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1. INTRODUÇÃO Os arquipélagos da Madeira e dos Açores situam-se no Oceano  Atlântico, relativamente perto de Portugal Continental.   A ilha da Madeira, a maior e mais importante do arquipélago do mesmo nome, fica a 1050 Km de Lisboa, a cerca de 17º de longitude e 33º de latitude. O arquipélago é formado por esta ilha, pela de Porto Santo, por dois grupos de pequenas ilhas: três Desertas e duas Selvagens, e ainda por alguns ilhéus. A Madeira tem uma área de 766 Km 2  (58 Km de comprimento por 24 Km de largura média) e Porto Santo tem uma área de 50 Km 2 , sendo as duas únicas ilhas com condições e dimensões para serem habitadas.  Os Açores ficam a 1500 Km do continente, com uma latitude entre 36º e 55¶ e 39º e 43¶ e uma longitude entre 25º e 31º e 15¶. O arquipélago estende-se por 600 Km de noroeste a sudeste, ocupa uma área total de 2317 km 2 , sendo a maior ilha a de S. Miguel que ocupa uma área de 746 km 2 (61 km de comprimento por 14 km de largura média). É constituído por 9 ilhas, todas habitadas (e ainda pelos ilhéus Formigas), que formam três grupos: Grupo Ocidental  (a noroeste)  Flores e Corvo  Grupo Central  Terceira, Graciosa,Pico e Faial Grupo Oriental  (a sudeste) S. Miguel, Sta. Maria e ilhéus Formigas Todas as ilhas destes dois arquipélagos são de or igem vulcânica, de relevo acidentado, terra fértil, muita vegetação e clima ameno. 

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1. INTRODUÇÃO 

Os arquipélagos da Madeira e dos Açores situam-se no Oceano Atlântico, relativamente perto de Portugal Continental. 

  A ilha da Madeira, a maior e mais importante do arquipélago domesmo nome, fica a 1050 Km de Lisboa, a cerca de 17º de longitude e33º de latitude. O arquipélago é formado por esta ilha, pela de PortoSanto, por dois grupos de pequenas ilhas: três Desertas e duasSelvagens, e ainda por alguns ilhéus. A Madeira tem uma área de 766Km2

 (58 Km de comprimento por 24 Km de largura média) e PortoSanto tem uma área de 50 Km2, sendo as duas únicas ilhas comcondições e dimensões para serem habitadas. 

Os Açores ficam a 1500 Km do continente, com uma latitude entre36º e 55¶ e 39º e 43¶ e uma longitude entre 25º e 31º e 15¶. O

arquipélago estende-se por 600 Km de noroeste a sudeste, ocupauma área total de 2317 km2, sendo a maior ilha a de S. Miguel queocupa uma área de 746 km2 (61 km de comprimento por 14 km delargura média). É constituído por 9 ilhas, todas habitadas (e aindapelos ilhéus Formigas), que formam três grupos: 

Grupo Ocidental  

(a noroeste) 

Flores e Corvo 

Grupo Central  

Terceira,Graciosa,Pico e

Faial Grupo Oriental  

(a sudeste) 

S. Miguel, Sta. Mariae ilhéus Formigas 

Todas as ilhas destes dois arquipélagos são de origem vulcânica, derelevo acidentado, terra fértil, muita vegetação e clima ameno. 

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2. PORQUE SE CHAMARAM "ILHAS ENCANTADAS" 

.  Antes dos Descobrimentos Portugueses o conhecimento dosmares era muito limitado. A partir da Europa viajava-sesobretudo no Mar Mediterrâneo, no Mar Negro e junto à costano Oceano Atlântico. O mais que se conhecia para sul eram as

Ilhas Canárias. 

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Como ninguém sabia ao certo o que havia para além do horizonte,

acreditava-se nas histórias fantásticas que contavam algunsmarinheiros e pescadores que, por qualquer razão, se tinhamdesviado das suas rotas. O medo do desconhecido fazia acreditar emmonstros marinhos que engoliam barcos, ondas gigantescas de águaa ferver, o perigo de atingir a borda do mundo e cair no abismo semfim, homens disformes que destruíam quem abordasse as suas terras,sereias de grandes encantos e voz maravilhosa que vinham àsuperfície para atrair os navegadores e os levarem consigo para ofundo do mar... Mas também se julgava existirem locais com árvoresque, em vez de frutos, davam pedras preciosas, ilhas paradisíacas,locais maravilhosos que despertavam a vontade de os encontrar. 

Em mapas do século XIV, no de Dulcert por exemplo, aparecem  já desenhadas umas ilhas nos locais onde se situam a Madeira ePorto Santo, mas com outros nomes. A verdade é que muitas outras

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ilhas mais ou menos fantásticas aparecem também representadas: Antília, Ilha das Sete Cidades, São Brandão, Satanazes, Cassitérides,etc... No entanto, em 1370, no Atlas Medici aparece a ilha da Madeira,com o nome de "Legname"(que quer dizer "madeira" em italiano), a dePorto Santo e uma Deserta. Em 1375 o Planisfério de Cresques inclui

 já o arquipélago da Madeira completo: Porto Santo, Madeira, Desertase Selvagens. 

Nunca ninguém saberá quem foi o primeiro a avistar a Madeira e os  Açores. É natural que os marinheiros portugueses, que há muitosséculos percorriam as costas da Europa e Norte de África, sempreperto de terra para não se perderem, e talvez até já anteriormentenavegadores cartagineses, romanos ou árabes, soubessem que paraOcidente existiam ilhas. Isto porque as tempestades, as correntesmarítimas e os ventos por vezes arrastavam os barcos para o largo.Muitos afundaram-se mas outros, navegando ao acaso, conseguiram

voltar. Por certo, nesses percursos à deriva, terão avistado ou mesmodesembarcado nas ilhas do Atlântico. E trouxeram notícias delas e deoutras que, no meio das tormentas, julgaram ter visto no meio do mar.No auge da tempestade, dificilmente se distinguia a realidade dosonho... e assim as notícias espalharam-se pela Europa, envoltas emmistérios e lendas. Umas teriam um fundo de verdade, outras não. 

Mas se é provável que gentes e navios por lá tivessem passado, averdade é que continuaram desertas e solitárias no oceano, até queos portugueses lá chegassem. Mas esquecidas não estavam:

perduravam nas histórias fantásticas que se contavam e nos desejossecretos de encontrar as suas maravilhas.

3. AS LENDAS SOBRE ESSAS ILHAS 

3.1. A ORIGEM E DESCOBERTA DAS ILHAS DOS AÇORES 

A LENDA DA ATLÂNTIDA 

Conta-se que houve em tempos um continente imenso no meio dooceano Atlântico chamado Atlântida. Era um lugar magnífico: tinha

belíssimas paisagens, clima suave, grandes bosques, árvoresgigantescas, planícies muito férteis, que às vezes até davam duas oumais colheitas por ano, e animais mansos, cheios de saúde e força.Os seus habitantes eram os Atlantes, que tinham uma enormecivilização, mesmo quase perfeita e muito rica: os palácios e temploseram todos cobertos com ouro e outros metais preciosos como omarfim, a prata e o estanho. Havia jardins, ginásios, estádios... todos

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eles ricamente decorados, e ainda portos de grandes dimensões emuito concorridos. 

 As suas jóias eram feitas com um metal mais valioso que o ouro eque só eles conheciam  __ o oricalco. 

Houve uma época em que o rei da Atlântida dominou várias ilhas emredor, uma boa parte da Europa e parte do Norte de África. Só nãoconquistou mais porque foi derrotado pelos gregos de Atenas. 

Os deuses, vendo tanta riqueza e beleza, ficaram cheios de inveja e,por isso, desencadearam um terramoto tão violento que afundou ocontinente numa só noite. Mas parecia que esta terra era mesmomágica, pois ela não se afundou por completo: os cumes dasmontanhas mais altas ficaram à tona da água formando nove ilhas, tãobelas quanto a terra submersa  __ o arquipélago dos Açores. 

