estrada mercado e edifício montra no concelho de paços de ferreira

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Prova Final para Licenciatura em ArquitecturaFaculdade de Arquitectura da Universidade do PortoAno Lectivo 2005/06

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PREFCIOO trabalho seguinte resulta do culminar do curso de Arquitectura da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. O curso tem, segundo o seu programa de estudos, um carcter generalista. Entendi a prova final, englobada neste contexto como uma oportunidade de confirmar este carcter generalista, escolhendo um dos mltiplos e vastos temas de estudo o contexto fsico da arquitectura. Neste caso, a cidade. A globalizao econmica tem levado recentemente discusso sobre a globalizao cultural, a cultura de massas e o fim das identidades locais, regionais e nacionais. Simultaneamente assistimos a reaces contrrias a estes movimentos que tm levado afirmao cada vez mais vincada de determinados valores culturais prprios. Aps as ideias de uma arquitectura internacional, defendidas pelo Movimento Moderno, por exemplo, surgiram uma srie de regionalismos mais ou menos crticos que no so de forma alguma movimentos nicos da arquitectura, mas transversais s outras artes. Defendiam a valorizao da cultura popular e da identidade local enquanto fonte de inspirao produo cultural. No possvel hoje criar sem uma profunda conscincia do nosso contexto especfico, seja ele geogrfico, fsico ou cultural. No igualmente possvel compreender esse contexto sem ser luz daquilo que se passa em todos os outros contextos, ou seja, no contexto global. O contexto assim hoje um elemento fundamental de estudo em diversas reas. O contexto imediato da arquitectura , normalmente, a cidade. Compreender a cidade enquanto reflexo de uma determinada sociedade tambm uma forma de conhecermos o nosso contexto. Este trabalho assenta assim num estudo do contexto urbanstico, simultaneamente global e local, como ferramenta essencial para uma formao em arquitectura. O contexto global traduz-se pela primeira parte do trabalho no estudo da cidade e sociedade contemporneas, tendo como ponto de vista especfico os fenmenos de urbanizao difusa. O contexto local traduz-se pela segunda parte no estudo de um fenmeno urbano especfico. Como concluso ensaia-se uma terceira parte onde se procura retirar algumas reflexes sobre os temas apresentados.

Docente Acompanhante: Prof. Cat. Manuel Fernandes de SSeminrio de urbanismo realizado no perodo de Setembro a Fevereiro de 2006, sob a responsabilidade do Porf. Cat. Manuel Fernandes de SAgradece-se a colaborao da Cmara Municipal de Paos de Ferreira

Estrada Mercado e Edifcio Montra no concelho de Paos de Ferreira

Prova Final para Licenciatura em Arquitectura

Vasco Guimares CortezFaculdade de Arquitectura da Universidade do Porto Outubro de 2006 Palavras-chave: tipologia, tipo, cidade, difusa, edifcio, montra, estrada, mercado, comrcio, simbolismo, arquitectura

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ABSTRACTEste trabalho surge na sequncia da investigao efectuada no mbito do seminrio de urbanismo do 6 ano da FAUP, orientado pelo Prof. Cat. Manuel Fernandes de S, sobre a problemtica da cidade contempornea e da cidade difusa. O trabalho procura compreender as novas formas de cidade existentes, analisando para isso um fenmeno particular: a estrada mercado com os seus tipos arquitectnicos especficos os edifcios montra. Partindo da investigao efectuada no seminrio, procurou-se por um lado contextualizar e por outro aprofundar e sistematizar o estudo realizado e, em consequncia, produzir uma reflexo sobre a condio da arquitectura e dos tipos arquitectnicos na nova realidade territorial. O trabalho organiza-se em trs partes, que nos pareceram corresponder a uma sequncia natural de investigao. So as seguintes: compreenso da actualidade, anlise de uma realidade concreta e finalmente a reflexo. Na primeira parte, introduz-se o panorama da nova realidade territorial (cidade difusa e cidade contempornea), e apresentam-se outros temas que permitem a sua compreenso e contextualizao: as alteraes econmicas, sociais, polticas e tecnolgicas que a determinam. A cidade contempornea na sua complexidade e heterogeneidade assim o assunto de estudo. Como manifestao mais clara desta realidade aparecem os fenmenos de disperso urbana, estudados inicialmente de uma forma genrica, e posteriormente na especialidade no caso concreto da rurbanizao (ou urbanizao rural difusa) e dos distritos industriais. A segunda parte do trabalho debrua-se sobre a anlise do objecto de estudo a estrada mercado e o edifcio montra enquadrando-o para isso na anlise do contexto territorial: o distrito industrial do Vale do Sousa na sua relao

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com a cidade regio do Porto. O concelho de Paos de Ferreira por ser a envolvente ao objecto de estudo, tambm alvo de um exame ao nvel geogrfico, histrico, econmico, social e finalmente, territorial. Os conceitos: estrada rua, estrada urbanizada e estrada mercado; enquadram a anlise da estrada em estudo (EN207). Finalmente para o estudo tipolgico, introduziu-se algum enquadramento terico sobre o tema e uma breve definio do tipo edifcio montra. Seguem-se a caracterizao arquitectnica do fenmeno e finalmente a sua classificao e distribuio tipolgica. A terceira parte do trabalho procura fazer, como concluso, uma reflexo geral sobre: a condio da arquitectura na cidade difusa, o funcionamento desta ao nvel das relaes entre edificado e espao livre e o papel do edifcio montra na disciplina.

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NDICE

INTRODUO......................................................................................................................... 11

I DA CIDADE AO URBANO1. CIDADE CONTEMPORNEA ....................................................................................... 17 1.1. Sociedade: globalizao e informao ............................................................................18 1.2 Cidade: disperso e compresso .....................................................................................20 2. CIDADE DIFUSA ........................................................................................................... 27 2.1. Disperso urbana ..............................................................................................................27 2.2. Rurbanizao e distritos industriais..................................................................................43

II ESTRADA MERCADO E EDIFCIO MONTRA3. CONTEXTO ................................................................................................................... 47 3.1 Vale do Sousa ....................................................................................................................47 3.2 Paos de Ferreira ...............................................................................................................55 3.3 Territrio de estudo ............................................................................................................65 4. ESTRADA MERCADO................................................................................................... 81 4.1 Definio de conceitos.......................................................................................................81 4.1 Caso de estudo ..................................................................................................................88 5. TIPOLOGIA DO EDIFCIO MONTRA ............................................................................ 93 5.1. Tipo e estudo tipolgico ...................................................................................................93 5.2. Definio do tipo edifcio montra...................................................................................98 5.3. Caracterizao do fenmeno..........................................................................................100 5.4. Classificao tipolgica ..................................................................................................117

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III CONDIO DA ARQUITECTURA6. ARQUITECTURA E CIDADE DIFUSA......................................................................... 149 6.1. Relaes.......................................................................................................................... 149 6.3. O edifcio montra............................................................................................................. 158 6.2. O lugar do projecto......................................................................................................... 160 CONCLUSES...................................................................................................................... 163 ANEXOS Inquritos os proprietrios ........................................................................................................... 167 Inventrio de todos os edifcios montra estudados .................................................................... 171 NDICE DAS IMAGENS E TABELAS .................................................................................... 175 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 179

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() no se pode observar uma onda sem ter em conta os aspectos complexos que concorrem para a sua formao e aqueles outros, igualmente complexos, a que essa mesma onda d lugar. Estes aspectos variam continuamente, pelo que uma onda sempre diferente de uma outra onda; mas tambm verdade que cada onda igual a uma outra onda, mesmo que no seja aquela que lhe imediatamente contgua ou sucessiva; em resumo, existem formas e sequncias que se repetem, ainda que irregularmente distribudas no espao e no tempo.Italo Calvino, Palomar, Planeta de Agostini, Lisboa, 1985

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INTRODUOAs sociedades contemporneas introduziram novas prticas de ocupao do espao que conduziram a uma maior complexidade e especializao nas formas e no funcionamento da cidade. A cidade difusa uma expresso disto. Surge com a exploso das cidades e a invaso das zonas tradicionalmente rurais pela vida urbana. Criam-se novas condies e novos tipos urbanos, com diferentes modos de funcionamento. O campo de estudo deste trabalho a cidade difusa enquanto rea da investigao urbanstica. A complexidade resultante das novas formas urbanas da era ps-industrial (por contraponto unidade, clareza e continuidade da cidade antiga e moderna) incita por vezes certos discursos, que acusam tais tipos de cidade de representarem o caos, a falta de ordem ou mesmo a m forma urbana. Este discurso proveniente da incompreenso dessa mesma complexidade. O que acontece na verdade o assomar de uma outra espessura urbana e de diferentes modos de organizao, ainda pouco compreendidos. Quando se estima que mais de metade da populao do planeta viva em cidades1, os territrios perifricos de disperso urbana tornam-se cada vez mais representativos e importantes, reclamando uma maior ateno. Paralelamente a isto, assistimos na sociedade em geral a uma crescente consciencializao para os proble-

1. Joo Ferro, Intervir na Cidade: Complexidade, Viso e Rumo, in Joo Cabral, lvaro Domingues e Nuno Portas, Polticas Urbanas: tendncias estratgias e oportunidades, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2003

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mas do planeamento urbano e do ordenamento do territrio (uma vontade de controlar, prevenir, planear e projectar o ambiente urbano), associada a um despertar para a valorizao e reabilitao do patrimnio edificado. Esta ateno para com o, j amplamente reconhecido, patrimnio as cidades antigas e os centros histricos provoca normalmente o desprezo pela outra cidade a cidade emergente. A consequncia visvel: m qualidade do ambiente urbano nos espaos onde vive a maioria da populao. Compreender a cidade contempornea, quer pela complexidade que esta demonstra, quer pela possibilidade de interveno (mesmo que seja s no campo do projecto arquitectnico), torna-se portanto essencial para quem estuda arquitectura. O objecto deste estudo a estrada mercado, enquanto fenmeno urbano emblemtico da cidade difusa, e os seus tipos arquitectnicos (particularmente os edifcios montra), como sua parte constituinte e enquanto fenmenos arquitectnicos e urbansticos em si. O caso particular, aqui seleccionado, a Estrada Nacional 207 (EN207) no concelho de Paos de Ferreira, devido anormal concentrao destes edifcios. Porqu estudar a estrada mercado e a sua arquitectura comercial em Paos de Ferreira? Qual o mbito e pertinncia deste tema? A via em geral, mas particularmente a estrada, a grande estrutura da cidade difusa. Estudar a via estudar a prpria cidade difusa. a ela que tudo se agarra e com ela que tudo se relaciona. ela que explica o polvilhar aparentemente catico e disperso da edificao no territrio. E a estrada mercado em particular a expresso da sua fora estruturadora, ao transformar a simples via, em verdadeiro espao pblico. O mercado , na histria das cidades, um elemento fundamental na constituio dos espaos urbanos e dos centros cvicos. A troca, a compra e a venda foram razes da prpria formao das cidades, e simbolizam encontro, despoletar de animao e vida urbana, mas simultaneamente potencial de transformao e renovao. A estrada mercado ganha assim uma importncia urbana fulcral para este tipo de territrio e um tema importante a analisar. A EN207, fenmeno peculiar no gnero, desencadeia facilmente uma srie de questes: porqu tantos tipos diferentes de edifcio, servindo todos para a mesma e simples funo: venda de mveis? Como surgiu um fenmeno destes e porqu aqui? O que justifica este tipo de expresso urbana? Como e quem o ter comeado?

