ricardo lobo torres - planejamento tributário

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PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

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Direito Tributário

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  • PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

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    ABDR

  • PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    Ricardo Lobo Torres

    ELISO ABUSIVA E EVASO

  • 2012, Elsevier Editora Ltda.

    Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei no 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorizao prvia por escrito da editora, poder ser reproduzida ou transmitida

    Copidesque: Kelly Cristina da Silva Reviso: Renato Mello Medeiros Editorao: Luciana Di Iorio

    Elsevier Editora Ltda. Conhecimento sem Fronteiras Rua Sete de Setembro, 111 16o andar 20050-006 Centro Rio de Janeiro RJ Brasil Rua Quintana, 753 8o andar 04569-011 Brooklin So Paulo SP Brasil Servio de Atendimento ao Cliente 0800-0265340 [email protected]

    ISBN 978-85-352-5408-23915-7

    Nota: Muito zelo e tcnica foram empregados na edio desta obra. No entanto, podem ocorrer erros de digitao, impresso ou dvida conceitual. Em qualquer das hipteses, solicitamos a comunicao ao nosso Servio de Atendimento ao Cliente, para que possamos esclarecer ou encaminhar a questo. Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens, originados do uso desta publicao.

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    L785p

    11-6955 CDU:

  • Para Ricardo e Clara Torres, netos que esto a chegar.

  • Nota do autor

    Este livro dedicado ao tema do planejamento tributrio abusivo. A sua pro-blemtica se situa entre o planejamento tributrio legtimo, que pode e deve ser executado pelas empresas no ambiente do Estado Democrtico Fiscal, e a evaso tributria, eminentemente delituosa e punida pela legislao como crime. O que separa os dois fenmenos a possibilidade de se explorar o limite da expressividade da letra da lei.

    No Brasil, durante muitos anos, se desconsiderou o estudo do planejamento abusivo ou da eliso abusiva, divididas que estavam a jurisprudncia e a doutrina entre duas posies bsicas e radicais, ambas de fonte positivista: a) o positivismo formalista e civilista, que defendia o amplo espectro da eliso como instrumento lcito de planejamento das empresas, coincidindo a forma jurdica com o substrato econmico dos negcios tributrios; b) o positivismo historicista ou economicista, que, ao contrrio, rejeitava qualquer prevalncia da forma sobre o contedo ou a coincidncia entre ambos.

    S a partir da dcada de 1970, principalmente na Alemanha e nos Estados Unidos, que se conseguiu pinar com mais clareza e melhor metodologia a cate-goria da eliso abusiva (= planejamento abusivo) ou abusive tax avoidance. A eliso abusiva passa a significar o conjunto de instrumentos que contrastam com a boa-f

  • viii PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    e levam ao abuso da forma jurdica mediante figuras que apenas no seu aspecto ex-terno ou aparente podem promover a aproximao entre o esprito e a letra da lei. A eliso abusiva vale-se do abuso do direito em toda a sua extenso e d lugar ao conjunto dos ilcitos atpicos (fraude lei, prevalncia da forma sobre a substncia, falta de propsito mercantil etc.).

    No se confundem, pois, como veremos no decurso da obra, o planejamento legtimo (= eliso lcita) com o planejamento abusivo (= eliso abusiva). Esta lti-ma a que mais de perto nos interessa, por constituir categoria pouco estudada no Brasil, muitas vezes maltratada e constantemente manipulada pela doutrina e pela jurisprudncia.

    Quero manifestar aqui os meus agradecimentos s pessoas que tornaram pos-svel a confeco deste livro, nomeadamente a Doutora em Direito Pblico Silvia Faber Torres, a advogada Roslia Arminda Barbosa da Fonseca e a estagiria de di-reito Renata da Fonseca Costa. Sou extremamente grato, como sempre e por tudo, bibliotecria Sonia Regina Faber Torres, meu amor.

    Rio de Janeiro, agosto de 2011.Ricardo Lobo Torres

  • Abreviaturas

    Ac. Acrdo

    ADIn Ao Declaratria de Inconstitucionalidade

    Ag. Agravo

    AO Abgabenordnung (Cdigo Tributrio da Alemanha)

    Ap. Cv. Apelao Cvel

    CF Constituio Federal

    Coord. Coordenador

    CTN Cdigo Tributrio Nacional

    DJ Dirio da Justia (da Unio)

    Ed. Editora

    GG Grundgesetz (Lei Fundamental da Alemanha)

    NWvZ Neue Zeitschrift fr Verwaltungsrecht

    p. pgina

    RDA Revista de Direito Administrativo (Rio de Janeiro: Fundao Getlio Var-gas at o no 178 1989; Editora Renovar a partir do no 179 1990).

  • x PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    RDDT Revista Dialtica de Direito Tributrio (So Paulo: Editora Dialtica).RDT Revista de Direito Tributrio (So Paulo: Editora Revista dos Tribunais)Rel. RelatorREsp Recurso EspecialRF Revista Forense (Rio de Janeiro: Editora Forense)RT Revista dos Tribunais (So Paulo: Editora Revista dos Tribunais)Riv. Dir. Fin. e Sc. Fin. Rivista di Diritto Finanziario e Scienza delle Finanze

    (Milano: Giuffr)STF Supremo Tribunal FederalSTJ Superior Tribunal da JustiaStuW Steuer und Wirtschaft (Kln: O. Schmidt)T. Turma

  • Introduo

    Uma das questes mais difceis da dogmtica do direito tributrio a dos li-mites do planejamento fiscal legtimo e, conseguintemente, das distines entre simulao (= evaso ilcita) e eliso abusiva.

    No Brasil, o problema particularmente grave porque inexistia legislao so-bre o assunto e prevalecia a ideia, eminentemente positivista, de que qualquer eli-so seria lcita, porque coincidiria sempre com a liberdade de iniciativa e se apoiaria nos conceitos do direito civil.1 S com a edio da Lei Complementar no 104, de 2001, que introduziu no Cdigo Tributrio Nacional os arts. 43, II e 116, par-grafo nico, que se iniciou o processo de internalizao de normas jurdicas que nas ltimas dcadas do sculo XX haviam sido introduzidas nos pases europeus e na Amrica do Norte. A globalizao, a toda evidncia, produziu a necessidade de alinhamento do Brasil com o que ocorria nas relaes econmicas internacionais.

    Houve, entretanto, o desencontro entre as novas regras brasileiras, que at hoje so contestadas, e os aportes do direito tributrio comparado. A dificuldade surgiu assim no plano da doutrina como no da jurisprudncia e da administrao fiscal.

  • 2 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    Importante considerar, neste passo, que a confuso entre eliso e simulao (= evaso) vem sendo cometida tambm pela doutrina brasileira, com especial reflexo sobre os trabalhos da Receita Federal, assim no seu papel de rgo fazendrio res-ponsvel pela formulao da poltica jurdico-tributria do Pas, como na sua atua-o prtica na fiscalizao das rendas.

    Desde a publicao da Lei Complementar no 104, de 2001, surgiu a dvi-da por parte da doutrina brasileira: tratava-se de regra antielisiva ou antievasiva (antissimulao)?

    Coube a Alberto Xavier lanar, de modo mais articulado, a tese de que se cui-dava de norma antievasiva: o novo pargrafo nico do art. 116 do CTN estabele-ce que a autoridade administrativa poder desconsiderar atos ou negcios jurdicos viciados por simulao.2 Alm de afirmar que a dissimulao significa simulao relativa, Xavier lana mo do argumento de que, se interpretada como norma an-tielisiva, a nova regra seria inconstitucional, pois conflitaria com os princpios da legalidade estrita e da tipicidade fechada, afrontaria a proibio de analogia estabe-lecida no art. 108, 1o, do CTN e recorreria s teorias da fraude lei e do abuso do direito, inaplicveis no direito tributrio.3

    A outra corrente de ideias, qual nos filiamos,4 defende a constitucionalida-de da LC no 104/2001 e a possibilidade e a convenincia das normas antielisivas.5

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  • Introduo 3

    Podemos alinhar os seguintes argumentos gerais no sentido de que a Lei Com-plementar no 104 de 2001 trouxe uma verdadeira norma antielisiva, influenciada pelo modelo francs, e no uma norma antievasiva ou antissimulao:

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    De notar que as normas antielisivas se espalham rapidamente, a partir da d-cada de 1990, por todos os pases civilizados e vo entrando no direito tributrio

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  • 4 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    sob diferentes configuraes, a depender do ambiente cultural dos pases que as adotam. O Prof. Frederik Zimmer, Relator Geral do Tema Forma e Substncia no Direito Tributrio, no Congresso da IFA realizado em Oslo em 2002, depois de ressalvar que todos os pases possuem normas especficas antielisivas (specific tax avoidance rule), separa-os em trs grandes grupos no que concerne s normas ge-rais: a) no possuem nem regras expressas na lei (statute-based) nem medidas gerais baseadas nas cortes (court-based general tax avoidance): Colmbia, Japo, Mxico; b) muitos pases criaram regras gerais antielisivas por lei (general anti avoidance ru-les GAAR): Argentina, Austrlia, Blgica, Canad, Finlndia, Frana, Alemanha, Hungria, Itlia, Korea, Luxemburgo, Nova Zelndia, Espanha e Sucia; c) alguns pases criaram regras jurisprudenciais antielisivas (court-based general tax avoidance rules): Dinamarca, Frana, ndia, os Pases Baixos, Noruega, Sucia, Estados Uni-dos e Reino Unido.9

    O objetivo deste livro, portanto, resgatar e aprofundar o estudo sobre a eli-so abusiva, categoria que ficou perdida nas discusses travadas entre os positivis-tas conceptualistas e os adeptos da s considerao econmica do fato gerador no Brasil e em outros pases.10

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  • SEO I OS LIMITES DO PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    1 O PROBLEMA TERMINOLGICO: EVASO, ELISO, SONEGAO, SIMULAO E FRAUDE

    Diversos problemas difceis do direito tributrio decorrem da definio do fato gerador. A interpretao, a aplicao, a iseno e a no incidncia1 vinculam-se s duas dimenses bsicas do fato gerador abstrata e concreta.

    Outras figuras importantes se ligam tambm ocorrncia do fato gerador: a evaso, a eliso, a sonegao, a simulao e a fraude. H dificuldades semnticas com relao a cada um desses conceitos em portugus e nos outros idiomas, alm de desencontros tericos sobre a sua licitude.

    Planejamento tributrio

    CAPTULO I

  • 8 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    A evaso lcita e a eliso (lcita ou ilcita) precedem a ocorrncia do fato gera-dor no mundo fenomnico. A sonegao e a fraude (= evaso ilcita) do-se aps a ocorrncia daquele fato.

    Evaso (tax saving em ingls; Steuervermeidung em alemo) a economia do imposto obtida ao se evitar a prtica do ato ou o surgimento do fato jurdico ou da situao de direito suficientes ocorrncia do fato gerador tributrio. Deixar al-gum de fumar para no pagar o IPI ou o ICMS o exemplo clssico de evaso. sempre lcita, pois o contribuinte atua numa rea no sujeita incidncia da nor-ma impositiva. O termo evaso, com tal significado, cultivado pela cincia das finanas e aparece no direito financeiro francs.2 Quando tomada no sentido da expresso inglesa tax evasion, como veremos adiante, da preferncia de alguns au-tores brasileiros, ilcita.

