revista no ponto

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NoPonto Cozinha Libanesa Cachaça Conheça a história da bebida que é reconhecida como produto brasileiro Artesanal Aprenda o que fazem os cuteleiros Ano 01 - Edição 01 - Junho de 2012 R$5,90 A comida que você quer

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Revista No Ponto

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NoPonto

CozinhaLibanesa

CachaçaConheça a história da bebida

que é reconhecida comoproduto brasileiro

ArtesanalAprenda o que fazem os cuteleiros

Ano 01 - Edição 01 - Junho de 2012

R$5,90

A comida que você quer

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Ela é linda,é nossa e é da cor

do Brasil!

No fioda lâmina

BEBIDA

ARTESANAL

NEGÓCIOS

Receitas de vida e pães no “coração”do Gargantilha

ESTRANGEIRO

Minha casaé de cedro

VIDA

Por outros trilhos,outros rumos,

outros tempos?

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04 NO PONTO JUNHO 2012

Do bom e do melhor!

E aí, meus amigos, tudo bom com vocês?Inauguramos nesta edição uma revista do jeito da comida caseira,

do prato quentinho da casa da avó.Uma revista que fala de comida, de quem faz comida, de quem

se alimenta, de quem repete o prato e tem um monte de história pra contar, seja sentado à mesa, seja atrás do balcão de uma padaria do interior.

E, antes ou depois daquela refeição, tem aquele tira gosto ou algo que ajude a digestão, ou qualquer outra desculpinha pra tomar uma caipirinha ou um copo de cachaça sem precisar dar satisfação. E dessa rima caipira, dessa mistura de sabores, aromas e cores, nasce essa publicação.

E ainda tem o corte da navalha, a vida atrás do volante do táxi, a forja da faca e da história. Quem gosta de ler e de comida boa vai se deliciar com o nosso cardápio, feitos pelos nossos repórteres que já se provaram verdadeiros mestres-cuca na arte da escrita.

Agora, meu caro amigo, bem-vindo ao nosso restaurante, à nossa lanchonete, à nossa mesa de bar. Deixe a escolha do menu e o as-sunto da conversa por nossa conta, te garanto que no final você vai querer dar seus cumprimentos ao chef.

EDITORIAL

Boa leitura!

Vinícius GandolphiEditor-chefe

ExpedienteEditor-chefe: Vinícius Gandolphi.Diagramação: Thiago Toledo.Reportagens: Ingrid Balhe, Lígia Antoniazzi, Marcelo de Barros, Thiago Toledoe Vinícius Gandolphi.

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04 NO PONTO JUNHO 2012

Ela é linda, é nossa eé da cor do Brasil!

Clock! O barulho seco da porta que me impedia de sair a tantos anos, fora finalmente aberta. Aos poucos eu conseguia me esquivar daquele pequeno compartimento e experimentar novas emoções.

Engh! Em um só gole o rapaz bebe metade do conteúdo trans-parente do pequeno copinho. A bebida que desce quente deixa, por alguns instantes, registrada sua marca inconfundível: o sabor adocicado misturado àquele forte teor alcoólico. Língua, bochecha, traquéia, esô-fago e estômago. A pinga, apelido originado do líquido que “pingava” nos alambiques, se faz lembrar por alguns instantes à medida que vai descendo pelo tubo digestivo.

Por onde passo deixo meu rastro, meu perfume sedutor e incon-fundível que é aos poucos identificado. À medida que sou apreciada vou causando paixão e deixando saudade. Uma paixão tão forte e tão boa que sou cada vez mais desejada, e cada vez mais degustada, até o ponto em que, dependendo do amante em questão, sou praticamente abusada. Retribuo e me entrego inteira, deixando apenas uma pequena parte de mim em meu local de origem.

A sensação de garganta queimando provoca uma leve retorcida de canto de boca, mas uma dose não é o suficiente. O copinho é esvaziado alguns segundos depois que é reabastecido e, ao passo em que o liquido, semelhante à água, vai deixando a garrafa o homem vai ficando mais alterado. Suas percepções mudam com o virar dos copos: o balconista, de cara amarrada, passa a ser tão simpático; o mais novo companheiro de boteco já é considerado um de seus melhores amigos; a mulher sentada na mesa ao lado vai ganhando feições cada vez mais atraentes e curvas ainda mais chamativas, mas o marido, que a acompanha no petisco de bolinho de bacalhau, passa a ficar cada vez mais irritado com os olhares indiscretos que o homem lança à esposa.

Eu nem me importo. Minha preocupação é simplesmente ser agradável e marcante até o último momento. Mas cuidado, posso ser vingativa. Tenho a personalidade forte e por vezes sou o motivo de vergonha no dia seguinte caso não saiba me tratar com respeito e moderação.

BEBIDA

Além de ganhar espaço e sofisticação, a cachaça já é reconhecida como produto brasileiro

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BEBIDA

Ela é linda, é nossa e é da cor do Brasil!

Já fui considerada companhia para todo tipo de gente, mas ulti-mamente estou caindo no gosto do público granfino, mas apesar de não fazer diferença entre raça, cor, sexo ou credo, confesso que o meu coração é brasileiro. Não que os gringos também não me amem, mas na verdade eles ainda estão aprendendo a me apreciar e por muitas vezes me confundem com outras gringas de cor branca ou amarelada como eu.

Tem gringo no sambaJá tive fases em que fui consumida principalmente por pessoas

de baixa renda, mendigos ou moradores de rua, o que contribuiu para que minha imagem fosse associada a produto de má qualidade. Entretanto, atualmente, dei a volta por cima e alcancei a fama que tanto almejava: hoje sou respeitada e apreciada mundialmente, além de já ter conquistado a preferência de pessoas da alta sociedade e ser servida em encontros políticos internacionais e eventos de toda espécie, mundo afora.

Não perdi a oportunidade de mostrar a graça e o gingado bra-sileiro quando fui apresentada ao presidente dos Estados Unidos, Barack Obama e, é claro que ele se apaixonou. Após reunião com a presidente Dilma Roussef no dia 10 de abril, fui reconhecida como produto tipicamente brasileiro e, enfim, vou parar de ser confundida com o caribenho rum.

De acordo com Reinaldo Anniccino, presidente da APPC, asso-ciação paulista dos produtores de cachaça, para ser exportado nossa bebida precisava ter o rótulo reformulado e identificado como “Rum brasileiro”, o que prejudicava a visibilidade do produto e provocava

um erro cultural. O país que mais exporta a pinga brasileira é a Ale-manha, mas, segundo Reinaldo, os países estrangeiros conhecem e gostam muito da caipirinha, mas não sabem apreciar a cachaça pura, por isso acabam exportando aquilo que é mais barato ao invés de dar importância à qualidade.

Segundo o cachaçologo, Idenir Perondini - pós- graduado em tecnologia de cachaça pela Universidade Federal de Lavras – MG, o Brasil produz cerca de 1,3 bilhão de litros de cachaça por ano, mas as exportações representam menos de 1% das vendas. Com a nova medida a expectativa é favorável aos produtores brasileiros, já que o esperado é que o produto deixe de ser exportado como Rum e passe a levar o legítimo nome ao mundo.

A boa, a branca, branquinha, marvada, abençoada, afoga mágoa, água que passarinho não bebe ou aguardente. Cada amante tem a liberdade de me chamar pelo apelido carinhoso que mais lhe agra-dar, mas meu nome verdadeiro é ainda mais famoso: cachaça, muito prazer.

Por onde andeiMinha origem, apesar de simples, é muito antiga. Venho da época

dos escravos que trabalhavam na produção do açúcar da cana de açúcar. “Depois de limpá-la e moê-la, eles produziam um caldo que era resfriado em formas para fazer a rapadura que adoçava as bebidas da época”, diz o cachaçologo.

O meu primeiro nome surgiu quando, por vezes, o caldo desan-dava e começava a fermentar, dando origem a um produto que era chamado de ‘cagaça’, jogado fora, já que não servia para adoçar. Alguns escravos bebiam esse líquido e, com isso, trabalhavam mais entusiasmados.

Com o tempo fui sendo aperfeiçoada, pois, de acordo com o estu-dioso, muitas pessoas começaram a reconhecer meu valor e a apreciar minhas qualidades. Meu processo de produção passou a ser feito de maneira diferente, até porque eu alcancei um patamar de produto de comercialização e até mesmo moeda de troca. O historiador Luis Felipe de Alencastro, no clássico “O Trato dos Viventes”, afirma que, entre 1710 e 1830, “um em cada quatro escravos trazidos da África foi trocado por cachaça em Luanda.” Em compensação, toda a minha fa-mília ainda tem uma origem muito parecida e, apesar de modernizada, ainda faz lembrar o trabalho desempenhado pelos escravos.

Nos dias de hoje, as maquinas continuam não são bem vindas nos canaviais, pois podem precipitar a deterioração e prejudicar a produção, assim como explica Anniccino, presidente da APPC. Além disso, depois de retirada do pé, a cana só pode esperar entre 12 e 48 horas até a moagem. De acordo com Perondini, esse processo de produção é controlado pelo Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento e deve contar com pelo menos três meses de armazenamento.

Depois de madura, limpa, cortada e fresca, o trabalho que dá início

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ao nosso nascimento é conhecido como moenda, que nada mais são que maquinas alimentadas por motores elétricos ou roda d’água, que desempenham o papel de espremer e extrair o suco da cana, assim como faziam os escravos manualmente desde a época dos senhores de engenho.

O próximo passo são algumas horas de descanso em tones de 700 litros, também conhecido como decantação, para que as impu-rezas, como resto de bagaço e terra se acumulem no fundo do de-cantador e possam ser filtrados, para que nosso caldo torne-se claro, limpo e doce. “Na fermentação o liquido produzido recebe nutrientes, mas antes é preciso padronizar todo o caldo, ou seja, deixá-lo com o mesmo teor de açúcar. Para isso é adicionada água potável”, revela Anniccino.

A etapa de fermentação é feita em uma sala ampla e arejada, porém com uma temperatura de 25° C. É neste local em que vou ganhando aditivos para que me transforme na bebida dos adultos. Quando produzida artesanalmente, a cachaça não admite o uso de aditivos químicos, apenas a água potável e, antigamente, levava tam-bém fubá de milho, farelo de arroz caldo de laranja azeda ou limão. Mas, de acordo com Perondini, essa era uma prática comum na antiguidade que, hoje não é a mais indicada devido a proliferação de microorganismos contaminantes.

O aroma de frutas que vai sendo exalado pelo liquido que descan-sa nas dornas é um sinal de que a fermentação está quase chegando ao fim. Depois de armazenada por cerca de 24 horas, as bolhas dão o sinal de que o fermento já está depositado no fundo do compar-timento. Como a concentração alcoólica ainda é baixa, (inferior aos 38% a 54% fixados por lei) a bebida ainda precisa passar por um processo de destilação, para que tal teor seja elevado.

Nesse momento sou fervida dentro de um alambique de cobre – equipamento que aumenta a qualidade do produto final, uma vez que catalisa compostos mal cheirosos - ou aço inoxidável, e produ-zo vapores que são condensados por resfriamento. Assim, passo a apresentar grande quantidade de álcool etílico. Mas, os primeiros e os últimos 10% da minha destilação, conhecidos como cabeça e cauda, são muito prejudiciais e por isso devem ser separados ou eliminados.

