artiho derrida leitor de joyce - deconstrucao e alteridade literaria

Artigo: Derrida leitor de Joyce: desconstruo e alteridade literria

Sapere Aude Belo Horizonte, v.4 - n.7, p.114-134 1 sem. 2013. ISSN: 2177-6342 114

DERRIDA LEITOR DE JOYCE: DESCONSTRUO E ALTERIDADE LITERRIA DERRIDA LIKE JOYCE'S READER: DESCONTRUCTION AND LITERARY OTHERNESS

Srgio Luiz Prado Bellei

RESUMO

A complexa leitura que faz Derrida do texto de Joyce pode bem ser um dos

melhores exemplos da tentativa que faz o pensador de, no encontro com textos

literrios, respeitar o outro absoluto. Recusando-se a acrescentar fortuna

crtica do texto joyceano mais uma interpretao, Derrida apresenta ao leitor o

que parece ser, primeira vista, uma teia de digresses, relatos de experincias

pessoais, detalhes sobre o processo de preparao da conferncia. Subjacente a

essa textualidade errante que aparenta no chegar a parte alguma, contudo,

possvel entrever o tratamento de uma temtica recorrente na obra de Derrida,

particularmente a partir da dcada de noventa: a questo do relacionamento

entre a estrutura e o acaso e entre o programado e o improgramvel, entre o

sentido presente e o resto suplementar. Apontando sempre para o resto e o

improgramvel, Derrida contrape ao texto Joyceano uma contra-assinatura

singular que, repetindo fragmentos do Ulysses, contamina essa repetio com

uma singularidade diferencial que pode ser pensada em termos de um gesto de

respeito ao segredo absoluto que, na obra literria, nunca se revela.

PALAVRAS-CHAVE: Desconstruo; literatura; alteridade

ABSTRACT

Derridas complex reading of Joyces text may well be one of the outstanding examples of his attempt to do justice to the absolute other in his encounters

with literary texts. Refusing to add one more interpretation to the critical corpus

of Joycess criticism, Derrida presents the reader with what seems to be at first sight a network of digressions, narratives of personal experiences, details

related to the preparation of the lecture. Underlying this digressive textuality

that seems to go nowhere, however, it is possible to notice the exploration of a

recurring concern in Derridas work: the question of the relationship between structure and chance and between what can be programmed and what resists

programming. By referring again and again to what remains and to what cannot

Professor titular da Faculdade de Letras da UFMG. E-mail: [email protected]



be programmed, Derrida juxtaposes to the Joycean text a singular counter-

signature that repeats fragments of Ulysses, thus contaminating his repetitions

with a differential singularity that can be thought in terms of a gesture of

respect to the absolute secret that is never revealed in the literary text..

KEYWORDS: Deconstruction; literature; otherness

1. Ler Derrida: uma misso (im)possvel?

Derrida tira com uma mo o que d com a outra.

J. Hillis Miller (For Derrida, 267)

Em ensaio dedicado principalmente a uma reflexo sobre o desafio que deve

enfrentar qualquer leitor de Derrida, diz J. Hillis Miller que, no caso desse exerccio

particular do ato de ler, obviamente diverso do sentido corrente de leitura enquanto

processo que leva compreenso de um sentido, preciso entender de sada que somos

todos, muito provavelmente, uma comunidade de maus leitores. Acrescenta logo,

contudo, que nem todos esses maus leitores praticam a m leitura da mesma maneira

(MILLER, 2009, p.310). Somos todos maus leitores porque acabamos sempre por fixar e

definir um sentido em um texto que sugere que o sentido no pode ser fixado ou definido.

As estratgias para promover a indefinio de sentido so variadas: o hbito de tudo

questionar de forma ferrenha, perseguindo sentidos em todas as direes sem definir

nenhum de forma final; a listagem etimolgica de sentidos que constituem sinnimos s na

aparncia, revelando-se incompatveis no final das contas; a sugesto frequente de que uma

palavra ou uma frase em um texto pode desencadear um processo interminvel de leitura; a

obsesso com aporias. Para o leitor que procura fixar sentidos, esse tecido de digresses e

adiamentos, que deve necessariamente desacelerar o ato de ler, uma tarefa penosa,

entediante, talvez impossvel. No entanto, como afirma Miller, preciso sempre lembrar

que h maneiras diversas de ler mal. Algumas alternativas propostas para traduzir o termo

trace podem ajudar a entender o problema. A traduo de De La Gramatologie para o

portugus, publicada pela Editora Perspectiva em 1973, traduz o termo por rastro. O

tradutor justifica a escolha do termo em nota de rodap:



O substantivo francs trace no deve ser confundido nem com trait (trao) nem

com trace (traado), pois se refere a marcas deixadas por uma ao ou pela

passagem de um ser ou objeto (Dictionaire Robert). Por isso o traduzimos como

rastro (DERRIDA, 1973, p.22).

A traduo inglesa feita em 1974 por Gayatri Spivak, por outro lado, traduz o termo

para o ingls como trace, explicando que escolheu o termo porque a palavra assemelha-se

ao termo utilizado por Derrida. Mas avisa logo em seguida que o leitor deve levar em

conta pelo menos os sentidos de marca (track) e mesmo de rastro (spoor) (DERRIDA,

1974, p. xvii). importante sublinhar, no comentrio de Spivak, a expresso pelo menos,

que sugere a existncia de outras possibilidades (no explicitadas) alm de trace (por

semelhana sonora e principalmente visual com o francs), mark (uma marca visvel, como

uma linha ou um ponto, um sinal de pontuao, um smbolo que substitui uma assinatura,

como o caso de uma cruz, etc.) ou spoor (o rastro de um animal, particularmente de um

animal selvagem). Se concordarmos com a afirmao de Miller, de que leitores de Derrida

praticam sempre ms leituras, mas de formas diversas, ento temos aqui dois casos

exemplares de maus leitores: um leitor logocntrico que tenta precisar e definir um nico

sentido para o texto derrideano, excluindo outras possibilidades, e outro que, porque atento

a crtica ao logocentrismo, recusa-se a precisar o sentido textual, abrindo espao para

vrias, talvez infinitas, possibilidades. Ou, dizendo de outra forma, temos, de um lado, um

leitor que procurou ajuda no Dictionaire Robert, de outro, um que percebeu, no caso de