 Alguns Atlantes sobreviveram à catástrofe fugindo a tempo e forampara todas as direcções, deixando descendentes pelos quatro cantosdo mundo. São todos muito belos e inteligentes e, embora ignorem asua origem, sentem um desejo inexplicável de voltar à sua pátria. 

Há quem diga que antes da Atlântida ir ao fundo, tinham descobertoo segredo da juventude eterna, mas depois do cataclismo, os quesobreviveram esqueceram-se ou não o sabiam, e esse conhecimentoficou lá bem no fundo do mar. 

Platão, grande filósofo grego, que viveu cinco séculos antes deCristo, descreveu com alguns pormenores desta terra mítica nos livros"Críticas" e "Timeu". 

A LENDA DOS NOVE IRMÃOS 

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 A meio do oceano havia um país lindo com árvores a cobrir grandesmontanhas. Algumas destas eram tão grandes que pareciam chegar ao céu. 

Ora nesse país havia um rei que tinha nove filhos muito amigos, e

um dia chamou-os e pediu-lhes que lhe dissessem que sítio preferiam,pois ele queria dar uma propriedade a cada um. 

Todos escolheram montanhas, mas como se entendiam bem, nãohouve discussões e cada um foi para um dos nove cumesmontanhosos do país, tendo marcado encontro para daí a um ano. 

Na véspera desse dia eles andavam tão excitados que malconseguiram dormir. 

De noite ouviram um grande ruído, e viram com terror que o

continente se tinha afundado, ficando à tona de água apenas os novecumes. Agora a única maneira de comunicarem era de barco, demaneira que deitaram mãos ao trabalho. 

Pouco tempo depois estavam todos a abraçar-se, pois aprenderam aviajar pelo mar, já que agora viviam cada um numa ilha __ as ilhas dos Açores. 

A LENDA DAS SETE CIDADES 

No tempo em que os árabes invadiram e dominaram a penínsulaIbérica, sete bispos terão conseguido fugir de barco com um grupo defiéis. Ter-se-ão refugiado numa ilha no Atlântico, que encantaram paraque ninguém os descobrisse e atacasse, envolvendo-a em nevoeirosque a tornavam inacessível. Aí fundaram sete cidades maravilhosas,onde havia muita riqueza, e que um ou outro marinheiro perdidoconseguira entrever mas nunca abordar, devido a correntes e ventosque sempre os afastavam. 

 A fama de tais maravilhas espalhou-se, no entanto, e a ilha das SeteCidades chegou a aparecer mencionada em mapas da época. 

3.2. A DESCOBERTA DAS ILHAS DA MADEIRA 

A LENDA DE SÃO BRANDÃO 

São Brandão foi um monge irlandês que viveu no século VI. Elelançou-se numa aventura marítima na ideia de encontrar o paraíso

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terrestre. Essa viagem deu origem a uma lenda descrita no livro "VitaSancti Brandani Abbatis, Navigatio Sancti Brandani". Segundo esselivro, São Brandão teria encontrado uma ilha magnífica, cheia deárvores e muita flora, o que o levou a pensar que estava no paraísoterrestre. A "ilha de São Brandão" chegou a ser demarcada nalgumas

cartas marítimas, e foi identificada por muitos com sendo a Madeira. Esta lenda contribuiu para impulsionar os Descobrimentos

Portugueses, pois não faltaram expedições que procuraram em vãoesse paraíso. 

A LENDA DE MACHIM 

Muitos documentos antigos e relatos de viagens falam desta linda

história de amor. 

Machim era um jovem e belo cavaleiro inglês, forte e corajoso, massem fortuna. Apaixonou-se por uma menina da alta nobreza chamada Ana d¶Arfet. Ela correspondia ao seu amor. Enviavam mensagens umao outro por uma ama e combinavam encontros secretos. Andavamtão entusiasmados que não conseguiam esconder o que sentiam e, acerta altura, os pais dela descobriram e rebentou um escândalo, pois ocasamento entre eles não era possível visto que ela pertencia a umaclasse social superior à de Machim. 

Os pais conseguiram que o próprio rei de Inglaterra arranjasse umnoivo de alta linhagem para casar com a filha. Ana não teve outroremédio senão obedecer aos pais, mas não se conformou. Machim,como era um homem de acção, não desistiu do seu amor e, com aajuda de amigos e parentes, traçou um plano de fuga para França. 

No maior segredo, mandou-lhe a proposta pela ama do costume,marcando-lhe encontro no porto da cidade de Bristol. Aí embarcariamnum navio de mercadores, quando a tripulação estivesse em terra. Ana aceitou. Fugiu de casa de madrugada, levando consigo apenas

um crucifixo e as suas jóias. Machim e os companheiros esperavam-na num batel e, mal ela

chegou, remaram para um navio que estava parado e sem ninguém,soltaram logo a vela e fizeram-se ao mar. 

Uma tempestade enorme arrastou-os para o largo, e como nãotinham com eles piloto, perderam-se e andaram à deriva, ao sabor do

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vento e das correntes. Passados alguns dias avistaram uma terradesconhecida, toda coberta de arvoredo, mas desabitada. Aí deitaramâncora numa grande enseada e desembarcaram. 

  A partir daqui há duas versões da história: uma termina bem e a

outra, pelo contrário, resulta numa tragédia: Primeira versão: 

Os dois apaixonados encontraram abrigo num enorme tronco oco deuma árvore, água com abundância e frutos silvestres para matar afome. Na manhã seguinte descobriram que o barco e oscompanheiros tinham desaparecido, talvez levados pelo vento ou por algum encanto. Mas não se importaram: estavam juntos, tinham umabrigo e podiam construir mesmo uma cabana onde viver, não lhesfaltava comida e água... 

O local onde o parzinho desembarcou e viveu veio a chamar-seMachico em homenagem a Machim. 

Segunda versão: 

  Ana desembarcou na ilha porque se encontrava doente de tãoenjoada, pois a viagem tinha sido terrível. Machim resolveu então queficariam ali alguns dias para descansarem antes de prosseguiremviagem. Ana e Machim não precisaram de construir qualquer abrigoporque encontraram uma enorme árvore oca, tão espaçosa que

puderam pernoitar nela. 

Mas na terceira noite que lá passaram levantou-se um vento tãoforte que o barco se soltou e partiu, levando a maioria doscompanheiros, que nada puderam fazer senão deixar-se arrastar. 

Na ilha, verificando o desaparecimento da nau, Ana d¶Arfet entrounum tal desespero que nunca mais falou e morreu passados poucosdias. 

Machim, louco de dor, pediu aos poucos companheiros que tinhamficado na praia que partissem no pequeno barco a remos que lhesrestava e que tentassem alcançar terra. Ele queria morrer ali e ficar sepultado ao pé da sua amada, pois a vida já não lhe interessava. Osamigos ficaram com ele, sempre a tentar convencê-lo a partir também,mas, passados uns dias, Machim morreu. Colocaram as duassepulturas uma ao lado da outra, encimadas por uma cruz, e lápartiram à aventura, em demanda do continente. 

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Conclusão: 

O final desta história é mais ou menos idêntico para as duasversões: os companheiros de Machim, levados por correntesmarítimas, foram dar a terras árabes e aprisionados. Entre os cativos

encontravam-se marinheiros castelhanos e/ou portugueses quetomaram conhecimento desta aventura. Mais tarde foram libertados oucapturados por barcos portugueses e um deles ter-lhes-á contado ahistória. 

Há uma versão que diz mais: terá sido o próprio João GonçalvesZarco o capitão do navio que teve conhecimento destes factos e teráentusiasmado o Infante D. Henrique, que se encontrava em Sagres, airem em busca dessa terra para dela tomarem posse. Assim se fez,com autorização do rei D. João I.

3.3. A LENDA DOS MARINHOS 

Nos tempos da reconquista da península Ibérica, existiu umcavaleiro, grande amante da caça, que vivia no Minho, num belocastelo à beira-mar. Chamava-se D. Froião ou D. Froiaz. 

Um dia, quando andava à caça, chegou a uma garganta entre doismontes, onde uma ribeira se juntava com o mar, e aí encontrou umaformosa mulher marinha, adormecida na margem. D. Froiaz

aproximou-se com toda a cautela e conseguiu agarrá-la e capturá-la. 

