.Abre a porta do carro, o seu corpo sente o frio. Hesita. Mas depois corre atrás da

mulher.Põe a mão no ombro dela. Ela pára, vira-se. As suas faces estão queimadas, ou será o

efeito do frio? A pele no ventre, o que aconteceu? Como é que ela pode andar com ospés neste estado? Estão negros, tão negros como as amoras negras no quintal da suacasa.

Ela olha para Johnny Axelsson, mas não o vê.Depois, fixa os olhos dele.Sorri.Há luz nos olhos dela.E ela cai nos braços dele.

Uma barra de pesos de doze quilos insiste em cair no chão do ginásio por muito queMalin queira levantá-la.

Raios, como está pesada. Devia levantá-la pelo menos dez vezes.Johan Jakobsson está ao seu lado, desceu para o ginásio logo depois dela. E agora

incita-a como se os dois, juntos, pudessem atirar para longe as más notícias.Johan conseguiu abrir, finalmente, o último ficheiro de Rickard Skoglöf, na noite

anterior, em casa, depois de pôr as crianças a dormir. A única coisa que havia noficheiro era um conjunto de imagens do próprio Rickard e de Valkyria Karlsson emvárias posições sexuais em cima de uma grande pele de animal, com as suas próprias

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peles pintadas com motivos que faziam lembrar tatuagens.– Mais uma vez, Malin.Ela levanta a barra, pressiona para cima.– Mais uma vez, vai, vai!Mas ela não aguenta mais.Deixa cair a barra no chão.Um som surdo.– Vou correr um pouco – diz ela.Tem a testa coberta de suor. É o álcool do jantar do dia anterior a sair por todos os

poros, passo a passo, na esteira.Malin vê-se ao espelho enquanto corre, com o suor a escorrer pela testa, pelas faces.

Como está pálida, apesar do esforço. O rosto. O rosto de uma mulher de trinta e trêsanos. Com os lábios que parecem mais espessos do que habitualmente, emconsequência do esforço.

Nos últimos anos, parece que o seu rosto se encontrou, adquiriu um aspectodefinitivo, como se a pele tivesse encontrado o lugar certo nas suas faces. A expressãode rapariga adolescente que tinha antes desapareceu para sempre, sem deixar rasto,depois das últimas semanas de trabalho intenso. Olha para o relógio na parede.

9h24.Johan já desapareceu.Também está na hora de tomar banho, e depois ir ao encontro de Viveka Crafoord.O telefone interno toca.Malin corre, agarra o aparelho.Zeke na linha. Excitado.– Acabam de telefonar das urgências do hospital. Um tal Johnny Axelsson deu entrada

com uma mulher que encontrou nua e maltratada lá fora na planície.– Vou já para aí.– Ela está muito mal, mas, segundo o médico com quem falei, conseguiu murmurar o

teu nome, Malin.– O que dizes?– A mulher murmurou o teu nome, Malin.

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CAPÍTULO 19

VIVEKA CRAFOORD VAI TER DE ESPERAR.

Vão ter todos de esperar.Menos os três.Bengt Andersson.Maria Murvall.E essa outra mulher, encontrada quase exactamente na mesma situação.As vítimas saem das florestas densas e escuras e surgem em campo aberto, coberto de

neve. Onde está a origem da violência?Zeke conduz o carro quarenta, setenta quilómetros acima do limite. O rádio está em

silêncio. Ouve-se apenas o som do motor que trabalha aceleradamente.Passam pela Djurgårdsgatan, pelas árvores em frente de uma associação ambiental, a

Trädgårdsföreningen, de ramos negros espetados, sem folhas, mas bem visíveis.Passam ainda pela Lasarettgatan com as suas casas de telhados cor-de-rosa,construídas na década de 1980.

Viraram depois na direcção do hospital, cuja fachada em painéis amarelosempalideceram com o sol, mas o dinheiro do governo municipal era preciso paraoutros projectos e não para trocar esses painéis.

Passaram então por um caminho para peões, um atalho proibido, evitando umarotunda e um caminho longo. Não há tempo a perder.

E chegam à entrada das urgências, contornam outra rotunda e estacionam. Corrempara as urgências.

São recebidos por uma enfermeira, uma mulher baixa, de olhos muito juntos queacentuam o seu nariz arrebitado.

– O doutor quer falar com vocês – diz ela, ao mesmo tempo que os conduz ao longode um corredor, passando por várias salas vazias.

– Que doutor? – Pergunta Zeke.– O doutor Stenvinkel, o cirurgião que vai operá-la.Hasse, pensa Malin. Inicialmente, sente relutância em encontrar-se com o pai de

Markus em serviço, mas depois acha que não faz diferença nenhuma.– Eu conheço-o – sussurra Malin para Zeke, enquanto os dois seguem os passos da

enfermeira.– Quem?– O médico. É melhor estares preparado. É o pai do namorado da Tove.– Vai correr tudo bem, Malin.

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A enfermeira pára diante de uma porta fechada.– Podem entrar. Não precisam de bater.

Hans Stenvinkel é uma outra pessoa, diferente da da noite anterior. Já não tem aquelear amigável de anfitrião exemplar. É um profissional sério e concentrado que está nafrente deles. Todo o seu corpo, de bata verde, exala competência e cumprimentou-a deforma calorosa, mas formal. Subentendido:

– Nós conhecemo-nos, mas temos um trabalho importante pela frente.Zeke está sentado muito direito na cadeira, notoriamente impressionado com a

autoridade que reina na sala. Como a pessoa de bata verde confere uma espécie dedignidade extraordinária às paredes brancas, às prateleiras de carvalho e à desgastadae velha secretária.

Era assim antigamente, pensa Malin, quando as pessoas tinham respeito pelo senhordoutor, antes de a Internet dar a toda a gente a capacidade de se tornar especialista nosseus próprios males.

– Vão poder falar com ela – diz Hans. – Está consciente, mas vai precisar de seranestesiada o mais rápido possível, para que possamos tratar os ferimentos. Vamos terde fazer transplantes de pele, o que podemos fazer aqui. Somos os melhores do país notratamento de grandes queimados.

– Queimaduras provocadas pelo frio? – Pergunta Zeke.– Também, mas, sob o ponto de vista médico, há também queimaduras provocadas

pelo fogo. Portanto, atrevo-me a afirmar que não poderia estar em melhores mãos.– Quem é ela?– Ainda não sabemos. Diz apenas que quer vê-la, Malin. Portanto, certamente,

conhece-a.Malin concorda.– Então, é melhor que isso aconteça já, que eu a veja. Se puder. Temos de saber quem

ela é.– Considero que aguenta uma conversa, mas que seja curta.– Está assim tão mal?– Está, sim – diz Hans. – É impossível que tenha infligido a si mesma todos os

ferimentos. Perdeu muito sangue, mas, neste momento, já está a receber transfusões. Ochoque que sofreu foi resolvido com uma dose de adrenalina. Mas tem ferimentoscausados por fogo e por frio, como já disse. Tem perfurações e cortes provocados pelaponta de uma faca, foi espancada, e a sua vagina também sofreu cortes. É um milagrenão ter perdido os sentidos. E que alguém a tenha encontrado a tempo. Mas é caso para

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perguntarmos que tipo de monstro está a percorrer, livremente, esta região.– Por quanto tempo acha que ela andou por aí?– Certamente, durante toda a noite. Os ferimentos causados pelo frio são muito

graves. Mas devemos salvar quase todos os dedos dos pés e das mãos.– Esses ferimentos já estão documentados?– Sim. Exactamente como vocês vão precisar.Percebe-se pela voz que Hans já passou por tudo isto antes. Com Maria Murvall?– Muito bem – diz Zeke.– E o homem que a trouxe?– Ele deixou o número de telefone. Trabalha no IKEA. Tentámos retê-lo aqui, mas

disse que «Ingvar não fica satisfeito quando chegamos atrasados». Não pudemos retê-lo.

Em seguida, Hans fixa os olhos dela.– Malin, aviso-a de uma coisa. Ela parece ter passado pelo purgatório. Mete medo. É

preciso ter uma incrível força de vontade para sobreviver a tudo pelo que passou.– As pessoas, em regra, demonstram ter uma vontade férrea quando se trata de

sobreviver – diz Zeke.– Nem todas, nem todas – responde Hans, com voz grave. Malin acena a confirmar

que sabe o que ele quer dizer. Mas será que sei? Pensa ela, depois.

Quem será ela? pensa Malin, ao abrir a porta que dá para os serviços de urgências.Zeke fica cá fora.

No quarto, uma única cama. A luminosidade do dia penetra apenas através de umapersiana e divide-se em faixas finas, marcadas no chão castanho-escuro. Uma máquinade monitorização está a emitir pequenos sinais ritmados e duas pequenas luzesvermelhas brilham no mostrador como um par de olhos no ambiente escurecido. Deuma armação de ferro pendem duas bolsas, uma com sangue e outra com soro, quegotejam os líquidos, através de cateteres, para o corpo de uma figura deitada na camasob um fino cobertor amarelo e com a cabeça apoiada numa almofada.

Quem é ela?As faces que Malin vê estão cobertas com ligaduras.Mas quem é ela?Malin aproxima-se cautelosamente, e a figura na cama tem um estremecimento, inclina

a cabeça na direcção dela e de repente parece que vê surgir um sorriso por entre asligaduras?

As mãos estão envolvidas em gaze.

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Os olhos.Eu conheço este olhar.Mas de quem é?O sorriso desapareceu, mas o nariz, os olhos e o cabelo ressurgem na sua memória.Rebecka Stenlundh.A irmã de Bengt Andersson.Rebecka levanta a mão enfaixada na direcção de Malin, chama-a para mais perto da

cama.Em seguida, mais um esforço, todas as palavras têm de sair de uma vez, a frase inteira

tem de ser dita, como se fosse a última.– Por favor, tem de tomar conta do meu filho se eu não sobreviver. Por favor, arranje

um bom lugar para o meu filho ficar.– Você vai sobreviver.– Estou a tentar, acredite em mim.– O que aconteceu? Consegue contar-me o que aconteceu?– O carro.– Carro?– Fui apanhada por um carro.Rebecka Stenlundh vira a cabeça, encosta uma das faces na almofada.– Depois, um buraco. Na floresta. E um poste.– Um buraco? Que espécie de buraco?– No escuro.– No escuro… Onde?Rebecka fecha os olhos em sinal negativo:– Não faço a menor ideia.– E depois?– Trenó e carro, de novo.– Quem?Rebecka Stenlundh abana a cabeça lentamente.– Você não viu?Ela abana a cabeça novamente.– Eu ia ser pendurada como o Bengt.– Eram vários?Rebecka abana a cabeça de novo.– Não sei, não vi, não tenho a certeza.– E o homem que a trouxe?

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– Ele ajudou-me.– Quer dizer que você não viu…– Eu ataquei a coisa negra, bati na coisa negra, eu…Rebecka descansa, fecha os olhos, sussurra:– Mãe, mãezinha, podemos correr entre as macieiras?Malin quase encosta o ouvido à boca dela.– O que é que disse?– Fica comigo, mãe, fica comigo, tu não estás doente…– Consegue ouvir-me?– O meu filho, tome…Rebecka fica em silêncio, mas respira, a caixa pulmonar arqueja. Adormeceu ou

desmaiou. Malin pensa que deve estar a sonhar. E espera que sonhe ainda por muitasnoites. Vai sonhar, sim.

A máquina ao lado continua a marcar os sinais de vida.Os olhos dela.Malin levanta-se.Ainda se detém um pouco perto da cama, antes de sair do quarto.

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CAPÍTULO 20

ZEKE ESTÁ A CAMINHO DO IKEA. Malin sobe a escada do prédio na Drottninggatan,número 3, milhões de anos impregnados nas pedras que dão forma aos degraus. VivekaCrafoord tem o consultório no terceiro andar. O prédio tem quatro andares.

Sem elevador.Crafoord Psicoterapia. Uma placa de latão, com letras floreadas, colocada no centro

da porta acastanhada. Malin leva a mão à maçaneta. A porta está fechada.Toca à campainha.Primeiro, uma vez. Depois, uma segunda vez. E a terceira.Então, a porta abre-se e aparece uma mulher de uns quarenta anos, com cabelos

negros encrespados e um rosto redondo e, ao mesmo tempo, quadrado. Os seus olhoscastanhos brilham de inteligência, apesar de parcialmente escondidos por detrás dosóculos de armação de osso.

– Viveka Crafoord?– Está ligeiramente atrasada.Ela abre um pouco mais a porta e Malin pode ver, então, a sua roupa. Um colete de

couro por cima de uma blusa azul, larga, que cai, por sua vez, sobre uma saia até aostornozelos, de xadrez esverdeado.

– Posso entrar?– Não.– Você disse…– Agora estou com um paciente. Espere por mim no McDonald’s e eu telefono daqui a

meia hora.– Não posso esperar aqui?– Não quero que ninguém a veja aqui.– Você tem…A porta do consultório fecha-se de novo.– …o número do meu telemóvel?Malin deixa a frase a flutuar no ar, pensa que está na hora de almoçar e que teve

agora a desculpa perfeita para provar o fast-food americano.Na realidade, não gosta do McDonald’s. Nesse sentido, tem sido muito dura com

Tove e não a leva a comer a esses restaurantes.«Minicenouras e sumo.Assumimos as nossas responsabilidades no combate à obesidade nas crianças.»Mas acabar com a venda de batatas fritas? Refrigerantes? De que vale uma

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responsabilidade assumida pela metade?Açúcar e gordura.Embora contra vontade, Malin abre a porta.Um Big Mac e um cheeseburger mais tarde sente-se quase pronta para vomitar. As

cores vivas do restaurante e o cheiro forte dos fritos fazem com que ainda se sinta pior.Telefona agora.Vinte minutos. Trinta. Quarenta.O telefone toca.Atende de imediato.– Malin?Pai? Agora não, agora não.– Pai, estou ocupada.– Nós voltámos a pensar no caso.– Pai…– Tove é bem-vinda com o namorado, é claro.– Como? Eu disse que…– … portanto, podes ver se eles ainda querem…Entrou outra chamada.Malin desliga a chamada de Tenerife, aceita a outra.– Sim?– Pode subir agora.

***

O consultório de Viveka Crafoord está decorado como um apartamento da altaburguesia do início do século passado. Livros, Freud, aos metros, com capas de couro.O retrato de Jung a preto-e-branco numa grande moldura dourada, uma escrivaninha demogno, e uma poltrona forrada com um padrão paisley diante de um divã revestido decouro, cor sangue de boi.

Malin senta-se no divã, recusa o convite para se deitar, e pensa que Tove adorariaaquela sala com a sua atmosfera à Jane Austen.

Viveka senta-se na poltrona, cruzando as pernas.– Aquilo que vou contar tem de ficar entre nós – diz ela. – Nunca poderá denunciar a

origem da informação a ninguém, mesmo de confiança. O nosso encontro nunca poderáser mencionado em qualquer relatório policial, nem em qualquer outro documento. Onosso encontro nunca aconteceu. Concorda?

Malin concorda com um aceno de cabeça.

