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3a edição dessa revista publicada pela GOLE/PCR.

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N a r r a n d o a p é a c i d a d e

“Terminologia Urbana do Recife” é o resultado de uma série de explorações a pé pela cidade do Recife. Um dos resultados do trabalho é apresentado nesse dicionário.

Nós nos apropriamos assim de um formato de narração habitualmente acadêmico e genérico, para mostrar e contrapor um olhar cotidiano e mutante.

Frequentemente, a cidade é interpretada por vozes que a observam à distância, de modo fugaz ou levando em consideração os interesses político-econômicos,

gerando e promovendo assim interpretações manipuladas sobre o espaço público. Como resposta a essa leitura urbana equivocada, nós nos propusemos a narrar aqui

a cidade a partir da proximidade e da presença.

Entendemos que é necessário conhecer o território urbano através de uma experiência direta e pessoal, que supere o imaginário imposto e a leitura bidimensional do mapa.

É necessário para isso “caminhar o mapa” para poder perceber e narrar a cidade tendo como ponto de partida a escala humana, física e emocional, pois esta é,

afinal de contas, a base de interpretação mais rica e genuína que possuímos.

Pau Faus e Diogo TodéRealizadores do workshop

Terminologia Urbana do Recife

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.Vende-se1 Tudo. Absolutamente tudo está à venda: prédios quase destruídos na Mirueira. 2 O trator que se troca por um punhado de seu dinheiro na Dr. José Rufino. 3 Permanente estado de compra e venda nas ruas do Recife. 4 Aquilo que se aplica a placas para vendas de uma barraca de cachorro-quente na Rua da Saudade.

.Muro1 Obstáculo artificial construído pelo homem para o isolar de algo ou alguém. 2 Artifício utilizado para demarcar propriedade, definir fronteiras. 3 Espaço publicitário. 4 Elemento essencial para grafiteiros. 5 Elemento gerador de sombra.

.Favela1 Nome de habitações militares na guerra de Canudos, aplicado a um morro no Rio de Janeiro, e aplicado para todos os conjuntos de habitações subnormais do Brasil, inclu-indo estas áreas no Recife. 2 Assentamento humano espontâneo que lembra o aspecto desumano relativo ao subdesenvolvimento. 3 Comunidade informal em permanente estado efêmero. 4 Lugar de sobrevivência e invenção, com caminhos e surpresas.

.Mercado1 Equipamento público ou privado que congrega pessoas que compram e vendem, que comem e bebem, que se encontram e desencontram. 2 Lugar multicompartimen-tado que oferece prestação de serviços. 3 Lugar onde se encontra mais facilmente tudo o que é produzido com rótulo de cultura popular e pessoas peculiares da cidade. 4 Na cidade do Recife, existem muitos formais ou infor-mais. 5 O mercado organiza a feira.

.Bar1 Cerveja, caldinho, ide-ias, música e amigos. Lo-cal de alegria e abstra-ção alcoólica ao redor de pessoas queridas. Contém mobiliário que estimula a aproximação das pessoas. 2 Lugar que lembra uma farmácia, com líquidos que para dissolver problemas.

.Gambiarra1 Arranjo criativo para soluções temporárias que se tornam permanentes. Adaptação. 2 Costume frequente de adotar códigos abertos não patentea-dos. 3 Solução para a minimização orçamentária de cobranças.

.Calçada1 Local por onde não se anda, ou se anda com dificul-dade. 2 Espaço público utilizado tal qual espaço privado. 3 Local para comércio, secagem de roupa, oficina. 4 Local para dormir. 5 Extensão da casa. 6 Mobiliário urbano. 7 Mostruário de material para pavimento. 8 Local para onde se deve olhar ao caminhar por Recife, a fim de esquivar-se dos obstáculos. 9 Terra de ninguém. 10 Dentro do mar: Arrecife (do árabe “calçada que margeia a costa”).

.Pirataria1 Difusão de informação humana sem CPF ou CNPJ. 2 Direito da não propriedade intelectual. 3 Do imaginário pirata, aquele que rouba. 4 Pode ser vista em pontos comerciais ilegais por toda a cidade, incluindo próximos a policiais.

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.Maresia1 Cheiro ou atmosfera marítima. Geralmente úmida e com grande quantidade de sais marin-hos. 2 O que corrói peças metálicas de uma casa à beira mar. 3 Cheiro de maconha no ar ou efeito de quem acaba de fumar.

.CamelôVendedor ambulante de rua. Presente em todas as ruas dos centros urbanos subdesenvolvidos. Esta categoria está sempre sendo perseguida ou “oficializada” pelo poder público. Ações para a regulamentação da ativi-dade aparentemente não demonstram surtir efeito. Um exemplo recente foi o fracasso do “camelódromo”. Desde os antigos mascates, pouca coisa mudou. Vide Dantas Barreto, Avenida.

.Mapa1 Desenho cartográfico que tenta definir um território. 2 Através dele podemos nos desorientar. Mapa Mun-di, Mapa astral, Mapa rodoviário, mapa do céu.

.Maré1 Movimento dos níveis fluviais da cidade regu-lados pela lua. Modificação da vida, paisagem, cor, cheiro. 2 Determinante do trabalho dos pescadores. 3 Toma-se banho de canal quando a maré enche. 4 Renovação das águas. 5 Típica gíria: a maré não está pra peixe.

.Bicicleta1 Principal meio de transporte da população de baixa renda, odiado por motoristas de carros ou ônibus. 2 Um veículo de baixo custo, ecológico, uti-lizado principalmente nas áreas pla-nas do Recife. 3 Veículo para venda de diversos produtos. Vide Anuncicleta.

.Rua1 Elemento multiuso. 2 Quando privado é igual a um mau lugar. 3 Podem-se criar eventos de rua por seu caráter de múltipla atividade. 4 Local de circulação de pessoas e mercadorias. Pequena extensão da casa.

.Dominó 1 Jogo de salão com peças de madeira, plástico ou marfim. 2 No Recife, o dominó é um território

de socialização para seus mo-radores, em calçadas, próximos às ruas. 3 Sua queda é efeito em cadeia, em rede, e suas con-sequências são as que se no-tam no caos de Recife.

.Calçada1 Local por onde não se anda, ou se anda com dificul-dade. 2 Espaço público utilizado tal qual espaço privado. 3 Local para comércio, secagem de roupa, oficina. 4 Local para dormir. 5 Extensão da casa. 6 Mobiliário urbano. 7 Mostruário de material para pavimento. 8 Local para onde se deve olhar ao caminhar por Recife, a fim de esquivar-se dos obstáculos. 9 Terra de ninguém. 10 Dentro do mar: Arrecife (do árabe “calçada que margeia a costa”).

.Gelo baianoObstáculo de concreto e tinta lumirreflexiva. Limítrofe urbano utilizado na rolagem das ruas para disciplinar o trânsito. Em áreas de fluxo intenso pode assumir dimensões maiores, tornando-se um iceberg baiano.

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T e r m i n o l o g i a U r b a n a d o R e c i f e

Pensar e agir sobre a trama urbana que configura a cidade do Recife. Eis operações que sempre estiveram presentes no SPA das Artes do Recife, e que mobilizaram os integrantes do Workshop que deu origem a essa colaboração para a Revista Eita!

Ao longo de sua trajetória, o SPA vem se consolidando como o maior evento voltado para o Campo de Artes Visuais no Recife, repercutindo suas realizações para outros territórios.

Antecipando a programação do SPA das Artes do Recife 2009, o Centro de Formação em Artes Visuais – CFAV realizou o Workshop Terminologia Urbana Recife, orientado pelo artista catalão Pau Faus e o artista recifense Diogo Todé entre os dias 24 de agosto e 03 de setembro. Durante o workshop, a cidade serviu de campo para expedições exploratórias e proposições artísticas, sendo inventariada e “dicionarizada”.

Com essa iniciativa, o CFAV fomenta a investigação e os intercâmbios artísticos, ao mesmo tempo em que contribui para a apropriação e re-cognição da cidade e de suas redes de significado durante a realização de tais investigações.

André AquinoArte/educador e articulador do workshop

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“Quem você deixou de ser?”

Esta é a pergunta da editora Débora Nascimento a jornalistas, escritores, mú-sicos e artistas, cujas respostas o leitor pode conferir na página 60. Esta é a

pergunta que a Eita! faz a si mesma, reafirmando a importância de pensar a cultura contemporânea com leveza, bom humor e sem medo de experimentar coisas novas.

Editada pela Fundação de Cultura Cidade do Recife, a revista Eita! é uma pu-blicação da Gerência de Literatura e Editoração e do Centro de Design do Recife. Sua

proposta consiste em articular, em um projeto gráfico que muda a cada edição, diversos segmentos artísticos.

Aliando boniteza gráfica à excelência de conteúdo, o leitor encontrará, nesta terceira edição, astronautas visitando o rio Capibaribe, walkmans balzaquianos, receitas para fabri-

car zebras em casa, samambaias cósmicas, pinguins de geladeira, Papai Noel, ônibus voadores, entrevistas com personagens de importantes romances da ficção contemporânea em Pernambuco

– que criaram vida especialmente para nossa revista – e até uma fotonovela noir! Texto e imagem tentam, em igual medida, mapear tendências e debater ideias: enquanto

Anco Márcio se pergunta se performances e instalações podem ser chamadas de arte, acompanha-mos o registro do trabalho do street performer Dimitri Gargamel, artista ainda fora do circuito

“oficial” da arte. As ilustrações de Mauricio Nunes e Katalina Leão criam novos significados para os poemas de josé juva e Isa Feitosa, a ponto de dizermos que os poemas não estão na palavra, nem nas

imagens – eles são a página.Estas e outras surpresas estão à sua espera!

Eita: Estribeiras!, Interfluxo!, Tessitura!, Alti-tudo!

Boa leitura,Os editores.

Recife, 2009. Eita!, ano 2, número 3

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João da Costa Bezerra FilhoMilton CoelhoRuth Helena VieiraRenato LLuciana FélixSandra Simone dos Santos BrunoDida MaiaBeto RezendeHeloísa Arcoverde de MoraisCristhiano AguiarRenata GameloDébora NascimentoKarol Ferreira e Cristhiano AguiarGráfica FacFormJuin » Lucídio Leão e Sebba CavalcanteAndré Aquino, Arnaldo Siqueira, Célio Pontes, Cristhiano Aguiar, Débora Nascimento, Heloísa Arcoverde de Morais, Márcio Almeida, Mateus Sá, Raul Kawamura, Renata Gamelo, Karol Ferreira (estagiária)Textos: Anco Márcio Tenório Vieira, André Aquino, Cláudio Lacerda, Cristhiano Aguiar, Débora Nascimento, Diogo Todé, Fabiana Moraes, Hallina Beltrão, josé juva, Luciana Veras, Luiz Carlos Pinto, Marilena de Castro, Moema Cavalcanti, Pau Faus, Raísa Feitosa, Roberto Azoubel, Samarone Lima, Yellow, Zeca VianaIlustrações: Ayodê França, Bruna Rafaella, Isabella Alves, Isadora Melo, Juin, Katalina Leão, Keops Ferraz, Laura Melo, Mauricio Nunes, Raoni Assis, Sebba Cavalcante, Yellow, Victor ZalmaFotografias: Beto Figueiroa, Déborah Guaraná, Javier Martínez, Marcelo Lyra, Moema Cavalcanti, Moema Moura, Osmário MarquesPerformance: Amanda Gabriel, Biagio, Dimitri GargamelFotonovela: Séphora Silva (direção de arte e cenografia), Hilda Torres (atriz)

ISSN 1983–1846

Direitos exclusivos desta edição reservados à Fundação de Cultura Cidade do RecifeCais do Apolo, 925, 15º andar. CEP 50030-230 Recife/[email protected](81) 3232 2898 / 3232 2937Impresso no Brasil – dezembro 2009

Prefeito do RecifeVice-prefeito do Recife

Secretária de ComunicaçãoSecretário de Cultura

Diretora Presidente da Fundação de Cultura Cidade do RecifeDiretora Administrativo-Financeira

Diretor de Desenvolvimento e Descentralização CulturalDiretor de Gestão e Equipamentos Culturais

Gerência Operacional de Literatura e EditoraçãoCoordenação editorial

Centro de Design do RecifeJornalista responsável

RevisãoImpressão

Projeto gráfico e capa Conselho editorial

Colaboradores desta edição

O conteúdo das colaborações não reflete necessariamente a opiniãodo conselho editorial da revista Eita!

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SAMAMBAIAS E OS CICLOS SOLARESJOSÉ JUVAMAURICIO NUNES

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RHIZOPHORA MANGLE LITTERAE:

POR UMA POSSÍVEL “LITERATURA MANGUE BEAT”

ROBERTO AZOUBEL

SEBBA CAVALCANTE6

12

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TESSITURA

20

30 ANOS DO WALKMAN

LUIZ CARLOS PINTO

ISABELLAALVES E ISADORA MELO

24 UMA ARTE QUE NÃO OUSA DIZER SEU NOME

ANCO MÁRCIO

DIMITRI GARGAMEL

MARCELO LYRA

14

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AS CINTILAÇÕES CÓSMICAS DE EVALDO COUTINHO

UM ENSAIO SOBRE EXISTÊNCIA E ARTE

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BRUNA RAFAELLA46

46

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50

VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO

LUCIANA VERAS

52

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QUEM VOCÊ DEIXOU DE SER?

DÉBORA NASCIMENTO

AYODÊ FRANÇA E RAONI ASSIS

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CRIAÇÃOE DANÇA: CORPOS QUE IMPORTAM

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A literatura sempre esteve presente em movimentos culturais. His-toricamente temos vários exemplos de obras literárias e autores que inspiraram ou que vieram atrelados aos movimentos culturais que ocorreram no mundo. Como desvincular o surrealismo do escritor André Breton? E o Romance da Pedra do Reino, do Ariano Suassuna, do movimento Armorial? Como não juntar os pares Macunaíma/Modernismo brasileiro, On the Road/Geração Beatnik, Panamérica/Tropicalismo? Os exemplos se multiplicam conforme aguçarmos nossas memórias.