O fidalgo mandou baptizá-la com o nome de Dona Marinha,casaram-se e viveram muito felizes com os seus filhos, os Marinhos. 

Esta lenda, muito conhecida na península Ibérica e reivindicada por portugueses e galegos (D. Froião para alguns viveria na Galiza),aparece referida como um facto no "Nobiliário do Conde de BarcelosDom Pedro", onde pode ler-se: « Dom Frojão, foi um bom cavaleiro;era caçador e monteiro; casou com Dona Marinha na Galiza, e tevevários filhos.» 

Também um precioso manuscrito de Diego de Mendoza, existentena Biblioteca Nacional de Madrid refere a mesma lenda citada peloConde Dom Pedro sobre a origem dos Marinhos. 

Teófilo Braga, nos "Livros de Linhagens" transcreve a mesmahistória mas com mais pormenores: como D. Marinha foi encontrada ecapturada por Dom Froião e o seu baptismo. 

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3.4. "O ROMANCE DAS ILHAS ENCANTADAS" de J.CORTESÃOs 

Jaime Cortesão, escritor e historiador especialmente interessado nosDescobrimentos Portugueses, reuniu numa pequena obra, "ORomance das Ilhas Encantadas", algumas das lendas já citadasanteriormente, que dizem respeito tanto à descoberta da Madeiracomo dos Açores, articulando-as, de acordo com algumas das versõesencontradas, e estabelecendo entre elas e os factos históricosconhecidos uma interligação. 

Ele próprio, no início da obra, diz: 

" Este romance que ides ler..., não julgueis que de ponta a ponta oinventei, para depois vo-lo contar. Ele anda escrito, pedaço aqui,pedaço além, por velhos livros onde se recordam histórias contadaspelo povo nas idades antigas. 

Por mim, pouco mais fiz do que juntar as folhas espalhadas eesquecidas dessa linda história, sacudir-lhes o pó e uni-las de seguidacom o mesmo fio." 

Diz "O Romance das Ilhas Encantadas" que, embora poucas vezes

alguém navegasse ao largo, um ou outro navegante avistava, de longeem longe, algumas ilhas no Atlântico. Sabia-se até que São Brandão,um santo navegador, embarcara na Irlanda com setenta e cincomonges e que, apanhado numa tempestade, fora levado por ventosmisteriosos até abordar uma dessas ilhas, na qual ficava o paraíso. 

  Anos mais tarde, quando os mouros conquistaram aos cristãos asterras que hoje constituem Espanha e Portugal, sete bispos partiramde barco da região onde é hoje o Porto, com os seus fiéis, enavegaram para Ocidente durante muito tempo, conseguindo abordar algumas das ilhas. Quando lá chegaram, queimaram os navios paraque os seus homens não voltassem, e um bispo que conhecia as artesmágicas, encantou as ilhas para que ninguém as descobrisse,enquanto os mouros não tivessem sido expulsos da Península Ibérica.Porém, se alguém casasse com uma mulher marinha, os seus filhos,por herança da mãe, também as poderiam desencantar. 

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Daí em diante os mouros diziam que para Ocidente havia tantaescuridão que era impossível seguir para além. Só alguns cristãossabiam que as ilhas existiam e nelas era sempre Primavera: asárvores estavam cobertas de frutos, havia muitas aves e o clima eraameno; outras tinham cidades fabulosas, com muitos palácios e

riquezas (a ilha das Sete Cidades). No entanto, se algum marinheiro láchegava perto, levado pelo acaso, não conseguia mais do queentrevê-las, pois logo um vento irresistível o atirava na direcçãocontrária, um nevoeiro se interpunha ou simplesmente a ilha sedesvanecia como fumo. 

Por isso chamavam-lhes as I lhas Encantadas ou Perdidas, e todosardiam no desejo de as encontrar. 

Muito mais tarde, quando D. Afonso Henriques andava a conquistar as terras aos mouros, havia um nobre chamado D. João Froiaz, que

vivia no Minho, num belo castelo ao pé do mar. Gostava muito decaçadas e montarias e nelas ocupava grande parte do seu tempo. 

Certa manhã partiu com os seus homens para a caça, comohabitualmente. Dirigiu-se para a foz de um ribeiro, na esperança de aíencontrar algum veado a matar a sede. Mas o que viu deixou-oespantado: no ponto onde as águas do mar e do rio se encontravamestava uma linda mulher marinha, de cabelos soltos e mal coberta por um vestido de algas. Dormia tranquilamente, gozando o sossego damanhã, com a cabeça apoiada nas plantas da margem. 

D. Froiaz estava decidido a apanhá-la e por isso mandou os seushomens pararem. Com pezinhos de lã dirigiu-se para a mulher, masela deu pela sua presença e desatou a correr para o mar. Não chegoua tempo, pois o cavaleiro agarrou-a antes. Ela esbracejava e debatia-se, mas nem uma palavra dizia. 

O fidalgo levou-a para o seu castelo, apaixonou-se por ela, baptizou-a com o nome de Marinha e casou com ela. E, com medo que elafugisse para o mar, levou-a para outro castelo nas montanhas. 

D. Marinha andava sempre a suspirar com as saudades do mar,embora o seu marido a tratasse com muito carinho e a rodeasse comdelicadezas e cuidados, e continuava a não falar. 

Entretanto já tinham filhos e D. Froiaz, cujo único desgosto era osilêncio da mulher, um dia armou uma grande fogueira, pegou no filhomais novo e fingiu que o arremessava para o lume. A mãe, numagrande angústia, gritou, tentando impedir o marido: 

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 __ Ai, o meu filho! 

D. Froiaz, eufórico, entregou-lhe a criança e disse que tudo tinhasido um estratagema para que ela falasse. 

Depois disto D. Marinha ficou totalmente humana, e por issopuderam voltar para o castelo à beira-mar. 

 Aí os filhos, os Marinhos, ocupavam grande parte do seu tempo napraia a explorar grutas e reentrâncias da costa ou a nadar pelo mar dentro. 

Uma vez D. Froiaz deixou escapar por distracção o filho mais novo,que trepou a uma rocha e foi levado por uma onda, que o arrastoupara longe da praia. Louco de aflição, o pai já se preparava para seatirar à água, embora não soubesse nadar, quando uma coisa

extraordinária aconteceu: o mar acalmou de súbito e uma ondaenorme, como uma grande mão, veio depor a criança suavementesobre a areia. 

Quanto mais cresciam mais se notava que os filhos de D. Froiaz e D.Marinha eram netos do Mar: escutavam as histórias do oceano nosgrandes búzios que apanhavam na praia, ouviam e falavam com asondas, conheciam os segredos do mar como ninguém. E, quandocresceram, ganharam fama de serem os melhores mareantes do seutempo. 

O mais novo dos Marinhos, Machico, ouvira falar das ilhasencantadas e de que numa delas encontrara São Brandão o paraíso. Aprestou uma barca de mantimentos e aparelhos e partiu com algunscompanheiros. 

Quatro ou cinco dias depois de seguir pela rota que lhe haviamensinado viu no horizonte nuvens que pousavam sobre o mar, sinal deterra próxima. Quanto mais se aproximavam, mais a névoa seadensava e ouviam-se estrondos enormes. Os marinheiros, cheios demedo, pensaram que ali era a entrada para o Inferno e pediram a

Machico que voltasse para trás. Mas de súbito, o nevoeiro descerrou-se e viu-se um espectáculo

belíssimo: as rochas erguiam-se a pique sobre o mar; bosques degrandes e belas árvores desciam até à água; mais adiante estendiam-se montes que pareciam não acabar e um suave perfume espalhava-se no ar. Machico, perante o esplendor da ilha, convenceu-se que

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tinha chegado ao paraíso de São Brandão e, como a terra era todacoberta de florestas, chamou-lhe a ilha da Madeira. 