    Eliso (tax avoidance em ingls; Steuerumgehung em alemo; elusione3 em ita-liano) pode ser lcita (= planejamento fiscal consistente) ou ilcita (= planejamento fiscal abusivo = abusive tax avoidance). No primeiro caso, a economia de imposto alcanada por interpretao razovel da lei tributria; no segundo, a economia do imposto obtida pela prtica de um ato revestido de forma jurdica que no se sub-sume na descrio abstrata da lei ou no seu esprito. Os adeptos da interpretao lgico-sistemtica e do primado dos conceitos do direito civil defendem a licitude da eliso: ser lcita qualquer conceptualizao jurdica do fato sujeito ao impos-to, eis que aptido lgica do conceito para revestir juridicamente certos fatos re-pugna a ideia de abuso de forma jurdica; figura de prestgio nessa corrente terica foi Sampaio Dria.4 A tese da ilicitude da eliso, hoje em refluxo, defenderam-na

  • Planejamento tributrio 9

    os adeptos da considerao econmica do fato gerador e da autonomia do direito tributrio, j que constituiria abuso da forma jurdica qualquer descoincidncia entre a roupagem exterior do negcio e o contedo econmico que lhe correspon-de; entre os seus defensores destacou-se Amilcar de Arajo Falco.5 Posies tericas atuais como a jurisprudncia dos valores e o ps-positivismo aceitam o planeja-mento fiscal como forma de economizar imposto, desde que no haja abuso de di-reito; s a eliso abusiva ou o planejamento inconsistente se tornam ilcitos; autores estrangeiros como Tipke/Lang6 defendem esse ponto de vista, que aos poucos vai chegando ao Brasil e se positivou no art. 116, pargrafo nico, do CTN, na reda-o da LC no 104/2001. No direito comparado encontram-se dois testes principais para detectar a eliso abusiva: o teste do propsito negocial (business purpose test), desenvolvido nos Estados Unidos, que sinaliza no sentido de que no devem pro-duzir efeitos contra o Fisco os negcios jurdicos que tenham por finalidade ni-ca a obteno da economia do tributo; o teste da proporcionalidade, adotado pelo art. 42 do Cdigo Tributrio alemo, na reforma de 2008, que considera ter havido abuso da forma (Missbrauch von rechtlichen Gestaltungsmglichkeiten) quando for escolhida uma forma jurdica inadequada, que resulte numa vantagem no prevista em lei sem que o contribuinte comprove o fundamento no tributrio da escolha, significativo de acordo com o quadro geral das circunstncias. A eliso ilcita, por conseguinte, se restringe ao abuso da possibilidade expressiva da letra da lei e dos conceitos jurdicos abertos ou indeterminados; inicia-se com a manipulao de formas jurdicas lcitas para culminar na ilicitude atpica nsita ao abuso de direito (art. 187 do Cdigo Civil de 2002); mas sempre difcil de caracterizar e o com-bate ilicitude redunda, no raro, no emprego da analogia, inclusive pela jurispru-dncia, disfaradamente, ou da contra-analogia, e da reduo teleolgica inerente s normas gerais antielisivas, se no se faz na via legislativa por meio de conceitos determinados e clusulas especficas.

    A evaso ilcita (tax evasion em ingls; Steuerhinterziehung em alemo) d-se aps a ocorrncia do fato gerador e consiste na sua ocultao com o objetivo de no pagar o tributo devido de acordo com a lei, sem que haja qualquer modificao na estrutura

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  • 10 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    da obrigao ou na responsabilidade do contribuinte. A palavra evaso, com sentido de ilcito fiscal, largamente empregada nos pases de lngua inglesa, entrou no Brasil pela obra de Sampaio Dria7 e foi adotada por grande parte da doutrina. Compreen-de a sonegao, a simulao, o conluio e a fraude contra a lei, que consistem na fal-sificao de documentos fiscais, na prestao de informaes falsas ou na insero de elementos inexatos nos livros fiscais, com o objetivo de no pagar o tributo ou de pagar importncia inferior devida (Lei no 4.502/1964 arts. 71, 72 e 73). , tam-bm, crime definido pela lei penal. No se confundem a fraude lei, que forma de eliso abusiva, e a fraude contra legem, que evaso ilcita.

    2 O PLANEJAMENTO TRIBUTRIO LEGTIMO

    Com o advento do Estado Fiscal de Direito, que centraliza a fiscalidade, tor-nam-se, e at hoje se mantm, absolutamente essenciais as relaes entre liberdade e tributo: o tributo nasce no espao aberto pela autolimitao da liberdade e cons-titui o preo da liberdade, mas por ela se limita e pode chegar a oprimi-la, se o no contiver a legalidade.

    O relacionamento entre liberdade e tributo dramtico, por se afirmar sob o signo da bipolaridade: o tributo garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a extraordinria aptido para destru-la; a liberdade se autolimita para se assumir como fiscalidade e se revolta, rompendo os laos da legalidade, quando oprimida pelo tributo ilegtimo.8 Quem no percebe a bipolaridade da liberdade acaba por recusar legitimidade ao prprio tributo.

    O contribuinte tem plena liberdade para conduzir os seus negcios do modo que lhe aprouver. O combate eliso no pode significar restries ao planejamen-to tributrio. O campo da liberdade de iniciativa ponto de partida para a vida econmica e no pode sofrer interferncias por parte do Estado.9 O contribuinte livre para optar pela estruturao dos seus negcios e pela formatao da sua em-presa de modo que lhe permita a economia do imposto. Como diz J. Hey, no h nenhum dever patritico que leve algum a pagar o imposto mais alto.10

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  • Planejamento tributrio 11

    O limite do planejamento legtimo, isto , da eliso lcita11 o da possibilidade expressiva da letra da lei, para repetir a precisa formulao de Larenz.12

    Nos pases de lngua inglesa emprega-se a expresso abusive tax avoidance para caracterizar a eliso ilcita, por oposio a tax planning, tax minimisation ou accep-table tax avoidance.13

    No mbito dos trabalhos do Tribunal de Justia da Unio Europeia tambm insegura a terminologia empregada nas questes de patologia tributria.14

    SEO II O FUNDAMENTO METODOLGICO DA ELISO

    As normas antielisivas assumiram extraordinria importncia no direito tribu-trio durante a dcada de 1990. O desenvolvimento da metodologia jurdica e da teoria da interpretao, com a superao dos positivismos economicistas e concep-tualistas, constituiu uma das principais causas para a nova viso da necessidade e da possibilidade de combate eliso e ao planejamento abusivo.

    1 AS CORRENTES TERICAS BSICAS NA INTERPRETAO DO DIREITO TRIBUTRIO

    A interpretao do direito tributrio se faz a partir das posies firmadas no campo da teoria geral da interpretao: a jurisprudncia dos conceitos, a jurispru-dncia dos interesses e a jurisprudncia dos valores.

  • 12 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    A jurisprudncia dos conceitos projetou para o campo fiscal a interpretao formalista e conceptualista. A jurisprudncia dos interesses se transformou na cha-mada interpretao econmica do fato gerador. A jurisprudncia dos valores, que nas ltimas dcadas passou a prevalecer em todas as naes cultas, substituiu as duas outras ao atrelar a interpretao jurdica aos princpios ticos e jurdicos vin-culados liberdade, segurana e justia.

    1.1 A interpretao conceptualista

    A interpretao fundada na jurisprudncia dos conceitos parte da crena de que os conceitos e as categorias jurdicas expressam plenamente a realidade social e econmica subjacente norma, de modo que ao intrprete no cabe se preocu-par com os dados empricos. Aparece muita vez como interpretao sistemtica ou lgico-sistemtica, segundo a qual os conceitos e institutos devem ser compreendi-dos em consonncia com o lugar que ocupam ou com o sistema de que promanam.

    A jurisprudncia dos conceitos, com razes no pandetismo alemo, defende, no campo da fiscalidade, as teses do primado do direito civil sobre o direito tribut-rio, da legalidade estrita, da ajuridicidade da capacidade contributiva, da superio-ridade do papel do legislador, da autonomia da vontade e do carter absoluto da propriedade.

    Corresponde, historicamente, ao apogeu do Estado Liberal, que cultiva o in-dividualismo possessivo.

    Seus grandes nomes no direito estrangeiro: Kruse15 e A. D. Giannini.16 No Brasil: Gilberto de Ulhoa Canto17 e A. R. Sampaio Dria.18

    1.2 A chamada interpretao econmica

    A interpretao fundada na jurisprudncia dos interesses, que se ops aos pos-tulados da jurisprudncia dos conceitos, projetou-se para o campo da fiscalidade por meio da considerao econmica do fato gerador (wirtschaftliche Betrachtun-gsweise), prevista no art. 4o do Cdigo Tributrio Alemo de 1919, por alguns

  • Planejamento tributrio 13

    apelidada, inclusive com sentido pejorativo, de interpretao econmica.19 Des-preocupou-se inteiramente dos conceitos e categorias jurdicas. Os italianos desen-volveram teoria semelhante sob a denominao de interpretao funcional.

    Suas teses principais: autonomia do direito tributrio frente ao direito pri-vado; possibilidade de analogia; preeminncia da capacidade contributiva sacada diretamente dos fatos sociais; funo criadora do juiz; interveno sobre a proprie-dade e regulamentao da vontade.

    Corresponde, historicamente, ao perodo do Estado de Bem-estar Social, que entrou em crise e se desestruturou a partir dos anos 1970, tambm chamado de Estado-Providncia ou Estado Intervencionista.

    Seus grandes representantes so E. Becker,20 na Alemanha; B. Griziotti,21 na Itlia; D. Jarach,22 na Argentina. No Brasil destaca-se Amilcar de Arajo Falco.23

    1.3 A interpretao valorativa

    As duas correntes tericas acima referidas caminharam para a exacerbao de suas teses, petrificando-se em posies positivistas normativistas e conceptualistas, de um lado, ou positivistas historicistas e sociolgicas, de outra parte. O concep-tualismo levou ao abandono da considerao da situao econmica e social e convico ingnua de que a letra da lei tributria capta inteiramente a realidade, eis que existe a plena correspondncia entre linguagem e pensamento. A interpretao econmica transformou-se na defesa do incremento da arrecadao do Fisco, por se vincular vertente da atividade arrecadatria do Estado.24

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  • 14 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    A partir da dcada de 1970, pela enorme influncia exercida no pensamento ocidental pelas obras de K. Larenz25 e J. Rawls,26 altera-se o paradigma na teoria geral do direito, na teoria da justia e na teoria dos direitos humanos, abrindo--se o campo para a reformulao das posies bsicas da interpretao do direito tributrio.

    A jurisprudncia dos valores e a virada kantiana, com a reaproximao entre tica e direito sob a perspectiva do imperativo categrico, marcam o novo momen-to histrico da afirmao do Estado Democrtico de Direito, que o Estado da Sociedade de Riscos.27

    Algumas teses ps-positivistas passam a ser defendidas para a superao do im-passe a que fora levada a teoria da interpretao do direito tributrio:

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  • Planejamento tributrio 15

    2 A ELISO FISCAL LCITA E A ABUSIVA

    O problema da eliso fiscal est intimamente ligado ao das posies tericas fundamentais em torno da interpretao do direito tributrio.