Insinuando-se em direção a esta relação, a crítica Heloisa Buarque de Hollanda, numa alusão à movimen-tação cultural que surgiu na cidade do Recife durante a década de 1990, lançou a pergunta que intitu-la este tópico em uma entrevista realizada com o romancista Raimundo Carrero para o site Portal Literal (publicada originalmente em 22/09/2004). Eis a resposta do autor:

Até onde eu possa conhecer, acho que não. Mas tem novidades por aqui. Uma tendência que me parece muito boa é de um grupo chamado ‘A mula manca e a triste figura’. Eles fazem música com literatura, com a participação de poetas. Me pediram para gravar um CD onde leio o texto de Dom Quixote. Tem também

a Micheliny [Verunsky], que fez um CD e que é uma poeta muito forte, da cidade de

Arcoverde, do sertão de Pernambuco, e que agora está fazendo um mestrado na PUC de

São Paulo. Sem dúvida aqui está se produzindo uma literatura subterrânea e boa. Nesse

campo, temos um contista chamado Carlos Magnata, que é muito bom e publica em

blogs. Já que a imprensa não tem mais espaço para contistas, para poetas, o caminho é esse mesmo. Eu também gosto de blog e até tenho um: www.aoredor.blogspot.com. É onde digo coisas, mando recados, converso sobre literatura.

por uma possível “literatura mangue beat”Nem só de música vive o mangue beat: crônicas, manifestos, resenhas e blogues foram escritos por nomes importantes do movimento pernambucano

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O depoimento de Carrero parece contrariar a hipotética regra. E, de fato, numa rápida genealogia que considere seus perfis, tra-

jetórias e mesmo cronologia (o Mula Manca, por exemplo, inicia suas atividades apenas no início dos anos 2000), os casos citados pelo escritor

não parecem caracterizar o que se poderia chamar de “literatura mangue beat”. No entanto, retomo de viés a questão posta por Buarque de Hollanda:

existe algo que poderia? Do ponto de vista estritamente estético, marcado pela presença de caracte-

rísticas narrativas ou poéticas que se repetem e a define, podemos afirmar que não há uma “literatura mangue beat”. Porém, algumas produções literárias locais, heterogêneas como a cena musical da movimentação e heterodoxas no que diz respeito aos gêneros literários, insinuam-se positivamente para sua existência. Quais seriam elas então? Onde, afinal, se encontraria tal literatura?

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Texto Roberto AzoubelJornalista e doutor em Letras pela PUC-Rio

Ilustração Sebba Cavalcante utilizando a fonte Manguebat 2

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Mais perguntas, mais respostas

Sem entrar na discussão um tanto anacrônica se letra de músi-ca e manifesto podem caracterizar ou não uma literatura (em caso afirmativo, as questões acima já estariam respondidas, pois além de inúmeras letras, o Mangue produziu dois manifes-tos), quando formulou sua pergunta a Carrero, Heloisa Buarque de Hollanda não estava interessada neste antigo debate. A crí-tica queria informações para além dele – afinal, estava diante de um genuíno “homem de literatura”, um romancista. Chegou a hora de tentar respondê-la. Para isso, o texto “Caranguejos com cérebro”, primeiro manifesto do mangue e que foi encar-tado no disco inaugural Da lama ao caos da banda Nação Zumbi, traz uma passagem que aponta um caminho na busca desse “graal” literário:

Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de ideias pop. O objetivo é engendrar um “circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo, uma antena parabólica enfiada na lama.

É justamente deste “núcleo de pesquisa e produção de ideias pop” que uma possível literatura mangue sairá. É através da produção escrita de alguns integrantes de tal núcleo que é possível, de certa forma, concebê-la. Sem romances, poemas ou qualquer formato literário canônico, ela se expressa através de crônicas, pequenos contos, críticas culturais, entre outros gêneros textuais, sendo marcada basicamente por duas características comuns: 1) ela é extremamente urbana, livrando-se do folclorismo habitual

atribuído às produções artístico-culturais nordestinas; 2) e veiculada, sobretudo, em suporte digital (traço também apon-tado nos exemplos do depoimento de Carrero). Para ilustrar essa literatura, quatro produções servem de exemplos. São elas: os sítios Manguetronic e o O Carapuceiro, a coluna Contraditório? e o blog Aurora Boulevard.

Criado no ano de 1996 por h. d. Mabuse, webdesigner responsável pela face tecnológica do mangue, e pelo jornalista e Dj Renato L, considerado o “ministro da informação” da movimentação, o Manguetronic foi um site que teve como principal objetivo disponibilizar programações de rádio conce-bidas exclusivamente para internet (uma iniciativa pioneira na América Latina). Além dessas programações, ele apresentava as seções: MP3, com lançamentos e raridades musicais da cena do Recife e de grupos independentes do Brasil e do mundo para baixar no referido formato-título; Top Ten, com listagens ao estilo “dez mais” sobre os mais variados as-

suntos; e Verbum, com textos de vários colaboradores. Essa última seção do espaço literário do site abrigava

contos, matérias, entrevistas (inclusive uma com o ci-tado Raimundo Carrero) e, sobretudo, críticas. Estas tratavam de diversos temas e produções culturais como shows, cenas, bandas, discos, autores e livros: On the road, de Jack Kerouac; Mate-me, por favor: a história sem censura do punk, dos jornalis-

tas americanos Legs McNeil e Gilliam McCain; Como dois e dois são cinco, do jornalista Pedro Alexan-

dre Sanches; Fliperama sem creme, do crítico de arte Teixeira Coelho; Nova geografia da fome, do escritor e

jornalista Xico Sá, etc. Entre os autores, encontram-se, por exemplo, os nomes dos próprios criadores, dos compositores Tom Zé e Fred Zeroquatro, do cientista político Túlio Velho Barreto e do contista Daniel Albuquerque. Apesar de ainda es-tar online (http://salu.cesar.org.br/manguetronic/jornal), o

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Manguetronic encerrou suas atividades como websi-te e não recebe mais renovações. No segundo semestre de 2007, foi retomado em formato blog por Renato L, no qual passou a postar apenas textos de sua autoria (em geral críticas culturais, muitas delas matérias que escrevia para o Diario de Pernambuco, órgão em que trabalhou como jornalista). Sem novas postagens desde janeiro de 2009 – período que coincide com a nomea-ção e posse do responsável como secretário de cultura da cidade do Recife –, o acervo do blog continua disponível aos leitores no endereço http://man-guetronic.zip.net.

Juntamente com o Manguetronic, O Carapuceiro foi um dos websites que integraram a chamada MangueNet, rede de endereços eletrônicos ligados à movimenta-ção cultural do Recife. Concebido por Xico Sá, h. d. Mabuse e Adriana Vaz, teve sua primeira edição no ciberespaço em fevereiro de 1998 através de um link no sítio Man-guebit (também ligado à referida rede e que trazia informações sobre a cena cultural da cidade). Tal como o homônimo e igual-mente satírico jornal de crônicas que cir-culou na capital pernambucana na primeira metade do século XIX (escrito pelo pa-dre Lopes Gama), O Carapuceiro tinha também no gênero a sua maior produção textual. Em sua maior parte escritas por Xico Sá (e por seus heterônimos), as crô-nicas tratavam de diversos assuntos como política, gastronomia, sexo, cultura, entre outros, dispostas em suas oito seções fi-xas. Recebeu colaborações e compilou textos

de vários autores mais ou menos conhecidos do grande público como Antônio Maria, Cláudio Tognolli, Evaldo Cabral de Mello, Fábio Victor, Fred Zeroquatro, Hono-

ré de Balzac, Bocage, Nelson Rodrigues, Wilson Freire, entre vários outros. O Carapuceiro teve duas de suas crônicas reproduzidas nas coletâneas As cem melhores crônicas brasileiras (Objetiva) e Boa Companhia – Crônicas (Companhia das Letras), publicações im-portantes sobre o gênero no cenário literário nacional. Assim como o Manguetronic, passou pela mesma

mudança de formato e, em abril de 2005, virou blog mantido apenas por Xico Sá, autor único

dos textos que são postados. Em plena ati-vidade (no endereço http://carapuceiro.zip.net), o blog atingiu a expressiva marca de mais de 500.000 visitações, computadas até o mês de abril de 2008.

Única das produções citadas que foi vei-culada, ainda que não exclusivamente, em material impresso, Contraditório? foi ori-ginalmente uma coluna no jornal Diario de Pernambuco escrita pelo músico Dj Dolores (pseudônimo do artista Hélder Aragão). Pu-blicada entre outubro de 2005 e o mesmo mês do ano seguinte, ela tinha a música como eixo temático. No entanto, o autor incursionava por outros ambientes do mundo da cultura, fazendo análises e comentários sobre livros, escritores, filmes, etc. Suas crí-ticas ao bairrismo pernambucano e à tradi-ção local renderam polêmicas fervorosas que fizeram do espaço uma arena de debates - os escritos são verdadeiros documentos para

a discussão sobre identidade cultural. Em pa-

A produçãode textos do movimentomangue foi marcada pela temática urbana, postura cosmopolita e uso de suporte digital

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ralelo à publicação no periódico, o Dj Dolores disponibilizou os textos em um blog que, mesmo sem atualizações após o final da coluna, encontra-se ainda no ciberespaço (http://djdolores.blogspot.com).

Título de uma das seções d’O Carapuceiro, o blog Au-rora Boulevard foi criado em dezembro de 2006 pela escri-tora Adriana Vaz. O nome é uma referência à rua da Aurora, via pública do Recife conhecida por seu preservado casario colonial, onde mora a própria autora. Dos exemplos citados é o de perfil mais intimista, apresentando crônicas poéticas fe-mininas que giram em torno do mundo sentimental de Miss So-ledad, pseudônimo de Vaz. Os textos tomam constantemente a cidade do Recife como ambientação das situações descritas nos seus enredos, conforme mostra esta passagem:

A ilha calma, densa, pesada, ainda quente, apesar das chuvas. Uma Recife arranca-coração! Sente-se uma aridez descomunal na alma. Apenas alguns segundos de contemplação da geografia da velha Recife é suficiente para provocar no sujeito uma dormência, um amolecimento nas entranhas. As pontes, lavadas pela chuva. O Rio Capibaribe num terral assombroso! As coisas funcionando com lentidão. As pessoas a passar pela Aurora sentindo o cheiro dos biscoitos maizena que a fábrica sopra às cinco da tarde. O cair da noite: na imensidão escura da cidade úmida, não se vê um pé de gente. As pessoas se guardam, a alegria foi toda gasta no verão momesco. Mas, afinal, pra quê taannnnnnta alegria? Um Maracatu, pesando não sei quantas toneladas: é assim que a cidade arrasta seus dias chuvosos, seu quase inverno...

O Aurora Boulevard compila também citações retiradas do universo literário da responsável, revelado em trechos trans-critos de autores como Hakim Bey, Alberto Morávia, William Blake, Cioran, Jorge Luís Borges, Carlos Drummond de An-drade, Walt Whitman e Jean Baudrillard. O blog continua em atividade no endereço http://auroraboulevard.zip.net.

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À margem da própriacidade e do mundo

É certo que o recorte que fiz nesta resenha tenha deixado de fora produções literárias ligadas ou, sobretudo, inspiradas pelo mangue. Também passei ao largo de livros e trabalhos de análi-ses críticas (como as inúmeras dissertações e teses acadêmicas) que tomaram a recente movimentação cultural pernambucana como objeto de suas investigações. Neste campo, gostaria de destacar as publicações Do frevo ao manguebeat (Edito-ra 34), do jornalista e crítico musical José Teles; Música e simbolização - manguebeat: contracultura em versão cabocla (Annablume), da pesquisadora Rejane Sá Markman; e Hibridismos musicais de Chico Science e Nação Zumbi (Ateliê Editorial), do professor da Universidade Metodista de São Paulo Herom Vargas. São os limites de uma genealogia que primou por atores que tiveram grande importância para a formação e eclosão do mangue.

Por fim, creio ser importante dizer que nenhuma das produ-ções tomadas acima como exemplos de uma possível “literatura mangue beat” estabeleceu traços característicos básicos que pudessem cunhar este rótulo – nem o procuravam. Nenhuma delas reivindicou o título desta literatura. O que pode caracte-rizá-las como tal é o fato, como escrevi acima, de terem sido realizadas por pessoas que estavam diretamente ligadas à cria-ção da cena cultural pernambucana. Pessoas que escreveram textos heterogêneos, tanto em relação aos gêneros, quanto aos temas, mas que traziam em comum a manifestação escrita de uma postura urbana, cosmopolita e periférica, representativa daqueles que sempre foram colocados à margem pelo processo sócio-histórico-cultural não só da própria cidade, como do país e, num panorama ainda mais largo, do mundo.

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12

COMO CRIAR

ZEBRAS EM

CASA

Você vai precisar de:

1 (um) por-de-sol decente

Algumas janelas com persianas em frente ao por-do-sol

1 (uma) câmera razoável

300 gramas de sensibilidade

1/2 quilo de far niente

Paciência o quanto baste

Un certain regard

Você vai precisar de:

1 (um) por-de-sol decente

Algumas janelas com persianas em frente ao por-do-sol

1 (uma) câmera razoável

300 gramas de sensibilidade

1/2 quilo de far niente

Paciência o quanto baste

Un certain regard

Texto e imagem Moema CavalcantiPernambucana, designer. Criou cenários e figurinos

para teatro e mais de 1.200 capas de livro

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E s t r i b e i r a s 13

Primeiro PassoAguarde o momento exato

em que o sol estiver bem vermelho.

Segundo PassoRegule as persianas.Let the sunshine in.

Terceiro PassoAdicione rapidamente os outros ingredientes

pela ordem. Caso necessário, coloque um pouco mais de sensibilidade para dar o ponto.

FinalizaçãoLeve ao photoshop por cerca de vinte minutos.

As zebras aparecerão como por encanto. Divirta-se.

