revista mucury 8

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Revista da Associação Mucury Cultural/Teófilo Otoni - 8ª edição - dezembro/2011

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DIRETOR GERALBruno Dias Bento

EDITORA E JORNALISTA RESPONSÁVELClarice Palles 013349/MG

PROJETO GRÁFICODaniella SallesMarcelo TorresViviane Silva

A PALAVRA EM PELOVIOLA CAIPIRAJoão Evangelista Rodrigues

Jornalista, Escritor e Compositorhttp://vialaxia.blogspot.com/

INTRODUÇÃOESTRADA DE FERRO BAHIA E MINASFernando da Matta Machado

Nasceu em 1943 na cidade do Rio de Janeiro (RJ).O pai natu-ral de Diamantina (MG) e a mãe de Teófilo Otoni (MG).

Bacharel em Ciências Econômicas pela UFRJ.Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Ge-rais - IHGMG, do Instituto Histórico e Geográfico de Sabará - IHGSa, do Instituto Histórico e Geográfico do Alto Rio das Velhas – IHGARV e da Academia de Letras Ciências e Artes do São Francisco – ACLECIA.

Autor do livro “Navegação do Rio São Francisco”, do texto “Dados biográficos de Pedro Versiani” e da monografia “Contratação e liquidação de câmbio de exportação”.

Organizador dos livro “A Companhia de Santa Bárbara: um caso da indústria têxtil em Minas Gerais” e “Memórias”, de João da Matta Machado.

Publicou diversos artigos em jornais e revistas.

expediente

Page 5: Revista Mucury 8

BALADA PARA UMA MOCINHAA!MORAMOR FORA DE HORASEM VOCÊPARA UMA MENINA COM UMA DORMadson Hudson Moraes

Poeta e jornalista pela Universidade São Judas Tadeu, em São Paulo. Suas atividades acadêmicas estão mais voltadas para a Literatura, Música e Poesia Brasileira. Selecionado na 54º Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos e no livro Contos de Outono - Contos de Amor e Desamor, ambos publicados pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores. Esteve entre os 100 vencedores do Prêmio Literário Waldeck Almeida de Jesus no ano de 2008.

NOÇÕES MALEÁVEIS SOBRE O SERTÃOMariana Oliveira e Souza

Graduada em Ciências Sociais na UFMG, com ênfase em Antropologia, Arqueologia e formação complementar em História. Atualmente é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFMG e participa do Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais-NUQ-UFMG.

RELAÇÕES DE PODER, DISTRIBUIÇÃO DO ESPAÇO DOMÉSTIO E O ‘DESIGNER’ DE INTERIORESTania Quintaneiro

Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora adjunta aposentada do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Atua nas áreas de teoria sociológica clássica. Pesquisa a política interamericana e a atuação do Estado, com ênfase nas relações entre o Brasil, os Estados Unidos e América Latina no período da Segunda Guerra Mundial. Pesquisa relações de gênero por meio da produção de viajantes estrangeiros ao Brasil no século XIX. Tem se dedicado especialmente ao estudo da sociologia de Norbert Elias.

INTROSPECÇÃO E MINEIRIDADE: UM OLHAR CULTURALMaurício Caleiro

Cineasta e jornalista. Blog: http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com

VEJO GENTESBOM DIA MÃE João Quixico Domingos

Natural de Cazenga-Luanda -Angola, mestrando em Ensino da Língua e Literatura Portuguesa

SACA-ROLHASRoberto Taufick

Bacharel em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco/USP, membro honorário da sua Academia de Letras Contista, cronista, romancista, poeta e compositor. Nas horas vagas, Especialista em Políticas Públicas em Gestão Governamental, com foco em antitruste.

PROJETO ESTAÇÃO CINEMABruno Dias Bento

“CIDADE DOS MORTOS - NOTAS SOBRE O CEMITÉRIO DO BONFIM”Patrick Arley de Rezende

É fotógrafo e livreiro. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais e é mestrando em Antropologia pela mesma UFMG

MILTON RIBEIRO TAVARES, “DE SAUDOSA MEMÓRIA”Igor Sorel Tavares

Arquiteto pela UFMG, 1980, com especialização em transportes pelo IBAM, 1983, funcionário da Secretaria Municipal de Indústria Comércio e Turismo da Prefeitura Municipal de Teófilo Otoni.

OS PRIMEIROS 123 VERSOS DA ENEIDA DE VIRGÍLIOLuís Santiago

Graduado em História pela Universidade Estadual de Montes Claros. Escritor com títulos publicados sob o nome de Luís Santiago (a maioria sem ISBN), com destaque para a série O Vale dos Boqueirões, sobre a história do vale do Jequitinhonha, da qual quatro volumes já foram publicados.

Page 6: Revista Mucury 8

6 Revista Mucury

Olá mucuryanos,

Nestes tempos sempre quentes, de chuvaradas e tempestades, tudo por demais imponderável. Nada melhor que a provocação que os versos consequentemente nos trazem, estes, de Neruda:

EDUCACIÓN DEL CACIQUE

Lautaro era uma flecha delgada.Elástico y azul fue nuestro padre.Fue su primera edad sólo silencio.Su adolescência fue domínio.Su juventude fue um viento dirigido.Se preparo como uma laga lança.Acostumbró los pies em las cascadas.Educó la cabeza em la espinhas.Ejecutó las pruebas del guanaco.

Nesta quadra de salvadores, libertadores e o próprio povo buscando novos mundos. Será? Estes são problemas de outras searas, mas no poema de Neruda, em terra de boto-cudos, os versos EDUCACIÓN DEL CACIQUE vibram nossos brios.

editorial

Bruno Dias Bento

Page 7: Revista Mucury 8

7Revista Mucury

Estamos, nós, da Mucury Cultural muito felizes. Conseguimos uma série de novas parcerias e outras estão por vir, o que podemos adiantar é que este 2011 será bastante frutuoso, para nós e para este Mucuri, quente como o sol...

Ah, e lembram a Mucury 7? Pois é, tivemos a comprovação que a edição online foi um sucesso, conferindo as estatísti-cas – já que os números são os números – quase chegamos a 1000 leitores, mas com mais de 9500 visualizações de páginas. Foi um sucesso estatístico e de crítica, pois além de belíssima, o conteúdo, como sempre, de primeira!

Trazemos desta vez, a participação de gente nova e deveras importante! Além de textos de excelente qualida-de, sem nenhuma modéstia, nossa revista está crescendo muito. Graças aos esforços de todos os muitos envolvidos.

Recebemos textos do Rio de Janeiro, da Capital (BH), de Angola, do vale do Jequitinhonha, São Paulo e daqui mesmo, claro.

Está bastante sortida a Mucury 8. Tem poesia, prosa, biografia, crônica, fotografia, antropologia, história e sociologia, e um bocado mais.

O blog está repleto de novidades e informações, e nossa radioweb está com a programação cada vez mais diversa e colaborativa, você que agora lê este parco texto não perderá seu tempo conferindo!

E o que será agora? Em tempos online – estou um tanto quanto escatológico – pós-modernos, hiper-modernos ou ainda ultra-modernos, alguns rezam, oram, outros dissertam, e tantos outros nem ligam. Entender Neruda em seus versos políticos mais uma vez impactam lá no fundo de nossas cabeças, e o que fazer? Com a internet cobrindo quase o mundo todo, somos tentados a sempre ficar do lado de cá da janela, mas em terra mucuryana, algumas crianças ainda pulam para fora ou para dentro.

Deixemos logo de conversa e fiquem todos com a Mucury 8.

Grande abraço,

Page 8: Revista Mucury 8

10 - a palavra em peloJoão Evangelista Rodrigues

territórios de resistência

José Evangelista Rodrigues

14 - viola caipira:

e de identidade da cultura

18 - em defesa da violaJoão Evangelista Rodrigues

20 - estrada de ferro bahia e minasrelatórios de Pedro Versiani

22 - introduçãoFernando da Matta Machado

Pedro Versiani

26 - estrada de ferro bahia e minasengenheiro fiscal Pedro Versiani

42 - Despedida do Juiz (imagem)

44 - Diplomação de Geraldo Porto (imagem)

46 - Cidadãos Teofilotonenses (imagem)

48 - Comício Político/Praça Argolo (imagem)84 - O Marx Patriarca (imagem)

52 - balada para uma mocinhaMadson Hudson Moraes

54 - a!morMadson Hudson Moraes

56 - amor fora de horaMadson Hudson Moraes

58 - sem vocêMadson Hudson Moraes

62 - para uma menina com uma dorMadson Hudson Moraes

notas sobre o cemitério do BonfimPatrick Arley de Rezende

66 - cidade dos mortos

um olhar culturalMaurício Caleiro

72 - introspecção e mineiridade:

“de saudosa memória”Igor Sorel Tavares

78 - Milton Ribeiro Tavares,

sumário

50 - Inauguração da Agênciade Correios (imagem)

Page 9: Revista Mucury 8

128 - Rua Benedito Valadares (imagem)

132 - Cortejo Fúnebre (imagem)

90 - Laura e Antônio Onofre (imagem)

92 - Pastor Hollerbach e esposa (imagem)

98 - Membros da Família EL Aouar (imagem)

Mariana Oliveira e Souza100 - noções maleáveis sobre o sertão

Bruno Dias Bento122 - projeto estação cinema

primeiro capítulo (sample)Roberto Taufick

142 - saca-rolhas

86 - Mulheres das FamíliasSander e Marx (imagem)

88 - Cinco Gerações daFamília Marx (imagem)

94 - Casamento de Francisco Esperança (imagem)

96 - Filhos de Antônio Correia Marques (imagem)

Luís Santiago

108 - os primeiros 123 versosda Eneida de Virgílio

126 - Rainha e Princesasdo Centenário (imagem)

130 - Ponciano Souto serrandoa Marta Rocha (imagem)

Tania Quintaneiro

134 - relações de poder, distribuição doespaço doméstico e o ‘designer’de interiores

146 - vejo gentesJoão Quixico Domingos

148 - bom dia mãeJoão Quixico Domingos

150 - Enchente na Rua das Flores(imagem)

152 - Coletânia (imagem)

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10 Revista Mucury

a palavra em pelo

João Evangelista Rodrigues

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11Revista Mucury

Page 12: Revista Mucury 8

12 Revista Mucury

como sempre, de primeira!

Basta de eufemismoschega de hipocrisiade encobrir a linguagem com a cinza de seus cadáveresa realidade terrível e trivial da era da desinformação do desconhecimento da ignorância programadada tirania dos poderososde todos os pontos do planeta“stop” com a demagogia universalde fantasias fúnebrescom a plumagem das palavrascom a velocidade sem direçãocom a aceleração dos sentidosdos letreiros alumbrososem detrimento do espírito da inteligênciaem detrimento da vida na Terrados rios de pobreza e destruiçãodaqui para frente vale a palavra em pelonua em estado de nascimentoem estado bruto sem ordens obscenassem ordenamentosdesdicionarizadasa palavra originária

anti-pragmática anti-burocráticavale o sentido forteda palavra liberdadesem culpa sem desculpas sem falsos escrúpulossem dissimulaçõesvale a palavra ímpartodos os seus sonsseus saboresseus tons seus dissaboressuas tonalidades atrozesatônitas combinações

de agora em diante fica acertado após severas experiênciasnegociações e acordos bilateraispesquisas acadêmicasdeserções e doutrinamentosde teses de douramento intelectualem nome do tesão e da vidabomba é bombamorte é mortecego é cegonegro é negropobre é pobre

fome é fomepreconceito é preconceitotração é traiçãomercado é mercadoladrão é ladrãoglobalização é apenas o apelido do imperialismocapitalismo é capitalismo mesmoselvagem animal insaciávelde setecentas cabeças bocas e garras

fica acertadocomo politicamente corretoem nome da nova ordemda falta de projeto universalda linguagem da seduçãoe da alegria em nome do sonho de um mundo menos imperfeitopoesia é poesiajustiça é justiçaamor é amormídia é mídiaguerra é guerragrana é granafica convencionadoque todos conhecemos bem

12 Revista Mucury

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13Revista Mucury

como sempre, de primeira!

o significado das palavras universidadegovernomonopóliosacanagemverdadeestado de desgraça mundialna cidade e no sertão

fica coletivamente combinadoque toda palavraantes de ser ditaescrita ou engolidadeve ser lavada esterilizadadepurada de toda injúria e injunção de toda mazelasintática e semânticatodas as palavras devem ser cuidadosamentemastigadasdigeridasmentabolizadassem prótons nêutrons e neutralidades qualquer outro tipo de evasãovale dizervale a palavra sem lirismo

sem egoísmosem analfabetismosem malabarismosem terrorismosem cinismosem eufemismosem dirigismo sem fins lucrativos

vale o silêncio sem aviso préviopalavra mais interiorem nome de novo oráculo vale matar o senhor e o servose o vocabulário rio imprestável ao rigor da sedeao risível desatino humanonão for sincero nem preciso

vale a palavra em pelo em pleno exercício e plenitude

eu poeta de tudo o que me cerca do fundo deste abismo assinoe declaro que a partir de agora ninguém nada mais me ilude

13a palavra em pelo

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territórios de resistênciae de identidade da cultura

José Evangelista Rodrigues

viola caipira:

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16 Revista Mucury

O desafio deste artigo é refletir, dentro de seus limites, sobre o papel de resistência da viola caipira, de dez cordas, enquanto elemento intrínseco de formação da identidade da cultura brasileira. Visa mostrar, também, o caráter visionário e crítico, por que não dizer revolucionário, que a viola, vem assumindo na contemporaneidade, após longo período de ostracismo. Não seria exagero falar de um renascimento do universo caipira, seja por meio da valorização deste instrumento, pela variedade de ritmos que ele proporciona, seja pela nova música que nele se compõe e canta, sem preconceito, antes com admiração, em todo o território nacional. Não pretendo, aqui, entrar em detalhes sobre a origem da viola, suas características técnicas e suas possibilidades estéticas, nem sua evolução ao longo da história do processo de desenvolvimento sócio-econômico e político-cultural brasileiro.

O leitor atento pode perceber, de início, que o que aqui se apresenta não é fruto de uma abordagem acadêmica, fundada em pesquisas formais e sistemáticas. Mas nem por isso é menos importante, por nascer da vivência, da observação e do contato direto com os diversos seg-mentos e ambientes que compõem o mundo da viola, hoje, no Brasil. Sendo assim, este modesto texto não tem a pretensão de verdade absoluta nem de esgotar o tema nos limites aqui impostos. Nem precisa dizer a relevância do tema que, aos poucos, vem ganhando respeito e con-quistando espaço no mundo acadêmico, como matéria curricular e objeto de pesquisa não só nos Conservatórios e Faculdades de Música, mas em outras áreas do conhe-cimento, como Comunicação Social, Antropologia e Sociologia, por exemplo.

Portanto, nada mais se espera do leitor que, no final deste artigo, ele se desperte para a riqueza do universo da viola e sobre sua importante presença na paisagem humana e sócio-cultural da vida cotidiana brasileira. Feitas estas ressalvas, já é hora de avançar um pouco mais rumo ao universo da viola caipira e mergulhar no coração brasileiro. Que neste itinerário, o leitor atente ler de maneira aberta e sem preconceitos e releve caso já tenha conhecimento ou domine, com maior autoridade, alguns conceitos aqui apresentados. Pois, ao homem do campo, que veio do meio rural, nos braços de quem a viola floresce e canta, é própria a humildade, sem submissão, a curiosidade, sem arrogância, a doação e a troca sem intencionar, de antemão, lucros ou vantagens imediatas.

Ao contrário, fazem parte do complexo caráter desse ho-mem, dono de sabedoria e de comportamentos bastante peculiares, a cordialidade e a coerência entre o pensado e o vivido, entre suas crenças, sua religiosidade, seus mitos e o seu cantar. De mesma forma, sua ética, exigente e cuidadosa, apreendida com a natureza da qual depende, e com a qual sua vida e sua existência em muitos pontos se confundem.

É neste universo natural, de vida social incipiente que a viola floresce. Melhor dizendo, refloresce, após anos de sumiço do repertório caipira, apagamento pela mídia e esquecimento pelo público consumidor de música. A viola caipira só não desapareceu, de vez, da paisagem cultural e musical brasileira, porque ficou, durante anos – sobretudo entre as décadas de 70 a 90, resguardada no ambiente sagrado da religiosidade popular. Quer dizer, sob a proteção das bandeiras das Folias de Santo Rei, do Divino,

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17viola caipira: territórios de resistênciae de identidade da cultura

de São Benedito, de São Gonçalo e as festas de romaria. Manifestações populares profanas, de cunho lúdico e festivo, como nos bois de janeiro, mutirões e bailes de roça também serviram de santuário da viola caipira, seja preservando ou resgatando ritmos como o coco, samba de roda, batuques, cateretê, moda de viola, desafio e repentes e muitos outros ritmos enraizados nos gostos e na sensibilidade do homem rural.

Se por um lado, desde sua chegada ao Brasil, na época do “descobrimento”, com os jesuítas, a viola assumiu um papel de certa forma, pacificador, domesticador, e, portanto, conservador. Não se pode ignorar, por outro, que ela possui uma natureza aglutinadora, festiva, lúdica, misteriosa e mágica. São estes últimos aspectos que fazem da viola caipira um símbolo de resistência e de identidade da cultura brasileira. Nem mesmo os interesses políticos e econômicos, a submissão de alguns segmentos culturais e de alguns grupos ao poder, conse-guiram abafar esta força intrínseca que mora no cerne mesmo da viola. Harmonia e desejo de liberdade e de libertação que vibra em suas cordas finadas e encontra abrigos em seu braço, sempre disposto a lutar contra as injustiças e imposições.

Também a meio-caminho, entre a cidade e o campo, um entre-lugar, os bairros mais pobres e periféricos, onde a cultura popular continua resistinto ao massacre, às investidas da mídia, da massificação - termo fora de moda que, à falta de melhor opção , utilizo-o aqui. São massas de trabalhadores anônimos que tentam sobreviver com seus familiares com as mínimas condi-ções possíveis. Neste quase não–lugar persistem núcleos,

grupos, pessoas que ainda guardam os vestígios da cultura popular, oriunda do meio rural, como verdadei-ras relíquias do patrimônio espiritual e cultural de nossa gente. Mesmo explorados, como mão de obra barata e não especializada pela sociedade, violentados pela realidade sócio-econômica e vulneráveis aos efeitos da mídia, estes grupos tentam manter a tradição e as transmitir às novas gerações, presas fáceis de “produtos culturais” da moda, de gosto duvidoso e de outras bugigangas impostas pelo mercado neo-liberal.

É verdade que grande parte das composições consideradas obras primas, clássicos da música de viola, soam ingênuas diante das contradições sociais, reforçando e projetando conceitos e valroes que só interessam aos mandatários históricos e donos dos meios de produção, coronéis, latifundiários, industriais: em suma, da elite agrária e industrial brasileira. Ao mesmo tempo, sempre existiu e, atualmente, com maior evidência, um número signifi-cativo e cada vez maior de compositores e de pessoas e grupos cuja obra reflete uma visão crítica e postura engajada, não só diante das grandes questões, como dos desafios planetários.

Quem se der ao trabalho de buscar, de pesquisar, de parar e ouvir, verá que a música de viola tem conteúdo forte. Fala da realidade trágica e contundente não só do Brasil, mas de um mundo global em vertiginosa mudança, e que às consequências ninguém escapa. São mudanças que exigem de cada cidadão, onde ele se encontra, uma disposição de mudança e de adoção de uma “ética do cuidado”, como bem propõe o conceituado teólogo e estudioso Leonardo Boff.

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Revista Mucury

como sempre, de primeira!

em defesa da viola

Nesta perspectiva, vem atuando entidades, instituições como Associação Nacional dos Violeiros do Brasil, o MST, Ongs e artistas e grupos de artistas espalhados por todo o país. E o mais importante, todo este trabalho reflete a alegria, a luminosidade, a força e energia que vem da Viola Caipira. É em torno deste instrumento sagrado, de seu bojo, que vem os acordes da alegria e as vozes da esperança de um Brasil mais justo, mais livre. Um Brasil festeiro e sincero. Se me permite o leitor, vou fazer a defesa da viola através desses versos feitos a singeleza e o carinho que a viola merece.

João Evangelista Rodrigues

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19Revista Mucury

como sempre, de primeira!

em defesa da viola

eu defendo a violapelo que tem de belezaeste instrumento chorade alegria e de tristezaquem quiser ser violeirotem que ter honra e nobreza

sei que a viola é bonitamais bela do que princesaparece moça de chitaem festa de realezaquem quiser ser violeirotem que amar e ter destreza

minha viola é singelamas é cheia de grandezao que sai de dentro delaé a voz da naturezaquem quiser ser violeirotem que chegar de surpresa

eu defendo a violapelo que tem de certezapelo força da memóriapor toda sua levezaquem quiser ser violeiroque jogue as cartas na mesa

minha viola é festeiranão gosta de viver presanas festas da padroeiracanta com fé e firmezaquem quiser ser violeiroque mostre sua proeza

a viola eu defendocom amor e com brabezaquando canto eu me rendoà sua delicadezaquem quiser ser violeirotem que vencer a riqueza

cada violeiro a seu modofez sucesso na defesatodos juntos neste motevamos cantar com clarezaos violeiros e a violasão sinceros companheiros

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estrada de ferro bahia e minasrelatórios de Pedro Versiani

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22 Revista Mucury

introdução

Fernando da Matta Machado

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23estrada de ferro bahia e minasrelatórios de Pedro Versiani

A história da Estrada de Ferro Bahia e Minas começa a 21 de setembro de 1878, quando na sessão da Assembléia Provincial de Minas Gerais foi apresentado o projeto de lei nº 98 permitindo ao presidente da província contratar com o engenheiro Miguel de Teive e Argolo, ou com quem melhores condições oferecesse, a construção de uma estrada de ferro de Filadélfia (nome da atual Teófilo Otoni) às divisas da província de Minas com a da Bahia em direção ao porto de Caravelas. O concessionário teria a preferência para construir o prolongamento até a cidade do Serro e também dois ramais, um do ponto mais conve- niente da linha central a Araçuaí ou a qualquer ponto da margem do Jequitinhonha, e outro de Filadélfia a Minas Novas. Além disso, a província garantiria o juro de sete por cento sobre o capital máximo de 5.000:000$ (cinco contos de réis).

Autorizado pela Lei no 2.475, de 28 de outubro de 1878, o governo de Minas celebrou com Miguel de Teive e Argolo o contrato de 23 de abril de 1880, no qual era garantida a subvenção de 9:000$000 (nove contos de réis) por quilômetro.

Argolo obteve as necessárias autorizações do estado da Bahia. Em 7 de outubro de 1880 iniciaram-se os primeiros estudos, começou-se logo a construir a seção baiana. Inaugurou-se a 9 de novembro de 1882 a estação ferroviária de Aimorés, em território mineiro, na divisa com a Bahia, a 142,400 km de Ponta de Areia (sul da Bahia); a 13 de abril de 1891, a de Mayrink, a 49,600 km da pri-meira; a 31 de julho de 1892, a de Urucu, distante 91 km da estação de Aimorés.