    O positivismo normativista e conceptualista defende, com base na autonomia da vontade, a possibilidade ilimitada de planejamento fiscal. A eliso, partindo de instrumentos jurdicos vlidos, seria sempre lcita. Essa posio foi defendida com veemncia por Sampaio Dria.31

    O positivismo sociolgico e historicista, com a sua considerao econmica do fato gerador, chega concluso oposta, defendendo a ilicitude generalizada da eliso, que representaria abuso da forma jurdica escolhida pelo contribuinte para revestir juridicamente o seu negcio jurdico ou a sua empresa. Amilcar de Arajo Falco representou moderadamente no Brasil essa orientao.32

    A jurisprudncia dos valores e o ps-positivismo aceitam o planejamento fiscal como forma de economizar imposto, desde que no haja abuso de direi-to. S a eliso abusiva ou o planejamento inconsistente se tornam ilcitos.33 Au-tores de prestgio como K. Tipke,34 K. Vogel35 e Rosembuj36 defendem esse ponto de vista. Entre ns, alguns trabalhos recentes de Marco Aurlio Greco,37 de Hermes Marcelo Huck,38 de Ricardo Lodi Ribeiro,39 de Marciano Seabra de

    eliso eliso

    Evaso e eliso

  • 16 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    Godoi40 e de Marcos Cato41 tambm admitem o controle nos casos de abuso de direito.

    A eliso fiscal internacional fenmeno paralelo ao da eliso no direito tri-butrio interno. Cresceu muito nos ltimos anos, em virtude da globalizao. As posies tericas se aproximam daquelas do direito interno: economicismo, for-malismo e tica.42

    3 O PRINCPIO DA TRANSPARNCIA E A GLOBALIZAO

    Outro dado fundamental para o aparecimento e a proliferao das normas an-tielisivas foi a emergncia do princpio da transparncia, em ntima conexo com o processo de globalizao.

    A transparncia fiscal um princpio constitucional implcito. Sinaliza no sen-tido de que a atividade financeira deve se desenvolver segundo os ditames da cla-reza, abertura e simplicidade. Dirige-se assim ao Estado como sociedade, tanto aos organismos financeiros supranacionais quanto s entidades no governamen-tais. Baliza e modula a problemtica da elaborao do oramento e da sua gesto responsvel, da criao de normas antielisivas, da abertura do sigilo bancrio e do combate corrupo.43

    O princpio da transparncia, em sntese, significando clareza, abertura e sim-plicidade, vincula assim o Estado com a sociedade e se transforma em instrumento importante para a superao dos riscos fiscais provocados pela globalizao. S a transparncia na atividade financeira, consubstanciada na clareza oramentria, na responsabilidade fiscal, no respeito aos direitos fundamentais do contribuinte, no aperfeioamento da comunicao social e no combate corrupo dos agentes p-blicos, em contraponto transparncia na conduta do contribuinte garantida pelas normas antissigilo bancrio e pelo combate corrupo ativa, pode conduzir minimizao dos riscos fiscais do Estado Subsidirio. A falta de equilbrio entre os

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    ,

  • Planejamento tributrio 17

    termos da equao da transparncia pode conduzir perpetuao da opacidade: a exacerbao do controle da responsabilidade fiscal e dos meios de defesa do sujeito passivo da obrigao tributria, sem a contrapartida representada pela minimizao dos riscos por ele provocados, leva ao paraso fiscal; a aplicao das normas antieli-sivas e o desvendamento do sigilo fiscal, sem a salvaguarda de um cdigo de defesa do contribuinte e da responsabilidade dos agentes pblicos, pode gerar a servido fiscal e a morte da prpria galinha de ovos de ouro.

    As normas antielisivas, como se passam a examinar, surgem tambm no con-texto da globalizao, fortalecem-se no mbito do direito comunitrio (Unio Europeia e Mercosul) e refletem a influncia do princpio da transparncia fiscal.

  • CAPTULO II

    SEO I O ABUSO DO DIREITO

    I INTRODUO

    A proibio de eliso abusiva no campo tributrio nada mais que a especifi-cao do princpio geral, jurdico e moral, da vedao do abuso de direito.

    O Cdigo Tributrio Nacional recebeu, pela Lei Complementar no 104, de 2001, o acrscimo, no seu art. 116, de um pargrafo nico que introduziu a nor-ma geral antielisiva no direito brasileiro, com base na teoria da proibio do abuso do direito.

    O novo Cdigo Civil, com eficcia a partir de 2003, por seu turno, disps so-bre a ilicitude do abuso do direito (art. 187).

    Cumpre verificar as eventuais repercusses das novas regras do Cdigo Civil sobre a interpretao do art. 116, pargrafo nico, do CTN.

    A proibio de eliso fiscal abusiva

  • 20 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    II O ABUSO DO DIREITO NO CDIGO CIVIL

    O Cdigo de 1916 no continha dispositivo expresso a respeito do abuso do direito, o que coincide plenamente com os seus pressupostos tericos individualis-tas e com o seu apego aos interesses da burguesia.

    O Cdigo Civil de 2002 trouxe duas importantes novidades sobre o tema: a vedao da fraude lei e a ilicitude do abuso do direito.

    1 A VEDAO DE FRAUDE LEI

    Prev o Cdigo Civil: Art. 166 nulo o negcio jurdico quando... VI tiver por objetivo fraudar lei imperativa.

    Mas h excees nulidade da fraude lei, o que permite a requalificao do ato praticado, como claramente estabelece o CC: Art. 170 Se, porm, o negcio jurdico nulo contiver os requisitos de outro, subsistir este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.

    Explica Fernando Augusto Cunha de S que h variabilidade de sanes para o ato abusivo, o que faz com que, para alm da responsabilidade civil ou at a ela cumulada, poder descobrir-se toda uma infinda gama de sanes que, essas sim, impediro que o titular do direito abusivamente exercido obtenha ou conserve as vantagens que obteve com a prtica do ato abusivo e o faro reentrar, em ltima anlise, no exerccio legtimo do direito desde a nulidade, a anulabilidade, a ino-ponibilidade ou a rescindibilidade do ato ou negcio jurdico quando seja na sua prtica que o abuso se verifique, at ao restabelecimento da verdade ou da reali-dade dos atos com ele conexionados, aceitando, por exemplo, a sua validade no obstante a falta da forma exigida, concedendo a exceptio doli generalis ou specialis, recusando a ao de anulao ou mantendo em vigor a relao.1

    2 A ILICITUDE DO ABUSO DO DIREITO

    O Cdigo de 2002 introduz o conceito de abuso de direito e lhe declara a ili-citude, embora a ele no se refira explicitamente: Art. 187 Tambm comete ato

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 21

    ilcito o titular de um direito que, ao exerc-lo, exceda manifestamente os limites impos-tos pelo seu fim econmico e social, pela boa-f ou pelos bons costumes.

    Esse dispositivo se compagina perfeitamente com o art. 421: A liberdade de contratar ser exercida em razo e nos limites da funo social do contrato.

    O art. 187 do Cdigo Civil de 2002 sofreu a influncia direta do art. 334 do Cdigo Civil portugus: ilegtimo o exerccio de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-f, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econmico desse direito.

    O ponto mais importante do novo regramento o que proclama a ilicitude do abuso do direito.

    H autores que defendem a ilicitude do abuso do direito, como Carvalho San-tos2 e Cunha de S.3 Outros civilistas, entretanto, discordam da tese da ilicitude.4

    Seja como for, a ilicitude do abuso do direito est explicitamente positivada no art. 187 do Cdigo Civil e projetar influncia sobre a interpretao do abuso do direito no CTN, como adiante se ver.

    III AS RELAES ENTRE O ABUSO DO DIREITO NO DIREITO TRIBUTRIO E NO DIREITO CIVIL

    3 A SIMULTANEIDADE DO INGRESSO DAS NORMAS SOBRE O ABUSO DO DIREITO NO CTN E NO CC

    As normas antiabuso do direito entraram ao mesmo tempo no CTN e no CC: em 10 de janeiro de 2001 foi sancionada a Lei Complementar no 104, que

    -

  • 22 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    introduziu a norma geral antielisiva no pargrafo nico do art. 116 do CTN; exatamente um ano depois, em 10 de janeiro de 2002, sancionou-se o novo Cdigo Civil.

    Por muito mais do que mera coincidncia, a publicao das duas importantes leis marcam um momento de renovao do direito brasileiro, com a superao de posies positivistas formalistas e com a procura do mais ntimo relacionamento com a tica, sem falar na busca de insero no mundo globalizado.5 O abuso do direito em ambas as reas jurdicas deve ser interpretado segundo o princpio da unidade do direito e sob a perspectiva de sua abrangncia e superioridade episte-molgica frente a outras modalidades de combate ao conceptualismo. Relevante notar que a teoria do abuso do direito visa antes requalificao dos fatos do que anulao, abrindo diversas possibilidades quanto aos efeitos da ilicitude dos atos abusivos e aplicao de sanes pecunirias. Passamos a analisar tais aspectos.

    4 A UNIDADE DO DIREITO

    A compreenso das clusulas de proibio do abuso do direito do CTN e do CC deve se aproximar em homenagem ao princpio da unidade do direito. Cuida--se de atrao entre clusulas que mantm as suas especificidades sistmicas.

    Com efeito, a noo aberta e algum tanto equvoca do abuso do direito fre-quenta todos os ramos do fenmeno jurdico e pode ser empregada no direito tributrio, apesar de suas dificuldades. O tributarista italiano Victor Uckmar afir-mou, com muita preciso:

    Enquanto no direito privado a rationale da teoria do abuso consiste em proteger os direitos de outros indivduos, no setor fiscal se utiliza o princpio para prote-ger os interesses do Estado frente liberdade do contribuinte de utilizar as for-mas jurdicas que eleja para desenvolver as suas atividades produtoras de renda.6

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 23

    A voz discordante a de Alberto Xavier, jurista de ndole formalista: A trans-posio da doutrina civilista do abuso de direito para o Direito Pblico, em espe-cial para o Direito Tributrio, merece severas objees... O conceito de abuso de direito deve ser erradicado, de vez, da cincia do Direito Tributrio, onde no tem foro de cidade.7

    Na Unio Europeia o conceito de abuso vem penetrando com grande fora na temtica da eliso construda pelo Tribunal Comunitrio. Coincide, em parte, com o conceito de abus de droit (francs), do abuse of rights (ingls), mas tambm se irradia para a noo de abuso das liberdades fundamentais.8

    5 DIREITO E TICA

    As novas normas antiabuso marcam a aproximao com a tica no plano do direito em geral, do direito tributrio e do direito civil.

    Com a superao dos positivismos formalistas e historicistas reaproximam-se tica e direito sob o plio do imperativo categrico. A virada kantiana que se obser-va a partir da dcada de 1970 marca esse momento histrico.9

    O direito tributrio deixa-se tambm sensibilizar pela tica, seja no plano abs-trato da justia fiscal,10 seja no especfico da aplicao das normas tributrias e do combate eliso fiscal.11

    ,

    7

    8

    9 o

  • 24 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    O Cdigo Civil de 2002, na observao de Miguel Reale, um dos seus coau-tores, obra informada pela eticidade.12 As regras sobre o abuso do direito tambm expressam o relacionamento com a moralidade.13

    6 FORMA E SUBSTNCIA

    O combate ao abuso do direito consiste, sobretudo, na busca de superao do positivismo formalista e conceptualista, com o cuidado para no se cair no exagero oposto do substancialismo, do historicismo ou do causalismo economicista.