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Estudar este fenmeno implica, antes de mais, uma compreenso do seu enquadramento territorial, social e econmico. Para isso, o estudo do fenmeno urbano introduzido por uma reflexo alargada a propsito desse enquadramento territorial, mas tambm por uma observao histrica e socio-econmica (do Vale do Sousa e Paos de Ferreira). Como complemento anlise, alargou-se a investigao s outras duas estradas nacionais do concelho (EN209 e a EN319) e respectivas envolventes prximas, pela semelhana de fenmenos e pela proximidade geogrfica. Considerou-se como territrio de estudo a envolvente EN207 no concelho de Paos de Ferreira. So apresentados em anexo, os inquritos aos comerciantes realizados durante o seminrio que contriburam para uma mais completa compreenso do fenmeno. A metodologia utilizada foi o estudo tipolgico. Ou seja: a comparao intensiva entre edifcios e a sua posterior classificao em famlias, segundo critrios predeterminados. Este um processo de sistematizao da informao, recolhida de forma emprica, que permite formular concluses mais objectivas. Estudar a cidade difusa atravs da tipologia do seu edificado representa compreender a lgica que rege a sua formao espontnea, encontrar padres e regras na aparente desordem. Dar nomes aos fenmenos, classificando este tipo de via como estrada mercado permite-nos aumentar e consolidar o conhecimento da realidade complexa que a cidade difusa. A prpria estrada mercado constitui-se como um tipo urbano e esta classificao um contributo para a compreenso dos fenmenos actuais da cidade difusa. Organizar a realidade em tipos permite assim entender padres, caractersticas comuns, organizar a informao. Representa para alm disto uma forma de ler a cidade de um ponto de vista particular: a tipologia. Qual o objectivo da investigao terica em arquitectura e urbanismo? Na anlise ao campo de estudo da cidade difusa enquanto fenmeno urbano espontneo constituem-se como objectivos: por um lado a compreenso exaustiva do fenmeno (objectivo comum s cincias), e por outro a construo de pressupostos tericos que orientem estratgias de interveno (objectivo comum s artes). Seja esta feita pela definio de programas (papel do urbanismo) seja pela sua materializao (papel da arquitectura).

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Para cumprir o primeiro pressuposto compreenso e explicao de uma determinada realidade requerido um olhar intrigado, mas tambm imparcial e descomplexado sobre esta2. Segundo Venturi a suspenso do juzo pode usar-se para formar logo um juzo mais sensato. complexidade das cidades contemporneas (que as torna de difcil compreenso), tm de responder os estudos urbanos com maior profundidade e densidade. O conhecimento da realidade fundamental sobretudo no campo da interveno. necessrio, segundo Tvora, conhecer o existente to intensamente que conhecer e ser se confundem3. Para ele, na interveno a dificuldade da posio a tomar est exactamente em saber que poro da circunstncia haver que seguir e que poro haver que esquecer ou mesmo contrariar. Isto , o espao organizado no apenas condicionado, mas tambm condicionante. S a atitude mais descomprometida possvel (mas no insensvel) pode levar ao conhecimento. E s com base neste conhecimento que podemos alcanar o segundo pressuposto a definio de objectivos operativos. Isto , a tomada de posio. O objectivo geral do trabalho ento, por um lado compreender o funcionamento da cidade contempornea e da cidade alargada atravs de um exemplo particular, e por outro, retirar algumas concluses sobre a condio contempornea da arquitectura nesta forma de cidade. Do particular pode-se explicar o geral. A compreenso da origem e funcionamento destes tipos pode permitir perceber melhor o funcionamento da cidade difusa em geral. Procura-se portanto dar um contributo compreenso desta realidade, atravs do estudo de um fenmeno particular. Adicionar a toda investigao desenvolvida sobre a matria, a documentao de mais um fenmeno (pouco estudado) e a aproximao escala da arquitectura e da sua relao com os espaos livres (pblicos e privados). Tendo esperana de que o mesmo contribua para a compreenso do todo, que a cidade actual. A estrada mercado comporta um forte potencial de interveno, pelo que o seu estudo serve no s para compreende-la, como tambm para alimentar futuras propostas de interveno. Por outro lado, procura-se estudar de que modo que os tipos

2. Aprender da paisagem existente a forma de ser um arquitecto revolucionrio () de um modo distinto, mais tolerante: pondo em questo a nossa maneira de ver as coisas () Os arquitectos perderam o hbito de olhar sua volta imparcialmente, sem pretender juzos de valor. Robert Venturi, Steven Izenour e Denise Scott Brown, Aprendiendo de Las Vegas el simbolismo olvidado de la forma arquitectnica, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2004 (traduo livre) 3. Fernando Tvora, Da organizao do espao, Publicaes FAUP, Porto, 1999

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arquitectnicos excepcionais so responsveis pelo novo formato de cidade, que novidades trazem estes programas disciplina da arquitectura e de que maneira podem ser geradores de alguma urbanidade. A compreenso do fenmeno edifcio montra implica o estudo da arquitectura da cidade difusa em geral, levantando algumas questes: que influncia tem a cidade difusa na arquitectura? H uma arquitectura prpria desta? Que implicaes tem este modelo urbano no modo de fazer arquitectura contempornea e de que maneira isto pode implicar consideraes no mtodo projectual? Isto , de que forma pode a arquitectura responder a este contexto diferente a uma envolvente no s hbrida, mas em constante mutao?

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1. CIDADE CONTEMPORNEAPassmos da era industrial era digital. Na era da globalizao, da liberalizao e abertura dos mercados, da informao e do marketing, as novas formas de vida e de organizao econmica e social trazem inevitavelmente novas formas de organizao do espao. A comunicao global e a acelerao da mobilidade so provavelmente as marcas mais importantes na transformao das sociedades de hoje. So responsveis directos pela transformao radical das formas urbanas e revolucionaram as relaes entre as pessoas, destruindo as distncias e aproximando virtualmente os pontos no mapa. No mundo de hoje, as distncias j no se medem em metros e quilmetros mas em minutos e horas. cada vez menos importante o stio concreto onde estamos, e mais os meios de deslocao ou de comunicao a que temos acesso. Toda esta revoluo tecnolgica vai ter efeitos importantes na forma de organizao dos espaos urbanos. Assistimos a uma transformao urbana historicamente indita. A relativizao do lugar geogrfico e a crescente urbanizao do mundo fazem com que a cidade esteja em todo lado. Depois de sculos de xodos rurais para as cidades, d-se uma transformao que inverte o ciclo. a cidade que vai ao campo. As cidades comeam por crescer para fora dos antigos e estabelecidos limites. Dse a chamada exploso das cidades. Propagando-se de forma espontnea pelo espao circundante e pelas suas vias de acesso, elas vo ocupando cada vez mais territrio at se unirem em conurbaes que se vo tornando cada vez maiores. Perde-se a noo de limite aparecem os chamados territrios de urbanizao difusa. E, da cidade que cresce inicialmente por continuidade, em substituio ao campo passamos uma urbanizao de outros territrios, como o caso dos territrios rurais, j

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no por substituio, mas por mutao. Mantendo-se virgens por sculos, ou numa ocupao rural dispersa que servia especialmente o sector primrio, estas reas vo rapidamente industrializar-se e transformar-se tambm elas em espaos urbanos, se bem que de outro tipo. E a velha estrutura rural passa a servir uma funo completamente diferente. Esta cidade que se forma nem cidade como a conhecemos, nem campo: um novo tipo de espao. Uma cidade difusa, expandida, alargada. Que no foi feita do nada, mas que o resultado da urbanizao do campo e da expanso da outra cidade, e que mistura os velhos hbitos seculares e tipos rurais com as particularidades mais recentes do mundo ps-industrial. Esta mistura cria um novo estado que no j nem uma coisa nem outra. um modelo diferente. A cidade foi ao campo, e este acontecimento irreversvel. Nunca mais teremos os estados anteriores: sem dvida que a urbanizao no contnua e que pde e poder conhecer pausas e retomas. No entanto, no existe exemplo histrico de sociedades ou de civilizaes que tenham sobrevivido a uma desurbanizao.4

1.1 Sociedade: globalizao e informaoA globalizao, a informatizao da sociedade, a revoluo tecnolgica e a economia neoliberal caracterizam o mundo de hoje. Os sistemas econmicos tornaramse mais complexos e especializados, numa continuada diviso do trabalho (iniciada no passado), as actividades fragmentaram-se, dispersaram-se e as sociedades tambm se complexificaram. Hoje comunica-se muito mais, viaja-se muito mais. Vivemos numa sociedade da informao e numa sociedade da imagem. Nunca a imagem foi to importante como hoje no dia-a-dia das pessoas. Jornais, Revistas, Outdoors, Fotografia, Televiso, Internet, Videojogos, Telemveis. A imagem uma constante da vida contempornea, ela est em todo lado. E o excesso de imagem e a abundncia de comunicao podem provocar entropia a no comunicao. O exagero de comunicao pode servir para no comunicar. Segundo Baudrillard5 vivemos tambm na sociedade da simulao. Atravs da alienao causada pelas inmeras formas dos media, a realidade virtual est sempre presente na vida quotidiana con-

4. Franois Ascher, Metapolis Acerca do futuro da cidade, Celta Editora, Oeiras, 1998 5. Jean Baudrillard, Simulacros e simulao, Relgio dgua, Lisboa, 1991 1 Edio 1981

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tempornea. Em contacto com esta realidade no experimentamos o real mas o virtual, o simulacro, aquilo a que ele chama o hiper-real. Na hiper-realidade vivemos de certa forma alienados pelo consumo e pela publicidade. Numa etapa de capitalismo avanado e de liberalismo econmico, a sociedade torna-se cada vez mais numa sociedade do consumo. A seduo da publicidade cada vez mais forte e violenta. Na sociedade contempornea imperativo consumir. O consumo no advm de uma determinada necessidade, passa a ser necessidade e, de certa forma, condio de felicidade. Vivemos assim tambm, segundo Guy Debord6, na sociedade do espectculo, onde os media cumprem o seu papel alienador. A sociedade do consumo tem como materializao espacial urbana uma srie de diferentes edifcios comerciais, sendo as catedrais contemporneas os shoppings. cones da era, homenagens ao consumo, fascinam e atraem para ele. A diversidade e originalidade de produtos, as cores, as imagens, a publicidade, exercem poder sobre as pessoas, atraindo e alienando. Como uma crena, consumir torna-se no s uma condio de felicidade como de aceitao social, sendo quase impossvel viver sem consumir. O consumo j no segue as necessidades, ou pelo menos as mesmas de antes, (pois at aquilo que uma necessidade algo de difcil definio). Consumir torna-se uma necessidade. Os shoppings, hipermercados, grandes armazns, lojas especializadas, e outro tipo de equipamentos comerciais concentrados tornam-se assim, necessariamente os novos espaos pblicos, neste caso colectivos, uma vez que so de propriedade privada, apesar de serem de uso pblico. O individualismo e a competitividade so explcitos nas novas formas de vida urbana a imensa procura pela habitao de tipo unifamiliar isolada e a fuga a modelos de vida mais colectiva e partilhada com os vizinhos. Os novos modos de vida, e sobretudo a sua diversidade (so disto exemplo os novos tipos de famlia), so caractersticas fundamentais da cidade hoje. Actualmente as relaes sociais so feitas por razes de interesses comuns e no de vizinhana ou proximidade geogrfica. A populao das cidades j no a mesma:

6. Guy Debord, A sociedade do espectculo, Contraponto, 2004 1 Edio 1967

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A cidade est cada vez menos habitada por uma populao homognea e estvel que nasce e morre nela, e cada vez mais por uma populao instvel e com razes culturais diversas e distantes: invadem-na grupos nmadas, como por exemplo os turistas nas suas diferentes categorias, uns grupos que adaptam o seu ciclo de vida e as suas exigncias ao lugar de residncia. Desta maneira, em toda a Europa foram criadas imensas reas de negcios, bairros com conotao tnica, cidades de cio ou, nas regies favorecidas por climas temperados, imensas reas geritricas. Do mesmo modo, muitas cidades antigas foram transformadas em grandes parques temticos.7

1.2 Cidade: disperso e compressoA abertura dos pases aos mercados globais e informao planetria, ter comeado embrionariamente com os Descobrimentos e o conhecimento do novo mundo, o incio das trocas comerciais a nvel mundial, o fim do modelo feudal e o incio do capitalismo comercial. Esta alterao de paradigma tem impacto na transformao das cidades, sobretudo a partir da dcada de 50 do sculo XIX. , sobretudo, graas Revoluo Industrial que comea a acontecer a transformao do espao urbano que ainda hoje se processa. A tcnica tem um papel preponderante nesta transformao, tendo, segundo Franoise Choay8, essencialmente trs elementos principais: a construo (com os novos materiais - ferro, beto e vidro que permite a industrializao do edifcio que estandardiza o marco edificado e favorece no s o crescimento da periferia da cidade, como supe uma ocupao difusa do territrio inteiro disponvel para a construo); os transportes (aparecimento do comboio, em seguida o elctrico e o metro, e mais tarde o aparecimento do automvel que devolveu s redes virias o papel perdido na expanso das cidades e incrementou ainda mais a mobilidade geral, enquanto que a aeronutica contribua para fixar os grandes ns urbanos); e as telecomunicaes (telgrafo, rdio, telefone, internet que multiplicaram directamente os intercmbios de informao entre os cidados, estendendo o seu campo de aco, transformando a sua experincia do espao e do tempo e, com isso, a estrutura dos seus comportamentos). Finalmente caem as muralhas medie-

7. Bernardo Sechi, La cuidad contempornea y su proyecto, in AAVV, Planeamiento urbanstico de la controversia a la renovacin, Deputaci Barcelona, Barcelona, 2003 (traduo livre) 8. Franoise Choay, El reino de lo urbano y la muerte de la ciudad, in AAVV, Lo urbano : en 20 autores contemporneos, Ediciones UPC, Barcelona, 2004 1 Edio 1994 (traduo livre)

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vais, as cidades abrem-se e crescem: a cidade tradicional estalava debaixo da presso demogrfica e as parcelas sem fim dos subrbios londinenses simbolizavam a expanso selvagem da cidade.9 Cerd, Wagner e Haussman, salvas as diferenas, procuram higienizar as cidades tradicionais, mas tambm abri-las, rasg-las, romper o isolamento dos bairros, fazer comunicar pontos-chave da cidade, procurando conect-la com o resto do territrio. Procuram relacionar o centro histrico, livre das muralhas, com o resto da cidade que se est a expandir. Contriburam assim para o incio do crescimento alm limites das cidades na poca. interessante que j Cerd previa aquelas que viriam a ser as grandes transformaes caractersticas da cidade contempornea: Os rasgos distintivos da nova civilizao so o movimento e a comunicao e a cidade no mais que uma espcie de estao, ou de um eixo do grande sistema virio universal10. Outras ideias anunciavam tambm a previsvel desconstruo da cidade tradicional, dentro da convico de Cerd de que a comunicao em todas as suas formas seria o futuro do mundo e de que a cidade iria fazer parte de uma rede universal. A cidade linear, defendida por Soria y Mata e tambm pelos desurbanistas soviticos, tenta precisamente responder ao novo contexto em que as comunicaes e o transporte, assim como a expanso indefinida das cidades comeam a revolucionar o espao urbano. Soria imagina uma cidade linear contnua de Cdiz a So Petersburgo e pe pela primeira vez a questo do assentamento humano escala mundial. Tambm a Ville Radieuse de Le Corbusier se apresenta (numa viso mais utpica) como a desconstruo das anteriores formas de cidade contnua, sendo que o Movimento Moderno concede tambm um privilgio exclusivo escala territorial quando trata a cidade. Segundo Nuno Portas, o planeamento e a arquitectura deste perodo foram, de alguma forma o pivot nesta mudana de paradigma na cidade11.

9. Franoise Choay, El reino de lo urbano y la muerte de la ciudad, in AAVV, Lo urbano : en 20 autores contemporneos, Ediciones UPC, Barcelona, 2004 1 Edio 1994 (traduo livre) 10. Ildefonso Cerd, citado por Franoise Choay em El reino de lo urbano y la muerte de la ciudad, in AAVV, Lo urbano : en 20 autores contemporneos, Ediciones UPC, Barcelona, 2004 (traduo livre) 11. Nuno Portas, Ciudad contempornea y gobernabilidad, in Lo urbano : en 20 autores contemporneos, ngel Martn Ramos, Barcelona, 2004 (traduo livre)

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H, apesar de tudo, ideias de contraponto, e reaco, sobretudo em relao desagregao das cidades, como sejam as pequenas cidades de periferia para a populao trabalhadora, de Bruno Taut, ou mesmo a ideia de cidade-jardim de Ebenezer Howard. Esta, que Le Corbusier considerava como o extremo oposto da sua Cidade Radiante, responde exploso das cidades europeias com um processo de reconstruo. Procura, ao mesmo tempo preservar a cidade e o campo, procurando que se complementem em defesa da qualidade de vida, considerando a disseminao das construes de alto risco social e cultural. Segundo Choay remete para a ruralidade da cidade medieval. A referida desagregao no entanto, deu-se. E as cidades explodiram. Hoje, assistimos a dois tipos de fenmenos, no que toca forma de implantao dos conjuntos urbanos a compresso e a disperso:Por um lado, uma tendncia concentrao focaliza os fluxos humanos em direco aos plos de atraco que continuam a ser as metrpoles nacionais e regionais, mas as actividades instalam-se nas periferias cada vez mais amplamente irradiadas, cuja expanso, ligada saturao progressiva das redes de servios, coincide com o despovoamento geral e progressivo do centro e dos ncleos urbanos histricos. Por outro lado, uma tendncia disperso provoca uma desconcentrao que pode ser linear ou pontual.12

Esta uma das mais importantes caractersticas da cidade contempornea. Ao mesmo tempo que as cidades crescem de forma difusa sobre espaos rurais e florestais, transformando-os em territrios mistos e unindo-se em conurbaes, d-se o fenmeno contrrio, ou seja, o chamado retorno ao centro. Os antigos centros urbanos, normalmente denominados de centros histricos que at agora estavam em declnio so cada vez mais procurados (ainda que por outra tipologia social) e adquirem um prestgio nico, fruto tambm, da crescente valorizao do patrimnio e do aparecimento do chamado turismo cultural. D-se assim um processo de gentrificao dos centros urbanos tradicionais que se transformam em espaos comerciais, de lazer, tursticos, de hotelaria e habitao das classes mais elevadas, completamente

12. Franoise Choay, El reino de lo urbano y la muerte de la ciudad, in AAVV, Lo urbano : en 20 autores contemporneos, Ediciones UPC, Barcelona, 2004 1 Edio 1994 (traduo livre)

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Fig. 1 Os dois modelos de funcionamento da cidade: rede christalleriana (em cima) e rede em hubs e spokes (em baixo)

distintos do que foram. Ao mesmo tempo crescem os territrios perifricos, extraurbanos, periurbanos, rururbanos, etc., produtos da exploso das cidades, possveis por que se acentua a utilizao do automvel individual. Com este processo d-se uma das maiores transformaes j ocorridas nas cidades at ento: as cidades que eram at aqui monocntricas, com um centro mais ou menos definido rodeadas por uma periferia, passam a policntricas, e zonas anteriormente perifricas ganham conotaes de centralidade. A cidade contempornea , assim, um conjunto de condensaes pontuais, de polaridades, organizadas em rede. Com a globalizao das economias surgem tambm as cidades globais, as chamadas megacities, termo utilizado no incio do sculo por P. Geddes, e mais recentemente por Peter Hall para designar as grandes cidades de carcter metropolitano ligadas globalmente ao mundo. Segundo Franois Ascher13, passmos da fase da metropolizao fase da metapolizao: as metrpoles evoluem para outro estado a que ele chama a metpolis. Aqui j no existe o tradicional centro rodeado por uma periferia cada vez mais complexa, mas um sistema urbano em rede, que funciona em rede com outros sistemas semelhantes tambm escala global num sistema nico de cidade global. Passa-se do modelo christalleriano (em que as cidades se relacionam por uma hierarquia em funo da dimenso) ao sistema metapolitano onde s as cidades maiores mantm relaes directas entre elas, estando as mais pequenas apenas ligadas s principais (Fig. 1). Os meios de transporte e comunicao fazem com que isto seja possvel, originando um aumento brutal da mobilidade sobretudo no interior das grandes cidades, e um pouco por todo o territrio; fomentando o zapping urbano14 como condio ptima de usufruto das possibilidades da conurbao alargada15. O automvel individual ganha uma importncia crescente no funcionamento das cidades contemporneas. O aumento da mobilidade tem tambm efeitos de segregao social, dividindo a populao em hipermveis (aqueles que se deslocam facilmente tendo

13. Franois Ascher, Metapolis Acerca do futuro da cidade, Celta Editora, Oeiras, 1998 14. CEFA, Cidade Difusa do Noroeste Peninsular, Centro de Estudos da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Porto, 2002 15. Idem, Ibidem