A estação ferroviária de Teófilo Otoni inaugurou-se a 3 de maio de 1899. A quase totalidade dos livros e de outras publicações diz, erroneamente, que o ano teria sido 1898. A consulta às fontes primárias permite afirmarmos que o ano correto da inauguração foi 1899 e não 1898. Mais tarde, a linha de ferro estendeu-se de Caravelas (Ponta de Areia) até Araçuaí (MG), ligando o nordeste de Minas ao Oceano Atlântico em somente um dia de viagem.

Os dois principais engenheiros-construtores foram Miguel de Teive e Argolo e Pedro José Versiani. O primeiro no início dos trabalhos e o segundo na conclusão, até bem próximo de Teófilo Otoni. Essenciais as participações dos presidentes de Minas Gerais, Afonso Pena (14-7-1892 a 7-9-1894), Crispim Jacques Bias Fortes ( 7-9-1894 a 7-9-1898) e dos seus auxiliares os secretários de Agricultura David Campista e Francisco Sá, que souberam vencer obstáculos dificílimos e terminar o empreendimento.

Pedro Versiani foi nomeado engenheiro fiscal da estrada a 13 de agosto de 1892 e engenheiro-chefe do Prolonga-mento a 9 de julho de 1895, quando o governo estadual chamou a si a direção das tarefas da construção. Dá-se o nome de Prolongamento ao trecho que começa em Aimorés em busca de Teófilo Otoni.

Ele inaugurou as estações de Presidente Pena (km 112,700 a 23 de novembro de 1895), de Francisco Sá (km 147,888 a 24 de agosto de 1896), de Bias Fortes (km 165,700 a 6 de fevereiro de 1897) e de Pedro Versiani (km 205 a 4 de julho de 1898). Dispensado em 4 de outubro de 1898, não inaugurou a estação de Teófilo Otoni a 3 de maio de 1899, embora tenha dirigido a maior parte dos trabalhos nos 28,800 quilômetros acrescidos após a sua dispensa.

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24 Revista Mucury

Portanto, Versiani foi o principal construtor da ferrovia em Minas Gerais, no trecho de Aimorés a Teófilo Otoni.

Ressalte-se que a dimensão total da via férrea contava 376,200 km, com 142,400 km no segmento baiano e 233,800 km no segmento mineiro, até Teófilo Otoni. Este texto não trata do Prolongamento a Araçuaí.

Os relatórios de Versiani, que estamos publicando, referem-se ao período de 1892 até o primeiro semestre de 1897. Contam a história da Estrada de Ferro Bahia e Minas. Embora se destinassem a informar sobretudo os trabalhos realizados no ano imediatamente anterior, contêm quantidade elevada de dados sobre a estrada desde 1878. Permitem ainda acompanhar a formação dos núcleos urbanos mineiros que prosperaram naqueleterritório ferroviário, e mais tarde alguns se transforma-ram em importantes cidades.

São obras de referência essenciais para a história da ferrovia e da região. Compõem um painel da vida social daquela área do nordeste de Minas. Contemporâneas dos fatos. Elaboradas pelo fiscal e pelo chefe da construção, testemunha direta dos acontecimentos. Acreditamos que esta publicação será útil para os estudiosos do assunto.

Os dados biográficos de Versiani, redigidos por Fernando da Matta Machado, seu neto, estão incluídos em outra parte deste site.

Conforme se lê nos relatórios, Versiani defendia os interesses da agricultura, do comércio e da população do nordeste de Minas. O governo mineiro se empenhava em atender

a essas aspirações. Na visão e na atuação de Versiani, esses interesses gerais deviam prevalecer sobre os da companhia privada proprietária da estrada.

Ele entende que a finalidade principal da ferrovia era aumentar a receita da agricultura, reduzir seus custos de produção, facilitar o comércio e a exportação dos produtos agrícolas. Como os custos aumentavam pelas despesas de transporte em costas de animais, o atraso no término do serviço ocasionava a perda em fretes pelos agricultores; já o ganho em preços de transporte poderia ser empregado em compra de maquinismos, novas culturas da lavoura, etc.

Para isso — sempre a serviço do estado de Minas Gerais — defendia a liberdade de comércio, contra os interesses da companhia dona da ferrovia. Por exemplo: propõe fosse construído um ramal de Ponta de Areia para Caravelas. Como a Companhia Bahia e Minas possuía o monopólio do transporte em Ponta de Areia, Versiani argumenta que o ramal introduzirá a livre concorrência; permitirá ao comércio utilizar os navios a vapor do Lloyd, que cobravam fretes mais baixos, ou escolher outra com-panhia de vapores que transportasse com tarifas mais econômicas.

Na defesa da agricultura e do comércio, menciona repetidas vezes a zona nordeste de Minas. Deduzimos que Versiani tinha a convicção de que o nordeste de Minas era uma região já formada, a rigor. Com economia, sociedade, política e ideologia já constituídas e não apenas em processo inicial de formação. Portanto, com aspirações específicas a serem defendidas. Isso em 1893, em pleno século XIX.

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25estrada de ferro bahia e minasrelatórios de Pedro Versiani

Versiani elaborou os relatórios na qualidade ora de fiscal ora de chefe da construção. Conforme o leitor notará das referências bibliográficas, uns textos foram publicados inclusos aos relatórios do secretário de Agricultura de Minas, alguns no jornal Minas Gerais (diário oficial do estado) e outros existem em manuscritos no Arquivo Público Mineiro. Acreditamos que os manuscritos sejam transcrições de copistas, não nos parecem originais redigidos de próprio punho de Versiani.

O texto intitulado “Movimento do tráfego do trecho mineiro da Estrada de Ferro Bahia e Minas no ano de 1893” suplementa o “Relatório do engenheiro fiscal da Estrada de Ferro Bahia e Minas” e o “Relatório do tráfego da Estrada de Ferro Bahia e Minas, em 1894” é suplemento do “Relatório apresentado pelo engenheiro fiscal de primeira classe desta estrada Pedro José Versiani”, pois acrescentam dados estatísticos até o mês de dezembro de 1893 e de 1894, respectivamente.

Apesar das tentativas que fizemos, não localizamos nos arquivos públicos ou bibliotecas existentes em Belo Horizonte e na cidade do Rio de Janeiro o relatório do secretário da Agricultura de Minas Gerais, apresentado ao presidente do estado, publicado no ano de 1898. Ali, muito provavelmente existe outro relatório de Versiani sobre as atividades em 1897. Entretanto, a lacuna está, em parte, suprida pelos três textos ora publicados, cujos conteúdos alcançam até o primeiro semestre de 1897.

Na transcrição, o organizador, Fernando da Matta Machado, adotou os seguintes critérios básicos:

a) atualizou a ortografia, conforme o Acordo Ortográfico de 1990;

b) emendou os lapsos tipográficos e os lapsos de pena óbvios;

c) manteve a pontuação dos textos de base; fez pouquís-simas alterações, quando pareceram indispensáveis;

d) uniformizou o emprego das iniciais maiúsculas;

e) inseriu o acento grave indicativo da crase, à moderna.

Cabe ressaltar que a unidade do sistema monetário brasileiro no período denominava-se mil-réis, e Rs seu símbolo. Assim, todos os valores expressos estão em mil-réis, mesmo quando o símbolo Rs não apareça antes da quantia, ausência muito comum no uso da época.

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Pedro Versiani

estrada de ferro bahia e minasengenheiro fiscal Pedro Versiani

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28 Revista Mucury

Autorizado pela Lei no 2.475, de 28 de outubro de 1878, a contratar com o engenheiro Miguel de Teive e Argolo ou companhia que este organizasse, ou com quem melhores condições oferecesse, foi pelo governo celebrado com aquele cidadão o contrato de 23 de abril de 1880, no qual era garantida a subvenção de 9:000$000 por quilômetro, concedida a zona privilegiada de 40 quilômetros, para cada lado da estrada, e preferência para construção dos ramais.

Em 27 de setembro de 1886 foi modificado aquele contrato, passando a garantia a ser efetivamente de 7% durante 50 anos, enquanto a renda não atingisse a 4%, porque de tal momento em diante só seria paga a garantia correspon-dente ao que faltar para 7% sempre sobre o capital máximo de 6.000:000$000, nos termos do art. 7o, §§ 1o e 2o.

A Lei no 3.648, de 1o de setembro de 1888, elevou o capital da empresa com mais 1.000:000$000 e mandou incluir no respectivo contrato a obrigação de fundar dois núcleos coloniais à margem da estrada em pontos determinados, tendo sido por essa mesma lei suprimida a cautelosa disposição anterior que consistia, como acabamos de ver, em só ficar o estado obrigado ao pagamento da garantia correspondente ao excedente de 7 sobre 4, uma vez que se provasse poder a renda da estrada atingir a 4%. Nestes termos, foi lavrado o contrato de 7 de março de 1889.

A extensão da linha desde Aimorés, na divisa do estado, até a cidade de Filadélfia, pela locação já concluída é de 233,800 km (pelos estudos era de 235 km), montando os orçamentos correspondentes a 6.409:778$256.

Núcleos coloniaisEm cumprimento do disposto na cláusula terceira do contrato de 7 de março de 1889 e uma vez que o engenheiro fiscal encarregado do exame para escolha do local dos núcleos, reconhecera a conveniência de serem os dois núcleos do contrato fundidos em um só, determinou o governo, por despacho de 17 de fevereiro de 1890, que fosse esse único estabelecido na área escolhida à margem do Ribeirão São Paulo, seis quilômetros acima da sua foz, onde o terreno se presta a toda a sorte de culturas e onde o clima é magnífico.

Expedidas, a 7 de maio de 1890, as instruções para a execução de tal despacho, em observância à disposição constante da referida cláusula terceira, só a 9 de agosto do ano passado foram aprovados os planos e orçamento.

Posto houvessem sido apresentados em tempo os referidos projetos, foi a demora motivada pelo fato de ter o enge-nheiro fiscal resolvido só revê-los por ocasião da tomada das contas de garantia de juros da companhia, no Rio de Janeiro, onde dispunha ele de todos os elementos para melhor firmar o seu parecer.

As despesas a fazerem-se com a fundação deste núcleo, com capacidade para instalação de 200 famílias montam a 621:562$086.

Tem a aludida estrada em tráfego provisório 91 quilômetros, em construção 143,800 km, prosseguindo atualmente com alguma atividade o serviço de movimento de terras que se acha no quilômetro 146.

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29estrada de ferro bahia e minasengenheiro fiscal Pedro Versiani

Não tendo sido feito o descortinamento aos lados da via permanente, em largura suficiente a evitar a queda sobre a linha de troncos de árvores que motivaram embaraços ao tráfego, conforme comunicação recebida nesta repartição, foi imposta à companhia a multa de 1:000$000, por ato de 8 de novembro do ano passado, nos termos do número quatro do parágrafo 13 da cláusula quarta de seu contrato.

O tempo concedido para a construção é de quatro anos, e em vista do último contrato de 7 de março de 1889 é esta data o ponto de partida da contagem desse prazo que, portanto, terminará a 7 de março de 1893.

A companhia celebrou com a presidência da Bahia o contrato de 19 de julho de 1880, autorizado pela Lei provincial no 1.946, de 28 de agosto de 1879, para a construção da estrada de Caravelas às divisas de Minas, em direção a Filadélfia, sendo o privilégio intransmissível e de 50 anos a sua duração.

Por este contrato obteve a companhia a subvenção de nove contos por quilômetro de estrada, uma zona privilegiada de 30 quilômetros e preferência para a construção de ramais.

Foi também celebrado com o governo imperial o contrato de 18 de julho de 1881, autorizado pelo Decreto no 2.966, de 26 de agosto de 1880, para a compra das terras devolutas, até seis quilômetros para cada lado da estrada pelo preço de meio real para 4,84 m2.

Pela cláusula oitava deste contrato, se a estrada projetada não for concluída nos prazos fixados nos respectivos

contratos ou nos que forem prorrogados, as terras ainda não ocupadas voltarão ao domínio do estado, sem direito a indenização alguma; devendo ainda o concessionário entrar para os cofres públicos com as quantias por que tiver vendido os terrenos então ocupados.

Pelo governo do estado de Minas Gerais foi ainda concedida a garantia de juros de 6% sobre o capital de 26 contos de réis por quilômetro para a linha de Peçanha a Teófilo Otoni, nos termos do contrato de 14 de junho de 1890.

Pelo Decreto no 574, de 12 de julho de 1890, foi concedido à companhia, pelo governo federal, o privilégio da linha da Vitória ao Peçanha com a garantia de juros de 6% sobre o capital de 30 contos de réis por quilômetro, sendo o contrato assinado a 28 de julho do mesmo ano.

A lei de 11 de novembro de 1892 da Assembléia Estadual do Espírito Santo concedeu à Companhia Bahia e Minas, empresária da Estrada de Ferro de Vitória ao Peçanha, a garantia de juros de 6% sobre o quanto demais despender, além da soma garantida pela União, no trecho da linha compreendida dentro do estado, até o máximo de 20 contos por quilômetro.

O respectivo contrato deve ser brevemente assinado.

ConstruçãoEm 7 de outubro de 1880 tiveram princípio os estudos da seção da Bahia, seguindo-se logo a construção da estrada, cujos trabalhos terminaram em novembro de 1882; sendo a 9 do mesmo mês inaugurada a estação de Aimorés, a 142.400 metros da Ponta d’Areia, no estuário de Caravelas.

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30 Revista Mucury

Os trabalhos foram contratados em globo com o sr. P. F. J. Martins, mesmo antes de feitos os estudos.

Houve uma interrupção do serviço por espaço de mais quatro anos; prosseguindo os trabalhos em 1888, depois que a companhia realizou o empréstimo de 16 e meio milhões de francos, por contrato com o Banque Parisienne de 27 de setembro de 1883.

Dada ao engenheiro R. A. Hehl a empreitada da construção, continuaram os trabalhos da linha férrea; sendo a 13 de abril de 1891 inaugurada a estação de Mayrink e a 31 de julho de 1892 a de Urucu, distante 91.000 metros da estação da Aimorés.

Retirando-se o empreiteiro Hehl, foi dada a empreitada até o quilômetro 185 ao dr. Joaquim da Silva Leite Fonseca, que continua os trabalhos de preparação do leito da estrada e construção das obras-d’arte.

As empreitadas em território mineiro têm sido concedidas por preço médio quilométrico, tomando como base o orçamento aprovado, no qual a companhia faz o abatimento de 20%, que retira para as despesas do empréstimo externo.

Se o primeiro sistema de empreitadas em globo é pernicioso, tendo sido à própria companhia, o segundo não poderá contar muitos apologistas.

CapitalO capital da companhia, que era de 12 mil contos, corres-pondentes a 60 mil ações, com 20% de entrada, foi

elevado a 40 mil contos, divididos em 200 mil ações de 200 mil-réis.

Foram emitidas em pro-rata as ações correspondentes ao aumento do capital, realizando-se os 10% de entrada.

O aumento do capital tem por fim a construção do ramal de Teófilo Otoni ao Peçanha e a da estrada da Vitória à Natividade e Peçanha, cuja construção acha-se afeta ao Banco Construtor do Brasil.

Para dar andamento aos trabalhos da seção mineira da estrada (Aimorés a Teófilo Otoni) a companhia levantou em Paris, por intermédio da casa Duvivier & Companhia, um empréstimo de 16 e meio milhões de francos em 33 mil debêntures de 500 francos, vencendo juros de 5% e amortizáveis em 48 semestres.

Deste empréstimo contraído com o Banque Parisienne foram sorteados e pagos (até 30 de dezembro de 1891) 2.320 títulos.

Os acionistas mais importantes da primeira seção da companhia eram em 31 de maio de 1891:

Banco de Crédito Real do Brasil

Conselheiro Francisco de Paula Mayrink

J.P Rocha Paranhos

30.000 ações

15.000 ações

10.450 ações

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As 3.750 ações restantes estavam distribuídas por mais 16 acionistas.

Os saldos do empréstimo externo estão em depósito na casa Duvivier & Co., que deve fazer os pagamentos à medida que forem apresentadas as folhas dos serviços executados.

Desenvolvimento progressivo do tráfegoAs condições de vitalidade da companhia podem ser avaliadas pelo seguinte quadro das receitas e despesas em diversos exercícios:

Ano de 1883

Período de tempo Receita Despesa Saldo

De 1° de janeiro a31 de maio de 1889

De 1° de junho de 1889a 31 de maio de 1890

De 1° de junho de 1890a 31 de maio de 1891

De 1° de junho de 1891a 31 de maio de 1892

250:814$060 380:322$538 129:508$478-

89:932$695 217:406$141 127:473$446-

152:226$136 143:646$748

Déficit

-

-

-

-

-

-

-

-

8:579$388

150:211$029 121:653$899 28:557$130

218:765$139 140:456$195 78:305$944

243:485$786 162:620$246 80:865$540

108:487$650 70:687$942 37:799$708

308:925$304 180:531$060 128:394$244

553:947$160 388:577$979 165:369$181

518:433$999 320:169$575 198:264$424

Idem de 1884

Idem de 1886

Idem de 1885

Idem de 1887

Idem de 1888

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32 Revista Mucury

Na receita e despesa estão incluídas as verbas proveni-entes do transporte marítimo, do comércio de madeiras e de sal, feito pela companhia.

Se atendermos ao desenvolvimento da cultura do café nos últimos quatro anos (devido à alta dos preços), à circunstância de atravessar a estrada mais de 200 quilômetros de mata virgem, devendo, pois, o seu maior movimento de tráfego provir do ponto terminal — Teófilo Otoni — pode-se afirmar que o futuro da companhia será dos mais auspiciosos, se for administrada com critério.

Seção baiana

535 réis por tonelada quilômetro

425 idem, idem

225 idem, idem

425 idem, idem

1.026 idem, idem

1.026 idem, idem

1.026 idem, idem

1.026 idem, idem

2.675 por vagão (5 ton.) quilômetro

Seção mineira

100 réis por tonelada quilômetro

200 idem, idem

80 1 idem, idem

80 idem, idem

450 idem, idem

500 idem, idem

140 idem, idem

300 idem, idem

280 por vagão (5 ton.) quilômetro

Algodão com caroço

Idem imprensado

Cevada e cereais não classificados

Arroz, farinha, feijão e milho

Querosene

Máquinas de costura

Salitre

Vinagre, vinho e objetos manufaturados não classificados

Madeiras (massas de 1/2 a 2m 3)

Tarifas

As tarifas para madeiras, algodão e outras mercadorias, na seção baiana da estrada (da Ponta d’Areia a Aimorés) são muito altas. Pelo seguinte quadro comparativo ver-se-á a desproporção entre as tarifas das duas seções da estrada:

1 O

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Page 33: Revista Mucury 8

33estrada de ferro bahia e minasengenheiro fiscal Pedro Versiani

O frete de madeira em massa de menos de 1/2 metro cúbico, na seção baiana, é calculado pela seguinte nota: “madeira pagará 25 réis por decímetro de face e de comprimento aumentando-se 50 réis por decímetro de comprimento e por acréscimo de

decímetro, ou fração de decímetro de face ou de diâmetro, acrescentando-se mais 50 réis e desprezando-se quantidades inferiores a 20 réis”.

Esta nota coloca em sérias dificuldades os chefes das estações, que não sabem quanto devem cobrar pelos despachos.

A tarifa de sal é mais alta na seção mineira, o que parece inconveniente aos próprios interesses do estado; porquanto uma redução razoável nesta tarifa poderia atrair à estrada o comércio dos municípios vizinhos, que ainda compram o sal em Sabará, Ouro Preto, Saúde, Linhares e Araçuaí.

As passagens de primeira classe custam mais 20% e as de segunda mais 60% na seção baiana.

As taxas de telegramas são duas vezes mais altas do que as mineiras.

São também exorbitantes os fretes marítimos em vapores da companhia.

De diversos conhecimentos de expedição de mercadorias para uma casa comercial de Teófilo Otoni, verifiquei que o preço médio do transporte de uma tonelada do Rio de Janeiro ao porto de Caravelas, pelo vapor Augusto Leal, tinha sido de 110$813.

Com os mesmos conhecimentos, organizei o quadro seguinte:

Em conhecimentos para outra casa comercial, achei para o transporte de uma tonelada de ferragens (enxadas, etc.) a importância de 100$000.

Não sendo permitido aos vapores do Lloyd ou aos de outra qualquer empresa a atracação à ponte marítima da companhia, na Ponta d’Areia, o comércio vê-se obrigado a servir-se dos vapores da companhia e a pagar do Rio ao

Qualidade das mercadorias

Fazendas

Chapéus

Idem de sol

Objetos de armarinho

Calçados

Arreios

Ferragens (tachas, fornos, chapas)

Preço médio de transporte de uma tonelada

166$666

181$818

160$000

166$666

190$838

150$000

50$000

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34 Revista Mucury

porto de Caravelas fretes talvez mais altos do que os de qualquer porto da Europa para o mais distante do Brasil.

São bastante eloquentes os algarismos para provarem os grandes estorvos ao desenvolvimento do comércio e da lavoura, na zona servida pela estrada.

Atendendo ao interesse público e ao da própria companhia, que não pode estar em antagonismo com aquele, é preciso fazer quanto antes a revisão das tarifas do trecho baianoe a redução dos fretes marítimos nos vapores da companhia.

No caso contrário, as tarifas e os fretes marítimos consti-tuirão uma verdadeira muralha chinesa, que impedirá, por muito tempo, o progresso da zona nordeste de Minas.

SEÇÃO MINEIRA DA ESTRADA

Traçado

A linha partindo de Aimorés, sobe pelo Córrego Pau Alto, afluente do Peruípe e, depois de atravessar o divisor das águas (na serra dos Aimorés) desce pelo Córrego das Voltas e pelo Ribeirão Sete de Setembro, alcançando no quilômetro 29 a margem esquerda do Rio Mucuri, que acompanha até o quilômetro 48 + 400 m, em que atravessa o rio, seguindo dali em diante pela margem direita deste até a barra do Rio Todos-os-Santos, no quilômetro 112. Continua pela margem direita deste rio até à cidade de Teófilo Otoni, no quilômetro 233 + 800 m. Do quilômetro 30 até o ponto terminal as condições do traçado são muito favoráveis quanto a declividades e tangentes extensas; sendo de lastimar que o contrato

tivesse autorizado o emprego de curvas de cem metros de raio.

A diferença de altitudes entre o quilômetro 40 da linha e Teófilo Otoni é de 216 m, na extensão de 193 km + 800 m.

O custeio da estrada, desde o quilômetro 30 até o + 233,800, em razão de não haver nesse trecho declividades de mais de 1% e de serem insignificantes as contrar-rampas, será dos mais econômicos.

Neste sentido, suponho não existir em Minas estrada de traçado mais favorável.

O quilômetro 30 está, portanto, indicado para uma estação de composição de trens, quando houver grande densidade de tráfego; salvo se for prolongada a linha pelo Mucuri até Santa Clara, procurando-se daí o traçado mais favorável para Caravelas, para evitar as declividades fortes e curvas apertadas dos primeiros 20 quilômetros da linha.

Zona

A linha mineira atravessa em quase toda a sua extensão até o quilômetro 204 uma floresta virgem, existindo apenas alguns fazendeiros nas margens do Ribeirão Sete de Setembro, com lavouras de café e cacau.

Esta última cultura parece-me não ter dado resultados.

Nas margens do Rio Urucu, depois que inaugurou-se a estação, têm-se aberto muitas lavouras novas de café e cereais.