A última parte desse procedimento é, de acordo com Perondini, uma das mais importantes. É exatamente nesse ponto que vou ga-nhando as características que fazem jus ao meu apelido de branquinha gostosa. Meu aroma e meu sabor são aprimorados à medida que descanso em barris de madeira, alcançando um toque suave, frutado e adocicado que representam qualidade, onde ainda acontecem reações químicas que podem mudar minhas características físicas e atribuir-me uma tonalidade amarelada, de acordo com o tipo de madeira de que é feito o tonel que me hospedará: se for de jequitibá ou amendoim minha cor passa a ser amarela graças a uma série de reações quí-micas e adição e subtração de compostos, que ocorrem naturalmente na presença de oxigênio, que passam através da micro-porosidade da madeira, reagindo com os compostos que já fazem parte do meu líquido, como explica o cachaçologo. Mas, se o material derivar do carvalho, umburana, cedro ou bálsamo, mantenho-me com a trans-parência original.

O tempo de armazenamento também influencia as características finais do produto, os melhores produtores costumam deixar a cachaça envelhecendo cerca de seis meses, porém, tempo não é sinônimo de qualidade. “Uma cachaça armazenada durante muitos anos pode não ter mais álcool suficiente para ser considerada uma cachaça, já que perde em média 10% de volume de álcool ao ano”, afirma.

Apesar de algumas dicas de degustação, cada amante tem a li-

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BEBIDA

Ela é linda, é nossa e é da cor do Brasil!

berdade de escolher uma de minhas personalidades de acordo com o que mais lhe agradar: minhas versões envelhecida, Premium e Extra Premium variam de acordo com o tempo de armazenamento, que pode ir de menos de um ano à mais de três. Já quando sou conhecida como ouro, significa que minha coloração amarela é característica marcante do meu processo de produção, que por sua vez pode ser em alambiques, de forma artesanal, ou industrial. No segundo caso, com destaque para São Paulo e Nordeste, a diferença é que minha produção em grande escala é executada com a ajuda de máquinas que tornam o processo mais veloz.

Quando produzida de maneira artesanal e de forma higiênica, sou muito agradável ao paladar e, apesar de causar aquela sensação de queimação, não sou do tipo de provoca reações drásticas como vonta-de de cuspir ou até mesmo dores de cabeça e enjôos o dia seguinte.

Na mesa do barA maneira mais correta de se aproveitar da minha companhia é

segurar minhas gotas por um tempo dentro da boca, enquanto minha acidez é percebida na parte lateral da língua, o paladar adocicado só é reconhecido na ponta e, dependendo da marca, um leve sabor salgado ou amargo também podem ser identificados. Porém, antes de me colocar na boca observe se não há nenhum tipo de substância decantada no fundo da garrafa, o que pode ser um sinal de falta de higiene durante a minha produção.

Devido à variedade e qualidade que venho apresentando ao longo de minha trajetória de vida, fui ganhando destaque em meio ao público mais requintado. Hoje em dia, além de ter criado uma profissão para quem que se dedica a me estudar, ainda sou tida como objeto a ser colocado na prateleira de um armário bonito, em meio a outras colegas importadas e copos sofisticados.

Ainda no começo de uma singela coleção de cachaças, Renato Gomes revela que adora comprar a aguardente em suas viagens. Depois de visitar algumas cidades do estado de Minas Gerais, maior produtor da bebida no país, o dentista decidiu que começaria a co-lecionar as branquinhas (ou amarelinhas) para tomar com os amigos ou preparar a boa e tão querida caipirinha.

No armário de madeira envelhecida e portas de vidros, que combina com as paredes de tijolos aparentes decorando a casa em estilo rústico, são apresentadas algumas garrafas de cores e formatos diferentes. O mais novo colecionador conta que ganhou alguns dos exemplares como presentes de amigos e comprou outros em visitas a alambiques ou lojas especializadas.

Apesar de apreciar o sabor das bebidas, Renato revela sua pre-ferência ao pegar o kit para fazer caipirinhas que ganhou da sogra e preparar com desenvoltura a bebida tipicamente brasileira, “gosto de ter as cachaças para servir aos meus amigos quando visitam minha casa, mas o que mais me agrada é tomar aquela amarelinha ali com limão”. Assim como afirma o cachaçologo, a branquinha pode ser combinada com diversas frutas a fim de criar tipos diferentes de drinks, mas o importante é que a bebida seja de boa qualidade.

De volta ao Brasil colonial, é possível identificar, mais uma vez, a influência dos escravos no surgimento de uma tradição tipicamente bra-sileira. Durantes cerimônias e festas religiosas na fazenda era comum que os escravos tomassem o suco da cana ainda não fermentado, misturados a frutas cítricas e ao resto do açúcar que era produzido para comercio, conhecido como borra.

Mas a caipirinha como conhecemos hoje só ganhou notoriedade quando, em 1993, graças ao barman Derivan Souza, foi incluída no cardápio oficial internacional da IBA (International Bartenders Associa-tio) e reconhecido mundialmente como um drink tipicamente brasileiro.

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Século XVIO caldo era consumido apenas pelos escravos com intenção de deixá-los mais obedientes ou para curá-los do banzo, a depressão causada pela saudade de casa.

O líquido era utilizado para amortecer a carne dura dos porcos.

Começa a ser produzida como aguardente, em alambiques de barro ou de cobre.

Século XVIIA branquinha começa a atrair consumidores e passa a ser tratada como moeda corrente.

Portugal proíbe o consumo da cachaça no colônia, pois sua be-bida típica – a bagaceira, produzida do bagaço da uva - era desvalorizada.

Depois de sofrer boicotes do povo brasileiro, Portugal recuou quan-to à decisão de proibir o consumo da Cachaça e decidiu apenas taxar o destilado.

A Cachaça virou símbolo da resistência ao domínio português. O último pedido de Tiradentes: “Molhem a minha goela com cachaça da terra”.

Século XIXO processo de produção é aprimorado.

A cachaça passou a ser tão apreciada que era servida em ban-quetes nos palácios e servida misturada a outros ingredientes, como o gengibre.

Com o início da república e a abolição da escravatura, a moda era seguir os costumes europeus, por isso a cachaça enfrentou um período de baixa.

A Semana da Arte Moderna resgatou a nacionalidade brasileira e a cachaça ainda continuava a apurar sua qualidade.

Passou a ser servida como bebida brasileira oficial nas embaixadas e vôos internacionais.

Século XXIA Cachaça, assim como o futebol,a feijoada e o carnaval é con-sagrada brasileiríssima e apreciada em diversos cantos do mundo.

Na Alemanha, a Caipirinha de Cachaça é muito mais consumida que o tradicional Scott.

por Lígia Antoniazzi

Cronologia

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No fi oda lâmina

A golpes de martelo sobre uma bigorna, sincronicamente, João Batista Junior – o JB, exercita o ofício da cutelaria. Em movimentos verticais firmes, com disciplina que herdara dos tempos em que atuara como policial militar. JB forja o aço Damasco, originário da fusão entre aço carbono e aço cromo, que submetido ao processo de caldeamento, a uma temperatura de mais de 1200 graus, numa prensa hidráulica, chega ao ponto de corte e dobra que determina o número de camadas do aço. O material foi introduzido no ramo da Cutelaria pelo Norte Americano Bill Moran, então presidente da ABS, American Society de Knifemakers – Cuteleiros.

A chuva intermitente, deixa sobre as ferramentas e máquinas, suas gotículas tão pequenas, embora possam conduzir muitos metais ao processo de oxidação – ferrugem. Este fenômeno da natureza não é empecilho para o cuteleiro, que está disposto a trabalhar, principal-mente, para revelar os detalhes de sua rotina, a produção de facas.

A paixão pela Cutelaria – como a arte de fabricar instrumentos de corte, começou bem cedo. O brilho nos olhos e a forma de manu-sear as facas despertam a sensação de que estes instrumentos foram gerados, como numa gravidez. Algo que habitara o interior do criador e ganhara vida. Uma extensão dos próprios membros superiores, mãos que cortam. De acordo com JB, a aproximação da atividade começara ao ver seu avô materno, Antonio, “afiar ferramentas, encabar enxadas, machados, consertar instrumentos de trabalho, gostava de vê-lo tra-balhar”, recorda. Com os braços cruzados e os polegares apontados para cima, numa forma de proteção, JB mostra como Filmes de ação, como Rambo, estrelado por Sylvester Stallone, influenciaram seu gosto pelo ofício, sobretudo, pela característica utilitária das facas. O herói baseado na obra de David Morrell é um soldado enviado ao Vietnã, durante o período de guerra, e que integra as operações especiais do exército Norte-americano, os Boinas-Verdes. Numa linha tênue entre ídolo e fã, JB se projeta como num cenário de selva em alusão ao

ARTESANAL

Cuteleiro há mais de 20 anos, JB revela o

prazer em forjar e as dificuldades enfrentadas

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pela dedicação integral ao ofício

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ARTESANAL

No fi o da lâmina

filme, para justificar a importância do cutelo em condições extremas de sobrevivência. A faca garante a alimentação, proteção em relação a animais e, conforme lembra em uma cena do filme, para cortar uma lona para cobrir-se, em virtude das fortes chuvas. Desde o co-turno utilizado por Rambo, o estilo rústico, praticamente militarizado, a maneira de lidar com a Bowie, um tipo de faca de combate foram introduzidos ao imaginário de JB.

Uma das características fundamentais do processo de formação e evolução da humanidade se verifica na produção de utensílios destina-dos à caça e à pesca, ao transporte e à proteção diante dos perigos. A capacidade de manusear minérios, como por exemplo, no período conhecido de Paleolítico ou Idade da Pedra Lascada há cerca de 2 milhões de anos, demonstrava a aptidão da humanidade em transfor-mar algo no estado bruto em ferramentas rudimentares que aceleravam o processo tanto de cortar os alimentos adquiridos como golpear uma presa para o consumo. O Homo Habillis – habilidoso, se utilizava de ossos de animais, pedras e, com a descoberta do fogo, passou a aquecer seu corpo e a cozer os alimentos. No âmbito da culinária, de acordo com o Chef André Boccato, jornalista e fotográfo, autor do livro Churrasco Paixão Nacional, 2009, “a faca servia para cortar e levar à boca, sendo ela ancestral do garfo, confundia-se com arma e acessório. A faca é símbolo da arte de sobreviver”, explica.

No caminho à Era dos Metais, os objetos utilizados se iniciaram a partir da descoberta do cobre, cujas peças mais antigas foram en-contradas próximas à região conhecida hoje como Turquia. O bronze é o próximo elemento, resultado da liga de cobre e estanho, e enfim, o ferro. Este metal passou a ser utilizado genericamente, de acordo

com a Sociedade Brasileira de Cuteleiros, por volta de 1000 a.C. E, apenas com os legionários romanos a difusão de forjar este material foi popularizada. O antecessor do cuteleiro foi o ferreiro. Durante o período que antecede à siderurgia, as atividades relacionadas ao manuseio do ferro tinham conotação sagrada. Acreditava-se no poder mágico daqueles que portavam instrumentos feitos destes minérios. Pois de acordo com relatos históricos o ferro provinha de meteoritos, por isso se acreditava na ideia de sideral, daí umas das possibilidades da ori-gem da palavra siderurgia. Ao concluir sobre a história dos Cuteleiros, JB segura uma de suas facas modelo de caça e delicadamente passa o dedo polegar sobre o fio de corte, no mais recôndito do inconsciente, para além de Freud, a relação de poder ao portar um objeto cortante e perfurante, vem à tona. Um ligeiro movimento brusco, as perturbações psíquicas podem provocar interpretações de instinto de sobrevivência. O tirocínio diante do perigo não fora ativado. A descoberta e a capaci-dade de produzir ferramentas dividiram os detentores do poderio bélico daqueles que, historicamente foram dominados em inúmeras guerras.