Derrida, a insuficincia de definies programadas em dicionrios e a necessidade de

recorrer a outras fontes, talvez mais prximas do texto do que o Dictionaire. Associando

trace descoberta saussureana da estrutura do trao e descoberta freudiana da estrutura da

experincia enquanto marca que nega a estrutura enquanto presena, Spivak conclui que

Derrida d o nome de trao ao papel exercido pelo outro radical na estrutura de

diferena que o signo (DERRIDA, 1974, p. xvii). Anotemos, telegraficamente (j que a

questo ser examinada em mais detalhe mais adiante), que a presena, no signo, de um

outro radical, ou seja, de um outro que no pode ser definido, previsto ou programado,

torna inadequada qualquer definio conceitual e definitiva do trao e, em consequncia,

maus leitores privilegiados todos aqueles que tentarem tal definio.

A tentativa que farei no que se segue dar preferncia ao exerccio de m leitura

exemplificado em Spivak, e que est sugerida no ttulo deste ensaio. A proposta colocar



em questo aproximaes entre a Desconstruo e a alteridade absoluta do texto literrio.

So aproximaes que devem ser pensadas como, ao mesmo tempo, impossveis, possveis

e necessrias.

2. Desconstruo e Literatura: Aproximao necessria

Falar das relaes entre Desconstruo e Literatura um imperativo: a relao

existe na vasta documentao que a constata, discute e problematiza. E trata-se de

existncia que, de resto, foi enfaticamente autorizada pelo prprio Derrida, em mais de uma

ocasio. Em Deconstruction in America, por exemplo, afirma que a desconstruo um

ajuste de contas com a literatura (DERRIDA, 1985, p.9). Em outras ocasies, apresenta a

literatura como seu interesse mais permanente, antecedendo at mesmo o seu interesse

pela filosofia, e tambm como a coisa mais interessante do mundo, talvez mais

interessante do que o mundo (DERRIDA, 1992, p.47). Como no poderia deixar de

acontecer, a aproximao entre literatura e desconstruo, sugerida por Derrida, foi

constantemente retomada e expandida por seus leitores mais rigorosos. Derek Attridge, em

livro publicado em 2004 (The Singularity of Literature), afirmou que a obra de Derrida

nos ltimos 35 anos constitui a explorao da literatura mais importante, inventiva e de

maior alcance para o momento atual (ATTRIDGE, 2004, p.139). que, para Attridge,

possvel perceber nessa explorao a proposta mais radical sobre um dos aspectos

fundamentais no tratamento do literrio: a necessidade de respeito quela marca que o faz

nico e singular, e que problematiza a sua caracterizao como apenas um discurso entre

outros, como querem alguns proponentes dos Estudos Culturais. Mais recentemente, em um

nmero especial do peridico PMLA, dedicado explorao das possibilidades da crtica

literria para o sculo XXI, Richard Klein inicia seu ensaio sobre o Futuro da Crtica

Literria com uma afirmao um tanto surpreendente:

O futuro da crtica literria ser derridiano, ou no. Mas mesmo que no for, ter

sido derridiano, uma vez que foi Derrida quem primeiro percebeu criticamente a



possibilidade de um futuro no qual a literatura e, a fortiori, a crtica literria estariam ausentes (KLEIN, 2010, p.920).

Klein enfatiza aqui uma outra contribuio importante: a crtica radical tradio da

mimese e a dependncia absoluta da literatura em relao ao arquivo. Nas palavras de

Klein, a literatura no remete a nenhum referente a partir do qual poderia ser reconstituda

se os seus cnones fossem perdidos, como seria possvel na reconstituio da redescoberta

da qumica em um era ps-nuclear. [A literatura] depende exclusivamente, para sua

existncia, da preservao do arquivo (KLEIN, 2010, p.920).

3. Desconstruo e Literatura: Aproximao impossvel

J. Hillis Miller tambm lembrou, recentemente, que bastaria apontar para o volume

de textos dedicados por Derrida literatura para consider-lo um dos grandes crticos

literrios do sculo XX (MILLER, 2001, p.58):

Ao afirmar que ele um crtico literrio, no estou meramente dizendo que deu uma contribuio teoria literria a partir de uma perspectiva filosfica, mas

tambm que escreveu, ou apresentou em seminrios, leituras originais brilhantes,

detalhadas e persuasivas de uma longa lista de nomes que consideramos como

autores maiores, bem como de alguns menores: Mallarm, Shakespeare, Poe, Melville, Joyce, Celan, Baudelaire, Ponge, Genet, Blanchot, Kafka, Proust, e

autores menos conhecidos, como Jos Joliet. O que Derrida escreveu sobre a

Mimique, de Mallarm, La fausse monnaie, de Baudelaire, o Ulysses, de Joyce, a poesia de Celan, ou Diante da Lei, de Kafka, parece ser, para mim, crtica literria (MILLER, 2001, p.58).

No caso de Miller, contudo, no se trata apenas de apontar de forma genrica para

uma contribuio significativa do tratamento derridiano da literatura, mas tambm, e

principalmente, de estabelecer uma distino entre uma perspectiva filosfica de um lado

e, de outro, leituras originais brilhantes. Trata-se de distino importante porque as duas

modalidades de discurso, como perceberam alguns crticos, so diversas e devem ser

entendidas separadamente. Trata-se tambm de distino que problematiza ou mesmo torna

impossvel a aproximao entre desconstruo e literatura. Jonathan Culler chamou a

ateno para o problema j no incio da dcada de 80, quando observou que, muito embora



os textos de Derrida sobre literatura chamem a ateno para problemas importantes, no

constituem desconstrues no sentido em que usamos o termo. E conclui da que uma

possvel crtica literria fundamentada nos textos do pensador francs seria influenciada

principalmente pela leitura que ele faz de obras filosficas (CULLER, 1983, p.212). Mais

recentemente, Gregory L. Ulmer props que se reserve o termo desconstruo para os

escritos voltados para textos filosficos e, de outro lado, o termo mmica para os escritos

dedicados a textos literrios ou artsticos. Enquanto na prtica desconstrutora trata-se de

articular a descontinuidade que separa o que a obra filosfica diz (suas concluses e

proposies) do que ela mostra ou coloca em jogo (dis-plays), na prtica da mmica os

textos no so analisados, mas antes adotados como modelos ou guias para serem imitados

enquanto formas motoras que engendram a produo de um outro texto (ULMER, 1985,

pp. x-xi).