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35estrada de ferro bahia e minasengenheiro fiscal Pedro Versiani

A estação projetada no quilômetro 149 (São Paulo) ficará a quatro léguas da colônia militar de Urucu, onde estão estabelecidos com lavouras de café e cereais diversos colonos antigos, de nacionalidades holandesa, alemã, por-tuguesa e chinesa, introduzidos pelo benemérito mineiro, de saudosa memória, Teófilo Ottoni.

Dos poucos chineses existentes, alguns são trabalhadores abastados, tendo-se casado com holandesas ou nacionais e sendo reputados como excelentes pais de família.

Do quilômetro 204, até o ponto terminal, há diversos fazendeiros e antigos colonos com lavouras de café bem regulares.

No município de Teófilo Otoni a lavoura de café está bem desenvolvida. A safra deste ano é avaliada em 80 mil arrobas; devendo quadruplicar dentro de poucos anos, por haver maior quantidade de cafeeiros novos.

Nas florestas do Mucuri, encontram-se madeiras preciosas como o jacarandatã, o itapicuru-amarelo, o vinhático, o cedro, o ipê-tabaco, o ipê-peroba, a sapucaia, o putumuju, (araribá-rosa), o pau-brasil, (em pequena quantidade), o bálsamo vermelho e roxo, a canjerana, a maçaranduba, o guarabu, o gonçalo-alves, e muitas outras variedades.

Devido à falta de estradas regulares para os municípios vizinhos, a estrada de ferro só aproveita presentemente ao município de Teófilo Otoni.

Construída a linha até o seu ponto terminal, sento feitas estradas para o Peçanha, São João Batista, São Miguel do Jequitinhonha, e melhorada a estrada para Minas Novas, deve-se esperar considerável aumento no tráfego.

Sobre a estrada construída pela extinta Companhia do Mucuri, para a cidade de Minas Novas, assim exprimiu-se o barão Tschudi2:

“Se se houvesse prometido prêmio ao engenheiro que fizesse o pior alinhamento entre os dois pontos dados, o engenheiro da companhia teria ganho o prêmio”.

Inaugurada a estação de Teófilo Otoni, o comércio de sal do Araçuaí, atendendo-se às grandes dificuldades da navegação do Jequitinhonha, deve deslocar-se para aquela cidade, que tornar-se-á importante centro comercial.

Terras e colonização

As terras devolutas estão sendo povoadas à medida que se abrem estradas para as estações.

Nas margens do Rio Urucu, acompanhando a picada aberta para a estação, têm-se estabelecido muitos trabalhadores. O mesmo acontece na picada feita para a futura estação de São Paulo.

O governo providenciará de modo a regularizar as posses de terras, impedindo que os atuais ocupantes tomem posse de grandes extensões à margem dos rios de regímen perene e prevenindo ao mesmo tempo os conflitos resultantes da invasão simultânea por diversos indivíduos.

É de toda a conveniência a colonização das terras atraves-sadas pela estrada de ferro; promovendo-se assim o aumento da produção e consequente desenvolvimento de exportação e importação que concorrerão para diminuir a responsabilidade do estado de Minas pela garantia de juros.2

Nota

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36 Revista Mucury

Consta-me que o estado possui mil ações da extinta Companhia do Mucuri, as quais dão-lhe direito a 44.660 hectares de terras.

Assim sendo, o governo poderá entrar em acordo com os mais acionistas e mandar demarcar os terrenos da margem esquerda do Mucuri, junto à estação de Urucu, ou então os terrenos da margem esquerda do Rio Todos-os-Santos, próximos à estação que brevemente deve ser inaugurada perto da barra deste rio, para neles estabe-lecer núcleos coloniais.

O perímetro das terras para os acionistas da extinta Companhia do Mucuri já foi demarcado; existindo na Secretaria Federal da Indústria e Viação a respectiva planta.

A demarcação foi começada abaixo da barra do Rio Pampã, que fica em frente ao quilômetro 70 da linha férrea, entre as estações de Mayrink e Urucu; seguiu pela margem esquerda do Rio Mucuri até a barra do Rio Todos-os-Santos e continuou entre a margem esquerda desta e a direita do Mucuri até as vertentes do Ribeirão São Pedro (afluente do Todos-os-Santos) e do Mestre de Campos, afluente do Mucuri.

A estrada de ferro os acompanha na extensão aproximada de 96 quilômetros.

No caso de serem aproveitadas para colonização, deve-se dar aos lotes demarcados pequena frente acompanhando os rios Mucuri e Todos-os-Santos, atendendo-se a circuns-tância de cortarem-se no tempo da seca os diversos córregos e ribeirões afluentes.

Mesmo o Rio Urucu não tem regímen perene, cortando-se

as suas águas, quando o estio é rigoroso, muitos quilôme-tros acima da sua barra no Mucuri.

A concessão das terras até seis quilômetros da linha, feita à companhia pelo contrato de 18 de julho de 1881 com o governo imperial, não deixa de desvalorizar as terras devolutas, que ficam afastadas dos rios Mucuri, Pampã e Todos-os-Santos, visto não terem regímen perene as águas dos diversos córregos e ribeirões.

Quando tiver de ser inovado o contrato das terras com o governo de Minas, dever-se-á tratar de um acordo que concilie melhor os interesses do estado com os da companhia.

Nas margens do Ribeirão de São Paulo, em terras dos acionistas da extinta Companhia do Mucuri, estão proje-tados dois núcleos coloniais pela Companhia Bahia e Minas, em satisfação do compromisso contraído com o estado de Minas, em virtude do contrato de 7 de março de 1889.

Estrada em tráfegoA parte da linha em tráfego é de 91 quilômetros e com-preende as três estações:

- Aimorés, inaugurada a 9 de novembro de 1882, na divisa da Bahia;

- Mayrink, inaugurada a 13 de abril de 1891, a 49 km + 60 m

da primeira;- Urucu, inaugurada a 31 de julho de 1892, a 91 quilômetros da primeira.

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37estrada de ferro bahia e minasengenheiro fiscal Pedro Versiani

Das estações, Mayrink está classificada em segunda classe e Urucu em terceira, posto que a afluência de cargas e passageiros seja maior nesta.

A sala destinada ao armazém na estação de Urucu é acanhada, não tendo proporções para acomodar presentemente as cargas. A sua área é de 18,24 m2.

A obra de arte mais importante da estrada é a ponte sobre o Mucuri no km 48 + 400 m, com três vãos de 19,60 m e um de 37,70 m.

Os encontros e pilares de alvenaria foram construídos sobre a rocha granítica que forma o leito do rio.

As vigas de ferro são do sistema Prott. A enchente deste ano, que não foi das maiores, chegou a 0,70 m abaixo da viga. A ponte devia ter ficado 2 m mais alta.

A ponte de Urucu (ainda provisória) deve ficar com 22,80m de vão livre. As vigas são de ferro rebatido, sistema americano, tendo altura de 1,15 m. A distância entre as vigas será de 2,2 m.

Falta construir no trecho em tráfego diversas obras, como a ponte definitiva sobre o Rio Urucu, no quilômetro 90 + 820 m e diversos pontilhões.

O girador de Urucu, cujas alvenarias do centro tinham abatido com o peso da máquina, já acha-se em estado de funcionar.

Superestrutura

Os trilhos são de aço Bessemer, do sistema Vignolles, do peso de 18 quilos (pelo contrato) por metro corrente.

Pela pesagem de dois deles, um de 7 m e outro de 8 m de comprimento, verificou-se o peso médio de 18,66 kg por metro corrente.

As chapas de junção pesam 2,450 kg, os parafusos e porcas 200 gramas e os grampos 150 gramas.

Os dormentes são na sua quase totalidade de ipê-peroba, e guardam o espaçamento de 0,80 m de eixo a eixo.

As suas dimensões são as seguintes: 1,85 m + 0,2 + 0,12. Seria mais conveniente, à estabilidade da via permanente, adotar maior espessura e o comprimento de 2 m o que importaria em pequeno aumento de despesa.

Tabela de trens

Só há um trem obrigatório por semana, o qual parte da estação de Caravelas (Ponta de Areia) às 6 horas da manhã, nos domingos, e chega a Urucu às 6 horas da tarde. Volta de Urucu às 6 horas da manhã, nas segundas-feiras, e chega a Caravelas às 6 horas da tarde.

Os trens de cargas são em dias indeterminados, de acordo com as necessidades do tráfego; partindo quase sempre depois da chegada dos vapores ao porto de Caravelas.

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38 Revista Mucury

Interrupção do tráfego

Havendo corrido vários aterros, em consequência de abundantes chuvas, o tráfego esteve suspenso desde o dia 2 de dezembro até 26.

No quilômetro 232 (contanto de Caravelas) caíram também as paredes do pequeno pontilhão sobre o Córrego da Boa Vista, devido à sua má construção ou à circunstância de não terem elas a espessura necessária para resistirem ao empuxo das terras.

Nos aterros banhados pelas águas do Mucuri, é preciso que a companhia mande fazer paredões; no caso contrário, as interrupções do tráfego reproduzir-se-ão em todos os anos de grandes enchentes.

A suspensão do tráfego determinou a acumulação de grande quantidade de cargas nas estações de Caravelas e Urucu, cujos armazéns e plataformas estão cheios.

Linha telegráfica

Os aparelhos são do sistema Morse.

Os fios são de ferro zincado, de 0,005 m de diâmetro, e os isoladores do sistema Capanema.

Os postes são de madeira roliça e geralmente de pequeno diâmetro, de modo que não podem ter grande duração.

Devem ser substituídos gradualmente por trilhos usados

ou por outros de madeira de lei.

Material rodante

Na seção mineira ainda não existe em serviço material algum adquirido por conta do capital garantido.

O serviço do tráfego tem sido feito com o material do trecho baiano.

As seis locomotivas desse trecho são antigas e precisam de reparos.

Nas oficinas da Ponta d’Areia, sente-se a falta de pessoal habilitado; sendo também muito sensível a falta dum torno grande, próprio para rodas de locomotivas.

Em ofício, com data de 20 de dezembro, propus a aquisição do material indispensável à seção mineira em tráfego.

Sendo de esperar que até fim de agosto do corrente ano seja inaugurada a estação de São Paulo, no km 149, deve a companhia fazer já a encomenda do material necessário, em proporção do número de quilômetros que serão entregues ao tráfego.

Atendendo, pois, a esta circunstância, deve a diretoria da companhia, além do material da minha proposta, contratar mais o fornecimento de duas locomotivas, uma do tipo consolidation e outra para trem de passageiros. Esta última deve fazer o serviço do expresso de 15 em 15 dias, em relação com a chegada dos vapores ao porto de Caravelas. Sendo esta a primeira máquina de grande velo-cidade, que terá de atravessar as florestas do Mucuri, o seu nome de batismo deve ser o do ínclito brasileiro — Teófilo Ottoni — que, com sacrifício de sua própria pessoa, foi

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39estrada de ferro bahia e minasengenheiro fiscal Pedro Versiani

o primeiro a desbravar as florestas desse vale, lançando aí as primeiras sementes da civilização. É uma homenagem devida a sua memória veneranda; não tendo nenhum outro maiores títulos à gratidão do povo dessa região.

O número de carros e vagões da proposta deve ser au-mentado na proporção dos quilômetros acrescidos e de conformidade com o contrato da companhia.

O material deve ser apropriado às curvas de 100 m de raio.

Todos os carros e vagões devem ser sobre truques e ter o comprimento de 11,6 m, conforme o acordo exarado no orçamento suplementar.

Nas curvas, grande parte do acréscimo de resistência à tração desaparece com o emprego do material de sistema americano.

Os atuais carros ingleses (do trecho baiano) sobre três jogos de rodas, do sistema Cleminson, são inconvenientes; havendo grande tendência ao descarrilamento nas curvas de 100 metros de raio, quando a velocidade dos trens excede de certo limite.

Receita e despesa do tráfego

Não estando organizadas as contas da companhia, tratar-se-á da receita e despesa do tráfego em relatório que será apresentado em tempo oportuno.

Linha em construção

Assentamento de trilhos. Estão assentados 11 km + 600 m de trilhos além da estação do Urucu.

A média mensal tem sido de dois quilômetros; sendo, pois, insignificante o serviço feito.

Presentemente estão paralisados os trabalhos até concluir-se um bueiro duplo e fechar-se o aterro da ponta dos trilhos, que embaraça a passagem do material.

Se a companhia não desenvolver maior atividade para execução desse serviço, não poderá cumprir o contrato feito com o governo do estado de Minas.

Preparação do leito

O movimento de terra está bem adiantado até o quilômetro 146. Do quilômetro 149 até o ponto terminal nada é feito. Recentemente foi enviada uma turma de 20 trabalhadores para encetar o serviço de escavação no quilômetro 168.

Não me consta ter sido dado de empreitada o trecho do quilômetro 185 a 233 + 800 metros. Havendo nesta parte alguns cortes altos, deve a companhia providenciar para que o serviço seja imediatamente atacado.

O número de 380 trabalhadores, atualmente empregados, deve ser triplicado.

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Obras-d’arte

Estão concluídos 18 bueiros capeados e construídos os alicerces de três pontilhões nos quilômetros 118, 126 e 132. Também estão terminados os alicerces da estação de Todos-os-Santos, entre os quilômetros 112 e 113.

O pessoal de pedreiros é pequeno; faltando por este motivo muitas obras, que embaraçam o serviço de movimento de terra.

Trabalhos preparatórios

A derrubada, o rolamento de madeiras e o destocamento estão feitos até o quilômetro 204.

Deste até o quilômetro 230 há diversos terrenos empregados na roçada.

Locação

Está feita até Teófilo Otoni, no quilômetro 233 + 800 metros.

Houve sobre a linha do projeto aprovado, o encurtamento de 1.232 metros, que importará em redução de mais de 40 contos no capital garantido pelo estado.

Estradas de Teófilo Otoni para as estações da Estrada de Ferro Bahia e Minas

O governo do estado providenciará sobre os consertos de que necessita a estrada de rodagem de Teófilo Otoni a Santa Clara, com a qual comunicam as picadas que vão ter às estações.

Os serviços mais urgentes são os seguintes:

Roçada da capoeira, às margens da estrada;

Consertos de várias estivas e das pontes sobre o Ribeirão de Lajes e Rio Urucu;

Abertura de valetas para derivar as águas fluviais, impedindo a formação de atoleiros e os estragos causados pelas enxurradas;

A despesa a fazer, será presentemente, inferior a quatro contos.

A picada para a estação de Urucu já está melhorada.

A criação de uma turma de conserva, que ficasse encar-regada dos consertos da estrada de rodagem e das picadas para as estações, seria um benefício público.

A direção e fiscalização dos serviços poderão ser confiados

à Câmara Municipal de Teófilo Otoni.

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41estrada de ferro bahia e minasengenheiro fiscal Pedro Versiani

Estrada para a futura estação de São Paulo

A diretoria da Companhia Bahia e Minas deve, quanto antes, mandar proceder aos estudos da estrada de rodagem para essa estação, quilômetro 149, devendo a estrada ficar

concluída antes da inauguração da estação.

Ramal do Peçanha

Os trabalhos de exploração estão terminados.

O orçamento da linha está sendo organizado pelo dr. Alfredo de Oliveira, que tem o seu escritório técnico na capital do Espírito Santo.

Conclusão

Além das medidas consignadas neste relatório, há duas outras que muito concorrerão para melhorar a sorte do comércio, oferecendo também mais comodidade aos viajantes: o alfandegamento do porto de Caravelas e a construção de um ramal da Ponta de Areia para essa cidade.

As vantagens do alfandegamento são intuitivas, não havendo necessidade de encarecê-las.

A construção do ramal, que é muito fácil e exige dispêndio inferior a 30 contos de réis, abrirá as portas à livre conco-

rrência; podendo o comércio utilizar-se dos vapores do Lloyd, nos quais os fretes são muito mais baixos, ou optar pela companhia de vapores que fizer os transportes em melhores condições.

Enfim, o povo da zona nordeste de Minas, inteligente, ordeiro e trabalhador confia que sejam arredados os tropeços à sua prosperidade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Versiani, Pedro José. Relatório do engenheiro fiscal da Estrada de Ferro Bahia e Minas. In: Minas Gerais. Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Relatório apresentado ao dr. presidente do estado de Minas Gerais pelo secretário de estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas dr. David Moretzsohn Campista no ano de 1893. Ouro Preto: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1893. p. 89-90, 131-140, 180 e 194.

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Despedida do Juiz

DataFinal dos anos 50, do século XX

Procedência Coleção de João Cannizza

Dados HistóricosMilitantes do Fórum despedem-se do juiz Afonso Teixeira Lages. Na primeira fila, da esquerda para a direita, aparecem Irení de Souza Andrade (escrivão/tabelião), Elviro Pereira Otoni (idem), José Pereira de Paiva, Dr. Afonso Teixeira Lages (juiz de direito), Dr. Eliseu de Oliveira Viana (promotor de justiça), Dr. Geraldo Landi (advogado/deputado). Na segunda fila: Serafim Ângelo Colares (tabelião substituto do 2º Ofício), Dr. Antonino Barbosa Ganem (advogado), Dr. Hercílio Avelino Pinheiro (advogado), Dr. Ruy Campos ( advogado), Dr. João Prates (advogado), Dr. Pedro Paulo Otoni (advogado) e Eurico Soares da Costa (oficial de justiça). Na terceira fila: Rodrigo Dias da Rocha (oficial de justiça), Augusto Quito da Silva (oficial de justiça), Leônidas de Almeida Machado (tabelião), Dr. Roscio Pereira da Silva (advogado), Dr. José Gerônimo de Oliveira (advogado) e Dr. Osvaldo Prates (advogado). Na quarta fila: Afonso Alves de oliveira (oficial de justiça), Francisco de Paula e Silva (tabelião do 3º Ofício), Álvaro Chaves de Souza (escrivão do crime) e Daniel Caldeira Freire (contador).

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Diplomação de Geraldo Porto

Data31 de janeiro de 1955

Procedência S/R

Dados HistóricosPrimeira diplomação de Geraldo Porto como vereador. Comemoração com partidários e amigos. São identificadas e numeradas as seguintes pessoas: 1- Ayl Godinho, 2- Rui Campos, 3- Geraldo Porto, 4- Abel Ganem, 5-Augusto Pereira, 6-Bráulio Xavier, 7- Geraldo Landi, 8- Lourenço Porto, 9- Guilherme Landi, 10- Jackes Laender, 11- Olímpio Caldeira, 12- Raul Gazzinelli, 13- Juquinha Pimenta, 14- Tote Saúde e 15- Luiz Bernardo de Almeida.

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Cidadãos Teofilotonenses

DataAnos 20, do século XX.

Procedência Coleção de José Bernardo de Almeida

Dados HistóricosCidadãos teofilotonenses, Aristides Torres Vieira, Francisco Lopes da Silva, Jorge Mussi, José Bernardo d´Almeida, Antonio Nobre Bonfim, Dr. Lourenço Porto, Teophilo Rocha e Silva e Aristides Mendes. Assentados: Dr. Cândido Mariano, Antonio Vieira Lemos, Dr. Otávio Gordilho de Castro, Dr. Antônio Nunes Galvão e Dr. Nerval de Figueiredo.

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Comício Político/Praça Argolo

DataMeados dos anos 20, do século XX

Procedência Coleção de Wilmo Batista Pinto

Dados HistóricosComício Político na praça Argolo. Á direita, ao fundo, aparece parte da Casa Paiva seguida por casario. À esquerda, ao fundo, parte do Mercado Municipal, ainda na sua originalidade e casario.

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Inauguração da Agência de Correios

Data28 de julho de 1922

Procedência Coleção de João Cannizza

Dados HistóricosInauguração da Agência de Correios de Teófilo Otoni, ocorrida em 28 de julho de 1922, tendo como primeiro agente Roberto Sander. A agência funcionava na Rua Direita, Avenida Getúlio Vargas, onde funcionou, posteriormente a Padaria Totó. Na foto o quadro de funcionários da referida agência.

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como sempre, de primeira!

balada para uma mocinha

Madson Hudson Moraes

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como sempre, de primeira!

Permaneci calado, quieto,diante das investidas lunares.Num movimento oscilante meus olhos forama uma dada manutenção opaca, perdida e distante,onde as personagens dos desenhos animados era mudos, não comoviam-se. Do tempo, seco e apurado,fiz minha bagagem para seguir em longa viagempela espiral temporal atrás dos coelhos de Alice.

Mas eis que você surge linda, lindinha,como um sambinha da Clara Nunes, toda perfeitinha.Eis também que me proponho a inventar um léxico líricoque tente abolir qualquer diferença entre vocêe o que é considerado não-físico.

Eis que, mais ainda, em tua presença,encaro e dessacralizo as coisas sagradaspara transformá-las em coisas simples.Dessa maneira,eis que o mistério que busco traduzir em familiaridadeé salpicado por pequenas ilusões que teu olhar dispara e me para.

Eis que encarno no malabarismo dos teus olhos acuadoso que é necessário para poder ser e interrogar.Eis que, ao final, acabei beduíno no teu deserto de detalhes.

53balada para uma mocinha

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como sempre, de primeira!

a!mor

Madson Hudson Moraes

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como sempre, de primeira!

Ai, este meu amor que paroxítona o seu,enche-o de estafermos e catarses,que cobra de si a si espaços em absolutosa nascente do riso profundo brancomdor,inerente à sua própria natureza selvagem.

A custo de renovação, cortei-me em partes desiguaisnesse trajeto louquírico de definhadas sujeitices,pouco valor apagado do quadro da meninice.

Quem me disse a tônica do verbo?A!mor, derivação desvairada tresloucadacomo um trem que ora apita em sua chegada.

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como sempre, de primeira!

amor fora de hora

Madson Hudson Moraes

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como sempre, de primeira!

O amor fora de hora,é como rolar da escada, dizia o poeta.Diante da queda e sua inutilidade no chão,útil é aproveitar o sopro da sensação.Esse desapontamento de amar,armamento não aproveitado em soma de fogo,é fagulha de sim confundido com não,traça na alma ataque ou rebelião.

Os amores desfalcados aparelharam a maternidade do amor.As criaturas amorosas nascem hoje andróginas,ambíguas de suas naturezas expectantes,entregando os primeiros encantos e bocejos da paixãoà senilidade do sentimento caricaturado.Há tantos mares de esperança nos olhos,tantas adegas de sonhos encarcerados,alambrados cercados por vilanias e docilidades ambíguas,há sonhos, sonhos comungados e chorados.

A alma vai logo ali,pairando triste numa esquina de lojasde vídeos com demonstração de vôos perdidos.

Em paráfrase descaradamente roubada,as pessoas que amamossão pessoas que amamossão eternas até certo ponto da chuva.

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sem você

Madson Hudson Moraes

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como sempre, de primeira!

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como sempre, de primeira!

Sem vocêminha saudade quase que desanda em linhas invisíveise ao te ver na porta com os olhos em zoom me fitando em despedida,sinto que deixo ali um braço,uma saudade similar como quem arruma um quarto do ente querido que já partiu,semelhante a sentir a perna amputadae ainda assim existir a sensação de que a perna existe em concílio com o corpo.E essa saudade eu não deixo exilar de mim,essa metade como quem parte deportado para a guerradeixando os olhos mendigos demitidos do carinho.Ao te deixar,sinto como se meu corpo se tornasse forasteiro em trilhas desconhecidas,estranho ádvena em mínima figura desconhecida.E quando percebo minha alma já antecipou tantos passos, tantos sonhos,e eu sei o quanto custa voltar um cadinho, como custa recolher o cadarço.