JB, paranaense da cidade de Maringá, migrou para São Paulo, na cidade de Guarulhos, com 4 anos. Lá ao lado da família, aliás, de

1 Aço Damasco durante processo de forja na prensa hidraúlica à 1200ºC

2Forja sobre a bigorna

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11 irmãos, nutria a paixão pela aventura de produzir objetos cortantes. Enquanto as crianças de sua idade brincavam de esconde-esconde, jogavam futebol, JB não priorizava essas atividades. Gostava mesmo era dos trabalhos do avô materno. Sonhava em desenvolver suas pró-prias ferramentas. Idealizava a construção de sua própria faca. Com a adolescência foi estudar no Serviço Nacional de Aprendizagem Indus-trial, SENAI, no curso de ajustador mecânico. Os amigos de sua época queriam os tênis da moda, aparelhos de som, JB, um menino com outras ambições, a infância e adolescência focadas em desejos talvez absorvidos pelo emaranhado chamado de inconsciente, ou uma maneira de sublimar as expectativas frustradas, ou até mesmo, predestinação a realizar o ofício. Neste momento se recorda da Música de Lulu Santos, Minha Vida, quando compara sua vontade em adquirir uma faca a um trecho da letra e dá uma canja, embora muito tímida, “quando eu era pequeno eu achava a vida chata, como não devia ser os garotos da escola só afim de jogar bola, eu queria ir tocar guitarra na TV”.

Os preços das facas sofisticadas, principalmente, pela inflação galopante da década de 80, eram equivalentes ao salário de um ano de JB, a aquisição foi protelada até o dia em que decidira construir sua primeira faca. De maneira rudimentar, à frio, com uma serra,

esmeril, lixa, lima e martelo. O artesão adormecido despontava. Fre-quentava feiras, onde encontrava facas de cabos ocos, para se divertir arremessando-as em objetos, como se fossem dardos. As necessida-des econômicas batiam à porta. Dedicar-se à produção de facas para subsistência, se manifestava como um projeto futuro. Prestou concurso público para ingressar na Polícia Militar, na qual exerceu a função de soldado no batalhão de choque e em outras áreas da corporação durante 11 anos, ironia de quem iniciara sua afeição pelas facas, através dos filmes de ação. Como diria Nietzsche, o “Eterno Retorno”. Entretanto, durante suas folgas, mantinha o ofício da cutelaria. As responsabilidades também aumentaram, quando nasceram seus filhos, Neto e Amanda. Entretanto, este cordão umbilical entre JB e as facas não se rompia. Ao deixar a carreira de policial foi trabalhar de segu-rança e motorista. Uma espécie de guarda-costas, vigilante, nos filmes, a personagem discreta e combativa. A crise quanto à dedicação à forja foi inevitável. Obviamente, como afirma JB, “se pensasse racionalmente teria vendido máquinas, ferramentas, para se dedicar a outra atividade, mas a paixão pela arte da cutelaria é muito maior”, completa.

A década de 90, para JB foi oportuna para fabricação de facas à frio, com traços marcantes do artesão, que insiste em ressaltar sua vocação autodidata. Desde a empunhadura ou cabo ao fio da lâmina, produzira o modelo Bowie tão difundido por mestres deste segmento. A comercialização das facas se intensificou em 1997, mediante a leitura da revista Magnun, cuja especialidade é o mundo das armas, JB leu uma matéria sobre Ricardo Vilar, um dos três Sul Americanos com a certificação “JS”, concedida pela Americam Blade Smith Society, con-siderada a titulação equivalente ao segundo nível no que se refere à

3Em estado bruto, mas com forma

4 Lixa de cinta em momentode desgaste da faca

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ARTESANAL

No fio da lâmina

5 Movimento de limar, sobre umamorsa, os detalhes se revelam

Cutelaria Profissional. Vilar foi o primeiro cuteleiro que JB teve contato, com o qual aprendera muito e, sobretudo, a partir desta experiência passou a comercializar as facas de modo profissional, embora ainda se submetesse à dupla jornada de trabalho. “Sobreviver de arte no Brasil é difícil”, lamenta JB.

O sonho de entrar para elite dos cuteleiros do país se concretizou em 2001, quando participara do curso seleto, ministrado pela lenda da cutelaria, Jerry Fisk , com título de Master Smith – mestre ferreiro, ou melhor, forjador, o mais alto posto de acordo com Associação Ameri-cana dos Cuteleiros, vencedor de vários prêmios. O curso rendeu a JB primeiramente contato com os mestres na produção de facas, ascensão e reconhecimento de seu trabalho. Ou seja, o curso deu notoriedade e atraiu colecionadores, interessados na arte da cutelaria. O mercado se aquecia, a procura estimula uma maior produção e, fundamentalmente, JB se aperfeiçoara no ofício.

De sua casa, ouvia-se o canto de um canário da terra, proveniente da casa vizinha. Como um barítono, o pássaro compunha a orquestra de equipamentos de JB, entre os quais, a prensa hidráulica, a forja, a bigorna, martelo, lixa de cinta, varios tipos de lima. Cada um com sua função e importância. Os paramentos para o ritual estão postos, com uma camiseta verde, parecida com as cores utilizadas pelo exército, calça jeans, bota, JB se prepara para o ritual da forja. Lá fora, após uma forte chuva, se mantém o famoso “chuvisco”. Ao aproximar-se da

forja, cautelosamente, recorre ao Equipamento de Proteção Individual, EPI – capacete e luvas próprios para manusear objetos quentes. Co-menta de que não trabalha sem proteção e mantém uma preocupação excessiva com as mãos, ferramenta natural, capaz de produzir instru-mentos, projetados pelo intelecto. Nesta oficina muitas máquinas como a forja foram confeccionadas por ele. Numa linguagem futebolística, “bate escanteio e corre até a área para cabecear”, brinca JB. Uma peça de Aço Damasco é inserida na forja, ligado a uma barra de ferro, apenas para facilitar no processo de movimentação do aço, que atinge uma temperatura de mais de 1200 graus. JB se assemelha a um locutor, ao narrar cada passo do aço inserido na forja, aos poucos assumindo a cor avermelhada, para receber sobre si, os golpes do martelo. O tempo de permanência não ultrapassou 5 minutos, então, com um martelo, o aço Damasco em estado bruto é novamente co-locado sobre a bigorna, para iniciar a sessão de moldar, com gestos firmes e objetivos, a geometria incipiente daquilo ao qual chamar-se-á de faca. E, varias vezes, ouvia-se o som do fogo aquecendo o aço e o estridente ruído ritmado do martelo sobre a bigorna. O visual do aço já se assemelha a uma faca, rústica, sem contornos mais sensíveis e, sobretudo, sem o fio da lâmina. Entretanto, a mutação do patamar bruto cede espaço à condição de desbaste do metal, isto é, deixá-lo menos espesso. O aço Damasco, nas mãos habilidosas e minuciosas de JB é submetido à lixadeira de cinta. As fagulhas se espalham pelo ar e reluzem nos óculos de proteção. Os movimentos feitos se alternam entre vertical e horizontal. O mosaico do aço Damasco se manifesta timidamente. JB com paciência e técnica começa a modelar a parte da faca conhecida de fio da lâmina. O local do corte. Numa espécie de dança das mãos, numa forma de semi-círculo os dedos se harmonizam junto ao objeto produzido. A faca polida assume aparên-cia. Mas precisa de detalhes no acabamento e um fio bem reduzido em relação ao espaço da faca. No limar a diferenciação entre o Aço Damasco e os demais se configura, a peculiaridade do metal revela a predileção de muitos cuteleiros, por este material. No dorso da faca alguns incrementos são feitos. Espessos, como dentes, degraus, para colaborarem com algum imprevisto durante a utilização da faca. A empunhadura é medida para se fundir à faca, numa relação simbiótica. JB empunha uma de suas facas, quem diria, de um objeto amórfico, artesanalmente, com fogo e golpes, suavidade e firmeza, se rende à metamorfose. A aptidão e a aplicação constante do processo apreen-dido aperfeiçoam o fruto do trabalho. Para incrementar um bom chur-rasco, a faca tem suas características e funções, os detalhes durante a fabricação não se esgotam por ai, mas se estendem até a aplicação deste instrumento, neste contexto relacionado à alimentação. “Tudo na vida, para ser excelente, tem que levar em conta todos os detalhes e é essa conjunção harmônica de qualidades, que leva à qualidade total e claro que a faca correta é uma nota que tem que estar afinada nessa orquestra, ou seria melhor ... afiada?, salienta Boccato.

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6 Dorso com detalhes

O artista sobre a produção das facas é categórico, “o diferencial das facas é o caráter personalizado, a identificação do cliente com o objeto produzido”. A singularidade é a característica principal do ofício da cutelaria. Pois atende aos desejos do apreciador de facas, como uma “marca registrada”, completa JB. No âmbito da culinária, de acordo com Boccato a parceria entre a gastronômia e a faca é indispensável “o Chef não se separa de ‘sua’ faca ou de ‘suas’ fa-cas. São instrumentos que, além de necessária precisão, passam ao ‘dono do instrumento’ uma sensação de segurança, de intimidade entre instrumento e ação”, ressalta.

A partir de 2003 o Cuteleiro JB com a família se mudara para Paulínia. Na qual atuara nas empresas Syngenta e Orsa durante um tempo e decidira em 2005 voltar-se exclusivamente à Cutelaria. No mercado de facas artesanais, já bem conhecido, começa a receber pe-didos de todo o Brasil para aquisição de suas “obras de arte”, através de solicitações pelo site – www.jbfacas.com.br ou através de ligações. Entretanto, quanto às encomendas JB é muito lúcido, “o público que vendo facas é das classes A e B, pois é um gênero supérfluo”. A relação comercial entre JB e os clientes é prestativa, pois o artista procura responder aos e-mails de dúvidas, pedidos de compras, visitas à oficina, com certa frequência. Marketing para difusão, explicação e venda das facas compoem o cotidiano de JB, a didática é umas das características marcantes deste artesão, a forma pela qual explica a di-

nâmica de fundição do Aço Damasco, até os detalhes da empunhadura de uma faca. Além de cuteleiro, traz sobre si, a aptidão de ensinar.

O comprometimento, a qualidade e a responsabilidade, colaboram para que os valores de suas facas estejam entre R$ 190,00 e R$ 2000,00. Algumas facas, explica JB, “utilizo empunhaduras de corda para barateá-las, enquanto, tenho algumas como o modelo Hunter com cabo de marfim de mamute com preços mais altos. As empunhaduras podem ser de chifre de cervo, madeira, marfim, corda. Elas variam de acordo com o pedido, poder aquisitivo e estrutura da faca. O cuteleiro também confessa, “há profissionais tecnicamente melhores do que eu, numa média de 1 cuteleiro para 1 milhão de pessoas, mas no conjuntos das atribuições referentes ao trabalho, como marketing, didática, produção das próprias máquinas, e, por exemplo, retorno ao cliente, muitos cuteleiros pecam neste quesito, em razão deste conjunto de elementos, consigo suprir minhas deficiências técnicas”, Poderia se pensar que JB além de um artesão é um gestor do processo de produção, distribuição e pós-venda de suas facas, além de propagar o seu trabalho em diversas feiras e exposições pelo país.