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– Estou a pôr em risco a minha credibilidade profissional, se alguma coisa transpirardaqui. Ou se o meu nome for sequer mencionado…

– Se eu agir em função do que me contar, direi que foi tudo obra da minha intuição.Viveka Crafoord sorri.Embora contrafeita.Depois, fica novamente séria e começa a contar.– Há oito anos fui contactada por um homem, na época com trinta e sete anos de

idade, que queria encontrar uma forma de conviver com a sua infância. Até aqui, nadade inusitado. O inusitado, neste caso, foi o facto de ele não conseguir fazer qualquerprogresso ao longo dos primeiros cinco anos de tratamento. Vinha uma vez por semana,tinha uma boa situação económica, um bom emprego. Queria falar, dizia ele, sobre oque aconteceu quando era criança, mas em vez disso tive de ouvir histórias sobre osmais diversos assuntos. Sobre programas de computador, esqui, plantação demacieiras, as várias orientações da fé. Sobre tudo menos aquilo a que ele se propuserafalar de início.

– Como se chama ele?– Eu vou chegar lá. Se for necessário.– Acho que sim.– Então, aconteceu alguma coisa, há quatro anos. Ele recusou-se a dizer o que era,

mas acho que uma parente dele foi vítima de violência. Foi violada. E, por algummotivo, foi como se esse acontecimento o levasse a ceder.

– Ceder?– Sim. E começar a contar. Primeiro, não quis acreditar, mas depois acreditei.

Possivelmente não contou tudo.– Mais tarde?– Quando ele insistiu.Viveka Crafoord abana a cabeça.– Às vezes – diz ela – perguntamo-nos por que razão certas pessoas resolvem ter

filhos.– Eu também me pergunto o mesmo.– O pai dele era um marinheiro que morreu quando ele ainda estava no ventre da mãe.Não é verdade, pensa Malin. O pai dele era outro…Mas Malin deixa que Viveka Crafoord continue.– A primeira recordação a que pudemos chegar juntos, foi a de a sua mãe o fechar

dentro de um roupeiro, numa época em que devia ter apenas dois anos. Ela não queriaser vista fora de casa com a criança. Mais tarde, casou-se de novo com um homem

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violento, com quem teve filhos e uma filha. O novo marido e os três filhos assumiramcomo finalidade na vida fazê-lo sofrer. No Inverno, amarravam-no fora de casa, nu, nomeio da neve, de maneira que era obrigado a aguentar o frio enquanto eles ficavamjuntos na cozinha a comer. Se protestasse, levava pancada, mais do que habitualmente.Batiam-lhe, arranhavam-no com a ponta de uma faca, deitavam-lhe água a ferver porcima, e atiravam-lhe pedras. Os irmãos, ao que parece, passaram dos limites, reagindoao estímulo do pai. As crianças podem ser extraordinariamente cruéis, caso acrueldade seja estimulada. Não sabem que estão erradas. Uma violência selectiva. Nofinal, quase semelhante à de uma seita. Ele era o irmão mais velho, mas de que servia?Adultos e crianças contra uma só criança. Os irmãos também devem ter ficadoperturbados com a situação. Ficaram confusos, inseguros mas, ao mesmo tempo,decididos, irmanados no que, bem no fundo, sabiam estar errado.

Tu acreditas na bondade, pensa Malin. E pergunta:– Como é que ele conseguiu sobreviver?– No mundo da fantasia, no seu próprio universo. Em algum buraco na floresta, ele

nunca disse onde. Programas de computação. Orientações religiosas. Tudo aquilo a quenós, seres humanos, lançamos mão para controlar a existência. Educação. Até seafastar deles. Ele conseguiu. Deve ter tido uma grande força interior. E também umairmã que parece ter-se preocupado com ele. Embora ela mesma não pudesse fazernada. Ele falou dela, mas mais em conexão com aquilo que lhe aconteceu na floresta.Era como se ele vivesse em vários mundos paralelos, tendo aprendido a diferenciá-los.Mas, depois, a cada consulta a que vinha, quando nos víamos, os sofrimentos dainfância adquiriam maior proeminência. Ele ficava irritado com muita facilidade.

– Violento?– Nunca em relação a mim. Mas talvez em relação a outros. Eles queimavam-no com

velas. Ele descreveu uma cabana, uma stuga, na floresta, em que eles o penduraramnuma árvore próxima e, depois, o queimaram, lançando-lhe água a ferver para o corpo.

– Como puderam fazer uma coisa dessas?– As pessoas podem fazer tudo contra qualquer outra, a partir do momento em que

deixam de considerar o outro como pessoa. A história está cheia de exemplos disso.Nada de extraordinário.

– E como começou tudo?– Não sei – responde Viveka Crafoord, suspirando. – Neste caso, com a mãe. Ou

ainda mais longe. A sua recusa, penso eu, em amá-lo, combinada com a necessidade deo ter. Por que razão não o deu para adopção, não sei. Talvez precisasse de ter alguém aquem odiar? Contra quem canalizar a sua raiva? O ódio dela foi, de certa forma, a

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origem do desprezo do marido e dos filhos.– Por que motivo não queria ela amá-lo?– Não sei. Alguma coisa aconteceu.Viveka faz uma pausa.– No último ano, ele ficava deitado aí nesse divã onde você está sentada. E chorava e

irritava-se, alternadamente. E murmurava muitas vezes: «Deixem-me entrar, deixem-meentrar, estou com frio.»

– E você?– Eu tentava consolá-lo.– E agora?– Há quase um ano que ele deixou de vir cá. Na última vez, saiu porta fora a correr.

Perdeu o bom humor mais uma vez. Gritou que nenhuma palavra podia ajudá-lo, queapenas a acção podia colocar tudo nos seus devidos lugares. Agora já sei, já sei, tinhasabido de alguma coisa, gritava que sabia o que tinha de ser feito.

– E não o contactou mais?Viveka Crafoord pareceu espantada.– Todo o meu tratamento é voluntário – responde ela. – Os pacientes podem vir ter

comigo. Mas achei que poderia estar interessada em saber deste caso.– E o que pensa que aconteceu?– A água no copo transbordou. Todos os mundos dele se fundiram. Tudo pode

acontecer.– Obrigada – diz Malin.– Quer saber o nome dele?– Não é preciso.– Exactamente como eu pensava – responde Viveka Crafoord, virando-se para a

janela.Malin levanta-se, pronta para se ir embora.– E você? Como é que se sente?– Como assim?– Está escrito em todo o seu ser. É raro vermos isso com tanta nitidez. É como se

vivesse a suportar uma angústia não resolvida ou, talvez, uma falta não admitida.– Sinceramente, não sei do que está a falar.– Eu estarei aqui, se quiser vir algum dia. Para falar.Lá fora está outra vez a nevar, os flocos flutuam no espaço e caem no chão. Parecem

poeira, pensa Malin, poeira das estrelas que há milhares de milhões de anos sepulverizaram em algum lugar, muito longe, no espaço.

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CAPÍTULO 21

O PEQUENO MERDOSO.

Vou pôr-lhe as fraldas.Já almofadei o interior do roupeiro, talvez lhe atire uma maçã, um papo-seco, para

não chorar. Desde muito pequeno que lhe dou umas palmadas, as vezes que foremprecisas, até aprender que chorar só lhe traz dores e não serve para nada.

Portanto, vou fechá-lo lá dentro.Ele continua a choramingar, baixinho, levanta o seu corpo de dois anos e meio, dentro

do roupeiro.Depressão pós-parto.Muito obrigada.A pensão que recebo por ele.Muito obrigada.O pai morreu afogado. Mil seiscentas e oitenta e cinco coroas suecas por mês. As

autoridades acreditaram na história, que era tão triste. Sem pai. Mas eu não queria dá-lo para adopção senão perdia o dinheiro da pensão.

As minhas mentiras não são mentiras, porque as considero verdadeiras. Fazem partedo meu mundo. E o merdoso lá dentro do roupeiro transforma a ficção em realidade.

Oh, sim, vou fechá-lo lá dentro.E vou sair.Eles despediram-me da fábrica quando viram a minha barriga crescer. Disseram que

não podiam ter mulheres grávidas na linha de produção dos biscoitos de chocolate.E agora eu fecho-o no roupeiro e ele choraminga. E eu penso em abrir e dizer que ele

não existe. Por isso, fica aí. E se quiseres, podes meter a maçã pela goela abaixo,deixar de respirar. Talvez assim fiques livre. Bastardo! Mas é melhor não.

Sempre são mil seiscentas e oitenta e cinco coroas suecas por mês.Vou passear pela povoação, vou à mercearia, ando de cabeça erguida, mas sei que

elas sussurram, onde tem ela o rapaz? Onde está o rapaz? pois sabem que existes. Epenso em parar, cumprimentar as damas e dizer-lhes que o rapaz está dentro de umroupeiro, escuro, húmido e almofadado. Tem até um buraco para ventilação, que eu fiz,exactamente igual àquele que fizeram na caixa onde esconderam o filho de Lindbergh.Devem ter lido isso no jornal.

Entro e ando pela casa, em silêncio, mas ele, de alguma maneira, consegue ouvir e,então, a palavra surge na sua cabeça.

Mãe, mãe.

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Mãe.Mãe.E isso perturba-me, chateia-me, tanto quanto as cobras que rastejam no chão da

floresta.Às vezes, vejo Karl, mais conhecido como Kalle. Baptizei a criança com o nome

dele, Karl.Ele olha para mim.Conduz a bicicleta aos ziguezagues. Caíu na bebida e a mulher, essa cabra, tem um

filho dele. O que vai ele fazer com um filho? Pode achar que do seu sangue pode sairalguma coisa de jeito? Já vi o rapaz. Inchado, gordo que nem um balão.

O segredo é a minha vingança, o meu beijo de serpente.Não julgues que me podes apanhar, Kalle. Apanhaste-me uma vez. Ninguém volta a

apanhar a Rakel.Ninguém, ninguém, ninguém.E, então, abro o roupeiro.E ele sorri.O filho de um coito mal sucedido.E fecho-lhe a porta na cara para acabar com aquele sorriso nos lábios dele.

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CAPÍTULO 22

DESLIZO EM FRENTE PELO FRIO, o dia tão branco como os prados lá em baixo. A torre doMosteiro de Vreta é um espeto afiado no meu caminho em direcção a Blåsvädret e àfloresta de Hultsjö.

As vozes ouvem-se por toda a parte. Todas as palavras que foram pronunciadas aolongo dos anos, enroladas umas nas outras, a formar uma rede assustadora e, aomesmo tempo, bonita.

Aprendi a separar as vozes que quero ouvir e percebo-as todas, até mesmo muitopara lá do aparente significado das palavras.

Quem ouço eu?Ouço as vozes dos irmãos, Elias, Jakob e Adam. Resistem, mas, mesmo assim,

querem contar. Começo por ti, Elias, quero ouvir o que tens a dizer:

Nunca te deves mostrar fraco.Nunca, jamais.Como ele fez, o bastardo. Era maior do que eu, Jakob e Adam. E, apesar disso, como

ele se lamuriava na neve, como uma mulherzinha qualquer, como um franganote. Se temostrares fraco, eles caem-te em cima.

Eles, quem?Os diabos. Todos os que andam aí fora.Às vezes, mas jamais o direi à minha mãe ou aos meus irmãos, perguntei-me o que, na

realidade, tinha ele feito de mal. Por que razão a mãe o odiava tanto. Por que razão nóslhe batíamos. Olho para os meus filhos e pergunto-me o que podem eles fazer de mal?O que Karl, na realidade, podia ter feito de mal? E o que conseguiu a mãe que nósfizéssemos? Talvez os adultos consigam levar as crianças a cometer as maiorescrueldades.

Mas não, não devo pensar assim. Sei que eu não sou um fraco.Tenho nove anos e estou na entrada do novo edifício branco da escola de Ljungsbro.

Estamos no início de Setembro e o Sol brilha. O professor de trabalhos manuais,Broman, está do lado de fora, a fumar. Já tocou lá dentro e todas as crianças corrempara a entrada, eu primeiro, mas quando vou para abrir o portão, Broman estende umbraço e levanta o outro no ar. E grita alto e bom som: alto, aqui não entrammaltrapilhos. E berra alto, muito alto, e as suas palavras fazem com que uma grandequantidade de crianças se detenham hirtas. E ele ri, escarnece, e acreditam todos quesão maltrapilhos. Depois, volta a gritar: cheira aqui a merda. elias murvall cheira a

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merda. Então, começam os sussurros que se transformam em risos. E a voz rouca defumador, de Broman, ainda grita, maltrapilho, e afasta-me para o lado, atira-me comforça contra o vidro de uma das portas, com o seu braço peludo, enquanto abre o outrolado para os outros entrarem. E os outros riem e passam e sussurram: «Maltrapilho,uma merda, cheira a merda aqui.» Eu não aguento, sinto que vou explodir, abro a bocae mordo, cravo os dentes, profundamente, no braço peludo de Broman, sinto que acarne do braço dele se afasta para o lado e ele grita de dor e eu sinto um gostometálico na boca, «Grita agora, seu filho da mãe, quem é que grita agora?».

Queriam que a minha mãe fosse à escola para falar do sucedido.«Palermices, meu filho» disse ela, abrançando-me. «Isso passa-nos ao lado, Elias.»

Eu continuo a flutuar e a ouvir. Estou bem cá em cima agora, onde o ar é rarefeitopara os seres humanos e o frio rapidamente mortífero, mas consigo ouvir a tua voz,Jakob, tão pura e clara, tão transparente como uma janela sem vidro.

Bate nesse descarado, Jakob, grita o pai.Bate-lhe.Ele não é um dos nossos, por muito que esteja convencido disso.Ele era magro e esquálido e, apesar de ter o dobro do meu tamanho, eu até na barriga

lhe dava pontapés enquanto Adam o agarrava. Adam, era quatro anos mais novo, masera mais forte, um selvagem.

O pai na sua cadeira de rodas, mesmo à porta de casa.Como aconteceu?Não sei.Uma noite, eles encontraram o pai perto do parque. As costas e o queixo amassados.

A mãe dizia sempre que ele devia ter encontrado um homem de verdade lá no parque eagora estava a chegar ao fim. E trouxe-lhe uma bebida. Ele que se embebedasse até àmorte. Já não era sem tempo. E como ele se embebedou. Nós andávamos com ele,dentro de casa, de um lado para o outro. Entrava em delírio, caía e tentava levantar-se.

Quando ele caiu pela escada fui eu que o encontrei. Tinha, então, treze anos. Vinha dojardim onde tinha colhido maçãs verdes para vender aos ocupantes dos carros quepassavam na estrada.

Os olhos.Eles fixavam-se em mim, brancos e sem vida. A pele estava pálida e não vermelha,

como era habitual.Fiquei com medo. Queria gritar.Mas em vez disso fechei-lhe os olhos.

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A mãe desceu a escada, tinha acabado de tomar banho.Debruçou-se sobre o corpo, dirigiu-se a mim, abraçou-me, o seu cabelo ainda estava

molhado, mas quente, e cheirava a flores e a folhas secas. Ela sussurrou-me ao ouvido:«Jakob. Meu Jacob.»

Depois, sussurrou ainda:«Se tiveres de fazer alguma coisa, não hesites. Percebes? Fazes o que tens de fazer»,

e abraçou-me ainda com mais força. Mais tarde, lembro-me dos sinos da igreja e daspessoas vestidas de preto, no largo da igreja do Mosteiro de Vreta.

Esse largo empedrado.Rodeado de muros do século xii.Acabei de aterrar por lá agora e de ver o que tu deves ter visto, Jakob. O que

representou essa imagem para ti? Mas será que tudo não tinha acontecido já, muito,muito antes? E eu acho que tu fazes o que deve ser feito, exactamente como eupróprio faço agora.