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acesso aos meios de transporte colectivos e individuais) e sedentrios fora16 (aqueles que no tm acesso aos meios de transporte). A crise do espao pblico tradicional consequncia do modo de viver contemporneo da crescente mobilidade, e do policentrismo que ao descentralizar as cidades, acaba com a tradicional concentrao das pessoas nos centros e nos seus espaos pblicos:A mobilidade individual crescente, a multiplicao e especializao de novas centralidades e a fora das distncias que parece querer impor-se inteno de dar continuidade formal e simblica aos espaos pblicos concorrem para a construo de um territrio onde a crise do espao pblico bem patente.17

Bernardo Sechi18 defende que a cidade contempornea feita de rupturas e de fragmentos, por contraponto cidade antiga e cidade moderna que eram feitas por continuidade. consensual que a cidade contempornea atingiu, acima de tudo, uma complexidade indita, e uma forma de organizao aparentemente catica. Segundo Choay, no existe modelo, sequer dissipador, que aclare a flutuao e as incertezas inerentes aos novos estilos de povoamento. 19 Interpretar esta espcie de caos organizado no fcil, e muito menos unvoco. Vrias so as opinies acerca deste tema. Rem Koolhas20 defende que a cidade contempornea cresce de uma forma genrica, sempre igual e sem identidade prpria. Sol Morales21 (tendo como exemplo a cidade mediterrnea) rejeita qualquer modelo de metrpole universal, pois defende que a exploso da cidade e a formao das cidades globais no implica a perda de caractersticas prprias de cada regio. Os sistemas urbanos que formam as cidades contemporneas, engolem e misturam, justapem e complexificam. Cidade e campo, habitao e indstria, infra-estruturas e monumentos, praia e montanhas, tudo faz

16. Franois Ascher, Metapolis Acerca do futuro da cidade, Celta Editora, Oeiras, 1998 17. Jordi Borja, El espacio publico: ciudad y ciudadana, Electa, Barcelona, 2003 (traduo livre) 18. Bernardo Sechi, Ciudad moderna, cuidad contempornea y sus futuros, in AAVV, Lo urbano: en 20 autores contemporneos, ngel Martn Ramos, Barcelona, 2004 (traduo livre) 19. Franoise Choay, El reino de lo urbano y la muerte de la ciudad, in AAVV, Lo urbano : en 20 autores contemporneos, Ediciones UPC, Barcelona, 2004 1 Edio 1994 (traduo livre) 20. Rem Koolhas, La ciudad genrica,in AAVV, Lo urbano : en 20 autores contemporneos, Ediciones UPC, Barcelona, 2004 (traduo livre) 21. Manuel de Sol-Morales, Contra el modelo de metrpolis universal, in AAVV, Lo urbano : en 20 autores contemporneos, Ediciones UPC, Barcelona, 2004 (traduo livre)

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parte da mesma realidade. No h fronteiras, nem mesmo dos pases. As urbes funcionam hoje, sobretudo, em rede e interdependncia destinando s antigas cidades apenas uma fraco do novo tecido urbano. A cidade espartilhou-se, deixando de ser um elemento produtor de sentido, dotado de unidade e lgica:A cidade-ponto (o territrio compacto, com limites reconhecveis, distintos e envolvente rural) transformou-se no urbano-superfcie, um mosaico complexo de padres de urbanizao que contm a cidade cannica, mas que sobretudo, se declina numa infinitude de morfologias urbanas onde convivem novas e velhas formas de aglomerao e disperso.22

O espao urbano contemporneo heterogneo pela abundncia de opes, possibilidades e modos de vida. Explicar a cidade contempornea atravs dos tradicionais mtodos de estudo torna-se assim complicado. difcil usar critrios simples para explicar e regulamentar um fenmeno to complexo e engendrado por tantos actores diferentes. A divergncia de interesses destes agentes transformou a planificao urbana rgida em um conjunto de intenes a negociar no sentido de conciliar o poder poltico, os interesses econmicos e as aspiraes dos cidados.

22. lvaro Domingues e Lus Pedro Silva, Formas recentes de urbanizao no Norte Litoral, in Sociedade e territrio 20 anos de Actualidade, Junho de 2004

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2. CIDADE DIFUSA2.1 Disperso Urbana no contexto das dinmicas de disperso/concentrao e de aumento de mobilidade da cidade contempornea que surge o fenmeno de difuso territorial e organizao urbana a que se chamou cidade difusa. O termo sugerido por Francesco Indovina23 ao estudar e interpretar as transformaes urbanas e a organizao do territrio da regio italiana de Veneto. Neste estudo procura sistematizar algumas caractersticas generalizveis ao resto do pas e mesmo a outros pases. Como diz Franoise Choay24, a Europa hoje triunfalmente urbana. Isto significa que as cidades cresceram para fora dos seus limites tradicionais, expandiram-se, explodiram: O espao rural e as populaes rurais reduzem-se dia a dia, ao mesmo tempo que se multiplica o nmero de megalpolis, conurbaes, comunidades urbanas, tecnpolis e plos tecnolgicos. Esta conquista do urbano sobre o rural caracterstica da reconfigurao do espao europeu (e no s) a partir da Revoluo Industrial, e reflecte-se em Portugal sobretudo nas ltimas dcadas. Traduz-se em formas de urbanizao complexas e diferenciadas, mas de forma geral dispersas, estendidas ou difusas. Ou seja, a cidade ou o urbano crescem sobre o campo, no se substituindo a

23. Francesco Indovina, La ciudad difusa, in AAVV, Lo urbano : en 20 autores contemporneos, Ediciones UPC, Barcelona, 2004 (traduo livre) 1 Edio 1990 24. Franoise Choay, El reino de lo urbano y la muerte de la ciudad, in AAVV, Lo urbano : en 20 autores contemporneos, Ediciones UPC, Barcelona, 2004 1 Edio 1994 (traduo livre)

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ele, mas interpenetrando-o, vivendo em coexistncia. Criam-se territrios mistos, uma nova forma de urbanizao difcil de definir ou catalogar mas que genericamente podemos intitular de cidade difusa. D-se a mutao no sentido da extino da dicotomia cidade-campo dois conceitos que, lgica e fenomenologicamente, existiam um para o outro.25 Sprawl26, cidade difusa, territrio urbano, urbanizao difusa, cidade alargada, cidade dispersa, so s alguns dos inmeros termos usados para definir a cidade nova. S no livro Ville Emergente so referidas seis definies diferentes para as quais se encontram vrios sinnimos: 1. Ville-Mobile; 2 Ville-Terriroire: ou Ville illimite; Ville-pays; Ville-archipel; Rgion urbaine; Ville rgion; Ville diffuse; Ville tale ; 3. Ville-Nature: ou Ville-campagne; Nature-ville; Campagne-ville; 4. VillePolycentrique ; 5. Ville au choix : Ville la carte; Ville pas points; Ville de la multiappartenance; Ville clate; 6. Ville-vide 27. Sendo que as definies so inmeras, e com significados que variam consoante os autores, adoptaremos daqui para a frente e de uma forma genrica o termo cidade difusa. Este o mais utilizado para designar o fenmeno de expanso urbana atravs de processos de difuso (que podem ter as mais diversas expresses), em contraponto cidade compacta tradicional. Note-se que o termo cidade difusa tambm pode ser usado, incluindo na sua definio a cidade contempornea como um todo, ou seja, englobando as cidades compactas, ou ncleos de cidade tradicional que existem dentro dela. No , no entanto, esse, o uso que faremos do termo nos captulos seguintes. Ser, ento, utilizado, para distinguir, de uma forma genrica, aquilo que histrica e universalmente apelidmos de cidade, dos novos fenmenos urbanos da cidade emergente:

25. Franoise Choay, El reino de lo urbano y la muerte de la ciudad, in AAVV, Lo urbano : en 20 autores contemporneos, Ediciones UPC, Barcelona, 2004 1 Edio 1994 (traduo livre) 26. Sprawl, palavra introduzida nos EUA nos anos 60 para designar o crescimento urbano sem forma, significa, literalmente espalhar(-se), estender. No existe palavra equivalente na linguagem europeia. Periferia, periurbano, conurbao, nebulosa urbana, exurbia, ou cidade difusa so tudo palavras e conceitos para descrever um facto geogrfico que se tem repetido de modos diversos, como no sprawl americano. um fenmeno que se verifica volta da cidade, entre as cidades, e tambm dentro das cidades. () Mas o sprawl possui tambm razes antropolgicas. O mundo cvico da praa foi abandonado porque se vive e se trabalha algures. Os valores da polis, monumentalizados nas formas urbanas dos centros histricos, no se reproduziram fora do centro onde tudo parece terra de ningum: o terreno mais barato, as taxas mais baixas, mais cmodo o uso do automvel, existem menos vnculos urbansticos, torna-se real o desejo de viver junto ao verde. Richard Ingersoll, Sprawltown, citado por lvaro Domingues em Cidade e democracia: 30 anos de transformao urbana em Portugal, Argumentum, Lisboa, 2006 27. Genevive Dubois-Taine e Yves Chalas, La Ville emergente, citados por Lus Pedro Silva em Formas da cidade difusa Investigao efectuada no Espao Urbano do Porto, FAUP/FEUP, Porto 1998

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Estendida, difusa, dispersa so s alguns dos adjectivos utilizados para exprimir a dilatao fsica do espao urbanizado no qual as construes singulares so referidas a unidades elementares dispersas no territrio. A cidade assume uma configurao contnua, sem incio nem fim, uma indefinida extenso dos edifcios nos quais se fixa, traduzindo-se em formas recorrentes, os costumes da vida contempornea, as exigncias de espao apropriado para a residncia, para a produo e o comrcio, para o divertimento. 28

Apesar das imensas tentativas de definio e de terem surgido um conjunto de conceitos e designaes, h algo em comum entre todos: os complexos processos de urbanizao actuais transformam a antiga tipologia de cidades fechadas (opostas ao campo), em algo novo: um territrio nico, mais ou menos urbanizado, onde as dicotomias campo-cidade e rural-urbano se tornaram obsoletas. Foi para as cidades que se efectuou o xodo rural (em busca de melhores condies de vida), permitindo o seu crescimento e desenvolvimento. O campo, cuja definio pode ir, segundo Raymond Williams, desde a paz, inocncia e virtudes ao simples atraso, ignorncia e limitao29, poder estar-se a tornar, segundo Michel Corajoud, no monumento das cidades contemporneas30. Para Raymond Williams, a cidade pode ser centro de saberes, comunicaes e luz, ou ento, barulho e ambio31. Diagnosticar os actuais territrios de urbanizao difusa com os instrumentos tradicionais , assim, muito difcil. A paisagem mosaico torna imprecisos alguns conceitos pois mistura e metamorfoseia, criando um novo tipo de espao, um tipo hbrido. O que hoje, cidade e campo e o que urbano e rural?

28. Luigi Coccia, OuGM, Organismi urbani Geneticamente Modificati, in CAO, Umberto, COCCIA, Luigi (coord.), Polveri Urbane, Meltemi Babele, Roma 2003 (traduo livre) 29. Raymond Williams, O campo e a cidade na histria e na literatura, Companhia das Letras, So Paulo, 1989 30. lvaro Domingues, Paisagens rurais em Portugal: algumas razes da polmica in Faculdade de Letras Geografia, Universidade do Porto, Porto, 2003 31. Williams, op. cit.