Muito mais tarde, o Infante D. Henrique, filho do rei D. João I, que seinteressava muito pelas coisas do mar, teve conhecimento da viagem

do Machico por algum dos descendentes dos Marinhos, que nessetempo já eram muitos. O Infante D. Henrique juntou, então, osMarinhos mais marinheiros que havia em Portugal no cabo de SãoVicente e, uns com os outros e com os astrólogos que o Infantechamou, tornaram-se invencíveis na arte de domar as ondas. Da costaalgarvia partiram a descobrir os segredos dos mares. 

Uma das expedições do Infante conseguiu, apesar dos ventos e dosnevoeiros que dificultavam o caminho, chegar a outra das ilhasencantadas  __ a Ilha das Sete Cidades  __ onde encontraram ospalácios e as riquezas de que falavam as lendas. 

 Ainda hoje existe nessa ilha, que agora se chama São Miguel, umlugar maravilhoso com aquele antigo nome  __ Sete Cidades  __ onde háuma lagoa, metade verde e metade azul, no fundo de uma cratera,rodeada de vegetação riquíssima. 

Também na ilha da Madeira há um lugar chamado Machico, donome do seu descobridor. 

Mas só quando os cristãos conquistaram o reino de Granada, últimoterritório da Península Ibérica que ainda estava na posse dos mouros,

de todo se desencantaram as terras, as ilhas e os mares. Coube aosMarinhos e seus descendentes, os marinheiros portugueses, essatarefa. 

4. DESCOBERTA OFICIAL E COLONIZAÇÃO DAS ILHAS DAMADEIRA E DOS AÇORES 

4.1. A MADEIRA

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  A descoberta definitiva das ilhas da Madeira foi feita pelosportugueses. 

Se é provável que anteriormente lá tivessem passado outros barcose outros povos, o certo é que continuaram desertas, solitárias e

esquecidas no meio do Oceano Atlântico, até à chegada de JoãoGonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira à ilha de Porto Santo. 

Não se sabe com precisão a data, mas situa-se entre 1417 e 1420.No entanto o ano mais provável, segundo os especialistas, é 1418. 

Do que não há dúvidas é que estes capitães e os marinheiros quecom eles iam navegavam ao serviço do Infante D. Henrique que,nessa época, estava empenhado em organizar viagens para a costade África. 

Já há divergência quanto ao rumo que João Gonçalves Zarco eTristão Vaz Teixeira levavam: há quem considere que se dirigiam àcosta de África, mas foram desviados por uma tempestade, indo parar por acaso à ilha de Porto Santo; outros crêem que foram enviadospara fazer a descoberta oficial e tomar posse das ilhas de que já havianotícia. 

De qualquer modo, só depois da sua viagem é que estas ilhasentraram na História. 

Em relação ao nome de Porto Santo também não há acordo. Uns

dizem que foi por terem chegado lá no dia 1 de Novembro, dia deTodos os Santos; outros que foi por se terem salvo de um temporal;outros ainda que apenas mantiveram o nome posto por outrosmarinheiros que ali tinham aportado, levados por alguma tempestadee aí encontraram salvação. 

Nessa primeira viagem não foram à ilha da Madeira, regressaram aoreino a dar conhecimento da descoberta ao Infante D. Henrique,levando indicações sobre a localização e a rota e amostras de terra eplantas. 

No ano seguinte, com Bartolomeu Perestrelo, voltaram a PortoSanto para ocuparem a ilha. Desta vez não a encontraram deserta,mas ocupada por frades franciscanos sobreviventes de um naufrágio. A esse lugar chamaram Porto de Frades. 

De Porto Santo à Madeira a distância é curta e, por isso muitoshistoriadores pensam que os navegadores terão passado de uma ilha

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à outra de imediato e sem dificuldade. Se assim foi ninguém o registoupor escrito. Os relatos que existem contam uma história bem diferente,que, no entanto, pode não passar de mais uma fantasia, pois não foiescrita pelos próprios. 

Da ilha de Porto Santo avistava-se uma grande nuvem negra, deque os homens tinham medo julgando que seria a boca do Inferno (oescuro seria o fumo negro da fornalha onde ardiam as almas penadaspecadoras) ou o começo de um abismo onde os barcos cairiam forada borda do mundo. O capitão Zarco resolveu meter-se no barco comalguns homens e ir ver o que era aquilo. Saíram de madrugada e por volta do meio-dia chegaram ao local da escuridão. Aí os marinheirosentraram em pânico com os rugidos tenebrosos que ouviam e nãoconseguiam ver de onde provinham. Mas o capitão continuou emfrente até avistarem uma ponta de terra. Deram a volta para sul, ondehavia menos nevoeiro, e perante eles surgiu então uma ilha muito

bela, coberta de arvoredo __ a ilha da Madeira. 

Chamaram Ponta de S. Lourenço à primeira ponta de terra queavistaram, por ser o nome do navio do capitão. 

Como já era noite, ficaram nos barcos e só na manhã seguinteforam a terra onde ficaram encantados com a beleza da ilha:montanhas altíssimas caindo a pique sobre o mar, vales verdejantes eabrigados, baías da águas transparentes e calmas, vegetação densaaté à praia, frutos à mão de semear, pássaros que, nunca tendo vistogente e não temendo as suas armadilhas, vinham pousar na cabeça enos ombros dos homens. 

De acordo com algumas versões, terão encontrado vestígios depassagem de gente, bem como dois túmulos (os companheiros deMachim e as sepulturas dos dois amantes). A este lugar chamaramMachico. Terá sido até dentro da árvore oca que teria servido deabrigo aos Ingleses que se armou um altar e se disse a primeira missana ilha. Mais tarde nesse lugar foi construída um igreja. 

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No dia seguinte, deixando os barcos ancorados em Machico,partiram em batéis a fazer uma viagem de reconhecimento da ilha,sempre encantados com o que viam. Foram dando nomes aos pontospor onde passavam: Ponta do Seixo a um sítio onde havia seixos,Santa Cruz a um local onde o capitão mandou erguer uma cruz;

Funchal a um vale coberto de pedrinhas onde a única vegetação erafuncho; Câmara de Lobos onde encontraram muitos lobos marinhos;Cabo Girão ao último ponto por onde passaram no fim deste seuprimeiro giro. 

Sendo as ilhas desertas, não tinham dono, por isso D. João I deu-asao filho, o Infante D. Henrique, como prémio de as ter mandadodescobrir. Este dividiu as ilhas em três capitanias, duas na Madeira euma em Porto Santo e entregou-as aos seus descobridores para queas povoassem e desenvolvessem. Bartolomeu Perestrelo ficou com ailha de Porto Santo e os outro dois dividiram a Madeira entre si. 

Não se sabe a data exacta do início da colonização, mas osdocumentos apontam datas entre 1420 e 1425. 

Os capitães partiram acompanhados das suas famílias, animaisdomésticos, utensílios variados e sacos de sementes. Além destesforam também mais homens da pequena nobreza, uns solteiros,outros já com família, e gente do povo. Alguns eram criminosos aquem o rei perdoou crimes menores para irem como colonos. 

E foram estes colonos que enfrentaram os problemas de tornaremhabitáveis duas ilhas desertas, o que nem sempre foi fácil, sobretudoem Porto Santo, onde a água e a vegetação eram escassas. NaMadeira, pelo contrário foi o excesso de arvoredo que trouxeproblemas para a agricultura. A única maneira que encontraram pararesolver a questão foi deitar fogo ao mato, que ardeu num braseiroincontrolável: conseguiram-se clareiras, mas durante sete anos houve

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focos de incêndio na ilha que ninguém conseguia dominar. Quandosoprava o vento do norte, as gentes do Funchal tinham que fugir paraos barcos e fazer-se ao largo, de tal maneira o calor era insuportável. 

Em Porto Santo houve ainda outro problema: os coelhos.Bartolomeu Perestrelo levou na viagem uma coelha grávida. Os

coelhinhos deram-se tão bem e reproduziram-se tão depressa que embreve se transformaram numa praga que destruía todas as culturas. 

4.2. AÇORES 

O primeiro mapa em que aparece o arquipélago dos Açores muitoparecido com o que é na realidade é de 1439 e foi feito por umcartógrafo catalão chamado Gabriel Valseca. Nele é apontado o nomedo português Diogo de Silves como seu descobridor. As datasprováveis dessa primeira viagem são 1427 ou 1432. O mapa nãoinclui ainda as ilhas de Flores e Corvo. 