Mas não é a tua voz a mais forte aqui. É a de Adam. E aquilo que ele diz parece, aomesmo tempo, ser muito razoável e uma loucura completa. São palavras tãodesesperantes e claras como o frio do Inverno.

– O que é nosso é nosso e isso ninguém nos vai tirar, Adam.Tinha apenas dois anos quando vi, pela primeira vez, que o meu pai lhe bateu, que

havia alguém que estava lá sempre, mas que apenas servia para apanhar pancada.A violência é instintiva, de uma clareza que não se encontra em mais nada. O alvo é o

crânio, faz o crânio em pedaços com pancadas secas.É assim mesmo.Com pancadas secas.A mãe.Ela também gosta de determinação.Hesitar, diz ela, não é coisa para nós.Com o novo, era diferente.Ele não sabia.O turco. Chegou e entrou para o quinto ano. Veio de Estocolmo. A mãe e o pai dele

tinham conseguido emprego na fábrica de chocolates. Julgava que podia fazer de mimum capacho. Eu ainda era pequeno, considerado um zé-ninguém, com todas aquelasnódoas na roupa. Era aquele a quem se podia fazer qualquer coisa, só para crescer aosolhos dos outros.

Por isso, ele bateu-me.

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Ou tentou bater-me.Usou alguma maldita técnica de judo, conseguindo atirar-me ao chão e com os punhos

pôs-me o nariz a sangrar. Quando eu já me voltava e ensaiava uma reacção, surgiu aprofessora com o porteiro e Björklund, o professor de ginástica.

Os meus irmãos ouviram a história.O turco morava em Härna. Esperámos por ele no cais do canal, por baixo dos

vidoeiros, escondidos atrás dos troncos. Ele costumava voltar para casa por essecaminho.

E veio, como os meus irmãos tinham previsto.Eles saltaram e derrubaram-no da bicicleta. Ficou estendido no chão, ao lado do

canal, e começou a gritar, apontando para os buracos que a queda provocou nos seusjeans novos.

Jakob olhou para ele fixamente. Elias, também. E eu fiquei junto de um tronco deárvore a tentar imaginar o que iria acontecer dali para a frente. Mas eu já sabia.

Elias começou a dar pontapés na bicicleta dele e quando o turco tentou levantar-se,Jakob deu-lhe pontapés, primeiro na barriga, depois na boca. O turco encolheu-se e osangue começou a escorrer-lhe pelo canto da boca.

E, em seguida, eu retirei a roda da bicicleta e atirei-a ao canal. E corri na direcçãodele e dei-lhe mais um pontapé.

E mais outro.E mais outro ainda.E mais outro ainda.Os pais dele nem sequer fizeram queixa na polícia.Algumas semanas mais tarde, mudaram-se. Na escola, disseram que iam voltar para a

Turquia, mas não acredito nisso. Eram curdos. Os malditos jamais regressariam.Saimos do canal a caminho de casa. Eu, sentado atrás de Elias na sua motocicleta

Puch Dakota, segurava-me a ele, abraçado à sua barriga, e sentia todas as vibraçõesdo seu corpo enorme. E, ao nosso lado, na sua bicicleta motorizada, seguia Jakob.

Ele sorriu-me. Eu sentia o calor do corpo de Elias.Nós éramos, nós somos, irmãos.Um por todos, todos por um.Nada de estranho.

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CAPÍTULO 23

ESTÁ CALOR AQUI. NINGUÉM ME VAI ENCONTRAR.

O TECTO DE TERRA POR CIMA DE MIM É O MEU PRÓPRIO ESPAÇO SIDERAL. HÁ MIGALHAS DEBISCOITOS POR BAIXO DO MEU CORPO.

ELA BATEU-ME?

ESTÁ PENDURADA?

SE NÃO ESTIVER, VOU TENTAR NOVAMENTE, AS VEZES QUE FOREM PRECISAS. PORQUE SE EULIMPAR O SANGUE, VOCÊS VÃO TER DE ME DEIXAR ENTRAR, SE EU DEIXAR QUE ME BATAM,

VOCÊS VÃO DEIXAR-ME ENTRAR.COM ELE FOI MAIS FÁCIL, O APANHA BOLAS. ERA PESADO, MAS NÃO DEMASIADO PESADO .DROGUEI-O LÁ, PERTO DO ESTACIONAMENTO EM HÄRNA, QUANDO PASSOU POR LÁ . EUESTAVA COM O MEU OUTRO CARRO, AQUELE QUE COMPREI COM ESPAÇO PARA BAGAGEM.DEPOIS, TAL COMO FIZ COM ELA, USEI O TRENÓ ATÉ AQUI.

MAS ELE MORREU DEMASIADO DEPRESSA.

AS ROLDANAS DA FÁBRICA. ABRI UM BURACO NA VEDAÇÃO, TINHA DESLIGADO OS SENSORES

NA SALA DE COMPUTAÇÃO. NÃO FOI FÁCIL . UM CASACÃO PENDURADO NUM CABIDEPERMITIU QUE, ATRAVÉS DO VIDRO FOSCO, OS SEGURANÇAS PENSASSEM QUE EU ESTAVA NA

SALA.À NOITE, NA FLORESTA, PEGUEI NELE, RETIREI-LHE O SANGUE, LIMPEI O SANGUE PARA QUEME DEIXASSEM ENTRAR, DEIXEI TUDO LIMPO.

AS CORRENTES, A CORDA. PARA CIMA, NA ÁRVORE, TU, UMA RUÍNA REDONDA.

O SANGUE.

SACRIFIQUEI POR VOCÊS.

MAS O QUE ACONTECEU COM ELA?

LEMBRO-ME DE TER ACORDADO NO CAMPO E ELA TINHA DESAPARECIDO. FUI DE GATAS PARAO CARRO, SUBI PARA O ASSENTO E CONSEGUI LIGAR O MOTOR. VOLTEI PARA AQUI.

MAS ELA JÁ ESTAVA PENDURADA NA ÁRVORE?

OU ESTAVA NOUTRO SÍTIO?

DEVIA ESTAR PENDURADA. ATIREI FORA TUDO O QUE ERA IMPURO. SACRIFIQUEI TUDO.

PORTANTO, DEVEM ESTAR A CHEGAR PARA ME ABRIREM A PORTA.

VÊM COMO AMIGOS, NÃO?

O QUE ACONTECEU? O QUE FOI QUE EU FIZ?

NO MEU BURACO CHEIRA A MAÇÃS. MAÇÃS, MIGALHAS E FUMO.

***

O painel da Igreja Filadélfia está iluminado em pleno dia como se quisesse anunciar:

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«Aqui, Deus existe! Basta entrar e encontrá-Lo.» O edifício da igreja está junto doMcDonald’s, do outro lado da rua, a Drottninggatan, e atrai um público fiel e bem navida. Ela lembra-se de outros fiéis, os cristãos da Igreja Livre, dos seus tempos deliceu. Eram corteses, vestiam-se bem, segundo a última moda, mas eram esquisitos,pelo menos era assim que ela os via. Era como se faltasse alguma coisa. Como seexistisse um estranho puritanismo no trato elegante e delicado. Um algodão doce compequenos pregos.

Malin olha pela rua acima.Onde está o Zeke?Tinha acabado de lhe telefonar. Prometeu apanhá-la em frente da igreja. Iriam até ao

Collins para prenderem Karl Murvall.Ali vem o Volvo.Zeke reduz a velocidade, mas mesmo antes de parar já Malin abre a porta e salta para

dentro do carro, para o assento dianteiro, ao seu lado.Zeke está ansioso.– O que disse a psicóloga?– Prometi nada dizer.– Malin! – suspira Zeke.– Mas foi Karl Murvall que matou Bengt Andersson e tentou matar Rebecka

Stenlundh. Não há nenhuma dúvida sobre isso.– Como é que sabes? Ele não tinha um álibi?Zeke desce a Drottninggatan.– Intuição feminina. E o que é que nos diz que ele não conseguiu desligar os sensores

pelo sistema de computação, abrir um buraco na vedação da fábrica, e sair durante anoite?

Zeke acelera.– Sim, porque não? Talvez os sensores possam ser manobrados a partir da sala do

coordenador – diz ele. – Mas os guardas viram-no na sala, não é verdade?– Apenas através do vidro despolido – responde Malin.Zeke concorda e diz:– A família. São sempre os mais perigosos, não é verdade?

O portão na entrada das oficinas da fábrica ainda parece maior do que da última vez ea floresta junto do estacionamento dá a impressão de ter ficado mais densa, maiscerrada. Os edifícios da linha de montagem parecem desertos, como se fossem prisõesdeprimentes por detrás da vedação, prestes a serem deslocalizados para a China a

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qualquer momento, a funcionar com outros operários que ganham um centésimo daquiloque recebem hoje os trabalhadores na Suécia.

Outra vez vocês? parece querer dizer o segurança na barreira. Não estão já fartos deme obrigarem a sair para o frio para os deixar passar?

– Procuramos Karl Murvall – diz Malin.O vigilante sorri e abana a cabeça.– Nesse caso, estão a perder o vosso tempo – responde ele. – Foi despedido

anteontem.– Foi despedido? Por acaso, sabe porquê? Não, você não deve saber dessas coisas,

não é? – Comenta Zeke.O segurança sente-se como se tivesse sido insultado.– Por que razão é uma pessoa despedida? – Pergunta ele.– Eu não sei. Diga-me você. – Pergunta Zeke.– No caso dele, porque se comportou de maneira estranha e ameaçou os

companheiros de trabalho. Quer saber mais?– Chega – diz Malin que já nem consegue fazer perguntas sobre a noite do assassínio

e sobre a vedação. De qualquer forma, Karl Murvall conseguiu sair naquela noite.

– Podemos emitir um mandado de busca?Malin faz a pergunta a Zeke quando estão a sair do estacionamento da Collins, a

caminho do acesso à auto-estrada. Quando entram na via, vêem um camião cujoatrelado balança perigosamente no pavimento gelado.

– Não. É preciso ter algo de concreto.– Eu tenho.– Que não podes revelar.– Mas é ele.– Tens de encontrar mais alguma justificação. Podes sempre pedir a prisão preventiva

para o interrogar.Estão prestes a entrar na via de acesso à auto-estrada, desviando-se de um BMW

preto que circula, no mínimo, quarenta quilómetros acima do limite.– Mas, para isso, precisamos de o encontrar.– Pensas que estará em casa?– Podemos sempre tentar.– Não te importas que ligue o rádio?– Como queiras, Zeke.Segundos depois, o carro enche-se com o som de uma centena de vozes alemãs.

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– Ein bisshen Frieden, ein bisschen Sonne…– Clássicos da canção – exclama Zeke. – Sempre desanuviam o ambiente, não é

verdade?

O relógio marca quase 15h30 quando tocam à campainha da porta do apartamento deKarl Murvall, na Tannerforsvägen. O verniz da porta está estalado em diversos pontose, pela primeira vez, Malin repara que a escada, toda ela, está a precisar de umareforma, mas que ninguém parece estar preocupado em manter essa área comum emboas condições.

Ninguém abre a porta.Malin olha pela abertura da caixa do correio. Há jornais e cartas por abrir

espalhados no chão.– Nem sequer podemos pedir um mandado de busca e apreensão – diz Malin. – E

também não posso socorrer-me do que Viveka Crafoord me contou, e mencionarapenas o ataque a Rebecka Stenlundh, de qualquer maneira, não será suficiente paraautorizarem a entrada no apartamento.

– Onde poderá ele estar? – Pergunta Zeke, em voz alta.– Rebecka Stenlundh falou de uma floresta e de um buraco.– Não me digas que vamos ter de ir novamente à floresta?– Quem é que nós vimos naquela noite? Só pode ter sido ele.– Achas que poderá estar naquela cabana de caçadores?– Não creio. Mas alguma coisa há naquela parte da floresta. Sinto isso em todo o meu

corpo.– Não adianta ficar aqui à espera – diz Zeke.

O mundo encolhe com o frio. Reduz-se a um buraco negro que contém tudo o queexiste na atmosfera. Os movimentos são lentos, difíceis.

As florestas desta região estão repletas de enigmas, pensa Malin. A neve é a maisrigorosa dos últimos tempos, mas as pessoas aguentam. Talvez o frio tenhatransformado lentamente a neve em gelo, não? Uma era glacial formada em poucosmeses, que transforma para sempre a vegetação, a paisagem, o aspecto da floresta. Dasárvores restam apenas os troncos como postes secos, abandonados.

Um passo à frente do outro.De todas essas crianças que ninguém vê, que são abandonadas, por quem os pais e as

mães não se interessam, desprezadas pelo mundo, há sempre algumas que se transviam,e o mundo que as abandonou vai ter de assumir as consequências.

Na Tailândia de Karin.

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Na Bósnia e no Ruanda de Janne.Em Estocolmo.Em Linköping.No entanto, é tão fácil, pensa Malin. Tomar conta dos que são pequenos, dos que são

fracos. Dar-lhes amor. Não há maldade definitiva. A maldade cria-se, forma-se.Acredito, no entanto, que existe a bondade definitiva. Mas não agora, não nestafloresta, aqui a bondade já se foi embora há muito tempo. Aqui existe apenassobrevivência.

Os dedos doem dentro das luvas que não podem ser mais grossas.– Chiça!, que frio! – diz Zeke. E Malin tem a impressão de que já o ouviu dizer estas

palavras mais de mil vezes nos últimos meses.As pernas ficam cada vez mais relutantes em prosseguir à medida que a noite cai, à

medida que o frio penetra mais fundo no corpo. Os dedos dos pés desapareceram e osdas mãos já nem sentem a dor.

A cabana dos Murvall está fria e deserta. A neve que caiu apagou todas as marcas dapassagem dos esquis.

Malin e Zeke estão parados em frente da cabana.Escutam, mas nada se ouve, a não ser um silêncio sem cheiro da floresta que os

rodeia, dominada por um Inverno rigorosíssimo.Mas eu sinto-o, eu sinto-o, está muito perto.

DEVO TER ADORMECIDO, A LAREIRA ESTÁ FRIA, A LENHA NÃO ARDE, ESTOU GELADO, TENHODE REACENDER A LAREIRA PARA QUE ESTEJA QUENTE QUANDO CHEGAREM E ME DEIXAREMENTRAR.

O BURACO É O MEU LAR.

SEMPRE FOI O MEU LAR. O APARTAMENTO NA TANNERFORSVÄGEN NUNCA FOI A MINHA

CASA. FOI APENAS O LUGAR ONDE EU DORMIA, PENSAVA E TENTAVA COMPREENDER.AJEITO A LENHA, ATIÇO O FOGO, MAS NÃO ARDE.

ESTOU COM FRIO.

MAS TEM DE ESTAR QUENTE QUANDO ELES ME DEIXAREM ENTRAR, QUANDO ME DEREM OSEU AMOR.

– Não está ninguém aqui, Fors. Ouve o que te digo.A clareira diante da cabana. Um lugar absolutamente silencioso rodeado de árvores,

de floresta e de uma escuridão impenetrável.– Estás enganado, Zeke.Há aqui qualquer coisa. Qualquer coisa que se move. É a maldade? O diabo? Sinto o

cheiro.