Um texto como o Ulysses Gramophone, originalmente apresentado no Simpsio

Internacional sobre James Joyce, realizado em Frankfurt em 1984, parece confirmar a

sugesto de Ulmer de que Derrida evita a prtica desconstrutora na leitura do literrio. A

apresentao surpreendeu a elite de estudos joyceanos presente no evento porque se

recusou a fazer o que se espera que qualquer crtica digna do nome faa: um exerccio de

interpretao rigorosa, coerente e convincente do objeto de estudo. Falando do Ulysses,

Derrida recusa-se a fechar o texto, ou parte dele, em uma interpretao ou anlise. O que

faz desenvolver um trajeto exploratrio do livro marcado aqui e ali por um ou outro

exame detalhado de uma palavra (a palavra yes que conclui o monlogo interior de

Molly, por exemplo), uma frase, ou de um episdio. A maior parte do comentrio sobre o

Ulysses, contudo, feita de digresses, relatos de experincias pessoais, detalhes sobre o

processo de preparao da conferncia. Subjacente a essa textualidade errante, que aparenta

no chegar a parte alguma, contudo, possvel entrever o tratamento de uma temtica

recorrente na obra de Derrida, particularmente a partir da dcada de noventa: a questo do

relacionamento entre a estrutura e o acaso e entre o programado e o improgramvel, entre

o sentido presente e o resto suplementar. Da obra de Joyce (e do Ulysses em particular)

pode-se dizer que , provavelmente mais do que de qualquer outro texto na literatura

inglesa, ao mesmo tempo cuidadosamente programada em cada um de seus detalhes ( bem

conhecida a obsesso de Joyce com a preciso extrema na produo de cada significado



textual), e, por outro lado, radicalmente aberta ao imprevisvel. Ao invs de interpretar,

Derrida insiste em colocar em xeque a possibilidade da interpretao. que a dimenso

programvel e programada que existe em qualquer texto , desde sempre, contaminada pelo

improgramvel que resiste a qualquer interpretao. A temtica aparece, no sem uma certa

dose de comicidade, na proposta, dirigida comunidade de experts em Joyce, de criao de

um Departamento de Estudos Joyceanos que definiria como sua primeira tarefa a tentativa

de tabular uma tipologia de todos os yeses no Ulysses. Seria necessrio, de sada, adquirir

um sofisticado computador de ltima gerao adequado tarefa. O prprio Derrida tinha j

dado incio ao trabalho, mesmo sem a ajuda do computador: com um lpis na mo,

computara no original em ingls mais de 222 ocorrncias, das quais mais de um quarto,

pelo menos 79, encontram-se no assim chamado monlogo de Molly (DERRIDA, 1992,

p.306). Note-se que o desequilbrio de ocorrncias entre a seo dedicada Molly e o resto

do Ulysses j parece apontar para a oportunidade de um comentrio interpretativo, mas

Derrida recusa-se a desenvolv-lo. Passa imediatamente a descrever como o computador

daria prosseguimento tarefa, com a contagem dos yeses repetidos em todas as lnguas,

dando ateno especial s ocorrncias, no prprio texto de Joyce, da palavra yes em

idomas diversos do ingls (O si certo, ou mon pre, oui). Essa contagem de yesses

explcitos, em ingls e em outras lnguas que repetem Joyce com diferenas, seria uma

tarefa complexa, mesmo para um computador, mas teoricamente possvel. Por outro lado,

Derrida chama a ateno para duas outras tarefas a serem realizadas pelo Departamento,

ambas impossveis para qualquer computador.

A programao de controle e contagem a ser feita pela mquina logo revelaria sua

fraqueza no momento em que fosse necessrio levar em conta que, sobreposta a cada

ocorrncia de um yes, encontra-se um resto irredutvel, ou seja, a marca quase-

transcendental de um sim-que-ri (yes-laughter) e que no pode ser detectado por uma

mquina governada pela lgica binria (p.307). Cada yes explcito do Ulysses, ou cada

yes traduzido em outras lnguas que repetem e repetiro o texto joyceano no jamais

apenas uma presena a ser computada porque vem sempre acompanhada de um outro yes

quase-transcendental, ou seja, um yes que est ao mesmo tempo presente e ausente,

dentro e fora da palavra escrita. Leitores de Derrida reconhecero imediatamente nesse

yes quase-transcendental a temtica do trao, recorrente de formas diversas em sua obra



(trao, suplemento, differance, segredo, cinza espectro, ddiva podem e

devem ser trabalhados como variaes da temtica da no-presena na presena). No caso

desses dois yesses, um duplica o outro, no como presena computvel, mas como um

espectro (pp.307-308). As reflexes sobre o espectro em Specters of Marx ajudam a

entender por que uma marca espectral no pode ser controlada pela lgica binria, ou

mesmo por outras lgicas produtoras de conhecimento:

... o espectro uma incorporao paradoxal, o tornar-se corpo, uma certa forma

carnal e fenomenal do esprito. Torna-se algo difcil de nomear: nem esprito nem

corpo, ou tanto um como outro. Pois a carne e a condio de fenmeno que

possibilitam ao esprito a sua apario espectral, mas que desaparecem

imediatamente na apario, na prpria chegada do revenant ou retorno do

espectro. Existe algo que desaparece, que se afasta na prpria apario enquanto

reapario do que partiu.... [O espectro] alguma coisa que, precisamente, no se

conhece, e no se sabe, precisamente, se ele , se existe, se responde a um nome e

se corresponde a uma essncia. No se conhece: no por ignorncia, mas porque

esse no-objeto, esse presente no-presente, esse estar-l de algum ausente ou

que partiu j no pertence ao controle do conhecimento. Pelo menos no pertence

mais quilo que pensamos entender pelo nome de conhecimento. [O espectro ]

uma coisa que no pode ser nomeada, ou que quase no pode ser nomeada, esta coisa, mas esta coisa e nenhuma outra, esta coisa que nos olha, que nos diz respeito [qui nous regarde] chega para desafiar tanto a semntica quanto a

ontologia, tanto a psicanlise quanto a filosofia. (Marcelo: O que? Essa coisa

apareceu outra vez na noite de hoje? Eu no vejo nada). A coisa permanece

invisvel, o nada visvel. Essa coisa que no uma coisa olha para ns e v que

no a vemos, mesmo quando est l. A isso chamaremos o efeito de visor: ns

no vemos aquele que olha para ns (DERRIDA, 1994, pp.6-7).