    No direito tributrio vive-se, a partir dos anos 1990, na incessante procura do equilbrio entre forma e substncia, que s poder ser obtido evitando-se o abuso das formas (Missbrauch von Gestaltungsmglichkeiten Formen dos alemes).14

    No direito civil a regra contra o abuso do direito tambm tem por objetivo o combate ao formalismo.15

    No h fratura nem coliso entre direito civil e direito tributrio. No se trata mais da desgastada tese de prevalncia do direito civil sobre o direito tributrio, to ao gosto do positivismo formalista e que aparecera na interpretao nos arts. 109 e 110 do CTN. Anota Kirchhof que h mera precedncia (Vorherigkeit) e no pre-ferncia (Vorrang) do direito civil, eis que ambas as disciplinas so a consequncia da garantia constitucional da propriedade privada.16

    7 TRATAMENTO GENRICO DO ABUSO DE DIREITO

    Outra caracterstica comum ao direito tributrio e ao direito civil a posio de gnero que vai ocupando o abuso de direito, que passa a compreender as diver-sas figuras que culminam no desencontro entre forma e substncia.

    , no

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 25

    No direito tributrio as prprias legislaes adotam nomenclatura aberta, como abuso da possibilidade formal do direito (Missbrauch von Gestaltungsmgli-chkeiten des Rechts) na Alemanha e norma antiabusos em Portugal, suscetveis de abranger diferentes figuras, inclusive a da fraude lei (que literalmente aparece na Espanha). A doutrina vem compreendendo o abuso do direito no seu sentido mais lato,17 que s exclui a simulao, que est no campo da evaso e da ilicitude penal.18

    No direito civil enorme tambm o nmero de autores que aproximam ou incorporam ao abuso do direito outras realidades epistemolgicas, principalmente a fraude lei.19

    8 REQUALIFICAO DOS FATOS

    Mecanismo importantssimo no abuso de direito a possibilidade de requali-ficao dos fatos e a desnecessidade de declarao de sua nulidade.

    No direito civil, j vimos (item 1), nem sempre h necessidade de declarao de nulidade (art. 170), pois existe a pluralidade de sanes possveis.

    No direito tributrio o mais importante para a Administrao requalificar o ato abusivo, sem anul-lo em suas consequncias no plano das relaes comerciais ou trabalhistas. A norma antielisiva do art. 116, pargrafo nico, do CTN, portan-to, visa desconsiderao ou requalificao do fato gerador concreto, isto , do ato ou fato praticado com a dissimulao da mens legis e do fato gerador abstrato. Na eliso, afinal de contas, ocorre um abuso na subsuno do fato norma tribu-tria; como lembra Paul Kirchhof, a eliso sempre uma subsuno malograda (ein fehlgeschlagener Subsuntionsversuch).20 Cabe Administrao Tributria, conseguin-temente, corrigir a subsuno malograda, requalificando o fato de acordo com a interpretao correta da regra de incidncia.21

  • 26 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    9 A ILICITUDE DO ABUSO DO DIREITO

    J vimos que o art. 187 do CC declara ilcito o abuso do direito, o que gera desacordo entre os civilistas. Mas a figura deve ser entendida como ilcito atpico, na expresso de Manuel Atienza/Juan Ruiz Manero:

    ... son ilcitos atpicos que, por as decirlo, invierten el sentido de una regla: prima facie existe una regla que permite la conducta en cuestin; sin embargo y en razn de su oposicin a algn principio o principios , esa conducta se convierte, una vez considerados todos los factores, en ilcita; esto, en nuestra opinin, es lo que ocurre con el abuso del derecho, el fraude de ley y la desvia-cin de poder.22

    No direito tributrio a questo sempre foi muito discutida.

    10 SANO E ILICITUDE

    No Direito Civil, diante da pluralidade de sanes, nem sempre se exige a nu-lidade ou a aplicao de pena pela prtica do ato elisivo (item 2).

    No ato tributrio abusivo tambm no se exige a nulidade, sendo bastante a requalificao ou desconsiderao (item 8).

    Mas, no direito tributrio, subsiste dvida sobre a necessidade de aplicao de sanes pecunirias, alm da requalificao. Na Alemanha23 e na Espanha24 no se aplicam penalidades. No Brasil, a MP no 66/2002 estabelecia que a notificao re-sultante do despacho da autoridade administrativa cientificaria o contribuinte para o pagamento dos tributos acrescidos de juros e multa de mora, no prazo de 30 dias (art. 17, 2o) isto , sem multa penal; mas a falta de pagamento dos tributos e encargos mo-ratrios, naquele prazo, ensejaria o lanamento do respectivo crdito tributrio, me-diante lavratura de auto de infrao, com aplicao de multa de ofcio. Seria razovel a regulamentao se significasse o alvio da penalidade na fase da requalificao e a sua exigncia no caso de o contribuinte no aceitar o ato de lanamento; de qualquer forma, a MP no 66/2002 no se converteu em lei e o Governo parece ter desistido de regular a matria, permanecendo a incgnita no direito brasileiro.

    ,

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 27

    SEO II MODELOS ESTRANGEIROS DE NORMAS GERAIS ANTIELISIVAS

    A O PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E AS NORMAS ANTIELISIVAS NO CDIGO TRIBUTRIO DA ALEMANHA

    1 INTRODUO

    A construo alem das normas antielisivas extremamente importante, em vista da durao, das vicissitudes e da eficcia que exibiram.

    O direito germnico utilizou sempre a figura da proibio de abuso de for-ma jurdica (Missbrauch von Formen und Gestaltungsmglichkeiten), consubstan-ciada na vedao de eliso (Steuerumgehung). As diferenas de redao tiveram por objetivo dar maior clareza garantia e incorporar os avanos conceptuais e jurisprudenciais.

    Surgida em 1919, com o Cdigo Tributrio do Reich, ulteriormente modifica-do, foi reformulada pelo Cdigo de 1977 (Abgabenordnung 77) e pela alterao de 20/12/2007, com eficcia a partir de 1o/01/2008.25

    2 O CDIGO DE 1919

    O Cdigo Tributrio de 1919 (Reichsabgabenordung-RAO), elaborado por Enno Becker sob a influncia das ideias desenvolvidas pela jurisprudncia dos in-teresses, foi reformado em 1931 e sofreu profunda alterao pela Lei de Adaptao Tributria (Steueranpassungsgesetz StAnpG), de 1934, que assim proibiu o abuso da forma jurdica (Rechtsmissbrauch) no art. 6o:

    1: Atravs do abuso de forma ou da aparncia do direito civil no pode a obriga-o tributria ser contornada ou diminuda.

  • 28 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    2. Havendo abuso de forma, o imposto ser exigido como se tivessem sido adotados os processos econmicos, os fatos geradores e as relaes adequadas forma jurdica.26

    A interpretao da norma geral antielisiva transcrita sempre se fez luz dos arts. 4o e 5o da RAO, que cuidavam da considerao econmica do fato gerador. Tais regras receberam nova redao pela RAO de 1931. Com a Lei de Adaptao Tributria (Steueranpassungsgesetz), de 16/10/1934, foram introduzidas novas al-teraes: o art. 1o, item II, mandou observar na interpretao a concepo popu-lar, a finalidade e o significado econmico da lei tributria e o desenvolvimento das circunstncias;27 e o art. 1o, item II, determinou prevalecer a mesma coisa para a apreciao dos fatos geradores.28 Esses dois dispositivos foram ulteriormente revo-gados pelo Cdigo Tributrio de 1977 (AO 77).

    Havia outra regra na Lei de Adaptao Tributria art. 1o, I que estabelecia: as leis fiscais devem ser interpretadas de acordo com a viso do mundo nacional-socialista.29 Foi revogado com a redemocratizao da Alemanha em 1945. Mas conduziu desin-terpretao da regra antielisiva do art. 6o da RAO, inclusive no Brasil.30

    O grande intrprete da norma antielisiva ao tempo da Constituio de Weimar foi Albert Hensel, que escreveu artigo at hoje indispensvel para a compreenso do fenmeno.31

    3 O CDIGO DE 1977 AO 77

    O Cdigo Tributrio (Abgabenordnung) de 1977 revogou os dispositivos re-ferentes considerao econmica e deu nova redao norma geral antielisiva:

    o

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 29

    Art. 42 A lei tributria no pode ser contornada atravs do abuso de formas jurdicas. Sempre que ocorrer abuso, a pretenso do imposto surgir, como se para os fenmenos econmicos tivesse sido adotada a forma jurdica ade-quada.32

    No direito alemo a eliso se chama Steuerumgehung, que literalmen-te significa contornar, ladear, circular, envolver ou dar a volta em torno da lei do imposto. Tipke33 explica que para se caracterizar a eliso: Uma lei tribut-ria deve ser contornada. O art. 42 do Cdigo Tributrio fala do contorno da lei tributria. Observa ainda o jurista germnico que a eliso tributria pressupe um abuso da possibilidade formal do direito, que se apega no finalidade, mas letra da lei.34

    Na eliso, afinal de contas, ocorre um abuso na subsuno do fato norma tri-butria. Como lembra Paul Kirchhof, a eliso sempre uma subsuno malograda (ein fehlgeschlagener Subsuntionsversucht).35

    A interpretao do art. 42 da AO 77 se fez de forma diferente da que antes prevalecera, em razo do desaparecimento de regras explcitas sobre a considerao econmica e do aprofundamento da metodologia da cincia do direito, esta ltima sobretudo pela enorme influncia exercida pela obra de Larenz, a partir de meados da dcada de 1960, e pelo novo enfoque da questo dos princpios jurdicos.

    A doutrina alem se dividiu quanto natureza do art. 42 da AO 77. Alguns autores defendiam a natureza constitutiva da regra, que quebrava a proibio de analogia prevalecente no direito tributrio.36 Outros juristas, que aceitavam a pos-sibilidade de analogia no direito tributrio, manifestaram-se no sentido da nature-za declaratria da norma antielisiva.37

    -

    -

  • 30 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    Mas a doutrina, majoritariamente, entendeu como constitucional a regra do art. 42 da AO 77.38

    J se pacificou no direito alemo a tese de que o direito civil e o tributrio pos-suem idntica estatura. Reconheceu o Tribunal Constitucional da Alemanha, em 27/12/1991, a precedncia, mas no o primado do direito privado.39

    O Tribunal Financeiro Federal (Bundesfinanzhof) aplicou a norma antielisiva a nmero crescente de casos. Segundo estatstica divulgada,40 a mdia de acrdos por ano foi a seguinte: no perodo de 1919 a 1944 0,6; de 1950 a 1978 1,9; de 1979 a 1982 4,75; de 1983 a 1986 11; de 1987 a 1990 18; de 1991 a 1994 19; de 1995 a 1998 12. Tipke atribuiu o fenmeno ao incremento da atividade de planejamento fiscal e melhor fundamentao terica do Tribunal para enfren-tar o problema, observando, ainda, que o art. 42 um dos dispositivos do Cdigo Tributrio mais aplicados.41

    4 A ALTERAO DE 2008

    4.1 Generalidades

    4.1.1 O teor da nova norma

    O art. 42 do Cdigo Tributrio alemo sofreu profunda modificao a partir de 2008.

    o seguinte o teor da nova regra, em traduo livre:

    1. (1) A lei tributria no pode ser contornada atravs do abuso da forma jur-dica. (2) Se o fato gerador de uma regra de uma lei tributria especfica servir para evitar a eliso, ento dever determinar as consequncias jurdicas daque-la prescrio. (3) Se no, surgir a pretenso tributria pelo abuso no sentido

    , -

    ,

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 31

    do pa rgrafo 2o, como se para os fenmenos econmicos tivesse sido adotada a forma jurdica adequada.