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– Vai ficar completamente escuro dentro de cinco minutos. Vou voltar para trás.– Vamos avançar só mais uns metros – diz Malin e começa a andar.Andam talvez mais uns quatrocentos metros para o interior da densa floresta e, então,

Zeke exclama:– Agora, basta, vamos voltar.– Só mais um pouco ainda.– Não.E Malin vira-se, recua, sem reparar no talude, cinquenta metros à sua frente, de onde

sai um fumo cinzento, muito fraco, da chaminé que deve vir do tecto de uma cave, deum lugar subterrâneo.

O barulho do motor aumenta com a aceleração quando passam pelo Mosteiro de Vretae pelo campo de golfe que lhe fica próximo.

– Estranho – comenta Malin. – Eles deixam as bandeiras nos mastros, mesmo duranteo Inverno. Nunca tinha reparado nisso. É como se tivessem içado a bandeira emintenção de alguém – e acrescenta – vamos passar pela casa de Rakel Murvall.Certamente ela sabe onde ele está.

– Estás maluca, Malin. Nem sequer vais conseguir aproximar-te a quinhentos metrosda casa da mulher. Quero ver.

– Ela sabe onde ele está.– Isso não importa.– Importa, sim.– Não. Ela já te denunciou por assédio. Ir lá agora é um suicídio profissional.– Merda!Malin bate no painel de instrumentos.– Deixa-me no meu carro que está no estacionamento perto do McDonald’s.

– Mãe, estás com um ar exausto – diz Tove que, sentada no sofá, levanta os olhos dolivro que está a ler.

– Que livro é esse?– O Pato Selvagem, de Ibsen. Uma peça de teatro.– É complicado ler uma peça, não é? Não é melhor vê-la?– Funciona, mãe, basta um pouco de fantasia.O televisor está ligado. O apresentador gordo e presunçoso, no seu fato amarelo.Como é que Tove consegue ler boa literatura com o televisor ligado?– Mãe, estiveste fora, ao ar livre?– Sim, até andei na floresta.

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– A fazer o quê?– Estávamos à procura de uma coisa, eu e Zeke.Tove acena com a cabeça, não se preocupa em saber se encontraram ou não o que

procuravam e volta para o seu livro.Ele assassinou Bengt Andersson. Tentou matar Rebecka Stenlundh.Quem é Karl Murvall? Onde está?Chiça!, Rakel Murvall sabe. Os seus filhos sabem.Diante de Tove, em cima da mesa, está uma enciclopédia aberta no tema sociedade. A

rubrica intitula-se «Formas de Estado» e está ilustrada com as fotografias de Göran

Persson11 e de um homem de turbante que Malin desconhece. As pessoas podem serformadas de diferentes maneiras. É assim.

– Tove, o avô telefonou hoje. Vocês são bem-vindos em Tenerife, ambos, tu eMarkus.

Tove desvia o olhar do televisor.– Já não tenho vontade de ir – diz ela. – Vai ser difícil o avô explicar a razão de ter

mentido, de dizer que esperava outra visita.– Oh, meu Deus – diz Malin. – Como é que uma situação tão simples pode ter ficado

tão complicada?– Mãe, eu não quero ir. Tenho de dizer ao Markus que o avô mudou de opinião?– Não.– Mas pensa: e se formos numa outra altura e o avô comentar por não termos ido

desta vez, apesar de sermos bem-vindos?Malin suspira.– Porque não contar ao Markus, exactamente, o que aconteceu?– E, afinal, o que aconteceu?– O avô mudou de opinião, mas tu não queres ir.– E a mentira que inventámos? Não tem importância?– Não sei, Tove. Uma mentirinha assim tão pequena não tem assim tanta importância.– Muito bem. Então podemos ir.– Pensei que já não querias ir.– Não, não quero, mas podia ir se quisesse. Todavia, é melhor que o avô fique

desapontado. Talvez aprenda a lição.– Então, vais esquiar para Åre?– Hum.Tove deixa de encarar a mãe, estica o braço e apanha o controlo remoto.

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Depois de Tove ter ido para a cama e adormecido, Malin fica sozinha no sofá aindadurante algum tempo. Depois, levanta-se e dirige-se para a entrada do apartamento,pega no coldre com a arma, veste o casacão e sai. Mas antes de sair ainda abre agaveta de cima da cómoda na entrada. Encontra o que procura e guarda-o no bolso dafrente dos jeans.

11 Göran Persson (1960-). Ex-primeiro-ministro da Suécia, durante dez anos. Social-democrata, filho de operários,sem formação académica superior. Muito controverso

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CAPÍTULO 24

SEXTA-FEIRA, 17 DE FEVEREIRO

LINKÖPING À MEIA-NOITE, no início da madrugada entre quinta e sexta-feira, no mês deFevereiro mais frio de que há memória. A iluminação pública e os painéis luminososde publicidade montados nos prédios do centro lutam para dar uma ideia de caloraparente às ruas onde os sequiosos, os solitários e os que gostam de diversão,rapidamente entram nos restaurantes e bares, como se fossem investigadores dos pólos,com casacões pesados, à caça de companhia.

Nada de filas de espera.Demasiado frio para isso.As mãos de Malin ao volante.A cidade do outro lado das janelas e do pára-brisas do carro.Na Praça Trädgårdstorget, os autocarros de cor vermelha têm os motores ligados, em

ponto morto. Dentro deles, os adolescentes a caminho de casa, de faces rosadas,cansados, mas com esperança no olhar.

Ela roda o volante, vira para a Drottninggatan em direcção à área de Stångån,passando pela agência imobiliária da cidade.

O sonho de ter casa própria.Com uma bela vista para olhar de manhã ao acordar.Os sonhos ainda subsistem aqui nesta cidade, por muito frio que esteja. Aconteça o

que acontecer.E eu, Malin, com que é que sonho?Sonho com Tove, com Janne, com Daniel.O meu corpo pode sonhar com ele.Afinal, o que é que eu espero? Qual é a esperança que partilho com as adolescentes

que estão dentro do autocarro?

***

A porta do prédio está aberta, não a fecham nem durante a noite.Malin sobe cautelosamente a escada, com o menor ruído possível, não quer que

ninguém perceba a sua presença.Pára em frente da porta do apartamento de Karl Murvall.Escuta.Mas a noite é de silêncio completo. E pela abertura da caixa do correio vê que o chão

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continua cheio de jornais.Malin bate à porta.Aguarda.Depois, enfia uma chave mestra na fechadura. Ajusta, roda e o fecho cede, com um

fraco clique.Lá dentro, o ar viciado de um apartamento fechado, mas quente. O aquecimento está a

funcionar, para evitar que a água congele nos canos. Cuidado típico de engenheiro,obstinação apesar da certeza que deve existir algures no cérebro de Karl Murvall:«Nunca mais vou voltar aqui, portanto, preocupar-me com os radiadores para quê?

Mas ele pode estar aqui. Há uma pequena possibilidade.Malin fica quieta, de pé, no mesmo sítio.Escuta.Será que devo empunhar a arma?Não.Acender a luz?Tenho de ligar a luz.Malin acciona o interruptor junto da porta da casa de banho e o hall de entrada

ilumina-se. Os blusões e sobretudos estão pendurados e bem alinhados no bengaleiro,por baixo da prateleira dos chapéus.

Escuta.Apenas silêncio.Faz uma verificação rápida, de sala em sala, e volta para a entrada.All clear, pensa ela.Olha em volta, abre as gavetas da cómoda. Luvas, um gorro, papéis.Um extracto de pagamento de salário. Cinquenta e sete mil coroas suecas.Uma loucura, o que eles ganham na informática. Mas o que significa ter dinheiro?Malin entra na cozinha. Procura nas gavetas, observa as paredes nuas, à excepção de

um relógio de cuco.O relógio marca quase uma hora da madrugada. Não te assustes se o cuco sair e

anunciar a hora. É o que vai acontecer daqui a pouco. A sala de estar. As gavetascheias de mais papéis, extractos bancários, publicidade em geral, nada além do que sepode considerar normal.

E, então, o cuco sai e anuncia a hora. Malin nota que o apartamento não tem roupeiro.No hall de entrada, onde devia estar, não existe nenhum.

Malin vai mais uma vez até ao hall de entrada. Vê que o canto onde devia estar oroupeiro foi pintado recentemente.

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…ela fechava-o no…Malin volta ao quarto. Acciona o interruptor, mas o quarto continua escuro. Há um

candeeiro em cima da escrivaninha, junto à janela. A janela dá para as traseiras doprédio e de lá a luz de um poste de iluminação do jardim lança nas paredes do quartouma claridade fraca.

Acende o candeeiro.No tampo da mesa, um cone superficial que alguém desenhou à faca.Vira-se.Ouve o som do motor de um carro que estaciona em frente do prédio. A porta de um

carro a fechar-se. Leva a mão ao coldre com a arma. A pistola que odiava trazer,agora, adora-a. A porta bate ao fechar-se. Malin sai do hall de entrada ao ouvir alguémsubir as escadas.

Depois, uma chave a girar numa porta do andar de baixo.E uma porta que se fecha cautelosamente.Malin respira fundo.Volta ao quarto e, então, vê o roupeiro. Está aos pés da cama. Ela acende o candeeiro

montado na parede para ter mais luz e nota que a montagem foi feita de maneira a que aluz incida directamente no roupeiro.

Um cadeado na porta do roupeiro.Alguma coisa está lá dentro, fechada.Um animal?Malin enfia a chave mestra no cadeado. Este resiste, não cede. Três minutos depois,

já está a suar.Finalmente ouve-se um clique, ela puxa a porta para si e olha lá para dentro.

Eu vejo-te, Malin. É a verdade, o que vês? Estás calma ou com medo daquilo quetens diante dos olhos? Vais passar a dormir melhor durante a noite?

Olha para ele, olha para mim, para Rebecka ou Lotta, que é como ela será semprepara mim. Nós estamos sozinhos.

Será que a tua verdade pode curar a nossa solidão, Malin?

Malin olha para o interior do roupeiro que está revestido de papel de parede com umpadrão que representa uma árvore estilizada com maçãs verdes. Em baixo, no chão, aolado de um pacote de bolachas maria encontram-se vários livros sobre o culto ASA esobre psicanálise, uma Bíblia e um exemplar do Alcorão. E um livro de capa negra.

Malin folheia o livro.Um diário cheio de anotações.

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Uma caligrafia bonita, letras tão pequeninas que mal se conseguem ler.Sobre o trabalho na Collins.As visitas a Viveka Crafoord.Mais à frente, no livro, é como se alguma coisa tivesse acontecido, como se uma

outra mão empunhasse a caneta. As letras ficam tremidas, já não há anotação das datas,o estilo do texto é fragmentado.

… em Fevereiro, chegamos ao meio do Inverno…… agora sei quem são os que devem ser sacrificados…E, depois, em várias páginas: – Deixem-me entrar…No fim do livro há um mapa detalhado. Blåsvädret, um campo no qual uma árvore foi

desenhada perto do lugar onde encontraram o Apanha Bolas, e a seguir um local nafloresta, que deve ser perto da cabana de caça da família Murvall.

Karl esteve aqui sentado a falar connosco.Com este livro atrás de si, com toda a história sobre si mesmo.Tudo o que há de mau neste mundo esteve sentado à nossa frente e conseguiu manter a

pose, conseguiu manter um pé na realidade.Malin ouve todas as vozes dele a gritar. A sair do roupeiro, a sair do quarto. E a

entrar dentro dela. Um arrepio percorre-lhe a espinha, um frio muito pior e maisintenso do que todos aqueles graus negativos lá fora, do outro lado da janela.

Ponto de ruptura. Cá dentro e lá fora.O mundo da fantasia. O mundo real.Os dois mundos encontram-se. A consciência conhece as regras e joga na medida do

possível. Vou escapar. Ele agarra-se a esse último rasgo de bom senso antes que aconsciência e o instinto se transformem numa coisa só.

Mais um mapa.Uma outra árvore.Aquela em que Rebecka devia ficar pendurada, não é?

Não desesperes, Malin. O fim ainda não chegou.Vejo Rebecka na sua cama. Dorme. A operação de transplante da pele nas faces e

no ventre correu muito bem. Talvez não fique tão bonita como era, mas há já muitotempo que tinha desistido de vaidades. Não tem dores. O filho dela também está adormir numa cama ao lado da sua. E é sangue novo que corre nas suas veias.

Para Karl, a situação é mais grave.Eu sei. Eu devia estar zangado com ele, por tudo o que me fez. Mas agora ele está

deitado naquele buraco frio por baixo da terra, envolto em cobertores e diante de

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uma lareira cujo fogo está a morrer. E eu não consigo ver senão a imagem dohomem mais solitário do mundo. E não, nem ele próprio se pode consolar. Euconseguia fazê-lo, mesmo quando estava mais desesperado, mesmo quando cortei aorelha do meu pai.

Portanto, não posso ficar zangado diante de tanta solidão, porque isso seria ficarzangado com a humanidade, um sentimento que é, se não impossível, pelo menosdesconsolador. No fundo, todos nós somos bons, queremos o bem. Ou não?

O vento está a ficar mais frio.Malin.Tens de continuar.Eu não vou descansar enquanto este vento não amainar.

Malin volta a colocar o livro no lugar.Censura-se por ter deixado nele as suas impressões digitais, mas isso já não tem

importância.A quem devo telefonar?A Zeke?A Sven Sjöman?Malin pega no telemóvel, marca um número. Ouvem-se quatro toques antes de alguém

atender.A voz sonolenta de Karin Johannison.– Sim, Karin.– Aqui, Malin. Desculpa o incómodo.– De nada, Malin. Eu adormeço sempre com muita facilidade.– Podes vir a um apartamento na Rua Tanneforsvägen 14? No último andar.– Agora?– Sim.– Estou aí dentro de quinze minutos.

Malin faz uma pesquisa nas roupas de Karl Murvall.Encontra vários fios de cabelo.Coloca-os num saco de plástico que encontrou na cozinha.Ainda ouve o motor de outro carro que estaciona em frente do portão do prédio, que

bate ao fechar-se.Em voz baixa, ela sussurra:– Karin, aqui em cima.– Estou a subir.

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Malin mostra o apartamento a Karin.De volta à entrada, Karin diz:– Devemos verificar o roupeiro e o resto do apartamento.– Mas não foi por isso que eu quis que viesses aqui rapidamente. Foi por causa destes

cabelos. Gostaria que mandasses fazer um teste ADN.Malin segura o saco de plástico com os cabelos.– Imediatamente. E compara depois com o perfil da análise feita ao agressor de

Maria Murvall.– São cabelos de Karl Murvall?– Sim.– Se eu for já para o laboratório, terei a resposta amanhã de manhã.– Obrigada, Karin. É assim tão rápido?– Com cabelos perfeitos como estes, a coisa é fácil. Não estamos assim tão atrasados.

Porque é que isso é tão importante?– Ainda não sei, Karin. Mas, de qualquer maneira, é importante.– E o resto?Karin faz um gesto na direcção de todo o apartamento.– Tu tens os teus colegas – diz Malin. – Embora não sejam tão bons como tu, não é?Assim que Karin sai, Malin telefona para Sven Sjöman.– Podes entrar em acção. Põe em movimento o que se tem de pôr em movimento.