Modo de fazer

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14

Entrevistas com importantespersonagens da ficção pernambucana revelam outras histórias de suas “vidas”

Texto Cristhiano AguiarCristhiano Aguiar é escritor, editor e crítico literário

Ilustração Laura Melo e Victor ZalmaLaura Melo estuda artes plásticas,

se mela de tinta e faz parte do coletivo 3x4Victor Zalma é artista e ilustrador

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Esta entrevista aconteceu há alguns anos, quando es-tudei na Escola de Cinema do Semiárido. Meu trabalho de conclusão de curso seria um documentário sobre al-gumas fazendas em decadência do sertão do Inhamuns, no Ceará. Orientando o meu trabalho, dois amigos que à época trabalhavam com cinema: Ronaldo Correia de Brito e Francisco de Assis Lima. Nosso plano inicial, que seria depois copiado por Eduardo Coutinho no seu docu-mentário O fim e o princípio, consistia em chegar sem um roteiro pré-definido nas fazendas e improvisar as filma-gens. A primeira e única fazenda foi Galiléia. O filme nunca foi concluído, mas é provável que a viagem tenha inspirado Ronaldo a escrever o premiado romance Galiléia, publi-cado pela editora Alfaguara. Das entrevistas que fizemos lá, nenhuma me marcou tanto quanto a de Ismael. A presença de algumas pessoas nos causa um automático desconforto. Era o caso dele. Sempre franzino, tímido e pudico, nunca me senti à vontade perto de homens como ele, musculosos, passionais, mulherengos. Ismael intimidava: muitos o chamariam de “mal-encarado”. No entanto, ele se revelou uma pessoa sensível, cuja solidão me comoveu. Há uma tragédia domesticada em Ismael? Aqui vai um trecho da nossa conversa:

I S M A E L Ismael, você é descendente de patriarcas senhores de terra e, ao mesmo tempo, dos índios Kanela; está ligado ao sertão dos Inhamuns, mas viveu boa parte da vida no Maranhão e na Noruega... Como é conciliar tudo isso?Minha paternidade é o eixo do meu conflito. Natan, meu suposto pai, não me reconhece como filho. Fui adotado pelo avô Raimundo Caetano, o pai de Natan e proprietário da fazenda Galiléia. Mesmo assim a família não me reconhece. Como no judaísmo, de que o avô Caetano tanto se orgulha, a filiação é matri-linear, só tenho certeza de ser filho de uma índia Kanela. Também não possuo lugar, sou estranho a tudo. Nasci em Barra do Corda, no Maranhão, entre os índios Kanela e vivi um tempo entre os Rego Castro, na Galiléia, no sertão cearense. Depois voltei aos Kanela e fui levado para a Noruega, de onde re-tornei ao Brasil e depois novamente à Noruega. Sou de uma geração que não pertence a ninguém, nem a lugar nenhum. Isso não se concilia.

E o que significa, para você, a palavra sertão?Um lugar supostamente meu, pois nele vive o homem que imagino ser o pai. Um lugar que aprendi a amar e a desejar como minha Terra Prometida.

Quais são tuas lembranças mais fortes daqui, da fazenda Galiléia?As mais tardias são do carinho do avô Caetano e do ódio dos outros fami-liares. A amizade com o primo Adonias e o desprezo de meus irmãos Elias e Davi. A avó Maria Raquel nunca olhou no meu rosto. Lembro o meu desespero para garantir o lugar de filho na Galiléia e de minha vingança incestuosa contra o pai, fazendo sexo com a antiga esposa dele. E por fim o exílio, a proscrição. Em qualquer lugar onde estive, fui sempre um proscrito. É minha maldição de bastardo.

Ouvindo uma conversa entre você e Adonias, lembro de você ter falado que “A Noruega é um sertão a menos trinta graus”. Como assim?Porque as pessoas terminam sendo sempre as mesmas, independen-te da latitude. Na Noruega, os rostos são queimados e envelheci-dos pela exposição ao gelo e ao frio, da mesma maneira que são queimados e envelhecidos no sertão por conta do sol, do vento e da secura do clima. O norueguês é solitário, fala pouco, vive em silêncio como o sertanejo. Mas, é claro, me refiro a homens que talvez já não mais existam.

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Uma das minhas lembranças mais antigas, de quando eu ainda mo-rava em Campina Grande, são os passeios com meu avô materno no centro da cidade. Ele me comprava gibis, bombons Xaxá, pirulitos Zorro e folhetos de cordel. Às vezes, íamos à feira e a maior atração do lugar era um senhor que falava mais que o homem da cobra, mungangueiro e prezepeiro; ganhava a vida contando, nas feiras, as histórias que passavam nos cinemas. Qual não foi minha surpresa quando, ao ler a biografia deste homem chamado Bibiu, escrita por Homero Fonseca e publicada pela editora Record sob o título de Roliúde, reconheci seu protagonista como aquele personagem que marcou minha infância. “Então tu é neto de Mottinha?”, esse ho-mem quase centenário perguntou, enquanto me abraçava e contava “as aventuras com Mottinha nos cabarés, nos tempos do seu Manoel Motta!”. Fui muito bem-recebido em sua casa – cheia de cachorros e passarinhos – na cidade de Caruaru e ri muito com os causos que Bibiu, mão tremida e olhinhos vivazes, me contava. Não abrimos mão da cachacinha, enquanto Bibiu fazia questão de me mostrar as fotos que tirou com Pelé, Roberto Carlos e o presidente Lula. “Paraíba, tu e teu avô só têm um defeito: são alvirubros!”, me disse Bibiu, ao se despedir.

Bibiu, o senhor concordou com a biogra-fia que o jornalista Homero Fonseca es-creveu sobre sua pessoa? É verdade que o processou por “danos imorais”?

O dr. Homero Fonseca esteve várias vezes aqui em casa. Sentava nesse mesmo tamborete que o senhor está sentado, prosava muito comigo. Escreveu não sei

quantos cadernos. Quando li o livro, vi que ele mentiu muito, inventou muita coisa a meu respeito. Mas o que se há de fazer, não é? Uma moça, pesquisadora da uni-

versidade, veio aqui um dia e me esculachou, com base no que leu ali. Disse que eu era racista e machista e mais um monte de coisa que tá na moda hoje. Mas eu pergunto: em 1940, nos cafundós do Sertão, tinha alguma feminista?

E não é verdade que ainda hoje o brasileiro não elegeu ne-nhum crioulo para presidência da República? Até os ame-ricanos, que nem bebiam água no mesmo bebedouro dos

pretos, elegeram o Obama. Mas aqui nada. Então tem essas coisas. No livro do dr. Homero Fonseca também está que eu era contra o comunismo. Quase acabo uma amizade fina

porque o camarada era chegado a essas ideias. Mas a gen-te crescia ouvindo que os comunistas matavam até criança. Ora, e hoje o comunismo não está tão prestigiado assim. Mas

não vou me queixar do ilustre escritor, não. Ele me deu uma graninha que me permitiu comprar meus cachetes para reu-matismo. E eu, que depois de ter sido muito celebrado andava meio esquecido, voltei a ficar famoso: o Fantástico fez matéria

comigo, dei entrevistas à imprensa escrita, falada e televisada até do estrangeiro. Esse negócio de processo não é comigo, não.

Lendo Roliúde, fiquei impressionado com a quanti-dade de mulher que o senhor namorou. Como se conquista uma mulher?

Rapaz, não venha greiar comigo, não. Tô perto de completar 100 anos como aquele arquiteto que construiu Brasília e que eu conheci uma vez numa farra no Rio de Janeiro, aí por 1963, e caímos na

gandaia. Mas esse troço de conquistar mulher não tem cartilha, não. Mulher gosta mesmo é de pabulagem. Se você canta de galo, ou por-que tem dinheiro, ou porque é famoso, ou porque tem poder – se for as três coisas juntas, então é um desmantelo – as mulheres caem

direitinho. Mas cada qual tem seu jeito e eu não vou lhe ensinar o pulo do gato, rapaz, que já vi que você é mesmo é um sonso.

B I B I U

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Conversei uma vez com Hermilo Borba Filho e ele me contou que lá em Manaus havia um contador de filmes igual ao senhor: ia de canoa de cidade em cidade e ganhava a vida contando pro povo as histórias que via no cinema. O senhor conheceu esse concorrente?Ouvi falar nessa história, mas garanto que deve ser outra invenção do dr. Homero Fonseca. Ou então, se existiu mes-mo esse caboclo, ele deve de ter ouvido falar nas minhas façanhas, que eram contadas nos quatro cantos do mundo, e deu de me imitar, seja para ganhar dinheiro seja para vadiar com as índias da Amazônia. Mas posso lhe garantir, sem falsa modéstia: Bibiu só existe um e ele é essa pessoa exata que está na sua presença nesse momento, vivo e se bulindo.

Quais são seus filmes preferidos? Já deu algum “branco” na hora de contar um filme? E quem é mais bonito: Bibiu ou Marlon Brando?Camarada, desde pequeno me engracei por cinema, trem, folheto de cordel e mulher mimosa. E não tenho assim uma condição de preferência. Gosto de faroeste, aventura, safade-za, romântico (mais ou menos), kung fu e histórico. Um que eu gosto em especial é a Paixão de Cristo, pelas altas lições mo-rais e religiosas, embora, quando fui contar lá no Pajeú, tive que botar uma onça no meio pra agradar o coronel Patu – que Deus o tenha – e que só gostava de filme com onça. Nunca me deu branco nenhum, porque tenho boa memória, mas se eu esqueces-se algum pedaço não tinha problema, eu inventava ali na hora. … Marlon Brando não é aquele que fez Viva Zapata? Quem sabe dizer quem era mais bonito (que agora tô velho e encarquilhado) são as moças. Mas nunca me preocupei em me comparar com ele, nem mesmo com Rodolfo Valentino ou esse Brad Pitt. Só sei que sempre fui muito bem tratado pelo departamento feminino e, em troca, sempre tratei muito bem as damas, fossem elas solteiras, casadas, viúvas ou acompanhantes, como se diz hoje.

Esta foi a primeira e única incursão minha no jornalismo policial. Na época, Matheus aguardava julgamento no Aníbal Bruno. Todos temiam que ele fosse morto pelos presos, pois fora acusado de estuprar a mãe e a irmã e assassiná-las – sim, foi um crime que chocou a sociedade pernambucana na época. Mas descobri que Matheus era visto como um tipo de santo, um santo do assassinato. Só esta mística explica que ninguém quisesse dividir-lhe uma cela. Imaginei, aliás, sua cela cheia de desenhos, ou de cruzes, ou de Bíblias espalhadas. Não. Só encontrei um cubículo recém-pintado de branco, algumas revistas Manchete ve-lhas, empilhadas em um dos cantos da cela, e Matheus e seu olhar de santo. Talvez tenha sido isso que fez Raimundo Carrero escrever o romance O amor não tem bons sentimentos, editado pela Iluminuras, baseado na cobertura jornalística do crime. Quando li o romance, quase ouvia a voz infantilizada de Matheus – uma pureza azedada, que me fez sair do presídio numa febre de crise de fé.

M AT H E U S

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A polícia diz que o senhor assassinou sua mãe e sua irmã. É verdade? O que aconteceu mesmo? Por que o senhor diz que já morreu?Tenho lembranças confusas, não sei bem, não sei. Talvez, sim. Quem sabe, não é? Assim de repente vejo os policiais transformados em cachorros na beira do rio, por causa de minha mãe. Estavam me procurando. Mas Biba espirrou e eles saíram correndo. Possivelmente. Foi minha mãe Dolores que me matou com um refresco envenenado.

Acredita em Deus? Tem medo Dele?Acredito sincera e profundamente em Deus. Em Jesus Cristo e no Divino Espírito Santo. Nossa Senhora é minha protetora, assim como Santo Antônio. Deus não quer ninguém com medo, mas com respeito. E Nele, sim, Nele o “Amor tem bons sentimentos”.

Por que o senhor diz que está magoado com o mundo?Porque ele me causa dores e aos meus semelhantes. O mundo não merece tanta agonia, e minha cabeça sofre tanto. Sinto muita tristeza. E nostalgia. Fico pensando que a gente podia viver num Paraíso e os homens teimam em queimar o figurino.

O senhor fala muito de uma parente sua, Tia Guilhermina. Poderia falar um pouco mais dela?Tia Guilhermina era um ser real, embora eu a conhecesse superficialmente. Não tinha aquelas manias de cantora, mas eu gostei tanto que fiz várias cenas. Ela andava apressadinha, mas tinha juízo, embora de longe não parecesse. Uma pessoa honrada e boa. Gostava muito do mundo dela. E gostaria que ela me desse banho.

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Graumann, tenho a impressão de que você é um dos últimos nomes de uma espécie de “linhagem desconhecida” da literatura bra-sileira, da qual faz parte, por exemplo, Lúcio Cardoso. O que você acha?Eu consideraria uma grande honra participar dessa linhagem de “laterais” (outro nome para “desconhecidos” ou “quase desconhecidos”) que, na verdade, deveriam transitar, por justiça, no mainstream de nossa problemática literatura. Problemática, porque ela teve muitos caminhos partidos, des-viados, torcidos em acidentes de percurso (um exemplo: a for-ça nefasta dos “regionalismos”, no Nordeste e no Sul), e ain-da agora segue na busca do seu rosto em branco, ou daquela face real que ainda é uma lacuna lentamente preenchendo-se de alguns acertos prejudicados por frequentes equívocos.

Você poderia citar um “acerto” e um “equívoco”, na sua opinião?Crônica da casa assassinada, A menina morta, Confis-sões de meu tio Gonzaga foram acertos plenos e indiscutí-veis, modernamente falando (depois de Machado, de Pompéia e outros talentos de um grande início)... Quanto a um “equívoco”, me deixe em paz – que eu já tenho inimigos demais, meu rapaz.

Alguns pessoas que lhe conhecem, como Carpi-nejar, Milton Ribeiro e Mauro Portela, me confes-saram que você pensa em desistir da literatura. Por quê?Penso, sim. Estou me sentindo como uma piscina vazia debaixo das luas de janeiro. E a situação não me aflige, pelo contrário, até me agrada. Talvez eu esteja mais doente do que os médicos imaginam (com a proverbial falta de imaginação deles).

O que acha das academias de letras e outras orga-nizações de escritores do gênero? Aceitaria fazer parte de alguma delas? Não, nunca aceitaria. Escrever é uma danação. Se você aceitar a ideia de uma “academia de danados” (no sentido dostoievskiano da palavra) como algo normal, etc., então essa seria a justa Academia de Escritores. Um escritor é um possesso sob controle, transitando entre as pessoas comuns como um ser igual aos outros. Mas, ele não é igual, nenhuma artista o é – refiro-me aos verdadeiros artistas, evidentemente –, uma vez que os artistas que merecem tal nome são seres de exceção, criaturas endemoniadas que, nas suas obras, vampirizam a próprio ser a fim de expor esse terrível incômodo – a alma – como uma pele virada pelo avesso para secar ao sol.

LÚ C I OG R A U M A N N

O gaúcho Lúcio Graumann, o até agora único Prêmio Nobel de Literatura concedido a um escritor brasileiro, já esta-va muito doente quando o conheci, refugiado em uma praia

pouco frequentada da Paraíba. O nosso encontro aconteceu duas semanas antes do anúncio do Nobel. Eu estudava a sua

obra, principalmente o inusitado e pouco conhecido O livro das montanhas da lua, como bolsista de iniciação científica

do curso de Letras da UFPE. Minha orientadora, Sônia Rama-lho, era amiga íntima de Graumann e facilitou o nosso contato.

