roteiro memorias postumas

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Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881 Roteiro de Leitura Capítulos importantes que revelam aspectos importantes da visão filosófica de Machado de Assis, do caráter do personagem Brás Cubas e do estilo adotado no romance. Capítulo 1 – Óbito do autor “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco. Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: — “Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à Natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.” Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.” Esse trecho do primeiro capítulo do livro, mostra as principais caracterísitcas de Brás Cubas como narrador. No primeiro parágrafo do texto, Brás Cubas explica as razões que o levaram a começar suas Memórias a partir de sua morte. Como vai ocorrer muitas vezes no livro, o texto assume um caráter dissertativo, ou seja, Brás Cubas procura argumentar, explicar e justificar seu ponto de vista, de maneira aparentemente racional e razoável. O problema é a situação de escrever um livro depois de morto está além de qualquer racionalidade. A situação de Brás Cubas como narrador é sobrenatural ou absurda, mas não racional, no entanto, Brás Cubas fala como se tudo isso fosse muito

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Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881

Roteiro de Leitura

Capítulos importantes que revelam aspectos importantes da visão filosófica de Machado de Assis, do caráter do personagem Brás Cubas e do estilo adotado no romance.

Capítulo 1 – Óbito do autor

“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: — “Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à Natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”

Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.”

Esse trecho do primeiro capítulo do livro, mostra as principais caracterísitcas de Brás Cubas como narrador.

No primeiro parágrafo do texto, Brás Cubas explica as razões que o levaram a começar suas Memórias a partir de sua morte. Como vai ocorrer muitas vezes no livro, o texto assume um caráter dissertativo, ou seja, Brás Cubas procura argumentar, explicar e justificar seu ponto de vista, de maneira aparentemente racional e razoável. O problema é a situação de escrever um livro depois de morto está além de qualquer racionalidade. A situação de Brás Cubas como narrador é sobrenatural ou absurda, mas não racional, no entanto, Brás Cubas fala como se tudo isso fosse muito natural. Esse aspecto do narrador mostra a desfaçatez, isto é, o fato de que ele pouco se importa se o leitor aceita ou não suas afirmações. É como se o narrador quisesse provocar e desrespeitar o leitor.

O primeiro parágrafo revela ainda o gosto de Brás Cubas por brincadeiras verbais e jogos de palavras, quando ele diz que não é um “autor defunto, mas um defunto autor”

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(isto é, ele não é um escritor que morreu, mas sim um morto que se tornou escritor). A decisão de contar em primeiro lugar a própria morte foi tomada porque o livro ficaria “mais galante e mais novo”: isto é, o livro se destacaria por ser diferente. Essa vontade de distinguir-se dos outros é outra característica de Brás Cubas.

No segundo parágrafo, o texto passa a ser narrativo e contém muitos exemplos da ironia do narrador. Um exemplo é o pequeno discurso feito por um dos onze amigos que compareceram ao enterro. Trata-se de um discurso cheio de elogios falsos a respeito do belo caráter do falecido e de clichês (como o de que a natureza estava chorando pela morte de Brás Cubas). Muitas vezes, o livro vai criticar a mania dos discursos e a retórica exagerada e vazia. A ironia do narrador aparece ainda quando ele comenta que o “amigo” que fez este discurso tinha recebido “vinte apólices” de herança do falecido Brás Cubas. Nisso, o narrador denuncia o comportamento interesseiro de alguns de seus “amigos”.

Portanto, a partir do texto, podemos ver que Brás Cubas é um narrador irônico, que gosta de fazer declarações excêntricas com a maior naturalidade (essa é a sua desfaçatez) e que vê de maneira cínica os comportamentos humanos. Brás Cubas, por exemplo, sabe muito bem que os elogios no discurso do enterro são apenas resultado do fato de que aquele “amigo” recebeu algum dinheiro.

Ironia, cinismo, excentricidade e desfaçatez são as marcas de Brás Cubas como narrador.

Capítulo 7 – O delírio

“— Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.

Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.

— Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives; não quero outro flagelo.

— Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.

— Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.

(...)

— Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só

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mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?

— Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?

