revista literaria macondo #6

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MACONDO revista literária apresenta raymundo netto, aline aimeé, élen rodrigues gonçalves, cesare rodrigues, luiz gustavo saldanha, ernane catroli, camila de sá, diana passy, anderson petroni, carina castro, patrícia vieira de faria, jorge luiz mendonça martinez, sebastião ribeiro, davi araújo, fabiola weykamp, ednice peixoto POESIA POESIA VISUAL HAICAI DOMÍNIO PÚBLICO CONTO ENSAIO CRÔNICA BIBLIOPHILIA N.º 6 SEMESTRAL outubro 2012 NOVIDADE: SEÇÃO TEMÁTICA

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Revista literaria Macondo, sexta edicao (ano 2, outubro 2012).

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Page 1: Revista literaria Macondo #6

MACONDOrevista literária

apresentaraymundo netto, aline aimeé, élen rodrigues gonçalves, cesare rodrigues, luiz gustavo saldanha, ernane catroli, camila de sá, diana passy, anderson petroni, carina castro, patrícia vieira de faria, jorge luiz mendonça martinez, sebastião ribeiro, davi araújo, fabiola weykamp, ednice peixoto

POESIA

POESIA VISUAL

HAICAI

DOMÍNIO PÚBLICO

CONTO

ENSAIO

CRÔNICA

BIBLIOPHILIA

N.º 6S E M E S T R A L

outubro 2012

NOVIDADE:SEÇÃO TEMÁTICA

Page 2: Revista literaria Macondo #6

expediente

EDITORES

francisco mariani casadoremarcos mariani casadore

COLABORADORES

os autores dos textos publicados na presente edição estão listados,por ordem alfabética, nas páginas / nais da revista.

IMAGENS

CAPA: "Mantiqueira", de Johann Moritz Rugendas (Domínio Público)POESIA VISUAL: Jorge Luiz Mendonça MartinezSEÇÃO TEMÁTICA: Fotogra/ a do acervo pessoal de Diana Passy

não nos responsabilizamos por ideias e demais conceitos expostos pelos autores, bem como pela autoria dos textos.

APOIO À PAGINAÇÃO

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CRÍTICAS | DÚVIDAS | SUGESTÕES

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ENVIO DE MATERIAL

[email protected]

Page 3: Revista literaria Macondo #6

[...] já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu

barulho, dou-lhe o meu silêncio.

Raduan Nassar

Page 4: Revista literaria Macondo #6

Chegamos à sexta edição, neste segundo ano de existência da Macondo, e a sensação de satisfação ao fecharmos os números ainda nos é inebriante. A publicação deste volume, no entanto, foi um pouco mais complicada que as demais: já havíamos che-gado à conclusão de que o melhor a fazer seria trans-formar a Macondo em uma revista literária semestral, com duas publicações por ano. Uma das novidades da vez, portanto, é a nova pe-riodicidade da revista. Com isso, o tempo para o pre-

paro do material, de nos-sa parte, e para o envio de trabalhos, por parte dos in-teressados, também se es-tende – o prazo para envios que visem a uma próxima edição será aberto por qua-tro meses, e dedicaremos os outros dois à leitura, se-leção e edição do material recebido. A Macondo #7, consequentemente, está prevista para abril de 2013, e receberemos os textos até o começo de fevereiro de 2013.

Em relação à sexta edição, contamos com um novo espaço: a seção te-mática, também voltada à indicação de livros. A nossa primeira convidada é Diana Passy, gerente de mídias so-ciais da editora Companhia das Letras, que montou sua lista tendo em mente cinco obras nas quais ela gostaria de viver. No mais, contos, poesias, haicais, um ensaio sobre Molierè e uma crô-nica integram a produção literária e apresentam (ou reapresentam) bons auto-res a vocês, leitores! Para o Domínio Público, trazemos

editorial

POESIA

página 6

HAICAI

página 20

SEÇÃO TEMÁTICA

página 23

ENSAIO

página 28

CONTO

página 33

Page 5: Revista literaria Macondo #6

para a revista um texto do (sempre ácido) João do Rio, autor de uma produção in-dispensável aos que pre-tendem enveredar pela es-crita, seja esta / ccional ou jornalística. Reservamos, apenas desta vez, a Biblio-philia para sugerirmos a lei-tura de alguns bons livros que passaram por nossas mãos nos últimos tempos – mas sintam-se à vonta-de para também partici-parem desta coluna, bem como enviarem resenhas ou apresentações de obras literárias, sejam novas ou clássicas.

Ainda sobre a presen-te edição: a arte de capa é uma das obras de Johann Moritz Rugendas, pintor alemão que viajou pela América do Sul, durante a primeira metade do século dezenove, e foi responsável por retratar e imortalizar tal cenário. O nome lhes é familiar, pela via literária? Rugendas também foi per-sonagem em uma novela de Cesar Aira – “Um aconte-cimento na vida do pintor viajante” (edição brasileira pela “Nova Fronteira”, lan-çada em 2006). Caso ainda não o tenham encontrado

por lá, a dica de bons livros já começa aqui, pelo edito-rial. E, por / m, só podemos esperar que aproveitem este novo número.

Boa leitura!

CRÔNICA

página 42

BIBLIOPHILIA

página 43

POESIA VISUAL

página 46

DOMÍNIO PÚBLI-

CO

página 48

COLABORA-

DORES

página 56

Page 6: Revista literaria Macondo #6

poesia

Page 7: Revista literaria Macondo #6

7outubro 2012

alter et idemeis que a ave volátil declama o peixe solúvel

e de repente a geogra/ a de uma rasuraconta a história d’alguma literatura

e são os ininteligentes elegíveisna universalidade intraduzívelismismos mesmo preferíveis

à grande banalidade indigerível

que a biblioteca me preserva a ignorânciaporque o pior labirinto é uma linha retase nas leituras solitárias desde a infânciatornar-me um outro e o mesmo é a meta

contemplo o duplo na re� exão volúvelaltero-me só um pouco e no re� exooutro é um eu de mim desconexo

davi araújo

Page 8: Revista literaria Macondo #6

8 MACONDO revista literária

poesia

liberdade de expressãocada palavra que digo é o que signi/ conão me contradiz

não me liquidi/ cocada gole que entorno é o que beberico

cada problema que assinalo é o que xisnão me cicatriz

não me metri/ cocada linha que escrevo é o que versi/ co

cada máscara que encaro é o que nariznão me per/ s

não me namoricocada beijo que abocanho é o que kiss

davi araújo

Page 9: Revista literaria Macondo #6

9outubro 2012

"ondula e renasce..."ondula e renascecorpo magoado

a despir-se dos hábitosa umedecer tantas marcas

sangrando venenosescoando estofos

a reduzir-se leve\ girassol descoberto /

transluminosoem cor.e.o.grafado

nas linhas de uma músicadogmágica, ritualírica

a desdobrar-se em hélicesprum vôo acidentadonas infrações do fogo:

(de)move-sedesfênix

aline aimeé

Page 10: Revista literaria Macondo #6

10 MACONDO revista literária

poesia

"impulso im/pele..."impulso im/pele

açoita e meempurro - oroboro:criança borgeana

(má)niveladaporque me arrast(r)o

ainda que pesadasísifo das horas

teim - ando

...woman being...

aline aimeé

Page 11: Revista literaria Macondo #6

11outubro 2012

"o peso da tua letra..."o peso de tua letraleva-me, levelava-me, lavamata-me, brasapara que eu evaporeturva e incertae revele minha verve amarga

plena ainda que desfeitapura, pois que ilimitada.

aline aimeé

Page 12: Revista literaria Macondo #6

12 MACONDO revista literária

poesia

roma, 1978O homem está entre Deus e o vazio.

E cabe a ele escolher.Descartes

Não importava O quanto a fumaçaViolenta ardia-lhe os olhos imaculados.Ergueu as mãos para o altoE declamou alguns versos russosEm nome daqueles HomensQue se vestiram de fumaçaE voaram para longe dos campos. Campos estes, que no lugar de árvoresHaviam plantado[em vermelho e preto]Sob a grama verdejante bombas.No lugar do perfume das � oresHaviam exaladoO cheiro de carne queimada.Não importa O quanto a fumaçaViolenta, ainda, ardia-lhe os olhos imaculados da memória,Elegeu para si O amor da vida eternaEm nome dos Homens:À salvação da essência Humana.

fabiola weykamp

Page 13: Revista literaria Macondo #6

13outubro 2012

cônjuguesà outra ele in� ama

tudo verte mobiliza o tédio lhe enche o dia com espaços até

que se encha com sabor de fêmea

de mim pouco estima vista cansada braços fracos de mim nada

detém ele permanece engolindo o que nunca

tira do lábio dela

sebastião ribeiro

Page 14: Revista literaria Macondo #6

14 MACONDO revista literária

poesia

expect(a/o)revocê está na casa que pagarei em 35 anos. faz-me acreditar que se pode guardar amor no pote de açúcar.

tão claro é saber que não vais exigir sobriedade de minhas faltas na impensável data da con/ ssão:

é natural nos constatar imãs e, se puder chamar isto de amor, vai dormir no capacho.

minhas certezas assistem à tv aberta numa casa cheia de baratas.

e quando en/ m encontrar tua boca seremos mais uma dúvida no universo.

não bastamos – o corpo não cabe na mente – o resto é esperarmos amanhecer.

pousares a cabeça em meu ombro implica preparar uma herança.