    2. (1) H abuso quando for escolhida uma forma jurdica inadequada que re-sulte, para o contribuinte ou um terceiro, numa vantagem no prevista em lei, em comparao com a forma adequada. (2) Isto no se aplica se o contribuin-te comprovar o fundamento no tributrio da escolha de forma, significativo de acordo com o quadro geral das circunstncias.42

    4.1.2 Contedo

    Observao inicial importante a de que o art. 42 cuida das normas gerais an-tielisivas e tambm das especiais; destas ltimas no 1o, alnea 2. Faremos a anlise separada das regras gerais e especiais no item 4.2. deste captulo,43 e no captulo III,44 respectivamente.

    4.1.3 A motivao da nova regra

    A alterao do art. 42 do Cdigo Tributrio alemo justificou-se em virtude de alguns novos fatos surgidos nas ltimas dcadas, principalmente a partir dos anos 1980.

    A globalizao influenciou as modificaes, por ter trazido novo relacionamen-to entre as foras de capital e do trabalho e por haver determinado a alterao no relacionamento tributrio entre os pases, fortalecendo o poder das empresas mul-tinacionais frente aos fiscos nacionais e aumentando o risco fiscal. A emergncia

  • 32 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    do direito cosmopolita,45 com o novo papel da Unio Europeia, com a atuao do Tribunal de Justia Europeu e com o surgimento de organismos no estatais que passaram a defender os princpios da concorrncia, transparncia fiscal e simplifi-cao tributria (OCDE, FMI, OMC etc.), tudo conduziu ao incremento do com-bate eliso abusiva.

    Tambm teve papel importante o desenvolvimento da tecnologia, mxime da informtica, com o crescimento da tributao dos intangveis e o apareci-mento de novas formas de imposio fiscal, todas suscetveis de resvalar para a eliso abusiva.46

    Do ponto de vista terico, o fato notvel foi a ecloso dos direitos humanos, com o aprofundamento da teoria dos direitos fundamentais. Passou-se da metodolo-gia da interpretao jurdica de Larenz e Tipke, que influenciara a redao origin-ria do art. 42 da AO 77, para a teoria da proporcionalidade de Alexy e do Tribunal Constitucional Federal, entre outros.

    4.1.4 Ambivalncia do tributo

    De feito, o tributo nasce da autolimitao da liberdade47: reserva-se pelo con-trato social um mnimo de liberdade intocvel pelo imposto, garantido atravs dos mecanismos das imunidades e dos privilgios, que se transferem do clero e da no-breza para o cidado; mas se permite que o Estado exera o poder tributrio sobre a parcela no excluda pelo pacto constitucional,48 donde se conclui que a prpria liberdade institui o tributo.49 O espao assim aberto ao tributo o da publicidade, isto , o das relaes sociais que se desenvolvem entre o espao privado do cidado (famlia) e o espao pblico dos rgos governamentais;50 o imposto adquire a di-

    -

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 33

    menso de coisa pblica51 e nele o Estado passa a encontrar a sua fonte de finan-ciamento, permitindo que os agentes econmicos ampliem a riqueza suscetvel de tributao.52

    O tributo surge no espao aberto pelas liberdades fundamentais, o que significa que totalmente limitado por essas liberdades. O aspecto principal da liberdade o de ser negativa ou de erigir o status negativus que marca ver-dadeiramente o tributo; a expanso do conceito de liberdade, para abranger a liberdade para ou positiva, ou para transform-la em dever, elimina o prprio conceito de tributo. Conclui-se, da, que perde a natureza de tributo o que se no limita pela liberdade, como sejam as prestaes contratuais e as contribuies pa-rafiscais e extrafiscais.53

    O relacionamento entre liberdade e tributo dramtico, por se afirmar sob o signo da bipolaridade: o tributo garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a extraordinria aptido para destru-la;54 a liberdade se autolimita para se assumir como fiscalidade e se revolta, rompendo os laos da legalidade, quando oprimida pelo tributo ilegtimo.55 Quem no percebe a bipolaridade da liberdade acaba por recusar legitimidade ao prprio tributo.56

    a

    .

  • 34 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    4.1.5 Direitos fundamentais, tributao e proporcionalidade

    Os direitos fundamentais, que se expressam por princpios, vinculam-se m-xima da proporcionalidade. H uma relao ntima e necessria entre direitos fun-damentais e proporcionalidade. Alexy j observou:

    a natureza dos princpios implica a mxima da proporcionalidade, e essa impli-ca aqueles. Afirmar que a natureza dos princpios implica a mxima da propor-cionalidade significa que a proporcionalidade... decorre logicamente da nature-za dos princpios, ou seja, que a proporcionalidade deduzvel dessa natureza. O Tribunal Constitucional Federal afirmou, em formulao um pouco obscura, que a mxima da proporcionalidade decorre, no fundo, j da prpria essncia dos direitos fundamentais (BVerfGE 19, 342 (348-349); 65,1(44)).57

    Por outro lado, como vimos, o tributo o preo da liberdade e, por conseguin-te, constitui restrio aos direitos fundamentais, designadamente propriedade privada e aos frutos do trabalho. Sendo restrio aos direitos da liberdade o tribu-to fica sujeito reserva da Constituio e da lei formal, que constituem os limites do poder de tributar. Tais limites, por seu turno, exibem tambm os seus limites, que os alemes chamam de limites dos limites (Schranken-Schranken).58 Entre os limites dos limites aparece a proporcionalidade (Verhltnismssigkeit), com todos os seus desdobramentos: princpios da determinao do fato gerador (Tatbestandbestimmtheitsgundsatz)59 da igualdade,60 da proteo dos direitos de terceiros61 e da tipicidade, com reduo teleolgica e analogia.62

    -

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 35

    Da ambivalncia do conceito de tributo surgem as colises entre os direitos fundamentais do cidado e o poder de tributar do Estado. Observa Alexy que a constelao mais simples caracterizada pela presena de apenas dois princpios e dois sujeitos de direito (Estado/cidado).

    A nova regra de combate ao abuso da forma jurdica se estrutura sob a inspira-o do princpio da proporcionalidade, como passamos a examinar, e influencia no s o direito germnio como o direito comparado em geral.

    4.2 A norma geral antielisiva

    4.2.1 O abuso da forma jurdica

    O abuso da forma jurdica se aproxima do abuso do direito63 e tem inmeras configuraes.

    No plano do direito tributrio o abuso de forma pode ser institucional, quando praticado pelo prprio Estado, como ocorre no uso exagerado da reduo teleo-lgica, ou individual, quando praticado pelo contribuinte.64 Interessa-nos, aqui, o abuso da forma jurdica praticado pelo contribuinte e combatido pelo art. 42 da AO 77.

    4.2.2 O abuso da forma jurdica e o princpio da proporcionalidade

    A estrutura normativa do art. 42 do Abgabenordnung se organizou de acor-do com os subprincpios ou mximas parciais da proporcionalidade. Alexy cha-ma a proporcionalidade de mxima (Grundsatz der Verhltnissmssigkeit), que se subdivide em trs mximas parciais (drei Teilgrundstzen), a saber: adequa-o (Geeignetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e proporcionalidade em sen-tido estrito (Verhltnismssigkeit im engeren Sinne) ou exigncia de ponderao (Abwgungsgebot).65

    , ,

  • 36 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    O art. 42 da AO cuida da adequao (Angemessenheit) no 1o, item 3, e no 2o, item 1; da necessidade no 2o, item 2, 1a parte; e da ponderao no 2o, item 2, parte final.

    a) Adequao

    O subprincpio ou mxima parcial da adequao aparece:

    o

    -

    o

    A adequao nos termos do art. 42 significa coincidncia entre forma e con-tedo ou ajustamento entre os conceitos e institutos de direito civil e a finalida-de econmica dos negcios desenvolvidos pelo contribuinte. As relaes entre o direito civil e o direito tributrio no implicam superioridade (Vorrang), mas mera precedncia do direito civil, como j disse o Tribunal Constitucional da Alemanha.66

    O contribuinte tem plena liberdade para conduzir os seus negcios do modo que lhe aprouver. O combate eliso no pode significar restries ao planejamen-to tributrio. O campo da liberdade de iniciativa ponto de partida para a vida econmica e no pode sofrer interferncias por parte do Estado.67 O contribuinte livre para optar pela estruturao dos seus negcios e pela formatao da sua em-presa da forma que lhe permita a economia do imposto. Como diz J. Hey, no h nenhum dever patritico que leve algum a pagar o imposto mais alto.68

    O equilbrio entre forma jurdica e contedo econmico, assunto dos mais difceis da dogmtica tributria, deve ser procurado atravs da metodologia da in-terpretao e da teoria dos princpios.69

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 37

    b) Necessidade

    A mxima parcial da necessidade, que compe a proporcionalidade, apresenta caractersticas especficas no tema do abuso da forma jurdica.

    No direito tributrio em geral o Estado no pode estabelecer normas jurdicas fundadas na necessidade, pois a regra de incidncia dos impostos no finalstica, como a dos incentivos.70

    J no que concerne temtica da eliso, a prova pelo contribuinte da neces-sidade negocial ou econmica na estruturao da atividade empresarial se torna indispensvel para que se possa coarctar a suspeita de abuso de forma, pois o Fisco tem apenas o poder de verificao (Verifikationverwaltung),71 ao contrrio do con-tribuinte, que conduz o procedimento abusivo e elisivo.72 O art. 42, 2o, estampa dois comandos para caracterizar o Missbrauch: a) probe que o contribuinte ou ter-ceiro obtenha com a forma inadequada uma vantagem tributria no prevista em lei comparada com a escolha da forma adequada (item 1); b) excepciona o caso em que o contribuinte comprove que a escolha encontrou fundamentos no tribut-rios (aussersteuerliche Grnde) (item 2).

    A definio da adequao, portanto, exige a prova da necessidade negocial ou econmica, como sempre prevaleceu no direito alemo e tambm no americano (business purpose test).73

    c) Proporcionalidade em sentido estrito ou ponderao

    Novidade trazida pelo art. 42, 2o, item 2, foi a exigncia de ponderao que a terceira mxima parcial da proporcionalidade entre a necessidade negocial ou no tributria e o quadro geral das circunstncias ou das relaes (Gesamtbild der Verhltnisse). O interesse negocial deve ser sopesado com os outros interesses da empresa, a ver se realmente prepondera o fundamento econmico.74 Diz Lang que o plano global (Gesamtplan) compreende o conjunto dos negcios e das atividades

    --

  • 38 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    do obrigado (Gesamtheit der Geschfte und Handlung), que leve sua formatao material (sachlichen Gestaltungszusammenhang).75

    A reforma de 2008 do Cdigo Tributrio da Alemanha introduziu uma regra ge-ral sobre as normas especiais antielisivas que examinaremos no captulo III, item 2.76

    5 CONCLUSO

    Conclui-se, pois, que a modificao do art. 42 do Cdigo Tributrio da Alema-nha trouxe notvel progresso para a temtica das normas antielisivas. O seu grande mrito foi aproximar o combate eliso abusiva da teoria dos direitos fundamen-tais, pela extraordinria relevncia que atribuiu ao princpio da proporcionalidade.

    bem verdade que o novo texto despertou dvidas na sua interpretao e apresenta lacunas, o que exigir no futuro a interferncia da jurisdio constitucio-nal e do Tribunal Europeu.