— Sim; o teu olhar fascina-me.

— Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.

Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos. (...)

— Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?

— Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.

Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos Impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas (...) Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim,— flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo (...) Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.”

O capítulo sobre o delírio de Brás Cubas apresenta vários aspectos tomados da filosofia pessimista de Arthur Schopenhauer (1788-1860), filósofo alemão que teve profunda influência sobre pensadores importantes como Nietzsche e Freud. No Brasil, Machado de Assis e Augusto dos Anjos estavam entre os seus admiradores.

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Em sua obra principal, O Mundo como Vontade e Representação (livro IV), Schopenhauer afirma: “O sofrimento é o fundo de toda a vida”. Ou seja, a vida consiste basicamente em sofrimento. Todavia, mesmo sabendo disso, os seres humanos tem o desejo de continuar vivendo. Isso mostra a irracionalidade da vontade. Para justificar sua vontade de viver, o ser humano cria ilusões como a busca de felicidade e corre atrás dessas miragens.

O capítulo do delírio de Brás Cubas apresenta, de maneira visual e narrativa, essa tese de Schopenhauer. Brás Cubas é levado, nas costas de um hipopótamo, até uma mulher grande e severa que se apresenta como Natureza e Pandora. Na mitologia grega, Pandora foi a primeira mulher. Os homens viviam uma época onde não havia sofrimento. Todas as dores e males estavam guardados numa caixa, que não deveria ser aberta. No entanto, movida pela curiosidade, Pandora abriu a caixa onde os deuses haviam guardado todos os males (a morte, a doença, o sofrimento) que se espalharam pelo mundo. No fundo da caixa, restou apenas a esperança.

No delírio, a Natureza (fonte da vida) se identifica com Pandora (fonte dos sofrimentos da humanidade). Por isso, ela afirma ser “mãe” e “inimiga”. Trata-se de uma personagem que personifica, alegoricamente, a mensagem filosófica de Schopenhauer.

A Natureza ou Pandora leva Brás Cubas a um lugar alto, de onde ele pode contemplar toda a história da humanidade e verificar que o sofrimento sempre esteve presente, que a vida no fundo é feita de miséria e dor, que nao há um sentido ou propósito na vida e que a corrida em busca de felicidade é apenas uma grande ilusão.

O sofrimento e o caráter ilusório dos objetivos e metas humanas são os dois aspectos principais da vida segundo o que mostra o delirio de Brás Cubas.

Capítulo 14 – O primeiro beijo

“Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança, com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros.

Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a “linda Marcela”, como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. (...)

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Vi-a pela primeira vez, no Rocio Grande, na noite das luminárias, logo que constou a declaração da independência, uma festa de primavera, um amanhecer da alma pública. Éramos dois rapazes, o povo e eu; vínhamos da infância, com todos os arrebatamentos da juventude.”

Este capítulo conta como Brás Cubas conheceu Marcela, a cortesã espanhola, por quem teve sua primeira paixão. Há dois aspectos interessantes nele:

O primeiro é o fato de que Brás Cubas conhece Marcela por ocasiao da festa pela Independência do Brasil (Brás Cubas tinha 17 anos em 1822). De maneira que, justamente no momento em que o Brasil, como nação, se tornava independente, Brás Cubas caía na situação de dependência amorosa, exploração e cativeiro por causa de Marcela. Isso já tinha sido dito explicitamente no final do capítulo 13: “Vamos de um salto a 1822, data da nossa independência política, e do meu primeiro cativeiro pessoal.” O fato de que Brás Cubas caía nas mãos de uma estrangeira aproveitadora justamente no momento em que o Brasil se torna independente de Portugal pode ser vista como uma sátira à situação de dependência e endividamento do Brasil em relação à Inglaterra, logo depois da proclamação oficial de independência de 1822.