Vale a pena notar de passagem (j que o problema ser trabalhado em maior detalhe

mais adiante) que a explicitao do significado de espectro momentaneamente

interrompida pelo texto shakespeareano que tambm assombra o tratamento dado aos

espectros de Marx: a fala de Marcelo que, no incio do Hamlet, questiona a apario do

fantasma do rei. O conceito ou quase-conceito de um espectro que se apresenta como uma

no-presena e que olha sem ser visto tambm para Hamlet, desencadeando a ao trgica

da pea, no deixa de ser uma proposta interpretativa que poderia ser sistematicamente

expandida. Esse gesto interpretativo incipiente questiona, sem contudo invalidar, a

sugesto de Ulmer de que Derrida no analisa nem desconstri textos literrios, praticando

nesses casos apenas uma mmica que, ao invs de interpretar, gera um texto outro.

Derrida produz ocasionalmente interpretaes mnimas, at porque, no limite, a rejeio

radical da interpretao desembocaria no silncio.



Seja como for, a reflexo sobre o espectro ajuda a entender por que o exerccio de

controle de informao e conhecimento proporcionado pelo computador, mas tambm por

outros campos disciplinares como a semntica, a ontologia ou a psicologia, no podem

avanar alm de um certo limite no tratamento de Joyce e, por extenso, daquilo que

conhecemos como literatura nos ltimos trezentos anos. O espectro que assombra cada

yes em Joyce e, por extenso, cada palavra no texto literrio escapa possibilidade de

controle oferecida pelo conhecimento porque, sendo sempre e ao mesmo tempo uno e

duplo, presena e ausncia, no se reduz jamais ao objeto. Somente quando entendido

como idntico a si mesmo pode um objeto tornar-se um objeto de estudo. No caso do

computador, a lgica digital de zeros e uns que determina todas as suas operaes no pode

colocar sob controle uma no-presena que no pode ser unificada em uma identidade

isolada. Vale dizer, no pode controlar aquilo que sempre plus dun, ao mesmo tempo

mais do que um, e um que j no mais existe (DERRIDA, 2000, p.301). Enquanto nada

visvel, o espectro resiste computao e ao conhecimento.

possvel agora precisar um pouco mais a afirmao de Jonathan Culler, de que

Derrida no desconstri textos literrios. Assombrados permanentemente pelo nada visvel

dos espectros, no podem ser desconstrudos porque j se desconstroem desde sempre. Mas

preciso acrescentar logo que essa desconstruo j existente no privilgio do texto

literrio. O espectro que assombra a literatura assombra tambm outros textos. Na

literatura, contudo, essa no-presena espectral torna-se particularmente visvel. Como diz

o prprio Derrida em Mmoires, for Paul de Man, existe desde sempre desconstruo,

operando em obras, especialmente em obras literrias (DERRIDA, 1986, p.123). Talvez

seja essa visibilidade maior da desconstruo na literatura que, no final das contas,

justifique a resistncia interpretao, na medida do possvel, em textos como o Ulysses,

de Joyce. Mas, se no tratamento de Joyce no se justifica, na perspectiva de Derrida, nem a

prtica desconstrutiva e nem a prtica interpretativa tradicional, resta ainda tentar precisar a

natureza do texto derridiano sobre a literatura. Uma indicao dessa natureza aparece nos

pargrafos finais do texto sobre o Ulysses.

O penltimo pargrafo de Ulysses Gramophone retorna questo do yes

joyceano assombrado por espectros para afirmar que o termo permanece recomeando e

repetindo-se a si mesmo, um nmero infinito de vezes (p.309). Derrida aponta aqui para a



lgica ferrenha da iterabilidade, possivelmente visvel com fora particular em Joyce, mas

estruturalmente presente em qualquer signo, evento, coisa, origem ou presena. A presena

de qualquer yes, em Joyce ou em qualquer outra situao, constitui um evento singular:

acontece uma nica vez e absolutamente nica em sua diferena em relao a qualquer

outro yes no passado ou no futuro. Por outro lado, contudo, esse yes s pode existir em

sua singularidade se j estiver desde sempre marcado pela lgica da iterabilidade, ou seja,

pela condio de poder ser repetido de forma diferente e em outros contextos. Derrida

lembra em Signature, Event, Context que iter deriva de itara, other, em snscrito

(DERRIDA, 1991, p.90). A estrutura da iterabilidade determina que em cada yes ou em

cada singularidade habita desde sempre um outro espectral que a divide e a torna plus

dun: ao mesmo tempo no um e mais do que um. a lgica da iterabilidade, de resto,

que se faz presente em qualquer tipo de escrita (e no apenas na linguagem literria), seja

ela pictogrfica, hieroglfica, ideogrfica, fontica, alfabtica (DERRIDA, 1991, p.90) e

que permite a essas linguagens operar independentemente de quem a recebe. Uma escrita,

diz Derrida, que no fosse estruturalmente legvel itervel para alm da morte do

receptor no seria mais uma escrita (DERRIDA, 1991, p.90). E permite tambm que

operem independentemente do seu emissor ou produtor. Escrever, completa Derrida,

significa produzir uma espcie de mquina que se torna produtiva, e que no ter seu

funcionamento impossibilitado pelo meu desaparecimento futuro (DERRIDA, 1991,

p.91).