    Resta iniciar no Brasil a discusso sobre o texto germnico, a ver at que pon-to pode ele fornecer subsdios para a interpretao das normas antielisivas trazidas pela Lei Complementar no 104/2001, que at hoje aguardam a interpretao do Supremo Tribunal Federal e a ateno da doutrina.

    B OUTROS MODELOS ESTRANGEIROS

    Sob o impacto da globalizao, do crescimento e sofisticao do planejamento tributrio, do empobrecimento das Fazendas Nacionais frente ao novo relaciona-mento das empresas multinacionais e sob a influncia do princpio da transparn-cia fiscal, diversas normas surgem na dcada de 1990 e no incio do sc. XXI, no mbito da Unio Europeia e do Mercosul, para coibirem o abuso de direito e a eliso fiscal abusiva.

    1 VEDAO DE FRAUDE LEI ESPANHA

    A luta contra a eliso na Espanha se faz sobretudo atravs da clusula que permite Administrao declarar a fraude lei tributria e exigir o imposto

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 39

    elidido. O conceito de fraude lei ganhou contorno mais ntido com a redao dada pela Ley 25, de 1995, ao art. 24 da Ley General Tributaria. O dispositivo revogado no produzira nenhum processo durante mais de 15 anos de sua vi-gncia.77 A nova redao do art. 24 da LGT representou um avano no campo das normas antielisivas, mas exibiu dificuldades na aplicao e despertou perple-xidades na doutrina, principalmente a de manter, para o combate a essa forma de eliso, o recurso analogia78 ou, segundo os mais formalistas, interpretao extensiva.79 Tudo isso levou revogao do prprio art. 24 da LGT pelo art. 15 da nova Ley General Tributaria (Ley 58/2003), que disciplinou o conflito na aplicao da norma tributria, que alguns juristas espanhis entendem ser figura diferente da fraude lei.80

    2 DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA ARGENTINA

    As normas que autorizam o Fisco a desconsiderar a personalidade jurdica do contribuinte para atingir as relaes econmicas efetivamente realizadas consti-tuem autnticas normas antielisivas. Procuram normatizar a teoria do disregard of legal entity ou do lifting the corporate veil, isto , autorizam o levantamento do

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    .

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  • 40 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    vu da personalidade da empresa para que se possam atingir a substncia do neg-cio jurdico e a responsabilidade dos scios.

    Como tal pode ser classificado o art. 2o da lei argentina no 11.683, na ordena-o dada pelos decretos 821/1998 e 1334/1998 (antes aparecia como art. 12),81 que ficou conhecida como doctrina de la penetracin. Carlos M. Giuliani Fonrouge e Zusana Camila Navarrine82 ensinam que a Corte Suprema, h quase vinte anos, estabeleceu que na determinao do fato imponvel se deve atender substncia, e no s formas jurdicas externas dos atos, ou seja, que os artif-cios usados pelos contribuintes no devem prevalecer sobre a realidade que en-cobrem; depois o Tribunal aplicou explicitamente a doutrina da penetrao, ou do rgo, ou do disregard (casos Parke Davis e Mellor Goodwin), para estabelecer que uma sociedade quase inteiramente dominada por outra no autoriza a reco-nhecer a existncia de convenes entre elas, porquanto deve prevalecer a razo de direito sobre o ritualismo jurdico formal, apreendendo a realidade jurdica objetiva; finalmente, no caso Kellogg, a Corte Suprema de Justia coarctou a in-devida e indiscriminada aplicao do critrio de penetracin a todas as relaes entre empresas vinculadas, reservando-a aos atos antijurdicos que importem em abuso de derecho.

    3 PROPSITO MERCANTIL ESTADOS UNIDOS, CANAD, INGLATERRA, AUSTRLIA, SUCIA

    Desenvolveu-se em diversos pases (Estados Unidos, Canad, Inglaterra, Aus-trlia, Sucia, entre outros) a doutrina do propsito mercantil (business purpose), que sinaliza no sentido de que se caracteriza a eliso abusiva (abusive tax avoidance)

    o

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 41

    quando o contribuinte se afasta do propsito mercantil de suas atividades para procurar predominantemente obter benefcios na rea fiscal.83 O combate eli-so se fez atravs de normas antielisivas (anti-avoidance rules), que seguiram dois caminhos principais: normas judiciais antielisivas (judicial anti-avoidance rules), resultantes das decises do Judicirio, sistema que prevalece nos Estados Unidos e na Inglaterra; normas legais antielisivas (statutory anti-avoidance rules; General anti- avoidance rules GAAR), aprovadas pelo Parlamento, adotado no Canad, Austrlia e Sucia.84 Interessam-nos aqui as normas legais antielisivas.

    No Canad houve uma longa construo jurisprudencial das normas antielisi-vas, at que se transformassem em texto legal. Prevalece certo consenso no sentido de que o teste do propsito (purpose test) s se aplica aos casos em que ocorre uma eliso abusiva (abusive tax avoidance).85 As regras principais aparecem na seo 245 da legislao do imposto de renda (Income Tax Act). No item 3, define-se a transa-o elisiva como qualquer transao ou parte de uma srie de transaes que possa resultar, direta ou indiretamente, em um benefcio fiscal, a menos que a transao possa razoavelmente ser considerada como organizada para propsitos de boa-f, in-confundveis com benefcios fiscais;86 no item 2, a clusula geral antielisiva (general anti-avoidance provision) autoriza que, quando a transao seja elisiva, as consequn-cias fiscais para a pessoa sejam determinadas razoavelmente no sentido de denegar os benefcios fiscais resultantes direta ou indiretamente daquela transao.87

    Na Austrlia as normas antielisivas se estampam na Seo 177 da parte IVA da legislao do imposto de renda (Income Tax Assessment Act). Caracteriza-se a eliso quando as pessoas envolvidas em negcios jurdicos (schema) tenham o propsito

    Tax avoi-,

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  • 42 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    dominante de permitir que o contribuinte obtenha um benefcio.88 Nessa hipte-se, quando o propsito dominante no for comercial, o Fisco pode alterar o lana-mento e requalificar a posio tributria das partes envolvidas.

    A Sucia instituiu normas gerais antielisivas a partir de 1980. Segundo informa Leif Mutn, os critrios em vigor so os seguintes: a) o ato a ser desconsiderado parte de um procedimento do qual resulta vantagem tributria relevante para o con-tribuinte; b) tal vantagem pode ser entendida como a principal razo para que o ato tenha sido praticado; c) a tributao com base naquele ato seria violao do propsito da legislao.89 A doutrina sueca tem levantado a suspeita de inconstitucionalidade da norma geral antielisiva, que implicaria analogia no permitida pelo princpio da legalidade; mas a Corte Suprema Administrativa declarou constitucional a medida.90

    4 DISPOSIES ANTIELISIVAS DO DIREITO ITALIANO

    Na Itlia surgiram nos ltimos anos diversas disposies antielisivas, que so clusulas gerais com campo especfico de incidncia, em geral o imposto de renda.91

    O art. 10 da Lei no 408, de 1990, modificada pela Lei no 724, de 1994, estabele-ceu que a administrao financeira pode desconhecer a vantagem tributria consegui-da em operao de fuso, concentrao, transformao, cesso de crdito, valorao de participao social e valores mobilirios obtida sem razo econmica vlida e com a finalidade exclusiva de obter fraudulentamente uma economia de imposto.92

    O art. 7o do Decreto Legislativo no 358, de 08/10/1997 inseriu no DPR no 600, de 1973, um art. 37-bis, que estabelece no ser oponvel administrao financeira os atos, fatos e negcios destitudos de vlida razo econmica, com o objetivo de contornar a obrigao ou a proibio prevista no ordenamento tribut-rio e obter reduo de imposto ou restituio de indbito.93

    Algumas outras normas recentes cuidam tambm das medidas antielisivas.94

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    89 op

    -

    o o

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 43

    5 NORMAS ANTIABUSO EM PORTUGAL

    O art. 38, no 2, da Lei Geral Tributria portuguesa, introduzido pela Lei no 100, de 26/07/1999, estabelece:

    So ineficazes os atos ou negcios jurdicos quando se demonstre que foram realizados com o nico ou principal objetivo de reduo ou eliminao dos im-postos que seriam devidos em virtude de atos ou negcios jurdicos de resultado equivalente, caso em que a tributao recai sobre estes ltimos.

    A lei processual tributria portuguesa criou um processo especial para lidar com a aplicao das normas antiabuso.95 O art. 63 do CPPT dispe:

    1 A liquidao de tributos com base em quaisquer disposies antiabuso nos termos dos Cdigos e outras leis tributrias depende de abertura para o efeito de procedimento prprio.

    2 Consideram-se disposies antiabuso, para os efeitos do presente Cdigo, quaisquer normas legais que conseguem a ineficcia perante a administrao tributria de negcios ou atos jurdicos celebrados ou praticados com manifesto abuso de formas jurdicas de que resulte a eliminao ou reduo dos tributos que de outro modo seriam devidos.

    3 O procedimento referido no nmero anterior pode ser aberto no prazo de trs anos aps a realizao do ato ou da celebrao do negcio jurdico objeto da aplicao das disposies antiabuso.

    4 A aplicao das disposies antiabuso depende da audio do contribuinte, nos termos da lei.

    Tem sido notvel a influncia do princpio da proporcionalidade para a teoria das normas antielisivas em Portugal.96

  • 44 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    6 O MODELO FRANCS E A SUA RECEPO NO BRASIL

    Na Frana, o art. 1.741 do Code Gnral des Impts cria sanes para quem tenha volontairement dissimul une part des sommes sujettes limpt. O art. 64 do Livre des Procdures Fiscales cuida da represso ao abuso de direito (rpression des abus de droit), ao prever que no podem ser opostos administrao dos impos-tos os atos que dissimulam a verdadeira compreenso de um contrato ou de uma conveno (qui dissimulent la porte vritable dun contrat ou dune convention); a Administrao fica autorizada a requalificar os fatos (LAdministration est en droit de restituer son vritable caractre lopration litigieuse).

    A doutrina francesa vem esclarecendo que se trata de instrumento que visa manter os atos e fatos conformes realidade, com o equilbrio entre substncia e forma, evitando-se que o contribuinte adote formas jurdicas com a finalidade ni-ca de evitar ou diminuir o pagamento de impostos, o que pode ser demonstrado negativamente pela ausncia de justificao econmica.97

    O art. 116, pargrafo nico, do CTN, na redao dada pela LC no 104, de 2001, recepcionou o modelo francs de norma antielisiva.