Isto leva a que historiadores como o professor Luís de Albuquerque,um dos maiores especialistas nos Descobrimentos Portugueses,considere que a chegada dos portugueses foi um descobrimentoabsoluto. 

No entanto há quem continue a afirmar ter havido descobridoresanteriores, pescadores ou marinheiros, que deram com as ilhas por 

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acaso, ao desviarem-se das suas rotas. Souberam da sua existênciamas não consta que essa informação tenha sido aproveitada. 

 As ilhas eram desabitadas, com clima suave e cheias de vegetação.É de 1439 o primeiro documento sobre o povoamento dos Açores. É

uma carta e diz que: o Infante D. Henrique já tinha mandado soltar ovelhas e cabras nassete ilhas dos Açores; 

o regente, D. Pedro, irmão do Infante D. Henrique e tio de D.  Afonso V, que nessa altura tinha apenas seis anos, autorizava-o amandar colonos para povoarem as ilhas. 

  A colonização foi feita no sistema de capitanias. Conforme eracostume da época, o Infante entregou as ilhas a capitães-donatários

da sua confiança que se tornavam responsáveis pelas terras. Cadaum deles tinha que chamar gente, mandar cultivar os campos,construir cidades e organizar a vida da população. Nos seusterritórios, cada um era como um rei, até na aplicação da justiça e noarrecadar dos rendimentos obtidos; só tinha que pagar um imposto aoInfante D. Henrique ou ao Infante D. Pedro. 

Os primeiros capitães donatários foram portugueses e flamengos:Gonçalo Velho Cabral, que levara as ovelhas nas viagens anteriores,ficou com S. Miguel e S.ta Maria, em 1439; o flamengo Jácome deBruges, casado com uma portuguesa, recebeu a Terceira, em 1450;

Faial e Pico foram entregues a outro flamengo  __ Josse van Hurtere(de onde deriva o nome da cidade da Horta) em 1466. 

 As ilhas de Flores e Corvo foram descobertas em 1452 por Diogo deTeive, que partira do Faial com um filho e, quando menos esperava,viu pela frente aquelas duas pequenas e bonitas ilhas. Estas duascapitanias foram dadas a Guilherme van der Haegen, que tambémrecebeu a de São Jorge, em 1470. 

 A Graciosa só foi povoada em 1510 por Pedro Correia e Vasco Gil

Sodré. O nome do arquipélago __ Açores  __ vem do grande número desses

pássaros que sobrevoavam as ilhas quando foram descobertas.

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Romance das ilhas encantadas Jaime Cortesão 

Em tempos que já lá vão, um bispo nigromante encantou as ilhas do grande mar Oceano. E ninguém mais desde essa hora conseguiu saber ao certo onde ficavam.

Porque ² ora sabereis ² antes do tal encantamento, ainda que rara vela se afoitasseao largo, jamais as ilhas se furtavam ao olhar dos homens e, de longe em longe, um ououtro navegante as avistava.

Sabia-se até que S. Brandão, um Santo navegante, embarcara na Irlanda com 75monges, que um vento misterioso inchara as velas do navio, e em meio de cantos emúsicas de anjos, o levara a uma dessas ilhas, na qual ficava o Paraíso.

Mais tarde, quando os moiros conquistaram aos cristãos as terras que hoje compõema Espanha e Portugal, sete bispos embarcaram no Porto com os seus fiéis e, navegando

 para Ocidente durante longo tempo, conseguiram abordar também algumas dessasilhas.

Mas, chegados ali, os bispos queimaram os navios, as velas e tudo o que eraindispensável à navegação ao largo, para que a sua gente não pensasse mais em

regressar.Foi então que o bispo do Porto, aquele que era nigromante, isto é, que conhecia as

artes mágicas, encantou as ilhas para que ninguém mais as abordasse, enquanto oscristãos não tivessem reconquistado aos moiros todas as suas terras. Só assim se

 julgaram seguros de que os seus inimigos os não fossem ali mesmo perseguir.Depois disto, numa daquelas ilhas, cada bispo com a sua gente construiu urna cidade

e por esse motivo lhe chamaram a Ilha das Sete Cidades. E durante alguns séculos oshomens não puderam visitar as ilhas do Oceano.

Os moiros, esses, diziam que para Ocidente, havia no mar tamanha escuridão, queera impossível seguir para diante.

Além disso, das entranhas da água cor de pez saíam bastas vezes monstrosespantosos dragões e serpentes enormes ² que ao escancararem a goela desmedida,exalavam um hálito por tal modo fétido e pestífero, que de pronto matavam a quantos

 por má ventura o respiravam, e outras vezes com as suas terríveis queixadas partiam osnavios pelo meio.

Por isso árabes e moiros chamavam Mar Tenebroso ao Oceano. E os marinheirosseguiam com os navios ao longo da costa, de porto a porto, sem se aventurarem ao mar largo, com receio das trevas e dos monstros.

Só os cristãos sabiam que nalgumas dessas ilhas do Oceano reinava urna constantePrimavera: as árvores estavam sempre cobertas de flores e frutos saborosos; e as avesenchiam de cantos as florestas. Outras ostentavam cidades tão maravilhosas, de tantos

 palácios e riquezas, que era de oiro mesmo o pó do chão.E os marinheiros que alguma tempestade havia surpreendido e atirado dias e noites

sem parar para a infinidade do mar largo, se acaso podiam regressar à sua terracontavam sempre histórias de pasmar.Às vezes ² diziam eles ² avistavam as ilhas de bordo dos navios. Ao passo que se

aproximavam delas, os montes, as baías, os bosques e os belos edifícios, que elescontemplavam com assombro, cresciam a seus olhos pouco a pouco. Chegavam a ver asagulhas das torres e os ramos das árvores mais altas reflectidas nas águas remansosas, aaspirar o perfume das árvores em flor que se espalhava ao largo, e a ouvir os sinosrepicar ao longe.

Mas, quando deitavam os batéis ao mar para saltar em terra, um vento irresistível os

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atirava em direcção contrária, um cerrado nevoeiro se interpunha ou a ilha se sumia eapagava no ar como um pouco de fumo.

Acontecia até às vezes que sobre o mar de súbito deserto os marinheiros espantadossentiam mais de perto o sopro rescendente dos aromas da terra, ouviam mais ao pé ossinos tocando alegremente e vozes, gritos, gargalhadas, como se a ilha mais oshabitantes corressem junto deles, tomados invisíveis.

Assim, com palavras de espanto, eles contavam a visão maravilhosa das ilhas quetinham entrevisto. E logo os outros homens ardiam no desejo de as ver e visitar. Muitos

 partiam, mas quando, guiados por informações, tentavam encontrá-las, jamais davamcom elas. Chamaram-lhes as Ilhas perdidas.

Só as mulheres marinhas (ou, por outro nome, as ondinas), que eram filhas do mar econheciam todos os segredos do Oceano, lhes sabiam o paradeiro certo.

Prendera-as ao encantamento das ilhas o bispo nigromante com as suas artesmágicas.

E eram elas que desviavam os navios, quando estavam prestes a abordar as ilhas, queespalhavam no mar os nevoeiros para as esconder e as tornavam invisíveis aos olhosdos marinheiros assombrados.

Em boa verdade, o encanto das ilhas encantadas só poderia quebrar-se inteiramente,

conforme o desejo do bispo, quando os moiros fossem expulsos de toda a terra decristãos na Espanha.

Mas, se, até lá, algum homem da terra conseguisse casar com uma das tais mulheresmarinhas, os seus filhos por herança materna poderiam desencantar algumas das ilhasencantadas.

Ora mais tarde, quando o senhor rei D. Afonso Henriques andava conquistando aosmoiros as boas terras portuguesas, houve certo fidalgo, chamado Dom João Froiaz, quehabitava no Minho um formoso castelo para as bandas do Mar.