Page 15: Revista literaria Macondo #6

15outubro 2012

sigo sem perceber essas linhas em tuas olheiras cheias de en/ ns.

quando não pareceremos lençois encardidos?

na saída dum truísmo [ausência é o jumento desesperado pelo saco de lixo no poste] quero a pureza de poder te dizer algo sem querer querendo.

o resto é esperarmos amanhecer.

sebastião ribeiro

Page 16: Revista literaria Macondo #6

16 MACONDO revista literária

poesia

orfandadeNuma tarde de destinos quentes,

na clareira aberta pela insônia costumeira,parei no centro de mim sem rumo.Entre suores e calafrios alternados,

entre o vão do certo e o abismo do inesperado, decidi pôr / m aos intermináveis porquês.

Quis chamar as coisas simplesmente de coisassem enumerá-las, classi/ cá-las, semantizá-las...

À margem de seus castelos imaginários,a razão perdeu sua condição de gélida senhora e se fez menina simples de � or e / ta no cabelo.

Com semblante cansado repleto de susto e medo,adormeceu silenciosamente farta de si.

Inconsolável.Sem que ninguém decifrasseas entrelinhas da orfandade.

Seu humilde e sonoro pedido de adoção.

patrícia vieira de faria

Page 17: Revista literaria Macondo #6

17outubro 2012

molduraVocê ainda dormia profundamente

quando eu decidi traçar nossos destinos.Peguei uma caneta de azul desatino

e liguei delicadamente os pontos sardentos das suas costas.

Entre uma linha e outra,tatuava hieróglifos no seu corpo

povoando seus sonhos como você fazia cócegas nos meus.

Era uma espécie de vingança sádica.Um polígono de muitos lados

que coubesse só você e eu.

patrícia vieira de faria

Page 18: Revista literaria Macondo #6

18 MACONDO revista literária

poesia

garoa sobre márioa paisagem um pouco molhadade cinza não impressiona muitosão pingos mínimos de pontilhismo

as mãos de pedro peneiraramprecespuídase pela trama de arame passou a farinha pluvial

e como uma nuvem esfareladaa poeira caía da abóbadaas partículas de pedidos líquidosliquidadosem pó, polinizando dânae infecunda

rocio nos rostosgotículas, gorjetasmal molha

apenas pousa como poesia

Page 19: Revista literaria Macondo #6

19outubro 2012

não ameaça o guarda-chuvanem o guarda-sol do camelôtodos aguardam reticentesos pingos nos issinais celestes

até quepagaram aos pagãos, carnavalizou-se arlequinal:taparam o sol com a peneira

carina castro

Page 20: Revista literaria Macondo #6

haicai

Page 21: Revista literaria Macondo #6

21outubro 2012

sob o céu opacovendedor de caleidoscópiosnegocia as estrelas.

encontro / no:cada um

no seu / gurino.

banco de metrôduas � ores vermelhas

rubor na face.

telhado claropõe breu quando amanhece:amoras caindo.

grama molhadachuva - menina corre

lenço de lama.

camila de sá

Page 22: Revista literaria Macondo #6

22 MACONDO revista literária

haicai

SUCULÊNCIA

Ensinamento:comer tomate

como fosse fruta.

ASAS

Fui / sgado pelo céuno caminho para casaconfundi azul e anzol.

CORTANTE

Venta num domingoa tarde, e a tristeza de

perder uma pipa.

anderson petroni

Page 23: Revista literaria Macondo #6

seção temática

Page 24: Revista literaria Macondo #6

24 MACONDO revista literária

seção temática

Os livros servem para várias coi-sas (absorver conhecimento, apoiar copos, puxar assunto com pessoas legais), mas uma de suas melhores características é como eles nos trans-portam para outro mundo. Você pode nunca ter saído da sua cidade, mas via-jar para vários outros lugares (existen-tes ou imaginários) e viver outras vidas com um bom livro. Como trabalho dentro de uma editora, vivo rodeada de livros todo dia. Tanto aqueles que adoro, quanto aqueles que ainda quero ler, ou aque-les que não me despertam o menor interesse. Às vezes considero um mi-lagre que, mesmo após um dia difícil, eu tenha vontade de voltar pra casa e LER! Mas claro, isso não seria possível se cada livro não fosse tão diferente do outro, se cada um não represen-tasse uma possibilidade nova de sair do meu dia-a-dia e experimentar uma vida completamente diferente. Partindo dessa ideia, escolhi cin-co livros dentro dos quais eu gostaria de morar1:

1 A lista, claro, é bem diferente do que poderiam ser considerados meus livros favoritos. A" nal, não sei você, mas eu não gostaria de viver dentro de "Ad-mirável mundo novo", por exemplo!

Diana Passy é formada em Editoração (USP) e trabalha como gerente de mídias sociais na editora Companhia das Letras

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25outubro 2012

Só garotos - Patti Smith

Viver a Nova York dos anos 70 junto com Patti Smith e Robert Mapplethorpe, presenciar alguns dos meus artistas favoritos surgindo e alcançando seu auge. Seria um sonho!

O circo da noite - Erin Morgenstern

O livro descreve um circo que só funciona à noite e é, na realidade, o pal-co para um duelo entre dois jovens má-gicos que acabam se apaixonando. Essa competição acontece não como uma luta, mas sim como uma competição em que cada um tenta criar a atracão mais incrível. As descrições são tão be-las que é impossível não querer conhe-cer o carrossel, ou o jardim de gelo.

Page 26: Revista literaria Macondo #6

26 MACONDO revista literária

seção temática

The time of their lives: the golden age of great american book publishers, their editors and

authors - Al Silverman

Confesso que esse é uma trapaça. O livro reúne relatos de mais de 120 editores, publishers e autores que trabalhavam no que é considerada a época de ouro do meio editorial americano (1946 até o começo da década de 80). Desde a criação das grandes editoras, até o surgimento dos autores reconhecidíssimos de hoje, o que / ca mais claro é quantas dessas pessoas são fascinantes.

The Disreputable History of Frankie Landau-Banks - E. Lockhart

Frankie mudou durante o verão. Sua família ainda a vê como uma me-nina inocente, e os garotos do colégio a veem como a nova garota bonita que vale a pena perseguir. Nenhum deles, entretanto, reconhece que Frankie é mais inteligente que todos eles, e não aceita “não” como resposta. Ela então monta um plano para se in/ ltrar no clube masculino secreto do colégio, e mostrar que não deve ser subestimada. Coloquei esse na lista só porque acho que seria muito divertido me juntar à Frankie em seus planos geniais!

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27outubro 2012

Remainder - Tom McCarthy

Considero a história desse livro atraente justamente porque é tão estranha. Um homem acorda no hospital sem saber por que está lá. Ele só se lembra de ter visto algo caindo no céu, e aparentemente isso é o su/ ciente para que tenham lhe oferecido uma fortuna como indenização para / car quieto. Confuso, o homem resolve gastar o dinheiro para recriar uma cena que lhe aparece na cabeça. Ele contrata empreiteiros, arquitetos e atores cuja única função é recriar a memória de um prédio com uma rachadura especí/ ca, com um pianista no primeiro andar, uma vizinha que cozinha fígado, gatos no telhado ao lado... A cena deve se repetir in/ nitamente, conforme as

ordens do homem acidentado, que não sabe dizer qual é o objetivo / nal, e não se importa que quilos de fígado estejam sendo desperdiçados, ou que não faça realmente diferença se o pianista está lá ou se deixou uma gravação.