Encontrei-o numa rede, na pousada na qual se hospedava. Não descansava como um turista: magro, seu corpo estava largado,

mal rabiscado, torto. Com saúde, Graumann parecia com Jinkin-gs, o meu avô paterno, já falecido; ambos eram serenos. Mas ali,

Graumann era apenas um escritor esquecido; uma excentricidade de um país de intelectuais banguelas; um parente desconhecido. Não foi

uma entrevista fácil. Quando faleceu, no dia 02 de Novembro de 2001, por complicações advindas de um câncer, no Hospital Português, no

Recife, perdemos uma das mais singulares vozes literárias dos últimos 25 anos. Se o leitor da Eita! quiser saber mais, recomendo a leitura de O grau Graumann, do pernambucano Fernando Monteiro, editado

pela editora Globo.

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Texto Luiz Carlos PintoJornalista e doutorando em sociologia

Ilustração Isabella Alves e Isadora MeloEstudantes de design/UFPE. Juntas com o grupo Estampa dos Pampas fazem coisas gráficasdesde 2008

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Ah, o walkman... Quantos casais não se deram de presentes cassetes novos com listas de músicas como declaração de amor? Quantos enamorados elaboraram listas carinhosas? Quantas listas em cassete passaram anos para serem encontradas e ou-vidas, na longa distância que separa o fundo da estante e o acaso da mão que encontra? Quantos cassetes arquitetados não serviram como cartão de visitas: oi, eu sou este sujeito, que ouve essas coisas e tem um “três em um”…

O equipamento não foi o primeiro a permitir se escutar música em movimento. Desde a década de 1950 já havia receptores de rádio suficientemente pequenos para permitir isso. O que o Sony Walkman permitiu foi bem além da mera experiência de música descolada de um ambiente está-vel, o que já teria impacto muito grande - até o advento das tecnologias que permitiam o usufruto da música de forma totalmente individualizada, a experiência musical era necessariamente coletiva, a não ser, é claro, que se desse em uma situação de isolamento total.

O que o walkman permitiu foi uma das primeiras experi-ências de edição de listas de música. Pela primeira vez era pos-sível juntar pedaços de álbuns diferentes ao gosto do usuário e ouvi-los... Em movimento! Essa mudança parece muito evidente e sem maiores consequências, mas ela implicava no fato de que, com um aparelho “3 em 1”, qualquer sujeito podia se descolar também do padrão de experiência musical ditado pela indústria.

Lançado há trinta anos, o walkman trouxe mudanças

comportamentais na forma de se ouvir música

que transformariam a indústria fonográfica

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Na prática, a forma mais comum de fazer isso era gravar no cassete as faixas dos long players de acordo com o gosto e a intenção de quem pretendia ouvir ou dum fiel namorado, talvez de um promissor amor.

Claro, também era possível gravar do rádio.Na verdade, essa forma descolada e deslocada de apreciar

música que veio com o walkman não foi prevista pela indústria da produção de música, que teve que se adaptar - a indústria do entretenimento também chegou a vender álbuns no formato de cassete (lembro que o único cassete nesse formato que comprei foi o álbum Tudo ao mesmo tempo agora, dos Titãs).

E por causa desse uso imprevisto, também o walkman foi considerado uma tecnologia que permitia desrespeitar os inalienáveis e eternos direitos autorais. Ou seja, os marcos regulatórios que garantem o monopólio de exploração sobre a propriedade imaterial por parte das empresas do setor de entretenimento, porque é isso que são tais legislações – tanto na forma da common law, euro-peia; quanto em sua forma americana. Hoje as tecnologias consideradas nocivas ao sacrossanto direito

autoral são as redes P2P, os torrents, a navegação anônima e a criptografia – a não ser que seja usada pelas pessoas certas.

Nesse sentido, o invento do engenheiro japonês Nobutoshi Kihara é um capítulo importante no longo processo pelo qual vem passando a produção e o usufruto dos bens imateriais. Processo esse em que informação, cultura e conhecimento se desprendem de suportes físicos para serem usufruídos de forma mais autônoma.

Tecnologias, como o walkman em sua época, permitem subverter as formas padronizadas de acesso a tais bens imate-riais. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento dessas tecnologias faz parte do complexo processo de desenvolvimento do próprio capitalismo. De modo que o século XX, o século das tecnolo-gias que fizeram com que as indústrias fonográfica, do rádio, da TV, do cinema, dos conteúdos digitais se tornassem uma das principais fontes de riqueza, é o mesmo século que viu o desenvolvimento das tecnologias que evidenciam o caráter imaterial dessa mesma riqueza.

O que o walkman

permitiu foi uma

das primeiras experiências

de edição de listas

de música pelo

consumidor

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Compre um carro, se puder. Um bem material: use-o como bem entender. Mude a cor da lataria, altere pneus, calibragem do motor, espessura dos vidros. Chame os amigos para passear, empreste o carro, sugira novos usos para seu possante. A relação entre o vendedor-produtor e o consumidor não impõe a este último um modelo único.

Compre um CD, se quiser. Um suporte de um bem imate-rial: use-o como a gravadora previu. Depois, se cansar, procure alterar as formas de consumir a música contida no CD. Solicite ajuda. Copie o conteúdo e disponibilize em público. Peça suges-tões, acréscimos de ruídos, reduções de vibrações, alterações de frequências, procure por colagens, distorça, deixe a faixa-título parecida com o seu gosto pessoal ou de um certo grupo de pessoas a quem você queira agradar. Distribua o resultado de seu trabalho – e das pessoas eventualmente envolvidas. Você encontrará problemas. Por quê? Porque nesse terreno o capitalismo se preparou para que a relação entre o vendedor-produtor e o consumidor não se extinga – ao contrário do que acontece na nossa relação com bens materiais. O consumo dos bens imateriais é, mesmo depois de pago, subordinado a determinadas regras e restrições.

Entretanto, por não sofrer de escassez, tanto sua compra original, quanto aquilo que foi modificado, podem ser reproduzi-dos sem desgaste do original, sem perda. Com as redes digitais, o custo para a reprodução do CD original e das músicas alteradas será equivalente ao custo da conexão.

O incentivo às diversas tecnologias que permitem maior capa-cidade de manipulação de bens imateriais, entre eles o walkman; o estímulo aos processos, serviços e produtos de digitalização; a sedimentação de redes informacionais onde escoar conteúdos di-gitais e a aceleração do ritmo dos ciclos de reprodução do capital foram guiadas por um argumento sedutor: o aumento dos lucros. É esse o grande problema do capitalismo informacional: esses avanços desencadearam consequências imprevistas.

Entre elas, os bens imaterias se evidenciaram (se evidenciam), como tal. A emergência de instâncias produtivas e consumidoras de informação, cultura e conhecimento fora do mercado é, em última instância, um fruto bem-vindo daquilo que não estava em cena – daquilo que era, portanto, obsceno.

Um novo ambiente técnico-informacional está apenas se de-senhando. Nele, as vozes mais otimistas veem a possibilidade de que a produção imaterial gradativa e inelutavelmente seja associada ao bem comum, com mais benefícios para todos. Ou-tros, expectativos, preparam-se há anos para a guerra que essa possibilidade oferece. Outros ainda, pessimistas, descreem que a história se repete como farsa, como sugeriu Marx. E preveem não a abertura ao bem comum, mas a insidiosa repetição dos cerca-mentos – desta vez não dos campos públicos de pastagem animal do período feudal, mas das virtuosas possibilidades do saber.

Para muitos, é apenas o walkman fazendo 30 anos.

Leia mais:http://www.locoporti.blog.brhttp://www.lastfm.com.br/user/Luiz35/http://dialogosconsoantes.blogspot.com/

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UMA ARTE QUE NÃO

OUSA DIZER SEU NOME

Um artista plástico convida você e uns amigos para passear pelo rio Capibaribe, a bordo de um catamarã. Como diversão, uma orquestra de frevo e a leitura de um texto retirado da internet. Findo o “recreio”, você descobre que participara de uma performance artística. A explicação do cicerone é que aquele passeio (que fora selecionado por uma comissão curadora) não só era Arte, como se inscrevia no campo das artes plásticas.

Certamente, enquanto a performance era explicada, você e os demais convidados deviam estar perguntando onde residia a diferença entre aquele passeio de catamarã e os que são cotidianamente realizados pela empresa proprietária dessa embarcação de recreio (e, não raras vezes, também ao som de uma orquestra de frevo). Pois sendo aquela uma obra de Arte que se confunde com gestos e atos ordinários, que aos olhos de um transeunte

em nada difere das suas ações cotidianas ou das que ele observa no mundo que o cerca, qual foi, então, a base epistemológica que a curadoria lançou mão para contemplar essa ou aquela proposta e, por extensão, definir a qualidade daquele evento transitório e o grau de satisfação dos seus resultados?

Creio que as perguntas acima apontam duas reflexões distintas. Primeira, sendo a Arte uma busca por traduzir o mundo em linguagem (lembrando que

o próprio cotidiano já está saturado de linguagens), mas não uma linguagem que apreenda o real pela via da semelhança, como uma simples cópia, porém pelo caminho do fingimento e da diferença (daí Magritte afirmar que o cachimbo que pintara não era um cachimbo —

Até que ponto performAnces, vídeo-Arte e instAlAções podem ser chAmAdAs de Artes plásticAs?

Texto Anco Márcio Tenório Vieira

Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE

PerformanceDimitri Gargamel

Artista gráfico e street performer

FotografiaMarcelo Lyra

Fotógrafo da Agência Olho Nu Fotografia e colaborador do coletivo Santo Lima

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“Ceci n’est pas une pipe” —, pois sua repre-sentação pictórica só serve para ser apreciada e não para aspirar tabaco), como julgar uma ação que em nada se diferencia de um gesto pedestre? Onde está o limite entre as ações cotidianas e a linguagem artística?

Segunda: sendo essa performance acatada como uma manifestação das artes plásticas, como então podemos aplicar os procedimentos formais e de lin-guagem que nos valemos para abordar a pintura, a

gravura, a escultura e o desenho, quan-do nos voltamos a uma ação performá-tica? Isto é, como julgar determinados procedimentos que são específicos das artes plásticas (a exemplo dos matizes cromáticos de uma dada cor e seus contrates; a contextura do traço e da tinta sobre a superfície contínua da tela; os contornos leves ou espessos sobre uma imagem; o uso ou não do esboço como base à pintura; a composição e a proporcionalidade harmônicas das par-tes constituintes da obra; a textura vo-lumétrica das esculturas) e estendê-los a fim de avaliar uma performance, que

encerra uma linguagem completamente diversa: o uso do corpo como um “objeto” de criações senso-riais, i. é. o corpo não apenas como um meio, mas como a própria forma em si — seja como “objeto” que emana ações (gestos corriqueiros ou dramati-zados, sons, uso da respiração, movimentos lentos ou abruptos...), seja como “objeto” que adiciona em si outros “objetos” (roupas, maquiagens, ade-reços dos mais diversos...)?

Confesso que a primeira reflexão — o estatuto artísti-co da ação (trata-se ou não de uma obra de Arte?) — é complexa demais para ser discorrida no curto espaço que dispomos. Além do mais acredito que, grosso modo, Arte — sendo em si uma convenção — é tudo que um artista afirma sê-lo, indiferente da sua qualidade estética. E isso serve tanto em relação a uma pintura de Giotto, quanto para um ready-made realizado por Marcel Duchamp. Logo, não me interessa aqui colocar em discussão o estatuto artístico da ação que foi realizada sobre o rio Capibaribe, e sim como o autor da ação performática inscreve — e, por extensão, justifica — seu objeto no campo das artes plásticas – como podemos epistemologicamente analisá-la e julgá-la.

Vejamos: quando na década de 1910, Duchamp começa a ressignificar objetos triviais, de uso transitório, dando-lhes o estatuto de Arte, ele está levando ao limite um processo que, no campo das artes plásticas, começara com os impressionis-tas: evidenciar a forma e, com ela, a linguagem, em detrimento do tema; substituir temas tidos como nobres por imagens do cotidiano. Com seus ready-made, Duchamp empareda os princípios da Estética e o conceito de Belo ao nos mostrar que é antes o discurso que envolve o objeto (e não ele em si) que o torna uma peça artística. A grandeza de uma obra não está tanto no modo como o artista manipula a linguagem, mas no que está fora da própria obra: a discursividade que a cerca. “A escolha do ready-made é sempre baseada na indiferença visual, e ao mesmo tempo, numa ausência total de bom ou mau gosto”, dizia Marcel Duchamp. Quanto mais banalizado é um objeto, mais ele se torna invisível aos nossos olhos. Deslocá-lo de espaços, desfuncionalizá-lo do seu uso cotidia-no — logo, de campos discursivos — nos leva a perceber a beleza de suas formas e ver que o mesmo princípio (inclusive o da matéria-prima: metal, porcelana, vidro) que regeu a confecção de uma escultura como a Venus de Milus, também

Denominar uma performance

como inscrita no campo

das artes plásticas não é o mesmo

que continuar chamando o cinema

de teatro?

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foi aplicado na execução de uma peça de mictório ou de uma roda de bicicleta.

Se o princípio da confecção é o mesmo, os procedimentos formais para julgá-los também não foram alterados: tanto a Venus de Milus quanto o ready-made eram objetos es-cultóricos, tridimensionais, constituídos por uma determinada volumetria, textura, simetria, proporcionalidade e harmonia; o que se dilatara fora a ideia de Beleza: “podem as formas de um mictório ser tão belas quanto às de uma escultura de Vênus?”, perguntava a crítica. Mais: “não sendo o mictório uma peça única, fruto da manipulação arte-sanal do artista sobre o material escolhido, e sim resultado de um design que busca atender funções muito específicas (logo, objeto da reprodutibilidade técnica), ele pode nos suscitar emoção igual a da Venus?”. São paradigmas que vão reger as discussões estéticas nos campos da teoria artística e da crítica.

E aqui retornamos à ação descrita no parágrafo inicial: diversamente da “matéria-prima” substantiva que rege o ready-made, a da performance se volta para gestos e situ-ações cotidianas, pedestres. No entanto, se o ready-made e a performance terminam por acatar o discurso/conceito como mais importante do que a própria “obra” em si, o que separa a poética de Duchamp da performance?

Duchamp parte do princípio de que cada objeto — indiferente da sua utilidade prática e mercadológica — encerra regras formais que, em razão da sua função, passam desapercebidos por aqueles que o consomem. No caso da performance, a “experiência de vida” substitui tanto a ideia do “objeto encontrado” (ready-made), quanto a denúncia promovida por Duchamp de que é “o processo de merca-dorização que cria a Beleza dos objetos” (Umberto Eco). Na performance, “experiência de vida” se confunde com “experiência estética”, abolindo fronteiras entre os efême-

ros atos cotidianos e a “sacralização” hierárquica do ob-jeto estético.