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H muito que a cidade deixou de se distinguir do campo pela fronteira das suas muralhas, pelo limiar dos seus arrabaldes, pela distino diversificada e concentracionria do seu espao, em antagonismo com o territrio envolvente.32 oposio urbano/rural, substitui-se um modelo hbrido para o qual necessrio encontrar uma identificao positiva que diferente da paisagem urbana convencional.33

Podemos talvez encontrar, no uma distino clara, mas uma espcie de gradao tonal que define aquilo que mais ou menos urbano e mais ou menos rural. Isto , revela a maior ou menor semelhana s tradicionais imagens da cidade ou do campo (embora sempre com hibridez). Enquanto fenmeno complexo, a cidade difusa alvo de inmeras interpretaes, como a de Franoise Choay34, que considera estarmos a assistir a uma morte da cidade e que advoga a passagem da cidade para o urbano. O desmantelamento do tradicional elo entre urbs e civitas defendido no seu texto O reino do urbano e a morte da cidade:No ter chegado ento o momento de admitir, sem sentimentalismos, o desaparecimento da cidade tradicional e de perguntar sobre o que a h substitudo, isto , sobre a natureza da urbanizao e sobre a no-cidade que parece ter-se convertido no destino das sociedades ocidentais avanadas?

D-se assim uma espcie de deslocalizao e descentralizao da cidade, onde o stio ou espao especfico no j importante. Onde aquilo a que, de forma simplificada e imprecisa, chamamos urbano pode surgir em qualquer lado: a cidade como um objecto ou produto e o urbano como condio e estilo de vida e apropriao do espao. O que significa que o urbano se diversificou e generalizou, rompendo os limites tradicionais da cidade cultural 35

32. Miguel Melo Bandeira, A oposio cidade campo: uma quase memria ou tnue realidade?!, in AAVV, Cadernos do Noroeste, vol.7(2), Centro de Cincias Histricas e Sociais da Universidade do Minho, Braga, 1994 33. Joo Cabral, lvaro Domingues e Nuno Portas, Polticas Urbanas: tendncias estratgias e oportunidades, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2003 34. Franoise Choay, El reino de lo urbano y la muerte de la ciudad, in AAVV, Lo urbano : en 20 autores contemporneos, Ediciones UPC, Barcelona, 2004 1 Edio 1994 (traduo livre) 35. Nuno Portas, Cuidad contempornea y gobernabilidad, in AAVV, Planeamiento urbanstico de la controversia a la renovacin, Deputaci Barcelona, Barcelona, 2003 (traduo livre)

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Francesco Indovina tem uma viso particular sobre este fenmeno. Defende uma evoluo daquilo a que ele apelida urbanizao difusa (fase primria da difuso urbana) para o que considera uma outra estrutura a cidade difusa. Argumenta que nos encontramos face a um fenmeno novo. O termo cidade difusa usado com mais preciso para caracterizar aquilo que insiste ser recorrente na organizao do espao do seu pas (Itlia). Afirma que tem algumas parecenas com os subrbios norte-americanos. Defende mesmo que esta pode ser considerada a resposta italiana ou europeia ao contexto que no continente americano deu lugar aquela forma de organizao do espao:Enfrentamos algo distinto da precedente estrutura territorial e os conceitos elaborados antes no parecem hoje satisfatrios. Se anteriormente o adjectivo difuso qualificava a urbanizao (urbanizao difusa), hoje necessrio encontrar uma nova terminologia; numa primeira tentativa definimos esta nova estrutura territorial como cidade difusa. () Em certo sentido a cidade difusa tem s suas costas a urbanizao difusa, mas os dois fenmenos apresentam-se completamente distintos, tanto no marco territorial como no mbito econmico social, e constituem estados distintos de organizao do espao, como consequncia da reorganizao dos processos socioeconmicos.36

Bernardo Sechi37 entende a cidade difusa como o extremo oposto s megacities, sendo estas as duas formas paradigmticas da cidade contempornea. Constituem-se como duas modalidades de ocupao e uso do espao s quais correspondem diferentes modos de vida, actividades e formaes sociais, no se contrapondo, mas entrecruzando-se, sobrepondo-se mutuamente. So lugares que abarcam duas culturas distintas que se complementam parcialmente. As metforas utilizadas para definir os tipos de cidade, procuram reflectir este tipo de fenmenos. Luigi Coccia utiliza o termo Polvori Urbane38, ou seja, p urbano, para caracterizar a implantao difusa dos edifcios num vasto territrio (O

36. Francesco Indovina, La ciudad difusa, in Lo urbano : en 20 autores contemporneos, ngel Martn Ramos, Barcelona, 2004 1 Edio 1990 (traduo livre) 37. Bernardo Sechi, La cuidad contempornea y su proyecto, in AAVV, Planeamiento urbanstico de la controversia a la renovacin, Deputaci Barcelona, Barcelona, 2003 (traduo livre) 38. Luigi Coccia, OuGM, Organismi urbani Geneticamente Modificati, in CAO, Umberto, COCCIA, Luigi (coord.), Polveri Urbane, Meltemi Babele, Roma 2003 (traduo livre)

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territrio edificado, observado a grande distncia, aparece assim como uma grande superfcie disseminada de infinitos minsculos corpos, poeiras urbanas depositadas na crosta terrestre). Nuno Portas39 chama ilha cidade do passado e arquiplago ou nebulosa cidade contempornea. Refere tambm os conceitos de sistema ou de hipertexto: Por isso alguns tericos falam da metfora do hipertexto (em vez de falar de sistema) restituindo a complexidade que antes se mantinha reduzida a simples nveis temticos de uma anlise funcional sectorizada.40 O territrio lido como hipertexto parte da analogia entre a cidade contempornea e o funcionamento deste tipo de estrutura, onde no h incio nem fim, no h uma sucesso nica de acontecimentos, onde os elementos se organizam em rede, mas sem haver necessariamente hierarquias ou sequncias predeterminadas. Isto d a cada um (tal como os sistemas de navegao world wide web), a capacidade de escolher como que quer utilizar os espaos (quais, quando e por que ordem), de uma forma totalmente interactiva, pessoal e nica. Ou seja, os elementos no se organizam de uma forma explcita ou contnua no territrio, pois so usados de forma alternada e descontnua. Acabando com as hierarquias clssicas e com o sistema de lugares centrais, a utilizao do espao aparece, assim, descentralizada, espontnea e difusa. Isto explica a passagem do sistema de mobilidades pendulares programvel e previsvel (da antiga metrpole centralizada) ao sistema de mobilidades espontneo e imprevisvel (das metpoles actuais). O efeito tnel, referido por Ascher41, algo que se verifica escala mundial (atravs, sobretudo das viagens areas e ferrovirias de alta velocidade) mas tambm escala urbana, na cidade difusa e na cidade compacta. Relaciona-se, sobretudo, com as possibilidades trazidas pelas novas tecnologias de mobilidade, e, portanto, com uma nova forma de viver a cidade. Sente-se mais na cidade difusa, onde os transportes (sobretudo o automvel individual) so mais utilizados, as vias mais rpidas e as actividades mais espalhadas no espao, embora tambm exista na forma contempornea de viver as cidades antigas. Graas s novas formas de cidade, mas tambm s

39. Nuno Portas, Cuidad contempornea y gobernabilidad, in AAVV, Planeamiento urbanstico de la controversia a la renovacin, Deputaci Barcelona, Barcelona, 2003 (traduo livre) 40. Idem, Ibidem 41. Franois Ascher, Metapolis Acerca do futuro da cidade, Celta Editora, Oeiras, 1998

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novas formas de vida, o espao j no contnuo mas descontnuo, ou pelo menos, a forma de o viver e percepcionar. A orientao no espao urbano faz-se menos em funo das distncias e da orientao cardial e mais subordinada ao tempo e s condies especficas de acesso. Isto permite que o espao seja do tipo policntrico em vez de monocntrico. Emergem pontos essenciais e centrais de grande importncia e acessibilidade, em detrimento de outros que pela sua condio de marginalidade aos sistemas de transporte se tornam intersticiais e secundrios. Que razes levaram aos fenmenos de difuso urbana? Esta uma questo complexa e que ainda causa alguma discusso. Foi o avano tecnolgico na rea das comunicaes e transportes a causa ou ter sido apenas aquilo que permitiu? Secchi defende que as dinmicas sociais impeliram o progresso tecnolgico. Como tal, a difuso urbana tambm fruto da vontade humana e surge por uma procura de uma distncia correcta entre as pessoas:A minha ideia , portanto, que a fragmentao e a disperso da cidade, mais que ao progresso da tcnica da mobilidade urbana se h de atribuir a uma nova busca da distncia justa e que esta busca h de ser correctamente interpretada pelo projecto da cidade contempornea () Provavelmente para muitos indivduos e grupos sociais, a cidade antiga e a cidade moderna no consentem uma distncia entre eles e os seus vizinhos; a disperso converte-se na oportunidade para dar um espao cada vez maior aos aspectos privados da existncia () 42

A cidade difusa no , segundo o autor, fruto exclusivo do desenvolvimento de uma srie de tcnicas de mobilidade, ela simultaneamente consequncia de uma inteno social e colectiva. resultado da tendncia para o individualismo, para a procura de um espao de liberdade, e sintomtica da crescente recusa s tpicas incomodidades da cidade compacta. O descontentamento com a cidade tradicional e com os seus transtornos rudo, stress e poluio uma das razes para a fuga da cidade, uma das causas da gnese da disperso urbana43. O sistema mtrico que rege

42. Bernardo Sechi, La cuidad contempornea y su proyecto, in AAVV, Planeamiento urbanstico de la controversia a la renovacin, Deputaci Barcelona, Barcelona, 2003 (traduo livre) 43. Francesco Indovina, La ciudad difusa, in Lo urbano : en 20 autores contemporneos, ngel Martn Ramos, Barcelona, 2004 1 Edio 1990 (traduo livre)

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a cidade actual no o social, mas, possivelmente o individual ou o familiar. O edifcio unifamiliar a sua unidade de medida. A cidade difusa apresenta-se como uma novo arqutipo urbano mais adaptada ao transporte individual, onde se podem encontrar as vantagens do campo na cidade. O crescimento deste tipo de cidade , afirma Portas44, descontnuo e qualquer esforo para reproduzir actualmente a continuidade como alternativa peca por ingenuidade:Talvez a continuidade dever ser de outro tipo, uma continuidade descontnua; uma continuidade feita de elementos virtuais ou simblicos, com as suas conexes de efeito tnel, em que por momentos se deixe de perceber o elemento de continuidade e se encontre de novo noutro ponto mais longnquo. No tempo de Cerd ainda era possvel fazer coincidir a continuidade com a similitude dos elementos fsicos (rua, quarteiro, jardim). No nosso tempo, o ensanche fragmenta-se na megalpolis e s ser reconhecvel como continuidade se mantm caractersticas do anterior mas no necessariamente mimticas.