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ensaio

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29outubro 2012

Dois desdéns / ngidos, um � erte e a prontidão

da justiça em Tartufo, de Molière

Cesare Rodrigues

1

O rapaz entra esbaforido. Acaba de descobrir que sua noiva desposaria outro homem por ordem do pai. Discutem a ampli-tude do amor dos dois. Desdenham / ngidamente dele. O rapaz a aconselha que siga a determinação. Ela se apresenta pronta a submeter-se, sendo ele quem aconselha. Fazem cena exagerada, disfarçando muito mal um amor que os deixa tensos. Não fosse a eloquente presença da criada botar-lhes os pés no chão e tudo estaria perdido para o amor dos dois. Ela tem que puxar um e o outro ao centro do palco, fazê-los dar as mãos e con/ rmar que seu amor pode vencer a ameaça. Depois tem trabalho para sepa-rar os namorados falastrões cada um para seu rumo. A cena é de Tartufo [1664], clássica peça do rei da comédia

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30 MACONDO revista literária

ensaio

francesa, Molière, famoso por ter mor-rido efusivamente aplaudido em cena [de O Doente Imaginário, de 1673] e ter dado novo sentido ao gênero que se encontrava combalido, não gozando de nenhum prestígio até que o ator Moliè-re se inventasse autor e o revitalizasse. Seu cenário é a então corrente Paris do século XVII, da graciosa corte do Rei Sol, Luis XIV, quando a modernidade ainda nem ameaçava ruir a aristocracia em seus velhos costumes e apenas come-çava a borbulhar no imaginário da bur-guesia. Molière, muito à frente, já fazia rir da ainda embrionária decadência dos costumes. As personagens dessa cena, a que encerra o segundo ato, são Valère, Ma-riane e Dorine, a criada. Pouco antes, Mariane e Dorine discutiam o amor da primeira por Valère, seu noivo. Prome-tida em casamento ao moço, Mariane agora deveria, por ordem do pai, casar--se com Tartufo, o falso beato que ain-da sequer aparecera em cena, mas cujo angelical comportamento arrebatara o pai e o / zera inconsequente desonrar a promessa da / lha. A situação tragicômica do desdém / ngido, ridículo e dissimulado dos dois em meio às inúmeras críticas alegóricas à sociedade francesa é uma doce intran-sigência, a cena mais desnecessária da

peça para simplesmente rir-se da pai-xão, uma pequena digressão de amor.

2

Molière à época já gozava de pres-tígio como o grande comediante da França. Com ásperas análises sociais, suas peças iam além do riso: divulgavam ideias e estimulavam o pensamento crí-tico e atuante. Incomodavam, pela falta de sutileza, aos mais diversos estratos e tirava gargalhadas de tudo e de todos, o que acarretou-lhe problemas com a censura e a Igreja. Especialmente por Tartufo, um sacerdote mais exaltado chegou a conclamar: “sacri/ que o autor no fogo, cujas chamas hão de ser-lhe o prenúncio do inferno!”. Mas se antes, ainda apenas ator, já peitara a todos e tornara-se grande com a menosprezada comédia, a despeito de ser então a tragédia maior garantia de fama e sucesso, o dramaturgo não retrocederia em polêmicas e potencial crítico, embora tivesse que ceder um pouco em seu arrebatamento à onipo-tência do Príncipe. Com pequenas alte-rações, o mundo estaria salvo para Tar-tufo & companhia e Molière faria outro retumbante sucesso no papel do mani-pulável Orgon.

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31outubro 2012

3

Muito da potência e do mistério da peça intensi/ ca-se a cada momen-to por uma ausência: Tartufo, a perso-nagem-título, demora a aparecer em cena. Até o terceiro ato é ansiosamente aguardado, precedido de muita reputa-ção [é em torno de si que se desenro-lam os diálogos dos dois primeiros atos e inclusive a desnecessária cena dos desdéns]. Quando ele / nalmente apa-rece [o noivo por quem Mariane troca-ria Valère, o anjo que conduziria Orgon e toda a família ao céu, o falso beato ti-rando proveito da fé alheia], os con� itos começam a se apresentar e resolver tão rapidamente quanto sua ingenuidade permite. O “vilão mal-intencionado”, não consegue conter o desejo e atira-se sobre a mulher de seu an/ trião, ainda que essa atitude o desmascarasse. Fos-se o vilão tão mesquinho e calculista, casar-se-ia com Mariane e viveria bem às custas de Orgon. Mas lá foi Tartufo dar ouvidos à emoção, seguiu seu desejo e botaria todo o plano a perder não fos-se tão longe a cegueira de Orgon, que transferiria ao beato todo o patrimônio como prova de con/ ança mesmo após o � agrante do / lho no primeiro � erte:Uma cena apresenta Damis e sua revolta diante da atitude do pai, que anunciara

o casamento de Mariane com o beato. Ele se esconde dentro de um gabinete e � agra, numa das primeiras aparições de Tartufo o grande ápice da peça, a de-monstração de fraqueza que incrimina o vilão e começa a botar o plano a per-der: o � erte. Estão em cena Tartufo, Elmire [a esposa de Orgon, pai de Mariane e Da-mis] e Damis, escondido. Tartufo toca o joelho de Elmire, aproxima-lhe a cadeira e confessa o amor. Provocado, [“o que desejo é apenas uma conversa em que seu coração de revele e nada me escon-da” ou “acho que todos os seus suspiros dirigem-se ao céu e nada aqui em baixo atrai os seus desejos”] Tartufo revela-se verborrágico e audacioso ao ofertar--lhe o coração, mas o arrebatamento de Damis interrompe a con/ ssão e rouba a cena [e acaba com o plano de Elmire de trocar seu silêncio pela rejeição de Tartufo em casar-se com Mariane]. Sua insatisfação o leva a denunciar o beato ao pai, a despeito da mãe preferir a dis-crição, e é expulso de casa pelo pai por ousar questionar tão pura alma. Cego, apaixonado por Tartufo, Or-gon passa-lhe a propriedade de todos os bens e o falso beato prontamente os exige após ser � agrado por Orgon, es-condido como o / lho numa armadilha tramada por Elmire, em uma segunda

Page 32: Revista literaria Macondo #6

32 MACONDO revista literária

ensaio

investida pelo coração de sua esposa. O desastrado Tartufo exige pela força da justiça os bens e entrega a ela os segredos comprometedores de Or-gon. A peça se encaminha para a vitória do vilão valendo-se da boa fé da aristo-cracia. Mas, para a felicidade da corte, a justiça não tarda em magicamente se fazer: pune o larápio e devolve os bens a Orgon. Um abrandamento necessário para ser aceito pela censura, no / nal a Justiça do Príncipe se sobrepõe ao ta-lento e vilania de Tartufo e até Valère toma de volta a mão de Mariane, a des-peito do desdém / ngido de algumas cenas antes.

4

O núcleo donde se dá a explosão dramática em Molière é a interpretação do ator. Foi de dentro da cena que ele descobriu o teatro e é lá que o teatro acontece. O texto de Tartufo não passa de sequência de falas, um script com apenas uma ou outra rubrica, quando estritamente indispensável. A capaci-dade de improviso e personi/ cação de alegorias do ator deve não apenas dar vida à personagem, mas conduzir todo o ritmo da peça.

O minimalismo cênico atira toda a representação apenas ao jogo de re-lações e é por dominá-lo que o vilão Tartufo sairia como o vencedor. Apenas Cléante e Dorine, menos in� uenciados por Tartufo e menos in� uentes na fa-mília, não perdem o controle das ações movidos pela paixão. Os racionais são os impotentes. E os poderosos entre-gam suas vidas a impostores, charlatães e todo tipo de vendedores de fé e de sorte. O grande problema estaria justa-mente aí. A Igreja viu-se ofendida por ter um personagem beato [cuja carac-terização se assemelhava muito à dos sacerdotes] escancarando seus defei-tos como vilão e tapeando a fé da aris-tocracia. Molière poderia utilizar suas histriônicas personagens alegóricas, equiparadas por Baudelaire aos deuses e heróis gregos em suas lendárias Flo-res do Mal, para fazer troça com todo o mundo, desde que não ofendesse a fé em Deus e no Príncipe. Então vem a fantástica lição de moral do / nal, corrige as intransigên-cias, dá a vitória ao bem e permite que Tartufo se torne parte do cânone da li-teratura ocidental.