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CAPÍTULO 25

O QUARTO DO APARTAMENTO está iluminado pelos holofotes dos técnicos.Sven Sjöman e Zeke parecem cansados de olhar para o interior do roupeiro. Antes, ao

telefone, Sjöman perguntara a Malin por que razão resolvera voltar ao apartamento deKarl Murvall e como conseguira entrar. «Intuição. Além disso, a porta estava aberta.»Fora a resposta dela. E Sven deixara que a explicação passasse.

Zeke enfia nas mãos um par de luvas de borracha, estica o braço para apanhar o livrode anotações, folheia-o, lê, e deixa-o no mesmo lugar.

Malin mostrou o livro a Sven e a Zeke assim que eles chegaram e apontou-lhes ostextos principais e os mapas. Fechou o livro e disse-lhes que medidas tinha tomado,que Karin já tinha estado lá, dando-lhes uma ideia resumida do que devia teracontecido e da evolução dos acontecimentos até àquele ponto. Reparou que aindaficaram mais desanimados depois do que ela lhes contou, e que o facto de teremacordado cedo não lhes permitia medir bem o alcance do que ela dissera, ainda queSven acenasse afirmativamente com a cabeça, a concordar com tudo e a confirmar queessa devia ser a verdade dos factos.

Deixaram os técnicos a trabalhar e voltaram para o departamento na polícia.– Diabos! – exclama Zeke virando-se para Malin que estava já sentada à secretária,

embora com vontade de se levantar e ir buscar uma caneca de café.– Onde pensas que ele pode estar?– Acho que está na floresta, algures perto da cabana de caça.– Mas nós não o encontrámos lá…– Pode estar em qualquer lugar por perto.Está ferido. Isso já sabemos. Rebecka Stenlundh disse que o atingiu.Um animal ferido.– O alerta geral já foi dado – diz Sven. – Há também a possibilidade de ele se ter

suicidado.– Vamos mandar a patrulha com os cães para a floresta? – Pergunta Malin.– Esperamos até amanhã de manhã. Já está a ficar escuro. E os cães com o frio não

sentem o cheiro. Por isso, não sei se isso será uma grande ideia. Os agentes quetreinam os cães estão a estudar o caso – diz Sven. – Todos os carros patrulha saíram àprocura dele. E o único indício que temos de que está na floresta é aquele conjunto depontos marcados nos mapas do livro de notas.

– É um indício forte – afirma Malin.– Ele não estava na cabana de caça ontem, ao final do dia. Se estiver ferido, deve ter

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ido directamente para um sítio onde possa estar deitado a tratar do ferimento. Ou seja,é muito pouco provável que esteja na cabana de caça neste momento.

– Mas pode estar nas proximidades.– Podemos esperar, Fors.– Malin – diz Zeke. – Eu concordo com Sven. Já são cinco horas. E ele não estava na

cabana de caça ontem à noite.– Fors – diz Sven. – Agora, vamos para casa dormir. É melhor para todos que

descanses antes de retomares os trabalhos. Amanhã poderemos pensar no assunto deforma mais clara.

– Não, eu…– Malin – diz Sven. – Já passaste dos limites, agora precisas de descansar.– Temos de encontrá-lo. Penso…Malin deixa que a frase fique em suspenso. Eles não iriam perceber.Em vez de tentar explicar, resolve levantar-se e sair da sala.Ao descer a escada, encontra pela frente Daniel Högfeldt.– Karl Murvall é suspeito do homicídio de Bengt Andersson e de agressão a Rebecka

Stenlundh? – pergunta Daniel, como se nada houvesse entre eles.Malin não responde.Força a passagem e continua a descer a escada.

Está cansada e sob pressão, pensa Daniel, enquanto sobe a escada do prédio, rumo aoapartamento onde dois agentes fazem a guarda, diante da porta.

Vai ser difícil entrar. Mas quem não arrisca não petisca, não é o que se diz?Malin pareceu ficar indiferente ao facto de eu ter recusado a oferta do jornal

Expressen.Mas o que poderia eu esperar? Nós não representamos um para o outro mais do que

simples satisfação sexual.Malin, estavas tão bonita quando me afastaste para passar. Bonita, cansada e abatida.Falta mais um andar.Daniel sorri para os polícias.– Nem vale a pena tentar, Högfeldt – diz o mais alto dos dois, a troçar.

Às vezes, quando Malin pensa que o sono vai demorar a chegar ele aparece em menosde um minuto.

A cama está quente e ela sonha.O colchão é um chão macio num quarto branco, com paredes transparentes que

flutuam ao sabor de um vento ameno.

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Do outro lado das paredes, ela vê toda a gente como sombras: a mãe, o pai. Tove,Janne e Zeke também estão lá, assim como Sven Sjöman e Johan Jakobsson, KarimAkbar e Karin Johannison, Börje Svärd e a sua mulher, Anna. Os irmãos Murvall,Rebecka e Maria, e uma figura gorda que se desloca pesadamente com uma bola defutebol nas mãos. Markus surge no sonho, ao lado de Biggan e Hasse. O segurança nabarreira da Collins também aparece, assim como Gottfrid Karlsson, Weine Anderssone a enfermeira Hermansson. E muitos, muitos mais, aparecem todos no sonho, comocombustível para a sua memória, como pontos de referência para navegar no seuconsciente. As pessoas envolvidas no curso dos acontecimentos das últimas semanassão como bóias ancoradas num espaço iluminado que pode situar-se em qualquer lugar.E no meio desse espaço brilha a figura de Rakel Murvall, uma luz negra pulsa na suasombra.

O despertador toca na mesa-de-cabeceira.Um sinal digital alto e estridente.São 7h35 da manhã.Após uma hora e meia, o tempo dos sonhos passou.

O jornal da cidade, o Correspondenten, está no chão da entrada.Pela primeira vez, as notícias não estão actualizadas, mas, certamente, porque não foi

possível actualizá-las antes da impressão.Eles sabem tudo sobre Rebecka Stenlundh, que é irmã do assassinado Bengt

Andersson, mas nada sobre Karl Murvall em cujo apartamento a polícia fez umaincursão durante a noite.

O jornal já devia estar impresso a essa hora, mas a notícia deve estar na Internet. Nãoconsigo ir ver mas também não deve estar lá nada de que eu já não tenha conhecimento.

Daniel Högfeldt escreveu vários dos artigos no jornal.Como habitualmente.Será que fui demasiado ríspida com ele ontem à noite? Talvez lhe deva dar uma nova

oportunidade para mostrar quem é.A água do chuveiro está bem quente ao cair sobre o corpo dela. Malin sente que está

a acordar. Veste-se, bebe o seu Nescafé de pé, junto da bancada da cozinha, feito comágua aquecida no microondas.

Era bom que encontrássemos Karl Murvall hoje. Morto ou vivo.Ter-se-á suicidado?No caso dele, tudo é possível.Será que vai cometer um novo assassínio?

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Foi ele que violentou Maria Murvall? Karin deve ter a prova durante o dia.Malin suspira e olha pela janela para a Igreja de São Lars. E para as árvores. Os

ramos não cederam ao frio, estão espetados, obstinadamente, em todas as direcções.Tal como as pessoas que vivem em latitudes como as da Suécia, pensa Malin, nomomento em que observa os cartazes na montra da agência de viagens. Esta região nãoé habitável e no entanto foi aqui que construímos o nosso lar.

De regresso ao quarto, Malin volta a pegar no coldre com a pistola.Abre a porta do quarto de Tove.A mais bonita do mundo.Deixa-a dormir.

Karim Akbar segura a criança pela mão e, apesar das luvas, sente os dedos do filhode oito anos.

Dirigem-se à escola a pé, por um passeio bem coberto de areia e sal para derreter ogelo. Os prédios em Lambohov, de três e quatro andares, parecem estações lunarescolocadas aleatoriamente numa planície deserta.

Normalmente, é a mulher que leva o filho à escola, mas hoje estava com dores decabeça e não conseguiu levantar-se.

O caso está solucionado. Vão ter apenas de apanhar o criminoso. Mas será que o casoestá mesmo encerrado?

Malin conseguiu. Zeke, Johan e Börje. Sven: extraordinário. O que faria eu sem eles?O meu papel é incentivá-los, mantê-los animados. E como isso é insignificantecomparado com aquilo que eles fazem. Ter de enfrentar as pessoas?

Malin. Sob muitos aspectos, ela é a investigadora ideal. Instintiva, persistente e atéum pouco maníaca. Perspicaz? Claro. Mas no bom sentido. Encontra sempre os atalhos,sabe ousar quando as oportunidades se apresentam. Mas sem ser demasiado atrevida.Pelo menos, não com demasiada frequência.

– O que vão fazer hoje na escola?– Não sei. O costume.Depois, seguem juntos em silêncio. Karim e o filho. Ao chegarem ao edifício baixo e

branco da escola, ele abre a porta para o filho passar e logo este desaparece lá dentroentre os colegas, como se tivesse sido engolido pelo corredor fracamente iluminado.

***

O Correspondenten está lá fora, na caixa do correio.Rakel Murvall abre a porta da frente, desce os poucos degraus da entrada, constata

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que hoje o frio está húmido. A maior parte das pessoas tem dores na articulações, comeste tempo, ela tem sido poupada a essa espécie de sofrimentos físicos e pensa:«Quando morrer, vai ser de repente, de morte súbita, não vou aguentar ficar estendidana cama de uma enfermaria a gemer e sem poder conter sequer a minha própriamerda.»

Rakel avança com cautela sobre a neve, sempre receosa de partir uma perna porcausa de uma simples queda.

A caixa do correio parece estar demasiado longe, mas ela aproxima-se passo a passo.Os rapazes ainda continuam a dormir, vão acordar em breve, mas ela quer ler já as

notícias sem ter de ficar à espera que algum deles lhe traga o jornal. Ou ver as notíciasmais tarde no ecrã do televisor da sala de estar.

Levanta a tampa da caixa do correio e vê logo o jornal por cima de algumas bichas-cadelas mortas que tentaram fugir do frio.

De volta para o interior da casa, Rakel senta-se à mesa da cozinha com uma canecade café, acabado de fazer, e começa a ler.

Lê várias vezes os artigos publicados sobre o assassínio de Bengt Andersson e sobreo atentado contra a vida de Rebecka.

Rebecka?Percebo o que aconteceu.Tola é que eu não sou.Os segredos. Sombras do passado. As minhas mentiras saem agora a conta-gotas dos

seus buracos lamacentos.O pai dele era marinheiro.Como eu disse sempre aos rapazes.Era tudo mentira, mãe?Perguntas que dão origem a outras perguntas.O pai dele era Kalle da Curva? A senhora mentiu-nos durante todos estes anos? Que

mais ainda não sabemos? Por que motivo a senhora e o pai nos levaram a maltratá-lo?A odiá-lo? Ao nosso próprio irmão?

Talvez houvesse ainda outras perguntas.Como é que o pai caiu pela escada? Foi a senhora que o empurrou? Também mentiu

sobre o que aconteceu nesse dia?As verdades têm de ser abafadas. Não se deve dar azo a qualquer dúvida. Não é

demasiado tarde. Vejo uma hipótese.Rebecka, deambulou pelo campo, nua, como Maria.

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– Bravo, Malin.Karim Akbar aplaude a sua chegada ao departamento.Malin sorri. E pensa, Bravo? Bravo porquê? O caso ainda não terminou.Senta-se à secretária.Entra no site do Correspondenten e lê-o no computador.Há um pequeno artigo sobre a invasão do apartamento de Karl Murvall a informar

que foi emitido um mandado de captura para todo o país. O articulista não tira daínenhuma conclusão, mas relaciona a investigação em curso com a queixa da mãe deKarl Murvall contra a polícia por interferência indevida na vida privada.

– Um trabalho fantástico, Malin.Karim coloca-se ao lado dela. Malin olha para cima, encara-o.– Não totalmente segundo o regulamento. Mas, aqui entre nós, o resultado é que conta.

No entanto, para se chegar a algum lado, por vezes é preciso seguir as nossas própriasregras – diz ele.

– Temos de encontrá-lo – diz Malin.– O que pretendes fazer?– Interrogar Rakel Murvall.Karim olha, espantado, para Malin que olha outra vez para o chefe da polícia com

toda a seriedade que lhe é possível mostrar.– Vai – diz ele. – Eu assumo a responsabilidade pelos eventuais problemas. Mas leva

Zeke contigo.Malin dá uma olhadela pela sala. Sven Sjöman ainda não chegou. Mas Zeke, à

secretária, dá mostras de estar inquieto.

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CAPÍTULO 26

SILÊNCIO NO CARRO.

Zeke não disse que queria ouvir música e Malin gosta de ouvir o ruído monótono domotor. A cidade lá fora continua a mesma, como nas duas últimas semanas, tão vorazcomo sempre: a área de Skäggetorp paralisada, sem vida, as lojas de Tornby semclientes, o lago Roxen congelado, coberto de neve compactada, e as casas na encosta,junto do Mosteiro de Vreta, muito convidativas, respiram abundância.

Nada mudou, pensa Malin. Nem mesmo o tempo. Mas, depois, pensa em Tove que,sem dúvida, mudou. Tove e Markus. Um novo filho que chega através de Tove, menosrespondona e introvertida, mais extrovertida e aberta. Sem dúvida. Fica-te bem, Tove,pensa Malin, vais ser, certamente, uma adulta bem-educada.

E eu mesma talvez dê a Daniel Högfeldt a oportunidade de se revelar mais do que umgaranhão.

Há luzes acesas nas casas em Blåsvädret. Os irmãos com as suas famílias estão nosrespectivos lares. A casa branca de madeira de Rakel Murvall aparece isolada no finalda rua, a Blåsvädersgatan.

A neblina eleva-se da neve e sobe pelas fachadas. E por detrás do véu nublado doInverno há segredos ainda por desvendar, pensa Malin. Rakel, farias qualquer coisapara manter os teus segredos guardados, não é?

A pensão do filho.Uma criança que conservou apenas por dinheiro. Um valor irrisório. Mas, para ti,

talvez não tão insignificante. Suficiente para viver. Na pior das hipóteses, quasesuficiente.

O que é que Kalle da Curva te fez? Porque o odiavas tanto? O que é que ele te fez nafloresta? O mesmo que fizeram a Maria? A Rebecka? Ele, Kalle da Curva, foi violento,violou-te? Foi assim que ficaste grávida? E então passaste a odiar a criança quando elanasceu. Quiseste dá-la para adopção, não é verdade? Mas, então, tiveste uma brilhanteideia e inventaste essa história do marinheiro e passaste a receber a pensão pelo órfão.Foi isso que deve ter acontecido. Ele usou de violência para te possuir. E o rapaz quenasceu teve de pagar.

Que outro motivo terias para odiar tanto o teu filho? Esse padrão de comportamentofaz parte da história moderna. Malin leu sobre as alemãs que, violadas por soldadosrussos no final da Segunda Guerra, repudiaram os filhos. Aconteceu o mesmo naBósnia. E, provavelmente, na Suécia.

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Ou talvez amasses o Kalle da Curva e ele te tivesse tratado como mais uma das suasmuitas mulheres? Nada mais do que isso. Um motivo extra para odiar o filho que ele tefez.