O segundo aspecto interessante no capítulo é a análise da relação entre o Romantismo e o Realismo. Brás Cubas jovem se compara com o cavalo elegante e bonito que o Romantismo foi buscar nas histórias medievais (a Idade Média serviu de inspiração para muitos escritores românticos). Mas o cavalo, outrora bonito, ficou tão cansado (por causa do abuso e repetição que os românticos fizeram de certos temas), que o cavalo ficou cheio de feridas e vermes, e foi assim que o Realismo o apresentou em seus livros. Há um contraste entre a idealizaçao fantasiosa feita pelo Romantismo e a visão pessimista e crítica, que é própria do Realismo.

Capítulo 21 – O almocreve

Vai então, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, ele deu dois corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da sela, com tal desastre, que o pé esquerdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas já então, espantado, disparou pela estrada fora. Digo mal: tentou disparar, e efetivamente deu dois saltos, mas um almocreve, que ali estava, acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé.

— Olhe do que vosmecê escapou, disse o almocreve.

E era verdade; se o jumento corre por ali fora, contundia-me deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, lá se me ia a ciência em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu sentia-no no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal fosse o preço da minha vida, — essa era

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inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. Está dito, dou-lhe as três moedas.

— Pronto, disse ele, apresentando-me a rédea da cavalgadura.

— Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda não estou em mim...

— Ora qual!

— Pois não é certo que ia morrendo?

— Se o jumento corre por aí fora, é possível; mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmecê que não aconteceu nada.

Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre-diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir à luz do sol; não a viu o almocreve, porque eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, entrou a falar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juízo, que o “senhor doutor” podia castigá-lo; um monólogo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa.

— Olé! exclamei.

— Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça...

Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do cruzado em prata. Porque, enfim, ele não levou em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício; acresce que a circunstância de estar, não mais adiante nem mais atrás, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituí-lo simples instrumento da Providência; e de um ou de outro modo, o mérito do ato era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?) tive remorsos.

Esse capítulo mostra uma cena ocorrida quando Brás Cubas estava em Portugal, logo depois de formar-se em Coimbra. Ele monta num jumento, que empacou. Brás Cubas bateu-lhe forte com o chicote, o jumento comecou a dar pinotes e o teria derrubado se um almocreve (pessoa que cuida de estábulos) não tivesse vindo em socorro. Brás Cubas queria recompensar o almocreve por ter salvo a sua vida, um bem que não tem

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preço, mas a avareza e mesquinhez falaram mais alto na hora de avaliar quanto dinheiro deveria dar àquele pobre homem. Tudo se passa como se Brás Cubas tivesse pechinchando sobre o valor da ação realizada pelo almocreve e procurasse razões para desmerecer e desvalorizar o que aquele homem fez. No final, Brás Cubas dá um pouco dinheiro para o almocreve, mas arrepende-se de ter dado demais e sente remorso. Trata-se de um dos poucos momentos em que Brás Cubas sente remorso e considera que isso era um comportamento parecido com as suas dissipações antigas (quando gastava fortunas para comprar jóias para Marcela).

Brás Cubas coloca no mesmo nível a fortuna de 11 contos que gastou com a prostituta que o explorava (capítulo 17) e os poucos trocados que deu a um pobre homem que salvou a sua vida. Isso é mais uma prova de quanto o comportamento e as opiniões de Brás Cubas variam de maneira volúvel e arbitrária.

Capítulo 31 – A borboleta preta

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

— Também por que diabo não era ela azul? disse comigo.

E esta reflexão, — uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas, — me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: “Este é provavelmente o inventor das borboletas.” A ideia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas!

Brás Cubas mata, de maneira cruel, a borboleta preta que entrou no seu quarto. Depois, movido por sua imaginaçao fértil e ociosa, trata de justiticar o que fez para reconciliar-se consigo mesmo (diga-se, de passagem, que Brás Cubas tem uma

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enorme capacidade de inventar desculpas para tudo o que ele faz e ficar em paz com sua consciência). Brás Cubas imagina que a borboleta tinha uma vida feliz até ser atingida por um golpe de toalha dado por aquele que ela considerava o “inventor das borboletas”. Brás Cubas sente que foi, em relação à borboleta, uma espécie de Deus, capaz de decidir a vida e a morte. Por isso ele conclui: “Vejam como é bom ser superior às borboletas!”. Esse é o aspecto que mais interessa à Brás Cubas: estar numa posição superior e poder agir arbitrariamente.