    No aqui o lugar apropriado para se discutirem as vantagens e os demritos da recepo dos paradigmas estrangeiros. Seja como for, no se pode deixar de ano-tar que a grande modificao do direito financeiro por que passa o pas nos ltimos anos tem fonte estrangeira inspirada no princpio da transparncia: a Lei de Respon-sabilidade Fiscal (LC no 101, de 2000) cpia do Fiscal Responsability Act da Nova Zelndia; as normas antissigilo bancrio (LC no 105, de 2001) coincidem com as alteraes introduzidas na dcada de 1990 nos pases europeus; o Cdigo de Defe-sa do Contribuinte, em discusso no Congresso Nacional (PL no 646, do Senado), deixa entrever a influncia do Taxpayer Bill of Rights II, dos Estados Unidos (1996) e da Ley de Derechos y Garantas del Contribuyente, da Espanha (1998). Importan-te, no momento da recepo da norma estrangeira, no escamotear a sua origem, evitando-se a tentativa de cuidar dos dispositivos como se fora regra tupiniquim, como muitas vezes se fez no passado recente, de que foram exemplos a legislao do ICMS e a regra da interpretao do art. 109 do CTN.

    97

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 45

    SEO III AS NORMAS GERAIS ANTIELISIVAS NO DIREITO BRASILEIRO

    As normas antielisivas no direito comparado tm fundamento no combate fraude lei (Alemanha, Espanha, Portugal), ao abuso de direito (Frana) ou ao pri-mado da substncia sobre a forma (Estados Unidos, Inglaterra, Canad etc.), e no h motivo para que tais fundamentos no possam ser invocados no Brasil.98

    1 A NECESSIDADE DE SE ESCANDIR A NORMA ANTIELISIVA

    necessrio escandir-se a norma do art. 116, pargrafo nico, do CTN, para que se analisem todos os seus elementos e se verifique o alcance do seu comando.

    1.1 A autoridade administrativa...

    Diz o dispositivo legal que a autoridade administrativa pode desconsiderar os atos ou negcios jurdicos praticados.

    Autoridade administrativa, a, a autoridade da Administrao fazendria in-cumbida do lanamento.

    A eliso fiscal abusiva s pode ser combatida pela legislao, atravs do fecha-mento dos conceitos jurdicos, ou pela Administrao, mediante a requalificao dos atos e negcios jurdicos praticados pelo contribuinte.99 Sobre a autoridade ad-ministrativa recai o nus da prova.100

    O Judicirio no tem competncia para desconsiderar o ato ou negcio, ao contrrio do que prev o projeto de Lei de Defesa do Contribuinte, em exame no Senado Federal, relativamente desconsiderao da personalidade jurdica da so-ciedade.101 Ao Judicirio, entretanto, compete o controle do ato de requalificao levado a efeito pela administrao.

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    99 Die ,

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  • 46 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    1.2 ... poder desconsiderar...

    A desconsiderao operada pela autoridade significa requalificao, isto , uma qualificao jurdica diferente daquela praticada pelo contribuinte na eliso, que ter sido abusiva.

    Sabe-se que o fato gerador concreto no objeto de interpretao, mas de qua-lificao. Absolutamente imprprio cogitar-se de uma interpretao do fato. S se interpreta o fato gerador abstrato ou a norma tributria.102 Mas o fato gerador con-creto no interpretado nem valorado enquanto fato.103 O fato concreto apenas valorado de acordo com a lei,104 ou qualificado segundo as categorias estabelecidas pela norma105 ou, como prefere Reale, objeto de uma qualificao normativa.106 Se a aplicao do direito reveste sempre a forma de silogismo, subsume-se o fato em uma das interpretaes possveis da norma.107 Entre a interpretao da norma e a qualificao do fato h, por conseguinte, uma relao de subsuno, que no meramente lgica formal, mas tambm valorativa.108

    Die

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    Die ,

    o

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 47

    A desconsiderao do ato ou negcio praticado, ou seja, a sua requalificao, nada tem que ver com as consequncias da simulao, a saber: a anulao prevista no art. 147, II, do Cdigo Civil e a reviso do lanamento de que cuida o art. 149, VII, do CTN.

    Pelo contrrio. Visa apenas reaproximar a qualificao do verdadeiro contedo material do ato decorrente do desenho da hiptese de incidncia. Como observa P. Adonnino, a norma antielisiva investe a administrao no poder de proceder requalificao jurdica formal da relao, fazendo-a coincidir com a realidade subs-tancial, trazendo a consequncia ao plano do fato gerador do tributo.109

    1.3 ... atos ou negcios jurdicos praticados...

    A desconsiderao se refere aos atos ou negcios jurdicos praticados, ou seja, requalificam-se os fatos geradores concretos.

    a) Requalificao dos fatos geradores concretos

    A metodologia jurdica incumbiu-se de esclarecer que a aplicao da lei reveste sempre a forma de silogismo, em que a premissa maior a hiptese descrita na lei, a premissa menor o fato a se subsumir na descrio legal e a consequncia, o resulta-do da inferncia.110 Esse esquema metodolgico adapta-se com sucesso ao direito tri-butrio.111 Do ponto de vista lingustico, a distino mais clara fazem-na os alemes, que tm termos diferentes para significar o suporte legal ou a hiptese de incidncia (Tatbestand) e o fato concreto (Sachverhalt).112 Mas em francs (fait gnrateur), em italiano (fattispecie), em espanhol (hecho imponible) e em portugus (fato gerador), o mesmo significante expressa os dois significados, o que tem levado, entre ns, al-guns juristas a se esforarem na busca de nova terminologia, sem, contudo, supera-

    ,

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  • 48 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    rem as dificuldades semnticas, como o caso de Geraldo Ataliba,113 que prope as expresses hipteses de incidncia (= descrio genrica e hipottica de um fato) e fato imponvel (= fato concretamente ocorrido no mundo fenomnico, empiricamente verificvel). No obstante a opulncia da lngua alem, o prprio art. 1o, III, da Lei de Adaptao Tributria, inspirador do art. 118 do CTN, no conseguiu escapar da ambiguidade e da impreciso, ao utilizar o termo Tatbestand (ao revs de Sachverhalt ou Lebensachverhalt) para se referir ao fato gerador concreto.114

    A norma antielisiva do art. 116, pargrafo nico, do CTN, portanto, visa desconsiderao ou requalificao do fato gerador concreto.

    Na eliso, afinal de contas, ocorre um abuso na subsuno da norma tributria ao fato. Como lembra Paul Kirchhof, a eliso sempre uma subsuno malograda (ein fehlgeschlagener Subsuntionsversuch).115

    b) Dois exemplos de qualificao abusiva

    importante, neste passo, recorrer a alguns casos clssicos de eliso fiscal atra-vs da fraude lei e do abuso da forma jurdica.

    O exemplo clssico de fraude lei o que nos vem do direito alemo. Para pagar menos imposto, determinada pessoa, ao revs de vender o bem, preferiu fa-zer contrato de locao, de tal forma que no prazo previsto os aluguis chegariam aproximadamente ao mesmo valor da venda, sujeitando-se a imposto menor; ao adquirente era garantida a preferncia para a aquisio do bem por preo determi-nado ao fim do contrato. Quer dizer: o ato praticado era lcito, mas se utilizou para qualificar o negcio uma norma de cobertura que no lhe era adequada. Houve o desencontro entre a intentio facti e a intentio juris.

    Outro exemplo de eliso, sob a veste de abuso de forma jurdica, o caso da Grendene, que foi objeto de deciso do antigo Tribunal Federal de Recursos.116

    c) Eliso e simulao

    V-se, nesses exemplos, que a eliso se refere a fatos realmente acontecidos, que tiveram a subsuno malograda.

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  • A proibio de eliso fiscal abusiva 49

    Na simulao, pelo contrrio, o fato ou no existiu (ex., compra e venda sem entrega de dinheiro) ou s parcialmente era verdadeira (ex., compra e venda por baixo preo, que doao).

    Na eliso o fingimento no ocorre com relao ao fato concreto, mas com refe-rncia ao fato gerador abstrato definido na lei, que distorcido na subsuno. Tipke observa com preciso: Fingida apenas a forma jurdica correspondente, no o fato econmico.117

    1.4 ... com a finalidade de dissimular...

    O art. 116, pargrafo nico, do CTN acrescenta expresso a autoridade ad-ministrativa poder desconsiderar atos ou negcios jurdicos a frase com a finalidade de dissimular a ocorrncia do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos cons-titutivos da obrigao tributria....

    Interessa-nos, aqui, examinar o sentido e o alcance da expresso ... com a fi-nalidade de dissimular.

    A dissimulao poder ser tomada em dois sentidos: a) como mecanismo da simulao, como fizeram os juristas de ndole formalista; b) como ingrediente da eliso, na linha do modelo francs, que adotamos.

    a) Dissimulao e simulao relativa

    A teoria do direito civil considera a dissimulao como forma de simulao relativa. Trata-se de ponto de vista terico, que no se positiva no direito civil bra-sileiro, o qual cuida simplesmente da simulao (art. 102 do Cdigo Civil).118

    Explica Roberto de Ruggiero que na simulao ocorre a desconformidade consciente e querida da declarao com a vontade, mas preordenada com a parte qual a declarao se dirige e acordada com ela, a fim de enganar terceiros.

    Se o acordo cria um negcio que no era querido (simulamos uma venda, mas no queremos nem vender nem criar qualquer outra relao jurdica), a simu-lao absoluta. Outras vezes se cria um negcio distinto daquele que em reali-dade se quer (encobrimos em uma venda uma doao), ou se declara o querido,

    Die

  • 50 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    mas um do sujeito distinto (declaro dar a Caio para ocultar a doao feita a Maria), ou diverso o objeto (declaramos na compra e venda um preo diferente do real), ou algum outro elemento, a simulao nestes casos relativa, porque um negcio querido, mas resulta dissimulado sob falsas aparncias.119

    A dissimulao referida no art. 116, pargrafo nico, do CTN foi interpretada nesse sentido de simulao relativa pela doutrina normativista e conceptualista, que sempre defendeu o primado da forma sobre a substncia.120

    No nos parece que assim seja, tendo em vista que a desconsiderao da au-toridade administrativa refere-se a ato ou negcio jurdico realmente acontecido, sem qualquer simulao, absoluta ou relativa, porque, como j vimos, na eliso o fato gerador concreto verdadeiro. Ademais, no existe outra pessoa envolvida na realizao do fato gerador, como acontece na simulao.

    Nos exemplos utilizados, no item 1.3.b., nem a locao do bem nem o fracio-namento do capital social da empresa foram simulados, eis que a situao econ-mica realmente ocorreu, malogrando-se apenas a subsuno.

    b) Dissimulao e eliso

    Pelo contrrio, a dissimulao prevista na LC no 104/2001 refere-se apenas hiptese de incidncia ou ao fato gerador abstrato, o que caracteriza a eliso e jamais a simulao.

    A legislao brasileira, diante de vrios modelos estrangeiros de melhor qua-lidade, preferiu optar pela soluo francesa, que estabelece que no podem ser opostos administrao dos impostos os atos que dissimulam a verdadeira com-preenso de um contrato ou de uma conveno (qui dissimulent la porte veritable dun contrat ou dune convention).

    Quando o art. 116, pargrafo nico, do CTN diz que a administrao pode desconsiderar atos ou negcios praticados com a finalidade de dissimular a ocor-rncia do fato gerador tributrio est se referindo dissimulao do fato gerador

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 51

    abstrato e no simulao do fato gerador concreto. O ato ou negcio praticado (fato gerador concreto) no dissimulado, mas dissimulador da verdadeira compreenso do fato gerador abstrato, o que, sem dvida, uma das caractersticas da eliso. Nos exemplos fornecidos no item 1.3.b., ou seja, na fraude lei e no abuso de forma jurdica, a dissimulao ocorre relativamente norma de cobertura ou ao tipo des-crito na regra de incidncia.