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contos

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34 MACONDO revista literária

contos

o personagem heleno

luiz gustavo saldanha

O ensaio – ensaia. O menino He-leno. O texto a decorar, quase comple-to. Não era papel protagonista, longe disso, mínimas falas, coadjuvante, com entradas em cena contadas em uma só mão – enxutas aparições em uma tra-gicomédia repleta vil. Às sextas-feiras, após o término da fatigante aula de matemática, Heleno lascava uma bito-quinha em sua estimada namoradinha, comprimia-a rijamente com braços de adeus e logo se apressava para o ensaio no acanhado teatro do próprio colégio. Nem almoçava. Desalterava-se de palco mesmo. Ainda ávido de pressa, vestia um traje mais frouxo e, como um ritual sacro despropositado, cumprimentava o restante do elenco, acenava ao se-nhor medianeiro diretor – seu também professor de palco e curador do espetá-culo –, este que nada exprimia além de uma costumeira indistinção na face. Fei-to isso, o garoto ensimesmava em um canto ao ermo – às vezes no banheiro

–, represava-se nas duas laudas pendi-das em suas mãos ansiosas, matronas de suas falas; apreendia cada fonema e suas devidas entonações, com fugazes frases abafadas pelas melindrosas mãos concavadas sobre a boca, apetecia ele penetrar como punhal a personagem. E conseguia. “Mas que tramoia é essa de teatro, meu / lho”, era o que mãe de Heleno, com ameno espanto, indagava-lhe ao apanhar o garoto, buliçoso, burilando bucais mímicas de seu mindinho texto, em seu quarto eremita, agora tablado particular? “Coisa de professor, mãe”, respondia convincente, deslizando de si, ao menos na conversa, o pesar de sua escolha sobretudo instintiva – um lupi-no escondendo a fome. A mãe assentia e não mais discutia, voltava, portanto, à sua molesta pia – labuta de todo dia. O fato é que Heleno sempre farejou, es-condido que fosse, tudo o que era sim-pático e contíguo a cênicas, apreciava as entrevistas com atores no diário do-minical, lia as críticas, as quais eram es-critas com garbo, falavam elas de ener-gia espiritual dos personagens – como seria aquilo? O menino apenas achava descontração diante de sua compreen-sível temporã incompreensão –; contu-do, enfunava-se em anseio próprio de pela primeira vez ser apresentado a um

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espírito de artista. Heleno era recatado, calado, contido, ria para si, desejava só para si – não revelava. Teve magno es-torvo ao abordar o professor diretor e admitir-lhe que gostaria, sem arengo e de corpo liberto, de estrear em sua trupe – gaguejou. O diretor professor sorriu faceiramente e pediu ao garoto assaz tímido que escolhesse uma perso-nagem, visto que os papéis masculinos já haviam sido / sgados por outros dois meninos um tanto mais ligeiros. Dona Fausta, a mãe da personagem princi-pal, mera secundária, resguardava-se, tomada pelo tricô, em uma cenográ/ ca cadeira de balanço; quando entrava em cena, ora ou outra questionava sua / lha sobre casório – tinha a presumida velha anseio de matrimônio, no roteiro. Tinha Heleno, moroso de empá/ a, receio de sua manifestação; elegera, portanto, papel apoucado como o seu primeiro. Dona Fausta era o bastante para Heleno – era minúscula. Aliviado pela valentia na escolha arrojada, regressou saltean-do para casa ainda encorajado; proseou algumas ninharias com a família – pais e os irmãos –, entrincheirou-se, en/ m, em seu quarto, aprazido, aprazendo-se do seu modo: só para si. Calcar os pés na madeirada bru-nida do acanhado palco do colégio era um sentir bem distinto do vislumbrar

do palco recheado com todos os seus atores afamados de um teatro hercúleo qualquer, na imagem preta e branca do diário de domingo, comprado com esse intento único: a contemplação. A foto-gra/ a caluniava – carecia do deleitoso. O sentir de Heleno tinha algo estrambó-lico e também aprazível, composto do penetrante cheiro inegável de madeira e seus agudos conservantes, amalgama-do ao ranço natural que as combalidas cortinas empoeiradas exalavam; mas, sobretudo, aquele sentir do palco deti-nha, em sua composição, a visão do te-atro de baixo para cima: de dentro para fora – o que de fato era deveras singular ao garoto; e aí, sim, era o anônimo es-pírito de artista lhanamente � oreando. O prazer encoberto; esse talvez o real abismo da dualidade nata entre ator e espectador: a inefável visão em cena de quem tem por dever mencionar-se. He-leno optara agora por ser ator, não im-portando se absconso, mencionaria seu brado de alforria. Vivia, contudo, para os fatigantes ensaios de sexta à tarde, intumescia-se durante a duradoura se-mana, de ardor, vigor, amor, e o ensaio era a catarse de tudo isso. Levitava nu dentro de suas roupas frouxas, ouvia os mordicantes pisados dos atores outros no palco – lapsos régios de som –; e, então, Heleno asseverava-se de que ao

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cênico queria atar-se perpetuamente sem reversão do almejo, pois seu cor-po � orescia-se e, como é espontâneo do corpo, enrubescia-se, ansiava-se; os pulmões labutavam ao limiar do de-sespero – era momento de entrada em cena. Texto dito com retidão, uns ou ou-tros remendos de expressão feitos pelo complacente diretor a título de direção – encenação mesquinha que fazia o me-nino crer que havia sido concebido para tal... “Não há desvio de destino”, pensa-va consigo. Ao / nal, o suor que escorria pela testa era o a/ rmado particular de logro, como quase sempre ele é. Suor que se anovelava às lágrimas voluntá-rias, em uma aguaceiro só – ninguém o percebia enquanto voltava para casa, à noitinha. Como o corpo não se manifes-tar ao descarar outra vida em si! Heleno chorava e secava-se. Tremia. Estremeciam as mãos / -nas de dedos alongados – os pelos ra-los dos braços eriçavam de chofre. Era o de� orador som despretensioso envere-dando-se pelos ouvidos surpreendidos de Heleno, e logo o mesmo corpo que suava de logro, suava agora de pavor. Logro e medo ladeiam-se sem notar-se um ao outro – ora se esbarram. Aque-la concisa, porém bem cabida frase do diretor ao seu elenco, soara sobretudo angular no peito frágil do menino ago-

ra inteiro trêmulo – “Pessoal, é nossa última semana de ensaio”. O espetácu-lo precipitava-se com presteza de tem-pestade. Receio de Heleno. Hesitação de menino � anqueando os quatorze anos. Cria Heleno que permaneceria repetindo as enfadonhas minúsculas falas de Dona Fausta até quando se sen-tisse confortável, cingindo a perfeição; ou quiçá nunca houvesse devaneado semelhante esmo de apresentação. Era um menino parvo em si, parvo de si. E, se esquecesse, eventualmente, uma fala qualquer das duas laudas tão revisadas – receava –, se saísse ainda em dispara-da pela porta detrás do teatro no exa-to momento de sua entrada em cena – hesitava. Não lhe contaram que teria que se mostrar a um público sequioso e apreensivo, que abarrotaria o somítico espaço, testemunhando até os involun-tários triviais coxos de verbos e de mo-vimentos corpóreos de todos os atores. Ensaio é a / m de aguardar a apresen-tação, a Heleno era tão somente a / m de descoberta. O garoto chorava no enclausurado banheiro do teatro, des-ramava lágrimas de a� ição dos olhos desencorajados em encarar-se – não se / tava de modo algum no espelho. Era incapaz. Náusea, náuseas – frisos no es-tômago. Cogitou abalroar o compreen-sível professor, com verossímil coragem

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que o / zera anteriormente voluntariar--se à trupe, e clamar por adiamento ou até por sua renuncia ao papel de Dona Fausta – não o fez, estagnou-se no ba-nheiro, purgando-se com seu sincero choro. Não iria comprometer a trupe e o público a� ito do espetáculo, Heleno era fraco, mas zeloso para com os outros. Foi para casa, a/ nal, havia de engendrar um / gurino e uma suave maquiagem; sobretudo, havia de lavrar, em reserva-do, sua ingenuidade com a água estre-me e franca do seu pranto. Heleno fazia teatro de si. Custou a adormecer à noite, apenas uma dormitação ligeira que lhe fez sonhar com aplausos e ovação – um naco de credo ainda por/ ava. E, quan-do o sol já acalorava, ergueu-se de sú-bito como se apurado do sonho, sem nenhuma relutância do corpo, havia de acossar um / gurino. O espetáculo não tardava. “Ó Alguém, o que fazer”, o débil garoto questionava, desamparava-se. Heleno era tão somente desassossego. A casa desértica. Nela, naquela manhã, só Heleno desesperado, inquie-to, obstinado a montar seu / gurino, va-gando de lado a outro a procura de... A única provável fornecedora de adornos à Dona Fausta, naquela casa, só poderia ser a senhora mãe de Heleno – solitária mulher em meio à família –, todavia, o empréstimo de qualquer trivial objeto

havia de ser velado da proprietária – a mãe desgostava, com ódio, Dona Faus-ta. Correu ao quarto dos pais, cômodo convidativo, aberto, no qual os armá-rios eram recheados de feminidades da mãe. Vasculhou gavetas perras e ar-mários rangentes, calhou nos vestidos diversos em cores e tecidos – / gurino tão conveniente seria um vestido. Um vestido antiquado rubro, de seda, com uma linha cintilante prata perseguindo o decote – não vacilou em escolhê-lo. Quis carregá-lo o quanto antes, que fos-se embolado nos braços – temia –, quis ainda o experimentar ali mesmo – pre-cipitava-se. A forma para um conteúdo. A bainha do vestido um palmo abaixo do joelho ossudo do menino – cumpri-mento e largura exatos na lisura. A seda grudou naquele corpo esbelto de modo a evidenciar uma precoce, mas natural lascívia. Heleno, então, abriu uma ga-veta larga, e lá estavam diversos pares de sandálias, sapatos, tamancos, chine-las; catou uma sandália preta sem mui-ta arbitrariedade, contanto que tivesse tacão bem alteado. As sandálias pretas exibiram-se justas nos pés / nos e / rmes do garoto, marcando a pele e ateando--lhe aparência terna, de fêmea. Heleno abrandava sua pressa – respirava não mais imerso. Em seguida, deparou-se de relance perpassando ante ao espelho da