Em traços ge-rais: para Duchamp interessa a desfuncionalização do “objeto encontrado” e a sua refuncionalização enquanto objeto de arte. Para o artista performático é a desfuncionalização da “ex-periência de vida” e sua refuncionalização como “experiência estética”. Ou seja, se em Duchamp há uma preocupação com os aspectos formais do “objeto encontrado”, inserindo-o no mesmo horizonte de linguagem dos demais objetos acatados então como artísticos, na arte performática esses aspectos for-mais se encerram em outra linguagem distinta: a do corpo e seus gestos em direção à “experiência estética”. Logo, os procedimentos formais que lançamos mão para analisar um

Na performance, “experiência de vida” se confunde com “experiência estética”

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ready-made são completamente distintos dos que nos va-lemos para julgar uma performance, não obstante esta ser uma retomada conceitual das ideias de Duchamp, assim como as deste foram desdobramentos da ruptura promovida pelos românticos em relação aos valores clássicos.

E aqui voltamos às questões epistemológicas da lingua-gem: se os procedimentos formais que usamos no intuito de interpretar e avaliar um ready-made (que se situa dentro do mesmo horizonte de linguagem da pintura, do desenho, da gravura, da escultura e suas congêneres) são distintos dos da performance, por que os artistas que fazem performance se definem como artistas plásticos? Denominar uma performance como inscrita no campo das artes plásticas não é o mesmo que continuar chamando o cinema de teatro, pelo simples fato de que o cinema se vale de alguns dos recursos da arte dramática? Ou seja, acatar o cinema como sendo um teatro filmado (por que não como uma ópera filmada? Ou a ópera como um drama cantado?) pelo fato de se valer de cenário, atores e de contar uma história por meio de uma ação, é desdenhar toda a linguagem que nasceu e só foi possível com a invenção do cinematógrafo (planos, enquadramentos, o uso da câmera objetiva ou subjetiva, o chicote, o contracampo, cortes, a montagem, as elipses, etc.).

Se não posso estender os mesmos procedimentos formais que utilizo para julgar um ready-made ou uma escultura, uma pintura, um desenho ou uma gravura quando avalio uma per-

formance, não seria ela, assim como a video-arte e as insta-lações, um novo gênero artístico? Estou convencido que sim. No entanto, a pergunta prossegue: por que seus criadores continuam se denominando de artistas plásticos e circunscre-vem suas obras no campo das artes plásticas, disputando os mesmos espaços (galerias, museus, editais de artes plásticas) dos escultores, dos pintores, dos gravuristas e desenhistas? Espaços estes que escritores, músicos, cineastas, arquitetos, dramaturgos e diretores de teatro não ousam participar (por reconhecerem que trabalham com linguagens distintas, que exigem procedimentos formais específicos), exceto quando são convidados a um evento multidisciplinar?

A resposta, creio, seria a mesma caso cineastas continuas-sem chamando seus filmes de gênero dramático: evocar para seu trabalho o prestígio estético-social-crítico que o teatro carrega e, por desdobramento, ocupar os mesmos espaços de prestígio — no caso, as casas de teatro — e os orçamentos que lhes são destinados. No caso do cinema, seria uma péssi-ma aposta, pois os orçamentos destinados ao teatro são hoje inifinitamente inferiores aos destinados ao cinema. No caso dos artistas performáticos, de video-arte e de instalações a aposta foi vantajosa: como seu produto não é comumente destinado à venda, a realização da obra conceitualmente pensada depende das dotações orçamentárias que os museus, galerias e editais destinam aos artistas plásticos e suas realizações. Sem falar que sua obra já nasce respaldada pelo aval das instituições

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promotoras e pelo circuito de crítica e curadores que estão por trás dessas instituições. Romper conceitualmente com as artes plásticas seria romper com uma das estruturas mais prestigiosas que as sociedades modernas construíram: as dos museus e galerias. Mas também é quebrar um sistema que gera bilhões de dólares hoje em todo o mundo: o da relação museu/galeria/curador/artista. Com a crise da Arte Moderna, na qual a linguagem plástica denota uma grande exaustão, os gêneros conceituais termina-ram por ser a panaceia para justificar toda a estrutura e o sistema que mantêm vivos as instituições de Arte.

Enquanto ninguém ousa dizer que sua performance, vídeo-arte e instalação cons-tituem um novo gênero artístico, estamos diante de uma Arte que não ousa dizer seu nome; e ao não enunciá-lo, aumenta cada vez mais a cesura entre o público e a obra: esta se vale de uma dada linguagem e aquele continua tentando abrir as portas dessa lin-guagem com uma chave inadequada. Entre um e outro, a figura do curador: explicando e justificando suas escolhas. Na verdade, justificando a sua própria existência ante produções que apenas revelam a miséria intelectual de quem as produziu.

Com seus ready-made, Duchamp nos mostrou que o discurso ao redor dos objetos é o principal responsável por nós os chamarmos de arte

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Conto Marilena de CastroExtraído da coletânea Recife conta o Natal Volume 2,

publicado pela Fundação de Cultura Cidade do Recife

Fotografia Osmário MarquesRoteiro e adaptação Cristhiano Aguiar & Heloisa Arcoverde

Direção de arte e cenografia Séphora SilvaAtriz Hilda Torres

Pintura (sem título) GregPintura “Síndrome do telefone vai tocar” Maurício Castro

I n t e r f l u x o 31

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Não sabia

quanto tempo

estava esperando,

esperando o quê?

Verificou os recados na caixapostal do telefone e os e-mails.

Arrumou a mesa com dois lugares e enfeitou a casa. O tender estava assado. Tudo pronto.

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I n t e r f l u x o 33

Um

go

le d

e v

inh

o: a

ndara pela casa e estava tudo

em o

rde

m.

Sonhava e esperava.

Esperava. Só ter esperança.

De quê?

Esperar quem?

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Acordara lembrando

do último dia do ano passado,

em que conhecera Paulo.

Ele, devagar e manso.

Ficou tão dentro dela

que nem percebeu que

se entregava.

Onde ele estava?Havia marcado.

Em todos os encontros,

as noites eram leves

e embriagantes.

Choravaquando recebiaas rosas vermelhas,tão vermelhas comoa paixão e uma mensagem: Eu te amo, querida.

34

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I n t e r f l u x o 35

Sempre se comunicavampela internet. Encontraram-se apenas duas vezes.

Mudou a música.

Ouviu a campainha e abriu

a porta para um jovem alto

e esguio vestido de Papai Noel.

Não havia o amanhã, só o agora.

A presença

ou ausência

que sentia,

ou a saudade

das mãos

ou do cheiro.

Súbito viu a mensagem

pequena que brilhava como

as estrelas: Feliz Natal, querida!

Estou em Miami.

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Stencil JuinColetivo de dois. Pinta os murosda cidade com stencil e humor

Foto Javier MartinezJornalista. Mora em Recife desde 2008. Pesquisa e fotografa grafites das cidades por onde passa para o projeto Arte Urbana http://flickr.com/arte_urbana

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T e s s i t u r a 37

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T e s s i t u r a 39

Texto Cláudio LacerdaBailarino, coreógrafo,

professor e pesquisador

Fotografia Moema MouraMotion designer,

ilustradora e professora

Performance Amanda GabrielAtriz e preparadora de elenco

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Como se dá a gênese da criação de uma obra de dança? Esta pergunta teria tantas respostas quanto criadores de dança. A criação se dá através de uma intrincada rede de relações, a começar do nexo entre os componentes do medium da dança – movimento, bailarino, espaço e som – e a partir de relações entre particularidades destes e do espectador: a maneira como uma obra é oferecida, incluindo o gênero e estilo no qual se enquadra (ou para onde aponta), como está emoldurada e situ-ada no espaço da apresentação, as visões de mundo e escolhas temáticas e de movimentos feitas pelo coreógrafo, a formação corporal deste e dos bailarinos, os tipos de corpos, gênero, etnia e classe social dos bailarinos, a maneira como a presença destes corpos é agenciada, as convenções teatrais e sociais e como o coreógrafo trata a representação de gênero. Todos esses fatores constituirão camadas significativas, as quais o espectador irá acrescentar/sobrepor as suas.

Criação em dança está diretamente ligada a escolhas, a todo momento, e as maneiras e caminhos para a criação desdobram-se numa miríade de possibilidades. Rosemary Butcher – pioneira da dança contemporânea na Grã-Bretanha – valoriza a criação em dança como uma prática, conquistada e maturada ao longo dos anos, um craft. Butcher necessita do corpo maduro do bailarino para que suas questões se corporifiquem. Em suas aulas de cria-ção coreográfica, muitas vezes impaciente com trabalhos insatis-fatórios de alunos, disparava: “coreografia não cai do céu”. Meg Stuart considera “o corpo como uma entidade física”, ou seja, o corpo como o sítio por excelência onde o trabalho vai fermentar. Pina Bausch vê a trajetória de um coreógrafo como “um processo muito vagaroso e [que] não acontece de um dia pro outro”, sem-pre começando de novo, precisando permanecer receptivo para “abrir novas portas”. Para levar adiante suas questões, é notória a necessidade de Bausch por bailarinos mais maduros. William Forsythe considera a dança “mais como um trabalho de pesquisa com resultados incertos”, um “processamento”, no qual as variáveis podem ser mudadas a qualquer hora em qualquer dire-

ção. Para trabalhar suas questões de desmontar e rearranjar ele precisa de corpos maduros, sensíveis e inteligentes. Márcia Milhazes leva anos em seus processos de criação, nos quais tra-balha minuciosamente suas obras. Segundo Milhazes, necessita-se de solidão para esse processo e as pessoas ultimamente não estão entrando em contato com esta solidão. Marta Soares igualmente precisa de processos longos, períodos de incubação das questões nas quais está imbuída, para delas poder destilar uma síntese no corpo e na cena. A criação também pode vir em jorro, como em Airton Tenório nas suas criações para a Companhia dos Homens.

Podemos elencar o que faz um coreógrafo consistente: uma formação sólida, preocupação em continuar pesquisando, curiosi-dade com o mundo à sua volta e capacidade de se deixar arrebatar por questões. Mas, selecionei esses artistas, de práticas, back-grounds e referências diversas, porque neles podemos encontrar o elemento diferencial da criação em dança: o atravessamento das questões no corpo. Na sociedade falocrática e logocêntrica ocidental, o corpo tem ocupado um lugar um tanto marginal, uma posição hierárquica inferior à linguagem, meio de expressão he-gemônico de nossa sociedade. Essa posição dota o corpo de um potencial transgressor forte e o diferencial que a dança tem a oferecer, mesmo com diálogos e colaborações com outras áreas artísticas, é justamente de as questões serem processadas, fer-mentadas no corpo. As obras dos criadores citados estão baseadas nesse atravessamento, o que faz deles corpos que importam.

A gênese de uma obra artística comporta duas questões: o que move a criação e a gênese de sua materialização ou atua-lização. Falando sobre a primeira, Suely Rolnik diz que o artista cria porque existe, antes de tudo, uma necessidade dessa cria-ção. Quanto à segunda, como o artista encara o espaço vazio ao seu redor e inicia um processo de criação? Para Gilles Deleuze, esse espaço não está vazio, pelo contrário, está repleto. De cli-chês, seja de referências artísticas, pessoais, imagens, sons, ..., “clichês psíquicos” e “clichês físicos”. Para ele, o artista “não tem de preencher uma superfície em branco, mas sim esvaziá-

O corpo tem ocupado uma posição hierárquica inferior à linguagem, na nossa sociedade.40

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T e s s i t u r a 41

la, desobstruí-la, limpá-la”. Isso é especialmente difícil quando se trata de um criador iniciante, que vem com sua taça cheia, transbordante. Também é um trabalho que se torna mais complexo para um criador maduro ou em vias de amadurecimento: limpar sua “tela” de mais e mais imagens e experiências acumuladas. Os primei-ros anos de um artista novato deveriam ser dedicados a aprender a esvaziar este espaço em branco. Claro que formação e informação importam, e muito, pois ajudam a ver e entender seu lugar no mundo, e aprender que a história da dança não começa consigo mesmo, que seria o primeiro passo nesta tentativa de esvaziamento. Esvaziar para deixar o corpo preparado para ser atravessado, para ser um corpo que importa. Sem esse atravessamento, o corpo vai ser um lugar de copiar/colar. Nos anos 80 e 90 encontrávamos montes de “afilhados” de Bausch; de re-pente começaram a surgir os de Forsythe e os de Jérome Bel, “afilhados” que tentam copiar a forma superficial desses criadores, transformando-se em simulacros turvos ou papagaios dançantes.

As maneiras como artistas da dança se sustentam financeiramente são diversas e só entre os exemplos enumerados encontra-se uma variedade de contextos. Necessidade criativa e viabilidade econômica são vari-áveis de uma equação sempre em conflito. No contexto brasileiro atual, os editais têm sido um mecanismo im-portante para suprir subsídios para as artes. São casos complexos de se analisar e que aqui não caberia em sua totalidade. Apesar de sua importância, faltam políticas a longo prazo para o desenvolvimento de continuidades ar-tísticas. Sempre é uma nova loteria ser aprovado a cada edital e ver o risco da continuidade de uma trajetória não ter subsídio garantido. Uma preocupação, tanto dos artistas novos quanto dos mais maduros ou em vias de amadurecimento, é de aprender a fazer bem um projeto.

Inaugurou-se uma era na qual determinados artistas começaram a fazer muito bem seus projetos e, ao conseguirem a aprovação, esqueceram-se de, antes, amadurecer seu ofício artístico, seu craft. Após aprovado um projeto, para criar a obra, obedecendo a prazos relativa-mente curtos, não há lugar para atravessa-mento nenhum, não há lugar para angús-tia da criação. E, aos borbotões, vão surgindo espetáculos vazios, sem consistência, sem burilamento, sem amadurecimento.

É triste perceber que esse fenômeno recente vem acom-panhado de outras questões. Palavras como pesquisa, in-vestigação, conceitual, ex-perimental, vão perdendo seu peso e tendo seus sentidos desca-racterizados, transformando-se em banalidades, simulacros, superficia-lidades sem consistência. Palavras como coletivo, história, memó-ria, tornam-se ficções manipulatórias para servir a egos e jogos de poder nas esferas artística, de ensino e de pesqui-sa. O exercício artístico se dilui e também o exercício da ética.

Deixamos aqui uma questão. Podemos, dentro da modernidade líquida, com sua ra-pidez e superficialidade de fast-food, pre-servar um lugar para a ética, a coerência e a integridade na criação artística e todas as relações, econômicas, sociais, políticas, que a envolvem?