Desde sempre presente, como um espectro, em cada singularidade (seja ela uma

palavra, um evento), a lgica da iterabilidade opera em cada yes ou em cada texto,

joyceano ou no, neles agindo como uma fora desestabilizadora que no precisa ser

ativada, de fora, pela interveno de uma prtica desconstrutora enquanto mtodo, ou de

uma interpretao enquanto controle da disseminao produzida pela iterabilidade, ou de

uma contagem de ocorrncias efetivada por um computador de ltima gerao. Respeitar

essa lgica, em um texto literrio, por exemplo, significa renunciar a qualquer ambio de

controle do texto, que o que faz Derrida em sua (des)leitura do Ulysses. Mas respeitar

essa lgica significa, tambm e principalmente no caso de Joyce, entender a literatura no

enquanto um enunciado feito pelo pai-autor Joyce, mas enquanto um ato de fala na forma

como o conceito foi repensado por Derrida. Que o texto Joyceano foi assim entendido por



Derrida fica claro quando se l o estranho pargrafo que conclui o ensaio. Aps reafirmar

que os yeses espectrais e em nmero infinito no devem ser identificados com aqueles

que podem ser computados, como seria o caso dos sete yeses repetidos por Ms. Breen,

quando ouve de Bloom a histria de Marcus Tertius Moses e do Moses Danarino

(p.309), Derrida conclui:

Resolvi interromper aqui porque quase sofri um acidente justamente quando

estava escrevendo essa ltima sentena, no momento em que, saindo do

aeroporto, ia de carro para casa aps a visita a Tokyo (DERRIDA, 1992, p.309).

Uma ocorrncia circunstancial enquanto parte da experincia cotidiana da pessoa

que escreve (um acidente quase acontecido na sada do aeroporto), aparentemente exterior

ao texto sobre Joyce, torna-se de repente no apenas parte dele, mas o motivo para

interromp-lo e impedir a sua concluso. Derrida parece estar aqui apontando para uma de

suas afirmaes mais conhecidas e polmicas, feita em escrito anterior: no h um fora do

texto (il n'y a pas de hors-texte) (DERRIDA, 1974, p.158). O pargrafo que conclui o

ensaio parece violar conscientemente o princpio fundamental da crtica acadmica que

determina a separao entre a vida pessoal de quem escreve e o texto a ser escrito sobre um

tema selecionado. Tudo se passa como se a vida cotidiana do crtico ou analista ou

intrprete (os termos so aqui claramente inadequados em seu sentido prprio) fosse no

apenas um outro texto, mas um texto ao mesmo tempo outro e inseparvel do objeto

sobre o qual o crtico escreve. Ao falar aparentemente das viagens de Ulisses, Derrida est

ao mesmo tempo falando tambm, e talvez principalmente , das suas prprias viagens e, em

particular, da viagem a Tquio, da qual o episdio do aeroporto apenas um exemplo, j

que o texto como um todo fala com frequncia de outros momentos da jornada. Quando

examinados de perto, tais momentos, aparentemente apresentados como digresses citadas

ao acaso e sem maior significao para alm de um acontecimento fortuito, mostram-se

relevantes enquanto parte integrante de uma rede de significados que apontam para temas

recorrentes na obra de Derrida e constituem parte integrante do que se pode chamar de a

contra-assinatura derridiana justaposta ao Ulysses de Joyce. o caso, por exemplo, da

referncia procura por cartes postais em uma loja de livros e revistas no piso inferior do

Hotel Okura, em Tquio. Examinando cartes, Derrida depara-se, aparentemente por acaso,

com dois livros de autoria do escritor japons Massaki Imai: 16 Ways to Avoid Saying No e



Never Take Yes for an Answer (16 Maneiras para Evitar Dizer No; Nunca Aceite um Sim

como Resposta). O encontro s aparentemente fortuito, j que Derrida, tecendo uma teia

de relaes textuais, comenta sobre o hbito japons de evitar, por cortesia e na medida do

possvel, dizer no, mesmo quando se quer dizer no; sobre a possibilidade de no ser

traduzido por sim; sobre a possibilidade de sim significar no em Nunca Aceite um

Sim como Resposta. J se v que, aos poucos, os yeses japoneses parecem desafiar o

aprisionamento em qualquer contexto de significao, o que sugere que so tambm

espectrais e comeam a fazer parte de uma teia de significaes que os integra aos yeses

do Ulysses e que, enquanto parte de um vasto tecido de significados, questionam a

existncia de um dentro e um fora no texto joyceano. Questionam tambm a existncia de

um acaso em estado de pureza, j que todo acaso s se torna possvel a partir de uma rede

espectral de relaes que no podem ser aprisionadas em uma origem ou uma presena.

Esse tecido de aluses, por outro lado, no constitui uma interpretao ou uma

desconstruo do texto joyceano. Na medida em que resgata temas recorrentes na obra de

Derrida (espectro, trao, diferena, a desconstruo dos atos da fala de John Austin),

constituem antes uma contra-assinatura que Derrida justape obra de Joyce.

O texto de Derrida constitui-se, portanto, primordialmente como uma mmica e uma

contra-assinatura porque o texto a ser imitado deve ser entendido menos como uma obra

acabada do que como um ato de fala ou um ato perlocucionrio. Enquanto ato de fala, o

texto literrio no apenas um enunciado que, fechado entre as capas de um livro, diz

coisas a serem interpretadas de forma diversa por um mesmo leitor ou por leitores diversos.

A literatura faz com que alguma coisa acontea. Em Passions, Derrida afirma que as

vozes que falam nos textos literrios permitem a chegada ou fazem chegar mesmo nas

literaturas em que pessoas e personagens esto ausentes (DERRIDA, 1993, p.28). Como a

frase marcada pela curiosa recusa de explicitar quem ou o que chega, torna-se imperativo

um certo cuidado na tentativa de entender o que o texto insiste em no revelar. J. Hillis

Miller, leitor atento s sutilizas extremas dos textos derridanos, chama a ateno para o tom

enigmtico da afirmao tanto na traduo em ingls como no original (Et ces voix

parlent, laissent ou font venir) e sugere, certeiramente a meu ver, que Derrida recusa-se a

explicitar quem ou o que chega porque o ato de nomear no faria justia ao outro



absoluto que no pode ser nomeado, podendo contudo ser imperfeitamente pensado em

termos do segredo que no se revela e da inveno radical.