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penteadeira, retornou a ele e contem-plou-se: as nádegas bem sobrepujadas pelo vermelho e pelo charmoso tacão – curvatura bem contornada dos mús-culos, rígidos, um tanto mais estimados. Demorou-se um certo tempo transmu-dando as poses diante do espelho, de costas, de frente, de soslaio, alternando pernas; e, por / m, percebeu um busto liso, faltoso em tudo. Recorreu à pente-adeira, apanhou o mais fulgurante dos vastos colares – alusivo a um rubim –, no pescoço árido era onde posaria a peça. Os braços longos e secos derra-mando-se na seda vermelha do vestido como orvalho sobre as folhas, ornavam elegância juntos às pulseiras douradas. Percorrendo adiante seu corpo com os olhos e com o tato, Heleno avistou o ros-to lívido, insosso, paralisou-se estarreci-do, pensou ter visto outra pessoa, quiçá uma legítima mulher – não prolongou descon/ ança. Assaltou, sim, as tintas da mãe e não as poupou em seu rosto jo-vial, meneando-as: cílios tingidos de ne-gro, lábios dardejantes – rubros. Fitou--se por penúltimas e últimas vezes no espelho escancarado da penteadeira – dos pés à cabeça –, escondeu com o ca-belo curto as orelhas cruas sem brincos. E, como esmero, borrifou duas vezes, no pescoço e nos pulsos, o adocicado perfume de fêmea que encontrou por

lá – por / m, saiu do quarto caminhado compassado, ás sobre o salto, rindo: He-leno rindo como Hiena.

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o homem que virou relógio

raymundo netto

Cruzava a praça da igreja matriz quando, súbito, estacou e dali não mais deu único passo. As pessoas o viam, perguntavam “passa bem”, ele de apenas tiquetaque-ar palavras mecânicas, quase absurdas. Os dias passaram. Ele, inda imóvel na praça, empoleirado por pássaros e pombos. Movimento apenas o de sua som-bra a alongar-se pelos mosaicos de ci-mento, servindo de relógio aos mora-dores da cidade. Com o tempo e o costume, aper-feiçoou-se na função: anunciava as ho-ras, aniversários e datas festivas, cantava músicas de meia em meia hora, enfeita-va comícios, despertava a cidade, aca-lentava os bêbados dela aos seus pés. Levou um tempo. As crianças e a cidade cresceram. Aquele homem no meio da praça parecia antiquado à mo-dernosidade invadida e dominante da região. As mentalidades ditavam-lhe o

futuro de consumo. Tempos-há, olhavam-no com des-dém, logo aqueles que, há pouco, lhe precisaram tanto. De outro lado, não era mais o mes-mo... atrasava! Os mais saudosistas inda tentaram, levaram-lhes medicamentos, assistência médica, mas era de certo a sua debilidade. Sabia-se ser o rastro das horas implacável até com quem devo-tara a própria vida à sua causa. Dia, à tristeza de alguns – poucos –, operário veio à praça e o picaretou a não deixar-lhe sequer lembrança. Noutro, muito rápido assim, rapa-zinho de pele úmida surgia e se / xara em semelhante local. Olhos brilhantes, digitais, e lume no sorriso, anunciavam de o tempo não poder parar, ao / nal, é do futuro chegar sempre, devastando o entulho da humanidade.

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contos

espelho, espelho meu

ednice peixoto

A faca desliza sem estranhamento. Um / lete de sangue escorre, descobrin-do a falta de realeza no vermelho que cai. Um impulso mais forte atravessa a pele causando um pequeno estremeci-mento. Não dor, um roçar mais quente. Acostumada, não se importa. En/ nca a ponta da faca, fazendo um semi-arco no braço, deixando um risco de sangue vis-coso a escorrer. O alvor do pano se es-curece no enxugar. Normal. Nada para ela é estranho. Ninguém conhece esses traços que se misturam às veias das coxas, aos músculos das costas, às glândulas dos seios. Nua nunca se postara a ninguém, médico, amante. Só ao espelho se dá. E por causa dele começara a se lanhar em desespero à imagem re� etida. Naquela hora aprendera a odiar seu corpo. Não adiantava os vestidos molda-dos com desvelo que a mãe insistia em meter-lhe corpo a fora. A lingerie com-prada em grandes lojas, tecido que ama-

ciava as mãos e punha-lhe fogo. Vestia obrigada e amuava-se calada e hirta na cadeira da sala à vista de todos. O silên-cio lhe roendo por dentro, na cabeça de todos uma doida. De que adiantavam aqueles panos, se a carne era má e feia? Pra que tudo se a danação vivia dentro dela, forçando léguas? Des tá, dizia pra si, um dia verão! A promessa nem mesmo lhe tinha sentido, pois não sabia o que fazer para descontar a raiva que lhe impregnava o viver. Olhar-se era o que lhe restava. A imagem era de um mar sem / m, o es-pelho parecia entronchar a moldura, querendo da parede se esvair. Se tives-se coragem, punha-se nua à frente de um médico pedindo que lhe arrancasse o excesso, deixando-a / na. A vergonha, no entanto, não lhe permite tal ousadia. A casa se tornara um claustro. Há tempo deixara a escola, os encontros com as amigas. Contato só telefônico, mesmo assim com poucos. Como se mostrar larga ao ponto de mal caber numa cadeira? A imagem que via era grotesca, puxada por um guindaste para subir num ônibus, em automóvel qualquer, vítima de risos, olhares de re-pulsa, alguns até de pena. Percebe que aos poucos uma in-quietação se apodera da mãe. Olhares dissimulados, gavetas remexidas, sinais

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de uma vigilância disfarçada. Não se incomoda. Aprendera a esconder os si-nais. Con/ ante, sabe que a mãe não lhe descobrirá os esconderijos onde seus utensílios de tortura são guardados, onde seus líquidos viscosos em fel são enterrados. É preciso ter cuidado com o comer. Não pode se deixar convencer pela mãe que reclama da comida de pinto que jaz no prato. Todos os dias a cantilena à mesa lhe martela a necessidade de se alimentar bem, de se exercitar, que ela não está Moby Dick. Sabe de tudo isso, mas sucumbir àquele pudim é deixar mais disforme a imagem no espelho, é riscar mais sangue no corpo que a custo se mantém sobre os pés. Aos poucos um cansaço toma conta de seu corpo, as pernas com vida própria se negam ao movimento, dei-xando-a prostrada na maior parte do tempo. Recusa o suco, o remédio, ne-ga-se ao médico. Alucinações lhe ator-mentam e aos gritos pede para que re-tirem do quarto o espelho, onde se vê com tantas longitudes. Alarmada ao ver os lanhos no cor-po da / lha, a mãe não compreende. O primeiro pensamento é de culpa pela cegueira em não ver o quanto a / lha sofria. Na tentativa de remediar o que já parece de/ nitivo, chama o médico.

Basta um olhar para que o doutor se transforme em juiz decretando um / m. O espelho ainda no quarto atesta um corpo ludibriado pela ilusão de ser vas-to, quando na cama repousa somente pele, ossos à vista.

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crônica

Quase um fado(in Memoriam de Maria Ondina Braga)

Ernane Catroli

AQUI, O CÉU NEGRO E FIXO. Março pelo meio. O vento frio lá dos lados do rio: um introito. Assim, evitando detalhes. Que se fosse contar, só olhos vermelhos e choro desamparado. Que também, nem era hora de morrer! Onde um deser-to? E revejo o antigo casarão de frente para a avenida ladeada das centenárias tílias. Os escaninhos da memória devolvendo-me inteira, nítida, a casa paterna que deixara ainda jovem e a cidade natal que a marcara para sempre: Braga. Não esquecer: também e sempre, o seu desejo de outras terras. Uma errância que lhe caíra como uma sina. A Inglaterra, a França e a Escócia onde estudara e trabalhara na sua juventude. E aí, então, os lares alheios. As marcas indeléveis. Mais tarde, Angola, Goa, Macau. Pequim depois. Uma vida dedicada a escrever, a traduzir. A lecionar. Em Macau, no antigo colégio de freiras onde também ocupava um quarto – um cubículo, separado de outros por biombos - na casa destinada às professoras, atrás da igreja do convento. Alta madrugada, e ouvia--se o ressonar das companheiras. Tão próximas. Irmanadas no sono, no ofício e no salário pouco. A sua vida de recolhimento. De exílio. E que também muito dada ao silêncio. À solidão. Às vozes dos seus mortos. Um cotidiano povoado de personagens misteriosos, sedutores. As / ligranas do seu texto, o seu sentir. Isso o que lhe sobrara, o que lhe ocupara, atendendo a um apelo interior, anti-go, desde a infância. A infância. Esse território. Territórios. Aquela manhã envolta em brumas e o seu retorno à cidade natal... Uma se-nhora. O xale negro. Os ombros arqueados, um rosto de sombras. Até a missa na igreja de São Lázaro. Depois, o cortejo. O cemitério dos Arcos. Um silêncio. Tanto.