Mas eu acredito mais na primeira versão.Ou a maldade sempre existiu em ti, Rakel?Desde o início.Existe esse tipo de maldade?E o dinheiro. A necessidade de dinheiro como um sol negro toldando toda a tua vida

nesta rua deserta e ventosa.O rapaz merecia ter sido acolhido por outra família, Rakel.Talvez assim te passasse a raiva e o ódio. Talvez assim os teus outros rapazes

tivessem crescido de maneira diferente. Talvez tu mesma passasses a ser outra pessoa.– Que sítio horrível – diz Zeke ao entrar com o carro no caminho de acesso à casa. –

Será que consegues imaginá-lo no meio daquelas macieiras, ainda miúdo, quasecongelado?

Malin acena com a cabeça. Posso, sim.– Como se o inferno existisse – diz ela, depois.Dali a pouco, batem à porta de Rakel MurvallPodem vê-la na cozinha, mas ela desaparece pela sala de estar.– Ela não vai abrir – diz Malin.Zeke bate de novo.– Um momento – ouve-se de dentro da casa.A porta abre-se e Rakel Murvall aparece, a sorrir.– Ah, sim, os inspectores. A que devo a honra?– Temos algumas perguntas a fazer-lhe, se não se importa…Rakel Murvall interrompe a frase de Zeke.– Façam o favor de entrar, inspectores. Se estão a pensar na minha denúncia, podem

esquecê-la. Perdoem uma velha como eu, que às vezes tem dificuldade em dominar omau génio. Café?

– Não, obrigada – diz Malin.Zeke abanou a cabeça.– Mas sentem-se, por favor.Rakel Murvall faz um sinal na direcção da mesa da cozinha.Eles sentam-se.– Onde está Karl? – Pergunta Malin.Rakel Murvall ignora a pergunta.

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– Ele não está no apartamento nem na fábrica Collins de onde, aliás, foi despedido –diz Zeke.

– Ele está envolvido em alguma tolice, o meu filho?O meu filho. Ela nunca usou este termo antes, em relação a Karl, pensa Malin.– A senhora já leu o jornal – pergunta Malin, pondo a mão sobre o Correspondenten,

em cima da mesa.– Já deve ter somado dois mais dois.A velhota sorri, mas não reage. E diz:– Não faço a menor ideia de onde o rapaz possa estar.Malin olha pela janela da cozinha e imagina um rapazito nu, de pé, no meio da neve e

do frio, a gritar, com as faces vermelhas. Vê-o a cair na neve, a bater com os braços eas pernas. Um anjo gelado em cima do manto branco que cobre a terra.

Malin morde os lábios.Gostaria de dizer a Rakel Murvall que ela merece arder nas profundezas do inferno.

Pensa que certas coisas não merecem perdão.Segundo a lei, os crimes dela há muito que prescreveram, mas… E segundo a moral

dos homens? Certos actos nunca serão perdoados.Violação.Pedofilia.Tortura de crianças.Ausência de amor.A pena para isso é a vergonha eterna.– Afinal, o que aconteceu entre a senhora e Kalle da Curva, Rakel?Rakel vira-se para Malin, olha fixamente para ela. As pupilas dos olhos da velha

dilatam-se, negras, como se quisessem transmitir mil anos de experiência e desofrimento femininos. Depois, Rakel pestaneja, fecha os olhos por alguns segundos,antes de afirmar:

– Isso aconteceu há tanto tempo que já nem me lembro. Tantas foram as preocupaçõescom os rapazes, ao longo dos anos.

Uma deixa, pensa Malin, para uma nova pergunta:– Nunca teve medo que os seus rapazes soubessem que Kalle da Curva era pai de

Karl?Rakel Murvall põe mais café na sua caneca.– Eles sabem.– Sabem? Sabem mesmo, Rakel? Manter e esconder mentiras pode prejudicar todos

os relacionamentos – continua Malin. – E que autoridade tem aquele ou aquela que

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mente?– Eu não sei do que está a falar – diz Rakel Murvall. – Está a dizer um monte de

coisas sem sentido.– Acredita, Rakel? É mesmo isso que sente?

Rakel Murvall fecha a porta da frente depois de eles terem saído.Senta-se na cadeira vermelha no hall de entrada e olha para a fotografia pendurada na

parede em frente: ela e o marido, Svarten, antes de ter ficado na cadeira de rodas, nojardim, rodeados dos seus rapazes quando ainda eram pequenos.

Filho maldito. Esta fotografia deve ter sido tirada por ti.Se vais desaparecer, desaparece de uma vez por todas, pensa ela. Assim, os meus

segredos ficarão apenas comigo, para sempre.Se ele desaparecer, restarão apenas alguns rumores e esses posso fechá-los num

armário escuro. Ele vai ter de desaparecer, pura e simplesmente. Riscado do mapa. Jáestou cansada da sua existência.

Então, pega no telefone.Liga para Adam.Foi o neto que atendeu, com a sua voz clara, ingénua.– ‘Tou?– Olá, Tobias. É a vovó. O teu pai está em casa?– Olá, vovó.Em seguida, silêncio até surgir uma voz grave, de adulto:– Mãe?– Vem cá, Adam. E traz os teus irmãos contigo. Tenho uma coisa muito importante

para vos contar.– Vou já, mãe. Vou falar com os outros.

EU COSTUMAVA ANDAR DE BICICLETA POR AQUI.

A FLORESTA ERA O MEU TERRITÓRIO.

ÀS VEZES, VOCÊS PERSEGUIAM-ME. OUVIA TIROS, O ANO INTEIRO. E ESPERAVA QUE VOCÊS

VIESSEM.MÃE.

PORQUE ESTAVAS TÃO ZANGADA?O QUE FAZIA EU? O QUE FIZ?

IMAGENS E CALOR. SOU UM ANJO DEBAIXO DE UMA MACIEIRA FEITA DE MIGALHAS DE BOLO.O FOGO AQUECE. NENHUM RUÍDO A NÃO SER O CREPITAR DO FOGO. ESTÁ-SE BEM AQUIDENTRO, NO BURACO, MAS É MUITO SOLITÁRIO. MAS EU NÃO TENHO MEDO DA SOLIDÃO. JÁQUE NINGUÉM PODE TER MEDO DE SI MESMO, NÃO É?

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POSSO DORMIR UM POUCO MAIS NESTE MEU AMBIENTE ESCURO. CLARO QUE POSSO. OU

NÃO? DEPOIS, VOCÊS VÊM BUSCAR-ME. E DEIXAM-ME ENTRAR. E, NESSA ALTURA, EU VOU

SER OUTRA PESSOA, NÃO É VERDADE? ASSIM QUE ME DEIXAREM ENTRAR.

– O que fazemos agora?Zeke conduz o carro na direcção do Mosteiro de Vreta. A igreja era uma espécie de

antiga fortaleza, em cima de um monte, à distância, talvez, de um quilómetro. Osestábulos do clube de equitação Heda de um lado, campo aberto do outro.

Malin tinha proposto telefonarem para os irmãos a perguntar se eles sabiam quem erao pai do meio-irmão Karl, mas Zeke aconselhou-a a repensar o assunto.

– Se não souberem, a velhota tem direito aos seus segredos, Malin. Simplesmente,não podemos saltar para dentro da vida dela e remexer na sua história.

E ela sabia que Zeke tinha razão, independentemente das consequências que poderiamadvir do facto de a pergunta não ser feita. Se eles não respeitassem os direitos daspessoas, fossem elas quem fossem, como é que poderiam exigir o respeito dacomunidade?

Zeke diz:– Esperamos a patrulha de buscas de Sjöman. Os homens estão preparados para

actuar, fazerem a busca na floresta, mas está demasiado frio para os cães farejadores.Mas devem trazer pelo menos dois.

– Não vamos para lá antes?– Não, Malin. Não encontrámos nada ontem, portanto, como é que vamos encontrar

alguma coisa hoje?– Não sei – responde Malin. – Podemos dar uma volta e passar pelo local onde

estava pendurado Bengt Anderson e pelo sítio onde poderá estar a outra árvore.– Já esteve lá um carro ontem à noite. Se tivessem descoberto alguma coisa já

saberíamos há muito tempo.– Tens alguma proposta melhor?– Nenhuma – responde Zeke, que nesse momento resolve fazer inversão de marcha e

voltar pelo mesmo caminho, passando por Blåsvädret. Nessa altura, vêem os irmãosjuntos, a caminhar em direcção à casa da mãe.

– Quanto tempo achas que vai demorar para a Karin fazer a análise dos cabelos deKarl Murvall? – Pergunta Malin. – Quero saber se foi ele que violou Maria Murvall.

– Achas que foi?– Não, mas quero ter a certeza. Acho que ela nos está a enganar outra vez. Só não sei

como. Só sei que não nos teria aberto a porta e deixado entrar na sua casa se não

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tivesse alguma coisa a ganhar com isso. Ela continua a controlar toda a situação. Elança mão seja do que for para defender aquilo que acha que é seu.

Malin respira fundo.– E para preservar os seus segredos.

Adam, Elias e Jakob Murvall estão sentados à volta da mesa na cozinha da mãe.Bebericam cada um o seu café acabado de fazer, comem o bolo que a mãe acaba detirar do forno e que estava no congelador, pronto a aquecer.

– O bolo está bom, rapazes?Rakel Murvall fica ao pé do fogão, com o Correspondente na mão.Todos concordaram que o bolo estava óptimo e passaram a ouvir o que a mãe tinha

para dizer, aquilo que ela não lhes queria contar antes de se terem sentado e bebido umpouco de café.

– Martinsson e Fors estiveram aqui há pouco – diz ela – a perguntar por Karl. Se nãotivesse sido ele que torturou e violou a mulher mencionada no jornal, aquela queencontraram a caminhar na estrada, por que razão teriam vindo aqui? Em especial,depois da queixa que fiz contra ambos por incómodos injustificados? Porque searriscariam?

Rakel mostra o jornal aos rapazes.Deixa-os ler as manchetes e ver a imagem da estrada.– A polícia está à procura de Karl. E o jornal informa que encontraram a mulher

exactamente com os mesmos ferimentos de Maria. E se olharem para a data, verão quea polícia já invadiu o apartamento dele ontem à noite.

– Quer dizer que foi ele que atacou a Maria na floresta?É Adam Murvall que cospe estas palavras.– Poderia ter sido outro? – questiona Rakel Murvall. – Agora está desaparecido. É

claro que foi ele, tudo aconteceu da mesma maneira. Exactamente da mesma maneira.– A sua própria irmã?– Maldito.– Monstro. É um monstro. Como sempre foi.– Mas porque o terá feito?Dúvida na voz de Elias.– E por que razão nós não gostamos dele? Já alguma vez pensaram nisso?Rakel faz uma pausa. Depois, continua em voz baixa.– Ele sempre foi um monstro, desde o primeiro momento, nunca se esqueçam disso. E

ele odiava-a. Por ser uma de nós. E ele não. Porque é louco. Vocês sabem muito bem

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como ele se escondia na floresta, não? E o buraco onde se escondia fica apenas a cincoquilómetros do lugar onde encontraram Maria. Portanto, só pode ter sido ele. Ascoincidências são perfeitas.

– Cinco quilómetros na floresta é muita coisa – diz Elias. – Nós já pensámos nissoantes, que teria sido ele, mas ainda assim, mãe…

– Tudo coincide, Elias. Foi ele que violou a tua irmã na floresta, como se ela nadafosse. Ele destruiu-a.

– A mãe tem razão, Elias – diz Adam, calmamente, bebendo mais um gole de café.– É verdade – diz Jakob. – Tudo coincide.– E, agora, vão fazer o que se espera que façam. Pela vossa irmã. Ou não, Elias?

Rapazes?– Mas… E se a polícia estiver enganada?– Os chuis, muitas vezes, também erram, Elias. Mas não neste caso, não neste caso.

Pára de duvidar. O que se passa contigo? Por acaso estás do lado dele?Rakel Murvall sacode o jornal no ar.– Estás do lado dele? Será que foi outro? Tudo coincide, completamente. Vocês vão

ter de vingar a vossa irmã. Talvez Maria possa voltar para nós, depois de saber queele está morto, o que lhe fez aquilo.

– Eles vão apanhar-nos, vamos parar à prisão – diz Elias. – Há limites para aquiloque podemos fazer.

– Não, rapaz – responde Rakel Murvall. – As galinhas da minha capoeira são maisinteligentes do que esses agentes. Vocês sabem muito bem onde ele se encontra. E vãofazer o seguinte, rapazes. Ouçam…

***

Na planície, o carvalho onde Bengt Andersson ficou pendurado parecer-se-ia comqualquer outra árvore isolada, se não fosse o ramo partido.

Mas o carvalho ficará ligado para sempre àquilo que aconteceu na noite mais friadaquele mês de Fevereiro. Na Primavera, porém, o proprietário do terreno vai cortar aárvore. Não quer ver mais flores depositadas à sua volta, nem mais curiosos da cidadeou mulheres a meditar por perto. O proprietário do terreno vai retirar todas as raízesque encontrar. Não vai parar enquanto não tiver a certeza de que não resta nada,absolutamente nada, do carvalho, nenhuma raiz que possa crescer, tornar-se numa novaárvore que venha a sussurrar os nomes do Apanha Bolas, de Kalle da Curva e de RakelMurvall nas vastas extensões da planície da província de Östgöta.

Malin e Zeke estão dentro do carro a olhar para a árvore.

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O motor continua a trabalhar, em ponto morto.– Nada – diz Zeke.– Ele deve ter vindo aqui, num momento ou noutro – comenta Malin.

O interior do Range Rover cheira a gasóleo e a óleo do motor e a carroçaria produzum barulho enorme quando o carro atravessa Ljungsbro a alta velocidade, passandopelas lojas da Vivo, a pastelaria e o silo de cacau da fábrica Cloetta, perto da pontesobre o canal.

Elias Murvall está sozinho no assento traseiro, esfrega as mãos uma na outra, e ouveas suas próprias palavras:

– E se ela estiver errada? Se não foi ele? Se assim for, vamos ficar arrependidos parasempre. Que raio de direito temos nós…

Adam Murvall, sentado à frente, no lugar do passageiro, vira-se para trás.– Foi ele que fez aquilo, o maldito. Violou a nossa Maria. Tudo coincide. E nós

vamos entrar em acção. O que é que tu costumas dizer, Elias? Nunca devemosdemonstrar fraqueza, não é? Não é isso que costumas dizer? Nunca devemos ser fracos.Portanto, não sejas fraco, agora. Pára com isso.

E o carro balança, derrapa, quase cai no dique perto da curva de Olstorp.– Tens razão – diz Elias. – Não sou fraco nem covarde.– Chiça! – grita Jakob Murvall. – Agora, vamos fazer o que temos de fazer e não se

fala mais nisso. Entendido?Elias recosta-se no assento, absorve a segurança que existe na voz de Jakob, apesar

da dureza do tom.Elias respira fundo, sente que há uma espécie de determinação no movimento do

carro, como se este estivesse a caminho de um alvo único, muito antes de ter sidosequer construído.

No carro, Elias vira-se para trás e olha para a bagageira.É lá que está uma caixa de madeira, esverdeada, e dentro dela três granadas roubadas

de um depósito de armas. Tiraram a caixa do esconderijo por baixo do chão da oficina,esconderijo que a polícia não encontrou durante a busca feita uma semana antes.

– Foi muita sorte a polícia não ter encontrado as granadas. – Disse Jakob quando amãe lhes explicou o plano, lá em casa.

– Tens razão, Jakob – responde a mãe. – Foi muita sorte mesmo.