Sem vocêhá desrazão, um lamento que derramo em arco-íris adventícios.Faço de ti minha bossa mais linda.Com a música que cantarolo entre os lábios,tu cozinhas em solene beleza, em solene murmúrio.E te vejo lutando contra a louçinha, contra os pratos e talheresque também devem rir de ti porque és graça em grande face.E assim me deixe ser seu fogareiro, sua renda mais colorida, seu burburinho na panela,o tempero mais salgado que deixa a sede infinita da tua boca na minha.E todas as minhas saudades fingidas e todas aquelas que investi em segredoserão coleções e enciclopédias de sorrisos teus,almanaques de pela branca e macia que eu sinto na almaque desliza suave como creme hidratante em minhas mãos quando te tocam.

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como sempre, de primeira!

E sem você eu desperto em noites tão tristes,em noites tão escuras, tão cefaléias!E em tais noites eu faço um calor descomunal nas vogaisonde o amor projeta-se em redondilhas do marque me quebram em quebrantos de agrados.E me empreste o que tens nos olhos porque o que eu tenho nos meus é pouco,tão pouquinho, sempre tão distantes do porto, tão distantes das embarcaçõesque sempre inventei nomes novos de barcos infantilmente.E assim o coração bamboleia.Faço amizades de ternuras tão íntimas e dóceis.O coração dessa mulher é palha, é fogoe por ela arrasto meu incêndio. Para queimá-lo e para assim eu renascer ou morrer.

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como sempre, de primeira!

para uma meninacom uma dor

Madson Hudson Moraes

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como sempre, de primeira!

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como sempre, de primeira!

Porque você é uma menina com uma doreu te empresto meu bunker particular,esconderijo onde os mocinhos da Paramount nunca foram.Nele é tão quentinho, tem lareira com ventinho,tem espaço para um chazinhocom direito a salas bagunçadas e pilhas de agrados verbais.E as margaridas falam, tagarelam,contam chistes de amores avariados,os poléns riem de si mesmos.

E porque você é uma menina com uma dorque desejo ser seu comprimido, sua unânime aspirina,seu burguês que recusa as meias na hora de dormirpara os pés sorrirem de alegria quando você for usá-las.E anseio ser também o teu copo de água, a água do teu copo,acho que o filtro purificador seria demais, mas também quero ser.

Porque você é uma menina com uma dorque invento tantas enfermidades para inventar tantas curas.Invento laboratórios científicos, ambulatórios com picadeirose neles viro um doutor da alegria com nariz de palhaço e fantasia.E se você continuar sendo essa menina com uma dorpronto, estou feito, invento, finjo que tenho dores semelhantes,treino caretas diante do espelho, arqueio sobrancelhas em aleluiassó para fazer com que a minha dor se pareça com a tua.

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como sempre, de primeira!

E porque você é uma menina com uma florque me ausento desse mundo, mudo para o oceanoe emudeço quando encosto-me às poucas explicações de amar,pois conheço tantos atalhos que perdi o sabor do caminho original.E quando me perguntam por que nós dois, eu digo,porque era ela, porque era eu, porque éramos nós.E no álbum de fotos só as tuas fotos ficam penduradasporque a poesia é o rosto bonito que eu nunca tive.

E porque você é menina com uma dor,só desejo um diapara ser teu sorvete napolitano,ser a casquinha crocante que espera pacientemente sua vez.E desejo também desidratar tuas dores com bolacha recheada de chocolatelogo eu que tenho jeito cream cracker de três dias no pote.Guardo em potes todos os recheios das bolachas para você comer depoisem cima das dores que não vão mais te apoquentar.

E se ainda continuar sendo essa menina com uma doreu te deixo com a mania de coçar os olhos toda horaporque toda vez os grãos de areia vão inundar a camae, assim, pareço te ver indo se jogar toda desbaratada no marporque você parece gostar sempre de cantar em silêncio com Iemanjá.

E porque você é uma menina com uma doré que você será a musa de todo o meu cancioneiro popular.

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notas sobre o cemitério do Bonfim

Patrick Arley de Rezende

cidade dos mortos

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O conto “Bobók 1 ”, de Dostoievski, passa-se num cemitério. O protagonista Ivan Ivanitch se afasta da cerimônia fúnebre que acompanhava para um passeio entre os túmulos e de repente começa a escutar vozes. Passado o primeiro estranhamento da personagem, fica-lhe claro que tais vozes são diálogos tão surreais quanto patéticos, travados entre os sepultados, que permanecem conscientes após a morte, ainda que apenas por um período relativamente breve. O objetivo principal de Dostoiévski neste conto era responder, da maneira mais ferina e sarcástica possível, a seus críticos políticos e literários, quando da publicação de “Os Demônios”, seu romance mais polêmico. O inesperado expediente de usar os mortos para satirizar boa parte da inteligenzzia russa da época, reconfigura, de uma maneira pragmática e não religiosa, as ligações possíveis entre os mundos dos vivos e dos mortos. Pois, se como observa a historiadora Marcelina das Graças de Almeida, as reflexões “acerca do espaço que deve ser destinado aos mortos (...) nos permite compreender alguns aspectos desse universo complexo que abrangem as atitudes humanas perante a morte (1998:191)” 2, o caminho oposto me parece igualmente viável, ou seja, a partir do espaço da necrópole, buscar indícios sobre as práticas sociais humanas, as formas de viver numa época e espaço determinados. Partindo dessa hipótese, o objetivo deste trabalho é esboçar algumas relações entre a cidade de Belo Horizonte, quando da época de sua fundação no século XIX e o cemitério Nosso Senhor do Bonfim, o único espaço destinado aos mortos no plano original da cidade.

A história do cemitério do Bonfim, como é popularmente conhecido, se confunde com a própria história de Belo Horizonte. Inaugurado oficialmente em 07/02/1897, – ou seja, alguns meses antes da inauguração oficial da nova

capital mineira – o espaço de mais de 170 mil metros quadrados, localizados numa antiga fazenda outrora chamada “Alto dos Meneses”, foi pensado e planejado paralelamente ao planejamento e construção da própria cidade, como o espaço exclusivo (e, ao mesmo tempo, excluído, já que fora da área delimitada pela Avenida do Contorno) para os mortos da região.

É interessante notar que, ainda que tenha sido o único cemitério previsto no plano original da cidade 3, o Cemitério do Bonfim foi apenas o terceiro lugar destinado a inumações. Antes de sua inauguração, os sepultamentos do Curral Del Rey eram feitos no átrio da Igreja da Boa Viagem. Posteriormente, um cemitério provisório foi criado no centro da cidade, no quarteirão formado pelas ruas Rio de Janeiro, Tamóios, São Paulo e Tupis.

Poder-se-ia dizer que a construção do Bonfim fornece uma série de indícios sobre o processo de consolidação da nova capital. Se por um lado, constrangimentos financeiros atrasaram sua construção 4 (embora inaugurado em 1897, a primeira inumação data de 1895), por outro, a mentalidade essencialmente moderna que motivou a construção de Belo Horizonte como uma cidade planejada – o que inclui, obviamente, a observação de uma série de cuidados sanitários – demandava com urgência um lugar fora dos limites urbanos, mas ao mesmo tempo, executado sob os mesmos padrões.

Cabe notar que o cemitério foi planejado pela mesma comissão de engenheiros (Hermano Zickler, José de Magalhães e Edgard Nascentes Coelho) responsável pela construção da cidade e reproduz, tanto na forma quanto no “conteúdo” a organização prevista para a capital. É formado por 54 quadras separadas por alamedas principais e ruas secundárias, sendo que algumas se destacam pela

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69cidade dos mortosnotas sobre o cemitério do Bonfim

“exclusividade”. A quadra 18, por exemplo, é destinada quase que exclusivamente à inumação de grandes figuras públicas 5. Próxima à praça central do cemitério, reproduz, na necrópole, o espaço administrativo que a Praça da Liberdade representava para a metrópole. Além de políticos, é possível encontrar túmulos de figuras religiosas que atraem fiéis em busca de graças diversas, como Padre Eustáquio, Irmã Benigna e Menina Marlene.

É interessante notar que o cemitério do Bonfim tornou-se, desde o ano de 1895 até 1942 (quando foi inaugurado o Cemitério da Saudade, o segundo da capital, destinado principalmente às famílias de baixa renda), a única necrópole da capital, que recebia corpos de quaisquer pessoas, independente de classe social. O problema imposto aos administradores não era pequeno, já que a maior parte dos habitantes não poderia arcar com as despesas de um sepultamento adequado. A solução encontrada pelo então prefeito Bernardo Monteiro foi um convênio firmado em 1902 com a Santa Casa de Misericórdia.

Segundo Monteiro “os enterramentos dos indigentes, que não são poucos, se fazem, na forma do contrato, gratuitamente, pela Empresa” (1902:157). Mas, se os indigentes não eram poucos, certamente não eram os únicos inumados. Se uma das principais características dos espaços urbanos contemporâneos é a distinção social de classes que se reflete no estilo e materiais utilizados nas construções privadas, particularmente nas moradias, seria óbvio que esta distinção se manifestasse também na “morada definitiva”, ou seja, nos túmulos das famílias mais abastadas. Se a cidade dos mortos, assim como a dos vivos, deveria ser compartilhada entre membros de diferentes classes sociais, o Cemitério do Bonfim

prova, a despeito dos ideais modernos que inspiraram a construção de Belo Horizonte, que os homens não nascem iguais, e definitivamente, não se tornam iguais na morte.

Como observa o historiador Abílio Barreto a respeito do cortejo da jovem Berta De Jaegher, então com 20 anos, primeira pessoa a ser sepultada no Bonfim, “(...) o saimento fúnebre, realizado a pé, conduzindo o corpo da primeira habitante do nosso campo santo, teve grande acompanhamento, pois a família De Jaegher pertencia ao número das mais ilustres de Belo Horizonte. (1995:603).” O luxo e suntuosidade apresentados em boa parte dos túmulos, jazigos e mausoléus das famílias mais abastadas da época contam com verdadeiras obras de arte, esculturas que chegam a cinco metros de altura, feitas em mármore, bronze, granito e outros materiais nobres. Estes contrastam com os túmulos anônimos dos indigentes, feitos apenas de pedra ou concreto, e cujas inscrições desapareceram há décadas.

Culto aos mortos através da arteInstalado num lugar de topografia elevada, com vista panorâmica para a cidade dos vivos, a cidade dos mortos era uma espécie de espelho daquela, refletindo sua dinâmica espacial e social. Curiosamente, quando a cidade dos vivos cresce, incorporando a área originalmente suburbana onde se localiza o cemitério, manter a morte afastada já não era apenas uma preocupação de ordem exclusivamente sanitária. Em meados do século XX, tornou-se necessário entre nós afastar a morte não apenas geograficamente, mas também (e principalmente) emocionalmente.

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70 Revista Mucury

Como bem observa Norbert Elias (2001), em nossas sociedades contemporâneas, a atitude geral em relação à morte é a de um afastamento cada vez maior e mais asséptico dos moribundos e dos mortos para os bastidores da vida social. Segundo Elias, “nunca antes as pessoas morreram tão silenciosa e higienicamente como hoje, e nunca em condições tão propícias à solidão (2001:98)”. Já não se morre em casa, já não se velam os corpos em casa. À medida que a expectativa de vida aumenta em nossas sociedades, a morte é relegada a um corpo técnico profissional cada vez mais especializado, compostos de profissionais de saúde, agentes funerários e outros. A teatralização pública da morte, tal como é representada nos túmulos e mausoléus do cemitério do Bonfim, com suas dramáticas figuras religiosas com expressões que vão desde compaixão até o desespero, desaparece gradualmente ao longo do último século, o que se reflete na discrição e impessoalização dos novos cemitérios-parque surgidos a partir da década de 1950.

O cemitério do Bonfim é o resultado de uma série de tendências esparsas observadas no ocidente no que se refere às práticas mortuárias, e que tiveram seu exemplo mais bem acabado entre meados dos séculos XIX e XX. Em primeiro lugar, algo que hoje nos parece óbvio, mas que esteve ausente durante boa parte da história do ocidente cristão: o túmulo no exato lugar onde o corpo está enterrado. Além disso, outra característica que só aparece no mundo cristão a partir do Renascimento: as lápides com inscrições funerárias. Segundo o historiador Phillippe Ariès, “a inscrição é antes de tudo uma ficha de identidade e uma oração” (1981:232). O epitáfio se compõe basicamente de duas partes: uma, com o nome e data de nascimento e morte do defunto; outra, com alguma oração ou homenagem, ressaltando as qualidades ou realizações da pessoa quando viva, ou simplesmente uma

inscrição ou prece para que a alma seja aceita no paraíso. A localização fora do perímetro urbano (é preciso lembrar que, durante boa parte da história ocidental cristã, os corpos eram inumados em igrejas ou propriedades particulares) e a preocupação com a contaminação associada aos cadáveres data do século XIX. Mas talvez a tendência mais marcante, associada ao romantismo europeu, seja o que Ariès chama de “culto aos mortos”: “o homem do século XIX não suporta o abandono dos mortos como se eles fossem animais; quer meditar no lugar das sepulturas que é preciso, portanto, identificar. (1982:583)”.

Trata-se, por um lado, de tornar os cemitérios um lugar de visitação e exposição; por outro, definir o que há para se expor e/ou visitar. É nesse período que se desenvolve, inicialmente na Europa, uma arte funerária com enorme multiplicidade de estilos. O túmulo não deveria apenas ser visível, mas impressionante, exortar o visitante à reflexão e/ou oração. As famílias mais abastadas construíam jazigos reproduzindo formas de capelas, edifícios públicos ilustres, ou construções clássicas e neoclássicas. Além disso, esculturas de anjos, musas, cristos e santos, em tamanhos e materiais os mais variados. O exemplo mais famoso desse tipo de cemitério é o Pére Lachaise, localizado na França. No caso do cemitério do Bonfim, é possível observar uma profusão de estilos: até a década de 1930, predominam um estilo alegórico, dramático. Nos anos 1950, o concretismo e modernismo. A partir de meados dos anos 1970, o estilo kitsch, com materiais mais baratos e que não fazem referencia direta à morte passa a predominar.

É preciso ressaltar que, se os engenheiros que planejaram o cemitério foram os mesmos responsáveis pela nova capital, o mesmo se dá com os artistas responsáveis por

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71cidade dos mortosnotas sobre o cemitério do Bonfim

decorar os túmulos nas primeiras décadas. Vários deles eram estrangeiros, com rígida formação acadêmica em escolas de renome na Europa, como o austríaco João Amadeu Mucchiut, que estudou em Trieste, na Itália. Segundo Marcelina das Graças de Almeida 6 , Mucchiut realizou vários trabalhos na “cidade dos vivos”, como por exemplo a decoração do altar-mor da Matriz de São José (1929), na fachada da Basílica de Lourdes (1916/22), no prédio dos Correios e no Palacete Borges da Costa (atual Academia Mineira de Letras). Outros artistas de destaque na decoração de prédios públicos, religiosos e particulares em Belo Horizonte, como os Irmãos Natali e João Scuotto, se dedicaram por décadas à arte funerária presente no cemitério do Bonfim.

Recentemente, a prefeitura de Belo Horizonte, junto ao IEPHA, vem catalogando essas obras de arte com o objetivo de tombamento (até hoje, a única parte tombada no cemitério é a capela, restaurada em meados dos anos 1990). Além de seu valor artístico, elas fornecem um precioso testemunho de como vivíamos no passado, e de como lidávamos com a morte. Um tempo em que a morte era pública, o luto era social, e talvez fôssemos menos neuróticos. A inscrição na entrada do cemitério “Morituri mortuis” significa em latim “os que vão morrer aos mortos”, ou seja, os que vão morrer homenageiam os mortos, ou falam aos mortos. Nossa postura atual, de silêncio e discrição, é bastante distinta. Como observa Ariès, esta atitude asséptica e recalcada

“não aniquilou a morte, nem o medo dela. Pelo contrário, ela deixou retornarem sorrateiramente as velhas selvagerias, sob a mármara da técnica médica. A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar uma imagem popular mais terrifica que o esqueleto das retóricas macabras. É que surge uma correlação entre a ‘evacuação’ da morte, último reduto

do Mal, e o retorno dessa mesma morte, tornada selvagem. (...) A crença do Mal era necessária para domar a morte. A supressão da primeira levou a segunda ao estado selvagem (1982:670).”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS - ALMEIDA, Marcelina das Graças. “O Espaço da Morte na Capital Mineira”. In: Revista de História regional 3(2) 187-191, inverno 1998;

- ARIÈS, Phillippe. “O Homem Diante da Morte VOL. 1”. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981;

- ARIÈS, Phillippe. “O Homem Diante da Morte VOL. 2”. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982;

- BARRETO, Abílio. “Belo Horizonte – Memória, Histórica e Descritiva”. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos históricos e Culturais, 1995;

- BEZERRA, Paulo. “Dostoiévski: Bobók – Tradução e análise do conto”. São Paulo: Ed. 34, 2005;

- ELIAS, Norbert. “A Solidão dos Moribundos, seguido de ‘Sobre a morte e o Morrer”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001

- MONTEIRO, Bernardo Pinto. “Relatório Apresentado ao Conselho Deliberativo – 12/09/1899 -31/10/1902”. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 19026

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um olhar cultural

Maurício Caleiro

introspecção e mineiridade:

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“Cinema é cachoeira” (Humberto Mauro)

Em um dos mais preciosos livros sobre cinema brasileiro, Paulo Emílio Salles Gomes chama o autor da frase acima, não sem uma pequena dose de ironia, de “nosso Griffith”, por ser Mauro possivelmente o primeiro cineasta nativo a sistematizar de forma abrangente a linguagem cinematográfica clássica – a exemplo do que fizera o referido cineasta norte-americano no início do século XX -, dotando-a talvez de uma pitada de brasilidade. Escrito em um texto vivaz, elegante e fluente e com uma original metodologia de análise de filmes – reconhecida internacionalmente por críticos do porte de um Paul Willemen –, Humberto Mauro,Cataguases, Cinearte (Perspectiva, 1974) proporciona, na transição dos anos 60 para os 70, um mergulho no universo mineiro de Mauro, buscando recriar a atmosfera em que foram precariamente produzidos, quatro décadas antes, os filmes que o “nosso Griffith” dirigira antes de deixar sua cidade natal rumo ao Rio de Janeiro, então capital federal. De alguns dos filmes da fase Cataguases restara pouco mais do que o roteiro, anotações, eventualmente uma ou outra foto – o que impinge ao autor do livro um trabalho de antropólogo cultural.

Nesse percurso, Paulo Emílio não apenas escava, faz aflorar e recria um cenário crível de um passado – sentimental, entre o rural e o urbano, tecnológico - como é tomado de uma espécie de nostalgia em relação a este – aí incluída uma paixão platônica por Eva Nil, que fora a mocinha de alguns dos filmes da fase Cataguases e, quando da visita do pesquisador uspiano, era uma austera senhora em que, segundo ele, ainda se adivinhavam traços da beleza de outrora.

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75introspecção e mineiridade:um olhar cultural

GenealogiasEssa introspecção a qual o paulistano Paulo Emílio, em suas andanças pela Zona da Mata mineira, acaba por também envolver a nós, leitores, tem sido historicamente concebida, justa ou injustamente, de forma estereotipada ou não, como elogio, constatação ou detratação, como um dos traços distintivos da mineiridade.

Como tal ela pode ser encontrada já nos relatos dos primeiros viajantes, notadamente nas missões artísticas européias da época colonial, os quais, fiéis ao determinismo vigente, enxergam nos amplos espaços cercados pelas verdes cadeias montanhosas do estado não só um condicionante natural à fixação e à contemplação, mas – e talvez de forma ainda mais efetiva – uma alusão metafórica a um estado de espírito que seria da natureza e do homem da região.

Mas sua tematização, de forma aberta, no âmbito da cultura brasileira, se instaura de forma mais intensa – e torta, sob o signo da negatividade - a partir de um manifesto assinado por ninguém menos que Vinicius de Moraes, quando o “poetinha” tinha pouco mais de 30 anos. Seu título, no entanto, não combina nem com poesia nem com os diminutivos tão ao gosto do que viria a ser o grande letrista da bossa nova, e é um preâmbulo do tom que domina o texto: “Manifesto contra os mineiros”.

Nas palavras de um dos biógrafos de Vinicius – o também mineiro José Castello-, “O poeta se opõe, com veemência, ao ‘olhar para dentro’ que caracterizaria, segundo ele, a escrita mineira. Discute a opção dos

Eva Nil

foto retirada de:http://cataguasesarte.blogspot.com/2009/10/sala-eva-nil-centro-cultural-eva-nil.html

mineiros pela introspecção [olha ela aí de novo] e faz uma defesa apaixonada da literatura mais engajada no real e mais extrovertida (...)”:

“Maior que vós mesmos é a humanidade que vos circunda; maior que vossa casa é o mundo; maior que vossos casos particulares, vossos segredos, vossa contida existência doméstica, é a miséria, a grandeza, a indiscrição, a sordidez do mundo”, ataca Vinicius.

A reação, como seria de se esperar, foi avassaladora. Uma tonelada de cartas, muitas delas anônimas, não poucas elogiando a mãe de Vinicius, chegaram à redação de O Jornal, periódico em que o poeta era colunista. O mundo das letras mineiro agitou-se, as armas da retórica à mão. Houve até quem sugerisse atacar as vidraças da casa do poeta com pães-de-queijo amanhecidos.

Para além das montanhasCuriosamente, a defesa veio de onde menos se esperava: Fernando Sabino – o quarto mosqueteiro da modernidade literária de Minas, ao lado de Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino -, que mais para preservar seu amigo poeta, do que por convicção e fidelidade às ideias deste, pôs panos quentes e chamou os escritores conterrâneos à reflexão. Talvez houvesse mesmo um excesso de introspecção e autocentrismo na produção contemporânea mineira, sustentou, procurando evidenciar, mineiramente, que a crítica de Vinicius, a despeito da generalização infeliz, se circunscrevia a certa produção literária, despreocupada de questões sociais e de tendências psicologizantes.

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O próprio Sabino, anos depois, seria o principal renovador literário na forma de expressar tais tendências introspectivas e as, digamos, reflexões existencialistas que supostamente caracterizariam a alma artística mineira: seu Encontro Marcado, publicado em 1956. Este, não só trouxe uma lufada de ar fresco à literatura brasileira, com seu estilo telegráfico porém intenso – que, como observou o poeta, cronista (e personagem do livro) Paulo Mendes Campos, “acelerava o tempo” -, mas, ao reconstituir através do alter ego Eduardo Marciano suas próprias reminiscências afetivo-existenciais, traçou, a um tempo, um retrato da juventude de meio-de-século e um rico mosaico das referências culturais de uma das últimas gerações artísticas brasileiras com formação predominantemente literária.

O romance divide-se em duas partes (sendo que não poucos críticos – entre os quais me incluo – consideram a primeira muito superior à segunda), a infância e juventude de Marciano na Belo Horizonte de meados do século sendo o tema da primeira metade e a vida boêmia, vazia e de crise conjugal no Rio de Janeiro complementando o livro.