Era o fidalgo grande amante de caçadas e correrias pelas selvas. E quanta vez tendo partido para a caça antes do amanhecer, só noite feita regressava ao palácio! Uma elamanhã Dom João Froiaz, ainda o Sol se não erguera, partiu com os seus monteiros acaçar. Encaminhara-se o fidalgo para a beira-mar a urna cerrada selva só dele conhecidae onde, num apertado vale entre dois montes, se despenhava uma ribeira fria. Mais queurna vez, dobrada a encosta dum ou doutro lado com cautela, conseguira apanhar desurpresa veado ou corça, que viera matar a sede às águas frescas.

O sol nascera enfim. Luzia ao longe o mar. Mas no fundo dos vales que iam dar àcosta, grandes rolos de névoa desprendiam se a custo e pouco a pouco dos braços verdesdo arvoredo. Duas boas horas correra o cavaleiro pela brenha orvalhada e nem sombrade caça aparecera. Dom .João Froiaz lembrou-se então de ir àquela garganta entre osdois montes, por onde as águas desciam até unir-se ao mar. É certo, pensava ele, que só

à tarde usavam os veados, quando fatigados das corridas ou dos dias mais quentes, ir lámatar a sede. Mas, pois, até àquela hora, por onde andara a caça não surgira, resolveu-sea procurá-la nas abas da ribeira.

 ² Mais devagar! Calai os cães! Tende-vos na descida!² dizia o cavaleiro para oshomens, mal ouviu no silêncio da selva chalrar as águas que iam de pedra em pedra. ² Talvez que na margem da ribeira esteja bebendo algum veado!

Cautelosos e apoiando-se aos troncos, os homens desciam pela encosta. Mas apenasse ouvia mais esperta e fresca a voz das águas ou ramo solto que tombava. Já ocavaleiro e os seus homens, tendo chegado junto à beira-mar, desanimavam, Mas eis

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que um deles, o que ia à frente, estaca, e voltando atrás transtornado pelo espanto,exclama com voz surda:

 ² Chus! Calai-vos! Senhor; estranha caça tendes!La no fundo, a trinta passos do mar, que não mais, via-se, de meio corpo na ribeira,

que ali se misturava com as águas salgadas, e a cabeça sobre as plantas da margem, umamulher deitada.

Era uma mulher marinha, uma filha do Mar, que dormindo se esquecera no sossegodoce da manhã.

Já Dom Froiaz caladamente erguera o braço, dando sinal aos homens para fazeremalto. Depois deitou-se do cavalo abaixo. E, pé ante pé, com as maiores cautelas, dirigiu-se ao lugar onde a mulher marinha adormecera.

Eis que, a meio caminho, um ramo estalou sob os seus pés. A mulher acordou; olhouà volta; e mal que viu o cavaleiro levantou-se de salto e abalou de corrida em direcçãoao mar. Mas as mulheres marinhas correm melhor nas ondas do que sobre o chão. EDom Froiaz, mais ligeiro que os gamos da mata, foi-lhe no encalço e já quando elamolhava os pés nas ondas conseguiu deitar-lhe os braços e arrastá-la consigo para terra.

De cabeleira solta e mal coberta com o seu vestido de algas, a filha do Mar esbracejava inutilmente entre as possantes mãos de Dom Froiaz.

Mas - coisa estranha! - nem palavra de queixa se lhe ouvia!Por fim deixara de lutar. Contentes, os monteiros riam. Dom Froiaz subiu para o

cavalo, e, com o auxilio dos seus Homens, ergueu-a sobre a sela. E, sem tardar,maravilhado e satisfeito com tão nova caça, abalou direito a seu castelo.

Passado tempo, Dom Froiaz casou com a filha do Mar, depois que esta se baptizoucom o nome de Marinha. E com receio de que algum dia a vencesse a tentação do Mar eela fugisse, levou-a o cavaleiro para longe, para certo desvão, escondido na serra, ondetinha outro castelo.

Mas D. Marinha, em seu palácio, ainda que o marido a rodeasse de cuidados, tinhadias em que os olhos se lhe tornavam dum verde muito escuro como as águas doOceano, quando se aproxima a tempestade. E então dava suspiros fundos.Eram saudades que sentia do Mar.

Em tais ocasiões só parecia ter algum alivio passando horas inteiras nos pinhais querodeavam o castelo. É que os pinhais, quando por cima deles passa o vento, são como os

 búzios: escuta-se lá dentro a voz do Mar.Mas fora dos suspiros que soltava em tais momentos, nem uma palavra se lhe ouvira. Edebalde Dom João Froiaz tentara todos os meios para que falasse.

 No entretanto o casal já tinha filhos. E a um mais que aos outros se afeiçoou D.Marinha, talvez porque era de génio inquieto e bravo, e assim mais parecido com seuavô - o Oceano.

Tantos extremos não deixaram de ser considerados pelo cavaleiro. E, no desejo de a

ouvir falar, imaginou um novo ardil com que a fizesse destravar a língua.Mandou acender em seus paços uma grande fogueira. E, quando a mãe vinha de fora,trazendo ao colo aquele filho que mais que tudo amava, o cavaleiro, fingindo grandecólera, correu direito a ela, e arrancando-lho por força virou-se para o fogo, com o jeitoarrebatado de quem o quer arremessar ao lume.

E um espantoso caso se viu naquela hora. D. Marinha ergueu os braços, correu,levou as mãos ao peito e, no esforço terrível de salvar o filho, soltou um grande e rouco

 brado, como se fora dalgum monstro marinho. Depois deu outro brado mais claro eoutro ainda, até que se lhe ouviram, cortadas de aflição, as primeiras palavras: ² Ai! o

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meu filho!Dom Froiaz, cheio de alegria, pôs-lhe o filho ao colo, e animando-a com palavras

carinhosas, logo lhe disse como tudo fora amor e fingimento para que a fala lhenascesse.

E, desde então, até ao fim da sua vida falou D. Marinha.

Quebrara-se enfim o encanto da mulher marinha. Desde que, pela primeira vez, por amor de mãe se lhe soltara a língua, tomou-se inteiramente humana. Mas mal perderaum, logo ficara para sempre presa a outro encanto, que tanto Dom Froiaz como D.Marinha mais do que nunca se sentiram encantados um do outro. De sorte que, tendo elavencido a pouco e pouco a tentação das águas, o cavaleiro resolveu-se enfim a regressar ao seu castelo à beira-mar.

E quantas vezes, depois que ali chegou, olhando as ondas, D. Marinha, perturbadaaté o fundo da alma, sentiu desejos de partir de novo!

Mas logo o amor de mãe e de mulher vencia a dura tentação.Um dia, tão segura de si mesmo se sentiu que se voltou de novo para o Mar. Na

 praia, Dom João Froiaz via-a com pasmo boiar, correr, sumir-se, aparecer, cortando as

ondas com ligeireza incrível. E um momento que a viu afastar-se da praia e de arrancadaentrar pelo mar dentro, corno o barco que soltou a vela e abala para o largo, sofreu ocavaleiro inquietações mortais, no receio de que ela fugisse.

Mas dentro em pouco D. Marinha regressava. O encanto fora vencido para sempre.E, desde então, quando vinham do castelo até a beira-mar, e que D. Marinha brincavasobre as ondas, não mais o cavaleiro sentiu receio ou dúvida.

E começou para seus filhos uma vida de encanto e maravilha Manhãs, tardes inteiras,os pequenos Marinhos se ficavam na praia. Uma atracção irresistível os prendia àságuas. Entravam pelas grutas e cavernas que se abrem nas costas escamadas E os maisvelhos eram como golfinhos a nadar.

E o mar que os conhecia, todos os dias com cuidados de Avô, arrancava do fundocoisas maravilhosas para divertir os seus netinhos

Hoje eram búzios enormes, que eles a muito custo conseguiam arrastar e levar para ocastelo. Amanhã as varias conchas de moluscos, de finas cores e feitios estranhos:aquelas que têm o nome e a forma duma harpa; as que imitam a mitra que os bispostrazem na cabeça e como tal são nomeadas; o fuso longo, que lembra um fuso de fiar:

O búzio turriculado, chamado assim por ter a forma duma torre; e o murex deespinha fina, todo eriçado de agulhas delicadas.