O fio da faca depende da destinação. Nos casos de facas voltadas à culinária japonesa, o fio tem características para cortes que exigem menor resistência, nos churrascos, a faca assume outras geometrias, enquanto facas de caça, que eventualmente podem ser utilizadas para cortar galhos, ossos, necessitam de fio mais espesso e geometria de

7Série limitada

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ARTESANAL

No fio da lâmina

lâmina apropriada. Como se trabalha com objetos afiados, mesmo com a utilização de

EPIs, as lesões ocorrem. Tanto cortes quanto pancadas provenientes das marteladas. Assim como toda profissão que se utiliza de ferra-mentas, o risco de ferimentos é presente, comenta JB.

Sobre a continuidade do ofício JB diz que seu filho não herdou as aptidões, mas tem esperança de futuramente um neto possa aprender as técnicas pelo menos como hobbie, “creio que muitas das habili-dades não são passadas de pais para filhos, mas sim de avós para netos” recorda.

JB ministra cursos para produção de facas. Eles têm carga horá-ria de 48h com direito à refeição, EPIs, e, principalmente, uma faca produzida pelo próprio aluno. Com semblante muito contente, JB tem satisfação em falar sobre o curso,“o aluno vai fazer sua própria faca personalizada e dos alunos que tive todos se desenvolveram acima das expectativas”. Uma das recomendações, no entanto, é o curso sem interrupção, porque segundo JB, em outras experiências, os re-sultados foram melhores, quando não houve rupturas de tempo, como ministrá-los somente aos sábados. O valor é de R$ 1500,00, 50% na entrada e o restante para 30 dias.

Naquele dia chuvoso JB dava sinais de gripe, quando questionado quanto aos sintomas foi enfático “não posso ficar doente, sou meu próprio patrão,” ironiza. A obsessão pelo trabalho e pela perfeição di-tam o ritmo do artesão. Pois, há facas que têm processos mais longos, umas até com 30 dias para ficarem prontas, enquanto outras em uma semana podem ser entregues aos clientes. “Tem meses que vendo 10 facas a R$ 400,00, enquanto em outros 1 faca de R$ 1000,00”.

Ele não pensa em abandonar o ofício, entretanto, em uma breve pausa, JB diz que deixaria o ofício para se dedicar ao “chamado de Deus, à vocação de missionário ou pastor. JB demonstra certa espi-ritualidade e quando perguntado sobre a finalidade da faca enquanto arma, aperta as mãos, mexe os dedos, apresenta inquietação e res-ponde em tom mais firme e incomodado “você sabe qual definição de arma, é um instrumento com a finalidade de causar danos, armas não matam, quem mata são as pessoas, produzo facas com o intuito artístico e utilitário, no sentido de servir para uma ocasião, como ali-mentação ou num momento de risco numa selva,” explica.

A mudança no assunto garantiu a melhora do clima. Para quem acredita nos objetivos e nas finalidades dos instrumentos produzidos, uma ligeira indagação gerara desconforto.

O trabalho com a cutelaria é insalubre. Em função do contato com gases originários da solda, ferrugem, fuligem, impacto com ferramentas. Por isso para o futuro, JB sonha em construir uma escola de Cutelaria, “a parte de produção me dedico em menor tempo, pois creio que as facas se valorizem mais e então eu possa me dedicar a ministrar as aulas”, comenta.

Outra pretensão, inclusive pela facilidade de comunicação são pa-

lestras em empresas, com intuito motivacional. Entretanto, é um projeto que merece mais amadurecimento pondera JB.

Os modelos de facas produzidos por JB se dividem desde facas culinárias, como as para Sashimi, passando por uma Skiner, em for-mato mais circular, até uma utilitária de caça integral FullTang. Cada uma com sua beleza, finalidade e originalidade.

E, sobre outras possibilidades de profissão JB não se vê fazendo outras coisas. Quando comparado ao processo de fundição do metal, o processo da forja, até o estado refinado da faca, concorda que os processos de formação do caráter são semelhantes, principalmente pelos momentos dedicados à reflexão.

Boccato sobre a relação íntima entre Chef e as facas, ofício de-dicado a despertar através dos sentidos, as mais variadas sensações, comenta em tom poético, “Nada mais natural que na raiz de todo homem exista um guerreiro caçador, inefavelmente revivido a cada churrasco, ao menos em suas ancestrais e recônditas memórias. A faca é a lança, o instrumento de corte e de comer. A faca é o arco do violino deste artista do corte”, finaliza.

Para JB a cutelaria é mais que uma profissão é uma arte, que tem emoções, sensações, perseverança, “Artista que não é movido pela paixão não é artista”, finaliza JB.

por Marcelo de Barros

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NEGÓCIOS

Receitas de vida e pãesno “coração” do Gargantilha

“Olá, bom dia. Você é novo por aqui?”, questiona a senhora por detrás do balcão. Mesmo recebendo uma resposta negativa, logo sor-riu. Fica feliz com a presença de um novo cliente e, ao perceber que se trata de um estudante da “cidade grande”, passa as mãos sobre os cabelos loiros com alguns fios grisalhos e, logo em seguida, com um pano amarelo, limpa o balcão. “Aceita uma xícara de café? Fiz há alguns minutos e está uma delícia!”, diz.

O jeito doce de falar, lentamente e com um sorriso aberto no rosto, como se tudo o que vivenciasse fosse motivo de alegria, além da simplicidade de seu vestuário, uma camiseta florida desbotada e short azul com vestígios de poeira, além do chinelo no pé e cabelo amarrado com um pequeno laço marrom, faz com que Deise Oliveira atraia vizinhos e amigos da região. Aos 52 anos, mora em um terreno junto com seus três filhos e três netos, além do marido Cláudio. A panificadora da família foi um dos primeiros estabelecimentos comerciais do bairro Gargantilha e é a fonte de renda dos Oliveira há 10 anos.

O bairro Chácara Gargantilha, localizado a 20 quilômetros da re-gião central de Campinas, em uma área verde distante, é formado por pequenas chácaras, distribuídas em quarteirões, com muita vegetação, além do gado. Monte Belo 1, Monte Belo 2, Recanto dos Dourados e Carlos Gomes são outros bairros que compreendem a região rural. Além de pequenos comércios (em sua maioria bares), predominam--se hortas, hortaliças e gado de corte como atividade dos moradores. Existem inúmeras chácaras que são alugadas por jovens estudantes para finais de semana e outras por famílias que buscam tranquilidade e outras atividades, como a pesca. A região guarda as marcas da época em que a agricultura cafeeira foi a principal atividade econô-mica no Estado de São Paulo. Prova disso são as quatro estações ferroviárias (Carlos Gomes, Desembargador Furtado, Pedro Américo e Tanquinho), além de casarões das antigas fazendas, como a casa de colonos e capela da Fazenda Santa Rita do Mato Dentro e o cemitério onde foram enterrados os soldados da Revolução Constitucionalista de 1932.

Como vive Deise Oliveira, ex-doméstica que construiu uma padaria em bairro de propriedades rurais,

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e como vive com esta única fonte de renda

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NEGÓCIOS

Receitas de vida e pães no “coração” do Gargantilha

Deise afirma que apesar do bairro ser dotado de energia elétrica, o sistema telefônico ainda é precário, sem falar nas condições das estradas, visível a todos que transitam pelas ruas de terra que ligam a Rodovia Doutor Governador Adhemar Pereira de Barros à região.

Manter uma panificadora em meio a estas dificuldades pode pa-recer difícil, mas não para quem depende das vendas para colocar comida dentro de casa e proporcionar uma vida como outra qualquer para todos os membros da família. “Dá trabalho, mas é necessário. Meus filhos ainda precisam da nossa ajuda”, diz Deise.

Pelo menos uma vez na semana o casal segue em uma cami-nhonete antiga para o “Atacadão”, local em que fazem as compras de produtos alimentícios para revenda e outros na utilização do preparo de pães, bolos e doces. O veículo já não conta com todas as peças e aparenta ter sofrido, e muito, com os buracos na estrada. “Sempre gastamos com reparos na caminhonete, mas é melhor assim. Não te-mos condições para comprar outro e o transporte público daqui também sofre com as estradas”, reclama.

Os moradores contam com a opção do transporte público para locomoção, assim como seus parentes e amigos que vão visitá-los. “Mas não podemos contar sempre com os ônibus. Tem sempre um quebrado no meio do caminho e demoram para colocar outro no lugar”, diz Deise. Esta, porém, não é a principal dificuldade. “Sofre-mos com a distância e apesar de Pedreira ser bem próximo, não há transporte público até lá”, afirma Denise, filha mais velha e mãe de dois jovens adolescentes que ao perceber o falatório, junta-se a nós para também expor suas opiniões. Ao contrário da mãe, vestia-se com sapato, calça jeans e blusa preta com decote, além do cabelo loiro (pintado) e solto.

Os problemas e a falta de atenção da prefeitura com o bairro não é de agora. Desde a época em que mudaram para o Gargantilha em 2001, apenas o transporte público foi inserido, após muito solicitarem. Na época, Deise e a família moravam no bairro Parque Brasília. Lá, residiam em uma casa com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Na parte da frente do terreno, local onde estacionavam os carros, ergueram outra casa, onde colocaram sua filha mais velha para morar com o marido e os filhos.

Deise trabalhava como doméstica e Cláudio, seu marido, um se-nhor que apesar da idade, 54 anos, tem um porte físico de um jovem rapaz, resultado de anos de trabalho duro, trabalhava em uma ótica no centro de Campinas. Juntavam dinheiro com a vontade de comprar uma casa maior e em um bairro menos violento. Foi quando a situação piorou que optaram por fazer a mudança. Escolheram o Gargantilha por conta da tranquilidade e do custo do terreno. Cláudio não precisou gastar com a obra, afinal de contas já havia trabalhado no ramo e com a ajuda de conhecidos e da família, ergueu a casa.

Os filhos cresceram, mas o dinheiro ainda era escasso. Dois deles casaram. Denise, de 32 anos, casou-se com Marcelo, de 31 anos, e tiveram dois filhos. Já Cláudio Júnior, de 30 anos, casou-se com Ana Maria, de 28 anos, e juntos tiveram um filho. Como o terreno era grande e havia espaço para novas construções, optaram por erguer duas novas casas dentro do mesmo terreno, a fim de tê-los por perto. Rafael, o filho mais novo, de 22 anos, continua morando com os pais.

Mesmo assim, com tanta construção, ainda havia uma espaço na parte da frente da casa. Pensaram no início em construir uma piscina e uma área com churrasqueira. “Fiquei imaginando os gastos com manutenção e resolvemos desistir da ideia”, afirma Deise. No ano seguinte à mudança, em 2001, começaram a reparar nos estabeleci-mentos comerciais da região. Há cerca de 15 minutos dali, havia um bar. Mas para comprar alimentos básicos de toda e qualquer família, precisavam ir mais além. Seguiam para o centro da cidade, em busca de mercados e padarias, para comprar o “pão nosso de cada dia” que, aliás, não fazia parte do dia-a-dia da família. “Era muito complicado ter que ir todo dia buscar pão. E ele endurece rápido, não dura a semana inteira. Comprávamos somente quando algum de nós tinha que ir para a cidade”, conclui.