Capítulo 55 – O velho diálogo de Adão e Eva

BRÁS CUBAS................................?

VIRGÍLIA...............................

BRÁS CUBAS................................................................................................ ........................................................

VIRGÍLIA..........................................!

BRÁS CUBAS.................................

VIRGÍLIA..........................................................................................................................................................? ..................................................

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VIRGÍLIA...............................................

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VIRGÍLIA....................................................?

BRÁS CUBAS.............................................!

VIRGÍLIA.....................................................!

Este capítulo é um dos exemplos mais claros da capacidade de Machado de Assis de sugerir um situação inteira a partir de pouquíssimos elementos: os nomes dos dois personagens, que vivem um caso amoroso (Brás Cubas e Virgília) e o título que os associa ao primeiro casal (Adão e Eva) no momento em que praticam uma conversa muito conhecida, “o velho diálogo”.

O uso de linhas pontilhadas ao invés de palavras pode ser entendido de duas maneiras: (a) serve para indicar que se trata de um tipo de conversa tão conhecida

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que dispensa palavras (basta saber que há perguntas e respostas enfáticas, indicadas pelos pontos de interrogação e de exclamação); (b) serve também como tarja preta de censura, para mostrar que se trata de um diálogo a respeito de assuntos íntimos e impróprios para publicação, num gesto de falso pudor do narrador Brás Cubas.

O fato de que o livro tome essas liberdades e faça esse tipo de inovação já tinha sido indicado no aviso “Ao Leitor”, quando o narrador disse que adotaria uma “forma livre”.

Capítulo 62 – O travesseiro

“Fui ter com Virgília; depressa esqueci o Quincas Borba. Virgília era o travesseiro do meu espírito, um travesseiro mole, tépido, aromático, enfronhado em cambraia e bruxelas. Era ali que ele costumava repousar de todas as sensações más, simplesmente enfadonhas, ou até dolorosas. E, bem pesadas as coisas, não era outra a razão da existência de Virgília; não podia ser. Cinco minutos bastaram para olvidar inteiramente o Quincas Borba; cinco minutos de uma contemplação mútua, com as mãos presas umas nas outras; cinco minutos e um beijo. E lá se foi a lembrança do Quincas Borba... Escrófula da vida, andrajo do passado, que me importa que existas, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dois palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir?”

O capítulo mostra bem a conduta evasionista de Brás Cubas. Ele tinha descoberto que o seu colega de escola Quincas Borba, outrora rico, tinha se tornado um mendigo. A revelação incomodou Brás Cubas, que procura refúgio em Virgília, como quem coloca a cabeça num travesseiro para dormir e esquecer-se do dia que passou.

O caso com Virgília aparece assim como o que realmente era: uma oportunidade para fugir do tédio e das vidas miseráveis que cercam Brás Cubas. Essa a razão para Virgília existir na vida de Brás Cubas: fazê-lo esquecer do lado feio da realidade.

Capítulo 68 – O vergalho

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!

— Meu senhor! gemia o outro.

— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

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Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

— É, sim, nhonhô.

— Fez-te alguma coisa?

— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!

Brás Cubas reencontra Prudêncio, seu antigo moleque-de-pancada, que havia sido libertado pelo pai de Brás Cubas.

Prudência havia sido escravo e sofrido as agressões de seu pequeno patrão Brás Cubas, que era um verdadeiro “menino diabo” (capítulo 11). Agora que era livre, Prudêncio, ao invés de tornar-se um defensor dos escravos, castigava cruelmente um escravo em praça pública, e ainda mostra submissão ao seu antigo dono, quando o reconhece. Prudêncio o chama de “nhonhô” como se ainda pertencesse a Brás Cubas. É como se, mesmo livre, Prudêncio nunca tivesse conseguido se livrar da escravidão e só pudesse descarregar aquilo que sofreu, fazendo um outro escravo sofrer. Brás Cubas já tinha feito referência ao fato de um ser humano transmite seu aborrecimento e suas dores para outro, como uma bola de bilhar transmite movimento para outra bola de bilhar. Trata-se da “solidariedade do aborrecimento humano” (capítulo 42).