Malin e Zeke percorrem a planície ainda à procura de outra árvore isolada.Mas a árvore que encontram não tem marcas nem há vestígios de luta. Era apenas uma

árvore isolada, ferida e cansada de lutar contra o vento e o frio glacial.

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Zeke continua ao volante, conduzindo o carro no sentido de Klockrike, numa estradacom neve que passa ao longo de um campo branco que parece infinito. De repente, otelemóvel de Malin toca.

O número de Karin Johannison no visor.– Aqui, Malin.– Negativo, Fors – diz Karin. – Não foi Karl Murvall que violou Maria Murvall.– Não? Nenhuma dúvida?– Não foi ele. Tenho a certeza.– Obrigada, Karin.– É importante, Malin? Pensavas que tinha sido ele?– Não sei se pensava, mas agora está esclarecido. Eu sei que não foi. Obrigada mais

uma vez. – E desliga.– Não foi ele que violou Maria Murvall – diz Malin, que recebe a informação sem

tirar os olhos da estrada.– Então, mais uma razão para o caso ainda não ter terminado – diz Zeke, com a sua

voz rouca, embora na rouquidão se possa descortinar firmeza.Os irmãos a caminho da casa da mãe Rakel, pouco depois de ela e Zeke terem saído

de lá.Os irmãos. Que ainda não sabem que não foi Karl que violou Maria.Que ouvem a mãe. Que obedecem à mãe.Uma mãe que tem segredos a guardar.E apenas uma maneira de guardá-los.Zeke pára o carro perto de mais uma árvore isolada.Raízes, pensa Malin. Sangue que tem de ser eliminado. Acções que têm de ser

vingadas. Uma mãe que quer salvar a pele.Rakel não sabe que nós conseguimos o ADN de Karl, que tudo virá à tona.Ou, então, sabe, lá bem no fundo de si mesma, mas afasta para longe esse

conhecimento, obriga-o a desaparecer, e agarra-se a uma última e imaginária bóia desalvação.

Cerca-se a maldade a um canto e ela morde…– Já sei – grita Malin, quando Zeke abre a porta do carro. – Já sei por que é que

Rakel nos deixou entrar em casa. Segue para a cabana de caça o mais rápido possível.

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CAPÍTULO 27

AS VIVENDAS PERTO DO MOSTEIRO DE VRETA ladeiam a estrada.A riqueza por detrás das fachadas está muito próxima, mas é-lhe indiferente.Depois desta viagem, Malin não quer passar por ali, novamente, nem daqui a mil

anos.Passam pela ponte, perto da Kungsbro, e viram na direcção de Olstorp, passando pela

escola Montessori, de Björkö, onde os prédios, em cores azul e rosa, construídossegundo uma arquitectura angular antroposófica, parecem estar a sofrer com o frio,tanto como quaisquer outros.

Espera-se que lá dentro as pessoas sejam educadas para serem boas.Uma vez, Janne teve a ideia de mandar Tove para a escola Montessori, mas Malin

não aceitou. Tinha ouvido dizer que as crianças educadas nesse tipo de ambienteprotegido, raramente conseguiam enfrentar a concorrência fora das paredes da escola.

Coser bonecas.Fazer os seus próprios livros.Aprender que o mundo está cheio de amor.Quanto amor existe dentro da floresta? Quanto ódio contido?O carro derrapa para um lado e para o outro, na superfície gelada da estrada, sempre

que Zeke pisa o acelerador.– Vamos, Zeke. Estamos com pressa. Garanto-te que Karl está lá, algures.Zeke não pergunta mais nada. Está totalmente concentrado no carro e na estrada.

Passam pelo acesso a Olstorp e seguem em frente, para Hultsjön.Passam ainda pelo campo de golfe onde as bandeirolas ainda continuam a flutuar.

Malin pensa ver nelas as figuras dos três irmãos, soltas ao vento, influenciadas pelavontade da mãe cujo hálito respira poder, o poder de mandá-los fazer aquilo que maislhe interessa a ela.

Jakob Murvall agarra o volante ainda com mais força, ao virar pelo caminho que levaàs cabanas de férias em Hultsjön, que são como pequenas caixas enluvadas de branconum cenário de algodão.

O Range Rover derrapa na neve, os cristais de gelo vêm de todos os lados, como osfragmentos cortantes de uma mina, bater no pára-brisas, mas ele consegue manter ocarro na estrada.

Elias não disse mais nada.E Adam, sentado à frente, mantém-se em silêncio.

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Temos de fazer aquilo que precisa de ser feito, pensa Jakob. Como sempre fizemos.Como fiz quando encontrei o pai ao fundo da escada. Controlei-me, embora quisessegritar. Fechei-lhe os olhos, para que a mãe não precisasse de ver aquele olharaterrador.

Fazemos o nosso dever. Porque se deixarmos alguém violar a nossa irmã semtomarmos uma atitude, o que vai ser de nós? Nessa altura, não haverá mais barreirascontra esse tipo de violência. Tomar uma atitude, é isso que estamos a fazer agora.Assim, dizemos: «Parem! E que sirva de exemplo.»

Jakob acelera, pisa o acelerador a fundo, e continua até ao fim do caminho. Pára ocarro, gira a chave e o motor fica em silêncio.

– Saiam agora! – grita ele. Os irmãos saltam do carro, e se Elias tinha alguma dúvida,essa hesitação desapareceu por completo.

Estão todos vestidos com casacões verdes e calças azul-escuras.– Anda – chama Jacob, dirigindo-se a Adam. Ele abre a bagageira do carro, retira a

caixa com as granadas e coloca-as no chão, antes de voltar a fechar a bagageira.– Pronto – diz ele. Depois, cautelosamente, pega na caixa e mete-a debaixo do braço,

seguindo atrás dos outros irmãos, por cima do aterro de neve até entrar na floresta.Jakob vai à frente.Depois, Elias.E, por último, Adam, com a caixa.Jakob olha para as árvores em volta. É a floresta que ele conhece bem, onde andou à

caça muitas vezes. Recorda a imagem da mãe à mesa da cozinha. A de Maria na suacama, na única vez em que resolveu visitá-la em Vadstena.

E pensa: «Maldito sejas!»Os irmãos atrás dele.Todos praguejam de cada vez que as suas botas se afundam na neve. Afinal, estão

todos com pressa, mas a crosta de gelo nem sempre aguenta o peso dos seus passos.

Como três granadas pesam tanto, pensa Adam, mas, ao mesmo tempo, tão pouco emrelação ao estrago que podem provocar.

Adam também pensa em Maria, no seu quarto. Como ela fica assustada sempre queele chega, como se refugia num canto da cama. E ele sentindo-se obrigado a repetir onome dela, em voz baixa, até conseguir que ela se descontraia. Nem sequer sabe se elao reconhece como irmão. Maria nunca disse nada, mas, pelo menos, deixa-o entrar. E,após alguns momentos, aceita a sua presença no quarto.

E depois?

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Depois, ficam os dois sentados, em silêncio, no meio de todo o seu infortúnio.Aquele porco.A bota dele enfia-se pela neve, enterra-se até ao fundo, até encontrar apoio numa raiz.

E tem de usar as mãos para se levantar.Foi o maldito que fez aquilo.À sua própria irmã.Não existe outra possibilidade. Tem de desaparecer, morrer. Sem dúvida nenhuma.A caixa ainda debaixo do braço. Adam segura-a bem, com força. Ninguém sabe o que

pode acontecer se a deixar cair.Está sem fôlego. Vê os dois irmãos à sua frente, sente frio. Recorda ainda aquela vez

na margem do canal em que os dois mais velhos deram uma coça no maldito turco,mostrando que ninguém se pode meter com eles. Estamos sempre unidos, e isso valetambém para ti, Maria. Por isso, vamos agir.

Bater, bater, bater.Muito mais ainda.Somos adultos. E temos de nos comportar como adultos.Elias caminha à sua frente, a uns dez metros de distância. E Adam ainda sente o corpo

dele, cabelos ao vento, como se estivesse sentado atrás, na garupa da moto, a PuchDakota. E sempre viverá com essa sensação.

Lá estava o carro.O Range Rover dos irmãos Murvall está parado junto de um monte de neve e Zeke

estaciona mesmo ao pé do carro deles, com a intenção de bloquear a sua retirada.Também telefonaram a pedir o reforço de um helicóptero, que já está a caminho.

Malin para Sven Sjöman: «Confia em mim.»Mas com este frio o helicóptero vai demorar a levantar voo. Por isso, precisam de

confiar em si mesmos, de contar com as suas próprias pernas. As patrulhas com os cãestambém tinham partido da esquadra, precisamente naquele momento.

Malin e Zeke sobem o aterro de neve e seguem a pista deixada pelos irmãos Murvall.Andam por entre as árvores, correm, a neve cede por baixo dos seus pés, levantam-se,voltam a correr. Os seus corações batem acelerados, os pulmões arquejam com oesforço e sofrem com o ar gelado, os seus corpos querem ir em frente, mas nem aadrenalina é infinita. Rapidamente deixam de correr, apenas andam, tropeçam. E párampara escutar os sons da floresta, sinais da presença dos irmãos, de acção. Mas nem umnem outro ouvem o que quer que seja, qualquer indício de vida.

– Que inferno – exclama Zeke. – A que distância achas que eles estão?

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– Mais à frente – responde Malin. – Temos de continuar.E Malin começa a correr de novo pela floresta dentro, mas a neve não aguenta o peso

dos seus passos. Tropeça, cai, levanta-se, caminha penosamente.Até que a sua visão se restringe a um túnel estreito.– Não foi ele que violou a vossa irmã – quer ela gritar, por entre as árvores que

formam o túnel. – Não acreditem na vossa mãe. Ele não a violou. Fez coisas horríveis,mas isso não. Parem, antes que seja demasiado tarde. Seja o que for que pensem, pormuito que a vossa mãe lhes tenha metido na cabeça, Karl ainda é, afinal, vosso irmão.Estão a ouvir-me? Ele é vosso irmão. E não foi ele que violou a vossa irmã. Já temos acerteza disso.

O túnel termina.Tenho de chegar a tempo, pensa Malin.E grita:– Não foi ele que violou a vossa irmã! – Mas está tão cansada e sem fôlego que tem

dificuldade em ouvir as suas próprias palavras.

Nunca demonstrar fraqueza, nunca demonstrar fraqueza, nunca…Elias murmura estas palavras para si mesmo como se fossem uma ordem. Pensa em

todas as vezes que demonstrou ter força, como naquele caso em que mordeu oprofessor, depois de ele lhe ter chamado Blåsvädret de merda.

Por vezes, chegou a perguntar-se porque seria assim, porque tinham sido excluídos. Ea única resposta que encontra é a de que tudo começou muito cedo, desde o início.Todos tinham empregos, vidas normais, casas decentes. E nós? Sempre consideradosesterco.

Adam atrás dele.Elias pára, vira-se, pensa que o seu irmãozinho é persistente, para conseguir segurar

o peso que carrega. Tem a testa rosada, brilha à luz do Inverno, apesar do frio. A peleparece palpitar.

– Segura bem a caixa, Adam.– Conta comigo – responde ele, quase sufocado.Jakob continua à frente, em silêncio.Os seus passos são decididos. O corpo inclinado para a frente, ombros caídos,

pendendo para o chão.– Que raio! – exclama Adam. – Não se pode confiar na neve.Acaba de enterrar mais uma vez a perna na neve fofa.– Vamos andar mais depressa – diz ele, depois. – Para acabar com isto.

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Elias não solta uma palavra.Não há mais nada para dizer. Apenas uma missão a cumprir.Passam pela cabana de caça. Passam sem parar, atravessam a clareira e voltam a

enfiar-se pela floresta, cada vez mais escura, mais densa, do outro lado, onde a crostade gelo é mais dura, aguenta mais peso, ainda que de vez em quando ceda.

– Ele está lá escondido – diz Elias. – Tenho a certeza disso.– Já sinto o cheiro do fumo da chaminé da lareira – diz Adam.Os dedos de Adam que seguram a caixa começam a ter cãibras, batem

descontroladamente na madeira esverdeada da caixa. Muda de braço, estica os dedospara que a cãibra passe.

– Maldito covil. É um verdadeiro animal – sussurra Jakob. A seguir, diz em voz alta:– Esta é pela Maria.

E grita estas palavras que ecoam pela floresta, mas o som morre logo ao embatercontra os troncos das árvores. A floresta é um ambiente hostil para as vozes quequerem ser ouvidas.

Continua, Malin, continua. Ainda não é demasiado tarde. O helicóptero já deixou ocampo de Malmslätt, já voa por cima da planície em direcção ao lugar onde vocêsestão, os cães da patrulha latem, ladram, o faro deles procurando em desespero.

Eu penso o mesmo que tu, Malin. Já chega. Basta.Mas ao mesmo tempo quero ter Karl aqui, ao meu lado.Quero flutuar ao lado dele.Levá-lo comigo para longe daqui.

Como é que se pode ficar assim tão cansada?Todas as fibras do corpo de Malin lhe doem e apesar de verem bem nítidas as

pegadas dos irmãos que continuam pela floresta dentro, são obrigados a sentar-se nosdegraus de acesso à cabana de caça e descansar.

O vento assobia.Um sussurro a passar junto ao corpo.A cabeça parece estar a ferver, apesar do frio. O ar sai da boca de Zeke transformado

em fumo branco, tal e qual o fumo de uma fogueira.– Raios me partam! – diz Zeke, quando tenta recuperar o fôlego. – Agora é que me

dava jeito ter a condição física do Martin!– Temos de seguir em frente – insiste Malin.Levantam-se.Entram ainda mais longe na floresta.

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CAPÍTULO 28

ESTÃO A CHEGAR?

ESTÃO A CHEGAR PARA ME LEVAREM PARA CASA?

NÃO ME BATAM.

SÃO VOCÊS? ÉS TU? OU OS MORTOS?

SEJA QUEM FOR QUE ESTEJA AÍ, DIGA QUE VEM COM BOAS INTENÇÕES. DIGA QUE VEM COMOAMIGO.

PROMETAM-ME ISSO.

PROMETAM-ME SÓ ISSO.

PROMETAM.

CONSIGO OUVI-LOS. AINDA NÃO ESTÃO AQUI, MAS ESTÃO QUASE A CHEGAR. ESTOU DEITADO

NO CHÃO, JÁ ESTOU A OUVIR OS VOSSOS GRITOS ABAFADOS LÁ FORA.– AGORA VAMOS DEIXÁ-LO ENTRAR – GRITAM VOCÊS . – AGORA, ELE VAI SER UM DOSNOSSOS. AGORA ELE PODE ENTRAR.

QUE MARAVILHA!

EU FIZ TANTA COISA. O SANGUE DO OUTRO JÁ NÃO EXISTE . E MESMO O SANGUE QUE CORRENAS MINHAS VEIAS, PODEM MUITO BEM PASSAR POR CIMA DISSO, NÃO É?

VOCÊS AGORA ESTÃO MAIS PERTO.

VÊM TRAZER-ME O AMOR DELA.

VENHAM, POR FAVOR, VENHAM. A PORTA DO MEU BURACO NÃO ESTÁ TRANCADA.

Elias Murvall vê o fumo sair de um pequeno tubo que sobressai na neve. Imaginacomo Karl se deve sentir lá dentro do buraco, escondido, apertado, no escuro, commedo e sem saber o que fazer.