Nas pginas finais de Psych: linvention de lautre, Derrida prope a distino

entre duas modalidades de inveno, uma marcada pelo retorno ao mesmo e a outra voltada

para a resposta ao chamado do outro absoluto. O primeiro tipo pode ser entendido como

aquele que pr-programado, por exemplo, nas prticas cientficas que antecipam a

produo de, digamos, um novo medicamento a partir de procedimentos j estabelecidos.

Essa prtica, contudo, no se limita cincia, mas est tambm presente no literrio. No

seria provavelmente exagerado dizer que Joyce programou cuidadosamente cada palavra ou

frase do Ulysses (como j observei, a obsesso de Joyce com a preciso de detalhes bem

conhecida pela crtica especializada). Esse tipo de inveno, a rigor, no inventa nada, j

que retorna sempre ao que j existe e est institucionalmente estabelecido. Essa inveno,

diz Derrida, a inveno da lei, inveno de acordo com a lei que confere status, inveno

de e nos moldes da instituio que socializa, reconhece, garante e legitima; a inveno

programada de programas; a inveno do mesmo atravs da qual o outro retorna ao

mesmo (DERRIDA, 1991, p.44).

O segundo tipo de inveno aquele que desestabiliza estruturas de pr-

programao fechada de forma a permitir a passagem em direo ao outro permitindo que

ele chegue na preparao para a sua chegada (DERRIDA, 2007, p.45). Esse outro absoluto

surpreende qualquer programao porque impossvel de ser por ela previsto. Esse outro,

portanto, pode apenas ser pensado enquanto a possibilidade do impossvel:

Pois o outro no o possvel. Seria, portanto, necessrio dizer que a nica

inveno possvel seria a inveno do impossvel. Mas a inveno do impossvel

impossvel, diria o outro. verdade. Mas a nica inveno possvel: uma

inveno deve apresentar-se como a inveno daquilo que no parecia ser

possvel; caso contrrio, torna apenas explcito um programa de possibilidades no

interior da economia do mesmo (DERRIDA, 2007, p.44).

Esse outro absoluto pode tambm ser pensado, particularmente no caso da literatura,

em termos do segredo sempre presente, mas impossvel de ser revelado. Mais uma vez,

estamos diante da possibilidade do impossvel. Diz Derrida, em Passions:



Existe na literatura, no segredo exemplar da literatura, a possibilidade de tudo

dizer sem tocar no segredo. Quando todas as hipteses tornam-se permitidas, sem

fundamento e ad infinitum, sobre o significado de um texto, ou sobre as intenes

de um autor, cuja pessoa no nem representada e nem no representada por um

personagem ou pelo narrador, ... quando j no faz mais sentido tomar decises

sobre um segredo subjacente manifestao textual (e essa situao que eu

chamaria de texto ou trao), quando acontece o apelo desse segredo, contudo, que

aponta para o outro ou para uma outra coisa, e nos entrega ao outro, ento o

segredo nos apaixona (DERRIDA, 1993, pp.29-30).

Nos yeses do Ulysses, ou em um texto literrio qualquer, h um segredo

inacessvel para alm de qualquer hiptese ou interpretao formuladas por um leitor. , na

realidade, a permanncia no revelada desse segredo que possibilita interpretaes infinitas,

inteis no sentido de que nelas permanece eternamente, sem ser revelado, um resto

irredutvel. E se essas interpretaes so permitidas, no porque cada leitor ou cada

comunidade interpretativa pode dizer o que quer ou o que lhe autorizado (e aqui

importante notar a diferena entre Derrida e os defensores das Teorias da Resposta do

Leitor e da Esttica da Recepo), mas porque o texto literrio, sendo ficcional, no d a

nenhum leitor um fundamento slido e seguro que o ajude a confirmar suas hipteses. Em

casos excepcionais, como em The Purloined Letter, de Edgar Poe, o texto aponta

explicitamente para a impossibilidade de revelao do segredo ao ocultar para sempre o

contedo da carta. Mas mesmo quando essa impossibilidade no explicitada, a literatura

continua a guardar seus segredos. Seria possvel saber com certeza, por exemplo, quem ou

o que realmente Riobaldo, ou Leopold Bloom?

Ao que tudo indica, portanto, Derrida recusa-se a interpretar textos literrios ou a

desconstru-los porque neles tenta respeitar o segredo que no pode ser revelado, ou porque

neles respeita a chegada do outro absoluto que no pode ser programado ou previsto. A

alternativa para falar do texto literrio respeitando esse outro e esse segredo , como

sugerido anteriormente, a ele justapor uma contra-assinatura na forma de um outro texto

que, como no caso do Ulysses Gramophone, constitui um outro ato de fala em sua

singularidade absoluta, marcado pelas peculiaridades nicas daquele que escreve e que, por

exemplo, no dissocia a sua viagem a Tquio das perambulaes de Leopold Bloom pelas

ruas de uma Dublin ficcional em uma data igualmente ficcional apesar de existente no

calendrio: 16 de junho de 1904. Mas se essa prtica de contra-assinatura aponta para a

impossibilidade da interpretao e da desconstruo associadas literatura, seria possvel



pensar, levando em conta tal impossibilidade, outras alternativas possveis de leitura e de

aproximao entre desconstruo e literatura?

4. DESCONSTRUO E LITERATURA: APROXIMAES

POSSVEIS

Dizer que um texto literrio um ato de fala ou, na expresso certeira usada por

Derek Attridge para designar a coletnea de ensaios escritos sobre literatura por Jacques

Derrida (Acts of Literature), um ato de literatura que atende ao apelo do outro absoluto

significa, portanto, dizer que no pode ser nem interpretado e nem desconstrudo. Pode,

contudo, ser contra-assinado. Importa ento indagar com mais rigor o que seria essa

contra-assinatura, e as possibilidades nela existentes para o exerccio de uma crtica literria

em relao quela que permanece hegemnica at o momento presente e que tem como

objetivo fechar o texto em um sentido coerente e totalizante em que cada parte do

argumento confirma o todo e por ele confirmada em um movimento circular. esse tipo

de crtica, precisamente, que Derrida no pratica em sua leitura de Joyce.