Legado híbridoTrata-se de uma divisão que reflete um fluxo migratório recorrente de setores da inteligência brasileira. Pois a geração de Sabino e sua trupe marca uma espécie de ponto culminante de um fenômeno migratório-cultural que tensiona ao máximo a questão da suposta introspecção mineira, contrapondo-a ao locus mítico da descontração e da extrospecção nacionais que o Rio de Janeiro representa. Com efeito, para além da negociação

entre a preservação dos supostos traços do lugar de origem e a influência do novo meio, comum à condição de migrado, e de um repertório de estereótipos cômicos dicotômicos proporcionado por esta - o qual servirá a comédias do cinema brasileiro, à literatura e à oralidade popular na forma de piadas -, a presença mineira no Rio de Janeiro acabou por imprimir, a um tempo, uma marca de estilo e um salto qualitativo na literatura e no jornalismo nacionais, das veredas linguísticas de Guimarães Rosa à memorialística de Pedro Nava; da renovação da crônica brasileira nos anos 50 ao humor subversivo d’O Pasquim de Ziraldo, Henfil & cia.

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A produção literária do país nos deve obras que examinem os frutos dessa migração regional de forma condizente, com um espírito investigativo que transcenda a atenção ao literário e ao jornalístico e abra generosamente os olhos para questões como a boemia carioca, o furor dos amores - Drummond trocando sopapos com Sérgio Buarque de Hollanda por conta de uma certa dama; Tom Jobim compondo Lígia em homenagem à esposa de Sabino -, a fossa existencial produzindo a bílis negra inspiradora dos cânticos e poemas a la Rimbaud.

Questões em abertoA despeito de tal lacuna literária, é certo que essa inflexão além-montanhas da questão da introspecção como traço da mineiridade renova e problematiza o tema. Pois há, decerto, elementos da vida em Minas que a princípio desmentem a hipótese da introspecção, Por exemplo: a disseminação do verbo botecar (que para azar dos dicionários ainda não está dicionarizada), corrente em Minas, como alusão a um ato coletivo de confraternização social - e etílica - que aparentemente contradiz o “alheamento do que na vida é porosidade e comunicação” de que nos fala Drummond.

Mas será que contradiz mesmo, e a ponto de desautorizar, o caráter introspectivo da mineiridade? Ou permaneceria, latente, mesmo no humor de praxe como nas discussões acaloradas dos botecos, um certo regime discursivo, um determinado jogo de mais ocultar do que dizer, um “nunca dizer tudo mas de forma a deixar tudo dito” tão pleno de epifania o qual acaba, muitas vezes, por ser mais explícito do que, digamos, o sarcasmo explícito ou a argumentação cartesiana? Quem sabe, se confirmada, a introspecção mineira, ao ocultar e embaralhar desejos e realizações, não venha a se constituir como uma exceção e um antídoto à era da hiperexposição da vida pessoal, identificada por Vladimir Safatle como a da sociedade da insatisfação administrada, na qual a recompensa egóica é tão fugaz que, mal realizado um desejo, outro imediatamente é reposto, e assim sucessivamente?

Trata-se, muito provavelmente, de questões irrespondíveis, imersas nos segredos de um lugar “onde o oculto do mistério se perdeu”, como assevera um compositor baiano – condição que acaba por remeter a outro dos fluxos migratórios externos do estado, do qual Ary Barroso, baiano de Ubá (MG), é o protagonista inconteste, mas de modo algum o único. Minas são muitas.

Estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade, em um banco da praia de Copacabana

foto retirada de:http://oalteregodefabiana.blogspot.com/2010/02/poema-de-sete-faces.html

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“de saudosa memória”

Igor Sorel Tavares

Milton Ribeiro Tavares,

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Caros leitores, este é um texto de um grande amigo, Igor Sorel, reverenciando seu pai, o famigerado Milton Bororó.

Este texto, por sua vez deverá ser o primeiro de uma série, já que a vida deste ilustre personagem mucuryano foi curta, mas intensa. E os causos são por demais infini-tos, com toda a carga pleonásmica da afirmativa.

Aproveitem a leitura, mas cuidado com os palavrões!

Avisamos. E se alguém reclamar, não iremos ouvir.

Até o próximo capítulo da vida de Milton Bororó.

“Nasci no Condeúba, na Bahia, no dia 28 de janeiro de 1929, na zona, ou melhor, na Rua da Raposa, lugar onde o mulherio de vida fácil trabalhava, fácil uma porra! Nasci bolota, ou “Bolota de Sabão” como era chamado por minha tia Naninha, que suicidou por amor.

Sou filho de Amadeu e Santinha, ele um galã metido a intelectualizado oriundo de Jacobina, no recôncavo baiano, ela uma senhorinha escravista, dos “Olhos D’água”, fazenda do meu avô Exupério (Papai), região rural de Condeúba, condição essa escravista que carreguei por toda minha vida, principalmente quando estava de porre, o que não era difícil, me gabar de quando minha vó Dulcina (Mamãe) nasceu tinha 76 escravos, ou as atrocidades que eram feitas com eles, como aquela onde um escravo, do meu avô Crispim, que não conseguia mais andar foi adaptado para ser burro de carga, andando de quatros carregando dois balaios cheios de pedras para a construção de uma igreja; na verdade a minha condição de escravista era só da boca para fora, sou humanista, intelectual, cachaceiro, sirvo ao próximo sem essa viadagem de igreja, sou amigo de São Francisco, não tenho esta frescura de arrependimento, depressão, e penso rápido, bebo rápido, como rápido, fodo rápido, e, morri rápido.”

Esta é a biografia do meu pai, rápida. No entanto no decorrer da sua vida temos muitos casos ou causos para contar sobre ele, situações que vivemos, presenciamos ou nos foram contadas, umas folclóricas, outras hilariantes.

Uma vez, quando fizemos uma viagem ao Condeúba, ele nos levou ao cemitério local, nos conduzindo até uma sepultura onde dizia que deveríamos rezar agradecendo, Bruno Dias Bento

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pois aquele homem que ali estava enterrado, o Coronel Diacírzio, seria o responsável por estarmos vivendo uma condição de vida melhor que aquela que vimos Sergino e família lá nos Olhos D’água, fazenda dos seus avós, ou seja, em situação de miséria. Uma desavença familiar entre o Coronel Diacírzio e o Capitão Exupério, fez com que os Ribeiros se migrassem para a “Vigia” no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais. A Vigia foi passageira, e já no ano de 1934, acompanhando o Velho Helvécio a ribeirada toda mudou-se para Urucu.

Foi em Urucu que Milton começou as suas malinagens, na escola da professora “Dona Iolanda”, quando usava um só pé de sapato e o seu irmão Almir o outro, foi pego colocando um espelho no pé entre as pernas da mestra para observar a fruta e palavra que ele mais gostava: buceta. Não deu outra, porradas da Santinha e suspensão na escola.

No ano de 1941, meu pai deixa a cidade de Carlos Chagas (antiga Urucu), e vai estudar em Teófilo Otoni, no Ginásio Mineiro. Entrou para a história sem saber, uma vez que participou da depredação da igrejinha luterana, localizada ao lado do Ginásio, incitado por um médico professor, destruindo assim quase noventa anos de arquivos históricos da colonização alemã em Teófilo Otoni, esse fato ocorreu no ano de 1942.

Do Ginásio Mineiro, Milton foi estudar como aluno interno no Colégio São José onde deixou marcas:

“certa vez, Luiz Caveira, Nego Gentil, eu e outros, saímos do internato para “pegar” laranjas numa chácara lá no

Bairro Concórdia. Ia indo tudo bem até que o dono apareceu e soltou os cachorros, foi aquela correria geral. Quando passamos pela cerca de arame farpado Luiz Caveira gritou falando que tinha perdido o olho, Nego Gentil que vinha logo atrás o recolheu. Lá na frente quando paramos para ver a condição em que estava o olho de Luiz Caveira, constatamos que tudo estava normal, tinha apenas um arranhão e na mão do Nego Gentil uma laranja podre.”

De Teófilo Otoni, Milton seguiu viagem para a vida, mudando-se para Juiz de Fora para estudar no Colégio Grâmbery, de onde foi expulso devido a sua boa conduta e disciplina. Continuou o seu caminho indo parar em Belo Horizonte estudar no Colégio Afonso Arinos, o “Fonfon”. Onde deixou como sempre sua marca de aluno disciplinado e exemplar. Terminado o terceiro ano científico, não queria mais estudar, no entanto “alguém”, ou forças ocultas (Pedro e Almir) o fizeram fazer o vestibular, quando mesmo sem convicção entrou para Universidade Federal de Minas Gerais no curso de Farmácia, acabando com as suas férias em Carlos Chagas.

É interessante observar que desde quando migrou do Ginásio Mineiro para o Colégio São José, Milton só estudou em escolas particulares, uma contradição daquilo que pregava quando dizia que só era “doutor” aquele que tivesse estudado e formado pela UFMG, como aconteceu com ele, que ali concluiu o seu curso como Farmacêutico.

Em Belo Horizonte, Milton casou com “Góia”, vocábulo que entrou na sua vida como um dos mais pronunciados, só comparável a buceta ou outras palavras proibidas

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para menores de oitenta anos, acompanhados pelo responsável.

Retornou a Carlos Chagas em 1954, com Góia já grávida, indo morar na Toca do Lobo, nas barrancas do Rio Mucuri. Para sobreviver, abriu a Farmácia São Sebastião, ao lado da Casa Condeúba, de Amadeu e Santinha, e passa a lecionar no Ginásio Santa Marta.

A farmácia ia indo muito bem, obrigado; quanto ao faturamento não se pode dizer o mesmo, ia de mal a pior. Os pobres não pagavam porque não tinham dinheiro, os ricos porque eram “amigos” ou velhacos. Para vingar dos velhacos amigos, Milton anotava as suas contas na página 24, uma alusão ao “veado”, uma vingança íntima.

No final do ano de 1959, deixa de dar aulas, vende a farmácia para “Magarefe”, cujo nome era Álvaro, e muda para a roça de Amadeu com Góia e os meninos: Nanayoski, Igor, Carlota, Maria Ignês e Pedro Exupério.

É o início de uma nova vida aventureira e irresponsável, uma vez que a casa que foi morar estava em ruínas, não possuía banheiro ou outro conforto, mesmo para a época. Milton se transforma, de cidadão urbano passa a camponês, um roçaliano, comparável como ele mesmo gostava de dizer, ao Levin, personagem do romance de Leon Tolstoi, no livro Anna Karennina.

Conhece Sebastião Pela Ovo, um caipira malandro de uma preguiça, só comparada ao Jeca Tatu; Sebastião mata Balô e foi acobertado por Milton que sabia onde ele estava escondido na mata, mandava a ele comida até que

as ciosas se acalmassem. De Sebastião Pela Ovo pegou o gosto pela poesia espontânea, tirada não sei de onde:

“Pela Ovo tinha um jeito especial de envolver, enrolar a todos; um grande contador de casos, poeta de primeira hora: ‘onde o pato mete o bico, o cavalo churumela enfia tudo quanto é desgraça no cu dessa misera... Água cristalina vinda do centro da terra quem me dera estar no meio de suas pernas; Bocage cê fala baixo que minha mãe já ouviu, se quiser dizer seus versos vai a puta que pariu; a puta que me pariu era uma moça donzela eu quero fazer nocê o que meu pai fez nela... Xícara sem pires é louça, caco de vidro é espelho, escova de buceta é pica, barba de saco é pentelho...’ Esse é um pedaçinho de Sebastião Pela Ovo, um poeta mau caráter! Mais adiante, seguindo minha trajetória na roça arrumei outros parceiros de toda vida: Peri, meu cachorro, e Liberty, o cavalo. Juntos vivemos muitos anos de companheiragem na Fazenda São João, com Berilo, filho de Dona Jacinta, irmão de Alcides e Paulinão, fomos zuando nas festas da roça. Liberty pedia uma pinga batendo as patas e quando Bila dizia que não tinha, Peri entrava em cena e a pinga aparecia na hora, para satisfazer o nosso ego.

A vida na roça foi dura, de uma casa em ruínas na minha chegada, construí um ambiente civilizado, casa nova – 1963 –, a estrada BR- Cacete, um grande pomar, curral, comprei um Jeep (o Possante) e, o mais importante que foi dar condições de alfabetizar os meus filhos. Havia construído a minha Iasnáia Poliana, terra onde nasceu o Leon Tolstoi.

Tenho muitos casos que vivi, uns verdadeiros, outros folclóricos, no entanto, gosto de me lembrar da história do Petisco. Era filho de Otaviano, dono da venda lá na estrada

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da Vila Pereira, tinha uma noiva no Espírito Santo e toda vez que o encontrava perguntava: Petisco você já comeu sua noiva? A resposta sempre era a mesma, ‘Seu Milton, eu sou um rapaz sério, respeitador’. Foram meses repetindo a mesma pergunta, até que um dia quando o indaguei, respondeu-me todo sem graça: ‘Seu Milton, nós acabou’. Inconveniente perguntei: Petisco, comeram sua noiva? Afirmativo. Traçaram a noiva do Petisco, e não foi falta de aviso não, sempre dizia, Petisco come sua noiva, pois se não o fizer alguém fará por você, não deu outra.”

Milton Bororó, Besourinho, ou outros apelidos que teve ao longo da vida, foi compatível com a sua obsessão de denominar os demais com outros nomes, na maioria das vezes pejorativos. Os filhos eram: Bocage (Nanayoski), Quinca Berro D’água (Igor), Velha Matila (Carlota), Zuina Cabelão (Maria Ignêz) e Galo Velho (Pedro Exupério), Góia era Barriguinha. Todos para ele tinham outro nome, como “Jacinto Peba”, “Mata Onça”, “João Marimbondo”, “Osvaldo Pau Descascado” e “Maria Descasca Pau”, o compadre “Couro de Pica” – que não ficava em nenhum lugar; “Nego Sulino”, “Zé Preguiça” – que nunca foi preguiçoso, “Pé de Cana” – que não era alcoólatra,” Navalha”, “Come Gostoso” – aglomerado rural de pequenos proprietários próximos à Iasnaia Poliana, “Gilda Preta”, “Manoel Preto” (onde demonstra a sua herança racista), “Zé Vermei”,” Neta Porca”, “Marcha Lenta”, “Espinho de Buceta” – aquele que conseguia estragar até o prazer da melhor fruta, “Cuiabano”, “Rolinha”,” Porca Russa” e certamente “Manel”, seu primeiro neto que não conheceu.

Quando os filhos começam a estudar, Milton tentou compatibilizar a vida rural com a urbana, voltou a

lecionar, retornaou com Góia e filhos para a Toca do Lobo, agora eram duas casas, uma na roça e outra na cidade. Esse período foi curto, precisava de escola para os filhos mais velhos, mudou-se para Teófilo Otoni, uma exigência de Góia, onde comprou uma farmácia em sociedade com Lucio Buceta e voltou a dar aulas. Esse tempo em Teófilo Otoni também foi curto (aliás, como tudo em sua vida), os filhos foram estudar fora e Milton voltou para a Iasnaia Poliana.

Ali viveu os melhores momentos da sua vida, já amadurecido, pode curtir os primeiros netos, dando-os todos os dengos de um bom avô. Morreu precocemente, mas valeu ter Milton Ribeiro Tavares como pai.

Teófilo Otoni, junho de 2009.

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O Marx Patriarca

DataSegunda metade da primeira década do século XX

Procedência Coleção de Maria de Lourdes Maia Kalil

Dados HistóricosFriedrich Marx era imigrante de Zwickau, Saxônia, alfaiate em sua pátria, chegando ao Brasil, em São José do Porto Alegre, hoje Mucuri-BA, no ano de 1868, com sua mulher Augusta Keller, uma filha dela, Lina Marta, posteriormente Lina Marta Sander, e um filho do casal, Johann Friedrich Marx. Do primeiro casamento teve seis filhos: Johann, Bruno, Hermann, Oscar, August, e Ethelvine. Casou-se pela segunda vez em 1884 com Johanna Theresia Anna Hollerbach, com quem teve outros seis filhos: Arnuf, Cícero, Carlos, Helena Erna e Hélia. Ele morreu em 1917 aos 79 anos.

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Mulheres das Famílias Sander e Marx

DataAno de 1922

Procedência Coleção de Maria de Lourdes Maia Kalil

Dados HistóricosMulheres: em pé, à esquerda, Julita Sander, filha de Roberto Sander e Lina Marta (Keller) Sander. À direita, Ethelvine Augusta Marx, filha do primeiro casamento de Friedrich Marx e Clythia Marx Pereira, filha de Ethelvine Augusta Marx.

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Cinco Gerações da Família Marx

DataInício dos anos 30, do século XX

Procedência Coleção de João Cannizza

Dados HistóricosCinco Gerações da Família Hollerbach. Assentadas: Marie Lindner, viúva do pastor Hollerbach, tendo no colo sua tetraneta, Marie Marx Acher, ao seu lado, Anna Hollerbach Marx, filha de Marie Lindner, segunda esposa de Friedrich Marx. Em pé: Eny Marx Acher e Alice Marx, viúva de Arnuf Marx.

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Laura e Antônio Onofre

DataPrimeira década do século XX

Procedência Coleção de Mércia Leal

Dados HistóricosLaura e Antonio Onofre. Ele foi prefeito da cidade na época denominado de Presidente do Município, no ano de 1890.

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Pastor Hollerbach e esposa

DataAnos 80, do século XIX

Procedência Coleção de Maria de Lourdes Maia Kalil

Dados HistóricosJohann Leonhardt Hollerbach ao lado de sua mulher, Anna Marie Lindner, com quem se casou nesta cidade, em 7 de Janeiro de 1864 tendo nove filhos: Joanna Therésia Anna Hollerbach, (esposa de Friedrich Marx no seu segundo casamento), Johnna Marie, (casada com Johann Marx), Samuel Hollerbach, Friedrich Hollerbach, (casado com Maria Sedlmayer), Paulina Erice, (casada com Bruno Marx), Clara e Albert Hollerbach solteiros, Johann Hollerbach, (casado com Augusta Newmann e Henrich Hollerbach casado com Mina Newmann. O pastor Hollerbach faleceu no dia 10 de julho de 1899.

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Casamento de Francisco Esperança

DataAnos 30, do século XX

Procedência Coleção de Maria da Gloria Miguez Nick

Dados HistóricosCasamento de Francisco Esperança: Comerciante pedrista de origem italiana, em pose para fotografia com pessoas de sua intimidade. Assentados: Ethelvine Marx Pereira, Hanny Zimmer, Rita Macerano, Sra. E Sr. Francisco Esperança, Elizabeth Zimmer e Gizela Zimmer. Em pé: Ida Hoffmann da Luz, Joel de Souza ( o primeiro homem), Macerano ( o segundo homem) e Sra. e Sr. Augusto Zimmer.

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Filhos de Antônio Correia Marques

DataFinal dos anos 40, do século XX

Procedência Coleção de João Cannizza

Dados HistóricosFilhos de Antônio Correia Marques, imigrante português do início do século XX, e Olga Prates Correia. Armando, Francisco (Chiquito), Diva, Nelson e Norton Correia Marques.

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Membros da Família EL Aouar

DataMeados dos anos 40, do século XX

Procedência Coleção de João Cannizza

Dados HistóricosReunião de homens da família identificados como: em pé, Rachid Mahmud Salmen El Aouar, Munir Hamad Kassim El Aouar, Aédil Hossaim El Aouar, Sagih El Aouar, Semir Hossaim El Aouar, Rachid Feres El Aouar, Magid Salim El Aouar, Salim Ali El Aouar, Salim Nacif El Aouar, Ali Salmen El Aouar e Aref Magid El Aouar. Assentados: Nagib Mamad Borsain El Aouar, Amin Assad El Aouar, Rachid El Aouar, Hossain Ali El Aouar, Alichaim El Aouar, Mahmud Salmen El Aouar, Jossef Safra El Aouar, Mohamed Chaim El Aouar, Magid Assad El Aouar, Amin Hossaim El Aouar, Feres Jossef El Aouar e Fuad Mahmud Salmen El Aouar.

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Mariana Oliveira e Souza

noções maleáveis sobre o sertão

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102 Revista Mucury

Nesta breve comunicação, proponho apresentar uma parte da minha monografia de final de curso, defendida no final do ano passado 1. Poucas das idéias ainda tiveram tempo de serem amadurecidas. Proponho discutir alguns elementos que permearam a construção dos significados do sertão no caso brasileiro, principalmente no século XIX. Para tanto, recorro tanto a autores preocupados em discutir o sertão do ponto de vista histórico, mas também faço aproximações com noções antropológicaspara ilustrar a complexidade das suas transformações e significados nesse período. O ímpeto de ocupar os espaços nos moldes “civilizados” criou uma situação de encontro colonial nos sertões, como no caso do Mucuri, situado em Minas Gerais. Partindo dessa noção, o processo que estava em questão era o da transformação de um “espaço liso” em um “espaço estriado” 2, o que se daria a partir da homogeneização de identidades e de signos de percepção do espaço, que passavam a se relacionar ao progresso.

Inicialmente, ao se pensar no sertão, a imagem que me vêm é justamente a da sua multiplicidade de conteúdos e sentidos. O sertão é povoado de significados. É sertão, são sertões. É particular e geral. Pode ser um espaço, tempo ou imaginação. É um modo de viver, um estado ou alteração. É passado e presente, e é tempo nenhum, espaço nenhum.

Historicamente, é possível notar diferentes construções acerca de seu conteúdo. Quando observamos o sentido que o termo sertão possuía no imaginário português antes da chegada ao Brasil, abundam-se imagens relacionadas ao desconhecido e ao longínquo. Até o

séc. XVI e, talvez até um pouco antes, a palavra era empregada para fazer referência aos locais interioranos de Portugal, distantes de Lisboa. A partir do séc. XV, o termo passa a denotar espaços recém-conquistados pelosportugueses (Amado, 1995:5). Ao longo do processo de colonização no Brasil, o termo sertão foi comum para fazer referência a terras interiores “sem fé e sem lei”.Podia significar também o espaço da criação do gado e dos achados auríferos, sendo associado, portanto, à prosperidade e mudança.

Para se entender o uso no caso brasileiro, Amado (1995:6) sugere que a costa (ou litoral) e o sertão foram noções empregadas em oposição e complementaridade. A costa apropriava algumas características para definir sua identidade como lócus da civilização, cultura, cristandade, do controle e da autoridade. Nesse sentido, o sertão, como espaço das faltas para os habitantes das cidades, construía a própria noção de civilização. Sobre o sertão, faltava conhecimento dos grupos que lá habitavam, assim como as instâncias civilizadoras, a Igreja e o Estado, não se faziam sentir. O excesso que lá se via era o da “barbárie”, de índios bravos, canibais e ferozes. Sobravam ainda vadios, escravos fugidos e seres indomáveis (Oliveira, 1998).

Se nessas visões notamos a construção de uma oposição entre esses dois espaços, ao notar a delimitação geográfica entre um e outro, o que vejo é a maleabilidade das fronteiras. Para o habitante da costa, o sertão estava cada vez mais no interior e, para o colono do interior, o sertão era ainda mais longe. Como se trata de uma questão de referencial, o sertão diz respeito ao espaço

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do outro e, ao mesmo tempo, constrói a identidade do que não se julga nesse espaço. É o espaço do “próprio eu invertido, deformado, estilhaçado” (Amado, 1995:7). Deleuze e Guattari (1995), ao fazer referência ao deserto, à estepe, ao gelo ou ao mar, espaços lisos na visão dos autores, a questão da alteridade e do referencial também é abordada: “não se enxerga o deserto de longe, nunca se está “diante” dele, e tampouco se está “dentro” dele (está-se “nele”...)” (Deleuze; Guattari, vol.5, 1995:204) e parece lembrar o nosso sertão.