O crescimento progressivo das cidades, transformando-as em cidades-regio ou cidades-territrio, coloca a questo dos limites histricos (mesmo as cidades ideais eram, segundo Portas, sobretudo limite). As cidades de hoje desprezam os limites, crescem e transbordam. As antigas limitaes administrativas j no fazem qualquer sentido e o sistema vigente de administrao do territrio posto em causa. A cidade difusa, como expe Portas, no tendo limites precisos funciona numa rede que tudo une e tudo inclui tem no entanto outros limites: perceptivos e ambientais. So os novos limites das cidades. No vivemos mais numa cidade, vila, campo ou regio, vivemos num nico territrio urbanizado, mais ou menos densamente. O permetro da cidade (contempornea e difusa) torna-se assim pouco relevante, esta surge por trechos, de forma descontnua e em qualquer lado. Aquilo a que chamamos hoje de urbano no algo homogneo. A cidade difusa no ento sempre cidade, no sentido de urbanidade. Pode slo ou no. Ou antes, pode ser mais ou menos cidade, se assim o podemos afirmar. Normalmente algo hbrido entre cidade e campo, um novo tipo. Tambm dentro

44. Nuno Portas, Cuidad contempornea y gobernabilidad, in AAVV, Planeamiento urbanstico de la controversia a la renovacin, Deputaci Barcelona, Barcelona, 2003 (traduo livre)

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do territrio difuso h heterogeneidades e existem troos com especial diversidade de usos ou servios. Estes tm um funcionamento mais prximo de cidade do que outros. Perante a variao de condies urbanas, complicado e at, talvez arriscado usar hoje o termo cidade para designar este tipo de espaos. Fala-se genericamente de territrio urbano, de sistema urbano, ou abreviando de urbano, uma vez que a condio de um territrio pode variar entre o rural ou natural, e a cidade compacta tradicional (passando pelos vrios estgios de transio de maior ou menor densidade e complexidade). A cidade difusa , tambm, lugar de muito maior incerteza que a cidade tradicional:A verdade que os condicionantes que podemos encontrar nas ilhas da cidade herdada so, de facto, muito mais rigorosos e portanto as solues possveis so mais provveis e tambm mais excludentes. Por outro lado, o territrio das ilhas menos estruturadas entre essas cidades apresenta-se como mais vulnervel potencialmente, mais aberto s oportunidades, mais inovador em termos tipolgicos, de escala e tambm de impactos.45

Qual o futuro da cidade difusa? sustentvel? a melhor opo a nvel ambiental? melhor concentrar as cidades para preservar o mximo de territrio virgem ou antes permitir a imergncia da cidade no campo reservando reas verdes de grandes dimenses (que permitam a preservao do ambiente e a qualificao urbanas)? At onde chegar a urbanizao no seu crescimento sobre a terra? Crescer urbanizando todo o planeta? A questo da sustentabilidade das cidades e os seus modelos ideais em relao s preocupaes com o ambiente, levantam ainda muita discusso. No est provada qual a soluo de cidade menos agressiva para o ecossistema (embora a maioria dos ambientalistas e estudiosos das questes da sustentabilidade defendam que a concentrao mxima ser, porventura, a melhor opo). Independentemente daquilo que so os melhores modelos de cidade, os imensos territrios de urbanizao difusa proliferam pelo planeta. Este um estado irreversvel. impossvel restituir estas reas, inclumes, natureza. A questo da sustentabilidade poder passar essen-

45. Nuno Portas, Cuidad contempornea y gobernabilidad, in AAVV, Planeamiento urbanstico de la controversia a la renovacin, Deputaci Barcelona, Barcelona, 2003 (traduo livre)

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cialmente pela forma de os recuperar enquanto espaos de qualidade e de convvio saudvel com a natureza, preservando aquilo que ainda existe de natural e beneficiando os espaos construdos. O crescimento da cidade difusa , sobretudo consequncia de um processo no controlado, no planeado espontneo. Pertence ao conjunto de fenmenos de crescimento urbano a que se costuma intitular genericamente de cidade espontnea ou ainda, cidade informal. Estes so termos abrangentes que no definem propriamente caractersticas particulares ou modelos. Mas ter a cidade difusa um modelo ou ser esta uma cidade sem modelo? Ser que o que a caracteriza no ter arqutipo? Segundo Portas, a cidade difusa , precisamente, o exemplo de cidade sem modelo por oposio tradicional cidade de modelos claramente estabelecidos:A cidade como modelo culturalmente reconhecido () tornou-se minoritria, ou quase, tanto em termos demogrficos, como em usos e actividades, face a outra cidade crescida sem modelo, que alguns mais cultos ou mais nostlgicos classificam inclusive como nocidade, j que no encontramos nela os sinais de um modelo; ou que outros designam de cidade genrica (ou cidade ordinria), um conceito que tambm conota a cidade sem qualidades, sem lugares nem limites e, sobretudo, sem forma culta, que para alm do mais se identifica com a cidade modelada e compacta46

O despontar de zonas urbanas por todo o territrio, leva a uma ampliao do campo de trabalho da arquitectura e do urbanismo. O espao rural pressupunha uma ocupao do territrio mais ou menos espontnea, determinada sobretudo pelas necessidades bsicas de vida. Transformado em territrio urbano difuso, agora parte da cidade espao urbano e portanto, objecto de desenho e de planeamento. Esta viso da cidade enquanto territrio, ou antes, do territrio enquanto cidade (j que tudo deve ser pensado e desenhado tal como na cidade), relaciona-se com a descentralizao em sistemas polinucleados. uma viso menos centralista e menos fechada da cidade e da sociedade em geral. Sendo que a distino entre cidade e campo se dilui no conceito de territrio, aquele que era o campo de trabalho do urbanismo e do planeamento as cidades alarga-se. Todo o territrio passvel de

46. Nuno Portas, Cuidad contempornea y gobernabilidad, in AAVV, Planeamiento urbanstico de la controversia a la renovacin, Deputaci Barcelona, Barcelona, 2003 (traduo livre)

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ser planeado, desenhado, estruturado, organizado, excepo das grandes reservas e dos outros espaos naturais ou agrcolas que sero salvaguardados. Ou seja, a urbanizao que era excepo num territrio livre mais ou menos natural (selvagem ou cultivado), passa a ser a regra (que se materializa em cidades compactas, terrenos de urbanizao difusa ou infra-estruturas de transporte de bens ou pessoas que rasgam o territrio), e o terreno virgem a excepo a preservar:A ideia de cidade delimitada, compacta e homognea, isolada no espao rural so hoje contrapostas ideias como as da cidade difusa, cidade emergente, Metapolis, campo urbanizado. E s teses de contradio cidade-campo sucedem as teses de que tudo urbano e de que as cidades so sistemas distendidos, descontnuos e fragmentados, cada vez mas entrosados com espaos agrcolas e naturais, formando regies urbanas complexas.47

E assim, neste imenso territrio misto, que devero ser aplicadas as teorias urbanas, ou seja, as reflexes que at aqui se debruavam sobre a cidade devem passar a incluir as novas consideraes sobre o territrio em geral. O espao pblico, que se diz estar hoje em crise, com a exploso das cidades e a separao do edificado das vias, outra questo importante que se coloca na cidade contempornea, sobretudo, na cidade difusa (onde este parece no existir). O que o espao pblico na cidade difusa? Quais os seus tipos? Na cidade acelerada e alargada, no existem praas, largos, ou outro tipo de estruturas tradicionais de espao pblico esttico, e s ruas (aqui constantemente confundidas com estradas) no dado o uso tradicional. O espao usado como pblico aparece-nos frequentemente disfarado, sendo na verdade espao privado de uso colectivo. So exemplo os equipamentos culturais, desportivos e comerciais. Surgem tambm alguns espaos como parques ou corredores verdes, mas o que existe essencialmente estrada, berma de estrada, ou espao sobrante, intersticial, sem programa nem desenho. Os terrenos vazios (terrains vagues ou amnsias urbanas, segundo F. Caresi) tornam-se consequentemente elementos fundamentais de reflexo para a urbanstica. So fruto de ausn-

47. Antnio Fonseca Ferreira, Paradoxo do planeamento urbanstico, in Sociedade e territrio 20 anos de Actualidade, Junho de 2004

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cia de programa, sobras da urbanizao difusa em torno das estradas mas tambm parte do territrio que deve ser elemento de desenho e programa. Apesar desta crise do espao pblico (fruto de uma outra forma de viver a cidade e de um crescente individualismo) percebe-se que a cidade difusa, cada vez mais povoada por elementos de forte poder simblico, de afirmao pessoal e de ostentao. Acontece sobretudo nos espaos exteriores privados que nunca so escondidos ou recolhidos intimidade, mas antes expostos estrada. Ou seja, ao mesmo tempo que o individualismo confina as pessoas s casas, estas parecem querer cada vez mais comunicar, afirmar-se e relacionar-se com os outros. Surge tambm, associada a este factor de expanso territorial da cidade contempornea, uma crescente preocupao com a paisagem, sobretudo com a paisagem urbana (conceito de certa forma recente). A sbita emergncia da paisagem (ou dos discursos que dela se servem) como preocupao socialmente correcta48 leva crescente considerao do espao urbano enquanto objecto de desenho. J no falamos s da paisagem urbana tradicional, mas tambm, da paisagem da cidade difusa e da paisagem das zonas naturais (cada vez mais artificializadas). A imagem da cidade difusa , naturalmente, uma complexa e heterognea mistura de referentes (tradicionalmente associados a campos diferentes) que resulta num todo fragmentado, rarefeito e descontnuo:() aqui a fbrica pode ter um jardim ou estar no meio de uma vinha, resultar de uma novssima arquitectura de autor ou de uma ampliao de uma nave de granito, a casa de um operrio modesto transforma-se, amplia-se incorpora novas funes e estilos, os blocos habitacionais ou mistos repetem formulas encontrveis em qualquer lugar, no alinhamento de uma rua consolidada ou anacronicamente plantados no meio de tipologias residenciais em parcelas agricultadas ()49

O planeamento e desenho dos espaos da cidade difusa relacionam-se automaticamente com a preocupao paisagstica. Isto deve-se em parte, consciencializao de que a interveno neste espao (que mistura campo com cidade) ter que ser

48. lvaro Domingues, Paisagens rurais em Portugal: algumas razes da polmica in Faculdade de Letras Geografia, Universidade do Porto, Porto, 2003 49. Idem, Novas paisagens urbanas, in Jornal Arquitectos, n 206 Maio/Junho de 2002