Ele deve ter atacado a Maria.A dúvida é uma fraqueza.Vamos mordê-lo, massacrá-lo a pontapé, tudo isso e mais alguma coisa.Deve ter acontecido como a mãe nos contou: que ele foi um maldito aborto da

natureza desde o início, que nós já devíamos ter sentido que foi ele que violou a Maria.Foi Karl que encontrou aquele esconderijo subterrâneo quando tinha apenas nove

anos, depois de ter fugido de bicicleta para a floresta e para a cabana de caça, semninguém saber. Mais tarde, mostrou o esconderijo aos irmãos, com orgulho, como seeles fossem ficar impressionados com aquele buraco debaixo da terra. Svarten fechou-o ali, obrigou-o a passar lá dias seguidos, apenas com água para beber, enquanto elesficavam na cabana de caça. Não importava em que época do ano. De início, Karlprotestava e eles, o padrasto e os irmãos, tinham de metê-lo lá dentro à força. Mas,

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depois, foi como se ele se acomodasse e se sentisse em casa, dentro do buraco,fazendo dele uma espécie de esconderijo. A manobra de fechá-lo lá dentro deixou deser tão divertida, a partir do momento em que ele passou a sentir-se bem lá. Por algumtempo, chegaram a pensar em escavar o buraco, aprofundá-lo, mas ninguém sedisponibilizou para fazer esse trabalho.

– Deixem o buraco para esse merdoso – gritou o velho da sua cadeira de rodas, eninguém protestou. Eles sabiam que Karl ainda continuava a usar o buraco,costumavam ver as marcas dos esquis que ele usava, às vezes, até muito perto dacabana de caça. Quando não havia marcas de esquis na neve, partiam do princípio deque ele andaria por outras bandas.

Elias e Jakob já estavam mais próximos.Maldito. Tem de desaparecer.A caixa esverdeada nas mãos de Adam pesa bastante, mas mesmo assim consegue

seguir as pisadas dos irmãos através da paisagem branca e escura.

– Estás a ouvir, Zeke?– O quê?– Não ouves as vozes mais à frente?– Não ouço vozes nenhumas.– Mas alguém está a falar. Eu ouço.– Pára de imaginar coisas. Vamos em frente.

***

O QUE DIZEM VOCÊS?

QUE VÃO ABRIR? ATÉ AÍ PERCEBO. ABRIR E DEIXAR CAIR QUALQUER COISA.

PERCEBO A DETERMINAÇÃO DE ELIAS:

– Tu abres, Jakob, e eu lanço-as lá para dentro.ENTÃO É MESMO VERDADE. CONSEGUI. FINALMENTE, SERÁ FEITA JUSTIÇA.MAS DO QUE ESTÃO À ESPERA?

– Primeiro – diz Jakob – deixas cair uma e, depois, rapidamente, a segunda, e por fima caixa.

Malin corre, ouve as vozes agora, mas mais como sussurros cujo significado éimpossível discernir. As ondas sonoras têm dificuldade em passar por entre as árvores.

Murmúrios.Histórias e injustiças de milhares de anos invocadas nesse momento.É mesmo? Abre-se uma clareira na floresta? Zeke não consegue acompanhá-la.

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Arrasta-se atrás dela, respira com dificuldade. Malin chega a pensar que Zeke vai cair.Mas ela quer avançar, corre entre as árvores e a neve parece desaparecer sob os seuspés. O momento da verdade que se aproxima dá-lhe asas.

Elias Murvall retira a primeira granada da caixa. Vê que Jakob já está junto da portado subterrâneo, o fumo da chaminé como um véu atrás da figura dele, as árvores emposição de sentido, todas, incentivando a acção: faz isso, faz isso, faz isso.

Mata o teu próprio irmão.Ele destruiu a tua irmã.É um animal, não um ser humano.Mas Elias hesita.– Raios te partam, Elias – grita Jakob. – Vamos, despacha-te, atira as granadas. Atira

as granadas! Porque raio estamos aqui à espera?Elias, a sussurrar: – Sim, de que estamos à espera?– Atira as granadas, atira as granadas – ruge Adam.E assim que Elias solta a espoleta da primeira granada, Jakob abre a porta de

madeira, com um metro de altura, que dá para o buraco.

***

VOCÊS JÁ ABRIRAM A PORTA, JÁ VEJO A LUZ. AGORA, SOU UM DE VOCÊS.

FINALMENTE.

VOCÊS SÃO TÃO CARINHOSOS.

PRIMEIRO, UMA MAÇÃ, PORQUE SABEM QUE GOSTO DE MAÇÃS. A MAÇÃ ROLA NA MINHADIRECÇÃO, VERDE, NA PENUMBRA SUAVE.

APANHO A MAÇÃ, FRIA E VERDE, DEPOIS CAEM MAIS DUAS MAÇÃS NO CHÃO DE TERRA, EUMA CAIXA QUADRADA.

TANTO CARINHO!

PEGO NUMA DAS MAÇÃS, FRIA E DURA POR CAUSA DO GELO.

VOCÊS ESTÃO AQUI.

DEPOIS, A PORTA FECHA-SE, A LUZ DESAPARECE. PORQUÊ?

VOCÊS DISSERAM QUE ME DEIXAVAM ENTRAR.

QUANDO SERÁ QUE A LUZ VAI VOLTAR? AH, DE ONDE VEM ESTA LUZ AGORA? A LUZ DE UMAEXPLOSÃO?

Zeke cai atrás dela.Que será que Malin está a ver lá à frente? Na sua visão, ela balança como na imagem

de uma câmara de mão, vai para um lado e para o outro, para a frente e para trás. E o

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que está ela a ver?Os três irmãos?O que fazem eles?Atiram-se de bruços para cima da neve.E, então, um estouro, mais outro, e mais outro. E uma bola de fogo a elevar-se de um

buraco na neve. E Malin também se atira para o chão, sente o gelo penetrar as suaspernas.

Armas de um depósito.Granadas de mão.Um inferno.

Agora, ele já não existe, pensa Elias Murvall. Foi-se embora para sempre. E eu nãofui fraco.

Elias levanta-se, apoiado nas mãos e nos joelhos. O ruído da explosão deixa-lhe osouvidos a tinir. E vê Jakob e Adam a levantarem-se também. A porta foi pelos ares,assim como a neve que cobria o tecto do buraco, formando uma nuvem enorme, branca,na escuridão da floresta.

Como é que estará lá dentro?Sangue vermelho em campo de neve.O cheiro do suor, da carne queimada. Do sangue.Quem é que está a gritar? Uma mulher?Ele vira-se.Vê uma mulher de pistola na mão a aproximar-se e a entrar na clareira.Ela? Raios, como é que conseguiu encontrar este lugar tão depressa?Malin levanta-se e avança de pistola na mão na direcção dos três homens ainda

ajoelhados. Depois, eles levantam-se de braços ao alto, sobre a cabeça.– Vocês mataram o vosso próprio irmão – grita ela. E repete: – Vocês mataram o

vosso próprio irmão. Pensam que foi ele que violou a vossa irmã, mas não foi. Nãoteve nada que ver com o caso, malditos – grita ela. – Vocês mataram o vosso próprioirmão.

Nessa altura, Jakob avança para ela.E grita:– Nós não matámos ninguém. Íamos levá-lo para casa. Sabíamos que a polícia estava

à procura dele e quando nos aproximámos o buraco explodiu.Jakob Murvall sorri.– Ele não violou a vossa irmã – grita, mais uma vez, Malin.

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O sorriso desaparece dos lábios de Jakob Murvall. Agora parece confuso, enganado.E Malin faz girar a pistola no ar, tão rápido quanto pode, até que a coronha atinja onariz dele.

O sangue escorre pelas narinas de Jakob Murvall que, a seguir, se inclina para afrente e deixa a neve colorida de vermelho. Entretanto, Malin cai de joelhos na neve econtinua a gritar, a gritar, a gritar, até que o seu grito lentamente se transforma emlamento, um lamento abafado pelo ruído do motor de um helicóptero que chega e descena clareira. E os seus pulmões também já não aguentam gritar mais. O desespero, osofrimento e os fragmentos de vidas humanas contidos nesses soluços vão ficar parasempre a ecoar na floresta de Hultsjön.

Ouvem este murmúrio?Este murmúrio infindável.É o musgo a murmurar.São os mortos a conversar. É o que vão dizer as lendas. Os mortos e os mortos ainda

vivos.

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EPÍLOGO

MANTORP, QUARTA-FEIRA, 2 DE MARÇO

– JÁ NÃO TENHO MEDO.

– NEM EU.Já não há rancor. Não há desespero, nenhuma injustiça a reparar.Aqui apenas existe um aroma a maçãs e bolas que, sem peso, voam num espaço

interminável.Nós estamos a flutuar lado a lado, eu e Karl, tal como os irmãos devem fazer. Já

não vemos a terra, mas vemos tudo o resto. E estamos bem.

Rakel Murvall está sentada num canto da mesa da cozinha, de costas para o fogão. Noforno, tem quase pronto um gratinado de couve cujo aroma adocicado se espalha pelacasa.

Elias é o primeiro a levantar-se.Depois, Jakob e, por fim, Adam.– A senhora mentiu-nos. Os artigos no jornal dizem que ele era irmão de…– Tu sabias.– De qualquer maneira, ele era nosso irmão.– A senhora mentiu… Fez com que nós matássemos o nosso…Um a um, os irmãos abandonam a cozinha.Ouve-se a porta da frente a fechar-se.Rakel Murvall passa a mão pelos seus compridos cabelos brancos, empurrando-os

para trás.– Voltem aqui – sussurra ela. – Voltem aqui.

O que aconteceu?Malin caminha entre as fileiras de roupas da loja H&M no centro comercial, perto de

Manstorp. Tem a certeza.Eles atiraram as granadas para o buraco. E foi a mãe que os levou a fazer isso.Mas a história contada pelos irmãos tem consistência. É impossível demonstrar que

não foi Karl Murvall que retirou as espoletas das granadas de que, de alguma maneira,conseguiu apoderar-se. Para os três irmãos, vai ser um ou dois meses de prisão emSkänninge por caça ilegal e posse de armas, até ao Verão. E é tudo.

Tove estende-lhe um vestido vermelho, florido, de Verão. Com um ar interrogador,brincalhão.

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Malin abana a cabeça.Considera-se que o caso de homicídio de Bengt Andersson está resolvido, assim

como o de sequestro e de maus-tratos infligidos a Rebecka Stenlundh. Em ambos oscasos o criminoso foi o próprio meio-irmão das vítimas, que se fez explodir e sedesfez em mil pedaços num buraco de um subterrâneo que foi o lugar a que ele estevemais próximo de considerar como lar.

Esta é a versão oficial: «Ele não conseguiu conviver com os seus crimes.»Jakob Murvall apresentou uma queixa contra Malin por abuso de autoridade no

decurso da investigação, mas Zeke sustentou a versão dela: «Não foi isso queaconteceu. Ele deve ter ficado ferido na explosão.» E o caso ficou por aí.

Resta uma pergunta:Quem violou Maria Murvall?Malin passa os dedos por um vestido azul-claro.Será que todas as perguntas têm de ter uma resposta?Lá fora, o frio amainou, embora a camada de neve ainda se mantenha. Fica mais fina a

cada dia que passa e lá em baixo na terra as gotas dos primeiros nevões começam apenetrar o solo. Circulam no húmus, prontas para em breve saudarem a chegada do sol.

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Table of ContentsFicha Técnica 2

Agradeço às seguintes pessoas que, 3PRÓLOGO 4ÖSTERGÖTLAND, TERÇA-FEIRA, DIA 31 DE JANEIRO 4PRIMEIRA PARTE 6O AMOR IMPOSSÍVEL 6CAPÍTULO 1 7QUINTA-FEIRA, 2 DE FEVEREIRO 7CAPÍTULO 2 13CAPÍTULO 3 20CAPÍTULO 4 26CAPÍTULO 5 31CAPÍTULO 6 37CAPÍTULO 7 44SEXTA-FEIRA, 3 DE FEVEREIRO 44CAPÍTULO 8 52CAPÍTULO 9 56CAPÍTULO 10 61NOITE DE SEXTA-FEIRA E SÁBADO, 4 DE FEVEREIRO 61CAPÍTULO 11 65CAPÍTULO 12 66CAPÍTULO 13 73CAPÍTULO 14 78SEGUNDA-FEIRA, 6 DE FEVEREIRO 78CAPÍTULO 15 82CAPÍTULO 16 87CAPÍTULO 17 92

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CAPÍTULO 18 97CAPÍTULO 19 101CAPÍTULO 20 107CAPÍTULO 21 111TERÇA-FEIRA, 7 DE FEVEREIRO 111CAPÍTULO 22 116CAPÍTULO 23 121CAPÍTULO 24 124CAPÍTULO 25 127FLORESTA DE HULTSJÖN, NO FINAL DO OUTONO DE 2001 127CAPÍTULO 26 129CAPÍTULO 27 133CAPÍTULO 28 139SEGUNDA PARTE 145IRMÃOS 145CAPÍTULO 1 146QUARTA-FEIRA, 8 DE FEVEREIRO 146CAPÍTULO 2 151CAPÍTULO 3 160CAPÍTULO 4 167CAPÍTULO 5 173CAPÍTULO 6 177CAPÍTULO 7 182CAPÍTULO 8 187QUINTA-FEIRA, 9 DE FEVEREIRO 187CAPÍTULO 9 192CAPÍTULO 10 198CAPÍTULO 11 202CAPÍTULO 12 209

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CAPÍTULO 13 215SEXTA-FEIRA, 10 DE FEVEREIRO 215CAPÍTULO 14 219CAPÍTULO 15 225CAPÍTULO 16 231CAPÍTULO 17 235SÁBADO, 11 DE FEVEREIRO 235CAPÍTULO 18 237CAPÍTULO 19 240CAPÍTULO 20 245CAPÍTULO 21 251CAPÍTULO 22 259TERCEIRA PARTE 263OS HÁBITOS DOS VIVOS 263CAPÍTULO 1 264CAPÍTULO 2 267CAPÍTULO 3 273SEGUNDA-FEIRA, 13 DE FEVEREIRO 273CAPÍTULO 4 279CAPÍTULO 5 283PARQUE POPULAR DE LJUNGSBRO, INÍCIO DO VERÃO DE1958 283

CAPÍTULO 6 287SEGUNDA-FEIRA À NOITE E TERÇA-FEIRA, 14 DEFEVEREIRO 287

CAPÍTULO 7 292CAPÍTULO 8 296CAPÍTULO 9 299CAPÍTULO 10 303

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CAPÍTULO 11 306QUARTA-FEIRA, 15 DE FEVEREIRO 306CAPÍTULO 12 313CAPÍTULO 13 317CAPÍTULO 14 320CAPÍTULO 15 323CAPÍTULO 16 327CAPÍTULO 17 329CAPÍTULO 18 331QUINTA-FEIRA, 16 DE FEVEREIRO 331CAPÍTULO 19 337CAPÍTULO 20 342CAPÍTULO 21 347CAPÍTULO 22 349CAPÍTULO 23 353CAPÍTULO 24 361SEXTA-FEIRA, 17 DE FEVEREIRO 361CAPÍTULO 25 367CAPÍTULO 26 373CAPÍTULO 27 382CAPÍTULO 28 387EPÍLOGO 392MANTORP, QUARTA-FEIRA, 2 DE MARÇO 392