    No direito alemo a eliso se chama Steuerumgehung, que literalmente signi-fica contornar, ladear, circular, envolver ou dar a volta em torno da lei do imposto. Tipke121 explica que para se caracterizar a eliso: Uma lei tributria deve ser contor-nada. O art. 42 do Cdigo Tributrio fala do contorno da lei tributria.

    1.5 ... a ocorrncia do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigao tributria...

    De feito, a nova clusula geral antielisiva trazida pela LC no 104/2001 nada tem que ver com a simulao porque atua no plano abstrato da definio do fato gerador e dos elementos constitutivos da obrigao tributria (sujeito passivo, tempo, base de clculo, alquota etc.), impedindo que seja dissimulada a sua ocorrncia mediante in-terpretao abusiva do texto da lei tributria. Opera, portanto, no plano da mens legis, distorcendo o seu sentido para dissimular a ocorrncia do fato gerador apropriado.

    Retornando s lies de Tipke, observa o jurista germnico que a eliso da lei tributria pressupe um abuso da possibilidade formal do direito, que se apega no finalidade, mas letra da lei.122 Marco Aurlio Greco apreende muito bem a fe-nomenologia da norma antielisiva123: Para que ocorra a hiptese de incidncia da norma autorizadora da desconsiderao indispensvel: 1) que exista a definio legal desse fato gerador, tipicamente descrito; e 2) que, materialmente, ele ocorra, embora dissimuladamente.

    Interpretando o direito francs, Gest e Tixier124 assim se manifestam: Trata--se de atos ou de montagens jurdicas (montages juridiques) que, sem ser fictcios, apresentam carter muito artificial, e no tm outra motivao que a de contornar (contourner) uma regra fiscal cogente.

    Die ,

  • 52 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    Ao analisar o direito italiano, que probe a finalidade exclusiva de obter frau-dulentamente uma economia de imposto, observa Raffaello Lupi que o termo fraudulentamente no deve ser interpretado no sentido do direito penal, mas como a utilizao de uma escapatria, de uma construo juridicamente artificio-sa, um rodeio (aggiramento) do tratamento fiscal normal de um fenmeno; acres-centa em nota de rodap que a fraudolenza aponta para o artifcio e a capziosit jurdica, que instrumentaliza a imperfeio normativa ao construir astutamente, ainda que luz do sol, um regime jurdico de favor.125

    1.6 ... observados os procedimentos a serem estabelecidos na lei ordinria

    Resta saber se o art. 116, pargrafo nico, do CTN, trazido pela LC no 104/ 2001 de aplicao imediata.

    Parece-nos que fica na dependncia de normas federais, estaduais ou municipais de carter procedimental para que possa ser aplicado. Tendo surgido a norma antie-lisiva por lei complementar federal, a regra procedimental ordinria correspondente no ser apenas federal, mas dever operar no mbito do processo administrativo fis-cal da Unio, dos Estados e dos Municpios. Se as legislaes desses entes da federa-o j possurem regras de procedimento administrativo que permitam a aplicao da norma antielisiva, nada obsta a incidncia imediata do art. 116, pargrafo nico, do CTN. Afinal de contas, a LC no 104/2001 no est introduzindo uma novidade no direito brasileiro, seno que veio explicitar o que j era aplicado pelos Tribunais sob a forma de combate fraude lei ou ao abuso de forma jurdica.

    Sucede que o Governo Federal optou por baixar a MP no 66/2002, introduzin-do desnecessrias complicaes na sistemtica da norma antielisiva. Mas a medida provisria foi recusada pelo Congresso Nacional. De modo que, no plano federal, as normas que regulam o processo tributrio administrativo podem ser aplicadas nos casos de combate eliso abusiva, embora sejam rudimentares e lacunosas.

    2 A FENOMENOLOGIA DA NORMA ANTIELISIVA

    Na prtica da eliso fiscal o contribuinte opera alm da possibilidade expres-siva de letra da lei (mgliche Wortsinn), para empregar novamente a expresso de Larenz,126 isto , monta o seu negcio ou estrutura a sua empresa ultrapassando os

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 53

    limites da interpretao jurdica,127 caindo, abusivamente, no campo da lacuna128 ou da analogia.129

    Por isso mesmo a eliso no pode ser combatida pela interpretao,130 mas ape-nas integrao jurdica, mormente pela contra-analogia e pela reduo teleolgica, nsitas nas normas antielisivas.

    2.1 A contra-analogia

    O mecanismo integrativo de combate eliso a analogia ou a contra-analo-gia, j que, como vimos, o planejamento abusivo resvala para a analogia praticada pelo contribuinte. Tipke percebeu, excelentemente, que o combate eliso pode desembocar no emprego da analogia, inclusive pela jurisprudncia, disfaradamen-te.131 Mas a analogia se torna inevitvel, anota o ex-Catedrtico de Colnia,132 diante da indeterminao dos prprios princpios fundamentais da tributao.

    No combate fraude lei visvel o argumento contra-analgico. No exemplo dado no item 1.3.b., o contribuinte buscou, pela analogia com a locao, transfor-mar as prestaes de uma compra e venda em aluguis. A contra-analogia consistiu na desconsiderao, por parte do Fisco, da subsuno operada pelo contribuinte e na requalificao da locao como compra e venda.

    2.2 A reduo teleolgica

    Em outros casos de abuso de forma jurdica o mecanismo antielisivo a reduo teleolgica, que, operando no campo da integrao, reduz o sentido possvel da letra

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    Die ,

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  • 54 PLANEJAMENTO TRIBUTRIO

    da lei finalidade econmica da norma. Explica Larenz que a teleologische Reduktion opera nos casos de lacuna encoberta (verdeckte Lcke), que aquela que no permite a aplicao da regra a uma srie de casos, em virtude do seu sentido e finalidade;133 pela reduo teleolgica reduz-se o campo de aplicao da norma possibilidade expressi-va das palavras da lei (mgliche Wortsinn).134 A interpretao conforme a Constituio (verfassungskonforme Anslegung), hoje to adotada pelo Supremo Tribunal Federal, emprega a reduo teleolgica, eis que, sem reduzir o texto legal, limita os sentidos possveis da norma ao que for mais adequado sua finalidade.135

    A reduo teleolgica a tcnica utilizada nos casos de abuso da forma jurdica. Sem alterar a letra da lei, o aplicador reduz o seu alcance finalidade econmica da norma, sempre que o contribuinte tiver ampliado desmesuradamente o seu sentido.136

    No exemplo da Grendene, que antes utilizamos,137 o Tribunal Federal de Re-cursos empregou a reduo teleolgica. Concluiu no sentido de que o texto da lei do imposto de renda, que outorgava certo tratamento tributrio s empresas de pe-queno porte, no alcanaria as sociedades que, sem nenhuma finalidade econmica ou negocial, viessem a ser criadas com o nico intuito de pagar menos imposto.

    3 CONCLUSES

    O art. 116, pargrafo nico, do Cdigo Tributrio Nacional, introduzido pela Lei Complementar no 104, de 10/01/2001, uma autntica norma geral antielisi-va, e no uma regra antievasiva.

    As normas antielisivas, que apareceram principalmente a partir da dcada de 1990 nos pases da Unio Europeia, do Mercosul e da Amrica do Norte, encon-traram clima propcio no aperfeioamento dos pressupostos metodolgicos do di-reito e na emergncia do princpio da transparncia fiscal.

    Do ponto de vista metodolgico a cincia do direito tributrio ultrapassou, a contar dos anos 1970 do sculo XX, as vises radicais da jurisprudncia dos concei-tos, com a tese da preeminncia do direito civil sobre o fiscal, e da jurisprudncia dos interesses, com a defesa da autonomia do direito tributrio e da chamada interpreta-o econmica. Passa a prevalecer a jurisprudncia dos valores, com o primado dos princpios, o equilbrio entre os poderes do Estado e a harmonizao entre direito

  • A proibio de eliso fiscal abusiva 55

    e economia. A consequncia natural na teoria da eliso fiscal foi a superao das teses extremadas no sentido da sua ilicitude generalizada ou da licitude permanen-te, exsurgindo a ideia de que o planejamento fiscal forma legtima de economizar imposto, desde que no haja abuso de direito.

    Por outro lado, a globalizao, com toda a sua ambivalncia e concentrao de riquezas, trouxe a necessidade de adeso ao princpio da transparncia fiscal, que sinaliza no sentido de que a atividade financeira deve se desenvolver segundo os ditames da clareza, abertura e simplicidade. O princpio da transparncia, para coarctar os riscos fiscais do mundo globalizado, inspirou, em diversos pases, as leis de responsabilidade fiscal, os cdigos de defesa dos contribuintes, as regras de combate corrupo dos funcionrios da Fazenda e dos contribuintes, as normas antissigilo e, afinal, as normas antielisivas.

    As normas antielisivas surgiram, principalmente a partir dos anos 1990, sob di-ferentes configuraes: proibio de abuso de forma jurdica, na Alemanha (art. 42 AO 77); vedao de fraude lei, na Espanha (art. 24 do Cdigo Tributrio, altera-do em 1995); desconsiderao da personalidade jurdica, na Argentina (art. 2o da Lei no 11.683, alterado em 1998); prevalncia do propsito mercantil, nos Estados Unidos, Inglaterra, Canad e Sucia; normas antielusivas, na Itlia; norma antia-buso, em Portugal (art. 38, no 2, da Lei Geral Tributria, de 1999); proibio de dissimulao das somas sujeitas ao imposto, na Frana (Code Gnral des Impts).

    O Brasil j vinha adotando nos ltimos anos algumas normas antielisivas, como as relativas ao imposto de renda (art. 51 da Lei no 7.450/1985 e art. 3o, 4o, da Lei no 7.713/1988) e o princpio arms length (Lei no 9.430/1996).

    A nova regra do art. 116, pargrafo nico, do CTN, na redao da LC no 101/2001, autntica norma antielisiva, que recepcionou o modelo francs. Nada tem que ver com a norma antissimulao, que j existia no direito brasileiro (art. 149, VII, do CTN) e que tem outra estrutura e fenomenologia. A recente re-gra antielisiva tem as seguintes caractersticas: permite autoridade administrati-va requalificar os atos ou negcios praticados, que subsistem para efeitos jurdicos no tributrios; atinge a dissimulao do fato gerador abstrato, para proceder adequao entre a intentio facti ea intentio juris, o que caracterstica da eliso, na qual o fingimento se refere hiptese de incidncia, e no ao fato concreto, como acontece na simulao relativa ou dissimulao no sentido do direito civil. A nova norma antielisiva opera por contra-analogia ou por reduo teleolgica e introduz uma exceo ao art. 108, 1o, do CTN, que probe a analogia para a criao da obrigao tributria. A regra antielisiva meramente declaratria e por isso s ne-cessita de complementao na via ordinria nos casos em que o Estado-membro ou municpio no possua legislao segura sobre o processo administrativo tributrio; para a Unio, que j o disciplinou, a regra autoexecutvel, como ficou claro com a no incorporao dos arts. 14 a 17 da MP no 66/2002 na Lei no 10.637/2002.

  • CAPTULO III

    1 O CONCEITO DE NORMAS ESPECIAIS ANTIELISIVAS

    As clusulas gerais antielisivas, sendo ambguas e analgicas