Além de pensado como espaço da alteridade, esse “Ser-TÃO”, como nos mostra Guimarães Rosa, pode ser visto como uma dessas categorias “boas para se pensar”, parafraseando Lévi-Strauss. Está em todo lugar, dentro de nós e não tem fim (Guimarães Rosa, J. 1988). Antes de pensar no sertão como um espaço geográfico, o sertão de Guimarães Rosa parece simbolizar todo o universo. É um sertão-mundo.Poderia ser um sertão da imaginação, sem conteúdos construídos por oposição. Apenas o é. E é um não-lugar. Ao pensar no não-lugar, o antropólogo Augé o contrapõe à noção sociológica de lugar conceituada por Mauss (apud Augé, 1994) que considera a cultura como algo situado no tempo e no espaço. Os lugares produzidos na supermodernidade, como sugere Augé, assim como o sertão a meu ver, não apresentam dimensões exatas e se vive “num mundo que ainda não aprendemos olhar” (Augé, 1994:37-38). Ainda que a ênfase do autor para o conceito de não-lugar seja a supermodernidade, acredito que exista certa analogia com a noção de sertão que quero definir: Vê-se bem que por ‘não-lugar’ designamos duas realidades complementares, porém distintas: espaços constituídos em relação a certos fins (transporte, transito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços (Augé, 1994:87). Se me

pautasse por essa definição, o sertão poderia ser um espaço que não aprendemos a pensar.

O sertão é um conceito povoado de imagens dinâmicas e flutuantes, mas que recorrem também à ordem da permanência. Como nos ensina o historiador F. Braudel(1988), três elementos são importantes na análise histórica: o evento, a conjuntura e a estrutura. A cada uma corresponde uma duração, sendo a do evento, a curta; a da conjuntura, a média; e a da estrutura, a longa. A estrutura implica em mudanças lentas, em uma história quase imóvel. Talvez, ao nos depararmos com o sertão, percebêssemos algo como a longa duração, o que não implica dizer que é um espaço estático.

A antropologia, ao pensar as sociedades ditas primitivas, também se defrontou com o tempo das mudanças e espaços de longa duração, o que aparentemente indicava que essas sociedades não tinham história. Sobre isso, Lévi-Strauss (1980), em Raça e História, percebe a presença de duas historicidades. Primeiro, a das “sociedades quentes”: a da história acumulativa, progressiva e aquisitiva; e segundo, a das “sociedades frias”, que são igualmente ativas e talentosas, mas que faltam o “dom sintético”, que é privilégio da primeira (Lévi-Strauss, 1980:59). Ao dizer progresso, Lévi-Strauss não fazia menção a uma linha gradual e ascendente, como afirmavam os evolucionistas, e sim, em um aspecto valorizado pelos ocidentais.

A história acumulativa, dessa maneira, pode ser vista em uma cultura que se desenvolve de maneira análoga à nossa, enquanto, no que diz respeito à história

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estacionária, sua linha de desenvolvimento nos parece menos inteligível, não sendo mensurável pelo critério que usamos para perceber as mudanças e os eventos (Lévi-Strauss, 1980:65). Como sugere o autor na passagem abaixo:

“Todas as vezes que somos levados a qualificar uma cultura humana de inerte ou de estacionária, devemos, pois, perguntarmo-nos se esse imobilismo aparente não resulta de nossa ignorância sobre os verdadeiros interesses, conscientes e inconscientes, e se, tendo critérios diferentes dos nossos, esta cultura não é, em relação a nós, vítima da mesma ilusão. Ou melhor, apareceríamos um ao outro como desprovidos de interesse, muito porque não nós parecíamos” (Lévi-Strauss, 1980:67).

O sertão, se nos apropriássemos da noção de Lévi-Strauss, poderia ser visto como um espaço “frio”, onde habitam grupos que atuam com uma lógica diversa da sociedade “quente”, associada às cidades brasileiras. O sertão, dessa maneira, apresentaria uma historicidade e temporalidade diferente da costa. Porém, considerar a divisão de Lévi-Strauss parece reduzir o sertão apenas a um modo de vida, enquanto parece ser justamente o oposto, um espaço tecido a partir da diferença e do heterogêneo.

Por outro lado, a percepção de Lévi-Strauss sobre pensamento primitivo parece ir de encontro à noção de sertão que pretendo mostrar. De acordo com a visão dosocidentais, a ânsia por um conhecimento objetivo é um dos aspectos negligenciados no pensamento dos povos primitivos. No entanto, Lévi-Strauss reconhece que asformas de classificação primitivas são dotadas de saber

e de reflexão e, portanto, também apresentam o espírito de ordenação do mundo. Dessa maneira, a lógica do pensamento selvagem é afetiva e intelectual, na qual o saber sensível não é incompatível com o conhecimento. (Lévi-Strauss, 2004:62). Assim, além da diferença entre a maneira de perceber a história, as sociedades “frias” e “quentes” apresentam formas diferentes de pensamento e, estendendo essas noções para o sertão, poderíamos pensá-lo como o espaço onde predomina uma lógica afetiva.

Expandindo um pouco desse diálogo entre a antropologia e a história, talvez as noções de Sahlins (1990) e Overing (1995) também forneçam elementos para se pensar o sertão. Overing (1995), para analisar essa questão da temporalidade e da historicidade no estudo das sociedades ameríndias, sugere que estas não são indiferentes à história e que realizam sofisticadas representações sobre a realidade. Nesse sentido, a noção de uma temporalidade unitária que constrói o pensamento filosófico ocidental partiria de um postulado que a autora considera inadequado. Pensar que uma sociedade é provida ou desprovida de história só depende do conceito de história que se tem em mente (Overing, 1995). Ao analisar a noção de Lévi-Strauss, a autora sugere a presença de uma combinação entre o tempo mítico e o tempo presente, que acaba por construir um regime atemporal, numa relação em que a história se subordina à estrutura. Nesse sentido, Overing considera queatemporalidade mostrada por Lévi-Strauss promove a eliminação da história. Essas noções, presentes em Sahlins (1990), implicam em considerar que culturas diferentes levam à historicidades diferentes e a cada

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uma corresponde uma noção de tempo específico. Ao tentar relacionar evento e estrutura e perceber como as mudanças se processam, Sahlins vê na estrutura não apenas o estático. Em alguns eventos, os nativos buscam a inteligibilidade através do diálogo com estruturas anteriores, o que cria novos esquemas de significação. A história e a cultura interagem, sendo tanto a história ordenada culturalmente, como a cultura historicamente produzida pela ação. Assim, cada sociedade apresenta uma relação com o tempo, história e processo social.Entendido no plural, o sertão seria o espaço de populações com outras historicidades.

Espaço das historicidades e do heterogêneo, o sertão, tomando como base alguns conceitos desenvolvidos por Deleuze e Guattari (1995), poderia ser pensado como um espaço liso. Partindo de uma noção que privilegia as multiplicidades ao invés de uma lógica binária, encontrar-se-ia numa complexa oposição ao espaço estriado. O sertão seria rizomático, e não arbóreo, no qual “um rizoma pode ser conectado a qualquer outro enquanto a árvore ou a raiz se fixam a um ponto, uma ordem” (Deleuze; Guatarri, vol.1, 1995:40).

Essas esferas, embora distintas, interagem de modo não simétrico. No espaço liso, ocupa-se sem medir e sem contar, enquanto o espaço estriado é medido paradepois ser ocupado. No espaço estriado, as linhas e os trajetos tendem a ficar subordinados aos pontos, e no liso, os pontos se subordinam aos trajetos. “O que ocupa o espaço liso são as intensidades, os ventos, e ruídos, as forças e as qualidades tácteis e sonoras, como no deserto, na estepe e no gelo” (Deleuze; Guattari vol. 5, 1995:185).

Dessa maneira, o espaço liso é heterogêneo, no qual repousam multiplicidades não-métricas, rizomáticas e descentralizadas. “A homogeneidade nos pareceu ser, desde o início, não o caráter do espaço liso, mas exatamente o contrário, o resultado final da estriagem, ou a forma-limite de um espaço estriado por toda parte, em todas as direções” (Deleuze; Guattari vol.5, 1995:197). Assim como no sertão de Guimarães, no espaço liso predominam os afetos mais do que as propriedades, sendo formado mais por acontecimentos: “é um espaço intensivo, mais do que extensivo, de distâncias e não de medidas” (Deleuze; Guattari, vol. 5, 1995:185).

O conhecimento cartográfico, um modelo de ciência “régia”, como sugere Deleuze e Guattari (1995), é uma maneira de medir para ocupar. Em um contexto emque o Estado relaciona à ocupação dos espaços “vazios de civilização” com a expressão da autoridade do poder nacional, os mapas são responsáveis por estriar, traçando e delimitando “meridianos e paralelos, longitudes e latitudes, esquadrinhando, assim, regiões conhecidas e desconhecidas” (Deleuze; Guattari, vol.5. 1995:186). Esseprocesso, que Deleuze e Guattari colocam como gradual e longo, promove a passagem do liso ao estriado. Para dar um exemplo da complexidade desse tipo de trânsito de um espaço a outro, podemos citar o mar, um dos espaços lisos por excelência. No momento das grandes navegações, o conhecimento sobre o mar passa a sergradualmente maior. Mas esse conhecimento, cada vez mais profundo, chega num nível tal que promove deslocamentos submarinos em um momento posterior em um espaço desconhecido. Há uma passagem do liso-estriado, para voltar a ser, novamente liso, tamanha é

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a intensidade do estriamento. É possível ainda ocupar desertos e estepes de maneira estriada e de ser um “nômade” na cidade. Mas, como observa Deleuze e Guattari (1995), de um modo geral, a tendência do espaço liso é se esfriar para que constitua uma nova territorialidade.

O espaço estriado se caracteriza ainda pela presença do Estado, enquanto no espaço liso, predominam as “sociedades contra o Estado”, nos termos de Clastres.Ainda que possuam chefias, o que Clastres (2003) nota é que as sociedades ditas primitivas não associam o chefe à autoridade e, nesse sentido, desvinculam a noção de poder da de coerção, criando um sistema que não responde à organização estatal. Nesse sentido, “a apresentação do poder, tal como ele é, se oferece a essas sociedades como o próprio meio de anulá-lo” (Clastres, 2003:61). Ainda que essas sociedades possuam suas próprias maneiras de organizar a “política”, o Estado associado ao espaço estriado se define pela perpetuação ou conservação de órgãos de poder.

Assim, percebo uma imbricação entre o Estado e o espaço estriado, sendo produto disso as cidades. E no contexto oitocentista no Brasil, período focalizado nesse ensaio, as políticas de estriagem (como denomino o processo), em meio à construção de uma identidade homogênea pautada num conteúdo de base nacional, previa a ocupação dos espaços a partir de uma lógica “civilizada”, na qual os sertões, espaços permeados de imagens heterogêneas, deveriam ser incorporados como partes ao território “nacional”. Essa idéia “régia”, ainda que se distinguisse do que ocorria na prática no contato,

permeado no mais das vezes de regras locais violentas, não deixava de se fazer sentir pelos colonos aventureiros que adentravam nos sertões. Ainda que houvesse disposições legais para agir, a fronteira, intermezzo entre as cidades e o sertão, era o espaço onde o Estado se fazia pouco sentir. Ao colono corajoso que se embrenhasse nessas terras, caberia a função de dominar a fúria da natureza do sertão e seus índios.

Para o Império brasileiro, a diretriz mais geral era a de alargar os espaços transitáveis e, nesse processo, “os índios ocupam uma posição singular, já que têm de ser legalmente, senão legitimamente, despossuídos de uma terra que sempre lhes foi, por direito, reconhecida” (Carneiro da Cunha, 1992:15). Sendo o sertão considerado como terra de ninguém, a colonização desses espaços se dava a partir da invasão da sociedade nacional através de segmentos regionais em locais em que grande parte doshabitantes eram os índios. Expansão essa que não se dá ao acaso, sendo tanto estratégica quanto também econômica, como sugere R. Cardoso de Oliveira (1972). A “força de estriagem” que as cidades impõem é capaz de remodelar o sertão e é nesse contexto que o encontro colonial se processa.

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Luís Santiago

os primeiros 123 versos da Eneida de Virgílio

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110 Revista Mucury

Foi no início de 2009, já fazem quase dois anos, que publiquei, de forma independente, o livro As roçarianas - Releitura das Geórgicas de Virgílio. Relativamente satisfeito com o resultado, dei logo início à tradução da Eneida, do mesmo autor, porém é trabalho muito mais árduo, sobretudo, porque resolvi traduzir também os comentários de Sérvio Gramático.

Pretendo publicar, talvez ainda em 2011, a tradução do livro I (são doze livros no total), que já está pronta, mas sem os respectivos comentários, como parte do livro que terá possivelmente o título de Quarenta e duas peças poéticas, pois reúne ainda trechos das Geórgicas e outros poemas.

O leitor verá que os versos da minha versão têm o pé quebrado, como se diz, já que não utilizam qualquer métrica, mas simples contagem de sílabas (cada verso doze, sendo que os versos finais de cada estrofe contém três, quatro, nove ou doze sílabas); tampouco uso rima no final dos versos. A presente tradução, portanto, encontra-se em algum lugar entre a poesia e a prosa. A divisão em estrofes também é por nossa conta e risco,

já que originalmente o poema não possui estrofes, nem mesmo capítulos, mas apenas a divisão em livros.

Os três comentários que escolhi para figurar no fim do texto são apenas para dar uma ideia aproximada dos escólios desses dois Sérvios. O Sérvio original era possivelmente um professor de gramática na Itália do século V d.C. O Pseudo-Sérvio era talvez um monge que viveu no século XI, na França ou na Inglaterra; ele é também chamado Deutero-Sérvio (déuteros que dizer segundo em grego) e Servius Danielis, já que o manuscrito Casselano, onde aparecem as interpolações desse clérigo medieval ao texto serviano, foram publicadas pela primeira vez na edição que o francês Pierre Daniel fez dos Comentários de Sérvio, em Lião, no ano de 1600. Existe ainda um terceiro Sérvio, escoliasta de Virgílio, que é um dos personagens das Saturnais de Macróbio, mas seus comentários são, na verdade, do autor do livro.

Publico este trecho buscando encontrar uma forma ideal para a publicação da Eneida como um todo, portanto, aguardo críticas e sugestões dos leitores.

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111os primeiros 123 versosda Eneida de Virgílio

ARMA VIRVMQVE CANO, TROIAE QVI PRIMVS AB ORIS

ITA LIAM FAT O PROFVGVS LAVINIAQVE VENIT

LITORA, MVLTVM ILLE ET TERRIS IACTATVS ET ALTO

VI SUPERVM, SAEVA MEMOREM IVNONIS OB IRAM,

MVLTA QVOQVE ET BELLO PASSVS, DVM CONDERET VRBEM

IFERRETQVE DEOS LATIO, GENVS VNDE LATINO

ALBANIQVE PATRES ATQVE ALTAE MOENIA ROMAE.

a. Assunto da Eneida

As armas canto e varão que primeirodas praias de Troia à Itália veio,dos fados fugitivo, e no litoralde Lavínio aportou; foi muitas vezesafligido em terra e no mar altopor poder superior, instigado pelarememorada ira da cruel Juno;muito tendo também sofrido em guerras,fundou então cidade e trouxe deusesao Lácio, dando origem aos pais latinose albanos e muros da altaneiracidade de Roma.

MVSA, MIHI CAVSAS MEMORA, QVO NVMINE LAESO

QVIDVE DOLENS REGINA DEVM, TOT VOLVERE CASVS

INSIGNEM PIETAT E VIRVM, TOT ADIRE LABORES

IMPULERIT. TANTAENE ANIMIS CAELESTIBVS IRAE?

b. Invocação da musaÓ musa, relembra-me as causas: Qual foia divindade ofendida e de quêcondoía-se a rainha dos deusespara com tamanhos danos prejudicarum homem renomado pela piedade,imensos sofrimentos ocasionando?Qual foi a razão de todo esse rancornum peito celeste?

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112 Revista Mucury

VRBS ANTIQUA FVIT, TyRII TENVERE COLONI,

CARTHAGO, ITALIAM CONTRA, TIBERINAQVE LONGE

OSTIA; DIVES OPVM, STVDIISQUE ASPERRIMA BELLI

QVAM IVNO FERTVR TERRIS MAGIS OMNIBUS VNAM

POSTHABITA COLVISSE SAMO. HIC ILLIVS ARMA,

HIC CVRRVS FVIT: HOC REGNVM DEA GENTIBVS ESSE

SI QVA FATA SINANT, IAM TVM TENDITQVE FOVETQUE.

c. Cartago

Era uma vez uma antiga cidade,por tírios colonizadores mantida,Cartago, situada da Itália bem diante,porém distante da tiberina Óstia;em riquezas abundante, nas guerrasimplacável, terras que, conta-se, Junoamava mais que nenhuma outra, Samosrelegada;aqui as suas armas, aqui seu carroficava;pelo poder daquela gente pugnavaa deusa, os fados assim permitindo,e favorecia.

PROGENIEM SED ENIM TROIANO A SANGVINE DVCI

AVDIERAT , TyRIAS OLIM QVAE VERTERET ARCES.

HINC POPVLUM LATE REGEM BELLOQVE SVPERBVM,

VENTURUM EXCIDIO LIByAE, SIC VOLVERE PARCAS.

d. Acontecimentos futuros

Progênie, porém, provinda do sanguetroiano, ouvira, havia, um dia,de destroçar aquelas tírias muralhas;esse novo povo soberbo reinarásobre as vastidões, causando, na Líbia,devastação - é o que tecido tinhasido pelas Parcas.

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113os primeiros 123 versosda Eneida de Virgílio

ID METVENS, VETERISQUE MEMOR SATVRNIA BELLI,

PRIMA QUOD A TROIA PRO CARIS GESSERAT ARGIS.

NECDVM ETIAM CAVSAE IRARVM, SAEVIQUE DOLORES

EXCIDERAT ANIMO: MANET ALTA MENTE REPOSTVM

IVDICIVM PARIDIS, SPRETAEQVE INIURIA FORMAE

ET GENUS INVISVM, ET RAPTI GANyMEDES HONORES.

HIS ACCENSA SVPER, IACTATOS AEQUORE TOTO

TROAS, RELIQVIAS DANAVM ATQUE IMMITIS ACHILLEI,

ARCEBAT LONGE LATIO; MVLTOSQVE PER ANNOS

ERRABANT ACTI FATIS MARIA OMNIA CIRCVM.

TANTAE MOLIS ERAT ROMANAM CONDERE GENTEM!

e. Outros motivos da mágoa de Juno

Isto temendo a Satúrnia, a guerrapassada relembrava contra troianos,gerida em prol dos seus queridos argos;nem tampouco saíam da alma outrascausas para iras e dores atrozes,no fundo da mente permaneciam vivoso veredito proferido por Páris,a beleza desprezada com injúriae a origem detestada e honrasconcedidas ao raptado Ganímedes.Com tudo isso enfurecida ela,os já lançados pela extensão do martrôades, restos apenas dos dânaose da bravura de Aquiles, mantinhaafastados do Lácio; por muitos anosvagavam ao redor de todos os mares,movidos pelos fados; tamanha eraurgência de criar a romana gente!

VIX E CONSPECTV SICVLAE TELLURIS IN ALTVM

VELA DABANT LAETI, ET SPVMAS SALIS AERE RUEBANT;

CVM IVNO, AETERNVM SERVANS PECTORE VVLNVS,

HAEC SECVM: MENE INCEPTO DESISTERE VICTA M?

NEC POSSE ITA LIAM TEVCRORVM AVERTERE REGEM?

QVIPPE VETOR FAT IS. PALLASNE EXVRERE CLASSEM

f. Lamentos de Juno

Mal tiveram à vista terras siculas(velozes davam velas em meio ao mare a espuma do sal fazia o arressoar),quando Juno, guardando dentro do peitoincurável ferida, isso consigo:Eu, desistir vencida do que comecei?

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114 Revista Mucury

TALIA FLAMMATO SECVM DEA CORDE VOLVNTANS,

NIMBORVM IN PATRIAM, LOCO FETA FURENTIBVS AVSTRIS,

AEOLIAM VENIT. HIC VASTO REX AEOLVS ANTRO

LUCTANTES VENTOS, TEMPESTATESQVE SONORAS

IMPERIO PREMIT, AC VINCLIS ET CARCERE FRENAT .

ILLI INDIGNANTES MAGNO CVM MVRMVRE MONTIS,

CIRCVM CLAVSTRA FREMVNT. CELSA SEDET AEOLVS ARCE,

SCEPTRA TENENS: MOLLITQVE ANIMOS, ET TEMPERAT IRAS.

ARGIVVM, AT QVE IPSOS POTVIT SVBERGERE PONTO,

VNIVS OB NOXAM ET FVRIAS AIACIS OILEI?

IPSA IOVIS RAPIDVM IACVLATA E NVBIBVS IGNEM,

DISIECITQVE RAT ES, EVERTITQVE AEQVORA VENTIS:

ILLVM EXSPIRANTE TRANSFIXO PECTORE FLAMMAS

TVRBINE CORRIPVIT, SCOPVLOQVE INFIXIT ACVTO.

AST EGO, QVAE DIVVM INCEDVM REGINA, IOVISQVE

ET SOROR ET CONIUX, VNA CVM GENTE TOT ANNOS

BELLA GERO: ET QVISQVAM NVMEN IVNONIS ADORET

PRAETEREA, AUT SUPPLEX ARIS IMPONAT HONOREM?

nem da Itália afastado conseguirmanter o rei dos teucros? pois me vetamos Fados.Palas não queimou a frota dos argivos?pôde fazer com que no mar submergissem,unicamente devido aos malfeitose furores de Ajax Oileu; das nuvensela própria arremessando o fogorápido de Jove, navios dispersoue os mares com ventania remexeu;o peito dele varado respiravachamas, foi carregado por torvelinhoe cravado em um rochedo pontudo;enquanto eu, rainha que marcha diantedos deuses, esposa e irmã de Jove,contr’ um povo movo guerra tantos anos;haverá ainda quem adore a deusaJuno? ou suplicante que ofereçaainda, diante do altar, oferendas?

g. Eôlo, rei dos ventos

A tal tendo, dentro do peito em chamas,a deusa se decidido, para pátriados nimbos se encaminhou, lugar prenhede furiosos Austros, a Eólia. Aqui,em vasto antro, o rei Eôlo mantémos ventos briguentos e as fragorosastempestades debaixo do seu domíniocontidos; são com cárcere e correntes

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115os primeiros 123 versosda Eneida de Virgílio

NI FACIAT , MARIA AC TERRAS COELVMQVE PROFVNDVM

QVIPPE FERANT RAPIDI SECVM, VERRANTQVE PER AVRAS.