Evitando prticas totalizantes, Derrida contra-assina os textos literrios que l, ou

seja, justape sua assinatura enquanto idioma inscrito em seu texto com o objetivo de

responder a outra assinatura, aquela existente no idioma do texto joyceano. Deve-se

entender por idioma a forma peculiar de um texto que, em sua peculiaridade singular,

configura uma assinatura. Do idioma diz Derrida em uma entrevista a Franois Ewald,

se que algum existe, [] aquilo que torna possvel o reconhecimento de uma assinatura

(DERRIDA, 1995, p.354). No se trata, portanto, da assinatura apenas enquanto referncia

ao nome do autor ou a um nome prprio qualquer. O texto tem tambm a sua assinatura,

que depende do que poderia chamar a sua idiomaticidade, ou seja, o conjunto de traos

singulares e idiossincrticos que o constituem. Na medida em que a lgica da iteratividade

habita esse conjunto de traos singulares, devem eles solicitar repeties na forma de

contra-assinaturas, vale dizer, na forma de comentrios, imitaes, interpretaes, ecos,

tradues, transformaes, leituras imprprias ou criativas, etc. assinatura de Joyce, ou



seja, a essa rede singular de traos idiossincrticos, Derrida responde com a sua prpria

contra-assinatura, igualmente idiossincrtica e exemplificada, por exemplo, em um longo

comentrio sobre a palavra yes, assombrada por espectros que escapam ao conhecimento,

do computador principalmente.

Vindo de Derrida, o que essa contra-assinatura no pode ser precisamente uma

totalizao, e o fechamento do crculo, e o retorno de Ulysses, do prprio Ulysses, e o

auto-envio de uma assinatura indivisvel. Nem a assinatura e nem a contra-assinatura

podem ser, para Derrida, calculveis, programveis e fechadas ou unitrias. Abrem-se,

antes, pela lgica da iteratividade, disseminao interminvel de sentidos que no

retornam ao pai. A resposta a essa disseminao incontrolvel, no podendo ser totalizante

(como devem ser nas interpretaes definidoras de sentido), deve ser fragmentria e

incompleta. Deve apresentar-se, por exemplo, na forma de uma interminvel anlise do

termo yes, interrompida pela ocorrncia de um quase acidente em um aeroporto.

Essa prtica de uma anlise infinita de fragmentos (e no da obra como um todo)

poder talvez apontar para a possibilidade de uma crtica fundamentada no pensar

derridiano. Essa possibilidade j comea a ser trabalhada, na teoria e na prtica, por um

dos mais brilhantes crticos do grupo que ficou conhecido como os desconstrucionistas de

Yale: J. Hillis Miller. Em ensaio sobre Derrida e Literatura, diz Miller:

Derrida elabora todo um ensaio a partir de um aspecto limitado do texto do autor,

ou de uma nica palavra ou frase que longamente questionada, ou de uma obra

perifrica, como um breve texto de Mallarm, Mimique, ou do breve poema de Ponge, Fable, ou de uma breve passagem de O Processo, de Kafka. O pressuposto de Derrida que, em crtica literria, melhor exercitar-se na

concentrao microscpica de uma parte do que desenvolver grandes

generalizaes sobre o todo com base em uma viso telescpica. Com frequncia,

a parte assim expandida, invertendo radicalmente a relao entre a parte e o todo,

uma nica palavra, s vezes uma palavra comum como o sim (MILLER, 2001, p.77).

O que entendemos comumente como interpretao depende do uso ferrenho do que

Miller chama da viso telescpica: olhar para o todo e traduzi-lo em uma construo

coerente de sentido, capaz de coloc-lo sob controle. H um preo a pagar pelo uso das

metforas ticas: trata-se nos dois casos de um uso tecnolgico de lentes que, ampliando ou

reduzindo o objeto a ser estudado em uma dimenso espacial, possibilita que ele

permanea, pelo menos por um momento, sob o controle do intrprete doador de sentido. O



conceito de controle, macro ou microscpico, sobre a disseminao de sentidos textuais

incontrolveis evidentemente pouco adequado para a descrio da prtica de leitura de

Derrida. O prprio Miller parecer ter-se dado conta do problema quando, em texto

posterior, utiliza a expresso metodologia microlgica para descrever os atos de leitura

derridianos (MILLER, 2009, p.258). O termo certamente mais adequado para dar conta

do tratamento de textos por parte de Derrida na medida em que atenua a sugesto de

controle das metforas ticas ao substitu-las pelo conceito de uma lgica de leitura de

micro-unidades de sentido. Em Joyce, o caso da leitura da micro-unidade yes.

Tendo definido os atos de leitura derridianos em termos de uma micrologia, Miller

d um passo adiante e sugere que a mesma prtica deveria ser aplicada leitura dos textos

escritos pelo prprio Derrida:

Meu pressuposto aqui, como em todos os captulos dedicados a Derrida... que a nica forma sensata de falar sobre Derrida evitar grandes generalizaes

sobre diffrance, gramatologia, A Poltica em Derrida ou coisas semelhantes e, ao invs disso, ler seus textos micrologicamente, linha por linha,

palavra por palavra, letra por letra, com o objetivo de tentar entender o que ele

tem a dizer sobre um tpico especfico. Tambm pressuponho que Derrida pode

estar dizendo algo bem diferente do que muitos pensam que ele diz. Talvez isso

acontea porque nossa resistncia ao que ele realmente diz, ou nossa inclinao

congnita para leituras equivocadas (misreadings) to grande. Ns somos talvez uma comunidade de maus leitores, muito embora nem todos leiam mal da

mesma maneira. Eu no me excluo de pertencer a essa comunidade (MILLER,

2009, p.310).