Capítulo 71 – O senão do livro

“Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é

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enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...”

Neste capítulo estão concentrados vários aspectos do estilo do livro Memórias Póstumas:

- fragmentação da narração, por causa dos capítulos muito curtos.

- metalinguagem: o narrador comenta o próprio livro

- conversa com leitor (recurso também conhecido como “leitor incluso”): o a narrador se dirige ao leitor. Brás Cubas chega ao ponto de desfaçatez, acusando o leitor pelos problemas do livro: “o maior defeito deste livro és tu, leitor”

- uso de digressões (ou seja, de comentários sobre assuntos alheios ao tema do livro, produzindo uma narração cheia de desvios): “este livro e o meu estilo são como ébrios, guinam à direita e à esquerda”.

- narração que frequentemente quebra as expectativas do leitor por causa da desfaçatez e da arbitrariedade do narrador: “Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar”.

Capítulo 75 - Comigo

“Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o capítulo anterior, observo que é preciso lê-lo para entender o que eu disse comigo, logo depois que D. Plácida saiu da sala. O que eu disse foi isto:

— Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de D. Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou D. Plácida. É de crer que D. Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: — Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam. — Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia.”

Neste capítulo, a imaginação fértil de Brás Cubas tenta imaginar, de maneira resumida, o que teria sido a vida de D. Plácida, que servia como intermediária da relação entre Brás Cubas e Virgília (ela era a “medianeira” do casal).

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D. Plácida é uma personagem importante por causa do dilema moral em que se encontra: ela é pobre, cheia de dignidade e só aceitaria viver com um homem se fosse casada com ele. Apesar desta dignidade do ponto de vista moral, D. Plácida é pobre e dependente da ajuda dos outros. Ela tinha chegado a ser agregada na casa da família da Virgília (capítulo 74). Agora, por conta da sua pobreza, tinha que aceitar viver numa casa que servia de ponto de encontro de um casal adúltero, recebendo dinheiro de Brás Cubas. Entre ser fiel a seus princípios morais e o medo de cair na miséria, D. Plácida aceitou vender sua consciência. Essa humilhação reflete a situação de dependência do pobres e dos agregados em relação às classes ricas da elite, representadas por Brás Cubas e Virgília.

Diante de grandes proprietários como Brás Cubas, pessoas como Eugênia, Dona Plácida e Prudêncio ficam numa situaçao parecida com a borboleta preta (capítulo 31). Podem ser eliminados ou enxotados a qualquer momento. É por isso que a maneira como Brás Cubas tenta reconstituir, imaginariamente, a história de D. Plácida tem semelhança com a tentativa de reconstituri, imaginariamente, o que teria sido a vida da borboleta preta.

Observe-se ainda os nomes irônicos que Machado de Assis deu a esses personagens pobres e desvalidos:

- Plácida significa “calma” e “serena”, nome que constrata com a situação de sofrimento e de trabalho constante para evitar a miséria.

- Eugênia tem um nome que significa “bem nascida”, que constrata com o fato de ser “coxa de nascença” e gerada por um caso que começo numa moita. Pelos princípios eugenistas do final do século XIX, a pobre Eugênia deveria ter sido eliminada por causa da sua deficiência física.

Capítulo 76 – O estrume

Súbito deu-me a consciência um repelão, acusou-me de ter feito capitular a probidade de D. Plácida, obrigando-a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era melhor que concubina, e eu tinha-a baixado a esse ofício, à custa de obséquios e dinheiros. Foi o que me disse a consciência; fiquei uns dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ela acrescentou que eu me aproveitara da fascinação exercida por Virgília sobre a ex-costureira, da gratidão desta, enfim da necessidade. Notou a resistência de D. Plácida, as lágrimas dos primeiros dias, as caras feias, os silêncios, os olhos baixos, e a minha arte em suportar tudo isso, até vencê-la. E repuxou-me outra vez de um modo irritado e nervoso.