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bibliophilia

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bibliophilia

A fugitiva (Em busca do tempo perdido, volume 6)

MARCEL PROUST (TRADUÇÃO DE CARLOS DRUMMOND DE AN-DRADE), GLOBO LIVROS 392P. (2012)

A Globo Livros acaba de relançar o volume 6 de Em Busca do Tempo Perdido, magnânima obra da his-tória da literatura mundial. Há quem diga que Proust foi não só o principal escritor deste último século como, ainda, responsável pelas melhores narrativas que acompanham os � uxos introspectivos de pensa-mento e consciência das personagens, construídos com tanta coerência quanto maestria.

A fugitiva talvez seja um dos volumes que mais nos despertam a atenção dentre todos deste tempo perdido. A revisitação mnêmica de Marcel encontra--se com a reconstrução e recomposição da relação com Albertina que o deixa só e sem notícias. Na interposição entre memória e imaginação, a partir da separa-ção, Marcel também se depara com descobertas e acontecimentos que mudariam signi/ cativamente seu caminho e percebe, por / m, que a perda é inerente à vida, assim como os constantes recomeços. Para além do autor e da própria obra, outras duas constatações merecem nosso destaque: em primeiro lugar, a reedição primorosa e muito bonita que, tra-tada com bastante esmero, não se sobressai somente pela qualidade “concreta” do livro – prefácios e posfácios escritos por grandes estudiosos da obra proustiana, bem como notas e novos trechos que não faziam parte da tradução da primeira edição brasileira, completam a obra-prima. Em segundo lugar, os méritos / cam pelo “conjunto da obra”: a Globo Livros nos brinda com livros cuja composição da tradução diz muito da qualidade literária nacional. O presente volume / cou a cargo de Carlos Drummond de Andrade, mas também compõem o time de tradu-tores nacionais de Proust os poetas Mario Quintana e Manuel Bandeira. Não dá pra não ler...

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bibliophilia

Os acangapebas

RAYMUNDO NETTO, FUNDO DE QUINTAL 150P. (2012)

Nascido em Fortale-za, O autor dedica-se ao mundo das artes desde 1995. As narrativas curtas que compõem Os acan-gapebas, embora autô-nomas, logram o estabe-lecimento de um diálogo entre si. A linguagem de Raymundo Netto tem tamanho potencial que

aquilo que poderia ser considerado, por vezes, um registro do corriquei-ro, une-se, aqui, a uma notória inventividade. A capacidade de criar, em poucas linhas - a maioria dos contos se concentra em duas ou três páginas -, personagens que são, a um só tempo, anônimos e permeados por características pecu-liares só corrobora com a força que emana da pro-sa (na melhor acepção da palavra) de Netto. Como exemplo, re-comendamos a leitura de O homem que virou reló-gio, publicado na seção de contos desta edição da revista. No mais, de-sejamos a todos que te-nham acesso à literatura vigorante - mesmo quan-do tematiza o contrário - do autor.

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poesia visual

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jorge luiz mendonça martinez

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domínio públicodomínio público

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João do Rio

Paulo Barreto (João P. Emílio Cris-tóvão dos Santos Coelho B.; pseudô-nimo literário: João do Rio), jornalista, cronista, contista e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de agosto de 1881, e faleceu na mesma cidade em 23 de junho de 1921. Eleito em 7 de maio de 1910 para a Cadeira n. 26, na suces-são de Guimarães Passos, foi recebido em 12 de agosto de 1910, pelo acadê-mico Coelho Neto. Era / lho de educador Alfredo Coe-lho Barreto e de Florência Cristóvão dos Santos Barreto. Adepto do Positivismo,

o pai fez batizar o / lho na igreja posi-tivista, esperando que o pequeno Pau-lo viesse a seguir os passos de Teixeira Mendes. Mas Paulo Barreto jamais leva-ria a sério a igreja comtista, nem qual-quer outra, a não ser como tema de re-portagem. Fez os estudos elementares e de humanidades com o pai. Aos 16 anos, ingressou na imprensa. Em 1918, estava no jornal Cidade do Rio, ao lado de José do Patrocínio e o seu grupo de colaboradores. Surgiu então o pseudô-nimo de João do Rio, com o qual se con-sagraria literariamente. Seguiram-se outras redações de jornais, e João do Rio se notabilizou como o primeiro ho-mem da imprensa brasileira a ter o sen-so da reportagem moderna. Começou a publicar suas grandes reportagens, que tanto sucesso obtiveram no Rio e em todo o Brasil, entre as quais "As religiões no Rio" e inquérito "Momento literário", ambos reunidos depois em livros ainda hoje de leitura proveitosa, sobretudo o segundo, pois constitui excelente fonte de informações acerca do movimento literário do / nal do século XIX no Brasil. Nos diversos jornais em que traba-lhou, granjeou enorme popularidade, sagrando-se como o maior jornalista de seu tempo. Usou vários pseudônimos, além de João do Rio, destacando-se: Claude, Caran d’ache, Joe, José Antônio

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domínio público

José. Como homem de letras, deixou obras de valor, sobretudo como cronis-ta. Foi o criador da crônica social moder-na. Como teatrólogo, teve grande êxito a sua peça A bela madame Vargas, re-presentada pela primeira vez em 22 de outubro de 1912, no Teatro Municipal. Deixou obra vasta, mas efêmera, que de modo algum corresponde à imensa popularidade que desfrutou em vida. Ao falecer, era diretor do diário A Pátria, que fundara em 1920. No seu último "Bilhete" (seção diária que mantinha na-quele jornal), escreveu: "Eu apostaria a minha vida (dois anos ainda, se houver muito cuidado, segundo o Rocha Vaz, o Austregésilo, o Guilherme Moura Costa e outras sumidades)..." Seu prognóstico ainda era otimista, pois não lhe resta-vam mais que alguns minutos quando escreveu aquelas palavras. Seu corpo / cou na redação de A Pátria, exposto à visitação pública. o enterro realizou-se com cortejo de cerca de cem mil pesso-as. Na Academia, que então / cava no Si-logeu Brasileiro, na praia da Lapa, disse--lhe o discurso de adeus Carlos de Laet.

(Texto biográ/ co retirado do site da Academia Brasileira de Letras)

Crônica: Os livres acampamentos

da miséria

Certo já ouvira falar das habita-ções do morro de Santo Antônio, quan-do encontrei, depois da meia-noite, aquele grupo curioso - um soldado sem número no boné, três ou quatro mula-tos de violão em punho. Como olhasse com insistência tal gente, os mulatos que tocavam, de súbito emudeceram os pinhos, e o soldado, que era um ra-pazola gigante, / cou perplexo, com um evidente medo. Era no Largo da Cario-ca. Alguns elegantes nevralgicamente conquistadores passavam de ouvir uma companhia de operetas italiana e para-vam a ver os malandros que me olha-vam e eu que olhava os malandros num evidente início de escandalosa simpa-tia. Acerquei-me. - Vocês vão fazer uma seresta? - Sim senhor. - Mas aqui no largo? - Aqui foi só para comprar um pou-co de pão e queijo. Nós moramos lá em cima, no morro de Santo Antônio... Eu tinha do morro de Santo An-