Ambos, Cláudio e Deise, já haviam largado seus respectivos tra-balhos e precisavam de uma fonte de renda para a família. Então, após muito conversarem, decidiram erguer um pequeno espaço para a venda de frutas, legumes e verduras, além de produtos alimentícios que resolveram revender para suprir as necessidades dos moradores daquela região. A ideia funcionou e como já eram bastante conhecidos por lá, foi só comentar para alguns que logo o bairro já ficara sabendo da construção do que viria a se chamar “Padaria dos Oliveiras”. “No começo achamos que não ia dar muito certo, mas na primeira semana

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vendemos tudo e percebemos que investir no negócio daria um retorno financeiro bacana”, diz Deise. Foi aí que passaram a se informar mais sobre questões de venda, relação com fornecedores e a possibilidade de ter um espaço para a confecção de pães, bolos e doces, bastante solicitado por seus, agora, clientes.

Logo compraram as máquinas, fornos e equipamentos para a produção de pães, que certamente venderia muito, por conta da ne-cessidade dos moradores e também da própria família. Cláudio e os filhos, Rafael e Júnior, aprenderam com conhecidos a fazer os pães. E a partir de então começaram pra valer. “Falei pra eles fazerem com muito carinho e também que iríamos pagar para que eles fizessem esse trabalho. Tem um horário certo pra fazer e precisa de muita atenção para não deixar passar o tempo necessário no forno. Eles dormem cedo e acordam lá pelas duas horas da madrugada para trabalhar. Depois voltam e esperam até que fiquem prontos. Tenho dó, por isso dou um dinheiro”, diz Deise.

O casal colocou a família toda para ajudá-los. Deise e o marido ficaram no balcão, os dois filhos na produção de pães, a filha mais velha nos afazeres da casa da mãe e a nora, depois do filho ter crescido, passou a ajudá-los no atendimento. Atualmente os filhos, além de ajudá-los com os pães, trabalham com carteira assinada em empregos fixos. Um deles trabalha em uma transportadora e o outro em uma companhia de gás.

O Hotel Fazenda Solar das Andorinhas, patrimônio histórico da cidade que neste ano comemora 41 anos, logo que ficou sabendo da venda de pães na região, localizou a padaria e solicitaram centenas de pães, todos os dias, para o café-da-manhã dos hóspedes. A fazenda oferece passeios históricos e ecológicos, além de áreas esportivas e piscinas. “Pra falar a verdade nunca fui lá, por falta de condições mesmo. Mas já ouvi falar que lá é lindo, muito gostoso. Vontade não

falta. Foi uma grande surpresa a visita deles aqui, e foi bem difícil porque precisávamos fazer muitos pães e ainda entregar antes das sete horas da manhã”, afirma Deise.

Com o crescimento da padaria, investiram na produção de bolos e doces. Mas não vendiam muito e estragava facilmente. Optaram então, para aumentar o lucro, pela venda de produtos alimentícios essenciais para o dia-a-dia das famílias. Arroz, feijão, salgadinhos, presunto, queijo, ovos, dentre outros. Atualmente já vendem de tudo um pouco, até itens de uso pessoal como escovas de dente, papel higiênico, sabonete e etc. “Na verdade as pessoas vinham pedir para que vendêssemos esses produtos. Como não era apenas uma pessoa, nós decidimos vender. E deu certo”, orgulha-se. Essa relação aberta com os clientes e amigos é rotineira, faz parte da família Oliveira.

Atualmente as padarias convencionais adaptaram-se às necessi-dades e tornaram-se verdadeiros centros de convivência. Sofisticações a parte, o casal buscou acrescentar uma área em que clientes e consumidores pudessem socializar. Aumentaram o espaço da padaria e acrescentaram mesas e cadeiras, além de uma mesa de sinuca. É notável a preocupação de Deise com o bom atendimento. Enquanto conversávamos, em uma das mesas da padaria, os olhos dela per-corriam todo o espaço, nas pessoas que passavam pela rua, no neto caçula que brincava com o vira-lata da família e o marido no balcão. “Claudio, não esquece que a Rosa virá buscar 12 pães e 200 gramas de presunto. Deixa pronto em cima do balcão que logo ela chega”, interrompe ao lembrar a encomenda de uma de suas vizinhas que estava para chegar do centro.

“As padarias são muito úteis. Sempre tem uma padaria por perto e as pessoas têm preguiça de ir até os supermercados, por isso que vendemos de tudo um pouco”, diz Deise ao ser informada que o setor de panificação no Brasil cresceu cerca de 11,2% no último ano se-

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Receitas de vida e pães no “coração” do Gargantilha

gundo a Associação Brasileira da Indústria de Panificação e Confeitaria (Abip). O índice é superior ao do crescimento da economia do país no mesmo período.

Apesar da “Padaria dos Oliveiras” estar localizada em meio a pro-priedades rurais e de sua proprietária dizer que a padaria em nada se compara com as demais do centro da cidade, diz que gosta do jeito como administra o estabelecimento, da alta movimentação de clientes e se diz satisfeita com a renda. “Claro que aqui nós temos todo o trabalho de ir atrás dos produtos e que as condições de estrada são péssimas, mas é tranqüilo e as pessoas são conhecidas na maioria das vezes. Temos lucro e ajudamos as pessoas, isso pra mim é o essencial”, diz Deise. Ao ser questionada a respeito do funcionamento da padaria, é enfática: “Trabalhamos todos os dias das 8h às 18h. No domingo fechamos um pouco mais cedo, às 16h. Mas sempre estamos atentos caso haja alguma emergência, não somos rígidos”, afirma.

Um bocejo interrompe. Os olhos azuis enchem-se de lágrimas e expressam cansaço de Deise. Desde que abriram a padaria, a família nunca conseguiu viajar unida. O casal também, ainda mais pelo fato de ambos cuidarem do atendimento. Nas viagens, bem curtas, ia sempre um deles. Reconheciam a necessidade de descanso, mas também confessam que a cabeça permanecia na padaria. Nada poderia dar errado, era a única fonte de renda deles. A viagem predileta, acredite, é em um rancho no meio da mata e à beira do rio. A cidade é Car-doso e, segundo descreve Deise, é bem parecido com a região onde moram. “Mas lá tem o rio, adoro nadar. Ainda mais no verão”, afirma.

A preocupação com a padaria é rotineira. Afinal de contas, desde a sua construção, já apareceram outros estabelecimentos que ven-dem praticamente as mesmas coisas, sendo o diferencial, o valor dos produtos. “No começo achei que era inveja. Porque muitas pessoas vinham na padaria. Falavam da gente por aí e nos recomendavam.

Hoje tenho uma outra opinião. Acredito que estejam com dificuldades e se espelharam na gente. Mas também não posso afirmar porque os preços são bem menores. Como conseguem lucrar?”, indaga Deise que segue dizendo que procura manter um preço acessível para todos.

Aparecem duas senhoras, com sacolas vazias na mão, indicando que levariam vários produtos da padaria. “Bom dia Deise, como você está? E os meninos?”, diz uma delas já se dirigindo para dentro do estabelecimento. A outra, com pouca dificuldade para andar e vestindo uma blusa de lã, abre o sorriso e diz: “Deise, que chique você dando entrevista!” e ao saber o assunto da conversa, segue: “Moço, põe aí que graças a Deise e ao Claudio que trouxeram a padaria pra cá muito tem me ajudado. Imagine só que antes eu tinha que ir até o centro para comprar comida para as minhas crianças, agora não. E posso vir andando, bem devagar, sem forçar minhas pernas”, conclui. Deise abre um sorriso e ri.

São situações como esta que faz com que tenha certeza de que optou pelo melhor caminho para todos da família. Receita de vida que passa para todos e garante: “Dá certo!”.

por Thiago Toledo

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Minha casaé de cedro

Em 1936, o Departamento de Água e Esgotos de Campinas pre-cisava construir um novo reservatório de água. A previsão era de que a cidade iria expandir em direção ao atual Jardim Chapadão. Assim, em 1939 começou a construção do Castelo d’água, com 27 metros de altura, erguido em um ponto estratégico para o desenvolvimento ur-bano. Construída num dos pontos mais altos da cidade e a aproxima-damente 735 metros do nível do mar, a Torre do Castelo nem sempre serviu como um mirante ou como uma simples e bela caixa d’agua.

Em 1959, Salim Mourtada era proprietário do Bar Castelo. Se sua clientela imaginasse a quantidade de água sobre suas cabeças, com certeza não se preocupariam em ficar sóbria – era muita água fria.

Antes de ser o árido local que é hoje, a Praça Vinte e Três de Outubro tinha bancos, canteiros e algumas árvores. Muitas pessoas subiam nos bondinhos que faziam linha na Avenida Andrade Neves. Hassan, que morava nos fundos do bar do tio, não precisava.

Hassan Mohamed Ali Mourtada nasceu na década de 40, em Zahleh, Líbano. Chegou ao Brasil com 19 anos, deixando para trás os pais e irmãos e passou a viver com seu tio, Salim. Como outros imigrantes da quarta fase de imigração libanesa ao Brasil, que se deu depois do fim da segunda Guerra Mundial, em quem se apoiar. Trabalhou para seu tio Salim, cujo bar o ainda jovem Hassan herdou, por volta de 1968.

No entanto, em 1972, a prefeitura, em parceria com a Sanasa, queria construir o Museu Histórico Sanasa no mesmo local do Bar Castelo. “Depois que perdeu o bar, meu pai tentou abriu uma confec-ção. Mas, não deu certo. Ele pensava que tudo era ‘comprou, vendeu’. Uma fábrica não funciona assim, pode ser que num inverno fique menos frio e você fique com tudo estocado. Ele não entendia essa possibilidade.”, diz Maurício Mourtada, filho de Hassan. Outro problema foi a sociedade com o irmão: “Não falamos muito com meu tio, ou

ESTRANGEIRO

Ser libanês no Brasil não é ser um estrangeiro. A comida, a família, os costumes se perpetuaram para

muitos descendentes que buscam saber mais sobre os primeiros imigrantes. A avó, o avô, o pai, a mãe.

O contato permanece. Eles querem ser brasileiros, mas manter-se Haddad, Abboud, Amira, Zake, Samir...

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com meus primos libaneses. Não é uma questão de rancor, afinidade. Pergunto se estão bem e, se estão, respondo a quem perguntou sobre o paradeiro deles. Mas não os convidei para meu casamento.”, conta Maurício torcendo os lábios, cheio de impaciência. A confecção faliu e sem saber ser empregado, Hassan Mourtada só pensava em ser dono.

A criança se beija dormindo A família Mourtada, no Brasil tem, Márcia, Ricardo e Maurício.

Nascidos aqui e criados por um pai libanês. “Pai vi um presunto na mercearia”. Calado, o chefe da família

passava em frente à casa de carnes, cheia de linguiças penduradas por ganchos e suculentas peças de presunto, muito brilhantes. Hassan Mourtada olha, e finge que não ouve o filho.

À mesa, o presunto. O pai comprara depois do trabalho e, sem dizer nada a ninguém, deixou na cozinha para as crianças comerem com pão. “Meu pai não era muito de falar sobre ele e sobre a in-fância que passara no Líbano. As coisas que sei sobre a vida dele, sei porque minha mãe me contou. Conheci meu pai de verdade tra-balhando com ele.”.

Mauricio é único que se dispõe a falar sobre a família. Cheios afazeres e preocupações com o restaurante que têm, os irmãos Mour-tada fazem o seu próprio tempo. Prático, Mauricio responde às minhas perguntas inicialmente com desconfiança, mas depois se emociona falando do pai. “Meu pai era um negociante incrível. Para conseguir o que temos hoje ele teve muita visão.”.

Hassan está falido. Não soube administrar sua confecção e fazê-la crescer. Em casa as crianças pedem brinquedos, dos quais ele nunca ouvira falar. Márcia quer apenas uma boneca de pano, a dela rasgou. “Pano, não, pano não”, pensa ele.