O corpo tem ocupado uma posição hierárquica inferior à linguagem, na nossa sociedade. Por isso, a dança tem um potencial transgressor forte

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Questão continua insolúvel,

enquanto estilistas

concebem pequenas

obras-primas do consumo

Enquanto o poético cata-tainhas ainda transita na esfera do rústico-popular, sendo

pouco reclamado ao posto de uma categoria “maior”, a moda, faz tempo, já entrou

– e ficou – em vários museus, o ainda sacrossanto espaço da arte (por respeito

ao leitor, não vou evocar o supercitado urinol de Duchamp, deixa o homem

quieto). Especialmente nos últimos anos, com a popularização do tema no

País, não houve fashion week da vida que deixasse de incluir a palavra

“arte” ao lado de pérolas do nada dizer, a exemplo de “atitude”

e “estilo”. Essa ideia foi internalizada sem que o significado da

junção moda (reprodutível, mundana) e arte (única, exclusiva)

fosse questionado. Quem lançou uma centelha no tecido

foi o poeta Décio Pignatari quando, em 2007, disse

numa entrevista que a moda era a única vanguarda

brasileira que realmente bulia (e ele ainda deu uns

cascudos em Antunes Filho e Zé Celso, mas essa

é outra história). Mas as vanguardas estão

localizadas no campo artístico, não é

verdade? Então por que Paul Poiret, o

francês que no início do século passado

vestiu lindamente suas mulheres sem

apelar para o espartilho, não está (ou

não tem o peso equivalente) no mesmo livro

de sociologia da cultura que Baudelaire?

Quando recebi o pedido deste texto, estava passando uns

dias em uma praia repleta de adoráveis clichês (areia branca, coqueiros, mar transparente, etc., etc.), a cerca de duas horas do Recife. Escrever sobre moda e arte era o mote. Que enrascada, pensei direto, sem aspas. Naqueles dias, estava enamorada por um desses frágeis barquinhos de madeira, só o casco e um banquinho, tão comuns por ali. Azul claro e branco, pintado com um cuidado e uma delicadeza comoventes. Olhava para ele todos os dias. Detesto relativismos, que servem antes de tudo para aquecer briga em mesa de boteco, mas aquilo era uma questão maior. Pedi licença a Kant (foi mal aê, veio) e incluí para sempre aquele troço de pescar tainhas em minha Galeria das Coisas Belas. Mas por que diabos associo arte, panos, costuras, peixes e barcos? É que tanto um vestido desenhado por Balenciaga, quanto o barquinho azul e branco não se enquadram, à vera, no conceito clássico

das Belas Artes, aquele que nos lembra que Música, Dança, Pintura, Escultura, Poesia e Teatro são as

seis manifestações autorizadas a usar o prestigioso título.

Texto Fabiana MoraesJornalista e doutoranda em sociologia

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Par

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Em 2007, Décio Pignatari disse, numa entrevista, que a moda

era a única vanguarda brasileira que realmente se bulia

Sexo dos anjos à parte, a questão é pensar se

– e para quê – a moda necessita de tal comenda.

Pessoalmente, acredito que a sandália que o

estilista belga Dries van Noten criou inspirada

no trabalho do artista Pol Bury (pai de lindas

fontes parisienses, totalmente feitas com

esferas metálicas) seja uma pequena

obra-prima. Também já passei

tempos pensando num desfile da

Huis Clos, acho que lá por 2007, 2006,

no qual as modelos circulavam por entre

um tecido diáfano, aparecendo com vestidos que

conseguiam reunir com um incrível equilíbrio a ideia

de rigidez e suavidade, como origamis. E as mulheres

egípcias de Galliano, os vestidos de Cristóbal (nunca

alguém entendeu tanto o cor-de-rosa), os nadadores no

lugar dos botões feitos pela maravilhosamente maluca

Elsa Schiaparelli (que andava na mesma turma de

Cocteau e Dalí, diga-se). Pensar que essas criações foram

reproduzidas em série não as tornam menos “artísticas”

(agora seria a hora de evocar Andy Warhol, mas também

vou deixar o moço descansar), nem obras “menores”: elas

serão, daqui a alguns anos, pequenos resumos de suas épocas,

assim como é o retrato da Dora Maar de Picasso. O caráter

mercantil do sistema da moda, que é tantas vezes lembrado como

prova de sua incompatibilidade com a área elevada da arte (embora

os maiores consumidores dessa Arte Acima de Qualquer Suspeita sejam

os clientes preferenciais, ou os “clientes Van Gogh”), também não explica

por si só a pouca legitimidade das roupas.

O que se deve questionar é se o problema não está em crer que a

Contemplação da Beleza resi

de em poucos, os Escolhi

dos, assim como

também não são muitos aque

les que têm o dom de constr

uir o objeto

sobre o qual será la

nçado esse olhar es

pecial. Que a Arte Maiúscula

não pode circular en

tre muitos, como a roupa

que sai da passare

la

para ser copiada na loja de departamento, já que sua raridade é

seu maior valor. A necessida

de em afirmar que “moda não é arte” é

engessar, antes de m

ais nada, a própria

criação humana, compartimentá-la

em forma, assunto e propost

a. Ao mesmo tempo, colocar que, sim

, moda é arte (e

tem “atitude”, e tem “estilo”), soa entre bobo e

rancoroso, como se antes

de mais

nada houvesse a nec

essidade de um carimbo de dist

inção para conferir i

mportância

ao pano e à linha. C

omo disse Simonetta Per

sichetti recentemente, as c

oisas só têm

importância quando a

elas conferimos importância.

É sempre bom lembrar que essa postura – ditar socialmente o que “é” e o que “não

é” – é, antes de mais nada, política. Ao pé da letra, basta trazer artistas como

Kandinsky, visto como um produtor de quadros “sem utilidade” por parte dos

revolucionários russos que evocavam uma “arte do trabalhador”; da Bauhaus

tristemente fechada por nazistas. Determinava-se, ali, no papel e no fuzil, o

que era arte. Daqui a 10 anos, alguém com tarefas menos importantes para

dar conta (como ver o barquinho azul e branco repousando ali no mar) pode

conseguir tornar a moda na sétima das Belas Artes, fazendo soar alaridos

de alegria por parte de uns; de dor por parte dos outros. Enquanto

isso, espero, estarão por aí alguns Chalayans, Dries, Gallianos, Clôs,

Fragas, Andrés, Neons (com seus divertidos desfiles-happening),

Posens. Espero que também (rezemos, classe operária) haja

uma alma boa na equipe de criação da Renner, quem sabe

outra na C&A, que abra-se uma H&M no Brasil, todas elas

necessárias para fazer bonitos também aqueles que não

são clientes Van Gogh.

T e s s i t u r a 43

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conteceu há poucos dias. Marquei um encontro no Bar Princesa Isabel com o Martin, meu amigo, que abriu os caminhos naquela Havana ainda desconhecida, entre o final de 2007 e o início de 2008. Ele, que mora lá há alguns anos, me apresentou os principais personagens do meu livro, Viagem ao crepúsculo (Editora Casa das Musas), recém-lançado. Eu tinha que apresentar um de meus bares, claro. Princesa Isabel, ao lado do trabalho, no centro do Recife, e Seu Vital, perto de todas as boas lembranças, lar seguro do meu velho amigo Naná, no Poço da Panela, são

os prediletos. Também compete o Caudinho do Biu, no Alto José do Pinho de Canibal, Peste, Zé Brown.

Martin voltaria a Cuba, dois dias depois, para dar tratos ao curso de Medicina. Pobre, mãe analfabeta, ex-morador da Casa do Estudante do Nordeste, segue

firme, no quinto ano. Veio para rever os amigos, a família, a mãe. Como no dia seguinte eu viajaria para Tabira, no Sertão do Pajeú, era última chance de acertarmos umas coisas, conversar, tomar umas cervejas. Ele me leva-ria uma caixa de charutos vazia, eu veria o que mandar para Celeste, a personagem principal do livro.

Celeste é o nome que dei a ela, já que não podia botar o nome real dos cubanos que conheci. Precisava de um nome bem bonito, achei Celeste a cara dela. Esse meu namoro com as palavras tem disso. Celeste. Relativo

ao céu, ou que se avista. Ou está nele. Sei que Celeste não está propria-mente no céu, com sua vida duríssima, mas na minha constelação, ela está.

Martin me deu a caixa vazia de charutos. Não se preocupem. Sou um colecionador de coisas sem muita vantagem. Máquina de datilografia tenho

sete (vou receber outra esses dias, em troca de umas fotos que não são minhas), caixa de madeira tenho umas quatro, fotos da família tenho

uma penca, fora os cadernos, cadernetas, caderninhos e umas cinco canetas-tinteiro pifadas, que me lembram que já me

serviram, que me deram histórias, que andaram junto, nos bolsos e mochilas.

Peguei a caixa de madeira, abri, cheirei, estava perfeita, quadradinha como eu

imaginava. Pedi a Brahma que gosto e vi que Robertilha, meu

garçom predileto e tempe-ramental, não estava. O papo ficou por ali, naque-

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T e s s i t u r a 45

las besteiras fundamentais, nada de muito esforço com os assuntos, aperreio desnecessário. Na TV, aquele barrigudo chato e grosso do Datena mamava na desgraça alheia. Quanto pior a tragédia, mais ele baba. Não sei por que seu Azevedo, dono do Princesa, gosta tanto daquela desgraça.

Até que chegou o Edinho

Edinho é habitué do Princesa, o bom falante. Foi o único re-presentante da velha guarda do Princesa que foi ao lançamento do meu livro. Não sei o motivo, mas comprou dois exemplares e leu de cabo a rabo. Outro dia se pegou a me falar do livro com tantos detalhes, que parecia saber das histórias melhor do que eu. Se encantou com Celeste. Minto. Não foi encanto. Ele se emocionou com ela. É impossível não se encantar com ela, mas alguns se emocionam e fazem questão de me dizer. Ele não parava de falar da cubana que me hospedou em sua casa, que me contou tanto de sua vida e do povo cubano.

Quando apresentei o Martin a Edinho, ele se emocionou. Abriu um sorriso largo, parecia ter encontrado um velho ami-go. Novamente, passou a falar do livro, de Celeste. Emoção de verdade, de dar alegria a quem escreve. Os personagens que encontrei em Havana de repente estavam num boteco do centro do Recife, tomando uma Brahma comigo, enquanto a TV exibia um gorducho boçal e sua coleção de crimes.

Depois seguimos com nossos assuntos. Edinho foi conver-sar outras lorotas. Numa hora, saiu para fumar na calçada. Me aproximei. Conversei com ele, disse que estava vendo alguma ajuda para Celeste, que segue sua vida em Havana, vendendo coisas no mercado negro. Pensava em comprar umas roupas, uns colares, que ela é danada para vender coisas.

Edinho quase não falou nada. Meteu a mão no bolso e tirou uma nota de cem reais. Fazia era tempo que eu não via aquela verdinha.

“Isso é para ajudar Celeste”, disse. Deu um trago no cigarro.

“Essa mulher é sensacional. Um dia ainda vou conhecê-la pessoalmente”

Voltei para a mesa, entreguei ao Martin, que arregalou os olhos. Guardou o dinheiro e prometeu converter em dólares e entregar à minha amiga. Vai render mais de cinquenta dólares. Uma pequena fortuna para minha amiga. Talvez dois meses de trabalho duro em um hospital.

A única coisa que me ocorreu foi isso. Há um momento precioso nesse ofício de escrever, de contar histórias, de lutar com as palavras, de tentar mostrar ao leitor um mundo, um cenário, uma paisagem, uma vida.

É quando o que a gente escreve vira vida.

Para o Edinho, claro.

Texto Samarone LimaEscritor e jornalista, escreve crônicas

semanais em www.estuario.com.br

Fotografia Beto FigueiroaFotógrafo. Fotos realizadas em março de 2007, para a exposição “nome da exposição” na Fototeca de Cuba

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As cintilações cósmicas de Evaldo Coutinho:

um ensaio sobre existência

e arteTexto Zeca Viana

Músico, videomaker, desenhista e (quase) bacharel em filosofia pela UFPE

Ilustração Bruna RafaellaArtista plástica (com ênfase em desenho e videoarte), produtora cultural e mestranda em Artes Visuais pela

FASM (Faculdade Santa Marcelina, São Paulo)

Poucas vezes na história recente do Bra-sil, mais especificamente em Pernambuco, pudemos nos deparar com espíritos tão sutis como o de Evaldo Bezerra Cou-tinho. Nascido no bairro de São José, mais precisamente no Pátio do Terço, em Recife de 1911, Coutinho é relativamente desconhecido nos corredores das univer-sidades e faculdades pernambucanas, e ainda menos pela recente produção inte-lectual brasileira. Porém, com obras que figuram a existência e a espacialidade – íntimas moradas de suas investigações filosóficas, estéticas e arquitetônicas -, seu nome já reverbera ao lado de figu-ras de igual grandeza como Osman Lins, Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre, seu contemporâneo.

Em um sistema filosófico comple-to intitulado A Ordem Fisionômica, base de sua ontologia, Evaldo Coutinho se aprofunda nos limites existenciais do plano estético da arquitetura, nos hori-zontes alegóricos da repetição do homem

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no espaço arquitetônico, e antes, na estrutura do Ser que cintila no íntimo dessas plataformas. Nos nove livros que formam este sis-tema, brilha a língua portuguesa culta, com extasiante plasticidade, numa dinâmica quase barroca.

Existe uma lógica interna que permeia seu sistema criando uma cadeia viva em todos os volumes, eri-gindo uma só obra. Tudo se entrelaça proporcionando peças para uma inter-pretação radical de sua explicação ar-tística – no sentido mais profundo – do universo. Na completude de sua obra o homem Evaldo Coutinho se afasta da mortalidade e entra para o hall dos ver-dadeiros filósofos. Talvez o único com um sistema tão rigoroso, completo e engen-drado da língua portuguesa. Ali estão suas di-visões de mundo onde o Ser é, a cada morte e nascimento, a cada movimento no vazio arquitetônico, uma cintilação cósmica. “Deus é arquiteto”, costumava dizer.

Em meados de 2003 tive a oportunidade de encontrá-lo por duas vezes em seu tranquilo apartamento à beira-mar, ao lado da insepa-rável Giselda, e conversar sobre como se dava essa experiência existencial e estética em sua obra. Evaldo refletia: “Quando morremos todo o universo morre com a gente. O Ser cintila na morte e no nascimento, como estrelas no firmamento, são cintilações cósmicas, acen-dendo e apagando com medida.” No fim da tarde (alegoricamente) os pulsos artísticos dessa Eugonia Coutiniana, como em He-ráclito de Éfeso, visualizavam o Eterno no devir enquanto ação moto-perpétua na existência. “Não entramos duas vezes no mesmo rio”, pensei.