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tônio a idéia de um lugar onde pobres operários se aglomeravam à espera de habitações, e a tentação veio de acom-panhar a seresta morro acima, em sítio tão laboriosamente grave. Dei o ne-cessário para a ceia em perspectiva e declarei-me irresistivelmente preso ao violão. Graças aos céus não era admi-ração. Muita gente, no dizer do grupo, pensava do mesmo modo; indo visitar os seresteiros no alto da montanha. - Seu tenente Juca - con/ denciou o soldado - ainda ontem passou a noite inteira com a gente. E ele quando vem, não quer continência nem que se cha-me de seu tenente. E só Juca... Vossa Se-nhoria também é tenente. Eu bem que sei... Já por esse ponto da palestra nós íamos nas sombras do Teatro Lírico. Ne-guei fracamente o meu posto militar, e começamos a subir o. celebrado morro, sob a in/ nita palpitação das estrelas. Eu ia à frente com o soldado jovem, que me assegurava do seu heroísmo. Atrás o resto do bando tentava cantar uma modinha a respeito de uns olhos fa-tais. O morro era como outro qualquer morro. Um caminho amplo e maltrata-do, descobrindo de um lado, em planos que mais e mais se alargavam, a ilumi-nação da cidade, no admirável noturno de sombras e luzes, e apresentando de

outro as fachadas dos prédios familiares ou as placas de edifícios públicos - um hospital, um posto astronômico. Bem no alto, aclareada ainda por um civiliza-do lampião de gás, a casa do doutor Pe-reira Reis, o matemático professor. Nada de anormal e nem vestígio de gente. O bando parou, a/ nando os vio-lões. Essa operação foi difícil. O cabro-cha que levava o embrulho do pão e do queijo, embrulho a desfazer-se, estava no começo de uma tranqüila embria-guez, os outros discutiam para onde conduzir-me. O soldado tinha uma casa. Mas o Benedito era o presidente do Clu-be das Violetas, sociedade cantante e dançante com sede lá em cima. Havia, também, a casa do João Rainha. E a casa da Maroca? Ah! mulher! Por causa dela já o jovem praça levara três tiros... Eu olhava e não via a possibilidade de tais moradas. - Você canta, tenente? - Canto, mas vim especialmente para ouvir e ver o samba. - Bom. Então, entremos. Desa/ nadamente, os violões vi-braram. Benedito cuspiu, limpou a boca com as costas da mão, e abriu para o ar sua voz áspera: O morro de Santo Antônio Já não é morro nem nada... Vi, então, que eles se metiam por

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domínio público

uma espécie de corredor encoberto pela erva alta e por algum arvoredo. Acompanhei-os, e dei num outro mun-do. A iluminação desaparecera. Estáva-mos na roça, no sertão, longe da cida-de. O caminho, que serpeava descendo, era ora estreito, ora largo, mas cheio de depressões e buracos. De um lado e de outro casinhas estreitas, feitas de tábu-as de caixão com cercados, indicando quintais. A descida tornava-se difícil. Os passos falhavam, ora em bossas em re-levo, ora em fundões perigosos. O pró-prio bando descia devagar. De repente parou, batendo a uma porta. - Epa, Baiano! Abre isso... - Que casa é esta? - É um botequim.A tentei. O estabelecimento, cons-truído na escarpa, tinha vários andares, o primeiro à beira do abismo, o outro mais embaixo sustentado por uma ár-vore, o terceiro ainda mais abaixo, na treva. Ao lado uma cerca, defendendo a entrada geral de tais casinhotos. De dentro uma voz indagou quem era. - É o Constanço, rapaz, abre isso. Quero cachaça. Abriu-se a porta lateral e apareceu primeiro o braço de um negro, depois parte do tronco e / nalmente o negro todo. Era um desses tipos que se encon-tram nos maus lugares, muito amáveis,

muito agradáveis, incapazes de brigar e levando vantagem sobre os valentes. A sua voz era dominada por uma voz de mulher, uma preta que de dentro, ao ver quem pagava, exigiu logo seiscen-tos réis pela garrafa. - Mas, seiscentos, dona... - À uma hora da noite, fazer o ho-mem levantar em ceroulas, em risco de uma constipação... Mas, Benedito e os outros punham em grande destaque o pagador da pas-seata daquela noite, e, não resistindo à curiosidade, eles abriram a janela da barraca, que ao mesmo tempo serve de balcão. Dentro ardia, sujamente, uma candeia, alumiando prateleiras com cer-vejas e vinhos. O soldadinho, cada vez mais tocado, emborcou o corpo para segredar coisas. O Baiano saudou com o ar de quem já foi criado de casa rica. E aí parados enquanto o pessoal tomava Parati como quem bebe água, eu perce-bi, então, que estava numa cidade den-tro da grande cidade. Sim. É o fato. Como se criou ali aquela curiosa vila de miséria indolen-te? O certo é que hoje há, talvez, mais de quinhentas casas e cerca de mil e quinhentas pessoas abrigadas lá em cima. As casas não se alugam. Vendem--se. Alguns são construtores e habitan-tes, mas o preço de uma casa regula de

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quarenta a setenta mil-réis. Todas são feitas sobre o chão, sem importar as depressões do terreno, com caixões de madeira, folhas de Flandres, taquaras. A grande artéria da urbs era precisamente a que nós atravessávamos. Dessa, par-tiam várias ruas estreitas, caminhos cur-tos para casinhotos oscilantes, trepa-dos uns por cima dos outros. Tinha-se, na treva luminosa da noite estrelada, a impressão lida na entrada do arraial de Canudos, ou a funambulesca idéia de um vasto galinheiro multiforme. Aquela gente era operária? Não. A cidade tem um velho pescador, que habita a mon-tanha há vários lustros, e parece ser ou-vido. Esse pescador é um chefe. Há um intendente geral, o agente Guerra, que ordena a paz em nome do doutor Reis. O resto é cidade. Só na grande rua que descemos encontramos mais dois bote-quins e uma casa de pasto, que dá ceias. Estão fechadas, mas basta bater, lá den-tro abrem. Está tudo acordado e o Parati corre como não corre a água. Nesta empolgante sociedade, onde cada homem é apenas um animal de instintos impulsivos, em que ora se é muito amigo e grande inimigo de um momento para o outro, as amizades só se demonstram com urna exuberância de abraços e de pegações e de segredi-nhos assustadora - há o arremedo exato

de uma sociedade constituída. A cidade tem mulheres perdidas, inteiramente da gandaia. Por causa delas tem havido dramas. O soldadinho vai-lhes à porta, bate: - Oh Alice! Alice cachorra, abre isso! Vai ver que aí está o cabo! Eu já an-dei com ela três meses. - Que admiração, gente!... Todo o mundo! Há casas de casais com união livre, mulheres tomadas. As serenatas param--lhes à porta, há raptos e, de vez em quando, os amantes surgem rugindo, com o revólver na mão. Benedito canta à porta de uma: Ai! Tem pena do Benedito Do Benedito Cabeleira. Mas também há casas de famílias, com meninas decentes. Um dos seres-teiros, de chapéu panamá,. diz de vez em quando: - Deixemos de palavrada, que aqui é família! Sim, são famílias, e dormindo tar-de porque tais casas parecem ter gente acordada, e a vida noturna ali é como uma permanente serenata. Pergunto a pro/ ssão de cada um. Quase todos são operários, "mas estão parados". Eles de-vem descer à cidade, e arranjar algum cobre. As mulheres, decerto, também descem para apanhar / tas nas casas

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domínio público

de móveis, amostras de café na praça - "troços por aí. E a vida lhes sorri e não querem mais e não almejam mais nada. Como Benedito / zesse questão, fui até à sua casa, sede também do Clube das Violetas, de que é presidente. Para não perder tempo, Benedito saltou a cerca do quintal e empurrou a porta, acen-dendo uma candeia. Eu vi, então, isso: um espaço de teto baixo, separado por uma cortina de saco. Por trás dessa pa-rede de estopa, uma velha cama, onde dormiam várias damas. Benedito apre-sentou vagamente: - Minha mulher. Para cá da estopa, uma espécie de sala com algumas / gurinhas nas pare-des, o estandarte do clube, o vexilo das Violetas embrulhado em papel, uma pequena mesa, três homens moços roncando sobre a esteira de terra fria ao lado de dois cães, e, numa rede, tossindo e escarrando, inteiramente indiferente à nossa entrada, um mulato esquálido, que parecia tísico. Era simples. Benedito mudou o casaco e aproveitou a ocasião para mostrar-me quatro ou cinco sinais de facadas e de balaços no corpo seco e musculoso. Depois cuspiu: - Epa, José, fecha... Um dos machos que dormiam em-brulhados em colchas de chita ergueu--se, e saímos os dois sem olhar para trás.