SED PATER OMINIPOTENS SPELVNCIS ABDIDIT ATRIS,

HOC METVENS: MOLEMQVE ET MONTES INSVPER ALTOS

IMPOSVIT; REGEMQVE DEDIT, QVI FOEDERE CERTO

ET PREMERE, ET LAXA SCIRET DARE IVSSVS HABENAS.

refreados.Eles, rebelando-se, com um murmúrioimenso, fazem fremer montes em voltado claustro. Em elevada fortalezasenta-se Eôlo, segurando cetro;ameniza os ânimos, as irasequilibra; se não agir dessa forma,mares, terras e céu profundo consigorápidos arrastarão, varrendo ares.O pai onipotente, contudo, issotemendo, enviou-os para escurascavernas; sobre as quais colocou aindabarreira de altos montes, nomeandorei, que impor leis e oprimir consegue,soltando rédeas quando necessário.

AD QVEM TVM IVNO SVPPLEX HIS VOCIBVS VSA EST:

AEOLE (NAMQVE TIBI DIVVM PATER ATQVE HOMINVM REX

ET MVLCERE DEDIDT FLVCTVS, ET TOLLERE VENTO),

GENS INIMICA MIHI TyRRHENVM NAVIGAT AEQVOR,

ILIVM IN ITALIAM PORTANS, VICTOSQVE PENATES.

INCVTE VI VENTIS, SVBMERSASQVE OBRVE PVPPES:

AVT AGE DIVERSAS, ET DISIICE CORPORA PONTO.

SVNT MIHI BIS SEPTEM PRAESTANTI CORPORE NyMPHAE:

QVARVM, QVAE FORMA PVLCHERRIMA, DEIOPEIAM

CONNVBIO IVGAM STABILI, PROPRIAMQVE DICABO:

OMNES VT TECVM MERITIS PRO TALIBVS ANNOS

EXIGAT , ET PVLCHRA FACIAT TE PROLE PARENTEM.

h. Um pedido de Juno

Em cuja morada, Juno suplicantea voz utilizou:Ó Eôlo! (a quem, pelo pai dos deusese rei dos homens, amainar outorgadofoi correntezas e recolher o vento)certa gente, que é inimiga minhanavega a planície dos tirrenoslevando para a Itália o Ílioe os seus vencidos penates;acrescentai, pois, mais ímpeto aos ventos!afundai as popas submersas!ou espalhai por toda parte!os corpos no ponto dispersando!Duas vezes sete, excelente porte,

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116 Revista Mucury

AEOLVS HAEC CONTRA: TVVS, O REGINA, QVID OPTES,

EXPLORARE LABOR: MIHI IVSSA CAPESSERE FAS EST.

TV MIHI QVODCVMQVE HOC REGNI, TV SCEPTRA, IOVEQVE

CONCILIAS: TV DAS EPVLIS ACCVMBERE DIVVM,

NIMBORVMQVE FACIS TEMPESTVMQVE POTENTEM.

i. Resposta de Eôlo

Eôlo isto em reposta:Teu, ó rainha, o que quer que escolhas,os trabalhos deliberar; quanto a mim,obedecer ordens é o que me cabe.Tu deste meu reino (o que quer que seja),tu o cetro e boas graças de Jove;é por ti que entre deuses banqueteio,sobre nimbos e tempestades impero.

HAEC VBI DICTA , CAVVM CONVERSA CVSPIDE MONTEM

IMPVLIT IN LAT VS: AC VENTI, VELVT AGMINE FACTO,

QVA DATA PORTA , RVVNT, ET TERRAS TVRBINE PERFLANT.

INCVBVERE MARI, TOTVMQVE A SEDIBVS IMIS

VNA EVRVSQVE NOTVSQVE RVVNT, CREBERQVE PROCELLIS

AFRICVS; ET VASTOS VOLVVNT AD LITORA FLVCTVS.

INSEQVITVR CLAMORQVE VIRVM, STRIDORQVE RVDENTVM.

ninfas tenho, das quais aquela de formasas mais belas, Deiopeia, em conúbiojungirei estável, eu mesma benzendopara que, pelos teu méritos, por todosos anos contigo abnegada, façade ti o pai de uma formosa prole.

j. A tempestade é desatada

Tendo isto sido dito,ponta da lança invertida, do ocomonte empurrou a encosta, os ventos,tal qual o exército quando ataca,pela porta irromperam e as terraspor turbilhões foram sopradas.Arrebatados foram os mares todos,desde o mais fundo leito revirados

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117os primeiros 123 versosda Eneida de Virgílio

ERIPIVNT SVBITO NVBES CAELVMQVE, DIEMQVE

TEVCRORVM EX OCVLIS, PONTO NOX INCVBAT AT RA

INTONVERE POLI, ET CREBRIS MICAT IGNIBVS AETHER

PRAESENTEMQVE VIRIS INTENTA NT OMNIA MORTEM.

por Euros e Notos unidos e pelados Áfricos devastadora procela;vastos vagalhões revolveram a praia.Seguiu-se clamor de homens e rangenteestridor.Súbito retirados nuvens, céu, diaaos olhos dos teucros, a noite escuratoma conta do ponto, pólos trovejam,o éter em chamas repetidamenterebrilha; tudo aos homens indicavaque a morte já se fazia presente.

EXTEMPLO AENEAS SOLVVNTUR FRIGORE MEMBRA.

INGEMIT, ET DVPLICES TENDENS AD SIDERA PALMAS

TALIA VOCE REFERE: O TER QVAT ERQVE BEATI,

QVIS ANTE ORA PATRVM, TROIAE SVB MOENIBVS ALTIS,

CONTIGIT OPPETERE! O DANAVM FORTISSIME GENTIS

TyDIDE, MENE ILIACIS OCCVMBERE CAMPIS

NON POTVISSE, TVAQVE ANIMAM HANC EFFVNDERE DEXTRA!

SAEVVS TIBI AEACIDE TELO IACET HECTOR, VBI INGENS

SARPEDON: VBI SIMOIS CORREPTA SVB VNDIS

SCVTA VIRVM, GALEASQVE ET FORTIA CORPORE VOLVIT.

k. Oração de Eneias

Arrepio súbito Eneias sentecorrer o corpo, geme, gêmeas palmasaos Céus estende, a voz assim exclama:Ah, três, quatro vezes bem aventuradosaqueles a quem, ante olhos dos própriospais, à sombra dos altos muros de Troia,sucedeu sucumbir!Ó Diomedes Tídide, do fortíssimopovo danau, por que não pude ser mortoem campos ilíacos nem tua destraminh’ alma derramar?quando o valente Heitor, pela lançade Aquiles Eacida tombou, quandoo grande Sarpedôn e quando, debaixodas ondas do Simoente se arrastamrolando tantos escudos de guerreirose elmos e corpos robustos.

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118 Revista Mucury

TALIA IACTA NTI STRIDENS AQVILONE PROCELLA

VELVM ADVERSA FERIT, FRLVCTVSQVE AD SIDERA TOLLIT.

FRANGVNTVR REMI: TVM PRORA AVERTIT, ET VNDIS

DAT LATVS; INSEQVITVR CVMVLO PRAERVPTVS AQUAE MONS.

HI SVMMO IN FLVCTV PENDENT, HIS VNDA DEHISCENS

TERRAM INTER FLVCTVS APERIT: FVRIT AESTVS HARENIS.

TRIS NOTVS ABREPTASQVE IN SAXA LATENTIA TORQVET:

SAXA VOCANTI ITALI MEDIIS QVAE IN FLVCTIBVS ARAS,

DORSVM IMMANE MARE SVMMO. TRIS EVRIS AB ALTO

IN BREVIA ET SyRTES VRGET, MISERABILE VISU!

ILLIDITQVE VADIS, AT QVE AGGERE CINGIT HARENAE.

VNAM, QVAE LyCIOS FIDVMQVE VEHEBAT ORONTEM,

IPSIVS ANTE OCVLOS INGENS A VERTICE PONTUS

IN PVPPIM FERIT: EXCVTITVR, PRONVSQVE MAGISTER

VOLVITVR IN CAPVT: AST ILLAM TER FLVCTVS IBIDEM

TORQVET AGENS CIRCVM, ET RAPIDVS VORAT AEQVORE VORTEX.

APPARENT RARI NANTES IN GVRGITE VASTO;

ARMA VIRVM, TA BVLAE ET TROIA GAZA PER UNDAS,

IAM VALIDAM ILIONEI NAVEM, IAM FORTIS ACHATAE

ET QUA VECTUS ABAS ET QUA GRANDAEVOS ALETES,

VICIT HIEMS: LAXIS LATERVM COMPAGIBVS OMNES

ACCIPIVNT INIMICVM IMBREM, RIMISQVE FATISCVNT.

l. Naufrágio da frota troiana

Assim exclamava quando estrondosaprocela do Aquilão bateu de frentecontra o velame; levando as ondasaté as estelas.Remos foram espatifados, proapara trás jogada e o bordo contraas ondas; montanha se egueu de água,cúmulo montando.Uns pendem do alto das ondas, a outrosfendendo aberto o mar mostra seu chão;a maré levanta areia.Três o Noto, já arrebatadas, arremessoucontra escondidos rochedos; rochedosno meio do mar (ítalos chamam Aras),o dorso imane por cima das ondas.Três outras o Euro do alto impeliupra pequena Sirtes (visão lastimável!),de encontro aos baixios esmagandoe com aterro de areia cingindo.Uma, de lícios, pelo fido Orontescomandada, ante seus olhos, no pontoingente soçobrou de ponta a popa,o mestre caindo de cabeça; três vezesela rodopiou em torno de si mesma,

rapidamente devorada pelo marem vórtex;raros nadadores reapareciamna vasta garganta; armas guerreiras,madeirame e o tesouro de Troiaem meio às ondas.

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119os primeiros 123 versosda Eneida de Virgílio

Já a resistente nave de Ilioneu,já a do forte Acates, a que Abascomandava e do grandevo Aleteseram vencidas pelo inverno; soltastodas as juntas dos bordos, inimigachuva recebiam, em fendas gretavam.

12. Vrbs antiqua fuit; ubs dicta ab orbe, quod antiquae civitates in orbem fiebant; vel ab urvo, prte aratri, quo muri designabantur. et ‘antiqua’ autem et ‘fuit’ bene dixit, namque et ante septuaginta annos urbis Romae condita erat, et eam deleverat Scipio Emilianus. quae autem nunc est postea a Romanis est condita: unde antiquam accipe et ad conparationem istius quae nunc est, et Roma antiquiorem.

Era uma vez uma antiga cidade. O termo cidade [urbs] vem de orbe, porque as cidades antigas eram contruídas em órbita [círculo], ou então de urvo [rabiça], parte do arado, ferramenta com a qual se demarcava os muros. Tanto “antiga” quanto “era” são [termos] utilizados com propriedade, pois foi fundada setenta anos antes da cidade de Roma e destruída por Emiliano Cipião; a que atualmente existe foi fundada pelos romanos. Por isso é chamada “antiga”, mas em comparação com a atual, Roma é mais antiga.

Alguns comentários ao trecho traduzido

c. CartagoComentário de Sérvio Gramático (sec. V d.C.) ao verso 12 do livro I da Eneida

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120 Revista Mucury

42. Rapidum. cum Varro divinarum quinto quattuor diis fulmina adsignet, inter quos et Minervae, quaeritur, cur Minerva Iovis fulmen miserit. antiqui Iovis solius putaverunt esse fulmen, nec idunum esse, ut testantur Etrusci libri de fulguratura, in quibus duodecim genera fulminum scripta sunt, ita ut est Iovis Iunonis Minervae, sic quoque aliorum: nam de Iunonis fulmine Accius ait “praefervido fulgore ardor iniectus Iunonis dextra ingenti incidit”. quare tum non posuit Minervam misisse fulmen suum? sed multi dicunt, habere quidem Minervam ut Iovem et Iunonem fulmen, sed non tantum valere, ut vindictam suam possit implere, nisi usa esset Iovis fulmine: unde merito queritur Iuno, Minervam, cum de numero minorum sit qui fulmen habeat, usam tamen Ioves fulmine.

Rápido. No livro V da Arte Divinatória, quando Varrãoassigna o trovão a quatro deuses (entre os quais Minerva), pergunta como pode Minerva lançar o relâmpago de Jove. O antigos diziam que o relâmpagosomente a Jove pertencia, porém não era de um únicotipo, conforme confirma o livro etrusco dos relâmpagos[‘de fulguratura’], no qual são descritos doze tipos de relâmpagos, assim há o de Jove, de Juno, de Minerva e assim também de outros. Acerca do relâmpago de Juno, Ácio afirma “o fulgurante e abrasante ardor, lançado pela destra de Juno, atingiu com força”. Por que, então, [Virgílio] não colocou Minerva lançando seu próprio raio? Muitos, contudo, dizem embora Minerva, Jove e Juno possuam relâmpagos, não podem deles se valerem, para executar uma vingança própria, por exemplo, a não ser que utilizem o relâmpago de Jove, onde Juno questiona por que Minerva, cujo relâmpago é inferior, usou, contudo o relâmpago de Jove.

Iaculata; in libris Etruscorum lectum est iactus fulminum manubias dici et certa esse numina possidentia fulminum iactus, ut Iovem Vulcanum Minervam. cavendum ergo est, ne aliis hoc numinibus demus.

Arremessando. Nos livros etruscos [acerca dos relâmpagos] se lê que o relâmpago arremessado é chamado manúbia e que, de fato, certas divindades tem o poder de arremessar raios, entre as quais Jove, Vulcano e Minerva. Deve-se, contudo observar para não assignar talpoder outras divindades.

Comentário de Sérvio Gramático ao mesmo verso

f. Lamentos de JunoComentário do Pseudo-Sérvio (sec. XI d.C.) ao verso 15 do livro I da Eneida

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121os primeiros 123 versosda Eneida de Virgílio

Nesta passagem, Juno se lamenta dizendo:

- “Palas não queimou a frota dos argivos? pôde fazer com que no mar subergissem, unicamente devido aos malfeitos de Ájax Oileu; das nuvens ela própria arremessando o fogo rápido de Jove”, e continualamentando-se de que ela, Juno, irmã e esposa do próprio Júpiter, o deus dos deuses, não consegue fazer o mesmo com relação à frota troiana comandada por Eneias.

O próprio Sérvio Gramático, comentara acima (verso I,39) que era devido ao “despeito (invidiam)” que Juno usava o termo “frota (classem)” para designar um único navio comandado pelo guerreiro grego Ájax, filho Oileu, que fora um dos principais da guerra de Troia, mas não deve ser confundido com Ájax, o Grande, filho de Telamon. Provocou a ira da deusa Atena, ou Palas Atenea, que é a mesma Minerva da mitologia latina, ao violentar Cassandra, filha do rei Príamo e sacerdotisa da deusa,

que se refugiara no templo de Atena, durante o saque de Troia, não respeitando nem mesmo o recinto sagrado,

sendo por isso fulminado pela divindade.

Os comentários de Sérvio e do Pseudo-Sérvio ao verso 42 têm particular interesse para os estudiosos das religiões romana e etrusca, já que, com base nesses dois escólios e numa passagem da História natural, de Plínio (II,139), o francês Georges Dumézil, em seu abrangente La religion romaine archaïque romaine - suivi d’un appendice sur La religion des étrusques (pag. 610-611), esclarece que, enquanto os romanos somente aceitavam que dois deuses podiam lançar raios, Júpiter e Summanus (este último apenas durante a noite), para os etruscos havia nove deuses fulgurantes (ou seja, que podiam lançar raios), dos quais cinco nos são conhecidos, são eles os equivalentes etruscos dos deuses Júpiter, Juno e Minerva (no texto serviano) e ainda Marte e Vulcano (conforme o texto de Plínio).

Notas do tradutor acerca dos comentários de Sérvio Gramático e do Pseudo-Sérvio ao verso 42 do livro I da Eneida, de Virgílio

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- DUMÉZIL, Georges. La religion romaine archaïque - suivi d’un appendice sur La religion des étrusques. Paris, Payot, 1966.

- GRAVES, Robert. The greek myths. 2. ed. rev., 13. reimp. Londres, Pelican, 1978, v. 2.

- THILO, Georgius; HAGEN, Hermannus (org.). Servii Gramatici qui feruntur in Vergilii carmina commentarii - vol. I - Aeneidus librorum I-V commentarii. Leipzig: B.G. Teubner, 1881.

- RUAEUS, Carolus [Charles de la Rue]. P. Virgilii Maronis Opera - Interpretatione et notis illustravit Carolus Ruaeus, jussu Christinanissimi Regis ad usum serenissimum Delphini [Edição do Delfim]. ed. rev. Paris: J.P. Aillaud, 1844, t. 2.

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Bruno Dias Bento

projeto estação cinema

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124 Revista Mucury

Há tempos, na verdade, quase 4 anos que sonhávamos com um cineclube, cá nesta terra botocuda e um tanto quanto acre. Sempre nos faltava algo. Ora lugar, ora equipamento, ora público.

Entretanto, como há bons samaritanos, mesmo sendo também botocudos (expressão de nosso mestre Abdulah), como nós mucuryanos, conseguimos estabelecer uma parceria com grandes amigos. O Sérgio Abdulah e a Rose Medeiros nos abriram sua casa, a Estação Doce Maria, para que realizássemos uma sessão experimental.

A proposta foi ousada, nossa bicuda inicial foi com o Gabinete do Dr. Caligari, 1920, dirigido por Robert Wiene, uma obra-prima do expressionismo alemão e do cinema mundial.

Até aí, este projeto estava sem nome, mas fomos experimentar. E como a fortuna às vezes ajuda, tivemos o incrível público de 11 expectadores!

Caminhamos bem em nosso cineclube, com sessões quinzenais, ganhamos um nome, o Projeto Estação Cinema, realizado em parceria com a Estação Doce Maria e a Mucury Cultural. Os resultados estão sendo bastante interessantes.

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125projeto estação cinema

Há algumas peculiaridades, tais como:

A escolha dos filmes. Esta é feita de forma democrática, logo após cada sessão, lançamos uma enquete no blog com a relação de todos os filmes de nosso acervo, ao final de uma semana, apuramos o resultado e postamos como evento no facebook e em nosso blog;

Na semana da exibição, postamos e enviamos um pequeno texto sobre o filme, contendo ficha técnica, características, sinopse e comentários;

Antes do início da sessão fazemos uma breve resenha, contextualizando a obra, apresentamos a sinopse;

Sempre assistimos, antes do longa escolhido, um curta-metragem de animação com tema relacionado ao filme;

E finalmente assistimos. E para quem quiser, após o reacender das luzes, conversamos sobre as impressões, técnicas utilizadas, escolas e o que mais vier à pauta.

Buscamos uma forma mais solta, suave, uma vez que estamos ainda na fase de formação de público. Então primeiramente nos preocupamos em assistir bons filmes, nesta cidade que já viu muitos.

A prioridade de nosso acervo e nossas sessões são para filmes clássicos, fora de catálogo, cinema arte,

documentários, “B’s”, os que não estão à mão nas locadoras, ao menos estas que povoam nossas ruas.Há, evidentemente, quem gosta e quem não gosta, assim como cada cão cheira buscando talvez o que lhe agrade… Vai que um dia ache.

Como dissemos, criando o público, não estamos interessados, neste momento, em discussões densas, estudos de escolas ou temas cinematográficos. A coisa ainda é diversão. Esperamos em algum momento podermos discutir, como gente grande, o que não será por agora, alguns gostem ou não.Pois bem, há na última caixa à direita do blog, ora uma enquete, ora o resultado da votação.

Então ou vote logo, ou confira o resultado, e não reclame do filme!

Brincadeiras à parte, estamos tentando fazer as coisas de forma mais prazerosa possível. Pois um dos grandes problemas de nossa cidade e região é, além da falta de programação cultural, a falta de iniciativas formadoras de público, para que projetos e outras iniciativas não morram no meio do caminho.

Leia mais no mucury cultural: projeto estação cinema

Ah, e mais uma, é que aceitamos indicações, sugestões e doações de filmes na lógica do projeto.

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Rainha e Princesas do Centenário

DataAno de 1953

Procedência Coleção de Maria de Lourdes Maia Kalil

Dados HistóricosAo centro, a rainha do Centenário da Colonização Alemã, Maria Helena Sedlmayer, ladeada pelas princesas Vera Laure, e Katarina Rohm. O cortejo de honra é formado por cavaleiros uniformizados.

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Rua Benedito Valadares

DataAnos 50, do século XX

Procedência Coleção de João Cannizza

Dados HistóricosRua Benedito Valadares, atual Av. Getulio Vargas, esquina com a praça Tiradentes, tendo à esquerda em primeiro plano o Prédio da Câmara Municipal, à direita o Prédio do Correio e ao fundo à esquerda o Prédio onde situava-se o Bar e Cine vitória.

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Ponciano Souto serrando a Marta Rocha

Data1955

Procedência Coleção de João Cannizza

Dados Históricos Ponciano Souto serrando a legendária água-marinha, Marta Rocha. Esta pedra foi encontrada a 9 de janeiro de 1955, quase à flor da terra pelos garimpeiros Tibúrcio e Zé Baiano, na fazenda Praia Alegre, de propriedade de Olavo Costa Galvão, no distrito de Topázio. Originariamente ela pesava 24,800Kg. A simetria dos traços feitos por Ponciano, deslumbravam o pedrista José Alves.

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Cortejo Fúnebre

DataInício da década de 30, do século XX

Procedência Coleção de João Cannizza

Dados Históricos Segunda tomada fotográfica do cortejo fúnebre do político Major Turíbio, ainda na Praça Argolo, próximo à Casa Prates, em direção ao cemitério municipal João Gabrielda Costa (Seu Nô), visto ao fundo entre os dois coqueiros. Pelas lâmpadas acesas presume-se estar escurecendo.

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Tania Quintaneiro

relações de poder, distribuição do espaço doméstico e o ‘designer’ de interiores

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136 Revista Mucury

O espaço pode ser pensado como um lugar limitado e mensurável, dotado de características físicas e que, em princípio, é racionalizável, aberto a alterações estéticas e a mudanças em sua finalidade e uso. Mas o espaço não é apenas um lugar físico sobre o qual os homens plasmam suas vontades, mas algo mais sutil e menos tangível: a matriz social constituída pelas relações estabelecidas entre eles. Hotéis, lojas, escritórios, residências, escolas, clubes ou hospitais são espaços nos quais os seres humanos interagem, onde vigoram regras de convivência socialmente construídas, em que existem estruturas de autoridade. Isto faz do espaço um tema sociológico. A Sociologia estuda as relações que ali se dão e traça um quadro de como se configuram, por isto, interpreta expressões como “quero preservar meu espaço”, “estou sem espaço em tal situação” ou “estou construindo um espaço para mim” como referências a algo além das qualidades físicas, a um campo carregado de conteúdos afetivos, que reflete disputas por poder e prestígio.

O designer de interiores 1 dedica-se a refazer o modo como habitamos, vemos e sentimos os espaços de convivência. Ele seguramente verá enriquecidos os resultados de seus projetos se levar em consideração a perspectiva sociológica. Esta lhe permitirá divisar mais claramente as relações e posições sociais dos ocupantes dos lugares que necessitam ser melhor organizados, mais funcionais, salubres e belos. As soluções propostas poderão, assim, contribuir para a harmonia e a solidariedade dos usuários. A interação social humaniza, e os ambientes que convidam à sociabilidade são essenciais tanto para idosos como crianças, para trabalhadores e criminosos, para poderosos ou miseráveis.