Resta saber se a leitura microlgica praticada por Derrida e, de acordo com Miller,

aquela que se mostra mais adequada leitura dos textos do autor de Disseminaes, poderia

ser tambm pensada como uma possvel estratgia de leitura para textos literrios. Dada a

hegemonia da interpretao telescpica, a proposta obscena e escandalosa. Por outro lado,

se levarmos a srio a questo da violncia feita ao texto pelo ato interpretativo que o

imobiliza em um sentido, a proposta pode bem comear a significar uma alternativa vlida

porque, ao mesmo tempo que questiona a violncia existente em toda telescopia

interpretativa (que implica uma tomada de distncia e uma viso totalizante que o re-

apresenta o texto, revelando um segredo oculto sob a superfcie textual), sugere a

possibilidade de uma ateno ao texto que, concentrada em fragmentos e na sua

disseminao de sentidos, prope-se a respeitar, no sem uma certa humildade, a existncia

de seus espectros e segredos irrevelveis. Toda interpretao totalizante inseparvel de



um desejo de controle daquilo que, supostamente, a obra expressa. No contexto do que se

poderia chamar de uma hermenutica positiva, preciso sempre interpretar e desvendar,

com rigor e clareza, o sentido ou os sentidos que o texto oculta. Como sugeriu

recentemente Jonathan Culler, a crtica e a teoria assim entendidas

[...] chamam a si a tarefa de nos dizer o que as obras significam. Se a obra

expressiva, ento a crtica elucida o que ela expressa: o gnio do autor, o esprito

da poca, a conjuntura histrica, os conflitos da alma, at mesmo o prprio

funcionamento da linguagem [...]. A obra muda, e o crtico deve falar por ela,

revelando o seu significado oculto (CULLER, 2010, p.906).

Curiosamente, o significado oculto no se revela por completo em nenhuma leitura

hermenutica, j que esta produz, no necessariamente como efeito colateral, um resto

inexplicado e inexplicvel, que faz do exerccio interpretativo uma tarefa infinita. esse

resto resistente qualquer captura que uma crtica alternativa em relao hermenutica

positiva tentaria respeitar. Seria talvez possvel pensar essa alternativa em termos de uma

crtica da hospitalidade ao texto, hospitalidade tendo aqui o sentido sugerido pelo prprio

Derrida.

O que significa hospedar um hspede e, por extenso, hospedar um texto? Significa,

em primeiro lugar, dar as boas vindas no contexto paradoxal de uma estrutura de

aprisionamento. Ao dizer seja bem-vindo, a casa sua, o hospedeiro convida o hspede a

habitar em liberdade uma casa que parece sua, j que nela pode movimentar-se, explorar os

seus espaos. Por outro lado, dar as boas vindas e dizer a casa sua significa tambm e

paradoxalmente dizer: seja bem-vindo a um regramento e a um sistema de regras, a casa

no exatamente sua. Ser hospitaleiro significa, ento, paradoxalmente, praticar a

hospitalidade mas tambm a hostilidade, uma dentro da outra, uma ao mesmo tempo que a

outra. O espectro da hostilidade est desde sempre presente em qualquer ato hospitaleiro.

Em resumo, a hospitalidade significa a hospitalidade programada. esta a hospitalidade do

comentrio, aquela que diz ao texto, seja bem-vindo, sinta-se em casa, encontre nela a

oportunidade para praticar livremente a expresso do seu sentido. Mas no se esquea

jamais: essa liberdade de sentido e esse exerccio de liberdade acontece tambm no

aprisionamento de um sistema e de um programa que permitem que eu, o hospedeiro-



intrprete, esteja em controle. Seja bem-vindo, a casa e sua, mas no se esquea jamais que

as leis da hospitalidade so tambm as leis da hostilidade e da violncia.

O segundo sentido da hospitalidade est ligado ao que Derrida chama da

possibilidade da experincia do impossvel, se que ela existe. Significa, para colocar o

problema de uma forma simplificada, pensar a possibilidade de uma hospitalidade que no

pode ser contida por programas, uma hospitalidade aberta ao possvel e ao impossvel, ao

previsvel (aquela do hspede bem comportado) e ao imprevisvel (aquela em que o

hspede sai fora do controle e inverte papis, em certo sentido hospedando o hospedeiro).

No caso do texto literrio, chamemos essa hospitalidade de leitura hospitaleira, aquela

que, ao ler um texto, entra armada de sistemas e programaes, mas, ao mesmo tempo, est

preparada para a surpresa do evento imprevisvel e para a experincia do impossvel.

Hospedo um sistema de significaes, um jogo de sentidos que quero controlar, mas que

pode tambm exercer controle sobre mim a qualquer momento. Hospedo um texto que

constituo como objeto e hspede bem comportado, mas que pode a qualquer momento

desprender-se da objetividade e tornar-se sujeito, hospedando-me em vastos espaos de

sentido que assombram minha casa, agora despojada de conforto e segurana. Assim

entendido, o ato de hospitalidade deve ser necessariamente potico (DERRIDA, 2000,

p.2)

Em uma crtica assim pensada, o leitor-hospedeiro hospeda o texto-hspede que

tambm o hospeda. Mas, para que isso acontea, preciso que o hospedeiro no estabelea

um programa para o hspede, mas abra-se para ele de forma incondicional, em termos de

uma abertura para o que Derrida chama de tout autre, o outro absoluto que no pode ser

reduzido a um objeto. Esse outro absoluto no pode ser programado de antemo, ele chega

como aquilo que no pode ser previsto e aceito em sua imprevisibidade e indefinio. Se

pensarmos que, nesse contexto, o hospedeiro j no pode ler o hspede de forma

programada, poderemos imaginar, a partir da relao hospedeiro-hspede, um modelo de

leitura em que o leitor que hospeda o texto recusa-se a program-lo e se torna, ao mesmo

tempo, ativo e passivo em relao a ele, sendo por ele programado ao mesmo tempo que o

programa e, assim, respeitando-o em sua indeterminao e em seu segredo absoluto.

Se uma tal leitura possvel, ela poderia ser no apenas uma alternativa para o

comentrio profissional, mas uma proposta pedaggica alternativa em sala de aula.



Teramos que cham-la ento de pedagogia da hospitalidade ao texto, aquela capaz de

despojar-se do desejo ferrenho de tudo entender de forma programtica para entregar-se

possibilidade do sentido do porvir que est sempre por vir e que, quando chega, continua a

chegar.

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artiho derrida leitor de joyce - deconstrucao e alteridade literaria

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