Outras vezes, onda a onda, vinham ter à praia as espécies mais raras de vieiras, desdeas pequeninas que mal se vêem sobre a areia, até aquelas que lembram grandes leques,de varetas abertas, e que são cor de sangue, cor-de-rosa, cor de oiro e mel. Chamavam-lhes São Tiagos nesse tempo e ainda hoje em algumas povoações marítimas do Norte,

 porque os romeiros quando partiam nas peregrinações a S. Tiago de Compostela na

Galiza, as levavam como distintivo no chapéu. Não faltavam também aquelas lindas conchas redondas e estriadas a que chamam patelas, quase sempre de cor verde e muitas vezes estreladas.

E tão-pouco os ramos finos de coral vermelho, as estrelas do mar de várias coresmovendo os grandes braços, as madréporas, os ouriços e os corações da Índia.

E até, de quando em quando, o Mar tirava das entranhas as jóias mais belas que possui e vinham ter à praia, presas ainda à concha, pérolas enormes, redondas e macias,como lágrimas de luar e céu amanhecente.

Ora um dia sucedeu que Dom Froiaz viera sozinho com seus filhos para a praia; e

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um deles, o mais mocinho, que mal se erguia ainda sobre as pernas, conseguiu, por descuido do pai, trepar a um recife, que entrava pelo mar, e seguir por ele até a ponta.

De súbito veio uma onda que o levou e, depois de o prender naquele redemoinho emque elas se desfazem, atirou o menino para o largo.

 Na praia Dom Froiaz corria como louco, bradando de aflição e entrava já vestido pelas águas, posto que nadar não soubesse, quando o Mar como por encanto sossegou e

alevantou-se em todo ele uma onda enorme, que corria para a terra e sobre a qual acriança sem temor boiava.

E, na crista da onda que o sustinha com delicadeza carinhosa, Dom Froiaz comgrande espanto viu as mãos do Avô-Oceano erguer, inclinar e depor na areia o pequenoMarinho com tão suave jeito corno as mães, quando deitam um filho adormecido sobreo berço.

 Nesse tempo a costa Portuguesa era mais retalhada do que é hoje pelo Mar. Os rios,como o Lima, o Douro, o Vouga, o Mondego, o Tejo, e a ribeira de Portimão tinhamestuários mais profundos, por onde o Mar entrava, carregado de peixes, de sal e maresia,até o interior das terras. Onde fervilha hoje a população de pescadores da Nazaré, o Mar 

cobria a praia. Só o promontório do Sítio avançava o agudo espigão sobre o abismo,mais profundo naquele tempo. Foi mais tarde que a Virgem salvou a vida de D. FuasRoupinho, primeiro almirante de Portugal, que era do sangue dos Marinhos,suspendendo no ar e sobre as águas as patas dianteiras do cavalo em que montava.

Mais ao Sul, onde hoje se arredonda como um anel a concha de São Martinho, umgrande golfo entrava pela terra dentro até Alfeizerão, povoada por mouros. Maisadiante, A Lagoa de Óbidos invadia também a terra profundamente até a povoação quetomou aquele nome dos romanos. A porção de costa, onde hoje assenta Peniche e oCabo Carvoeiro, formava ilha. Eram mais profundas as furnas do Cabo e mais alterosose fantásticos os seus penhascos. Na Berlenga, maior que hoje e que mergulhava no Mar,translúcida como uma safira, havia um castelo e um palácio árabes maravilhosos.

Os Normandos, que ainda desciam dos países do Norte nos seus grandes barcos, com proa e popa em meia-lua, como as xávegas e os saveiros de hoje, penetravam nosestuários dos rios, ora em som de comércio, ora em guerra de piratas. As vezes, a meiodo combate, abandonavam alguns dos barcos mais pequenos nos recantos solitários dacosta. E os Marinhos, que já eram rapazes, se acontecia encontrar um desses barcos

 Normandos, entravam neles, tomavam os remos ou içavam a vela e visitavam as baías,os promontórios, as lagoas e as ilhas, ao longo da costa.

Viram no Mar boiar, como grandes jangadas prestes a naufragar, as mantas desargaço, cor verde-amarelo de azeitona. E acostumaram-se a conhecer as aves quevivem nos terrenos húmidos junto das lagoas, altas de perna e longas de pescoço ² ascegonhas, as garças e as abibes; as que se escondem entre os canaviais, os funchos e aservas altas, à beira dos pântanos e nadam tanto como voam __ os mergulhões, os patos

 bravos e as galinhas de água; os pássaros mais velozes, que vivem correndo em bandosna vasa das marés os maçaricos, as tarambolas e os borrelhos, tão rápidos que alguns sechamam curre-curres; os que vivem nos rochedos junto da costa, negros como eles

 ² as andorinhas do mar e os corvos marinhos; as gaivinas e gaivotas que voamsobre as ondas, com grandes asas lentas, mas entram muito pela terra dentro; ou as quevivem no mar e raras vezes aparecem na costa, como as almas-de-mestre, os calcamarese as pardelas.

Se acontecia visitarem os estuários dos rios mais distantes, para o Sul, viam com pasmo as mais belas e

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extraordinárias entre as aves da beira de água ² os flamingos. Brancos de neve, com asasas rosadas por baixo e mais ligeiramente por cima, pernas altíssimas e finas, pescoçolongo e extremamente móvel, quando largavam para longe davam a singularíssimaimpressão de que passava no ar um voo de labaredas.

E quando voltavam ao castelo, já tarde e em noites de luar, viam às vezes cruzar nocéu os bandos de aves migradouras que partiam para os países distantes. E, mais que

todos, os maravilhava o voo dos patos bravos, negros e formados em V, desenhado ananquim sobre a neve da lua.

O certo é que todos os filhos de Dom Feiroz e de D. Marinha, quanto mais cresciam,mais neles se mostrava que eram netos do Mar. Já de pequenos (dizia o povo quehabitava perto do castelo), pelos longos serões de Inverno, os Marinhos punham oouvido à escuta nos grandes búzios que tinham da praia acarretado e escutavam ashistórias que o Mar, para entretê-los, de lá de dentro lhes contava. Em dias detempestade, quando as águas rugiam, viam-nos muitas vezes descer à costa e iam tão

 perto delas que outros afirmavam que o Mar os conhecia e as ondas lhes falavam.Fosse lá como fosse, ninguém, como os Marinhos, conhecia os segredos do Oceano.

Em terra alguma, fora possível encontrar quem sobre as ondas guiasse com maisdestreza e a salvo, numa longa derrota, a vela duma barca. E em breve tanta famaganharam que eram tidos e havidos pelos melhores mareantes do seu tempo.

Ora um dos Marinhos, o mais novo, a quem chamavam o Machico, ouvira muitasvezes falar das ilhas encantadas e muitos marinheiros lhe contavam que as tinhamconseguido ver mas jamais abordar.

E o Marinho, tendo sabido que as ilhas eram tão formosas que numa delas encontraraS. Brandão o Paraíso, concebeu dentro de si um ardente desejo de ir à busca delas.

E havendo carregado a sua boa barca de mantimentos e de aparelhos necessários, oMachico partiu. Mais não seriam andados que quatro ou cinco dias, quando, depois deter seguido em certa volta que lhe haviam ensinado, uma bela manhã, ele e os seushomens viram no horizonte nuvens ou névoas que pousavam sobre o mar, sinal certo dealguma ilha ou terra próxima.

Cheio de alvoroço, o Machico seguiu naquela direcção. E ao passo que seaproximava, vinham aos seus ouvidos estrondos furiosos, como se penhas ou cataratasinvisíveis caíssem sobre o mar ou as ondas se atirassem com ímpeto de encontro aalguma escarpa alcantilada. Mas a névoa à sua frente tornara-se tão densa que eraimpossível lobrigar sequer a ponta duma rocha. E agora que a barca estava perto,ouviam-se distintamente tantos e tão violentos baques e ribombos que os marinheiros doMachico, pálidos de espanto, faziam o sinal da cruz, e já uns para os outrosmurmuravam que ali era a entrada do Inferno. E tamanho temor entrou com eles que àuma gritaram para o capitão:

 ² Senhor, façamos vela para Portugal, ou nos vamos perder todos!