Era tempo. Fora, a/ nando instrumentos, interminavelmente, os seresteiros esta-vam mesmo como paus-d'água e já se melindravam com referências à manei-ra de cantar de cada um. Então, resolve-mos bater à porta da caverna de João Rainha, formando um barulho formidá-vel. À porta - não era bem porta, porque abria apenas a parte inferior, obrigando as pessoas a entrarem curvadas - cla-reou uma luz, e entramos todos. Numa cama feita de taquaras dormiam dois desenvolvidos marmanjões, no chão João Rainha e um rapazola de dentes alvos. Nenhuma surpresa, nenhuma contrariedade. Estremunharam-se, per-guntaram como eu ia indo, arranjaram com um velho sobretudo o lugar para sentar-me, hospitaleiros e tranqüilos. - Nós trouxemos ceia! - gaguejou um modinheiro. Aí é que lembramos o pão e o queijo, esmagados, amassados entre o braço e o torso do seresteiro. Havia, porém, cachaça - a alma daquilo - e comeu-se assim mesmo, bebendo aos copos o líquido ardente. O jovem sol-dadinho estirou-se na terra. Um outro deitou-se de papo para o ar. Todos riam, integralmente felizes, dizendo palavras pesadas, numa linguagem cheia de im-previstas imagens. João Rainha, com os braços muito tatuados, começou a can-

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tar. - O violão está no norte e você vai pro sul, comentou um da roda. João Rainha esqueceu a modinha. E, enquanto o silêncio se fazia cheio de sono, o cara de papo para o ar des/ ou uma outra compridíssima modinha. Olhei o relógio: eram três e meia da ma-nhã. Então, despertei-os com três ou quatro safanões: - Rapaziada, vou embora. Era a ocasião grave. Todos, de um pulo, estavam de pé, querendo acom-panhar-me. Saí só, subindo depressa o íngreme caminho, de súbito ingenua-mente receoso que essa tournée no-turna não acabasse mal. O soldadinho vinha logo atrás, lidando para quebrar o copo entre as mãos. - O tenente, você vai hoje à Penha? - Mas nem há dúvida. - E logo vem ao samba das Viole-tas? - Pois está claro. Atrás, o bolo dos seresteiros berra-va: O morro de Santo Antônio Já não é morro nem nada... E quando de novo cheguei ao alto do morro, dando outra vez com os olhos na cidade, que embaixo dormia ilumi-nada, imaginei chegar de uma longa

viagem a um outro ponto da terra, de uma corrida pelo arraial da sordidez ale-gre, pelo horror inconsciente da miséria cantadeira, com a visão dos casinhotos e das caras daquele povo vigoroso, re-festelado na indigência em vez de tra-balhar, conseguindo bem no centro de uma grande cidade a construção inédita de um acampamento de indolência, li-vre de todas as leis. De repente, lembrei--me que a varíola cairia ali ferozmente, que talvez eu tivesse passado pela toca dos variolosos. Então, apressei o passo de todo. Vinham a empalidecer na péro-la da madrugada as estrelas palpitantes e canoramente galos cantavam por trás das ervas altas, nos quintais vizinhos.

(Vida vertiginosa, 1917; para conhecer a obra de João do Rio, acesse o site do

Domínio Público)

www.dominiopublico.gov.br

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poesia visualcolaboradores

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colaboradores

ALINE AIMÉE ::: é graduada em Letras, com especialização e mestrado em Literatura Bra-sileira pela Uerj. Tem textos publicados em diversos sites e revistas virtuais: Diversos A" ns, Conexão Maringá, Verbo 21, Garganta da Serpente, Armadilha Poética, Almanaque Virtual e Para ler e pensar. Publicou, ainda, na revista impressa Em Branco e participou da coletânea Entrelinhas II da editora Andross. É autora da coletânea de poemas 12 pétalas, nenhuma + or, ainda inédita e escreve desde 2008 o blog www.palavrainvadida.com .

ANDERSON PETRONI ::: nasceu em 1985 em São João da Boa Vista-SP. Reside atualmente em São Carlos - SP. É formado em Imagem e Som pela UFSCar e cursa atualmente Bacharelado em Filoso" a nesta mesma instituição. Publica seus poemas e delitos no blog “Pequenos Deli-tos” (http://delitospequenos.blogspot.com) desde 2007. e-mail: [email protected]

CAMILA DE SÁ ::: Nascida em São Bernardo do Campo, São Paulo, escreve por hábito. Ma-nia de som e registro. Estuda Canto e já estudou Antropologia. Está embarcando na ideia de inspirar delicadeza pela cidade de São Paulo com o grupo de Dança haicai organizado pela dançarina Luciana Bortoletto. Ah, tem amigos incríveis. E um blog também: http://cami-cai.blogspot.com.br/

CARINA CASTRO ::: é estudante de letras e língua árabe na USP, escritora e pesquisadora de literatura infantil. Tem um blogue de coisas, “tudo é coisa!” tudoecoisa.wordpress.comE-mail: [email protected]

CESARE RODRIGUES ::: é fã de Rimbaud, Baudelaire, Borges, Walter Benjamin, Tom Waits, Bob Dylan e mais um bocado de gente. Tenta como eles encantar com a criação, ora de poe-mas, ora de contos, ora de ensaios. O ensaio sobre Molière fez parte do processo de estudo para a escrita de sua primeira peça, “Retalhos”.

DAVI ARAÚJO ::: (São Paulo, 1979). Poeta, " ccionista e tradutor. Tem poemas publicados em TriploV, Pó&Teias, Diversos A" ns e Mallarmagens. Traduziu Natureza, de Emerson, e Cami-nhada, de H oreau. Conclui dois livros de poemas, continuações da trilogia iniciada com Livro Ruído (Eucleia Editora, 2011), publicado em Portugal. Blogs: http://transatraves.blogspot.com e http://nao" quesao.blogspot.com. E-mail: [email protected]

EDNICE PEIXOTO ::: Professora de Língua Portuguesa, assessora da Secretaria Municipal de Educação, Natal, especialista em Gestão Escolar, escrevinhadora.

ÉLEN RODRIGUES GONÇALVES ::: é graduanda em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora e, nas horas vagas, escreve em busca de esquecimento. Na área de Letras, é inte-grante do Projeto de Pesquisa "Viagens por outros mares: diásporas africanas e seus mapas literários", no qual procura desenvolver um arquivo literário e teórico de poetas cuja criação poética precisa ser reconhecida.

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colaboradores

ERNANE CATROLI ::: nasceu em Sant'Anna de Cataguases, (MG-1953), onde passou a in-fância e juventude. Farmacêutico-bioquímico de formação (UFRJ-1976), exerce atividades cientí" cas e acadêmicas na área de saúde, no Rio de Janeiro, onde reside desde 1972. Publica regularmente em alguns blogs dedicados à cultura.

FABIOLA VICTÓRIA WEYKAMP ::: nasceu em Brasília - DF em setembro de 1988. Mudou--se para o Rio Grande do Sul ainda pequena, onde vive até hoje. Estudante - em reta " nal - do curso de Licenciatura em Letras, pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), possui o blog Epílogo onde publica seus textos; é, também, eventual colaboradora do jornal Amigos de Pelo-tas. Blog pessoal: http://versodigital.blogspot.com/

JORGE LUIZ MENDONÇA MARTINEZ ::: (Santos/SP, 1977). Funcionário público, técni-co em artes grá" cas. Publicando no blog http://textosin" mos.blogspot.com.br e densamente afundado nos próprios mares mirabolantes. @JorgeLMMartinez

LUIZ GUSTAVO SALDANHA ::: tenho 22 anos, sou nascido e residente em Brasília. Sou tam-bém graduando em psicologia pela Universidade de Brasília. Entretanto, gosto de literatura, leio literatura e, como é espontâneo de quem ler literatura, escrevo literatura, incipiente, mas ávida para ser lida. Email: [email protected]

PATRÍCIA VIEIRA DE FARIA ::: é mineira de Coromandel, reside atualmente em Uberlân-dia, sextanista do curso de medicina da UFU, autora do Blog “Porta dos Fundos” (http://www.portaodosfundos.blogspot.com.br/) e amante incorrigível da palavra que supera o estado de dicionário. Twitter: @PatriciaVFaria

RAYMUNDO NETTO ::: Escritor, designer, quadrinhista e produtor cultural. Autor do ro-mance "Um Conto no Passado: cadeiras na calçada" (IMPRECE-2ªedição), ganhador do I Edi-tal de Incentivo às Artes da SECULT/CE (2005), e dos infanto-juvenis "A Bola da Vez" (2008), "A Casa de Todos e de Ninguém" (2009) e "Os Tributos e a Cidade" (2011), todos pelas Edições Demócrito Rocha. É cronista convidado do Caderno Vida e Arte do jornal O POVO desde 2007. Autor de Os Acangapebas, coletânea de contos, ganhadora do Prêmio Osmundo Pontes da Academia Cearense de Letras (2011) e do Edital de Literatura da SecultFOR (2007). Atual-mente é editor adjunto das Edições Demócrito Rocha.

SEBASTIÃO RIBEIRO ::: São Luís – MA, 1988. Antologia do Concorso Internazionale de Po-esia ‘Castello di Duino” (Ibiskos Editrice Risolo, 2010). 2º lugar no 23º Festival Maranhense de Poesia (2010). Antologia Acorde (Scortecci, 2011), com Igor-Pablo e Wesley Costa. Autor do iminente &. www.sebastiaoribeiro.blogspot.com

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