Concordei que assim era, mas aleguei que a velhice de D. Plácida estava agora ao abrigo da mendicidade: era uma compensação. Se não fossem os meus amores, provavelmente D. Plácida acabaria como tantas outras criaturas humanas; donde se poderia deduzir que o vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou, e eu fui abrir a porta a Virgília.

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Num momento de lucidez moral raríssimo, Brás Cubas percebe que tinha submetido D. Plácida a uma situação humilhante, que contrariava os princípios morais dela e abusava da sua condição de pobreza. Mas, como ocorre outras vezes no livro, Brás Cubas logo inventa uma desculpa para tranquilizar sua consciência e reconciliar-se consigo mesmo. Ele pensa que, no fundo, estava ajudando D. Plácida a escapar da miséria e, se não fosse o seu caso adúltero com Virgília, a situação de D. Plácida seria bem pior. Portanto, o comportamento vicioso de Brás Cubas e de Virgília deram origem a uma ação virtuosa, que é ajudar uma mulher pobre. Assim, o vício pode ser o estrume mal-cheiroso que serve para adubar e fertilizar a virtude: “o vício é muitas vezes o estrume da virtude”.

Esse tipo de reflexão paradoxal é comum no livro e está ligado ao gosto de Brás Cubas por ideias excêntricas formuladas na forma de jogos de palavras. Este gênero é conhecido como aforismo ou máxima. Há vários exemplos dele no livro, como o título do capítulo 11: “o menino é o pai do homem”(ou seja, aquilo que somos na infância vai determinar o que seremos na vida adulta), ou os aforismos do capítulo 119 (“Matamos o tempo; o tempo nos enterra”).

Capítulo 90 – 31

Uma semana depois, Lobo Neves foi nomeado presidente de província. Agarrei-me à esperança da recusa, se o decreto viesse outra vez datado de 13; trouxe, porém, a data de 31, e esta simples transposição de algarismos eliminou deles a substância diabólica. Que profundas que são as molas da vida!

Lobo Neves, marido de Virgilia, tinha sido nomeado presidente de província, mas como o decreto saiu num dia 13, Lobo Neves recusou por superstição. Isso permitiu que o caso com Virgília durasse mais um pouco. Mais uma vez o decreto de nomeação foi publicado, mas dessa vez no dia 31 e Lobo Neves aceitou. Ele iria para a província levando Virgília, o que a separaria de Brás Cubas.

Brás Cubas aproveita para refletir sobre a maneira como acontecimentos aleatórios e arbitrários alteram os projetos que fazemos. É importante entender que, para Brás Cubas, essa arbitrariedade do mundo é a justificação principal para agir de maneira arbitrária e aleatória.

Capítulo 123 – O verdadeiro Cotrim

“Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Argüiam-no de avareza, e cuide que tinham razão; mas a

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avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o deficit. Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com freqüência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro de uma confraria, e irmão de várias irmandades, e até irmão remido de uma destas, o que não se coaduna muito com a reputação da avareza; verdade é que o benefício não caíra no chão: a irmandade (de que ele fora juiz) mandara-lhe tirar o retrato a óleo. Não era perfeito, decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notícia de um ou outro benefício que praticava, — sestro repreensível ou não louvável, concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se não pode negar algum peso.”

Cotrim era casado com Sabina, irmã de Brás Cubas. A relação entre Brás Cubas e Cotrim era um tanto distante. Eles tiveram uma discussão muito áspera porque nao concordavam com a partilha da herança deixada pelo pai de Brás Cubas. Neste capítulo, Brás Cubas reconhece que o seu cunhado tinha algumas qualidades, mas, ao explicá-las, ele menciona muitos fatos que desabonam ou até contradizem as qualidades apresentadas, revelando o verdadeiro Cotrim.