No extremo oposto ao lugar que se habita e ao qual se

confere um conteúdo afetivo, o cativeiro é a expressão extrema do confinamento e da redução do espaço vital. Em situações de dominação, a supremacia de alguns pode ser assegurada por meio do controle e restrição do espaço dos outros, sobre os quais os mais poderosos e os representantes da ordem exercem o mando. Mentes neuróticas e perversas também privam indivíduos de sua liberdade, confinando-os a espaços exíguos e obrigando-os ao isolamento, uma das situações mais penosas para os seres humanos, cujo desenvolvimento depende da interação. Às vezes, o temor a perder parte de seu poder e respeito social leva indivíduos a ocultar, em espaços inacessíveis aos olhares dos demais membros da sociedade, ações ilegítimas, parentes com algum tipo de incapacidade, ou o que veem como mazelas de variada natureza. Essas situações extremas têm sido retratadas por meio da arte, como no filme “O colecionador”, de William Wyler, em que um homem solitário crê que conseguirá o amor de uma mulher mantendo-a prisioneira sob seu comando absoluto.

Indivíduos em altas posições sociais tratam de expressar seu status também por meio da posse e ocupação de edificações adequadas. Patriarcas, reis, presidentes, celebridades ou papas detêm e controlam espaços que ajudam a diferenciá-los das demais pessoas e a marcar claramente os lugares que ocupam nas esferas sociais, econômicas, religiosas e políticas. Para isto servem templos, palácios, coliseus... A grandiosidade dessas obras ou de suas ruínas, que atravessaram milênios desde as primeiras civilizações sumérias, fornece indícios sobre o prestígio de quem as mandou construir e as habitou. Na história das sociedades, os sacerdotes, autoproclamados representantes diretos dos deuses, e os guerreiros, defensores das sociedades, reservavam

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137relações de poder, distribuição do espaço doméstico e o ‘designer’ de interiores

para si as construções maiores que os seres humanos podiam erigir. A imponência das pirâmides egípcias é uma mostra do domínio dos faraós, que as mandavam erguer para que seus corpos, ladeados pelos de seus servidores e animais e pelos seus bens preciosos nelas viessem a ser depositados como garantia de conforto para uma outra vida. As famílias aristocráticas européias e asiáticas também edificaram castelos fortificados para sua morada e proteção, mobiliaram e decoraram palácios suntuosos, e encomendaram seus mausoléus. Notáveis obras arquitetônicas testemunham, ainda hoje, a riqueza e poder dos Estados, empresas e corporações. Em eventos esportivos e políticos internacionais, cidades e nações se esmeram em exibir estádios, monumentos, parques e prédios imponentes, como símbolos de sua grandeza e seu poderio.

Podemos observar isso também entre os membros e frequentadores das microestruturas sociais e no seu funcionamento, tais como as moradias coletivas dos centros urbanos, edifícios e condomínios, interdependências sociais específicas. Cada um deles experimenta cotidianamente algum grau de autolimitação a fim de que todos possam contar com o ambiente limpo, o elevador em funcionamento, as garagens livres, as portas de entrada trancadas, o direito ao descanso e ao silêncio, a segurança das crianças, a conduta dentro dos padrões aceitos de moralidade etc. Numa situação extrema, se uma moradia coletiva reunisse cidadãos de vários países e continentes, certamente se experimentaria todo tipo de dificuldade até que todos aprendessem ou estabelecessem regras de comportamento comuns.

Embora a definição do que seja o bem comum não seja simples, a sujeição a regras em benefício da coletividade

é tão internalizada e costumeira que tende a passar despercebida, e se torna notável quando elas não são respeitadas. Isso significa que, em geral, se age ou se espera que se aja como convém à maioria, mesmo que não se faça tudo o que se gostaria ou que nem todos obedeçam estritamente às normas, em especial se não são explícitas. Por isso é que fica mais fácil nos darmos conta do quanto é funcional o consenso, assim como dos inconvenientes causados pela desobediência, quando há desvios em relação à conduta esperada. A disciplina se incorpora à conduta habitual daqueles que vivem em espaços densamente povoados, nos quais as relações entre os indivíduos são caracterizadas por muitas dependências mútuas e intensos contatos. Essas interdependências estão presentes no trânsito, no trabalho, no mercado, no banco ou na clínica médica.

Entretanto, vale lembrar que conduzir-se fora das regras nem sempre gera resultados negativos para a coletividade. Tais comportamentos contrários podem ser inovadores, aperfeiçoar a antiga ordem ou mesmo instaurar uma ordem mais avançada. A sociologia trata também de interpretar os conflitos e alianças gerados nas tentativas de obtenção, ampliação ou manutenção de poder suficiente para garantir ou melhorar os lugares das pessoas na esfera social, com reflexos no espaço físico e de convivência. Por outro lado, ela ajuda a entender de que modo os seres humanos se utilizam do espaço tanto para celebrar relações de amizade como para exibir a superioridade conquistada. Em certo sentido, o convívio forçado com tantos anônimos aumenta igualmente o anseio das pessoas de retirar-se para um nicho próprio, onde desejam estar solitárias ou escolher sua companhia. Isto aumenta a importância afetiva do espaço privado, com reflexos imediatos sobre seu valor monetário. E

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o mercado imobiliário se aproveita disso, tratando de vender o silêncio, a natureza e a exclusividade.

A sociologia de Norbert Elias aponta a tendência de que os seres humanos “civilizem” gradativamente seus impulsos, pulsões e instintos de modo a que se reduza a necessidade de controle da conduta através de fontes externas – pessoas ou instituições. O autocontrole começa a ser aprendido na infância e se estende por toda a vida humana. É fácil percebê-lo quando as pessoas migram para novas esferas ou relações sociais: um emprego, um grupo de amigos, uma relação amorosa, outra região ou país. Esse lento desenrolar é chamado de “processo civilizador”. Ele caracteriza a complexidade da vida social contemporânea, quando se multiplicam situações de convivência. Nestas, as pessoas se relacionam muito de perto e por vezes com desconhecidos ou com grande proximidade física, um risco em potencial à integridade dos envolvidos. Essas relações múltiplas e intensas expressam as inevitáveis interdependências sociais que vigoram nas sociedades mais complexas.

A atribuição a um espaço de um caráter ‘íntimo’ ou ‘privado’ foi uma inovação em algumas regiões do planeta que resultou de extensas mudanças nas formas de organização social, não sendo, mesmo nos dias de hoje, um fenômeno de expressão universal. Quando o modo capitalista de produzir se estabeleceu na Europa Ocidental, deu-se uma separação gradativa entre casa e trabalho, mais tarde identificados respectivamente como espaço privado e público, com um extraordinário impacto nas formas de convivência das pessoas e das famílias. Redefiniu-se o lugar de convívio da família burguesa: o lar. Este foi, ao mesmo tempo, adquirindo

conotações idealistas e românticas, passando a representar o lugar do descanso e da afetividade, condizente com a nova imagem de família burguesa que se constituía, ainda que o lar da família operária demorasse pelo menos um século para usufruir alguns desses benefícios. Camas e oficinas de trabalho, que eram separados apenas por cortinas, se dividiram em cômodos diferenciados e privatizados. Quartos e leitos, compartilhados anteriormente por muitas pessoas, foram se individualizando. Concomitantemente a esse processo, a esfera pública foi assimilando algumas conotações negativas como o lugar da luta e competição entre anônimos, do vício e da corrupção. O reflexo dessas representações alcançou até mesmo a definição do que seria apropriado ao gênero masculino e feminino e seu lócus de atuação.

A evolução de tal concepção de privacidade referida ao lar não repetiu, no Brasil, a mesma trajetória europeia. Fundada em tão distintas e diferentemente organizadas civilizações – ameríndia, africana e europeia – a sociedade brasileira se estabeleceu em função de seus próprios desafios e conflitos internos. Os brasileiros se instalaram e adaptaram nas distintas regiões e nelas estabeleceram sua arquitetura segundo o padrão e o modo de vida dos diversos grupos e classes. Desde o período colonial e estendendo-se até princípios do século XX, no Brasil, as casas das pessoas de posses, fossem nas vilas ou nas fazendas, eram dotadas de alcovas: cômodos onde dormiam as moças das famílias. Eles eram pequenos e sem comunicação com o mundo exterior, a rua e seus perigos. Assim se dava o controle e proteção numa época em que não se reconhecia, na mulher, a capacidade de autodefesa e de livre arbítrio. A limitação ao interior da casa e o pouco contato com estranhos expressavam

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o exíguo poder da mulher, sua submissão aos homens da família – pai, marido, irmão ou sogro – constitutiva das relações entre os membros de tais grupos. Os estudos de gênero mostram a extrema restrição a que solteiras, viúvas ou casadas eram submetidas, fossem elas das elites econômicas ou dos grupos ilustrados da classe média. As mulheres tinham acesso controlado aos espaços públicos, assim como à educação, profissionalização e à vida política. Suas funções eram associadas à educação das crianças (filhos e irmãos), aos cuidados com os idosos e maridos, e à administração, limpeza e abastecimento da casa.

A observação das moradias muito informa sobre as relações sociais. Os grupos carentes têm poucas possibilidades de expansão e otimização de seu espaço, seja ele público ou privado, e, mesmo na morte, uma cova rasa é de bom tamanho para um defunto pouco, como João Cabral de Melo Neto nos diz liricamente, em “Morte e Vida Severina”. Em Minas Gerais, nas casas sem corredor, conhecidas como barracões, passa-se dentro de um cômodo para chegar ao seguinte. Elas pertencem a um tempo em que a concepção de privacidade era bem diferente da atual. O banheiro, em geral o único, abre-se diretamente para a sala, contígua à cozinha, ou é construído no fundo do quintal, do lado de fora. A invenção do corredor, hoje tão incorporado à nossa cultura, permitiu distribuir o acesso aos cômodos, facilitou a circulação e a criação de áreas de intimidade nas residências. Estas áreas produzem também impacto na configuração da personalidade. Pode-se dizer que os membros das sociedades ocidentais contemporâneas carecem de locais e ambientes com certas características a fim de que sua individualidade se manifeste plenamente segundo os padrões contemporâneos. As residências são, agora, claramente divididas em áreas

especializadas: íntimas, sociais e de serviço, embora esta última venha lentamente desaparecendo nas residências ultramodernas.

O processo de individualização também ajuda a entender esse movimento da sociedade na procura de tais profissionais que projetam interiores. Ele se manifesta na diversidade de crenças, hábitos alimentares, modos de vestir, gostos musicais, relacionamentos afetivos, formas de divertimento, filosofias de vida, horários de trabalho, etc. Isso cria um sem número de estilos, tribos e culturas que convivem, em geral, pacificamente no meio urbano. Os indivíduos adultos ostentam seu espaço privado e competem para exibir sua posição física e social em seus grupos. Casas, locais de trabalho e de lazer servem para expressar o status, o lugar que seus usuários ocupam na rede de relações sociais. Se a casa não é tão grande, deve ser mais confortável, funcional, estética e proporcionar-lhes o máximo prazer. E as necessidades de individualização não param de aumentar.

Nas regiões urbanas brasileiras contemporâneas, densamente povoadas, o espaço tem se tornado muito valioso, o que veio a diminuir o tamanho das residências, apesar da redução no tamanho dos grupos familiares, como registra a demografia. Por outra parte, a dissolução das famílias por meio de divórcios e sua reconstituição através de segundos matrimônios levam os membros desses grupos a compartilhar lares com características ainda pouco estudadas. Os centros urbanos brasileiros contam, ainda, com um número considerável de moradias com um ou dois habitantes. Em suma, é em espaços cada vez mais reduzidos que uma grande massa de pessoas habita e onde atende parte de suas necessidades.

relações de poder, distribuição do espaço doméstico e o ‘designer’ de interiores

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Uma breve reflexão sobre três categorias sociais – as mulheres, os idosos, e as crianças –, mostra de que modo elas espelham as relações de poder e a distribuição do espaço doméstico nas grandes cidades brasileiras e entre aqueles grupos que constituem clientes potenciais para o designer de interiores. Ela serve de orientação aos que projetam interiores e que poderão interferir nas relações sociais que se estabelecerão nesses ambientes, humanizando-os e privilegiando a sociabilidade.

Embora ainda existam ecos da época em que se dizia que: “lugar de mulher é na cozinha” ou “mulher é chofer de fogão”, a mulher desses grupos sociais define hoje os usos e aparência do espaço doméstico em igualdade de condições com o homem. No que pareceria ser uma inversão de papéis, estes passaram a solicitar, para seu próprio uso, sofisticados projetos de “espaços gourmet”. Hoje os casais de posses já aspiram a ter banheiros e closets individuais, com sua decoração respectiva, quando não residências separadas. Modas globalizadas se difundem rapidamente. Depois de intensos processos de conscientização e muitas lutas, as mulheres que exerciam a profissão “do lar” foram se inserindo no mundo do trabalho. Mas sua profissionalização fez crescer um exército de empregadas que a substitui nas tarefas domésticas e que foram postas na escala mais baixa do poder no interior das estruturas hierárquicas familiares. Consequentemente, a essas foram atribuídos os espaços menores, menos iluminados e arejados nas casas 2.

No relativo às pessoas idosas, é provável que todos tenham lembranças de casas cuja estrutura e aparência tendem a se conservar no tempo. Alguns de nossos avós mantiveram suas residências quase como museus familiares, onde sempre se entra no mesmo recinto

inalterável, encontrando ali móveis e adornos que não mudam sequer de posição, e transmitem a sensação reconfortante de se voltar ao lugar que tão bem se conhece, ao espaço da realização de afetos. Por meio do estudo dos materiais, cores e artefatos, da decoração e do mobiliário, dos formatos e distribuição dos cômodos, pode-se fazer uma cronologia das tendências estéticas e arquitetônicas de época. Em geral, isto mostra que, junto com certo desapego relativo às lutas por status que as novas gerações realizam cotidianamente, há uma propensão dos mais velhos a manter ambientes que se caracterizam por gostos já em extinção. Melhorias funcionais, visíveis em residências de pessoas jovens, passam ao largo de tais casas, apesar de que, muitas vezes, as necessidades específicas de seus moradores pudessem ser atendidas por meio de tecnologias simples. Isto nos remete ao lugar social dos idosos. Embora em tais moradias possam haver resquícios de um passado de luxo ou de pobreza, no presente elas demonstram a fragilidade social de seus habitantes, cujo poder é em geral amplamente reduzido em função de sua incapacidade de continuar a produzir riquezas. A manutenção de tais habitações dependerá também da autonomia de seus moradores, que, em caso contrário, poderão ser deslocados para lares de idosos ou para dependências em casa de parentes.

Já os quartos de bebês são ambientes prontos a inaugurar um período de transformações, e tendem a refletir o alto valor que historicamente passou a ser conferido aos filhos, cada vez em número mais reduzido de acordo com as decisões das famílias. Sempre que possível, reserva-se aos bebês um espaço bem iluminado, ventilado e salubre, separando meninos de meninas, os quais, não faz tanto anos, dormiam no mesmo quarto: o

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das crianças. Com a entrada de seu ocupante na infância, na adolescência e, mais tarde na juventude, o cômodo vai refletindo alterações estéticas e funcionais: sai o berço, entra a casinha de bonecas ou a bicicleta, mais tarde a guitarra ou o computador, e por fim, o parceiro amoroso. Isso expressa, principalmente, as mudanças na posição de poder. O dormitório reflete, no âmbito estreito da própria família e, mais amplamente, na sociedade como um todo, o prestígio de ser criança ou jovem e os privilégios a eles atribuídos.

Para entender o que a sociologia tem a ver com o designer de ambientes, profissional que surge num ponto específico do desenvolvimento das sociedades e como parte de um processo incessante de divisão do trabalho, é preciso revelar o que o faz socialmente necessário. A profissão surge no momento em que as necessidades de harmonia, conforto e beleza se tornam mais valorizadas e ao alcance de massas de consumidores. A organização racional e a estética do espaço das habitações começam a ser objeto de um conhecimento de especialista, e a solução dos problemas aí detectados lhe é encaminhada. O equilíbrio dos lugares onde se vive e trabalha passou a ser associado à saúde física e mental de seus usuários, e o alcance de tais padrões vem sendo entregue a esse profissional. Este deve combinar, por uma parte, o conhecimento científico da distribuição e aproveitamento do espaço à dinâmica de sua utilização para diversos fins e, por outra parte, o saber sobre a cultura, os valores e os gostos ligados às diversas camadas e grupos da sociedade. Se forem impostos, os valores estéticos e morais de um projetista de ambientes não criam um espaço de vivência para os moradores, mas simples vitrines de decoração. Há uma variedade de situações que se apresentam ao profissional encarregado

de redesenhar o espaço residencial. Em função das grandes diferenças no poder aquisitivo, da valorização de áreas residenciais, desigualmente dotadas de benefícios públicos, como transporte, lazer e segurança, varia também a área disponível para o consumo de cada uma dessas famílias. Logo, a racionalização do espaço é uma necessidade em expansão.

A sociologia tem procurado compreender o aumento da complexidade que caracteriza as densas aglomerações de pessoas nas sociedades contemporâneas, a estruturação da atividade cotidiana nos núcleos familiares e de trabalho, a individualização, assim como as lutas que se desenrolam durante o estabelecimento de novos formatos da vida social e individual. A humanização é um desiderato que se encontra no horizonte da sociologia e, por isso, esta pode contribuir para a tarefa a que se propõem aqueles que visam a organizar os espaços onde se dão as relações entre as pessoas.

relações de poder, distribuição do espaço doméstico e o ‘designer’ de interiores

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primeiro capítulo (sample)

Roberto Taufick

saca-rolhas

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Eu verdadeiramente me esqueci de mudar. E Cecília ficou ali, a ruminar meia dúzia de palavras que eu teimava em não compreender. O pior é que, se eu mudasse, aquela ratazana continuaria insatisfeita.em construção 143,800 km, prosseguindo atualmente com alguma atividade o serviço de movimento de terras que se acha no quilômetro 146.

Cecília era daquelas moças predestinadas as quais decidem que o sobrenome deve guiar a vocação. Nascida Cecília Agrícola, estava determinada a comprar algumas glebas de terra. O mais inusitado nessa inebriada determinação estava em que a propriedade de terras não a tornaria mais agrícola que nascera. E, embora estivesse decidida a ser “sinhá”, as suas terras estariam a desserviço de qualquer cultivo que fugisse à estrita especulação.

Se sinhá Cecília não era agrícola, tampouco era sinhá – não era jovem, solteira, sequer a comunhão das duas condições. Era uma senhora que resolveu mudar de vida aos quarenta anos. Engravidou de um rico senhor de sessenta e passou a delirar uma vida de nobreza não condizente com a condição e a época que lhe vestiam.

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145saca-rolhas

Pois é... o velho morreu e restou o agasalho do filho –eu, propriamente. Só o agasalho, mesmo, tendo em conta que, pobre de Marais, vivo, como rico, dos rendimentos de papai, tal qual Cecília. Embora a herança do velho não fosse coberta de pobre, estava, por certo, empenhada a não servir, por pouco tempo, aos gastos de dois ociosos e aos devaneios de uma mulher furiosa.

Não que a compra das terras me aborrecesse. Pelo contrário, eu via ali a oportunidade de retirar os meus rendimentos do trabalho na roça e aplicar o dinheiro herdado em algo produtivo. Cecília, por sua vez, insistia que jamais moraria no feudo e que, na falta de papai, eu tinha por dever cuidar dela. Por não menos, a solução seria incorporar-me ao seu senhorio.

Pois a sinhá Agrícola foi mais longe. Não só adquiriu uma propriedade no interior de Goiás, como contratou dez funcionários para servi-la. A sinhá de nada entendia. Fez uma compra a porteira fechada e, para o seu desespero, agora recorria a mim para leiloar o gado ali criado e ajudar a quitar as dívidas assumidas.

Acreditando que eu concordara com ela em tudo, desfez-se dos seus bens, pagou as dívidas e foi de mala e cuia para o modesto apartamento para onde eu me mudara após receber a herança. Tendo contratado um leiloeiro, dera-me instruções claras e procuração para acertar a venda. Dada a pressa, a sinhá deu preferência à aquisição de toda a manada por um único comprador. Conhecedor das dificuldades em se conseguir um comprador com esse perfil, fiz a única proposta pela integralidade dos bois com o que restou da herança. Duas semanas depois, mudei-me para a fazenda, com gado e tudo, e depositei a quantia acertada na conta bancária da sinhá. Deixei apenas uma breve nota na qual lhe comunicava a minha decisão. Ela ficou no meu apartamento e eu, na sua fazenda, com o meu gado, tomando conta de propriedades mútuas.

Não foi sequer uma semana entre ela ler o meu bilhete e aparecer na fazenda. Naquele breve intervalo, eu tive a grata surpresa de saber que, entre as minhas aquisições, estavam alguns cavalos, marrecos e porcos. Fiz questão de aprender a cavalgar e, quando Cecília chegou, eu já trotava amadoramente.

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como sempre, de primeira!

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João Quixico Domingos

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como sempre, de primeira!

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Luanda, Angola, 15 de Janeiro de 2000, enviado em 2011

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João Quixico Domingos

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A todas as Mãe da minha ÁfricaUm bom dia dos teus filhosQuixico, Sumbanguia, Tchivinda, Capitangoe do teu filho descontente Tomás Simão!

Para a minha Mãe negra um bom dia sem dor nesteteu lindo dia em que a chuva começa a pestanejarna manhã de 15 de Agosto...

Para ti Mãe companheira um bom dia da Mãe África amordaçada na escravatura dos pobresgentes cansadas de longas caminhadas até ao infinitodo fim. Para a minha Mãe amiga Um bom dia do teu filho que vive procurando o colodoce para prazer e carícias à sua barba dispersaFaz tempo sem ver o gume de uma lâmina

Bom dia Mãe ( todas as Mães da minha África!) Um bom dia dos teus filhosQuixico, Sumbanguia, Tcivinda, Capitangoe sem esquecer o filho descontente Tomás Simão

Dedicado a minha mãe e a todas as mães de África;Este poema já foi publicado no espaço poético: Safra Nova, coordenado por malogrado escritor angolano Ricardo Manuel, Jornal de Angola do dia 7 de Outubro de 2001

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Enchente na Rua das Flores

Data Anos 40, do século XX.

Procedência S/R

Dados HistóricosRua das Flores inundada: situação frequente para a época. A rua das Flores, hoje rua Dr. Manoel Esteves, é uma das ruas mais antigas da cidade que já constava do traçado feito pelo Eng. Roberto Schlobach no ano de 1853. O casario que aparece, foi construído entre as décadas de 10 à 30 do século XX.

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Enchente na Av. Israel Pinheiro

Enchente na década de 60 na Av. Israel Pinheiro ao fundo a estação Bahia- Minas, hoje Luiz Boali e atual rodoviária. (Segunda enchente em Teófilo Otoni ).

Enchente na Av. Israel Pinheiro

Enchente na década de 60 na Av. Israel Pinheiro com a Rua Padre Virgulino no terreno vago foi construído o colégio Estadual (E. E. Alfredo Sá).

Enchente na Av. Luiz Boali

Enchente na Av. Luiz Boali com a Rua Padre Virgulino na década de 60.

Enchente na Av. Luiz Boali

Enchente na década de 60 na Av. Luiz Boali e Rua Engenheiro Lindenberg (Várias casas caíram na Rua das Flores).

Enchente na Rua Antônio Alves Benjamin

Enchente na década de 60 na Rua Antônio Alves Benjamim a “Rua da Matriz” cobrindo a ponte deixando apenas o corrimão.

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