Com alguns cruzeiros no bolso ele desce a Rua Benjamin Cons-

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ESTRANGEIRO

Minha casa é de cedro

tant. A direita olha o restaurante de seus afilhados com apenas dois clientes e muitas dívidas. “O restaurante da Mira anda mal.”, diz ele depois de voltar para casa. “Por que não compramos, querido?”, pergunta a esposa.

Prestes a quebrar, o casal de quem fora padrinho de casamento não tinha mais o que fazer a não ser vender o lugar. “Meu pai não achava bom comprar negócios de pessoas falindo. Mas, não havia escolha. Minha mãe foi a cabeça desde o começo, insistiu muito para que ele comprasse essa casa do lado.” conta Maurício apontando em direção ao prédio em que hoje fica a disque-entrega do restaurante.

Depois da conquista era preciso equipamentos. Hassan, acom-panhado de Ricardo e Maurício, entrou na loja de um brasileiro que vendia maquinário usado. “Lembro uma vez encontramos um homem que vendia máquinas que estávamos precisando muito no restaurante. Mas ele vendia por preço que não poderíamos pagar. Meu pai nego-ciou, durante uma hora, e conseguiu pelo preço que podia comprar. Meu pai nunca pagava muito pelas coisas que precisava comprar.”.

Sem contar muito sobre sua vida no Líbano, Hassan Mohamed Ali Mourtada deixou para os filhos o tino para os negócios e da sabedoria da culinária libanesa.

Um restaurante libanês Ex-muçulmano xiita, Hassan casou-se com uma filha de italianos.

Por amor ou por conveniência, ele se converteu para se juntar à com-placente Jacyra Carlini. Depois do fim do bar, procurou novas formas de ganhar dinheiro. Ele aliava sua observação às ideias da mulher. “Minha família sempre quis trabalhar com comida. Em minha casa

havia um revezamento entre as massas da minha mãe e as receitas de papai. Não passávamos uma semana sem comida árabe.”. Mauricio ainda conta que seu pai pensou em abrir uma pizzaria: “Estava na moda, mas eu e meu irmão mais velho falávamos para abrir algo da nossa cozinha.”.

Zahleh, cidade natal de Hassan é a terceira maior do Líbano. Referência da gastronomia libanesa, reúne tradições mediterrâneas, eu-ropeias e orientais. Carnes, frutas e legumes, em nada podem faltar especiarias e temperos típicos. “A culinária que se conhece no Brasil, não é a que se come em todo mundo árabe. Essa comida que se faz aqui é a culinária sírio-libanesa.”, diz Maurício.

Hassan queria trabalhar com comida. Queria um restaurante. “No começo falavam para meu pai: ‘Hassan, você vai ficar vendendo kibe e coca-cola’. É isso que você quer?”. No começo vendiam. Depois Hassan mostrou suas receitas de prosperidade.

Dentro de um caderno que trouxera do Líbano, a pedido de sua mãe, havia muitos segredos. Então, a despeito do que alguns imi-grantes e descendentes donos de loja de tecido diziam, ele começou a fazer esfirras, quibes e doces, em 1985.

Meus traços, meu jeito árabe Assim, como Mourtada muitas filhos e netos de libaneses sabem

pouco sobre a terra de seus pais e avós. Sobra curiosidade para quem cresceu ouvindo músicas árabes, desfrutando de um banquete libanês e principalmente para quem não fala a língua original de seus familiares.

“Meus pais não me ensinaram porque tinham medo de atrapalhar na escola. Então, falei e entendi árabe apenas quando criança. Depois isso se perdeu.”, conta Regina Abboud, de 57 anos, filha do sírio Daas Antanios Abboud.

Em busca de mais proximidade de suas raízes ou simplesmente do conhecimento de uma nova língua, nove pessoas ouvem atentamente ao professor, Frei Silouanos Chamoun. Nos fundos da Igreja Maronita de Campinas há um salão. Nele são ministradas aulas de árabe.

“É emocionante vir às aulas. Parece que estou ouvindo minha avó, falando comigo aqui no pé do meu ouvido.”, diz a neta de libaneses, Regina Abboud, 52.

Aprender uma nova língua pode ferver os nervos de qualquer um. Uns batem na mesa, outros já reclamam com o pouco de árabe que aprenderam com seus pais ou avós. O amor corre na veias dos descendentes, que sempre quiseram saber sobre a origem, costumes de seus antepassados.

Regina Abboud tem avós sírios e libaneses. Os avós paternos vieram de Síria. O avô saiu da cidade em que morava aos 18 anos em busca da “terra prometida, que jorrava leite e mel”. Ele deixou sua mulher com três filhos e veio para o Brasil em busca de uma terra fértil e cheia de oportunidades. “Meu avô foi mascate durante muitos

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anos, coisa que a grande parte dos imigrantes árabes se tornaram. Só depois de algum tempo no Brasil ele conseguiu juntar dinheiro para abrir um comércio de tecidos.”, diz Regina.

Outro atento às aulas é Rubens Haddad, de 68 anos. “Está no meu sangue, não sei explicar...” – diz ele passando a mão no ante-braço esquerdo. O avô de Haddad faz parte do primeiro período de imigração libanesa ao Brasil, que ainda no século XIX, ele desembar-cou no Brasil depois de passar pela Argentina.

Na época, muitas famílias da vila de Ibil as Saqi, no Líbano, vie-ram para o Brasil em busca de oportunidades e uma terra que para eles era o paraíso. Todas elas se instalaram e Bariri, interior de São Paulo, que já tinha uma pequena colônia de libaneses.

Diferente da família Mourtada, de Zahleh, a vila em que viviam o pai de Regina Abboud e o de Rubens Haddad era infértil e não vislumbrava algo melhor para as famílias. O Líbano é um país peque-no, com 10.452 km², com muitas montanhas e pobre em recursos naturais. Poucas pessoas conseguiam se sustentar só com a criação de carneiros. Assim, muitos vieram para o Brasil com a esperança de sustentar a família.

O pai de Rubens foi açougueiro, comerciante e depois conseguiu comprar uma enorme fazenda. “Meu avô chegou a ter 300 mil pés de café em Bariri. É impressionante pensar que alguém que nem sequer falava o português conquistou tanta coisa ao longo dos anos”. A avó, tinha planos diferentes. Ela queria os Estados Unidos. O Brasil, por volta dos anos de 1900, era na verdade a segunda opção para os imigrantes. Pessoas de diferentes nacionalidades fugindo da fome, das guerras e do desemprego, sonhavam com a América dos americanos. O país aceitava os imigrantes, mas não aqueles que não demonstra-vam força – a catarata da avó de Rubens a impediu fazer parte do sonho americano.

O passaporte é a língua“Meu pai, meu avô falavam árabe. Mas eles não me ensinaram.”,

revela Rubens Haddad com um pouco de decepção. “Quero resgatar a história da minha família e estou fazendo isso aprendendo a língua de meus antepassados.”.

Difícil é aprender. O alfabeto árabe é composto por 28 letras e é o segundo mais utilizado no mundo. Se nós ocidentais escrevemos, os orientais traçam suas letras. Escrever em árabe exige uma mão leve, sem a ansiedade e insegurança dos iniciantes. Para quem ainda não consegue controlar a força que põe na caneta, o jeito é deixar a mão um pouco mais para cima do lápis, garantindo leveza. “Veja meus garranchos”, diz Francisco Turco, que, apesar do nome, é brasileiro e descendente de italianos. No papel, o caderno de caligrafia fica com as palavras marcadas na frente e no verso, como um carbono de nota fiscal.

As letras árabes podem ou não equivaler ao português. O b existe, mas a letra equivalente se pronuncia bãn. O x, por exemplo é shin. Ou seja, para complicar logo a vida de um aluno, para cada letra do nosso alfabeto latino, existe uma palavra em árabe que identifica uma letra.

Quando começamos a alfabetização, juntar letras depende do som e do sentido que se quer criar. As palavras árabes tem uma junção específica. Há algumas letras que podem ser desenhadas de forma diferente conforme a maneira que elas vão se juntar. Outra dificuldade é a pronunciação das palavras, algumas chegam a ter três acentos para determinar como cada letra deve ser pronunciada. Um dos mais interessantes é o que determina a continuidade das sílabas, como em ziiiiiizum(marimbondo) ou habibuuuuuum (querido).

Na aula Frei Siluano, de 28 anos, está cansado. É 28 de abril, e no dia anterior foi seu aniversário. Ele recebeu amigos de São

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ESTRANGEIRO

Minha casa é de cedro

Paulo, que pretendiam encontrá-lo numa pizzaria, mas se perderam. “Bebeu muito vinho é Frei?”, brinca Dulcinéia. “Não, não. Bebemos é muita Schweppes.”, responde o Frei como se estivessem dando um basta nas brincadeiras da aluna que já duravam desde a porta da sala de aula.

“Qual a diferença entre essas palavras? Ora, eu já não expliquei? Tem muita diferença. CAAALbun é cachorro, calBUUUN é coração, já pensou trocar os dois?” ensina Siluano, arrancando risos de alguns alunos.

“Vamos ver outra para vocês aprenderem mais acentos. O que está escrito aqui?”. Silêncio, vermelho de vergonha - “... é davi-rooooun, que significa convento ou mosteiro.”. É a quarta vez que o Frei ensina com uma palavra de cunho religioso, Dulcinéia então per-gunta: “Por que você só falar de coisas assim? Tipo convento, santi-dade, profeta...”. É só isso que vem na minha cabeça, responde ele.

Silouanos Chamoun também nasceu em Zahle, Líbano. Quando monge, passou dois anos num mosteiro no país natal. Recebia a vi-sita de familiares uma vez por mês porque, segundo ele, tinha uma “rotina entregue a Deus”. Depois que saiu, Silouanos estudou durante seis anos na Universidade do Espírito Santo, cursando a Faculdade Pontífice de Teologia. Fala inglês, francês, português, espanhol, árabe e aramaico. E hoje é Frei da Ordem Maronita no Brasil.

“Quando vim para cá, vim chorando. Já tinha viajado para ou-tros países a passeio, quando é passeio é bom. Mas quando é para morar é mais difícil. Mas tiver de obedecer”. Chamoun ao se tornar Frei, fez três votos: o da pobreza, da castidade e da obediência. “É o mais difícil viu?”, diz emendando uma conversa sobre sua estada no México. “Fiquei três meses no México. Mas prefiro não falar muito de lá. Pode ser a primeira impressão, mas não gostei. Puxa, ele colocavam tempero forte até na salada de frutas!”. Com o Brasil, é

diferente. Há dois anos ajudando a evangelizar brasileiros, o Frei sorri ao falar dos daqui “Não senti dificuldade no Brasil. Nunca fui tão bem recebido em um país.”.

O Líbano tem 3,5 milhões de habitantes e 14 milhões de emi-grantes espalhados pelo mundo. No Brasil a colônia libanesa passa de 7 milhões de pessoas. “Os emigrantes, quando visitam o Líbano são tratados como reis. Temos um grande respeito por eles, não te-mos a ideia de desertores. Eles são libaneses ou descentes e vão ao Líbano para buscar suas raízes. A nossa Igreja também ajuda nesse contato com as origens. Servimos como uma ponte entre Líbano e seus filhos.”.

A Igreja Maronita é uma igreja cristã e que reconhece a Sé Apos-tólica, isto é, reconhece a autoridade do Papa como líder da Igreja Católica Apostólica Romana. No entanto, há uma diferença: o rito. “A Igreja Maronita é semelhantes a Igreja Católica, mas tem rito oriental, que prevê, por exemplo, missas celebradas em língua aramaica.”, diz o Silouanos Chamon.