Mas o Machico bradou-lhes com palavras de valoroso incitamento: ² Avante! Não temais! São as ondas a bater na costa. Estamos quase à vistadalguma das ilhas encantadas!

De súbito a névoa começou a descerrar-se como se invisíveis mãos apartassem umacortina para os lados. E viu-se um espectáculo tão belo que pelos marinheiros passouum calafrio e alguns ajoelharam de pasmo sobre as tábuas da barca. À sua frentealevantavam-se rochas alterosas a prumo sobre as ondas; selvas de árvoresfrondosíssimas vinham de escarpa a baixo até a água; e para além cerros de macia curvadesdobravam-se a perder de vista! Era uma das ilhas encantadas que se erguia para o

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Céu, corno um altar de serras e arvoredos entornando ondas de cantos, de cores e de perfumes sobre o Mar!

O Machico mais os seus mareantes cuidaram logo de saltar em terra. Estavam numailha onde o ar era morno e suavíssimo. Tão cerradas se estendiam as florestas sobre ailha, que só a muito custo conseguiam romper por dentro delas. Das árvores pendiamflores de infinitas qualidades. E dentro em pouco aqueles homens saciavam a fome na

 polpa saborosa de frutos nunca vistos.E em tudo à sua volta, desde os alcantis de rocha viva, que semelhavam monstros,

 palácios ou torres e pontes levadiças de castelos, erguidos sobre a beira-mar, até aosrecantos das florestas virgens, tão rescendentes e viçosas, como enormes cavernas deramos e de flores, eles não se cansavam de pôr olhos dilatados de espanto.

Mas o que mais assombro lhes causou foi ver que quantos animais habitavam a ilhanão mostravam o menor receio daqueles novos habitantes. As focas, nunca por elesvistas, e às quais puseram o nome de lobos marinhos, com que por muito tempo sechamaram, deixavam-se ficar, se eles se aproximavam, como se nada tivessem quetemer. E as aves, essas, cheias de confiança, deixavam-se colher e vinham poisar-lhessobre as mãos ou cantar-lhes sobre os ombros.

Era tamanho o esplendor da ilha, a suavidade dos ares e a inocência natural dos

 bichos, que o Machico se convenceu Ter aportado àquele mesmo lugar do Paraíso, a queoutrora S. Brandão com os seus monges conseguira abordar.

E porque a terra era toda coberta de florestas, como ele nunca vira, chamou-lhe a ilhada Madeira.

Mais tarde, um filho de D. João I, o qual se chamou o Infante D. Henrique, e a quem,quando era moço, o Machico já muito velhinho contara a história da ilha que ele achara,

 pôs na sua vontade descobrir as outras ilhas encantadas, que havia no grande mar Oceano. E tendo reunido os melhores astrólogos que havia nas Espanhas, os quaisconheciam também as artes mágicas e entendiam o futuro pelo movimento das estrelas,conseguiu saber o segredo das ilhas encantadas e o modo de as desencantar.

Já neste tempo eram muitos os Marinhos e, por serem descendentes do Oceano,tinham aprendido a guiar-se, de dia ou de noite, ao largo, pela posição do Sol e dasestrelas. Sabiam, como ninguém, aproveitar ou evitar as correntes do Mar e estender acada vento as velas para andar sobre as águas. E como então, além das galés, os naviosde guerra desse tempo, as naus que empregavam no comércio e nas viagens eram

 pesadas embarcações com a vela redonda, construíram eles navios mais ligeiros, aosquais chamaram caravelas e ao contrário das naus tinham as velas inclinadas e esguiascomo asas de gaivotas. Os Marinhos tinham-se tomado assim os melhores marinheirosque havia em todo o Mundo.

O Infante D. Henrique então fundou uma vila no Cabo de S. Vicente, que está noextremo sul de Portugal e juntou ai os Marinhos mais marinheiros que havia em todo o

Reino. Depois de juntos, aprenderam uns com os outros e com os astrólogos do Infantee tomaram-se invencíveis na arte de domar as ondas. E da costa algarvia partiram nassuas caravelas a descobrir os segredos das terras e dos mares.

Ora uma das caravelas do Infante, tendo partido para o Ocidente e navegando muitosdias sem parar, conseguiu, não obstante os ventos que se opunham e os nevoeiros quelhes escondiam o caminho, aportar a outra das ilhas encantadas e, por sinal, a que forachamada, em memória dos sete bispos e das cidades que fundaram ² a ilha das SeteCidades.

Muito se espantaram os marinheiros portugueses dando com uma ilha povoada e ao

8/3/2019 Romance Das Ilhas as

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desembarcar numa bela cidade cheia de palácios e riquezas. E não menos pasmavam oshabitantes dessas ilhas ao ver pela primeira vez, passados alguns séculos, outros homensaportar à sua terra.

 Não cansavam de se admirarem uns aos outros. E os da ilha, para conhecer se eramcristãos os navegantes, cuidaram de conduzir alguns a uma igreja. E quando viram quetambém eles rezavam e adoravam a Cruz, deram grandes mostras de alegria e pediram-

lhes que não partissem enquanto não viesse o senhor daquela terra que se tinhaausentado, mas que por certo folgaria de vê-los e fazer-lhes honras e presentes.

Mas o capitão e os marinheiros da caravela temeram-se que os habitantes da ilha para conservar o seu mistério os prendessem e lhes queimassem o navio. E, dando àsvelas sem demora, partiram para Portugal e foram-se contar o seu descobrimento a D.Henrique, o qual ficou deveras satisfeito e muito mais, depois de ver que parte da areiacolhida pelos marinheiros nessa ilha era de oiro fino.

Alvoroçado com tão boas novas, o Infante encomendou-lhes muito que voltassem lá, prometendo-lhes armar outros navios com mais gente, para visitarem a ilha sem temor etrazer dela mais certa informação. Eles assim fizeram e acompanhados de outrascaravelas dirigiram-se à ilha.

Mas, quando ali chegaram e a abordaram, por mais que procurassem já não havia

nem cidade, nem palácios, nem igreja, nem homens! Só a ilha ali permanecia formosacomo sempre; e no lugar onde outrora tinham sido as cidades no extremo ocidental, por mais oculto aos navegantes, havia agora apenas, entre as altas montanhas, um abismoenorme e ao fundo um grande lago!

E os Marinhos continuaram a descobrir e a desencantar as ilhas.E ainda hoje naquela ilha, que se chama agora S. Miguel, existe esse lugar 

maravilhoso e com aquele antigo nome ² as Sete Cidades. O grande abismo, que parece uma enorme cratera de vulcão, rodeia-se a toda a volta duma cinta de cerros, quemedem quase 900 metros de altitude. As suas abas estão revestidas, de alto a baixo,duma vegetação riquíssima. E lá no fundo os olhos contemplam com assombro umalagoa de alguns quilómetros de extensão, metade azul, metade verde, e em partecoalhada com as folhas e as flores dos nenúfares.

Afirmam aqueles, que algum dia viram lá do alto esse espectáculo e desceram depois pelos carreiros até o lago, que não há em todo o Mundo tão maravilhoso panorama.

E bem se mostra por aquela estranha formosura que foram noutro tempo ali as IlhasEncantadas.

Também na outra ilha, a da Madeira, há um lugar a que chamam o Machíco, donome do seu descobridor, e Outro Câmara de Lobos, pelo grande número de lobosmarinhos que ali viviam; e ainda hoje nessa ilha reina uma Primavera eterna, como notempo em que S. Brandão a visitou.

E por fim, meus amigos, vos direi: Marinhos, foram também Bartolomeu Dias,Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e os irmãos Corte-Reais que conseguiramarrancar aos mares os seus maiores segredos.

Mas, só quando os cristãos conquistaram o reino de Granada, última parte dasEspanhas, que estava em mãos de moiros, então de todo se desencantaram as terras, asilhas e os mares, que, havia tantos séculos, estavam escondidas no grande mar Oceano.