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necessariamente feita com os seus elementos prprios no s com edificado mas tambm com o verde. O verde passa a ser elemento de desenho, ganha protagonismo. Mais do que isso, ele um factor de valorizao ambiental destes espaos. uma vantagem deste tipo de cidade sobre o outro. Passar do chamado terrain vague, sem programa, aos espaos pblicos verdes planeados e desenhados florestais, rurais ou de uso urbano fundamental. Num tempo onde a mobilidade essncia da condio urbana, e a velocidade a sua principal caracterstica, os transportes tornam-se assim, o motor de desenvolvimento das cidades. So eles que, encurtando as distncias, relativizando-as ao tempo, diminuindo o atrito territorial, permitem a troca de mercadorias e pessoas e a comunicao directa entre zonas distantes. Areos, rodovirios, martimos ou ferrovirios tm formas e escalas diferentes de ser relacionar com o territrio. Os transportes rodovirios funcionam a uma escala territorial ou urbana e so os que na nossa poca mais revolucionaram o funcionamento das cidades, permitindo o aparecimento da cidade difusa. Pela primeira vez na histria, temos um tipo de transporte completamente individual. este factor que permite o aparecimento e desenvolvimento da difuso urbana. A vantagem de no necessitar de vias prprias, de poder circular praticamente por todos os espaos onde circula o peo d ao seu utilizador uma sensao de liberdade total de movimentos. Esta liberdade est intrinsecamente associada procura da cidade difusa enquanto alternativa cidade tradicional. Dentro do automvel, cada um o centro da aco, adquirindo um poder de deciso praticamente total sobre a sua mobilidade. esta a forma de viver na cidade difusa o automvel usado como prtese do corpo. E, no entanto, ao mesmo tempo que esta revoluo trazida pelo automvel amplia as capacidades e a diversidade de utilizao da cidade, tambm a reduz. Aqueles que no tm acesso a este meio de transporte vm-se limitados e, de certa forma, segregados pela cidade. As solues de transportes colectivos na cidade difusa so muito difceis e limitadas de implantar porque a extenso no territrio dificulta a justificao do investimento. Paradoxalmente nos centros urbanos e nos seus acessos o automvel individual o transporte mais limitador constantemente travado pelos distrbios do trnsito e torna-se um entrave quando necessitarmos de um lugar para o estacionar porque queremos parar. Isto s confirma que a cidade tradicional no foi feita para o automvel. O uso excessivo do automvel individual traz outros problemas para o planeta. A poluio ambiental e

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sonora, assim como o uso de uma fonte de energia no renovvel, tem provocado o descontentamento da sociedade com este meio de transporte. As repercusses na cidade so claras: uma procura urgente (sobretudo na cidade histrica) de restrio ao seu uso, a promoo do transporte colectivo como alternativa vivel, a construo crescente de parques de estacionamento, a actual preocupao com o alargamento dos passeios50 e estreitamento das faixas de rodagem (ao essencial) e a promoo da intermodalidade entre vrios tipos de transporte pblico (e entre este e o individual). A ascenso de transportes alternativos (bicicletas, patins, skates) tem sido tambm uma preocupao crescente das sociedades contemporneas, sobretudo europeias, que se reflecte na criao de vias prprias para este tipo de transporte. Paradoxalmente, esta mudana d-se num momento em que crescem e se expandem os territrios de urbanizao difusa extremamente dependentes do automvel individual. No entanto, o futuro deste meio de transporte dbio. Os problemas ambientais inerentes sua utilizao podero vir a ser resolvidos (com a implementao das energias alternativas), legitimando a progresso dos territrios de urbanizao difusa que funcionam hoje em alta dependncia do mesmo. A evoluo urbana desde as primeiras cidades at hoje transformou completamente as infra-estruturas. Das estreitas ruas esguias da cidade histrica s autoestradas, passando pelas avenidas haussmanianas, muito mudou. Sendo que, vivemos na era da cidade territrio e da mobilidade, as grandes infra-estruturas de transporte tornam-se fundamentais, ganham uma importncia simblica fulcral. No entanto, as preocupaes com o seu desenho no correspondem a esta preponderncia. Elegemos como monumentos: alguns edifcios institucionais, as pontes das principais cidades e os mega-equipamentos desportivos. Negligenciamos a concepo das auto-estradas, dos viadutos, dos ns, das portagens, das estaes de servio os lugares de passagem (ou os no lugares, como apelidaria Marc Aug51). Esquecemos que todo o territrio pode ser hoje objecto de desenho e que o planeamento dos espaos adquire escalas territoriais. As infra-estruturas de passagem devem ser pensadas e desenhadas na sua relao com o territrio e no de forma irreflectida. Assim, o

50. A recente pedonizao dos centros urbanos est, de certa forma, associada ao retorno ao centro e revalorizao dos centros urbanos pelo seu carcter simblico, valor patrimonial e histrico. 51. Marc Aug, No-lugares Introduo a uma Antropologia da Sobremodernidade, 90 Graus Editora, Lda., 2005

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desenho deste tipo de estrutura deve passar a ser objecto de uma integrao profissional multidisciplinar entre as reas da arquitectura e do urbanismo e as outras especialidades. Pode a cidade difusa competir com a concentrada? Uma grande diferena que h entre as cidades histricas e os novos terrenos de urbanizao difusa o prestgio cultural e patrimonial que as primeiras tm. Com isto a cidade difusa no pode competir, exibe, no entanto, outros trunfos (facilidade de acesso automvel, forte relao com o espao natural, mais espao, menos poluio, mais calma). Mas ser que pode chamar a si as actividades mais avanadas? Pode atrair aquelas actividades cuja localizao assinala uma posio alta na hierarquia territorial geral? Ou seja, pode competir em termos de atraco para as actividades inovadoras e de poder com a cidade compacta?52 Indovina defende que a cidade difusa dificilmente pode concorrer com as grandes cidades no que toca aos servios e actividades avanados, podendo apenas faz-lo naquelas que so as actividades de massas: A cidade concentrada expulsa as actividades mais maduras e mantm as actividades produtivas avanadas. Mesmo aceitando esta opinio podemos question-la. Se o desenvolvimento urbano levou formao de um tipo imprevisvel de cidade, como podemos saber qual a sua configurao no futuro? E portanto, que certezas temos ao arriscar previses? Parece no haver dvidas de que a cidade difusa se constituiu como um novo tipo de cidade que aparentando a total anarquia e desordem, tem, na verdade, uma lgica prpria. , no entanto, dependente (em maior ou menor grau) de outras cidades pertencentes ao antigo modelo compacto. Ir o modelo de cidade difusa substituir o antigo? Sero complementares ou ser esta apenas uma fase de crescimento da cidade compacta? Tender esta a densificar todas estas reas difusas, passando assim do crescimento disperso para a concentrao (e posterior consolidao)? Estas so questes em aberto. Todavia, parece pouco provvel a densificao de todas as reas intersticiais dos territrios difusos. Por duas razes essenciais. Primeiro, porque isso exigiria um crescimento colossal das cidades, que no se prev. Segundo, porque os

52. Francesco Indovina, La ciudad difusa, in Lo urbano : en 20 autores contemporneos, ngel Martn Ramos, Barcelona, 2004 (traduo livre)

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espaos intersticiais comeam a ser regulamentados enquanto reservas (agrcolas ou ecolgicas) ou enquanto sistemas de espaos verdes colectivos. Dificilmente o planeamento urbano vai permitir que venham a ser preenchidos no futuro. A cidade difusa veio garantidamente para ficar e com ela que tem que vir a ser feita a interveno:() os dois modelos so j interdependentes ou complementares e no alternativos: vieram para ficar os dois (um com os seus sculos e o outro com as suas dcadas), mas j no podem apagar-se do mapa. Podem, sim, mudar as suas condies ambientais, pode procurar-se uma osmose, podem alargar-se, podem conectar-se melhor ou, pelo contrrio, proteger-se, mas no podem apagar-se do mapa. O capital fixo instalado, pese ao seu deficit, faz com que os dois modelos sejam j interdependentes e complementrios.53

Uma das funes tradicionais da cidade , como diz Indovina, a concentrao do poder. Ento o que querero dizer estes novos modelos e transformaes urbanas? Estaremos a assistir a uma disperso/descentralizao do poder? A interveno na cidade difusa , por enquanto, uma rea muito complexa. Sobretudo a nvel prtico. A maior parte da discusso terica centra-se ainda na compreenso do fenmeno e das suas caractersticas. Procura averiguar as suas variaes e tipos, o seu funcionamento e crescimento. Questiona a concentrao em torno de determinados ncleos e a sua relao com a cidade tradicional ou compacta. A cidade difusa alvo de preconceito por parte da maioria das pessoas, e mesmo alguns estudiosos e tericos insistem consider-la uma forma errada ou disforme de cidade, por se distanciar do secular modelo compacto. por isso frequentemente desprezada em termos de interveno e qualificao urbanstica. Interessa, no entanto, perceber que, apesar de ignorada durante muito tempo, a cidade difusa comea a ser finalmente aceite como fenmeno de estudo e passa a ser investigada de forma imparcial e descomplexada pelos urbanistas e arquitectos. E sendo aceite como outro tipo de cidade, detentora de uma lgica prpria (no sendo necessariamente superior nem inferior cidade tradicional compacta mas apenas um outro formato) deve ser naturalmente objecto no s

53. Nuno Portas, Cuidad contempornea y gobernabilidad, in AAVV, Planeamiento urbanstico de la controversia a la renovacin, Deputaci Barcelona, Barcelona, 2003 (traduo livre)

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de estudo e compreenso, mas tambm de interveno especfica. No plano prtico deve haver tanto ou mais cuidado com o tratamento da cidade difusa, como aquele que rege a aco na cidade tradicional e nos centros histricos, ainda que o mtodo de interveno para um modelo de cidade completamente diferente, tenha que ser necessariamente diferente. Descobrem-se assim, novas ferramentas de interveno urbanstica para este tipo de cidade pois no possvel utilizar as ferramentas clssicas:Basta comparar um regulamento urbanstico actual para nos apercebermos como se regula facilmente a construo nas reas antigas, atravs de alinhamentos e crceas e como difcil assegurar a qualidade da imagem urbana final nas zonas de expanso quando no existia uma base estvel de referncia, que no pode ser seno um modelo de relacionamento de elementos significantes discretos como sejam os espaos pblicos e a edificao54

O que o urbanismo poder fazer procurar as melhores formas de qualificar este tipo de espao, dando aos seus utilizadores uma melhor qualidade de vida e encontrando para intervir as melhores ferramentas. Essa qualificao pode passar por uma melhor integrao, sobretudo nas zonas de conflito entre cidade compacta e difusa. Mais do que propor mtodos ou estratgias, importante chamar a ateno e compreender esta realidade, ainda hoje ignorada por muitos. A cidade difusa a mais desprezada em termos de intervenes urbansticas e de poltica urbana e aquela onde habita um maior nmero de pessoas. Parece-nos urgente intervir neste novo tipo de cidade dando a quem nela habita as mesmas oportunidades e a mesma qualidade de vida oferecidas na cidade tradicional.