“Chega arrepiar”, diz Sonia, voluntária da Igreja, sobre a missa em aramaico. “Fico mais próxima de Jesus”. Sonia é brasileira e mora na redondeza da Igreja Maronita, localizada, em Campinas, na Avenida José Bonifácio. Muitos brasileiros, se casam, fazem batizados e assistem às missas aos domingos, mas não necessariamente são descendentes.

A Igreja quer se aproximar de todos, mas principalmente dos descentes. “Muitos veem até mim, com o passaporte libanês na mão. Mas não falam a língua. Eu digo pra eles, falem a língua, conheçam os costumes é melhor que ter passaporte libanês”.

por Ingrid Balhe

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VIDA

Por outros trilhos,outros rumos, outros tempos?

A história de uma cidade e muitas estradas percorridas por um taxista do interior do estado de São Paulo

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VIDA

Por outros trilhos, outros rumos, outros tempos?

Pelas mesmas ruas onde são famosos os trilhos sinuosos da Mogiana, correram também ao longo dos últimos 60 anos os veículos motorizados de muita gente, que deixaram e levaram da cidade de Ja-guariúna, situada no interior do estado a 15 quilômetros de Campinas, histórias que, por força da memória e de sua relevância, ainda estão presentes na memória de muitos que levaram a roda do progresso criada por Henry Ford aos territórios do então distrito de Jaguary.

Longe de ter os avanços das capitais ou o progresso da cidade vizinha já mencionada acima, Jaguariúna era praticamente rural. Quem se lembra desta época é Paschoal Gandolphi, um dos primeiros ci-dadãos de Jaguariúna a largar o campo para viver na cidade, ainda no ano de 1951. Nas palavras deste senhor que tem hoje seus 83 anos bem vividos e que, além de aposentado por tempo de serviço, é meu avô paterno: “das seis mil pessoas que viviam na cidade nessa época, cinco mil estavam nas fazendas”. Hoje, com mais de 50 mil moradores, é difícil achar 3 ou 4 mil que não estão inseridos na parte urbana do município.

A fala é tranquila, a mania de batucar à mesa enquanto pensa no próximo assunto, ou enquanto espera a conclusão da próxima pergunta é uma herança que eu já assumi. Enquanto fala, parece recordar as palavras de um livro que lera um dia antes da entrevista. Tem clareza, e sabe pontuar cada capítulo de sua própria história como quem a reescreveu por várias vezes. Se tem que interromper, volta rapidamente ao lugar de onde parou, e não pergunta, como eu, do que estava falando quando precisou cortar a linha de raciocínio. Adora um jogo de palavras cruzadas, além de ser um exímio jogador de truco, entre outras habilidades que a experiência, mais que o viço da juventude,

dá. A conversa foi inédita até pra mim, que não sabia quase nada sobre o que seria contado, mesmo já tendo ouvido um monte de histórias dos tempos do táxi.

Meu avô começou a vida na cidade trabalhando com caminhão. Uma fábrica de sabão e vassouras o ajudava – e também a seu cunhado – a pagar as contas. Faziam uma rota que passava por Amparo, Bragança, Pinhal e Poços de Caldas. Sem muito descanso, trabalhando de segunda a sexta sem voltar pra casa, o pai de meu pai e seu ajudante ainda não viam nenhum pedaço de asfalto nesse trajeto. A terra vermelha era o piso de suas casas, a estrada, onde os dois passavam a maior parte do tempo. O asfalto chegou nas principais estradas da região em 1957, quando o governador do Es-tado, Jânio Quadros, que depois viria a ser um dos presidentes com o mandato mais curto do Brasil, começou a jogar a massa escura por cima do terrão. Amparo recebeu uma dose da massa sobre suas pistas, juntamente com o trajeto de Mogi Mirim até São João da Boa Vista. “Lembro de uma vez em que fomos ao Paraná só por estradas de terra. Chegando lá, choveu na cidade e nós não tínhamos nem como sair do caminhão, porque a terra virou lama e era impossível andar sem escorregar naquele barro”.

A vida como caminhoneiro durou pouco comparada ao que viveria como taxista. Ele até tentou continuar no primeiro ramo, comprando um caminhão com um sócio, mas o

negócio não deu certo. “Depois disso ainda fiquei três meses pa-rado, depois comprei o táxi e o carro de meu irmão, Victório, e come-cei a trabalhar com táxi. Era Junho de 1953 e o carro, um Chevrolet 1940. Nessa época, só cinco pessoas na cidade tinham carros. Carlos Turato, Hugo Mazotti, Alonso José de Almeida e Benedito Bergamasco eram os “motorizados”. Ermelindo Poltronieri tinha uma camionete para fazer as entregas de seu armazém para os que moravam no campo. Carlos tinha um Chevrolet 37, Hugo tinha uma Ramona com rodas de aro e raias de madeira, Alonso dirigia uma Aero-willis com carroceria de madeira e o único carro “mais ou menos” presente na Estrela da Mogiana era o de Benedito, um Ford 1947. Hugo comprara mais tarde uma Mercedes 1951.

“Comecei porque gostava do serviço, era a única coisa que sabia fazer. Se não gostasse de fazer, não ia agüentar tanto tempo quanto agüentei. Era sacrificante mas era bom”, relembra.

Quando começara, a SP-340, que liga Campinas a Mogi Mirim e vai até Mococa ainda estava sendo feita. Atualmente, além de com-pletamente duplicada e recebendo cerca de 20 mil veículos por dia no trecho do pedágio de Jaguariúna, alguns lugares já contam com a terceira pista e outros trechos começam agora a receber a sua via de número três. O trecho que vai do km 199 ao 123, em Campinas, está em obras. Mais cinco quilômetros estão recebendo os tratores, rolos compressores, equipamentos e funcionários para fazer crescer

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uma via que, vez ou outra, ainda se congestiona. “As faixas adicionais contribuem para a fluidez no tráfego e também proporcionam mais conforto e segurança aos motoristas”, afirma Vander Afonso Camargo, gerente de obras da Renovias, concessionária da rodovia. As tercei-ras faixas começaram a ser implementadas em 2005, no começo da saída de Campinas. Desde aí, as obras acontecem intercaladamente, conforme a demanda vai aumentando. “Imagina se fosse o trânsito de hoje com as pistas da minha época? Você não anda”, lembra meu avô que, entre uma interrupção e outra de minha avó, preocupada com o lugar onde eles iriam almoçar, reflete sobre o crescimento acelerado da cidade, na qual vive antes mesmo de ela – e ele – se emancipar.

Assim como se lembra de como eram as estradas que não eram, Paschoal se recorda de sua primeira viagem como taxista, quando teve que levar um rapaz a Campinas. O trajeto da estrada não era o mesmo de hoje, e o caminho que se faz hoje em quinze, vinte minu-tos era feito em no mínimo meia hora, se o trânsito ajudasse. “Havia movimento, não como hoje, mas existia. Quando tinha muito caminhão na estrada, de mão única, todo mundo tinha que esperar e andar mais devagar”. As pistas duplas só viriam entre as décadas de 70 e 80, quando meu avô já estava contando os dias para a aposentadoria.

Em 1982, mesmo ano em que se aposentou, meu avô, assim como muitos outros jaguariunenses e moradores de cidades vizinhas, foi testemunha de um fato que, de acordo com os que viveram a época, foi o fato que levou Jaguariúna a crescer de verdade. Para muitos os que testemunharam este ”marco”, Jaguariúna só era levada em conta fora da região por quem via os programas de Renato Corte Real, o primeiro homem a falar o nome da cidade na TV.

Pra quem chutou que o fato era o rodeio, sinto desapontá-los, mas a festa do peão só viria em 1989. Na verdade, o impulsionador do progresso da Estrela da Mogiana foi, ironicamente, uma demolição.

Pela cidade haviam dois pontilhões da antiga Ferrovia Paulista SA, a FEPASA. O primeiro, para quem vinha de Campinas e Mogi, era alto, um caminhão grande passava sossegado, sossegado. O segundo era mais baixinho, e muito caminhoneiro era enganado pela bocarra e ia entalar na goela do bicho. O trânsito parava, geralmente as cargas se perdiam por conta da colisão com a parte de cima do arco que se formava para os veículos passarem por baixo da ponte do trem e a cidade continuava sem poder receber veículos grandes, sendo assim, eram poucos os ônibus que entravam na cidade, o que dava aos taxistas da época a dádiva de praticamente só concorrerem entre si. “Ônibus pra Campinas passava só um de manhã, outro a tarde e outro a noite. Só quando veio a companhia Serrano foi que começou a ter ônibus de hora em hora. Quem precisasse ir pra lá em outro horário tinha que pedir pra gente”, recorda Paschoal, que mesmo sem muita competição, não fazia muito dinheiro.

“Os meus primeiros carros eram muito velhos e viviam precisando de uma ou outra manutenção. Só mais tarde, quando peguei o DKW,

no final dos anos 60, é que comecei a ver um pouco de dinheiro”. O automóvel, mais conhecido no Brasil como Decavê, foi um dos marcos da indústria automobilística no mundo. De fabricação alemã, a companhia Dampf-Kraft-Wagen – Daí o DKW – se fundiu mais tarde com outras três companhias, formando a Auto Union, que mais tarde adotaria o nome da primeira “argola” de seu logotipo, a Audi. Em 1967, a empresa, ainda com nome de DKW, fabricaria no Brasil a primeira versão do carro que ainda hoje é sonho de consumo de muitos, o Puma.

Todo taxista naquelas épocas precisava de um carro a prova de tudo e que desse o mínimo de defeitos possível. A carga de trabalho era enorme e não existia folga. Num lugar onde não haviam ambulân-cias, a polícia não tinha muitas viaturas e grande parte das pessoas ainda morava no campo e começava a precisar dos produtos da cida-de, quem quisesse garantir o próprio sustento e uma vida melhor para a família não podia se dar o luxo da folga. “Quando eu saía do meu ponto, que era perto de casa, eu nem guardava o carro na garagem, certo de que alguém iria me chamar pra fazer mais uma ou duas corridas”, relata Paschoal. “Aconteceu uma vez de eu estar vendo o tape do jogo do Palmeiras, porque naquela época não se passava jogo ao vivo, e duas moças do Guedes me baterem à porta. Eu saí, já com a roupa de dormir e gritei: ‘Que é que cês tão fazendo aqui que ainda não foram embora?’ Era tarde da noite e elas já tinham me avisado que iriam precisar de táxi pra voltarem pra casa, mas não tão tarde. Eu pensei até que elas tinham conseguido outra carona, outro táxi”, diz o palmeirense roxo, que nem assiste jogo de decisão nem contra o Corinthians com medo de passar mal do coração. Foi essa certeza incerta da espera pelo último ou pelo inesperado cliente que fazia com que ele, e muitos outros taxistas, fugissem de casa com a família no natal e no primeiro dia do ano, para poder ter um pouco de paz ao lado dos seus.

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É inegável o papel e a importância do táxi para os que viviam nessa época. Além de requisitado tanto pelas pessoas mais simples como pelos mais abonados, o taxista, ou “Chofer de Praça” virou música de Luiz Gonzaga e filme de Amácio Mazzaroppi. Nos versos do nordestino, o motorista era uma pessoa que, mais do que levar e trazer, se adequava às condições do seu público, sempre que fosse necessário mudar.