No livro A Articidade do Ser se explicita esse quase solipsismo. Assim como um Eu-verso, uma “Teologia do Eu”, segundo as palavras de Coutinho. Seu sistema tem um fio condutor es-tético – existencial, metafísico – que estrutura a composição do vazio no plano da arquitetura. Este vazio é

artístico, ele é possibilidade formal que determina a repetição das ações dos ha-bitantes do espaço arquitetônico.

A Imagem Autônoma é uma reu-nião de seus primeiros estudos e escritos sobre a nova arte, mais especificamente sobre a origem do cinema enquanto obra de arte. Este é um belíssimo contributo teórico para o cinema recifense e per-nambucano de um modo geral. Essa teoria tem que ser revisitada – ou re-conhecida – com profundidade por todos que fazem parte, ou pensam fazer parte, do proces-so de idealização, criação e articulação da produção cinematográfica do nosso esta-do. O cinema é investigado na sua origem estética enquanto obra de arte na relação formal, plástica e imagética do fenômeno artístico da matéria. Charles Chaplin e o cinema mudo são bases para suas refle-xões. Estruturalmente o cinema é visto e analisado em sua forma mais básica, ele é imagem autônoma, não apenas em movi-mento, mas viva, autossuficiente.

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T e s s i t u r a 49

A Composição do Vazio (2001), é um dos poucos registros da obra de Evaldo; uma cinebiografia produzida pelo dire-tor e roteirista Marcos Enrique Lopes, onde o espectador pode se aproximar desse vazio matemático, orgânico.

Essas são apenas silhuetas da gran-deza de sua obra, de uma vida dedicada ao conhecimento. Foi professor da Es-cola de Belas-Artes do Recife, fundou o Curso de Arquitetura da UFPE, formou-se pela Faculdade de Direito em Ciências Jurídicas e Sociais, foi crítico de cinema em Recife de 1929 (Jornal do Commer-cio), depois no Rio de Janeiro (Diário Carioca), entre 1946 e 1950. Conviveu com diversas personalidades como o poeta e arquiteto Joaquim Cardozo, do qual teve grande amizade, trocou idéias com Manuel Bandeira, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, convidou Ariano Suassuna para a Escola de Belas-Artes, entre tantos amigos e admiradores que deixou. Dizendo estar acostumado com o silêncio em torno de sua obra passou os últimos anos tranquilamente recluso, ditando seus pensamentos para Dona Giselda manuscrever – Evaldo apreciava escrever de próprio punho –, produzin-do até os últimos dias.

E assim, no dia 12 de maio de 2007, todo o universo morreu um pouco com o encantamento de Evaldo Bezerra Coutinho, um verdadeiro filósofo, que levou um pouco de todos nós com ele e deixou uma grande obra para renascer na posteridade.

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Ilusão. Pura ilusão. Enganaram vocês...

A fé de outrora está apodrecida.

O esterco acumulado durante o dia

Por nossa mente, corpo e suicidas fantasias

Explode em tiros, perfurando sonhos

Miolos e esperançaTudo pelo ralo. - Calem a boca!Esses gritos de agonia

Pneus em chamas por toda a avenida

O livre pensar vitimado

Pelos cérebros carrascos;

Sim, o ócio continua violento

Sangue cuspido na cara do progresso.

Progresso...Na calada da noite.

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Estupra

Deixa a puta. Grávida.

O progresso.Mãos, navalhas, e o sangue entre as pernas;

Jaz a puta.Jaz o feto.Hominídeo inseto.- Me deixem sair!O infinito a um pensamento de distância.

A porta aberta para mim

Porta que não entra e não sai.

Atravessa loucos, impacientes com fatigante jornada.

Um passo adiante e os ossos atrás.

Texto Raísa Almeida Feitosa Estudante de Design Gráfico pelo IFET-PE.

Membro do grupo literário Dremelgas

Ilustração Katalina LeãoArtista plástica, trabalha com intervenção

urbana, fotografia, vídeo, pintura e desenho

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Lançando mão do experimentalismo, novo filme

de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz trata das tensões

do mundo contemporâneo

KM 0Longa jornadaestrada adentro

Um homem, um para-brisa, um rádio a tocar Noel Rosa e uns versos que ecoam, não por acaso, “nosso amor que eu não esqueço, e que teve seu começo numa festa de São João, morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete, sem lugar, sem violão”. Uma estrada, talvez não tão perdida quanto outras retratadas nos road movies que o cinema se aperfeiçoou em oferecer, porém tão vasta e simbólica quanto o Sertão que ela corta, à navalha... O carro singra a terra seca e o geólogo Zé Renato explica sua missão de pesquisar o solo por onde, em breve, passará um canal ligado ao rio São Francisco. Em poucos minutos, descortina-se o mistério inicial de Viajo por-que preciso, volto porque te amo (Brasil, 2009), longa-metragem de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz exibido na mostra Orizzonti, no Festival de Veneza, na Première Brasil, do Festival do Rio, e na II Janela Internacional de Cinema, em Pernambuco.

A descoberta, contudo, não é de todo elucidativa. Há um mistério maior por trás de Zé Renato, personagem defendido por Irandhir Santos, aqui sem o corpo que lhe fez o Quaderna da adaptação televisiva para A pedra do reino, de Ariano Suassuna, o escorregadio comparsa de Amigos de risco, de Daniel Bandeira, ou o jovem que se encarrega de cavar a fossa por onde escoariam os detritos morais e físicos de Baixio das bestas, de Cláudio Assis. Quem é este homem que fala ao espectador da sua “galega”, que ficou na capital enquanto ele segue para vascularizar aquele chão inóspito? Quem é esse

Texto Luciana VerasJornalista pela UFPE e especialista

em Estudos Cinematográficos pela Unicap

Fotos divulgação/REC

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som sem imagem, essa voz sem uma face, inundando a tela com a descrição de uma saudade sem fim? E que Sertão é esse que aparece ora na dura composição das rochas e no horizonte pétreo, ora nos postos de gasolina onde mulheres se acotovelam à espera dos solitários?

Talvez a pergunta seja: que filme é Viajo porque preciso, volto porque te amo? Com seus 71 minutos, é quase um média, quase um longa. Com sua avalanche cromática e as ce-nas fotografadas em Super 8, digital, High 8, é um híbrido que parte da (inexistência?) das fronteiras entre os suportes a fim de unificar uma linguagem. Para erigir uma visão da vida, do mundo, do próprio cinema. Uma década atrás, o pernambucano Gomes e o cearense Aïnouz trabalharam juntos em Carranca de acrílico azul piscina. Algumas das passagens de Viajo... remetem a esse documentário experimental; outras carregam inevitáveis lembranças de Cinema, aspirinas e urubus, fil-me que em 2005 projetou Gomes no cenário internacional (prêmio do Ministério da Educação francês na mostra Un certain regard, do Festival de Cannes), e também de O céu de Suely, que em 2006 levou Aïnouz a lugares tão longínquos como Havana, Thessaloniki e Bratislava.

Mas é preciso ressaltar, a bem da verdade e de sua essência, que Viajo... não é uma colagem das obras anteriores, tampou-co uma continuação ampliada e amplificada de Carranca, ou ainda uma espécie de coda para as sinfonias de Aspirinas... e O céu.... O que definiria esse projeto? “Na realidade, esse é o nosso primeiro longa, que acabamos de depois de fazer o segundo e o terceiro. É um exercício que propõe e responde perguntas que nós temos em relação ao cinema. É necessá-

rio ver um personagem para um filme ser narrativo? É preciso que a narrativa tenha causalidade para o filme existir? Tudo em Viajo... tem a ver com essas questões. É nosso terreno de pesquisa, mais do que um objeto aonde queríamos chegar”, responde Karim Aïnouz.

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KM 100A educação geográfica & sentimental

A fertilização em Viajo porque preciso, volto porque te amo se dá logo a partir do protagonista. Zé Renato vagueia em um estado cambiante, à deriva, refém das próprias memórias. O estado de espírito do personagem se expressa, portanto, na cadência da fala e nos argumentos por vezes contraditórios, que aos poucos desnudam a real situação afetiva de alguém que nada pode fazer além de prosseguir a jornada. “Queríamos fa-zer um filme pessoal, com imagens que não fossem apenas nar-rativas, mas sensoriais, emocionais. Construímos o personagem nessa travessia, que de uma certa maneira é a mesma travessia que fizemos ao viajar por essa região. Há uma memória afetiva de nossa parte”, explica Marcelo Gomes.

Como toda memória é intransferível, particular, única, o fil-me é o espelho intacto de um homem fraturado entre ir e ficar, entre o urbano e o rural, entre amar e abandonar. Desse modo, sua estrutura sentimental, por assim dizer, converge para uma narração, e narrativa, em primeira pessoa. “É uma construção de um diário de viagem, no qual a plasticidade e a textura das imagens emocionam e provocam sentimentos. Aquele lugar, na verdade, não é mais aquele lugar; é como aquele homem abandonado, à flor da pele, repleto de sentimentos, anotando tudo, que aos poucos não é mais o mesmo homem. Sua caneta e as imagens são a mesma ferramenta de escrever um diário”, acrescenta Gomes.

Zé Renato, pois, vê-se na obrigação de se reeducar. Diante da ausência do afeto outrora lhe destinado pela mulher que deixou, ele se refugia nos ardentes afagos das jovens que es-preitam os motoristas de caminhão, os viajantes, os homens insaciáveis e os corações partidos nas rodovias. À medida que conhece novas pessoas, fotografa-as, capturando suas feições

marcadas, porém sorridentes em sua retina e, por conseguinte, na da plateia, a essa hora menos observadora e mais cúmplice. “O filme dialoga com álbuns de família, polaroids, foto digital instantânea. Com uma série de maneiras de olhar o mundo e registrar o cotidiano, como blogs, YouTube, fotoblogs. São modos contemporâneos de fazer um diário. Mas, ao mesmo tempo em que flerta com esses registros e maneiras de narrar e apontar, é um diário de viagem absolutamente clássico, um road movie, em que o personagem sai de um lugar para outro e a travessia o transforma”, situa Aïnouz.

Ou seja, o esteio de Viajo... é o da oposição, do anta-gonismo, até. O geólogo vive sob o signo da racionalidade até deparar com a demolição de suas certezas emocionais. A

Viajo.. . trabalha com os l imites

entre a ficção e o documentário, o industrial e o

artesanal

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palavra escolhida pelos dois diretores para consubstanciar tal rivalidade é fricção. “O que define a contemporaneidade? Os atritos, as pequenas fricções que se dão de diferentes maneiras, às vezes por meio de informações, outras por meio de etnias e temporalidades diferentes. O filme traz diferentes articulações sobre esse assunto. No próprio formato, carrega diferentes tempos. E o personagem está à procura de uma maneira de contaminar aquela região isolada com água. Há a sensação do pertencimento e do não pertencimento. A linha é cada vez mais tênue, como o é entre documentário e ficção, entre industrial e artesanal, entre o íntimo e o público”, contextualiza Aïnouz.

Entre o amor despedaçado e a paixão por uma vida que jul-gava além de si mesmo, segue Zé Renato, invisível na tela, mas quase palpável de tão nítido nos seus devaneios líricos, quase oníricos. Como diz Gomes, “quisemos construir um personagem que espelhasse os espaços abertos daquela região, daquela tra-vessia, que causam sentimentos. O personagem começa a olhar para si mesmo a partir da sensação de vazio que ele sente na estrada. Ele é extremamente clássico, mas lançamos a pergun-ta: você precisa ver o protagonista para se identificar com ele? Cada espectador pode construir o personagem que quiser”.

KM 200 O som e a fúria

Viajo porque preciso, volto porque te amo ensaia, de propósito, uma tensão estética, formal e afetiva entre o que já é consolidado e o que pode ser reagrupado, rearticulado, remodelado. “Tem começo, meio e fim, causalidade e transfor-mação. Brincamos com os cânones clássicos da narrativa para

entender como é fazer cinema dentro de um novo contexto. Qual o papel do cinema com a internet? Qual o papel do ci-nema quando o diário de viagem se tornou algo bem diferente e 90% das pessoas fazem mais fotos do que faziam cinco anos atrás?”, questiona Karim Aïnouz.

Videoarte, linearidade, artes plásticas, um protagonista não visualizado, paisagens corporais e sensoriais, uma trilha sonora com composições próprias e ícones do cancioneiro bre-ga-fossa-popular... De tudo isso se constitui o filme. “Há nele um aspecto caseiro, de ‘fundo de quintal’, de uma experiência cinematográfica. Foi um exercício de construir as emoções pas-so a passo, de elaborar em cima de imagens já filmadas, de poucos elementos. Quanto menos elementos você tem, mais se exercita como criador para construir toda essa carga de emoção”, situa Marcelo Gomes.

Acima de tudo, para a tela convergem o vigor e a potência da liberdade, a autenticidade de uma busca sem restrições e o desejo de reconfigurar parâmetros. Coesão e contraste, força e delicadeza, o local e o global; do Nordeste para o mundo intei-ro, dentro da fábula que é o cinema, no espaço da ficção e nas bordas do documental, surge Viajo. “Uma desobediência de todos os parâmetros sistemáticos, o frescor do erro e acerto. É um filme de aventura para nós também. Um road movie, como gênero, é de aventura, e esse filme é a documentação de uma aventura, feita dentro de um âmbito de alegria. Viva o prazer de fazer cinema, e de não saber fazer cinema”, resume o cineasta cearense. Afinal, como canta Noel Rosa, “tudo penso e nada falo, tenho medo de chorar, nunca mais quero seu beijo, mas meu último desejo você não pode negar”. Um desejo de reinvenção, pois.

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quem você

deixou de ser?

De onde vim? Para onde vou? Como vou pagar? Fora estas questões, a humanidade também vive um outro pequeno grande drama para tornar ainda mais divertida sua existência: quem deixei de ser? (talvez com um “Meus Deus” e uma exclamação no final). Quem deixei de ser? pode ser um belo motivo para enxaquecas em quem não está satisfeito com o ganha-pão. E, pior, para quem tinha talento para investir em outra área e, por diversas razões, não o fez.