2.2 Rurbanizao e distritos industriaisOs processos de difuso urbana so, como foi dito, complexos e muito diversos. A rurbanizao ou urbanizao rural difusa um deles. De definio algo ambgua, o conceito de rurbanizao usado sobretudo para designar os processos de urbanizao das estruturas rurais em que no h uma produo clara de um terceiro estado,

54. Nuno Portas, Conceitos de desenvolvimento urbano, in Jornal Arquitectos, 56-57

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ou seja, no se conseguem identificar em parte os dois elementos que se fundem o urbano e o rural, sendo cada vez mais complexo distinguir o campo da cidade, porque as reas rurais tendem rapidamente a desaparecer ou a se rurbanizar.55 Surge normalmente quando uma vasta rea ou regio tradicionalmente rural urbanizada, no necessariamente por um processo de exploso de uma cidade prxima (a fuga cidade) mas mais por um processo de industrializao gradual e posterior terciarizao desse territrio. Preservam-se as estruturas, as infra-estruturas e os modos de vida rurais, em coabitao com as mais actualizadas formas de mobilidade, equipamentos e servios prprios da vida urbana56. Os territrios rurbanizados funcionam normalmente em regies com caractersticas mais ou menos uniformes que conformam os chamados distritos industriais:Em algumas reas urbanas e regies, por exemplo, a sociedade que a habita gerou dinmicos distritos produtivos que souberam utilizar em determinados casos o sedimento de antigos conhecimentos contextuais para dar vida a um importante processo de desenvolvimento57

No clara a definio de distrito industrial. Existem diversos conceitos, o que demonstra o interesse pelas novas formas de organizao industrial58 e ilustra, segundo Maillat (1995), a grande dificuldade em definir, atravs de um nico conceito, a abundante diversidade de situaes encontradas (fruto de diferentes passados histricos, de estruturas socioeconmicas especificas e da diversidades de sistemas locais existentes). A primeira definio da autoria de Marshall (1890) que utilizou o termo para caracterizar as concentraes de pequenas e mdias empresas localizadas volta das grandes indstrias nos subrbios das cidades inglesas. Constituam-se em grandes, pequenas e mdias empresas interrelacionadas em micro-regies geogrfi-

55. Miguel Melo Bandeira, A oposio cidade campo: uma quase memria ou tnue realidade?!, in AAVV, Cadernos do Noroeste, vol.7(2), Centro de Cincias Histricas e Sociais da Universidade do Minho, Braga, 1994 56. as expresses rururbanizao e urbanzao rural difusa () designam a interpenetrao dos modelos dos modelos do urbano e do rural sem admitirem, contudo, a emergncia de um terceiro estado em tudo diferente aos que supostamente lhes esto na origem., lvaro Domingues, Da cidade ao urbano Parte 1, in Arquitectura e Vida, n. 74, Setembro de 2006 57. Bernardo Sechi, La cuidad contempornea y su proyecto, in AAVV, Planeamiento urbanstico de la controversia a la renovacin, Deputaci Barcelona, Barcelona, 2003 (traduo livre) 58. O renovar do interesse pela problemtica dos distritos industriais decorre da dificuldade constatada pelos economistas em explicar a dinmica de regies marcadas pela presena de sistemas de pequenas e mdias empresas, Carla Marques, Inovao e transferncia tecnolgica: o caso da Beira Interior, UBI, Covilh, 1998

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cas, produzindo bens em larga escala para o mercado interno e principalmente para o mercado externo. As PMEs tinham como benefcios infra-estruturas, mo-de-obra j treinada, recursos naturais locais, informaes sobre as novas tcnicas de produo, mas sobretudo a proximidade geogrfica entre as empresas e o um alto grau de interrelacionamento, reduzindo os custos de transporte e outras transaces, com boa comunicao entre os produtores. As economias externas (como eram designados por Marshall os ganhos obtidos pelas PMEs) eram apontadas como as primeiras causas do brutal desenvolvimento socio-econmico conseguido pela Inglaterra no sculo XIX. Este tipo de desenvolvimento era conhecido como teoria do desenvolvimento local, isto , um modelo que para alm das variveis econmicas tinha tambm em ateno as potencialidades de uma determinada regio (recursos existentes, vocao trabalhista e produtiva da comunidade e factores socio-culturais laos familiares, confiana entre os agentes produtores, cooperao entre firmas, costumes, tradies, religio, etnia, laos culturais, etc.). assim um processo de desenvolvimento que coordena os empreendimentos associativos, individuais, comunitrios, urbanos e rurais, e que permite s PMEs competirem com vantagens que s estavam ao alcance das grandes empresas. Na dcada de 70 este fenmeno repete-se na Europa, sobretudo em Itlia, na regio de Emlia Romagna, ficando internacionalmente conhecido pelo extraordinrio desenvolvimento conseguido alta taxa de exportao, elevados salrios, pleno emprego e melhoria do nvel de vida. Isto s seria possvel atravs da combinao entre o sistema produtivo, um governo progressista, integrao social e xito empresarial. Becattini (1992) retoma o conceito de distrito Industrial Marshaliano para adapt-lo ao caso italiano: O distrito industrial uma entidade scio-territorial caracterizada pela presena activa de uma comunidade de pessoas e de uma populao de empresas num determinado espao geogrfico59. Segundo Camagni (1991), a perspectiva dos distritos industriais (ou sistemas territoriais de produo) enfatiza particularmente o papel das relaes que se estabelecem ao nvel local entre as empresas, apresentando, contudo, uma perspectiva esttica do espao econmico. Este fenmeno italiano foi de tal forma difcil de explicar que se fizeram vrios estudos sobre o tema, sendo designado por Bagnasco (1999) de Ter-

59. Carla Marques, Inovao e transferncia tecnolgica: o caso da Beira Interior, UBI, Covilh, 1998

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ceira Itlia. a forma de designar o desdobramento do tradicional dualismo italiano entre o norte desenvolvido (Primeira Itlia) e o sul atrasado (Segunda Itlia). O conceito de distrito industrial comporta outras noes similares, entre as quais encontramos o Sistema Territorial de Produo (Crevoisier e Maillat, 1991), o Sistema Industrial Localizado (Courlet e Pecquer, 1992), o Sistema de Produo Local (Garofoli, 1992; Courlet e Soulange, 1993), o Distrito Tecnolgico (Maillat, Lecoq, Nemeti e Pfister, 1995), entre outros60. O fenmeno ocorrido em Itlia despertou particular interesse dos observadores internacionais, que identificaram outros distritos industriais na Europa e noutros continentes como: Vale do Silcio, na Califrnia; Vilarejos do Cholet, Vale do Rio Arve, Oyonnax e Thiersna, em Frana; Baden-Wrttemberg, na Alemanha, entre outros. O modelo de distritos industriais ganhou uma importncia enorme para os investigadores ao por em dvida a eficcia dos antigos modelos macroeconmicos de desenvolvimento. Muitos pases perifricos comearam a mudar as suas polticas econmicas, copiando o modelo dos distritos industriais italianos O distrito industrial apresenta-se sintetizando como uma concentrao de empresas especializadas em sectores determinados da economia, mas com um ramo em comum uma determinada rea da produo. Induz a especializao econmica de uma regio, definindo-a em termos de espao e de preparao funcional da populao. Uma vantagem destes territrios que, muitas vezes, permitem adquirir os produtos directamente aos produtores escapando a todo o percurso de distribuio e comercializao permitindo uma grande reduo de preo. O sistema de distritos industriais consiste numa espcie de zonamento funcional espontneo do territrio que se organiza por reas de produo particulares. Cada um destes distritos opera como uma mircro-regio economicamente especializada.

60. Carla Marques, Inovao e transferncia tecnolgica: o caso da Beira Interior, UBI, Covilh, 1998

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3. CONTEXTO3.1 Vale do SousaA organizao contempornea do territrio portugus, em particular a Cidade Difusa do Noroeste Peninsular e a rea Metropolitana do Porto, foram e tm vindo a ser estudados por vrias pessoas e entidades, entre elas o Centro de Estudos da FAUP (CEFA)61. O territrio nacional assimtrico e cheio de desigualdades. Foi intitulado por Joo Ferro de Pas Arquiplago62 (Fig. 2) devido concentrao urbana junto faixa costeira (que vai do Minho ao Algarve) e desertificao do interior marcado por algumas ilhas soltas de territrio urbanizado, como as cidades mdias ou pequenas. O pas marcado por um fenmeno de concentrao larga escala em torno das ilhas principais, ainda que pequena escala se dem muitos fenmenos de disperso. Os tipos de assentamento urbano a nvel nacional foram classificados por Nuno Portas, lvaro Domingues e Joo Cabral63 como pertencendo essencialmente a trs tipos: cidades mdias, conurbaes metropolitanas e conurbaes no metropolitanas. Este tipo de organizao tem j, pouco que ver com as anti-

Fig. 2 As trs macro-geografias de Portugal continental: o norte/sul de Orlando Ribeiro, a oposio litoral/interior (atravs da densidade da populao) em 1981 e as ilhas do arquiplago Portugal Continental nos anos 90 (reas com maior dinamismo demogrfico e econmico)

61. CEFA, Cidade Difusa do Noroeste Peninsular, FAUP, Porto, 2002. CEFA, rea Metropolitana do Porto: estrutura territorial, o presente e o futuro, FAUP, Porto, 2000 62. O territrio continental portugus reflecte, hoje, a combinao de trs espacialidades macroregionais : a oposio Norte/Sul, caracterstica do Portugal tradicional; a oposio litoral/interior, caracterstica do Portugal moderno; um territrioarquiplago organizado em rede, caracterstico do Portugal ps-moderno, Joo Ferro, Portugal, trs geografias em recombinao: espacialidades, mapas cognitivos e identidades territoriais, in Lusotopie, Paris, 2002, pg. 151 63. Joo Cabral, lvaro Domingues e Nuno Portas, Polticas Urbanas: tendncias estratgias e oportunidades, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2003

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gas divises administrativas, desadequadas actual realidade do territrio urbano nacional. A conurbao metropolitana do Porto a que tem sido mais estudada tanto pelo Centro de Estudos da Faculdade de Arquitectura da UP como por alguns docentes dessa faculdade (em teses de mestrado e doutoramento64). definida a duas escalas uma mais restrita, outra mais alargada consoante os critrios usados (os limites so naturalmente pouco definidos). na sua escala mais ampla, aquilo a que se chama uma cidade regio, j que funciona como um s sistema urbano de dimenso regional, englobando vrios subsistemas urbanos de Aveiro a Braga. O estudo elaborado pelo CEFA65 divide-a em 14 subsistemas urbanos, diviso que procurou reproduzir a realidade territorial da regio. Atravs da investigao e interpretao do construdo, prope-se a reorganizao do espao de forma a que corresponder mais realidade. Permitindo que se adapte aos chamados sistemas urbanos, enquanto conjuntos de espaos urbanizados que funcionam com uma certa autonomia, mas sempre em relao com os outros sistemas. O espao de estudo a ser aqui analisado insere-se num destes subsistemas: a conurbao no metropolitana do Vale do Sousa66. Este estabelece vrias relaes com a conurbao metropolitana (Porto). considerado parte da sua segunda coroa e encontra-se na sua esfera de influncia67. Estudar um fenmeno como a estrada mercado EN207 algo que no pode ser feito ignorando esta realidade, pois s percebendo o seu contexto que se potencia a compreenso do