“Para casamento tenho um terno branco,Para batizado tenho um terno azul,Tiro o boné se vou pra zona norte,Boto o boné se vou pra zona sul,Se apanho um casal,Pros lados do Neblon,Sei que vou parar na gota da impresa,Viro o espelho, não fale, não veja,Vou dá meu cortejo, espero a recompensa”E, lembrando de Mazzaroppi para ajudar a contar a história do

táxi, vale lembrar que na mesma época o caipira realizou outro de seus sucessos, o “Chico Fumaça”, no qual o meio de transporte em questão era o trem, que o capiau salva do descarrilamento. O ônibus custou a entrar na vida das pessoas, e o cinema nacional já não tinha mas a mesma força para dignar alguns minutos de um longa metragem que tratasse dos grandes carros que levavam muito mais passageiros do que os táxis.

E pelo instrumento de trabalho do “Chofer de Praça” passavam muitas pessoas comuns, que deixavam suas histórias nos ouvidos do

filho de João Domingos Gandolphi e Rosa Sisti Gandolphi. Meu avô nunca tranportou celebridades ou coisas do tipo, como o taxista que me levou a um tour pelo Rio de Janeiro e que tinha, entre tantas pessoas comuns, transportado Chico Buarque.

Nenhum taxista de Jaguariúna, até onde se sabe, transportou Chi-co Buarque. Houve quem levou Chitãozinho e Xororó, ou disse que tenha levado. Meu avô transportou o já falecido Mário Sousa Marques Filho. Conhece? Não? Talvez você o conheça pelo nome de Noite Ilustrada. Também não? Não é culpa sua. O cantor fez sucesso na década de 60, com o samba “Volta Por Cima”, que contava com o motivacional refrão: “Levanta/ Sacode a poeira/ Dá a volta por cima”. Noite ilustrada se foi em 2003, quando meu avô já via sua aposen-tadoria completar maioridade absoluta. Morreu de câncer no pulmão, na cidade de Atibaia, há uma hora e vinte de Jaguariúna. Depois da carona, chofer e freguês nunca mais se viram pessoalmente.

Talvez os convidados mais ilustres da caranga do “seu” Paschoal foram aqueles que entraram no coche sem nunca ter visto a luz do sol e saíram de lá aos primeiros berros. “Duas crianças nasceram no meu táxi. A primeira foi a sétima cria de uma mulher morava num bairro rural da cidade. Ela entrou no carro e, pouco antes de chegarmos onde é atualmente o Alphaville, eu ouvi um choro de criança. Pensei comigo: ‘vixe, a criança nasceu’. Na hora eu já falei pra ela tomar cuidado pra que o bebê não encostasse em nada, porque o carro, por mais limpo que possa estar sempre tem alguma sujeirinha que pode fazer mal para a criança. O interessante foi ver que a mulher, que poderia ter gritado ou até mesmo sujado o carro não fez nada, e quando descemos na maternidade, que era na Andrade Neves, ela desceu do carro como se nada tivesse acontecido”, conta. A criança, que nascera de forma muito rápida e silenciosa, morreria dois anos mais tarde. Meu avô nunca soube a causa.

O outro nascimento aconteceu na estrada para Mogi “numa serra-ção que não se enxergava um palmo na frente da vista. Quando foi ali perto de onde hoje é o Rincão dos Pampas eu tive que ajudar no parto, que não foi tão rápido quanto o primeiro”.

Houve também quem quase nascesse no carro, não fosse um co-mando de polícia que não queria tentar as vezes na área da medicina. “Outra vez teve uma moça que também ia dar à luz em Campinas, no tempo em que era uma estrada só. Quando cheguei na subida do pedágio o trânsito estava inteirinho parado porque uns caminhões estavam passando muito devagar pela estrada. Eu, com medo de que não desse tempo de chegar à maternidade, subi pelo acostamento correndo. Quando termino a subida, não é que tinha um comando da polícia lá em cima? Eu não pensei duas vezes. Cheguei e falei: ‘Alguém aí quer ser parteiro?’ Na hora eles já pararam os caminhões que estavam vindo pra me deixar passar. Isso só aconteceu por que os guardas eram conhecidos, porque se fosse um comando mais besta eu estava preso”, relembra, não deixando de agradecer a Deus pela

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sorte que tivera.Sorte não tiveram os que, ao invés de nascer, bateram as botas

no carpete do Ford 46. Se foram dois os nascimentos, também fo-ram dois os óbitos. O primeiro foi de uma senhora que estava com Bronquite Asmática e respirava fundo, arfante. “Nesse dia eu estava com um problema no carro e tive de resolver antes de ir. Ela iria ao hospital para ver o que seria feito.Com ela, iam a filha e o genro. Quando estávamos perto do pedágio, ela parou de respirar e nós já voltamos pra Jaguariúna. Antigamente os mortos eram velados em casa, em cima da mesa, e foi pra casa desta senhora que nós fo-mos. Chegando lá, estávamos só eu e o genro para tirar uma mulher pesada de dentro do carro. Ela até chegou a escapar da minha mão, mas já não podia acontecer mais nada, coitada”.

A segunda morte foi de uma criança de dois anos – que não é a mesma que nasceu no carro algumas linhas atrás. “Estava levando a mãe e a criança para o hospital de Mogi Mirim quando ouvi o bebê dar um grito muito alto e ficar quieto. Como a mãe não falou nada eu continuei dirigindo até o hospital. Chegando lá, eu vi a criança e falei pra mãe ‘peraí, ela está morta!’. Pouco depois chegou a enfermeira e confirmou o que eu tinha falado. Ela nos orientou a nem entrar no hospital, pois senão seria mais difícil tirar a criança depois, e já não havia mais nada a fazer. Pra mim, o bebê morreu depois daquele grito no carro. Essa foi uma das coisas que mais me marcaram enquanto eu trabalhei no táxi”, confessa. Quando ouvi essa história me lembrei do medo que meu avô tem, até

hoje, de qualquer gripe ou resfriado que ele ou qualquer familiar pega. Um irmão mais novo seu também se foi aos dois anos de idade depois de vários dias com muita febre.

Além dos que nasciam e dos que morriam, pediram carona – lite-ralmente – pessoas muitíssimo vivas, em todos os sentidos do termo. Numa de suas corridas, Paschoal foi levar um rapaz para a casa do

respectivo. Como acertava as viagens só quando elas chegavam ao fim, meu avô nem perguntou se o rapaz tinha ou não dinheiro pra lhe dar. Chegando no ponto final, o passageiro pediu que meu avô es-perasse enquanto ele ia pegar dinheiro para acertar o trajeto. “Esperei mais de vinte minutos e nada do rapaz aparecer. Perdi a paciência e fui embora. Outro dia ele voltou pedindo que eu o levasse a outro lugar e eu respondi: ‘levo sim, por que não? Mas antes o senhor me paga o que ficou me devendo da outra corrida!’ Ele virou as costas que meio sem graça e foi embora. Por mim ele podia até voltar, mas ele nunca mais correu comigo”.

Fora essa ocasião, roubo que é roubo, o seu Paschoal – Páscoa ou Pascoalino para os mais chegados – nunca sofreu, graças a Deus, mas quase. Era meia noite quando quatro jovens se aproximaram de seu táxi. Eles queriam ir para Santo Antônio de Posse, para uma festa. Meu avô levou-os. Era uma sexta-feira. Na véspera do Natal daquele ano, uma terça, os mesmos rapazes entraram no táxi de um amigo de meu avô, que trabalhava em Pedreira, e levaram tudo o que ele tinha, inclusive o carro, que fora encontrado mais tarde na mesma Santo Antônio de Posse na qual foram participar de uma festa dias antes, levados pelo chofer de praça dos Gandolphi. “Poderia muito bem ter sido eu, da mesma forma que eles renderam o meu amigo poderiam ter me rendido. Foi Deus quem me ajudou”, relembra. “Mas essas coisas eram realmente difíceis de acontecer naquela época. Era outro sistema de vida, além de ser difícil existir alguém que você não conhecesse. Hoje ninguém mais se conhece”, pondera um senhor de 83 anos que viu sua cidade crescer de 4 mil à mais de 40 mil habitantes em menos de 60 anos.

E, quase sempre presente na vida das estradas brasileiras, o vi-lão para a maioria dos motoristas deixou de dar as caras por algum tempo para voltar depois pelo trecho entre Campinas e Jaguariúna. O pedágio, que hoje já chega a polpudos R$9,10 existe desde muito

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tempo. “Quando foi implantado o IPVA, pararam de cobrar pedágio, mas depois de um tempo ele voltou. Como os taxistas tinham isenção, no começo dessa volta da cobrança nas estradas nós pagávamos tranquilamente. Depois nós perdemos a isenção e, como todos os brasileiros, tínhamos que pagar um imposto que não sabíamos mais porque existia”, desabafa.

Dizem por aí que quem é taxista não deixa nunca de ser. Não sei se é bem verdade, porque mesmo quem não é chofer de praça, de rodoviária, de aeroporto, de rádio ou do que for pode dar carona e cobrar por ela e quem é pode fazer a bondade da corrida de graça. No fim, podemos todos ser taxistas, ou não ser. Meu avô continuou fazendo algumas corridas com o próprio carro e com carros de outros – o que não gostava de fazer de jeito nenhum. Quando éramos mais novos – eu e meus irmãos -, costumava levar-nos para a escola, para o médico, para casa. Até hoje ainda acode um ou outro mais chegado – leia-se parente. Ao fim da conversa que gerou essas longas linhas e as outras que seguem abaixo, ele me ofereceu uma corrida grátis. Aceitei.

Há quem possa dizer que meu discurso está livre da objetividade pretendida no jornalismo por que falo sobre alguém da minha famí-lia, mas saiba que, ao contrario do que acontece com meu avô – e que provavelmente deve acontecer na família de muitos, inclusive na sua – existem parentes meus a quem eu não dignaria um segundo de meu tempo para escrever um quinto de letra. Gosto sim, de meu avô, muito mais do que muitas fontes minhas, mas consigo tratá-lo como todas as minhas boas fontes. Enquanto escrevo, sou muito mais

apaixonado pelas histórias do que por quem as conta. Saio de mim pra escrever o que ouvi e vi. O que é, para muitos, é um exercício de busca de objetividade.

Atualmente, meu avô vive na mesma casa em que morou desde que se casou. Minha avó também ainda é viva e, desde 2008, ser-vem carne moída bem temperada para a vira lata Meg. Segundo o Gandolphi Sênior: “É melhor ter um cachorro amigo do que um amigo cachorro”, dica que leva a risca e que pode ser percebida quando se vê que, mesmo conhecendo muita gente, não é com todo mundo que conversa, menos ainda com quem joga truco ou vai pescar durante a semana.

Quando parou de choferar, Paschoal estranhou um pouco. O ritmo acelerado, não na velocidade, mas na carga de trabalho, fez com que ele nem se lembrasse de qual foi seu último passageiro no ponto de táxi da praça Umbelina Bueno. O que Paschoal sente hoje é um tanto de saudade e um tanto maior de nostalgia. “Se desse pra voltar no tempo eu voltaria, tranquilamente. Era um tempo difícil, os carros não ajudaram muito no começo, mas foi um tempo de muita alegria. Não alegria completa, porque alegria completa acho que só no céu, mes-mo”, conclui o motorista, que naquele mesmo dia ainda iria fazer uma viagem à Pedreira. Levar a esposa pra almoçar e ver umas lojinhas, quem sabe conversar com algum cunhado.

por Vinícius Gandolphi

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