George W. Bush tinha vocação para ser cowboy, mas encasquetou de ser presidente dos EUA; John Lennon tinha o dom para desenhar e pintar, mas optou por ser John Lennon; o maldito Mark Chapman tinha tudo para ser um ótimo vigilante, mas resolveu ser o assassino de John Lennon; James Dean possuía diversas aptidões, inclusive para pintar e tocar ins-trumentos, mas apostou em ser ator - que virou ícone, que virou morto, que virou lenda.

Os convidados da Eita! a responder a pergunta para esta aguardada terceira edição da revista, felizmente, estão de bem com suas profissões, sendo nomes festejados em suas respectivas atuações. Cada um revela aquele desejinho que ficou guardado, muitas vezes, no baú de suas histó-rias, e que, de alguma forma, pode até influir no trabalho que, por sorte nossa, vingou.

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“Deixei de ser padre, como minha avó e minha mãe queriam. A primeira comunhão, aos 5 anos de idade, foi tão decepcionante que acendeu uma chama ateísta em mim que nunca mais se apagou. Esperava sentir algum “barato”, falar com Deus... Enfim, qualquer coisa que provasse Sua existência... Mas o destino foi sábio, pois se eu realmente fosse padre, é muito provável que agora eu estivesse envolvido em algum escândalo sexual.”

“O mundo perdeu o quarto tenor, que cantaria

junto com Carreras, Domingo e Pavarotti nos

encerramentos das copas. Mas nem tudo está

perdido, o eco do banheiro me ajuda a minimizar

a minha frustração e a assustar os meus

vizinhos. E ainda posso soltar a minha voz

na estrada com a minha banda de rock...!”

“Deixei de ser cartunista ou desenhista de HQ. Quando era moleque, ainda na escola primária, vivia desenhando super-heróis e personagens dos quadrinhos, tipo Super-homem, Batman e o Pato Donald. Na época da faculdade, cheguei a publicar uma charge num jornal estudantil do Diretório Acadêmico de Comunicação. Sempre fui muito fã de Millôr, Henfil, e de revistas como Animal, Mad, Love and Rockets, Watchmen, etc.”

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Miguel Falcão Cartunista

Fred Zeroquatro Músico e compositor

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“Um homem quieto, voltado para a contemplação e uma

vida em recolhimento. Talvez dessa maneira

sentisse menos ansiedade. Poderia usufruir o tempo

numa outra medida, como se os dias fossem sempre

iguais. Aprecio os afazeres simples, que as pessoas

consideram menores, mas que têm para mim uma grandeza imensurável.

Gostaria de alcançar a justa medida, e depois

a modéstia e, se possível, a bondade.”

“Da infância para a adolescência deixei de ser médica e bailarina. Na adolescência, deixei de ser atriz e dramaturga, no início da fase adulta quase deixo de ser musicista para ser gerente de um centro médico... Mas ainda bem que deixei de ser isso também e voltei à música...”

Alessandra Leão Cantora e compositora

Ronaldo Correia de Brito Escritor

“Eu podia ser tanta coisa... Trabalhei como office-boy; pintor letrista; peão de serviços de decoração; mas nada disso eu planejava para mim, fazia por necessidade. Como também por necessidade, e meio por acidente, estou na minha área atual. Quando criança, compunha músicas com um amigo que tocava violão. Somando-nos a outros colegas começamos a nos apresentar nas igrejas e festas da vizinhança. Depois de um tempo, passei a compor nos estilos brega, pagode, rock e até jingles políticos. Também dei minhas canjas no vocal. Portanto, se tem tantos cantores e músicas ruins por aí, eu poderia estar nesse meio também. Mas as oportunidades que surgiram foram na área de jornalismo mesmo, e aí eu deixei de ser cantor e compositor.”S

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“Eu certamente poderia ter sido músico. Aprendi a tocar com muita facilidade, pegando um violão de um tio meu. Detalhe: eu sou canhoto, toco sem inverter as cordas. Quando tinha uns doze, treze anos, passava o dia quase todo tocando. A primeira música foi A boneca que diz não, uma versão que fez sucesso com Bobby di Carlo, depois Meu bem não me quer, de Renato e seus Blue Caps, também versão. Depois fui mais longe, e aprendi Roda viva. Cheguei a tocar numa bandinha de garagem. Lembro de uma festinha em colégio, tinha 14 anos, eu solando um tema de faroeste italiano, acho que de O dólar furado. Depois cresci, tive que trabalhar, fui deixando a música de lado. Com uns trinta e poucos anos, comprei uma guitarra. Mas aí não dava mais, faltava tempo. Mesmo assim fiz um bocado de melodias. Umas, acho, até legais. A guitarra, repassei pro meu filho, que toca um bocado. Tenho um violão ao lado do micro. De vez em quando pego o bicho. Mas por pouco tempo. Música, hoje, só ouço.”

“A música sempre fez parte da minha vida e me acompanha até hoje em meus trabalhos audiovisuais. Certamente, se não trabalhasse com cinema seria um músico. Desde pequeno, quando morava em Parnaíba, no litoral piauiense, estudava piano. Aqui no Recife, na adolescência continuei os estudos no Conservatório Pernambucano de Música. Toquei em algumas bandas, participei de vários corais, dentre eles o da COMPESA, quando lá estagiei na área de Segurança do Trabalho. Depois tive que voltar todas as minhas energias para o foco cinematográfico, fato que acabou me afastando da prática musical até certo ponto, porque na verdade o cinema também é música: a música da luz”.

José Teles Jornalista e crítico de música

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Como consumidora de Barbies, Melissas, filmes de

Almodóvar, santos católicos e mais uma infinidade de

indumentárias que fazem parte do universo kitsch,

desabafo: não aguento mais ver o termo ser usado como

sinônimo de mau gosto, exagero e vulgaridade.

Texto Hallina Beltrão Mestre em design gráfico e editorial

pela Elisava - Escuela de Disseny (Barcelona)

Ilustração (almofadas) Keops FerrazDesigner e ilustrador, BFA em mídia interativa digital -

Academy of Art College, São Francisco/CA

Nem tudo que reluz é

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Kitsch não é a sombra do Photoshop, a calcinha com textura de onça, a mú-sica do Wando, o perfume barato. O kitsch não é uma estética, um movimento artístico ou a própria antiarte. É a atitude de uma sociedade diante dos seus bens de consumo. Um estilo marcado pela ausência de estilo. É a mistura de vários elementos, em geral com o propósito único de ornamentação. Sobrepõem materiais, estilos artísticos, cores e estampas de forma harmônica e irreverente numa combinação que não tem regras. Vale misturar, no mesmo ambiente, an-jinhos barrocos, cópias de quadros de Picasso, imagens de santos, bonequinhos de plástico e o que der na cabeça. É a ideia do “so bad it´s good”, que faz do kitsch a arte da alegria e da embriaguez dos sentidos.

Não!O kitsch como estética produzida visando a aceitação de uma sociedade de consumo tem uma ética de

adaptação com a maioria. Suas mercadorias são componentes do universo da indústria cultural. É direcionada ao povão e alheia à complexidade da cultura especializada, vendendo efeitos fabricados com o objetivo de obter do público uma reação previamente calculada, reguladas pelo princípio da sua comercialização e não pelo seu conteúdo e estrutura. Um exemplo disso é o pinguim de geladeira. Grande ícone do kitsch, tornou-se febre nos anos 40, quando o refrigerador ainda era artigo de luxo e as donas de casa ostentavam o bibelô no alto do caro eletrodoméstico como um sinal de status.

Do ponto de vista histórico, o kitsch é dividido em duas fases. A primeira remete à época da ascensão da burguesia que, com as grandes navegações e a indústria manufaturada, conquistou uma posição privilegiada na sociedade. Cheios de dinheiro, os burgueses queriam possuir os objetos de arte que a aristocracia tanto ostenta-va, embora a um preço mais justo. Pintores e artesãos amadores eram contratados para reproduzir quadros, mó-veis, joias e artigos de decoração usados pela nobreza. Nessa fase, a cada objeto era remetido um grande valor sentimental. Era como se cada um fizesse parte da história do seu proprietário, que o conservava por toda a vida. O kitsch religioso, com altares caseiros, cheios de imagens, velas e flores artificiais, representa bem essa fase.

A segunda fase, o neokitsch, explode numa época em que o mundo (principalmente os Estados Unidos, recém-passado pela crise de 1929 e duas guerras mundiais) queria mais era esquecer os tempos difíceis se jo-gando na euforia do consumo. O kitsch indiscutivelmente perdeu a conotação de “arte de segunda mão” para tornar-se um fenômeno mundial. É o neokitsch, período áureo do kitsch, que dura até hoje. Nele, as pessoas já não têm relação afetiva com os artigos comprados e consomem por consumir. A ausência do sentimento faz do objeto um ícone vazio, cujo valor se sustenta principalmente no seu caráter, que está acima do fato de ser um bem material. O neokitsch é a sua própria referência - o “kitsch-kitsch”. O novo kitsch se estabelece defi-nitivamente na vida das pessoas a partir dos anos 60. Uma época em que tudo é propício para a sua ascensão. O multiculturalismo, a quebra de velhos preconceitos estéticos, a aceitação das diferenças e a sobreposição de velhos e novos estilos, enfim, tudo conspira a favor.

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Um dos aspectos importantes do neokitsch é o gadget (do inglês, artigo engenhoso). Ele vende-se por sua “pseudo” funcionalidade, que atrai o comprador com promessas de mil e uma utilidades fúteis. Pode ser classificado em dois grupos: os gadgets unifuncionais e os gadgets multifuncionais - estes podem ainda ter funções contí-guas (batom-espelhinho) ou não contíguas (canivete com cortador de unha, saca-rolha e outras funções que nada têm a ver umas com as outras). O gadget substitui a relação material entre o consumidor e o objeto por um jogo lúdico de mil possibilidades. Não importa se preciso de um celular para fazer chamadas telefônicas.

O aparelho será muito mais sedutor ao consumo caso tenha touch screen, câmeras integradas de alta resolução, MP3 player, TV, rádio, memory card e mais outras mil funções que nunca chegarei a utilizar.

Outro aspecto do neokitsch, seguramente o mais redentor, é o poder de dar um novo valor aos seus próprios ícones a serviço da arte. Numa época de indiscutível de-sencanto com o progresso, a originalidade e a experimentação formal, o kitsch recicla objetos do gosto popular para as galerias de arte das maneiras mais inusitadas.

Exemplo disso foi o movimento que povoou os anos 50 e 60. A pop art transformava símbolos da cultura popular e objetos corriqueiros da vida cotidiana em obras de arte. Latas de sopa, garrafas de Coca-Cola, quadrinhos, ídolos do cinema e da música foram sua matéria-prima. Encarava com ironia o consumo massificado, mas, ao mesmo tem-po, exaltava a cultura de massa, dando status de obra-prima a elementos da cultura popular. Enfim, a democracia da arte.

Recentemente, muitos artistas trabalham com signos do imaginário popular de dife-rentes maneiras. O fotógrafo Dana Salvo e as artistas plásticas Audrey Flack e Amalia Mesa-Bains resgatam os altares do kitsch religioso em suas obras. A última faz releituras fantásticas dos velhos altares substituindo as imagens tradicionais por figuras pouco santas como Frida Kahlo, Dolores del Río e sua própria avó. O trabalho do aclamado David La-chapelle também é um ótimo exemplo. O fotógrafo faz da sua obra um espelho da cultura popular atual. Multicolorido, divertido, ousado e impetuoso como só o kitsch sabe ser.

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Concepção e performance Biagio

Produção Rose Lima e Milena Andrade

Artista plástico convidado (bandeira) Sérgio Altenkirch

Registro audiovisual (doc) Alex Guterres

Registro para videoperformance Oscar Malta

Assessoria de imprensa Eva Duarte

Fotografia Déborah Guaraná

Apoio Sete Filmes

Urros MasculinosCasa da Moeda Canal das Artes

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Foi a primeira performance de uma série que o artista vem produzindo com foco no rio Capiba-ribe, seu leito (físico) e seu leite (ideológico). Foi basicamente uma collage da odisseia da nave Apolo 11 até o primeiro passo de Neil Armstrong na superfície lunar e a colocação da bandeira norte-americana naquele solo, em 20 de julho de 1969. Exatamente 40 anos depois, Biagio enfren-tou uma verdadeira “odisseia” no espaço urbano do Recife para, na manhã daquela segunda-feira, 20 de julho de 2009, fincar sua bandeira lunática

na lama do rio. Cosmopolitismo versus regionalis-

mo. O cosmo engolindo essa latitude 8º 04’03”s

- longitude 34º 55’00” w. do planeta azul. O uni-

versal conquista o típico. E hoje a lua corre sob

nossas pontes e é dela que tiramos esses siris

raquíticos. Feitos de lama e lua, somos sempre

quase reais, quase sempre lunáticos. Da lua da

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O texto desta revista foi composto em Fiendstar, fonte desenhada por Nicholas Garner em 2006. O papel da capa é o Supremo Alta Alvura 250 g/m2 da Cia. Suzano. Os papéis usados no miolo foram o Offset 120 g/m2 (três primeiros cadernos), o Kraft 120 g/m2 (quarto caderno)e o Chamois Fine Dunas da Ripasa 120 g/m2 (dois últimos cadernos). A impressão e o acabamento foram feitos em dezembro de 2009 na FacForm, Recife, com tiragem de 2.000 exemplares.

Contato dos colaboradores:Amanda Gabriel [email protected] Márcio Tenório Vieira [email protected]ê França [email protected] Figueiroa [email protected] [email protected] Rafaella [email protected]áudio Lacerda [email protected] Aguiar [email protected]éborah Guaraná [email protected]ébora Nascimento [email protected] Gargamel [email protected] Todé [email protected] Moraes [email protected] Beltrão www.hallinabeltrao.comHilda Torres [email protected] Alves [email protected] Melo [email protected] Martínez [email protected]é juva [email protected] flickr.com/coletivojuinKatalina Leão [email protected]

Eita! online:http://issuu.com/revistaeita/docs/eita1http://issuu.com/revistaeita/docs/eita2http://issuu.com/revistaeita/docs/eita3

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Keops Ferraz [email protected] Melo [email protected] Veras [email protected]ídio Leão [email protected] Carlos Pinto [email protected] Lyra [email protected] de Castro [email protected] Nunes [email protected] Cavalcanti [email protected] Moura [email protected]ário Marques [email protected] Faus www.paufaus.netRaísa Almeida Feitosa [email protected] Assis [email protected] Azoubel [email protected] Lima www.estuario.com.brSebba Cavalcante [email protected]éphora Silva [email protected] Zalma [email protected] [email protected] Viana [email protected]

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9 771983 184001

ISSN 1983 - 1846