Alguns diziam que Cotrim era avarento, mas Brás Cubas diz que a avareza é apenas uma virtude exagerada e, nesse caso, o exagero é bom (é melhor sobrar do que faltar). Alguns diziam que Cotrim era bárbaro (cruel); Brás Cubas tenta minimizar a acusação dizendo que Cotrim só mandava bater em escravos (até sangrarem). Além disso, lembra que, pelo fato de Cotrim ser negociantes de escravos, essa conduta era muito normal. “E não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais”: em outras palavras, não se podia dizer que Cotrim fosse realmente cruel, ele era apenas um homem influenciado pelo meio social em que vivia. De maneira cínica, Brás Cubas usa a teoria determinista para legitimar o comportamento brutal do seu cunhado em relação aos escravos. Argumenta ainda que Cotrim tinha bons sentimentos comos e pode ver pelo sofrimento que teve quando a filha morreu; e mais: Cotrim era membro de uma instituição que fazia caridade e divulgava nos jornais todos os benefícios que fazia aos outros.

A partir da leitura do capítulo é difícil saber quem é pior: Cotrim, avarento traficante de escravos que manda chicoteá-los e faz alarde das suas obras de caridade, ou Brás Cubas, que cinicamente inventa desculpas para essa conduta do cunhado, assim como inventava desculpas para suas próprias condutas arbitrárias.

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Capítulo 141 – Os cães

— Lutar. Podes escachá-los ou não; o essencial é que lutes. Vida é luta. Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal.

Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles estava um osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção para a circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos... Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em êxtase.

— Que belo que isto é! dizia ele de quando em quando.

Quis arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e só continuou a andar, quando a briga cessou inteiramente, e um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte. Notei que ficara sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo convinha a um grande filósofo. Fez-me observar a beleza do espetáculo, relembrou o objeto da luta, concluiu que os cães tinham fome; mas a privação do alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia. Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetáculo mais é grandioso: as criaturas humanas é que disputam aos cães os ossos e outros manjares menos apetecíveis; luta que se complica muito, porque entra em ação a inteligência do homem, com todo o acúmulo de sagacidade que lhe deram os séculos, etc.

Em vários momentos, Quincas Borba explica a filosofia do Humanitismo para Brás Cubas, mas é nesse capítulo que o verdadeiro caráter do Humanitismo se revela com toda clareza. Trata-se de uma filosofia que legitima a disputa, o egoísmo, a cobiça e violência, deixando de lado qualquer consideração ética de justiça, solidariedade, igualdade. O modelo de beleza é a luta de dois cães por causa de um osso.

Do ponto de vista do Humanitismo, os dois cães representam a Humânitas, a força ou impulso egoísta que há em todas as criaturas. Então se trata de Humânitas lutando contra Humânitas e a única de vencer a luta é usando todos os recursos possíveis: força, violência, esperteza, desonestidade. Glorificar essa conduta é o objetivo do Humanitismo.

O objetivo de Machado de Assis era fazer uma paródia de certas tendências filosóficas da sua época, como o Positivismo e o Darwinismo Social. Através do Humanitismo, Machado de Assis, critica as filosofias que justificam o capitalismo selvagem e legitimam a dominação pela violência e pelo poder econômico.

Capítulo 160 – Das negativas

Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás

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Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do Céu. O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos.

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

No capítulo final, Brás Cubas faz uma avaliação negativa de sua vida, que comprova aquilo que a Natureza ou Pandora lhe disse no capítulo do delírio. Brás Cubas viveu no tédio, cercado de exemplos de pobreza e de sofrimento (como D. Plácida), perseguindo objetivos ilusórios que não se realizaram (ser famoso, ser ministro, casar-se). A vida de Brás Cubas foi um fracasso, apesar de ter sido rico, livre e inteligente. No entanto, Brás Cubas acredita que sua vida teve uma pequena vantagem, que é o saldo positivo de sua vida: não ter tido filhos. Uma vez que, como Brás Cubas aprendeu com a Natureza/Pandora que a vida é apenas sofrimento e ilusão, foi melhor não ter colocado mais uma pessoa no mundo para sofrer e iludir-se. Nascer e viver é apenas compartilhar o legado (a herança) da miséria humana (miséria em todos os aspectos, não apenas no econômico).

As palavras finais de Brás Cubas confirmam a visão pessimista que atravessa todo o livro, apesar da ironia, do cinismo e da desfaçatez do defunto narrador.